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JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA SOBRE ARBITRAGEM E SOCIEDADE DE
ECONOMIA MISTA.
UMA LIÇÃO PEDAGÓGICA
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – TJPR
Agravo de Instrumento n. 174.874-9/02 –2. Vara da Fazenda Pública do Foro
Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba
Agravantes: Energia Rio Pedrinho SA e outro
Agravado Copel Distribuição SA
Relator: Juiz Conv. Fernando César Zeni
Acórdão de 13.04.05
Agravo de Instrumento n. 174.874-9/02 –2
Agravante: Copel Distribuição
Relator: Juiz Conv. Fernando César Zeni
Acórdão de 10.05.05
Os precedentes jurisprudenciais acima transcritos esclarecem quanto à
interpretação de importantes princípios e conceitos firmados na Lei n° 9.307, de 23
de setembro de 1996, Lei de Arbitragem, bem como contribuem para dissipar o
equívoco - que felizmente é cada vez menor -, em interpretar restritivamente a
possibilidade de o Estado e empresas estatais elegerem a arbitragem nos
contratos que firmarem com os particulares. No caso sob exame trata-se de
sociedade de economia mista que ao firmar contratos de compra e venda de
energia elétrica com empresa privada elegeu a arbitragem como forma de solução
de conflitos deles advindos.
Surgida a controvérsia referente ao pagamento da energia elétrica adquirida foram
instauradas as arbitragens na Câmara de Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas
– FGV. Todavia, insurge-se a sociedade de economia mista quanto à discussão
da controvérsia em sede arbitral, alegando que a matéria em tela seria
indisponível. Das discussões travadas parece que não houve a argumentação
referente à arbitrabilidade subjetiva, o que representa um grande passo adiante;
mas o mesmo não se pode dizer quanto à arbitrabilidade objetiva (compra e venda
de energia elétrica).
A arbitrabilidade subjetiva refere-se à capacidade da Administração Pública Direta
e Indireta firmar convenção de arbitragem, observando que como pessoa jurídica
(de direito publico ou privado) recebe o mesmo tratamento legal dispensado às
demais pessoas jurídicas de direito privado, posto que a capacidade civil para
contrair obrigações é o único requisito exigido pela Lei nº 9.307/96, art. 1º. Já a
arbitrabilidade objetiva refere-se à disponibilidade de direitos patrimoniais (art. 1º
in fine da Lei nº 9.307/96). Este conceito é freqüente e equivocadamente invocado
como conflitante com o interesse público. Porém, somente o interesse público
primário, aquele em que o Estado atua com poder de império é considerado
1
indisponível. Contudo, quando a Administração Pública Direita e Indireta age e
operacionaliza interesses públicos primários, estes se tornam interesses públicos
derivados, com reflexos patrimoniais e, portanto, disponíveis.
Foi exatamente neste ponto que o nobre juiz Fernando César Zeni respaldou-se
para exarar sua decisão. Conforme mencionado, os casos discutidos referem-se a
contratos de compra e venda de energia elétrica firmados por sociedade de
economia mista. Energia elétrica, como salientado nos julgados, é mercadoria, é
direito disponível (Lei nº 10.488/04, art. 4º §§ 5º e 7º). É, portanto, questão
econômica e não pública. Ademais, a sociedade de economia mista sujeita-se às
regras de mercado e à legislação civil em termos de contratos.
Saliente-se que a sociedade de economia mista não poderia, sob o manto da
indisponibilidade do interesse público (por integrar a Administração Pública
Indireta), eximir-se do que legalmente firmara (“pacta sunt servanda”). Não há
possibilidade, sequer, de anular administrativamente contratos, que regulam
relações da Administração em caráter privado (“não pode a Administração anular
atos realizados sob o império do direito privado” – TAPR , Ap. C. 247.646-0, 7.
CC, j. 11.02.04).
Note-se que para obstaculizar as demandas arbitrais valeu-se indiretamente de
expediente em ação popular, obtendo liminar, que fora cassada por decisão em
Agravo de Instrumento- AI proposto pela empresa privada (AI de 13.04.05) e
mantida no segundo AI, cuja agravante fora a sociedade de economia mista (AI de
10.05.05). Neste sentido passamos a comentar este último AI, posto que incorpora
toda a fundamentação da decisão anterior.
Cumpre ressaltar que além de discorrer sobre os arts. 8º e 25 da Lei nº 9.307/96,
este julgado sobressai-se admiravelmente ao determinar a preservação dos
institutos jurídicos do direito da arbitragem em face dos demais dispositivos de
direito material e processual. O nobre juiz demonstrando sensibilidade e
conhecimento advertiu, verbis: “...por isso afirmo, que as alegações da Copel não
são maduras, mas sim, inconvenientes, e visam, em última análise impedir, por via
oblíqua (a propalada ação popular), alterar todo o regime jurídico instituído pela
Lei nº 9.307. Seria muito conveniente eleger um árbitro, pagar por isso
(com
dinheiro público, frise-se) e depois, de maneira simplória, por meio das ações
judiciais, alegar que o direito discutido na arbitragem é indisponível (compra e
venda ?!?!?) e, portanto, não pode prosseguir. Simplesmente ininteligível.”
Esta passagem da decisão em comento revela-se da maior importância para a
efetividade da arbitragem, principalmente em causas nas quais figuram entes
públicos. É possível argumentar que ao valer-se de ações judiciais impróprias para
obstaculizar o regularmente pactuado, agride também a sociedade de economia
mista os princípios jurídicos da boa-fé e confiança, que devem reger todas as
obrigações, em especial as firmadas pela Administração.
2
Esta inclinação jurisprudencial em reconhecer definitivamente a capacidade da
Administração Publica Direta e Indireta em firmar a convenção de arbitragem,
tendência atual que muito provavelmente será sedimentada no direito
administrativo brasileiro, encontra suas bases nos contratos de concessão de
serviços públicos na época imperial; no precedente denominado caso Lage; no
caso Serveng/Civilsan, julgado pelo TJDF em 1999; o famoso caso Lloyd
Brasileiro v. Ivarans Rederi, sendo o extinto Lloyd uma empresa de economia
mista; a Compagás, no Estado do Paraná etc. 1
Importa realçar que a sinalização advinda do Judiciário em reconhecer e
referendar os conceitos e princípios da arbitragem tem não apenas repercussões
jurídicas, mas também econômicas, posto que representam diminuição nos custos
de transação, tanto para os contratos no setor público como privado,
especialmente no momento em que as primeiras parcerias público privadas
federais e estaduais começarão a ser firmadas.2
O mesmo ocorre no âmbito recursal e de reconhecimento de sentenças arbitrais
estrangeiras, que com a EC 45/2004, passou a ser competência do Superior
Tribunal de Justiça - STJ. Neste sentido sobressaem-se as recentes decisões
desta Alta Corte proferidas no Resp. 712.566 – RJ, j. 18.08.2005, Min. Rel. Fátima
Andrighi e na SEC 856, j. 18.05.05, Min. Rel. Carlos Alberto M. Direito, que
denotam esta preocupação, tal como assentado pelo Ministro Gilson Dipp, que ao
exarar seu voto na SEC 856, a primeira sentença arbitral estrangeira em que o
STJ aplicou a Convenção de Nova Iorque acentuou, verbis: “... gostaria de
salientar que tem sido altamente positiva a manifestação da doutrina, da
advocacia, e da magistratura quanto ao procedimento por este Superior Tribunal
de Justiça em relação à homologação de sentença estrangeira e ao exequatur na
carta rogatória, restando correspondidas as expectativas surgidas após a EC n.
45/04. Considero que este Tribunal tem, a partir deste momento e a partir deste
voto do Sr. Ministro-Relator, imensa responsabilidade em atuar, modernizar, arejar
a matéria sobre esse enfoque.”
Este precedente, além do enfoque administrativo do tema, retrata entendimento
quanto ao art. 25 da Lei n. 9.307/96, contemplando-o com os dois princípios
estatuídos no artigo 8º da citada Lei (autonomia da cláusula compromissória e
competência- competência). A ação popular foi posterior às demandas arbitrais e
as pretensões processuais eram distintas. A matéria objeto da arbitragem era
obrigação de pagamento de energia elétrica fornecida para a sociedade de
economia mista e a rescisão do contrato. Por outro lado, a ação popular visava
anular ato lesivo ao patrimônio público (Lei n. 4.717/65) e o seu provimento não
importa, necessariamente, a desconstituição ou anulação de todos os atos das
partes, ou seja, a ação popular possui partes, fundamentos e objeto distintos.
1
Cf nosso artigo Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos. Arbitrabilidade Subjetiva.
Confidencialidade ou Publicidade Processual ? , RDBA 21:387/407, jul./set., 2003.
2
Cf Armando Castelar Pinheiro, Economia e Justiça: Conceitos de Evidência Empírica, disponível em
www.ifb.com.br/documentos/castelar18_10pdf .
3
Ressalte-se, que na mesma linha de argumentação do juiz relator no acórdão em
comento, que enaltece a prevalência da arbitragem, o árbitro Gustavo Tepedino
ao manifestar-se aduziu que “a tramitação, pois, da referida ação judicial não tem
o condão, nos termos da ordem jurídica material e processual, nem mesmo em
tese, de paralisar os efeitos entre as partes do contrato que, por permanecer
plenamente válido, e eficaz, se sujeita, por si mesmo, à jurisdição arbitral em
curso; tão pouco é juridicamente possível, para dela eximir-se, invocar prevenção
em favor do órgão da justiça estatal, quando as partes elegem o juízo arbitral.”
Outra peculiaridade do art. 25 é que compete aos árbitros verificar, durante o
curso da arbitragem, a questão prejudicial que afetaria o julgamento a ser
proferido na arbitragem. Destarte, no caso em comento, considerando o tribunal
arbitral que tanto os contratos como as cobranças eram suscetíveis de serem
apreciadas na arbitragem, não haveria razão para suscitar a questão e, muito
menos, para encaminhá-la ao Judicial. O art. 25 faz com que a questão prejudicial
nasça e venha a ser deliberada no âmbito da arbitragem, pelo árbitro ou tribunal
arbitral, e não ao contrário, no Judiciário. Após verificação e julgada pertinente, se
fosse o caso, seria remetida a questão referente à indisponibilidade de direitos ao
Judiciário. Assim, compete ao árbitro configurar ou não a indisponibilidade do
direito em questão.
Neste sentido o acórdão analisado exarou correto entendimento ao esclarecer que
em decorrência dos arts 8º e 25 o tribunal arbitral tinha competência para analisar
a validade do contrato.
“Não se pode permitir que por vias oblíquas a Lei de Arbitragem seja reduzida à
inutilidade.” Esta é a lição pedagógica que fica deste precedente jurisprudencial.
Com efeito, construir a jurisprudência brasileira de arbitragem, atentando para
seus princípios e conceitos, procurando um ponto de equilíbrio na constelação
legal, sua interação com o direito administrativo, civil, processual civil, empresarial
etc. é tarefa que exige bom senso e equilíbrio do Judiciário, intérprete autêntico,
no dizer de Kelsen. Por fim, impende salientar que para o jurista português Cabral
de Moncada este consenso judicial denota que “a razoabilidade não é apenas a
qualidade subjetiva do juiz. É um predicativo objetivo do direito a constituir”, ou
melhor, “a construir”.
Selma Ferreira Lemes, advogada, Mestre em Direito Internacional pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Doutora em Integração
da América Latina pela USP. Integrou a comissão relatora da atual Lei de
Arbitragem. Professora e coordenadora do Curso de Arbitragem do FGVLAW da
Escola de Direito de São Paulo- EDESP/FGV. [email protected]
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