the good fight.p65 - O Olho da História
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the good fight.p65 - O Olho da História
Gabriel Lopes Pontes A boa luta perdida As reminiscências dos veteranos da Brigada Abraham Lincoln no filme The Good Fight Artista, historiador e educador. Especialista em Potenciais da Imagem pela FACED / UFBA. Mestrando em Artes Visuais pela EBA / UFBA. Professor da disciplina História da Arte Contemporânea da EBA / UFBA. Professor das disciplinas História do Brasil, História da Bahia e História da Arte da Faculdade São Salvador. Professor das disciplinas História e Educação Artística do Colégio São Tomaz de Aquino. o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 We few, we happy few, we band of brothers Shakespeare, Henrique V (Ato IV, Cena III) Sem a menor pretensão de inovar a estrutura clássica de um documentário, The Good Fight – The Abraham Lincoln Brigade in the Spanish Civil War1, de Noel Buckner, Mary Dore e Sam Sills, cumpre a missão didática a que se propõe, intercalando depoimentos dos poucos veteranos remanescentes da Brigada Abraham Lincoln (BAL), composta por voluntários estadunidenses que lutaram do lado republicano na Guerra de Espanha, com imagens da época, tanto animadas quanto estáticas. Cirurgicamente, uma narração clara e sucinta vai colocando o espectador a par do desenrolar dos acontecimentos, funcionando como ponte entre o passado e o presente. Não se pode negar que o filme tem o mérito de traçar um painel geral da Guerra de Espanha para quem está total ou grandemente ignorante a seu respeito, sem, com isto, deixar de oferecer novas e ricas informações para quem já pode se considerar satisfatoriamente, ou mesmo muito, versado no tema. Ou seja, pensando essencialmente em informar o grande público leigo, cuja inteligência não desprezam, os realizadores do filme também estão oferecendo ao profissional de História uma gama de dados relevantes que não teriam sido trazidos à tona de outra maneira. Ao mesmo tempo discurso sobre a História, na medida em que se debruça sobre o passado, e testemunho da História, pois registra imagens (e sons) no presente, The Good Fight seguramente é um documento imagético-textual de suma importância sobre a grande luta fratricida espanhola e, mais especificamente, sobre o envolvimento voluntário nela de estrangeiros oriundos de nada menos que 54 nações2, e, mais especificamente ainda, sobre a participação da Brigada Abraham Lincoln no conflito. Foi em 1931 que se instalou a república espanhola, com a abdicação do rei Alfonso. A implantação do novo sistema de governo significou a ruptura do país com seu persistente passado de pobreza e dominação clerical. A nova república precisava desesperadamente de um programa de reforma agrária e tratou de promovê-lo. Instituiu, também, a imprescindível separação entre Igreja e Estado. E, já no seu primeiro ano de vida, ergueu nada menos que 8.000 escolas, desesperadamente necessárias num país ancestralmente massacrado pelo analfabetismo. Como é normal em todas as democracias, a república espanhola assistiria a uma oposição entre as forças conservadoras e as renovadoras. Porém, no caso espanhol, esta oposição foi muito mais radical, pois a ala conservadora era composta pelas velhas forças dos militares, da Igreja e da aristocracia, que sonhavam com a restauração dos privilégios de que gozao olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 vam na antiga ordem, e a ala renovadora por anarquistas, socialistas e comunistas, que demandavam mudanças ainda mais radicais do que as que já estavam sendo operadas. Em 1935, comunistas, socialistas e liberais de toda a Europa e dos EUA se unem numa coalizão contra a ascensão do nazi-fascismo, denominada Frente Popular. No filme, se vê nos cartazes das manifestações da FP, com total clareza, o profético slogan: “Parem! Ou será a Segunda Guerra Mundial!”. A grande maioria dos estadunidenses, no entanto, muito mais preocupada em esquecer as agruras da Primeira Guerra Mundial do que em denunciar o risco de uma segunda, mergulhava febrilmente nas delícias fúteis e beócias do american way of life, como concursos sensaborões de lavagem de pratos, corridas de ovos empurrados com a língua ou competições de carrinhos de rolimã. Uma das tarefas a que a parcela consciente da população tinha se imbuído era justamente a de prevenir a parcela alienada, como sempre desgraçadamente majoritária, que esta plácida futilidade poderia não só não durar para sempre como ser brevemente extinguida. Neste ínterim, na Espanha, mais precisamente em 1936, uma coalizão liberal de operários, camponeses e representantes das classes médias elegeu um governo da Frente Popular. As velhas forças, principalmente o exército, vêem neste governo o coup de grâce nas suas esperanças de restauração do an- tigo status quo, que lhes era tão favorável. Em julho, o General Francisco Franco desencadeia, desde o Marrocos, uma insurreição militar. O visível quadro de mudança social por que estava passando a Espanha neste momento faria a enfermeira Evelyn Hutchins, que se juntaria a BAL, pensar consigo mesma, ao tomar conhecimento do golpe franquista, que “Isto não poderia estar acontecendo num país tão adorável”. Arrogante como todo tirano, Franco achava que tomaria a Espanha em uma semana, mas não contava com a ferrenha reação de seus conterrâneos. Comovem, no filme, as imagens de crianças nas passeatas contra o golpe, portando faixas e gritando “No passarán!”. Os defensores da República, chamados legalistas, pararam o avanço rebelde / militar / franquista / alegadament3 e nacionalista em Madrid. Contra esta reação espontânea, Franco contará com a decisiva colaboração de Hitler e Mussolini que, ao longo do conflito, enviarão, conjuntamente, cem mil tropas e aproveitarão o fratricídio espanhol para testar novos e tremendamente mortíferos armamentos contra milicianos mal-armados e civis indefesos. Logo, Franco terá que enfrentar outro obstáculo inesperado: a adesão de voluntários de praticamente todo o mundo, os chamados Internacionais. A Brigada Abraham Lincoln destacou-se, dentre todos os grupamentos de voluntários estrangeiros que defenderam a República, como um dos mais ativos, e, também, como um dos que maior número de baixas teve4. Foi, também, a prio olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 meira unidade de combate estadunidense totalmente “integrada”, ou seja, sem descriminação racial. Mas a história da BAL começa muito antes dos combates na Espanha, nos duros tempos da depressão, que trouxe não apenas desemprego e fome mas também raiva e protesto. Foi a depressão que politizou os despolitizados, que esclareceu os alienados, que explicitou para os explorados toda a virulência da sua exploração. A depressão tem por conseqüência uma eclosão, por todos os EUA, de sindicatos, partidos e toda sorte de associações, não necessariamente comunistas, engajadas na modificação da estrutura sócio-econômica. Há, neste momento, como que um furor de politização que varre o país de costa a costa e que é magnificamente bem registrado no célebre romance do prêmio Nobel John Steinbeck, Luta Injusta. Num certo sentido, a BAL é filha direta da depressão. Segundo o veterano Tom Page, desfrutar da camaradagem presente em toda e qualquer das manifestações anti-guerra e / ou anti-fascismo que proliferavam no entre-guerras, era “um sentimento maravilhoso”, que fazia com que ele se deslocasse, por qualquer meio disponível, para qualquer ponto do território estadunidense onde essas manifestações pudessem estar ocorrendo. A postura de Page é bastante ilustrativa de um certo espírito libertário que caracterizava os EUA à época e que explica, em grande medida, a significativa adesão de voluntári- os estadunidenses à luta pela República espanhola que logo iria se verificar. A guerra na Espanha era mais uma peça, impossível de ignorar, num panorama mundial realmente assustador. A Itália havia atacado a Etiópia, o Japão a Manchúria, a Alemanha estava em processo de anexar largas porções territoriais do continente europeu. As potências totalitaristas esticavam as garras e o nazismo chegou ao grotesco ápice de propor o direito de uma “raça” governar todas as outras. A sensação, portanto, de que o inimigo não era exatamente Franco, mas o fascismo, do qual ele era apenas uma das múltiplas e multifacetadas manifestações, estava ficando cada vez mais nítida, bem como a impressão – talvez fosse melhor dizer: a consciência – de que ninguém estava a salvo do que estava acontecendo. Na América, era fácil sentir os primeiros sintomas da concretização desta ameaça, pois surgiam organizações filonazistas e anti-semitas e sempre havia a onipresente, intolerante e racista Ku Klux Klan. Tudo isto deixava claro que, se o horror nazi-fascista fatalmente conseguisse cruzar o Atlântico, encontraria fácil acolhida para proceder a uma total expansão intercontinental. En passant, é interessante assinalar que será justamente uma manifestação anti-nazista em território americano que levará Hitler a adotar definitivamente a bandeira vermelha com a suástica negra sobre círculo branco como novo pavilhão nacioo olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 nal alemão. Trata-se do ataque desencadeado por um grande grupo, do qual fazia parte o futuro membro da BAL, Bill Bailey, contra o navio alemão Bremen, quando este atracou no porto de Nova Iorque portando, desafiadora e arrogantemente, a flâmula nazista. Bailley e seus companheiros conseguiram arrancar a bandeira, o que deixou os alemães da tripulação “loucos da vida” e levou Hitler a exigir uma retratação, e, por fim, a aproveitar o incidente como pretexto para banir definitivamente a já em desuso bandeira republicana. Mas, nem na África, com a agressão italiana da Etiópia, nem na Ásia, com a invasão japonesa da Manchúria, as potências totalitaristas em ascensão encontraram resistência significativa e muito menos eficaz contra seu poderio bélico. Na Espanha, ao contrário, a agressão franquista não só tivera seu ímpeto contido pelas forças populares como estava sendo dobrada por estas. Ajudar a derrotar o franquismo, então, era a chance de provar, na prática e de um só golpe, que o fascismo não era imbatível e que o povo era capaz de reagir contra os que tentavam se apropriar do seu destino. Assim que a guerra começa, nada menos que 27 nações européias formam o Comitê de Não-Intervenção e assinam um pacto, comprometendo-se a não vender armas para nenhum dos dois lados em choque. Em janeiro de 1937, os EUA seguem a liga européia e criam seu proprio embargo, pela primeira vez em sua história recusando-se a vender armas a um governo legalmente eleito. Declara no filme a enfermeira Ruth Davidow, integrante da BAL, que “Era inacreditável que uma democracia estivesse sendo vilipendiada e invadida diante da absoluta indiferença das outras democracias.” Na verdade, indiferença não é o termo certo, pois a indiferença é a máxima manifestação da neutralidade. E esta recusa generalizada em não armar nem municiar nenhum dos dois lados era tudo menos neutra, pois mascarava um esforço em deixar entregue à própria sorte o lado visivelmente agredido – os legalistas – pois o lado visivelmente agressor – os nacionalistas – prescindia de qualquer outra ajuda além da que já recebia. Tal postura é parcialmente explicável por um fenômeno que poderíamos chamar O Triplo Medo: medo de que o conflito civil na Espanha se desdobrasse numa nova guerra mundial; medo de que o governo liberal espanhol se tornasse comunista e medo de desagradar Hitler, já poderoso o bastante nesta época para que nenhuma nação desejasse ter que medir forças com a Alemanha, totalmente sob seu comando. Dentre todas as nações do planeta, só com o México e a URSS os legalistas podiam contar. A intervenção nazi-facista na guerra será de uma violência inédita. Pela primeira vez na História, a aviação militar bombardeará sistematicamente populações civis. Para dar a dimensão exata deste genocídio dantesco, os realizadores do filme o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 privilegiam o poder informativo das imagens, mostrando pessoas sendo retiradas dos escombros, rostos atônitos e em pânico, esquifes amontoados como numa instalação deliberadamente mórbida de Yoko Ono. Informações textuais, se fossem acrescentadas a essas cenas, poderiam, quando muito, enfatizar todo seu horror, se é que não o abrandariam. Portanto, a opção dos realizadores é consciente e revela-se correta. Com Madrid virtualmente tomada, a ajuda aos legalistas chega de todos os cantos do mundo, na forma de idealistas que enfrentam toda sorte de perigos e dificuldades5 para engrossarlhes as fileiras. Os voluntários formam as legendárias Brigadas Internacionais que se subdividirão por língua e nacionalidade, cada uma delas batizadas em honra a um herói de seu país de origem. Nos EUA, o Partido Comunista organizou a convocação de voluntários, afirmando que estava apenas reunindo trabalhadores para enviar à Espanha. Por conta desse ardil, juntaram-se à luta pela República muitos voluntários que não eram comunistas. Os entrevistados do filme exerciam diferentes funções quando partiram para a Espanha e se uniram na BAL. Diante da persistente recusa do governo de seu país em ajudar o governo republicano espanhol legalmente eleito, tudo que restava aos jovens idealistas estadunidenses era agir por conta própria. È claro que, para se engajar na luta na Espanha, os que então viviam no estrangeiro precisavam estar a par do que estava acontecendo em território espanhol. Neste sentido, se verifica a importância de um fenômeno significativo da época, que é o fato das pessoas estarem se tornando mais e mais conscientes do que estava acontecendo no grande mundo para além do seu micro-mundinho, através da maior disponibilidade de meios imagéticos de informação. Por exemplo, logo em uma das primeiras cenas de um excelente filme ficcional inspirado na Guerra de Espanha, Terra e Liberdade (Land and Freedom), de Ken Loach, um propagandista republicano expõe, a uma platéia de operários, na Inglaterra, a situação na Espanha, para isto empregando farta e eloqüentemente imagens cinematográficas. Se Jules Verne, através de Phileas Fogg, protagonista do seu romance A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, já no final do Século XIX, declarava que o mundo tinha ficado menor, graças à melhoria dos sistemas de transportes possibilitada pela Revolução Industrial, verdade inconteste, é igualmente inegável que com o advento, o incremento e a difusão dos meios mecânicos que permitem capturar e reproduzir imagens animadas, o mundo ficou menor ainda e também bem mais rápido. E é justamente esta diminuição das fronteiras espaciais e esta redução nos intervalos entre o desencadear dos fatos e a sua divulgação por via das imagens que vai permitir que o mundo tome noção da tragédia espanhola, na sua real dimensão, simultaneamente ao o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 seu desenrolar. Seguramente, o teor dessas imagens, amplamente divulgadas, deve ter influenciado muito na decisão de milhares de jovens em torno do globo quanto a se juntar ou não à luta, dirimindo as dúvidas dos que estavam ainda vacilantes ou ratificando a certeza dos que já haviam se decidido. A sensação de pertença a uma mesma classe oprimida, evidentemente, também contribuiu para que fronteiras de todas as espécies fossem ignoradas. A luta dos Internacionais não é apenas pela República. Muitos deles, inclusive, eram anarquistas e, portanto, não acreditavam em nenhuma forma de governo, o republicano aí incluído. Tampouco sua luta é pela Espanha, pois a Espanha não é sua pátria. Também não é pelas pessoas ameaçadas que eles lutam. Haviam pessoas em perigo devido a guerras em todo o mundo e isto não fazia com que eles se deslocassem para as zonas de conflito a fim de defendê-las. Sua motivação tem um consistente viés humanitário, sem dúvida, mas é, essencialmente, política. Antes de lutar por aqueles que estavam sendo ameaçados pelos rebeldes franquistas, eles lutam por aquilo que está em risco. A luta, para eles, é menos uma luta entre civis partidários de uma república recentemente instaurada num país estrangeiro e militares golpistas que querem derrubar esta República do que entre a liberdade e a opressão, entre o progresso e o retrocesso políticos representados, respectivamente, por legalistas republicanos e nacionalistas franquistas. O “teatro de operações”, no fundo, é irrelevante. Se juntar às Brigadas Internacionais, em suma, não significava apenas lutar pela república espanhola, mas uma oportunidade prática de se opor ao nazi-fascismo em ascensão. Segundo o veterano da BAL Abe Osheroff, “Havia a sensação de que algo grande estava acontecendo e que o que estava sendo feito individualmente não era satisfatoriamente suficiente.” Mas talvez seja a ex-enfermeira da BAL, Salaria Kea O’Reilly, quem melhor sintetize, mais do a que vontade de lutar dos voluntários, a sua crença na necessidade de lutar, ao afirmar: “Era meu mundo também. Eu não podia ficar sentada só olhando as pessoas fazerem o que era errado.” Ed Balchowsky, que julgou a perda da mão direita um preço irrisório para o que obteve em troca, e que continuou a se acompanhar ao piano com a esquerda, cantando canções libertárias em Alemão, resume tudo com desconcertante simplicidade: “[Ir para a guerra] Parecia a coisa perfeitamente natural [a fazer]”. Declarações como estas deixam claro que não foram confusos mecanismos mentais que levaram tanta gente, de tantos lugares diferentes, a se sacrificar tanto por uma causa que não era sua. É que a causa era deles. Era de todos. Era do mundo livre. Se juntar à luta não era uma excentricidade quixotesca. Era um imperativo óbvio. Mesmo aqueles que não cerraram fileiras efetivamente o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 junto à República espanhola, compreendiam a justeza da sua luta e a vilania que representava o embargo. Desde o cidadão comum até celebridades do show bussines como os band-leaders Cab Calloway, Jimmy Lunceford e Fats Waller, o lendário compositor de Blues W.C. Handy e o cantor lírico Paul Robenson, este último cantando para os combatentes, manifestaram seu apoio à causa republicana. Desgraçadamente, apesar de 75% dos eleitores estadunidenses pedirem a suspensão do embargo, seu governo permaneceu irredutível. Nem mesmo o engajamento do cinema pôde reverter a situação. Este engajamento, aliás, fica claramente ilustrado no documentário, através do enxerto de trechos do filme ficcional The Blockade (O Bloqueio), num curioso caso de cinema documental empregando o cinema ficcional para sustentar sua tese6. A medida que a luta se desenrola, os recursos dos republicanos, desde sempre escassos e precários, vão se desgastando sem poderem ser repostos. Com seus efetivos já drasticamente reduzidos, a BAL, após meses de preparação junto ao exército legalista, ainda se empenha na batalha decisiva da guerra, defendendo em vão o Rio Ebro, num esforço quase quimérico para superar a monumental disparidade de forças. Mas o bombardeio alemão foi constante e devastador. Só sessenta e um dos 250 estadunidenses envolvidos no combate sobreviveram. Com a guerra definitivamente perdida, só restava aos Internacionais a retirada. No caso dos sobreviventes da BAL, esta se deu em outubro de 1938, em Barcelona, numa apoteótica parada de despedida, em que foram saudados por uma multidão febrilmente agradecida e por um discurso da célebre La Passionaria, cujas palavras resumem com incomum felicidade o teor do esforço desses idealistas.7 Quando lutaram, os voluntários estadunidenses foram celebrados por seu heroísmo. Ao voltar para casa, muitos foram perseguidos como comunistas. No momento em que o documentário The Good Fight foi realizado (1983), os remanescentes da BAL continuavam sendo virtualmente desconhecidos em seu país. Independentemente disto, praticamente todos dentre eles cujas forças assim o permitiam, continuavam a participar ativamente da vida política estadunidense. È como se eles, muito tempo depois do fim da Guerra de Espanha, empregassem os meios a seu dispor – passeatas, meetings, manifestações – para continuar proclamando: “No pasarán!”. Cientes de que seus adversários podiam até ter assumido outro aspecto, mas continuavam essencialmente os mesmos, eles permaneceram engajados na luta, imbuídos do mesmo idealismo que os levou, na juventude, a cruzar o Atlântico, atravessar clandestinamente as fronteiras fechadas e oferecer tudo de si não apenas pela causa da república espanhola, mas pela construção de uma sociedade mais igualitária. o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 Notas 1 Literalmente : “A Boa Luta – A Brigada Abraham Lincoln na Guerra Civil Espanhola”. Embora realizado em 1983, o filme ainda não foi lançado no Brasil nem tem título “oficial” em Português. Para a elaboração deste texto, uma cópia em DVD foi gentilmente cedida pelo autor do texto da narração, o historiador canadense Robert A. Rosenstone, a quem registramos nossa gratidão. 2 Os dezoito brasileiros envolvidos na luta não são citados no filme. 3 Afinal de contas, é uma atitude nacionalista atacar a própria nação? O batismo de fogo da BAL se dá na defesa do Rio Jarama, sob o comando do conferencista da Universidade da Califórnia, Robert Merriman, que teria inspirado Hemingway a criação do personagem Robert Jordan, protagonista do seu célebre romance Por Quem os Sinos Dobram. A BAL teve 175 dos seus 450 homens envolvidos no combate feridos e 125 mortos. Uma canção, relembrada no documentário pelo veterano Bill Bailey, evoca o alto preço pago pelos defensores: “Há um vale na Espanha chamado Jarama / É um lugar que todos nós conhecemos muito bem / (...) / Onde muitos dos nossos bons camaradas tombaram.” 4 Como foi dito antes e cumpre ratificar, The Good Fight, para além de um discurso sobre a História, também é – por conta não só dos depoimentos que apresenta, colhidos no presente; pelas imagens que captura, também no presente, mas até mesmo por suas características técnicas – um testemunho da época em que foi realizado. The Blockade, obra-de-arte cinematográfica flagrantemente interessada em interferir no curso dos acontecimentos, é um agente da história. Mas também é um testemunho... Em última análise, aliás, todos os documentos históricos, quer sejam imagéticos, textuais ou imagético-textuais; quer funcionem como discursos, como agentes ou como discursos e agentes da História, são registros, e, portanto, testemunhos do seu próprio tempo. Todo texto ou imagem que o Homem produz em determinada época registra esta época, é testemunho da História. 6 O trecho do discurso que consta do filme diz: “Camaradas das Brigadas Internacionais, por razões políticas, por razões de Estado, pelo bem da mesma causa pela qual vocês ofereceram seu sangue com ilimitada generosidade, nós os estamos mandando de volta. Alguns para seus próprios países, outros para um exílio forçado. Vocês podem partir orgulhosamente. Vocês são a História. Vocês são a lenda. Vocês são o heróico exemplo de democracia, solidariedade e universalidade. Nós não os esqueceremos. E, quando as portas da restaurada república espanhola se abrirem, retornem.” 7 O veterano Bill Bailey assinala a dificuldade que tinham os combatentes em tomar um simples banho. Bailey se lembra de ter tomado apenas dois no ano e meio em que esteve na Espanha. 5 o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006