Asimov x Lutz
Transcrição
Asimov x Lutz
A CATÁSTROFE AUSENTE (O BOM E VELHO ISAAC ASIMOV) R.H.Hodara Isaac Asimov era um otimista incorrigível. Quando ultrapassou a marca de quatrocentos livros escritos – sem nenhum escritor fantasma a colaborar – seus admiradores passaram a ter certeza: o mais prolífico escritor de língua inglesa só poderia mesmo ser um eterno otimista. E, além disso, Asimov era defensor do Partido Democrata, um esquerdista (!)1, e simpatizava com a idéia de uma União Soviética pósGorbachev, reformada e democratizada, aberta ao capitalismo moderno. Asimov era um defensor da Paz Mundial, baseada não na hegemonia dos Estados Unidos, mas, isso sim, na política de coexistência pacífica; a mesma política prevista e defendida por Lênin e que foi posta a serviço da Humanidade a partir do fim da segunda guerra mundial, por ambos os lados, com o nome de "Détende". 1 O que lhe valeu uma rixa com seu orientador de doutorado, Harold Urey, Nobel de química e republicano fanático! 1 Mas, afinal, no que se baseava o otimismo desse jovem de suíças brancas enormes e "ar de sábio debochado" (falecido em 1992) professor e doutor em química, discípulo de Urey ? Harold Clayton Urey (1893-1981), laureado com o prêmio nobel de química de 1934 pela descoberta do deutério, era orientador de doutorado em Columbia, onde encontrou pela frente o jovem Isaac... Quando Asimov requisitou uma quebra de pré-requisito, para concluir o curso mais rapidamente, Urey o desafiou a fazer uma cadeira de química extremamente difícil, para a qual Asimov não tinha prérequisitos acadêmicos, e, ainda assim, só daria a "quebra" se Isaac tirasse a nota máxima. Urey não gostava do "esquerdista" Asimov, razão pela qual tencionava deixá-lo fora do curso. Asimov aceitou o desafio e passou na cadeira com a nota máxima, para desespero do mesquinho professor medalhão. E por que, afinal, sendo Asimov um cético, converteu-se num incorrigível otimista? A resposta surge como uma rememoração. Lá estava eu e alguns estudantes de Física e de diversos outros cursos da UFRGS, discutindo com Lutz, nosso ecologista predileto. Ano 1980. E todos éramos, é claro, fãs de Asimov. - Então gostam de Asimov? perguntou nosso célebre professor. - É claro, esse cara é genial, já escreveu "Eu, Robô" e mais de cem livros, respondemos. 2 - É, retrucou Lutz, mas trata-se de um otimista do crescimento tecnológico desmesurado, um defensor da sanha humana por "progresso"… - Como assim, Herr Professorrr ?!, retrucamos. - Por ele, respondeu Lutz, por Asimov, a Humanidade aumentaria seu poder tecnológico sobre tudo e todos até atingir os píncaros da glória universal sem dar a menor chance ao resto da natureza. - Como?! reclamei, quer dizer que Asimov está errado por não admitir nossas próprias limitações? Mas é isso, esse inconformismo, que caracteriza o melhor da Humanidade! Não podemos criticar Asimov por isso ... De acordo com tudo que vimos até hoje, a Humanidade sempre se desenvolveu sem parar, apesar de eventuais retrocessos, aumentando seu poder sobre a natureza e criando mais e mais tecnologia! - Quero dizer, reagiu Lutz, que se dependesse de sua forma de ver o Universo, o seu Universo, nós, a Humanidade, deveríamos dominá-lo e nos tornaríamos, inevitavelmente, imortais. Seríamos tão eternos e poderosos quanto o próprio Universo material2 -- não teríamos, em potencial e a longo prazo, qualquer limitação. Através da tecnologia nos converteríamos em Deuses. Estávamos estarrecidos: um de nossos mitos estava sendo fuzilado por um de nossos ídolos. E como discutir, com alguém muito 2 Que, aliás, e por incrível que pareça, garantem os físicos, não será eterno... 3 mais sábio e velho, quando se possui uma quilometragem de apenas dezoito anos de idade e poucas dezenas de livros lidos? Ainda conversamos um pouco sobre a qualidade da calculadora HP científica que o mestre havia deixado cair dentro de um aquário e que não havia estragado e outras coisas triviais. Mas, no fundo, Lutz havia plantado em minha mente um gérmen de suspeita. Algo intuitivo, que não podia ser muito bem racionalizado. Refiro-me à destrutibilidade da raça humana. Refiro-me ao futuro da Vida Inteligente no Cosmos e a extensão de seu Poder sobre si e sobre a natureza. Quanto à crença ultraotimista de Asimov, que me foi exposta e criticada por Lutz, pareceu-me, então, uma crítica absurda e exagerada, típica de um ecologista militante. Mas, em verdade, podemos demonstrar o excessivo otimismo de Asimov -- equivocado, na medida em que se utiliza, quando fala do futuro da atividade humana, das previsões de II ordem -- recorrendo a uma entrevista muito antiga (1968). Essa entrevista é um recorte raro, no qual o escritor examina, item por item, todas as possibilidades naturais e artificiais de destruição da espécie humana, Sendo que das quais, a que ele mais teme, corretamente a meu ver, é a superpopulação. Essa entrevista antecipa um livro publicado por Asimov, algum tempo depois ("Escolha a Catástrofe"). Exemplificando as possibilidades de catástrofes -- não suficientemente catastróficas -- que poderiam (quase) acabar com nossa 4 raça, de acordo com Asimov, segue-se: Guerra nuclear. As chances são remotas. De uma forma ou de outra, os arsenais nucleares cresceram tão rapidamente, entre 1950 e 1963, que a possibilidade de uma vitória militar de qualquer uma das potências que usasse tais armas seria mínima - e isso tornou a guerra nuclear total, cenário TAPS 223, impraticável. E, embora cenários menos graves, em escala menor que o 22, sejam praticáveis militarmente (terrorismo nuclear, uso nuclear tático, etc), é difícil crer que viéssemos a destruir toda a Humanidade a partir de tais cenários bélicos menores. O impacto da Terra com algum enorme corpo espacial, com possibilidades de destruir o nosso planeta, é uma possibilidade muito remota, apesar de real. E, também, provavelmente só se daria no espaço de alguns milhares de anos a seguir. Há mais distância entre planetas num raio de oito anos-luz da Terra, nas proximidades de nosso sistema solar, que a distância média e proporcional que separaria 150 grãos de areia espalhados, aleatoriamente, no parque da Redenção. O espaço é muito mais vazio que qualquer vazio que se possa imaginar. A superpopulação é um problema sério, real, imediato, urgente, e, sem dúvida, quando chegarmos em 2010, nossa população estará entre 6 e 7 bilhões de habitantes, talvez mais, sem que nossa capacidade de produzir alimentos e recursos básicos tenha crescido no mesmo ritmo. 3 TAPS 22 é o cenário 22 do relatório de Carl Sagan e colaboradores sobre o Inverno Nuclear, em caso de guerra nuclear total entre USA e URSS – o chamado cenário 22, é o último e pior da escala: guerra termonuclear total com todos os ICBM e MRBM lançados e detonados. 5 Como conseqüência, novas doenças, epidemias virais desconhecidas, falta de água potável, energia e recursos para uma vida digna (classe média), assim como divergências comportamentais de base genética, além de novos ódios raciais e novos tipos de guerra entre Povos e dentro das sociedades passarão a ocorrer naturalmente. É de se esperar epidemias de fome crônicas que levarão a levantes de extrema violência social e étnica. Nesse ponto Asimov antecipou, de forma brilhante, o que JÁ está acontecendo na África. Se esse tipo de problema atingir o chamado Mundo Desenvolvido é de se esperar que haja um retrocesso grave, uma nova Idade das Trevas. Mesmo que isso aconteça, no entanto, um belo dia essa Idade das Trevas terminará, como vem acontecendo ao longo da História Humana, e o desenvolvimento cultural e tecnológico continuará. E eu também concordo com isso. Asimov também nos fala de diversas outras catástrofes possíveis que, entretanto, não poderiam extinguir a raça humana de forma alguma. De fato, toda a obra do bom e velho Isaac se deixa permear por essa cosmovisão arrebatadora, racionalista e antropocêntrica.4 A entrevista termina com a seguinte conclusão de Asimov: "O homem é a primeira criatura sobre a Terra a ser potencialmente 4 Uma bela ilustração desse ponto de vista são os contos de ficção "Os Abutres Honrados" e "A Última Pergunta" e a série de romances da trilogia da Fundação. 6 imortal. Desde que possamos agora controlar a evolução, controlar nosso ambiente -- e no futuro até um ponto e de formas atualmente nem sequer sonhadas -- tornar-nos-emos invulneráveis. Muito antes de nosso Sol se extinguir já teremos viajado em direção às estrelas. Se não nos suicidarmos, imprudente e desnecessariamente, é quase certo que alcançaremos um ponto em que nada mais nos poderá atingir, exceto o fim total do Universo inteiro". Isaac, no entanto, errou apenas em um ponto, na medida em que não deduziu a inviabilidade de previsões de II ordem e seus imperativos lógicos: A pior catástrofe não somente é aquela produzida por nós mesmos, como uma eventual guerra nuclear ou superpopulação - a pior catástrofe é aquela que jamais seremos capazes de prever, invisível para todo efeito, e que se esconde em nossa própria natureza ou na natureza "externa", em algum lugar no futuro, sim, no futuro, essa terra desconhecida! 7