Auto da Compadecida em Hipermídia

Transcrição

Auto da Compadecida em Hipermídia
Universidade Anhembi Morumbi
Pós-Graduação Latu Sensu
Design de Hipermídia
Auto da Compadecida
em Hipermídia
Aline da Rosa Alves
Juliana Apolo da S. M. Lopes
Monografia apresentada à
Banca Examinadora,
como exigência parcial
para a obtenção de título de
Especialista em
Design de Hipermídia
Orientadores:
Profa. Dra. Mônica Moura
Prof. Esp. Marcelo Prioste
Prof. Ms. Nelson Somma Jr.
São Paulo
2006
Banca Examinadora
Sumário
Resumo ................................................................................................... 7
Abstract ...................................................................................................... 9
1. Introdução .............................................................................................. 15
2. A Intertextualidade .............................................................................. 21
2.1 Origem do Termo ............................................................................. 22
2.2 Tipos de Intertextualidade ............................................................. 24
3. O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna .................................... 33
3.1 Características do Auto da Compadecida ...........................................34
3.2 Estrutura da Peça ................................................................................ 35
3.3 Personagens ....................................................................................... 36
3.4 Síntese ................................................................................................ 37
3.5 Fontes da Obra de Ariano Suassuna ................................................... 38
4. A Intertextualidade no Auto da Compadecida .................................... 55
5. O Ambiente Hipermidiático ................................................................. 65
5.1 Hipermídia .......................................................................................... 65
5.2 Narrativas Digitais Interativas ............................................................ 70
6. O Auto da Compadecida em Hipermídia ............................................. 79
6.1 Da Intertextualidade para a Hipertextualidade.................................... 79
6.2 A Transcriação do Auto da Compadecida para a Hipermídia ............. 81
6.3 A Elementos Projetuais........................................................................ 81
6.4 O Projeto em Hipermídia do Auto da Compadecida .......................... 91
7. Considerações Finais .......................................................................... 107
8. Referências Bibliográficas ................................................................. 113
Anexo 1 .................................................................................................... 121
Anexo 2 .................................................................................................... 123
Anexo 3 .................................................................................................... 128
Anexo 4 .................................................................................................... 134
Anexo 5 .................................................................................................. 136
Anexo 6 .................................................................................................. 147
Anexo 7 .................................................................................................. 148
Resumo
E
ste trabalho apresenta um estudo sobre a Intertextualidade presente na obra Auto
da Compadecida de Ariano Suassuna, escrita em 1955, relacionando-a a Hipermídia. A
Intertextualidade contida na obra de Suassuna aponta os folhetos da Literatura de Cordel,
O Enterro do Cachorro, A História do Cavalo que Defecava Dinheiro, O Castigo da
Soberba e As Proezas de João Grilo, como textos fonte que deram origem ao auto. Estes
textos são utilizados nesta pesquisa para a elaboração de um website, que os apresenta
como conteúdo.
Abstract
T
his project presents a research about the Ariano Suassuna’s play named Auto da
Compadecida written in 1955, discussing the relationship between its intertextuality and
Hypermedia. The intertextuality in the play directs to the brochures of Cordel Literature,
O Enterro do Cachorro, A História do Cavalo que Defecava Dinheiro, O Castigo da
Soberba e As Proezas de João Grilo as source texts that originate the history presented by
the play. A website was developed using these texts as content.
1. Introdução
U
ma das características mais marcantes na obra de Suassuna é a
intertextualidade, que nos possibilita sua desconstrução. O Auto da Compadecida interage
e aglutina diversas obras literárias que tramitam entre o erudito (como as referências
ao teatro medieval) e o popular (como nos Romanceiros, o cordel). A característica
intertextual de Ariano permite, ainda, chegarmos à essência da composição de sua obra,
a fim de criarmos maneiras para reestruturá-la em uma nova mídia. E é no ambiente
hipermidiático que a intertextualidade deve se revelar.
A intertextualidade se caracteriza como trabalho de transformação e assimilação
de vários textos, operado por um deles, que centraliza e guarda a liderança do sentido.
É isso que ocorre nessa obra de Ariano: um entrelaçamento de textos cujo vocabulário
é a soma dos textos existentes. O hipertexto é essencialmente um sistema intertextual,
enfatizando uma intertextualidade que ficaria limitada nos textos em livros impressos. As
referências são potencializadas no hipertexto através do recurso do link, que realiza as
conexões entres blocos de textos, imagens, vídeos e outros tipos de mídias.
Esta pesquisa visa explorar na Hipermídia as relações entre Intertextualidade e
Hipertextualidade de uma obra literária, promovendo especificamente uma discussão
entre a Literatura e o Design no campo da Hipermídia, através da intertextualidade do Auto
da Compadecida. É realizada uma análise da obra, onde são identificadas suas matrizes
intertextuais que são apresentadas em um projeto utilizando a linguagem da Hipermídia.
A principal justificativa que motiva o desenvolvimento deste trabalho é a exploração
das possibilidades que a Hipermídia fornece para a discussão da intertextualidade contida
no Auto da Compadecida.
No presente trabalho, buscamos experimentar um novo campo de transcriação
para esta obra de Ariano Suassuna, que já fora adaptada para as mídias cinema e televisão,
em forma de minissérie. O desafio aqui é transcrever para a Hipermídia (com suas
características de não-linearidade e interatividade) a essência do Auto da Compadecida,
destacando suas características intertextuais.
15
Este trabalho também pretende resgatar os textos originais da Literatura de Cordel,
repassados através da oralidade entre cancioneiros no Nordeste e utilizados por Ariano
Suassuna para compor o Auto da Compadecida. É interessante destacar que as matrizes
intertextuais da peça não foram criadas por Ariano Suassuna, mas adaptadas na sua obra.
O projeto destaca um recorte da cultura brasileira, especificamente o Nordeste, através do
olhar do autor, cuja obra remete à cultura popular e ao mesmo tempo caracteriza-se como
trabalho erudito.
Para melhor compreensão desta pesquisa, faz-se necessário apresentar, a seguir,
os principais conceitos relacionados à Intertextualidade.
16
2. A Intertextualidade
N
a literatura relativa à Lingüística Textual, é freqüente apontar-se como
um dos fatores de textualidade a referência – explícita ou implícita – a outros textos,
tomados estes num sentindo bem amplo. A esse “diálogo” entre textos dá-se o nome de
intertextualidade.
A intertextualidade pressupõe um universo cultural muito amplo e complexo,
pois implica a identificação/reconhecimento de remissões a obras ou a textos/trechos
mais ou menos conhecidos, além de exigir do interlocutor a capacidade de interpretar a
função daquela citação ou alusão em questão. É importante encarar a intertextualidade
não apenas como a “identificação” da fonte, e sim, que se preocupe estudá-la como um
enriquecimento da leitura e da produção de textos e, sobretudo, que se tente mostrar a
função de sua presença na construção e no sentido do texto. Estudar a intertextualidade é
analisar os elementos que se realizam dentro do texto.
Considerada por alguns autores como uma das condições para a existência de um
texto, a intertextualidade se destaca por relacionar “um texto concreto com a memória
textual coletiva, a memória de um grupo ou de um indivíduo específico”. Trata-se da
possibilidade de os textos serem criados a partir de outros textos.
“Todo texto é produto de criação coletiva: a voz do seu produtor se manifesta ao
lado de um coro de outras vozes que já trataram do mesmo tema e com as quais se põe
em acordo ou desacordo”.
O objetivo da intertextualidade é de um texto remeter a outro texto para defender
as idéias nele contidas ou para contestar tais idéias. Assim, para se definir diante de
M.Helena et alii MIRA MATEUS. Gramática da língua portuguesa apud Maria Christina de MOTTA
MAIA. Intertextualidade.
José Luiz FIORIN; Francisco Platão SAVIOLI. Para entender o texto apud Maria Christina de MOTTA
MAIA. Intertextualidade.
21
determinado assunto, o autor do texto leva em consideração as idéias de outros autores e
com eles dialoga no seu texto.
2.1 Origem do termo
Sobre as origens do conceito de intertextualidade, nota-se que, embora os
formalistas russos especialmente Yuri Tynianov (1894-1943) e Victor Shklovsky (1893 1984) tenham tido uma certa preocupação com conceitos relativos à noção contemporânea
de intertextualidade, é Mikhail Bakhtin (1895-1975) quem normalmente se apresenta
como sendo o primeiro teórico a elaborar esta questão.
Rompendo com os conceitos de seus predecessores, Bakhtin apresenta um conceito
abrangente de texto como sendo o que diz respeito a toda produção cultural com base na
linguagem. Ao mesmo tempo, com a definição de diálogo, rompe com velhas tradições da
Literatura para, enfim, compreender o texto em sua interação não apenas com discursos
prévios, mas também com os receptores do mencionado discurso.
Para esse teórico, o processo de leitura não pode ser concebido desvinculado da
noção de intertexto, já que o princípio dialógico permeia a linguagem e confere sentido
ao discurso, elaborado sempre a partir de uma multiplicidade de outros textos. É sob a
influência dos conceitos bakhtinianos de polifonia e carnavalização que um bom número
de teólogos dos anos 1960 revisa tratados semióticos em busca de novas perspectivas para
o estudo das relações entre discursos.
É nesse contexto que Julia Kristeva (1941), membro atuante da crítica francesa,
elabora seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constrói como
“mosaico de citações”. Dito entendimento acarreta a consideração de que a intertextualidade
é um fenômeno que se encontra na base do próprio texto literário, imbricada com a inserção
deste num múltiplo conjunto de práticas sociais relevantes. A partir de Kristeva, “texto”
passa a ser entendido como o evento situado na história e na sociedade, que não apenas
reflete uma situação, mas é essa própria situação, apagando linhas divisórias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfícies textuais e distintas
Julia KRISTEVA, Introdução à semanálise, p. 98.
22
áreas do saber científico e da esfera artística. A partir de postulados de Kristeva, Herberts
observa que a intertextualidade reflete a concepção do texto literário “como carregado de
outros textos, inclusive do texto da realidade”.
Nessa inserção de elementos dentro do texto, constrói-se a rede dialógica da
escritura-leitura, conformando a ambivalência da ciência paragramática, no dizer de
Kristeva. “Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve segundo leis
específicas que estão por descobrir. Assim, no paragrama de um texto, funcionam todos
os textos do espaço lido pelo escritor” . Ao abordar a questão, Herberts considera que é
justamente a idéia de abertura e incompletude do texto literário que leva à “pluralidade
de sentidos da obra artística, que faz supor que cada leitor fará uma leitura particular
da mesma, ajudando a construí-la a partir de suas determinações sociais, psíquicas e
ideológicas” . Por essa perspectiva, a leitura de uma obra está impregnada das influências
do contexto, seja histórico, econômico, social, ou também literário.
A absorção de um “texto estranho” na composição de uma nova obra literária, no
entender de Olmi, relaciona-se com a noção de uma literatura sem fronteiras, espaço de
apropriação cultural.
“Essa apropriação, entretanto, foi e deverá ser um lugar, um espaço de proliferação,
de disseminação capaz de produzir e re-produzir idéias, formas, conceitos e conteúdos e
de ser aceita como fenômeno absolutamente natural, despreocupado de citação de fontes,
influências e referências, de acordo com os postulados mais recentes dos estudos em
Literatura Comparada”. Campos e Cury, por outro viés, esboçam considerações sobre as relações entre
intertextualidade e o que denominam saberes em movimento.
“As atividades do leitor e do escritor se intercambiam e o objeto texto, que
Hanelore HERBERTS, A intertextualidade em As cidades invisíveis de Ítalo Calvino, p. 20.
Julia KRISTEVA, Introdução à semanálise, p. 98.
Hanelore HERBERTS, A intertextualidade em As cidades invisíveis de Ítalo Calvino, p. 20.
Alba OLMI, Literatura grega: intertextualidade e interdisciplinaridade, p. 7.
E. N. CAMPOS; M. Z. F CURY. Fontes primárias: saberes em movimento. Revista da Faculdade de
Educação da USP.
23
resulta do tecido de significados tramado por ambos, se apresenta como um espaço em
movimento, um móbile sempre aberto a diferentes configurações. Todo texto é, assim, um
espaço de confluência de múltiplas vozes”.
Enfim, a concepção de texto como “mosaico de citações” acarreta a infinita
reinvenção e repetição de formas e conteúdos, uma rede interminável em que diferentes
seqüências transformam-se em outras seqüências, reutilizando de incontáveis maneiras
os materiais textuais existentes. Seus reflexos na interpretação da obra literária são
diversos.
2.2 Tipos de intertextualidade
Os teóricos costumam identificar tipos de intertextualidade10, entre os quais se
destacam:
- a que se liga ao conteúdo (por exemplo, matérias jornalísticas que se reportam
às notícias veiculadas anteriormente na imprensa falada e/ou escrita: textos literários ou
não literários que se referem a temas ou assuntos contidos em outros textos). Podem ser
explícitas (citações entre aspas, com ou sem indicação da fonte) ou implícitas (paráfrases,
paródias e etc);
- a que se associa ao caráter formal, que pode ou não estar ligado à tipologia
textual como, por exemplo, textos que “imitam” a linguagem bíblica, jurídica e etc. ou
que procuram imitar o estilo de um autor11;
- a que remete a tipos textuais (ou “fatores tipológicos”), ligados a modelos
cognitivos globais, às estruturas e superestruturas ou a aspectos formais de caráter
lingüístico próprios de cada tipo de discurso e/ou a cada tipo de texto: tipologias ligadas
a estilos de época.
Ibid.
10
cf. KOCH & TRAVAGLIA, Texto e coerência, p. 88-89.
cv. Texto “Grande ser, tão veredas”, de Paulo Leminski, publicado em A folha de São Paulo, e
reproduzido em KOCK & TRAVAGLIA: 1989, 99. p. 89-90, em que o autor comenta o seriado da TV
Globo, baseado no livro de Guimarães Rosa, procurando manter a linguagem e o estilo do escritor.
24
11
Já J. Rey-Debove (apud Chandler, 2000) refere-se a três modos básicos de
intertextualidade podendo elas estar relacionadas aos diferentes modos de discurso:
1. A intertextualidade direta é a citação nominal de um texto anterior,
isto é, o discurso direto.
2. A intertextualidade indireta é aquela na qual o leitor deve valer-se de
um conhecimento que abranja outros textos produzidos e considerados de caráter
universal.
3. O interdiscurso é a remissão a situações fragmentárias, no qual há
necessidade de recorrência ao conhecimento enciclopédico.
Daniel Chandler12 em seu livro “Semiotics for Beginners”, apresenta algumas
propriedades que caracterizam a presença de intertextualidade em um texto e que, de
certa forma, a define:
Reflexo: o quanto o uso de intertextualidade pode ser auto-consciente (intencional).
Por reflexo, entende-se “a maneira como uma descrição penetra na constituição do que
está sendo escrito”, isto é, como o texto pode se referir a si mesmo, por exemplo, a função
da metalinguagem existente em um texto.
Alteração: as alterações das fontes (quanto mais aparente for a alteração, maior
se presume o reflexo intertextual), ou seja, o quanto o autor do novo texto altera o texto
ao qual faz alusão, quando o insere no texto de sua criação.
Clareza: a especificidade e a clareza das referências a outros textos (citações).
Significa o quanto uma intertextualidade está implícita ou explícita.
Crítico com relação à compreensão: o quanto é importante para o leitor, o
reconhecimento da intertextualidade envolvida. Através desse aspecto podemos estudar
se o nível de interferência da intertextualidade buscada pelo autor influi ou não na
compreensão do texto de sua criação.
Infinitude da estrutura: a extensão do texto como parte (ou ligação) de uma
12
Daniel CHANDLER, Semiotic for begginners: Intertextuality.
25
estrutura mais ampla. A relação que o texto guarda com a estrutura e gênero literário ao
qual pertence.
Chandler também cita Gerard Genette13 que propôs o termo transtextualidade
como um termo mais includente do que intertextualidade. A transtextualidade diz mais
respeito aos níveis de relação interna de um texto consigo próprio e com outros textos.
Dentre o emaranhado de relações possíveis, define cinco categorias:
Intertextualidade: definida como “uma relación de copresencia entre dos o más
textos, es decir, eidéticamente y frecuentemente, com la presencia efectiva de um texto
em otro”. 14 O intertexto seria, pois, a percepção por parte do leitor das relações existentes
entre uma obra antecedente e outra posterior. Sem dúvidas, dentre as categorias citadas, é
esta a mais desenvolvida e intricada, em que existe “una cantidad enorme de referencias
a discursos culturales de la más variada índole, donde la alta cultura y la cultura popular
se funden”.15 É toda relação que une um texto a outro texto.
Paratexto: “geralmente menos explícita e mais distanciada”, 16 ao incluir elementos
como título, subtítulo, prefácio, posfácio, advertências, premissas, notas de rodapé, notas
finais, epígrafes, entre outros acessórios que possam remeter, explicitamente ou não, ao
conjunto formado pela obra literária.
Metatextualidade: textos que falam sobre outros textos, geralmente em forma
de comentário, ainda que não haja citação, evidenciando a relação da crítica como
paradigma.
Hipertextualidade: a existência de um texto em função do qual se estrutura outro,
também referido como “texto de segundo grau”, já que deriva de outro pré-existente. Olmi
alerta para a diferenciação desta em relação à anterior (metatextualidade), argumentando
Gerard GENETTE, Palimsestos. apud Marta RIVERA DE LA CRUZ, Intertexto, Autotexto: la
importancia de la repetición en la obra de Gabriel García Márquez. Revista Especulo.
13
14
Ibid.
Antonio PINEDA CACHERO, Comunicación e intertextualidad en El cuarto de atrás, de Carmen
Martín Gaite (1ª. parte): literatura versus propaganda. Revista Especulo.
15
Alba OLMI, Literatura grega: intertextualidade e interdisciplinaridade, Revista Signo, v. 23, nº 34, p.
7-43, p. 62.
26
16
que a derivação “pode ser de ordem descritiva ou intelectual e, nesse sentido, temos um
metatexto”. 17
Arquitextualidade: muito abstrata, já que é mais implícita que a anterior
(hipertextualidade), ao implicar a suposição de “las analogias formales o de contenido
entre distintos textos os discursos: hay elementos comunes em ellos que los adscriben,
por ejemplo, a um género o movimento artístico”, no entender de Pineda Cachero. Olmi,
por sua vez, aponta essa categoria como sendo a “articulada por uma menção de título,
subtítulo da indicação de Romance, Conto, Poesia e etc., que pertence exclusivamente ao
aspecto taxionômico”.
A seguir são apresentadas as principais características da obra de Ariano Suassuna
e suas fontes.
17
Ibid., p. 63.
27
3. O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna
O
Auto da Compadecida é uma comédia com temática religiosa que põe em
relevo os problemas do Nordeste, envolvendo sertanejos com fatos locais. Usa o folheto
de cordel transcrito em situações e falas típicas. A obra mistura a tradição religiosa e a
popular, sobretudo ressaltando o ambiente das crendices do povo, e assim situando-se na
tradição brasileira.
A peça foi escrita por Ariano Suassuna em 1955, encenada em Recife, recebendo a
medalha de Ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, no Rio Janeiro, em 1957.
Popular, a peça já foi traduzida em dezenas de idiomas e conta com várias montagens
também no exterior. Repetindo o sucesso que fez nos palcos, o Auto da Compadecida tem
três versões cinematográficas.
O auto é contemporâneo, pois faz referência a aspectos sociais nordestinos. O autor
mostra-se completamente envolvido com a realidade de sua época, criticando problemas
sociais como a falta de virtudes, a preocupação com a aparência e dinheiro, as diferenças
sociais determinando a ação dos religiosos, além de criticar a prática da simonia18.
Ariano usa no Auto da Compadecida uma narrativa simples e alegre. Seus
episódios realizam uma sátira social e lidam com imagens fortes, de impacto imediato.
A falsa morte aparece na obra juntamente com a falsa ressurreição. Em outro episódio
o dinheiro é igualado ao excremento. A presença do ambicioso que acredita em uma
história sem sentido destaca o poder que a ambição tem de cegar as pessoas. Os “efeitos
especiais” utilizados na peça são tipicamente de palco, de improviso (a bexiga com falso
sangue). Na obra encontra-se também a figura do cachorro que deixa herança e é igualado
ao gato que “descome” dinheiro. E por fim a obra expõe as sentenças de um juiz severo
sendo imediatamente diluídas pelo perdão de um juiz benevolente. Os temas e motivos
apresentados nesta obra de Suassuna são originados das fábulas populares19.
Sacrilégio caracterizado pela compra e venda de favores religiosos (como por exemplo, a absolvição de
pecados) em troca de bens materiais, principalmente dinheiro.
18
19
Bráulio TAVARES, Tradição Popular e Recriação no “Auto da Compadecida”, p. 175.
33
Alguns episódios do Auto da Compadecida baseiam-se em textos anônimos da
tradição popular nordestina. No primeiro ato, vêem-se trechos do folheto O Dinheiro, de
Leandro Gomes de Barros (1865-1918), onde se conta o episódio do cachorro morto cujo
dono destina uma soma em dinheiro para que seu enterro seja feito em latim, resultando
em várias situações cômicas entre membros eclesiásticos. No segundo ato, o episódio do
gato que “descome” moedas e o da falsa ressurreição ao som de um instrumento mágico
são inspirados no folheto popular anônimo A História do Cavalo que Defecava Dinheiro,
recolhido por Leonardo Mota. E no terceiro ato, o julgamento dos personagens no Céu
e a intercessão piedosa de Nossa Senhora, a Compadecida, correspondem à outra obra
popular da Literatura de Cordel, recolhida por Leonardo Mota junto ao cantador Anselmo
Vieira de Sousa (1867-1926), O Castigo da Soberba.
Suassuna utiliza no terceiro ato da obra um entremez20 de sua autoria inspirado na
obra popular O Castigo da Soberba. Este trabalho utiliza, na elaboração do projeto em
Hipermídia, o texto da Literatura de Cordel que serviu de fonte na criação do entremez
de Ariano Suassuna.
A temática central do auto é a fome e a miséria, porém no processo de composição
de histórias, encontra-se também uma variedade de temas que são voltados, ora ao social,
ora à moralidade e religiosidade, e ora à existência humana, revelando não somente a
alma do sertanejo “Severino”, mas suas crenças, sua cultura e seu sofrimento.
3.1 Características do Auto da Compadecida
A seguir são apresentadas as principais características da obra elaboradas por
Delson Gonçalves Ferreira21, para melhor compreensão desta pesquisa:
• O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua
portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é basicamente
religioso e que se caracteriza pela simplicidade da construção, ingenuidade da linguagem,
caracterizações exacerbadas e intenção moralizante, podendo, contudo, comportar
Pequena farsa de um só ato, burlesca e jocosa, de caráter popular ou palaciano, a qual termina,
geralmente, por um número musical cantado, cujas origens remontam o séc. XII.
20
21
34
FERREIRA, Delson Gonçalves et al. Análise sobre o Auto da Compadecida.
também elementos cômicos e jocosos. Essa proposta conduz que a primeira intenção do
texto está em moldá-lo dentro de um enquadramento do teatro medieval português, ou
mais precisamente dentro das perspectivas do teatro de Gil Vicente.
• O texto propõe-se como resultado de uma pesquisa sobre a tradição oral dos
Romanceiros e narrativas nordestinas, fixados ou não em termos de Literatura de Cordel,
apresentando textos populares modificados ou literais inseridos na obra.
3.2 Estrutura da Peça
Segundo análise de Delson Gonçalves Ferreira22, o estudo do Auto da Compadecida
pode ser feito sob dois ângulos que se completam:
1. A técnica de composição teatral
2. A estrutura propriamente dita, ou a forma final do texto.
3.2.1 Composição
Suassuna sugere que a peça seja dividida em três atos. Como o autor dá plena
liberdade ao encenador e ao diretor para definirem o estilo da representação, convém
notar que a divisão fica por conta dos responsáveis pela encenação, conforme comentários
do próprio autor:
“Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o
fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço.”23
”Se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará aqui a cena do
julgamento, com o pano se abrindo e os mortos despertando.”24
O autor sugere que a representação da peça seja mais parecida com os espetáculos
circenses e de tradição popular, do que com o teatro moderno. Na peça, o palhaço marca
22
Ibid.
23
Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, p. 55.
24
Ibid., p. 117
35
as situações técnicas e estabelece a ligação entre o circo e a representação. A técnica
de composição da peça segue uma linha simplista, solicitada pelo próprio autor, o que
faz residir à importância da mesma apenas na proposição dos diálogos e no decurso das
ações.
3.2.2 Estrutura
A peça apresenta quinze personagens de cena (João Grilo, Chicó, Padre João,
Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A
Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino de Aracaju, Demônio) e um personagem
de ligação e comando do espetáculo (Palhaço).
Os personagens são colocados em primeiro lugar na análise da estrutura da peça
porque assumem uma posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância
do texto.
João Grilo é considerado personagem principal porque atua como criador
de situações da peça. Os outros personagens compõem cada situação. O Palhaço,
representando o autor, relaciona o circo à representação do Auto da Compadecida.
3.3 Personagens
A seguir, são apresentadas as principais características dos personagens presentes
na obra.
1. João Grilo. É uma figura típica do nordeste, esperto e brincalhão. Habituado a
sobreviver e a viver a partir de expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a
miséria é sua companheira. Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma
de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida. É essa
convicção que o salva e ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando à
vida e à companhia de Chicó. É uma oportunidade inusitada de ressurreição e retorno à
existência. Ele então ficará responsável por provar que essa oportunidade foi ou não bem
aproveitada.
2. Chicó. Companheiro constante de João Grilo. Chicó envolve-se nos expedientes de
João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção. Mas é um
36
amigo leal.
3. Padre João, Bispo e Sacristão. Esses personagens, embora de atuação diversa, estão
concentrados em torno da simonia e da cobiça, relacionados com a situação contida no
testamento do cachorro.
4. Antônio Morais. É a autoridade decorrente do poder econômico, representante do
coronelismo nordestino, a quem se curvam: a política, os sacerdotes e as pessoas mais
pobres.
5. Padeiro e sua esposa. Representam a exploração humana e o adultério.
6. Severino de Aracajú e Cangaceiro. Representam a crueldade, e desempenham um
papel importante na seqüência em que matam e são mortos, desencadeando a ressurreição
e o julgamento.
7. Encourado e demônio. Julgam, aguardando como benefício o aumento de pessoas no
inferno. Esses personagens representam, de certa forma, um instrumento da Justiça.
8. Manuel. É o Cristo negro, justo e onisciente. É uma encarnação do verbo e da lei. Atua
como julgador final do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância,
da simonia, da preguiça. Cada personagem morto é julgado e têm seu pecado definido e
analisado, com sabedoria e com prudência.
9. A Compadecida. É Nossa Senhora, invocada por João Grilo. Ela lhe dará a segunda
oportunidade da vida. Ela, com sua misericórdia intervêm a favor de quem nela crê.
10. Palhaço. Realiza o papel do corifeu do teatro clássico, realizando intervenções,
antecipando ao público os acontecimentos seguintes na peça.
3.4 Síntese
Pela estrutura da peça, percebe-se que sua intenção é de natureza moral católica;
os componentes estruturais do texto revelam personagens que simbolizam pecados, que
recebem o direito ao julgamento, que gozam do livre-arbítrio e que são ou não condenados.
Nota-se também que a realidade regional brasileira, especificamente a realidade nordestina,
37
está presente através de seus instrumentos culturais mais significativos, as crenças e a
Literatura de Cordel.
O autor não pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela moralizar
os homens, isto é, destacar a noção do dever humano e da responsabilidade de cada um
em relação a seus semelhantes e em relação a Deus, onisciente e onipresente.
Como proposição estética, o Auto da Compadecida procura destacar as seguintes
noções25:
• A criação artística, sendo que trata do teatro em particular, deve levar a cultura
do povo a ele mesmo. Daí o circo e seu picadeiro demonstrando uma representação dentro
de uma representação, também presente no teatro de mamulengos.
• Menos do que essa realidade regional e cultural de um povo, o que importa é
criar um projeto que defina idéias e concepções universais (as da Igreja Católica, no caso)
com o fim de conscientizar o público. Por esse motivo a realidade regional nordestina é,
no caso, instrumento de uma idéia e não fim em si nessa obra;
• Criar um texto teatral é, antes de tudo, criá-lo para uma encenação, daí a absoluta
liberdade que o autor dá para qualquer modalidade de encenação. O próprio texto final da
peça, como editado, é o resultado da experiência colhida à representação pública.
3.5 Fontes da Obra de Ariano Suassuna
A temática religiosa de Ariano utiliza os mesmos recursos ideológicos da
dramaturgia medieval, resultando em uma temática moralizante baseada nos princípios do
Bem e do Mal, presentes na religião Católica. A utilização das manifestações artísticas do
Nordeste como referência para sua obra, não faz com que Ariano seja um artista popular.
Sua obra utiliza a reelaboração erudita de temas extraídos deste universo.
O improviso, o folheto ou romance tradicional, as danças populares ou espetáculos
de mamulengo e o conjunto caracterizado pelas manifestações tradicionais orais ou
escritas, mostram-se através da obra de Suassuna como objeto artístico, conduzindo uma
reflexão estética nova: deixa de se considerar a arte popular como arte primitiva ou “naïve”
para vê-la simplesmente como arte. Arte cujo grau de complexidade pode ser apreciado
de modo independente de qualquer hierarquia social dos valores estéticos, agindo como
25
38
FERREIRA, Delson Gonçalves et al. Análise sobre o Auto da Compadecida.
espécie de “revelador cultural” 26.
O Auto da Compadecida, como as demais comédias teatrais de Ariano Suassuna,
procura recuperar e reproduzir mecanismos narrativos da comédia medieval e renascentista
da Europa e da arte popular do Nordeste. Um aspecto importante desse tipo de teatro é
o seu caráter tradicional e coletivo, no qual a fidelidade a uma tradição é tão importante
quanto à originalidade de escrever por si só, mas com a colaboração implícita de uma
comunidade inteira.
Suassuna utiliza em sua obra episódios narrados em verso procedentes dos
romances populares. Os episódios são transpostos do verso para a prosa, e da narrativa
indireta para a encenação direta. O cavalo que defecava dinheiro é transformado num
“gato de descome dinheiro”. A rabequinha mágica do romance popular é substituída na
peça por uma gaita. O autor da peça apropria-se de episódios já existentes, mas não tem
com eles a atitude comum de autores eruditos que recorrem às “fontes populares”. Ele
muda o que lhe convém, mantém intacto o que lhe interessa, e parece sentir-se à vontade
com isso. Ao usar episódios tradicionais, Suassuna adota a mesma atitude apropriativa
dos artistas medievais ou nordestinos, comum nas artes populares: o circo, o teatro de rua,
o cordel e o Romanceiro27.
O mesmo processo de apropriação e renovação ocorre com o uso do personagem
João Grilo. Ariano confirmou que ao dar o nome de João Grilo ao protagonista do Auto
da Compadecida pensava estar fazendo uma ponte entre o seu teatro e o cordel numa
homenagem ao herói do romance de cordel de João Martins de Athayde (1877-1959),
intitulado As Proezas de João Grilo, e “um vendedor de jornal astucioso que conheci na
década de 1950 e que tinha este apelido”28. Descobriu depois que em Portugal através do
português José Cardoso Marques, também já existia um herói com este nome. João Grilo
é claramente uma nova encarnação de Pedro Malazartes, talvez o herói espertalhão mais
conhecido em Portugal e no Brasil, e que na Espanha tinha o nome de Pedro Urdemalas.
Outro antepassado ilustre seu é Lazarillo de Tormes, o guia de cego que luta para
26
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Cadernos de Literatura Brasileira, p. 96.
27
TAVARES, Braulio. Tradição Popular e Recriação no “Auto da Compadecida”, p. 176-177.
28
Ibid, p. 180.
39
sobreviver no meio da miséria e violência, sendo forçado a tornar-se sagaz, trapaceiro e
por vezes cruel. Também se relaciona com personagens da Commedia dell’Arte européia,
como o Arlequim: espertalhão e de espírito lúdico. Todos são típicos heróis pregadoresde-peças, e suas vítimas tanto podem ser os ladrões e bandidos como os burgueses ricos
e as autoridades.
A interferência mais eficaz feita no personagem por Suassuna foi dar-lhe um
companheiro: Chicó, o mentiroso inofensivo. Inspirado em uma figura real que o autor
conheceu em Taperoá, Chicó veio trazer para esse personagem ibérico também inspirado
no cordel uma terceira pátria literária: o circo. Juntos, João Grilo e Chicó reproduzem a
tradição circense de mostrar um palhaço espertalhão e outro palhaço ingênuo e covarde.
Os dois tipos, observa Suassuna, são exemplarmente batizados pelo povo com as
denominações de O Palhaço e O Besta29.
Ariano Suassuna utiliza nesta peça episódios e personagens de uma tradição
antiga, com séculos de existência. Ele interfere no contexto original, resultando em uma
nova narrativa.
A seguir são apresentadas as principais referências utilizadas por Ariano na sua
obra.
3.5.1 O Teatro Religioso Medieval e a Commedia dell’Arte
Nota-se na obra de Suassuna a medievalidade através da técnica do teatro épico
cristão, com suas modalidades específicas e seus personagens estereotipados. Isto ocorre
porque a Idade Média é o espaço em que floresceu uma dramaturgia que associa o
religioso e o popular através das oposições litúrgico/profano e sério/jocoso. E, sobretudo
porque, sendo a cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante, aquela marca
atua como uma espécie de fonte para o próprio Romanceiro, onde o aspecto religioso se
reforça não só por causa da religiosidade popular da região como também pela opção
pessoal de crença do autor, convertido ao catolicismo na maturidade. Por isso as peças de
Ariano Suassuna se revertem de traços ideológicos próprios da Idade Média30.
29
TAVARES, Braulio. Tradição Popular e Recriação no “Auto da Compadecida”, p. 180-181.
30
Ligia VASSALO, O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna, p. 29-30.
40
Na Idade Média a igreja tinha o poder total e utilizava a arte cênica para instruir
e desenvolver temas religiosos, orientando as pessoas mais simples a seguir a sua idéia
de moralidade. Até as comédias eram utilizadas para demonstrar ao público as terríveis
conseqüências da heresia, o que conseqüentemente causava medo na platéia, fazendo
com que todos seguissem os passos do cristianismo sem questionar.
Inicialmente os espetáculos eram realizados dentro das igrejas, apresentando temas
da Bíblia, encenados em forma de autos, elucidando mistérios como o fim do mundo e
o juízo final. Na medida em que os espetáculos foram ganhando mais recursos e atores,
foram criados espaços próprios para as apresentações.
A religiosidade estava presente nas obras artísticas de vários países europeus,
como Portugal, por exemplo, que tinha em Gil Vicente (1465 – 1536), autor de O Auto
da Barca do Inferno, seu maior exemplo de autor eclesiástico. Entre os espanhóis, alguns
dos mais conhecidos eram Tirso de Molina (1584 – 1648), Lope de Vega (1562 – 1635)
e Miguel de Cervantes (1547 – 1616), autor de Dom Quixote. No Brasil, o padre José de
Anchieta (1534 – 1597) utilizava-se do drama religioso para catequizar os índios.
Como a igreja proibia as apresentações de peças abordando temas profanos, em
seus teatros, os nobres tinham para seu divertimento seus menestréis e bobos da corte.
O objetivo de instruir o povo faz com que o teatro religioso seja considerado
atemporal. Os acontecimentos descritos na Bíblia são considerados no tempo presente
pela igreja. Outra característica trazida pela doutrina é que convivem lado a lado perante
os olhos de Deus, os pobres e ricos, os santos e pecadores, todas as classes sociais e
todas as linguagens, fazendo com que não se tenha separação de classes e estilos. O
teatro religioso é considerado popular, porque é dirigido às massas visando mantê-las na
doutrina e marcada por situações reais do cotidiano.
Entre as matrizes estruturais para as peças de Suassuna figura a Commedia
dell’Arte.
41
Personagem da Commedia dell’Arte
Título: Pierrot (“Gilles”)
Autor: Jean Antoine Watteau (1684-1721)
Técnica: Óleo sobre tela
Dimensões: 184,5 X 149,5 cm
Acervo: Museu do Louvre – Paris,França
Fonte: www.wikipedia.org
Nascida na Itália, a “Arte do Povo” caracterizava-se pela dramatização improvisada
com personagens fixos, baseada em roteiros, dando toda a prioridade ao gesto, trazendo
um pouco da pantomima das comédias primitivas gregas no tempo do Império Romano.
Esta, porém, se diferenciava pelos trajes alegóricos e na alegria que predominavam nos
palcos do século XVI. Os reis e rainhas preferiam freqüentar o teatro a ter o seu próprio
menestrel, dirigindo-se aos teatros com toda a pompa de uma majestade para assistir junto
com os seus súditos às engraçadas peças teatrais que buscavam abordar os temas mais
admiráveis. Esse gênero exigia de seus intérpretes, pois tinham que seguir a risca o roteiro,
porém, preocupando-se com o público, que pagava o ingresso para rir. Caso percebessem
que o público não estava achando engraçado o roteiro original, podiam improvisar caso
tivessem alguma idéia nova31. A Commedia dell’Arte praticamente desapareceu depois de
ter-se difundido largamente na Europa durante séculos (do XVI ao XVII), mas muitos de
seus procedimentos e técnicas foram incorporados a outras modalidades de espetáculos
populares, chegando ao mamulengo.
Assim, pode-se reconhecer na obra de Ariano Suassuna alguns traços da mesma,
como o primitivismo dos personagens, que atuam por vezes aos pares. Há também certos
31
42
Ligia VASSALO, O grande teatro do mundo. Cadernos de Literatura Brasileira nº 10, p. 172-173
personagens estereotipados ou máscaras da comédia italiana que aparecem no mamulengo,
como o negro, o astucioso, o valentão, a mulher fatal.
Entre as peças de Suassuna, a maior presença do circo convencional se encontra
no Auto da Compadecida. Mas não raro a apresentação da peça é feita por uma espécie
de diretor de teatro, que se dirige ao público, como o Palhaço desta peça. Ele se dirige ao
público e lidera o desfile de atores, num espetáculo cujo cenário, na abertura, é montado
como um picadeiro. Suas falas com o público acabam se constituindo em curtos monólogos
entrecortados de gestos, que lembram o cômico da farsa32.
3.5.2 Cultura Popular do Nordeste
A articulação entre vida e obra de Ariano Suassuna faz-se necessária para a
compreensão de seu trabalho. O autor manteve um laço estreito entre suas experiências
pessoais e sua escrita.
Entre as constantes que guiaram a vida e orientaram a obra de Suassuna está a busca
da poética popular como modelo de criação. O canto improvisado, folheto ou romance
tradicional, danças populares ou espetáculos de marionetes e o conjunto complexo
constituído pelas manifestações tradicionais orais ou escritas impõem-se através da obra
de Suassuna como objeto artístico.
3.5.2.1 Literatura de Cordel
Um folheto de cordel e uma peça de teatro têm um elemento em comum: são
obras de Literatura Oral que só se transformam em livro por questões de ordem prática:
preservação e transporte do texto. No entanto, um folheto de cordel é feito para ser recitado
em voz alta; uma peça é feita para ser encenada por atores. Tanto o teatro como o cordel
foram feitos para transmissão oral e viva.
Fazem parte da literatura oral os mitos, lendas, contos e provérbios que são
transmitidos oralmente de geração para geração. Geralmente não se conhecem os autores
das estórias e, acredita-se, que muitas delas são modificadas com o passar do tempo.
32
Ibid.
43
Muitas vezes, o mesmo conto ou lenda é encontrado com características diferentes em
regiões diferentes do Brasil. A literatura oral é considerada uma importante fonte de
memória popular e revela o imaginário do tempo e espaço onde foi criada.
A Literatura de Cordel é caracterizada pela poesia popular que é impressa e
divulgada em folhetos ilustrados com o processo de xilogravura. Ganhou este nome
devido ao fato dos folhetos serem expostos ao povo amarrados em cordões, que são
estendidos em pequenas lojas, mercados populares ou até mesmo nas ruas. Caracteriza-se
pela linguagem simples através do uso de termos compreensíveis, contendo uma estória
em rima normalmente de seis ou sete versos.
A Literatura de Cordel chegou ao Brasil na segunda metade do século XVII,
através dos colonos portugueses. Aos poucos, foi se tornando cada vez mais popular. Nos
dias de hoje, pode-se encontrar este tipo de literatura principalmente na região Nordeste
do Brasil.
A tradição do cordel encontrou no Nordeste condições fortes que contribuíram
para a sua difusão. As condições étnicas e sociais presentes na região na época do
descobrimento fizeram com que a literatura de cordel se tornasse popular através de
cantorias em grupo compostos por portugueses e africanos, e também em sua forma
escrita, refletindo a realidade local.
A produção de folhetos no Nordeste surgiu numa época de crise, onde a região
passava por uma série de transformações econômicas, políticas e sociais. O trabalho
dos canaviais desenvolvido pelos escravos africanos passava a ser desenvolvido pelos
homens pobres da região, com a abolição da escravatura. Estes homens eram dedicados
anteriormente à agricultura de subsistência e pecuária no Agreste e no Sertão. Começavase também a implantação de usinas açucareiras em substituição aos engenhos no final do
século XIX33.
Por serem regiões de economia de subsistência e pecuária, iniciou-se a implantação
do cultivo de algodão e café nas regiões do Sertão e Agreste. Por conseqüência, o
surgimento de homens assalariados trouxe uma queda de nível de vida da população,
Andréa Amaral MOURA, et al. Literatura de Cordel: O Olhar da Literatura de Cordel em São Paulo.
44
33
dificultando o abastecimento dos centros urbanos, elevando a cobrança das taxas de
impostos, resultando no aumento dos preços de gêneros alimentícios, trazendo por fim
a queda de vários pequenos comerciantes e agricultores. Somando-se estes fatos à seca
nordestina, inicia-se uma grande migração para outras regiões dos seringais da Amazônia
ou terras férteis do Vale do Cariri 34.
Com isto, muitos proprietários enfraquecidos pela falta de mão-de-obra e perda
de poder político, perderam seus monopólios de agropecuária da região. Isto acarretou
o surgimento de bandos que brigavam por terras e tentavam derrubar seus proprietários
– eram os cangaceiros35.
Título: N/C
Autor: J. Borges
Técnica: Xilogravura sobre papel
Fonte: www.hotlink.com.br/cultura/galeria-jborges.php
No início da publicação da Literatura de Cordel no País, muitos autores de folhetos
eram também cantadores, que improvisavam versos, viajando pelas fazendas, vilarejos e
cidades pequenas do sertão. A criação de imprensas particulares em casas e barracas de
poetas mudou o sistema de divulgação. O autor do folheto podia ficar num mesmo lugar a
maior parte do tempo, porque suas obras eram vendidas por folheteiros ou revendedores
empregados por ele.
Atualmente, os folhetos podem ser encontrados em alguns mercados públicos,
como o Mercado de São José, no Recife, em feiras, como a de Caruaru, e em sebos
venda de livros usados). Há uma coleção de folhetos de cordel disponível para consulta,
34
Andréa Amaral MOURA, et al. Literatura de Cordel: O Olhar da Literatura de Cordel em São Paulo.
35
Ibid.
45
no acervo da Biblioteca Central Blanche Knopf e no Museu do Homem do Nordeste, da
Fundação Joaquim Nabuco.
3.5.2.2 Mamulengo
O Mamulengo é um teatro de bonecos que se apresenta nas festas populares da
zona rural ou urbana. De inspiração no catolicismo alegórico da Idade Média e origem
européia, o teatro de marionetes originou-se da tentativa de conferir animação aos bonecos
que representavam os personagens dos presépios. No Brasil foi trazido pelos jesuítas. Dos
pátios das igrejas transfere-se para as praças públicas.
O repertório do teatro de Mamulengo é composto principalmente por peças que
lembram Literatura de Cordel. É comum encontrar o diabo, o esperto que tenta enganálo e o santo. Encontram-se também no espetáculo personagens como a sogra arrogante,
valentões e diversos animais. Entre os vilões existe sempre o cangaceiro matador e o
demônio. Além destes há ainda personagens do nosso folclore, tais como o lobisomem e
o caipora.
Mestre Saúba
Foto: Arquivo Museu do Mamulengo
Fonte: www.sesibonecos.com.br/2004/bonecos_do_mundo/mamulengueiros.html
Expressões “virge”, “santa mãe” e “cão” surgem durante as cenas, que geralmente
mantêm uma característica de simplicidade. Baseiam-se quase sempre em um conflito
entre o Bem e o Mal, que evolui para uma aventura do herói que, no final, consegue a sua
vitória.
Os bonecos, confeccionados em madeira e tecidos baratos, passam a representar
também os fidalgos e a classe dominante. As peças encenadas, embora obedeçam a um
46
roteiro, são quase sempre improvisadas e acompanham a reação do público espectador,
apresentando sempre dança, pancadaria e mortes cômicas. É utilizado um pequeno teatro
com tablado imitando o palco.
Teatro de Mamulengo em Glória de Goitá
Foto: Roberta Guimarães/Imago
Fonte: www.intercidadania.com.br/noticia.kmf?noticia=80
0786&sessao=57&total=64&indice=0
3.5.2.3 Bumba-meu-boi
O Bumba-meu-boi é um auto de Natal resultante da aglutinação de diversos
reisados, dança popular com que se festeja a véspera e o dia de Reis.
A tradição associa o sentido religioso à civilização pastoril, através da ressurreição
e a morte do boi. Percebe-se que não há separação entre os atores e o público. O improviso,
a agilidade física e gestual, a variedade plástica e a presença de alguns personagens fixos,
como o Arlequim caracterizam o espetáculo como uma variante da Commedia dell’Arte.
Título: Bumba-Meu-Boi
Autor: Ivan Borges
Técnica: Xilogravura sobre papel
Fonte: www.indigoarts.com/gallery_brazilprints20.html
47
3.5.3 Movimento Armorial
A preocupação estética de Suassuna foi-se definindo durante um percurso que
resultou na elaboração de um projeto cultural chamado de Movimento Armorial.
O Movimento Armorial surgiu sob a inspiração e direção de Ariano Suassuna,
em 1970, com a colaboração de um grupo de artistas e escritores da região Nordeste do
Brasil e o apoio do Departamento de Extensão Cultural da Pró-Reitoria para Assuntos
Comunitários da Universidade Federal de Pernambuco. Inicialmente foi fundado no
corpo de uma orquestra e uma exposição de artes plásticas.
O Movimento reuniu um número de artistas por se sentir a necessidade de lutar
contra um processo de descaracterização e de vulgarização da cultura brasileira através
da criação de uma arte erudita brasileira baseada em suas raízes populares. Em torno de
Ariano Suassuna, reuniram-se escritores, músicos, artistas plásticos, pessoas de teatro
como Francisco Brennand, Gilvan Samico, Maximiano Campos, Ângelo Monteiro,
Marcus Accioly, Miguel dos Santos, Raimundo Carrero e Antônio José Madureira, para
citar alguns artistas. O Movimento Armorial tem manifesto, estética própria e objetivo
artístico. Seu objetivo foi o de valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro,
pretendendo realizar uma arte brasileira erudita a partir de raízes populares. A grande
característica da música Armorial é que ela é imaginária, provoca cenas de um mundo
fantasioso e fantástico. Sua estética lembra a nascente ibérica, mas com os horizontes
ampliados. O Movimento tem interesse pela pintura, música, literatura, cerâmica, dança,
escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema.
Uma grande importância é dada aos folhetos do romanceiro popular nordestino
por achar que neles se encontra a fonte de uma arte e uma literatura que expressam as
aspirações e o espírito do povo brasileiro, além de reunir três formas de arte: as narrativas
de sua poesia, a xilogravura, que ilustra suas capas e a música, através do canto dos seus
versos, acompanhada por viola ou rabeca.
São também importantes para o Movimento Armorial, os espetáculos populares do
Nordeste, encenados ao ar livre, com personagens míticas, cantos, roupagens principescas
feitas a partir de farrapos, músicas, animais misteriosos como o boi e o cavalo-marinho
do bumba-meu-boi.
48
O movimento Armorial prega que a arte deve ser regional sem ser regionalista
deve ser mestiça e, por isso, universal; as diversas formas de manifestação artística
podem e devem estabelecer relações estreitas entre si; deve-se diminuir a fronteira entre
a originalidade e a reescritura - os textos devem manter relações uns com os outros: um
escrito deve retomar temas ou mesmo partes de outro num processo de transformações
sucessivas.
A arte Armorial parte do folheto de cordel, não como fonte única, mas como ponto
de convergência que associa a música dos instrumentos, a palavra da cantoria e a imagem
da xilogravura segundo o ponto de vista da arte popular. O folheto é então erguido em
bandeira Armorial, porque reúne três setores normalmente separados: o literário, teatral e
poético dos versos e narrativas; o das artes plásticas em associação com as xilogravuras
da capa dos folhetos; o musical dos cantos e músicas que acompanham a leitura ou a
recitação do texto. Por integrar as três formas de expressão presentes no folheto, o teatro
é encarado por Suassuna como arte maior do Movimento Armorial.
Ao retomar os textos da tradição popular, Suassuna realiza operações intertextuais,
nas quais predomina a citação de folhetos da Literatura de Cordel transpostos para o
gênero dramático.
Um dos procedimentos mais adotados nas peças cômicas de Suassuna é a utilização
da paródia36. Nota-se a paródia à erudição e carnavalização de vários aspectos de O Grande
Teatro do Mundo, do espanhol Calderón de la Barca37.
A seguir serão apresentados alguns conceitos de Intertextualidade presentes no
Auto da Compadecida.
36
Imitação cômica de uma composição literária.
37
Ligia VASSALO, O grande teatro do mundo. Cadernos de Literatura Brasileira, p. 157.
49
4. A Intertextualidade no Auto da Compadecida
N
a produção literária de Ariano Suassuna configuram-se inúmeros espaços
intertextuais. O autor busca usar a Literatura de Cordel como fonte primária sem pretender
mudar-lhe o sentido ou a forma. Ele retoma outros textos de maneira tão visível que
se pode acompanhar, não só o idêntico desenrolar das seqüências narrativas como o
próprio enunciado, tomado propositalmente de modo quase literal, executando mínimas
modificações ao transpor ou atualizar a literatura popular narrativa para o teatro.
A maior parte das operações intertextuais empreendidas por Suassuna consiste
na citação quase literal do folheto. Se esta é a operação mais visível, não é, no entanto, a
única. A retomada do texto popular pelo escritor culto se caracteriza por um certo número
de traços, como bem aponta Idelette Fonseca dos Santos (1981), em seu estudo sobre o
Movimento Armorial:38
1) Manutenção do esquema narrativo do texto popular, com modificações maiores
ou menores na cadeia discursiva, segundo processo da retórica popular e oral, com a
triplicação da seqüência ou a intercalação de outras narrativas;
2) Modificações importantes ao nível dos agentes, através de novas motivações
dos personagens existentes e criação de novos personagens a partir de outras fontes
populares, como o mamulengo e o bumba-meu-boi;
3) Conservação da língua popular, mas com grafia e correção gramatical
eruditas;
4) Integração de diferentes elementos, de modo a preparar o espectador para uma
moral conforme o cristianismo.
Dentre estes pressupostos não se enquadram personagens ainda que tomados
ao romanceiro como o João Grilo, os representantes sobrenaturais do Bem e do Mal,
o apresentador circense (Palhaço). Também não são incluídos neste tópico, as cenas do
julgamento final, presente na peça, porque ela não retoma enunciados de outros autores,
Cf. Lígia VASSALO, O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna Armorial, p.
82-83.
55
38
mas sim motivos, idéias, sugestões tomadas de empréstimo às moralidades, a Gil Vicente
e a Calderón.
As operações intertextuais em Suassuna se apresentam sob duas facetas:
reelaboração do próprio texto ou intratextualidade e retomada do texto alheio ou
intertextualidade propriamente dita.
A intertextualidade era prática freqüente na Idade Média, associando-se à oralidade
ou à escrita. Por não se preocupar com o registro de autoria das obras, a literatura medieval
enfatiza a versão e o tratamento conferido a ela por cada novo intérprete, inclusive nas
situações em que os textos se dizem traduções. Daí a existência de casos como o enxerto
ou a redução de episódios, bem como as alterações de toda sorte – fenômenos próprios da
oralidade e, como tal, também recorrentes no cordel e na literatura de Suassuna.
As matrizes do Auto da Compadecida são folhetos populares e um entremez do
autor, O Castigo da Soberba39 (1953).
O primeiro ato da peça se baseia no episódio O Enterro do Cachorro40, fragmento
de O Dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918) e o segundo ato é inspirado no
romance popular anônimo História do Cavalo que Defecava Dinheiro41.
O terceiro ato corresponde a outro auto popular anônimo, O Castigo da Soberba,
recolhido por Leonardo Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Souza (1867-1926)
e A Peleja da Alma42, de Silvino Pirauá de Lima (1848-1913), ambos retomados pelo
entremez de Suassuna O Castigo da Soberba.
Provém ainda do romanceiro a cantiga de Canário Pardo43 apontada por Leonardo
Mota (1955), utilizada como invocação de João Grilo a Maria. Vêm também do folheto
Anexo 2
39
40
Anexo 4
41
Anexo 3
42
Anexo 7
Anexo 6
56
43
de O Castigo da Soberba44 o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaço encerra
o espetáculo pedindo dinheiro.
Comparando-se cada ato da peça com a fonte popular que lhe dá origem,
percebemos a fidelidade nos dois primeiros atos. No terceiro, a existência de um texto
intermediário, o entremez O Castigo da Soberba, permite maiores distâncias em relação
ao folheto.
O folheto O Enterro do Cachorro tem oito seqüências, que Suassuna estende para
25, assim distribuídas:
1) A necessidade de enterrar o cachorro, no folheto, é desdobrada em duas: benzer
o animal e enterrá-lo. A própria bênção é duplicada: deve ser exercida sobre o animal e
sobre o filho do Major. O pedido é feito três vezes quanto ao cachorro – por João Grilo;
pelo Padeiro e sua Esposa; pela Esposa – e uma só vez para o filho do Major, pelo próprio
pai.
2) A recusa do Padre ocorre duas vezes, sendo derrubada por dois argumentos
diferentes.
3) A proposição que leva a enterrar o animal é também desdobrada e depois
duplicada. No primeiro caso há duas justificativas: pertencer ao Major e deixar o
testamento. No segundo caso, os herdeiros do testamento proliferam: primeiro só o
Padre e o Sacristão, depois também o Bispo. A anuência do Padre, no folheto, também é
duplicada na peça pelo Bispo.
4) A duplicação do pedido de bênção leva ao qüiproquó entre o Major e o Padre, à
queixa do major ao Bispo e à intervenção da autoridade religiosa. O prazo assim decorrido
acarreta a morte do animal e o recomeço do pedido irregular.
5) A ação principal é intercalada pelas histórias de Chicó e pelas explicações de
João Grilo: quer se vingar do Padeiro e acusa o Padre de loucura.
Percebemos, então, que além das operações textuais realizadas pelo dramaturgo
44
Lígia VASSALO, O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna Armorial, p. 86.
57
mencionadas no primeiro ato, o autor procede à substituição, eliminação de um episódio
e enriquecimento de outros.
O segundo ato retoma o folheto com menor número de operações adaptadoras. O
próprio texto de cordel já apresenta um ardil que se desdobra em três situações de engodo:
o animal que defeca ouro; a ressurreição graças à bexiga cheia de sangue e ao instrumento
milagroso; o homem dentro do saco – sendo que o último episódio é eliminado por
Suassuna.
Quanto ao julgamento da Alma, tema do terceiro ato, é o entremez O Castigo da
Soberba que segue literalmente o folheto matricial. A peça longa enriquece mais certas
situações, pois multiplica o número de personagens mortos e, portanto, das salvações.
Entre elas ressalta o retorno do João Grilo à vida. Por outro lado, explora-se a astúcia do
protagonista, fazendo solicitar a mediação da Compadecida.
O texto de Suassuna retém 49 das 60 estrofes, eliminando repetições e elementos
dispensáveis. As estrofes conservadas são às vezes deslocadas, para a manutenção de
uma ordem linear, sem, contudo, modificar a estrutura narrativa. Trata-se, sobretudo, de
uma modificação da linguagem do folheto na transposição para o público e expressão do
teatro.
Há duas versões do entremez O Castigo da Soberba. A primeira aparece na
Revista DECA (Departamento de Extensão Cultural Artística, Recife, 2(2): 39-50,1962)
e a segunda em Seleta em prosa e verso, organizada por Silviano Santiago.
Na primeira, o autor faz mínimas alterações quanto ao folheto: atualiza o
dinheiro, omite versos, reduz personagens e versos do poema. Às vezes antecipa estrofes,
mudando o desenvolvimento da narrativa. Para adaptar o poema ao teatro, o dramaturgo
faz substituições parciais ou totais, mas com manutenção do sentido original. Ao final,
porém, a mudança envolve o sentido, pois no poema o narrador sugere a recompensa em
dinheiro, ao passo que a conclusão do entremez é moralizante.
Na segunda versão, omite um maior número de estrofes em relação ao folheto
e modifica versos, mas sua adaptação continua muito próxima da criação popular. As
alterações visam, sobretudo, o refinamento do espetáculo teatral. Ele transforma os corifeus
em cantadores, torna o entremez mais conciso, devido às omissões, e muda o enredo, ao
58
eliminar o herói marcado pelo erro dos pais. Ao suprimir súplicas da Alma à Virgem
introduz adaptações de outro folheto, A Peleja da Alma, bem como alterações quanto à
distribuição das falas dos coros. A segunda versão é mais elaborada que a primeira45.
Considerando as características intertextuais do Auto da Compadecida levantadas
anteriormente, faz-se necessário um levantamento sobre os principais conceitos de
Hipermídia, que serão utilizados no contexto deste trabalho. Estes conceitos servem de
embasamento para a transcriação da obra no ambiente hipermidiático.
45
Lígia Vassalo, O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano, p. 88-89.
59
5. O Ambiente Hipermidiático
5.1 Hipermídia
O termo Hipermídia é entendido como deslocamento do conceito de hipertexto
formulado nos anos 1960 por Theodor Nelson que já se reportava ao texto eletrônico
como escrita ramificada que sugere ao usuário/leitor percursos pré-definidos, permitindo
abertura do texto e, conseqüentemente, possibilitando a circularidade por parte do sujeito
usuário no tocante às estruturas significantes digitais.
Para Nicholas Negroponte46 “A hipermídia é um desenvolvimento do hipertexto,
designando a narrativa com alto grau de interconexão, a informação vinculada (...) Pense
na hipermídia como uma coletânea de mensagens elásticas que podem ser esticadas ou
encolhidas de acordo com as ações do leitor. As idéias podem ser abertas ou analisadas
com múltiplos níveis de detalhamento”.
Assim, o termo Hipermídia designa um tipo de escritura complexa, na qual
diferentes blocos de informações estão interconectados. Devido a características do meio
digital é possível realizar projetos com uma quantidade diversificada de informações
vinculadas, caracterizadas por diversos tipos de mídias como som, imagem, vídeos,
etc, criando uma rede multidimensional de dados. Esta rede, que constitui o sistema
hipermidiático propriamente dito, possibilita ao leitor diferentes percursos de leitura.
Núria Vouillmoz47 define hipermídia como “um sistema aberto, sem limites nem
margens, do momento em que permite navegar de um nó a outro em uma estrutura infinita
que não reconhece princípio nem fim: como esquema conceitual, é plurissignificativo
por oferecer múltiplos caminhos, múltiplos acesso e leituras, de maneira que é possível
conhecer uma certa analogia entre o modelo hipertextual desenvolvido pela informática
e o polisemantismo do texto tão reivindicado pelo campo da literatura”48.
46
Nicholas Negroponte, A Vida Digital, p. 66
47
Núria VOUILLAMOZ, Literatura e hipermedia, p. 29.
un sistema abierto, sin limites ni márgenes, desde el momento que permite navegar de un nodo
a outro en una estructura infinita que no reconoce principio ni fin: como esquema conceptual, es
plurisignificativo em tanto que ofrece múltiples recorridos, múltiples accesos y lecturas, de manera que es
65
48
5.1.1 A não-linearidade
O termo não-linear refere-se a todas as estruturas que não apresentam um único
sentido. Estruturas que apresentam múltiplos caminhos e destinos, desencadeando em
múltiplos finais. Em Teoria Geral dos Sistemas49 diz-se que a não-linearidade é pressuposto
de Sistemas Complexos e sua intricada rede leva a caminhos distintos e inimagináveis até
mesmo para os criadores do sistema. Em Hipermídia, a não-linearidade é pressuposto
fundamental do hipertexto.
O link é o elemento realmente inovador apresentado pelo hipertexto em suporte
digital. Em primeiro lugar, mesmo sem utilizar o termo hipertexto e o suporte digital,
já haviam sido realizadas experimentações literárias, narrativas não-lineares ou que
utilizavam muito a intertextualidade.
A não-linearidade dos hipertextos é apontada como a vantagem desse sistema
sobre os documentos impressos. O hipertexto é um potencial paradigma unificador para
a diversidade atual, onde cada tarefa ou material requer uma ferramenta independente.
O modelo hipertexto oferece capacidade tanto para aumentar a qualidade da informação
heterogênea, quanto para facilitar seu uso, por meio de ferramentas consistentes para
apresentação e manipulação.
A novidade do hipertexto digital, então, não está na não-linearidade ou na
intertextualidade em si mesma, mas no link, o recurso técnico que vai potencializar a
utilização de tais características.
5.1.2 A Interatividade
A interatividade digital tem por objetivo aperfeiçoar a forma de diálogo entre o
homem e as máquinas digitais, visando principalmente a manipulação da informação.
A interface gráfica seria então o meio (hardware, software ou os dois) no qual se dá o
processo de interatividade. É na interface que se processa a interatividade, articulando
es possible reconocer una cierta analogía entre el modelo hipertextual desarrollado por la informática y el
polisemantismo del texto reclamado desde el campo de la literatura.
49 Ludewig Von. BERTALANFFY, Teoria Geral dos Sistemas, In: Enciclopedia Wikipédia.
66
espaços de forma a colocar em comunicação duas realidades diferentes.
André Lemos50 situa a noção de interatividade em três níveis: uma interatividade
social, que marcaria de um modo geral nossa relação com o mundo e toda vida em sociedade;
uma interatividade técnica do tipo “analógico-eletro-mecânica”, que experimentamos ao
dirigir um automóvel ou mesmo ao girar a maçaneta da porta; e outra do tipo “eletrônicodigital”, que seria ao mesmo tempo técnica e social.
Segundo André Lemos, algumas características marcam a interatividade entre os
usuários e as mídias digitais:
1) Feedback imediato, ou seja, cada ação do usuário corresponde a uma reação
praticamente simultânea da máquina.
2) Os sistemas informatizados são concebidos de modo a prever o número mais
alto possível de perguntas e as múltiplas combinações de respostas para que o usuário
tenha a impressão de estar interagindo de forma análoga ao diálogo interpessoal e não
perceba que a interação se dá dentro de um número limitado de possibilidades oferecidas
pelo equipamento.
3) Capacidade de interagir de forma individualizada, em oposição aos meios
massivos tradicionais.
4) Possibilidade de manipulação do conteúdo da informação.
Os novos dispositivos de comunicação, com suas características intrínsecas,
como por exemplo, a interatividade e a não-linearidade, rompem definitivamente com o
esquema clássico emissor-receptor. As mudanças no processo de difusão, armazenamento
e consumo na cadeia informacional já são evidentes. A Internet, por exemplo, é um ambiente
multidirecional onde não há qualquer espécie de hierarquia ou gestão centralizada. O
modelo comunicacional “um para todos”, que caracterizou os sistemas tradicionalmente
cunhados de comunicação de massa, dá lugar ao modelo “todos para todos”, com o
surgimento das redes de computadores.
50
André LEMOS, Anjos interativos e retribalização do mundo: sobre interatividade e interfaces digitais.
67
A contribuição da tecnologia digital para a questão da interatividade está em
possibilitar o rompimento das barreiras espaço-temporais, possibilitando a comunicação
à distância e em tempo real de múltiplos sujeitos geograficamente dispersos, fornecendo
estruturas técnicas para a comunicação e o acesso à informação em rede. A possibilidade
de trabalho em rede, tanto como estrutura de intercâmbio como de atividade colaborativa,
constitui uma das grandes qualidades dessas tecnologias.
As estruturas técnicas de rede permitem implementar formas novas e mais
complexas de interação social, fazendo emergir a possibilidade de troca imediata no
ciberespaço. Esta é uma das formas dos indivíduos tornarem-se, ao mesmo tempo,
receptores e emissores de mensagens verbais e não-verbais. Utilizando-se a transmissão
de informações em rede de computadores juntamente com recursos da Hipermídia, como
o hipertexto, a comunicação passa a ser não-linear e multidirecional.
5.1.3 A Hipertextualidade
Contemplando o pensamento de integração e comunicação não-linear, a
terminologia hipertexto nasce para enriquecer o conceito de leitura não-linear, bem como
possibilitar sua estruturação compondo uma forma, um corpo.
O termo hipertexto diz respeito ao nosso modo de ler e escrever. Criado por
Theodor Nelson em 1965, definia o novo modo de produzir textos permitido pelos avanços
tecnológicos na telemática. Nelson criou o também projeto Xanadu: “uma imensa rede
acessível em tempo real, contendo todos os tesouros literários científicos do mundo”.
Os novos processos de registro, transporte e distribuição das informações, profetizados
por Vannevar Bush com a criação do MEMEX51 (Memory Extension), anunciavam o
hipertexto.
Anunciada em 1945 por Vannevar Bush, em um célebre artigo intitulado “As We May Think?” (http://
www.ps.uni-sb.de/~duchier/pub/vbush.txt acesso em dezembro/2005). A partir da idéia de que a soma dos
conhecimentos, aumentando em um ritmo prodigioso, não encontrava contrapartida em relação à evolução
dos meios de armazenamento e acesso aos dados e observando o funcionamento da mente humana, segundo
ele, operando sempre por meio de associações, Bush imaginou e descreveu, de maneira detalhada, uma
máquina capaz de estocar montanhas de informações, fácil e rapidamente alcançáveis. Tal engenho,
concebido para suprir as falhas de memória humana, através de recursos mecânicos, é considerado o
percursos da idéia de hipertexto.
68
51
George Landow52 diz que o hipertexto põe em cheque: seqüências fixadas, começo
e fim definidos, uma estória de certa magnitude definida e a concepção de unidade e todo
associada a todos esses conceitos. Na narrativa hipertextual, o autor oferece múltiplas
possibilidades através das quais os próprios leitores constroem sucessões temporais e
escolhem personagens, realizando saltos com base em informações referenciais.
Para Heim53 o hipertexto é um modo de interagir com textos. Por sua característica
o usuário interliga informações intuitivamente e associativamente, através de saltos - que
marcam o movimento do hipertexto – o leitor assume um papel ativo, sendo ao mesmo
tempo co-autor.
Ted Nelson, diz que o hipertexto possibilita novas formas de ler e escrever,
um estilo não linear e associativo, onde a noção de texto primeiro, segundo, original e
referência cai por terra. Poderíamos adotar como noção de hipertexto assim, o conjunto
de informações textuais, podendo estar combinadas com imagens (animadas ou fixas)
e sons, organizadas de forma a permitir uma leitura (ou navegação) não-linear, baseada
em indexações e associações de idéias e conceitos, sob a forma de links. Os links abrem
caminho para outras informações.
Pierre Levy54 acredita que o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões.
Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos, seqüências sonoras, documentos
complexos que podem eles mesmos ser hipertexto. Os itens de formação não são ligados
linearmente, como em uma corda como nó, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas
conexões em estrela, de modo reticular.
No hipertexto, os diferentes percursos a serem feitos, livremente, pelo leitor se
constituem na possibilidade do mesmo leitor ser, a um só tempo, autor de outro texto e
comentador daquilo que lê, anotando seus próprios comentários ou escolhendo outros
que incorpora ao seu trajeto, como comentários que julga adequados ao texto inicial.
George P. LANDOW, Hypertext. The Convergence of Contemporay Critical theory and Technology apud
Cláudia CORREIA; Heloísa ANDRADE, Noções básicas de Hipertexto.
52
M. HEIM, The Metaphysies of Virtual Reality apud Cláudia CORREIA; Heloísa ANDRADE, Noções
básicas de Hipertexto.
53
Pierry LÉVY, As Tecnologias da Inteligência apud Cláudia CORREIA; Heloísa ANDRADE, Noções
básicas de Hipertexto.
69
54
A existências de múltiplos trajetos de leitura perturba o equilíbrio entre leitor e escritor
e possibilita o surgimento de um texto muito menos independente em relação aos
comentários, analogias e traduções, próprias do texto impresso, apresentando uma quebra
na hierarquia entre texto principal, anotações e comentários, estes se constituindo por sua
vez em novos textos.
5.1.3.1 Funções Hipertextuais
George Landow considera cinco as funções hipertextuais55:
Intratextualidade: a possibilidade de um texto se complementar com outro,
dentro do mesmo site, criando uma continuidade informativa a partir de textos diferentes,
porém comuns segundo uma temática ou assunto.
Multivocalidade: A idéia de multivocalidade está relacionada ao conceito de
polifonia de Bakhtin: a possibilidade da existência de diversas vozes em uma mesma
narrativa literária. Podendo ser interpretado também como a possibilidade de co-autoria
na redação de um mesmo texto ou narrativa.
Descentralidade: a possibilidade de “recentralização” do foco de interesse do
leitor, a medida que ele navega de um texto para outro, mudando o núcleo de ênfase da
sua intenção em relação à informação que precisa ou deseja.
Navegabilidade: as várias possibilidades de utilização de recursos que facilitem
a navegação e localização dos usuários dentro do site, como a permanência dos links para
as páginas principais em todas as páginas, mapas de sites, e outros recursos.
5.2 Narrativas Digitais Interativas
Desde as antigas culturas orais até a geração que atualmente navega pela
Internet, diversas formas de transmissão de conhecimento foram desenvolvidas pelo
homem no sentido de preservar sua cultura através do tempo. As narrativas repassadas
G. P. LANDOW, Hypertext. The Convergence of Contemporay Critical theory and Technology, p. 1394.
70
55
através da oralidade constituíam-se também como forma de transmissão de experiências
adquiridas.
O poeta popular como representante do povo e repórter dos acontecimentos da
vida no Nordeste do Brasil é também contador de histórias. Não há limite na escolha dos
temas para a criação de um folheto de cordel. Podem-se narrar os feitos de Lampião, as
“prezepadas” de heróis como João Grilo ou Cancão de Fogo, uma história de amor ou
acontecimentos importantes de interesse público.
O cantador popular de cordel, nômade como o jogral de quem é herdeiro, recebe
situações e imagens que conjugam tradições diversas e antigas. Não há limites entre a
cantoria e o folheto, considerando que a passagem para a escrita, não depende do oral, mas
tudo o que é escrito pode ser cantado, residindo assim, uma das causas para a incerteza
da autoria.
No momento em que todos são narradores/tradutores, têm-se diversas narrativas
relatando o mesmo acontecimento. Há divergências no modo de contar, porém o
sentido original, o fio condutor da história, é preservado. É como se a história tivesse se
fragmentado em diversas partes, que ao invés de se excluírem, passam a se complementar
entre si, de modo que o escritor responsável pela reconstituição da história aglutina os
fragmentos.
As narrativas não esgotavam a experiência no momento de seu relato, elas eram
incorporadas pelos ouvintes, de tal forma que atravessavam gerações, configurando-se
mesmo como experiências coletivas de uma cultura, de um povo. Dessa forma, a narrativa
implica uma interação subjetiva entre o narrador/emissor e seu ouvinte/receptor.
Uma das características da narrativa é a habilidade na articulação do pensamento.
O bom narrador é aquele capaz de articular diferentes histórias, recorrendo às experiências
adquiridas ao longo de sua vida, de maneira a constituir uma única narrativa.
A Internet parece ser o espaço de convergência onde a informação e a experiência
se encontram. Contar uma história na Web é dividi-la com leitores em diversos pontos
do mundo, e dadas as próprias características da WWW, a história pode ser apropriada e
incorporada a outras histórias desses leitores.
71
Na verdade este processo de construção não é novo. Os livros já permitiam esse
relacionamento entre textos, através das notas de rodapé, das referências bibliográficas.
Ocorre que na WWW esta ligação é mais explícita, dada a praticidade do hipertexto em
relacionar diversos blocos de informação dinamicamente. Mas, o que chama atenção
agora é a possibilidade de interação efetiva entre o autor/emissor e o leitor/receptor. Se
nas narrativas modernas a interatividade subjetiva decorria da interpretação da mensagem
pelo receptor, na Web pode mesmo ocorrer uma interatividade entre as pessoas envolvidas
no processo de comunicação como em nenhum outro meio de comunicação moderno até
então.
Por narrativa hipertextual, entendemos projetos desenvolvidos especificamente
para este meio, e não as obras escritas em forma de livros impressos que foram transpostas
para o suporte digital. Já foi comentado anteriormente que na literatura, já se havia tentado
romper com a linearidade e aumentar o grau de envolvimento dos leitores.
Com os recursos de hipertexto, pode-se utilizar, de modo real, uma estrutura
que permita ao leitor estabelecer trajetos de leitura e relações que não tenham sido prédeterminadas. Com os recursos do meio digital ainda é possível utilizar imagens, sons,
vídeos e ambientes virtuais como blocos de informação dentro da estrutura hipertextual,
constituindo o que se poderia chamar de hipernarrativa.
A experimentação do conteúdo digital na forma de hipernarrativa, se des­prende
de padrões tradicionais, podendo apresentar-se de forma simultânea e interativa e não
ap­enas linear. O novo meio permite uma forma participativa de interação que reage às
informações que inserimos. Sua forma de representação permite a construção de espaços
navegáveis no qual podemos nos mover, recuperar e interferir nas informações que nos
são apresentadas.
Atualmente pode-se encontrar na Internet dois tipos de hipernarrativas, ou
hiperficções como proposta de Micheal Joyce56 - a hipernarrativa explorativa e a
hipernarrativa construtiva.
56
72
Micheal JOYCE, Hypertext narrative.
Na hipernarrativa explorativa existe somente um autor da história. Este como
leitor também, pode tomar decisões sobre o trajeto a ser percorrido e quais lexias57 deve
escolher a cada momento, exigindo assim, atividade constante. Aqui o autor, que também
é leitor da história, que não escreve, mas decide sobre o que foi escrito previamente.
Por outro lado, a hipernarrativa construtiva permite a colaboração por parte
de cada leitor, mesclando os limites entre autor e leitor. Esta prática é um exemplo de
autoria compartilhada, que tem intenção lúdica. Mesmo se limitado ao texto, é possível
superar a improvisação e o pouco grau de intervenções pessoais limitado por aspectos
tecnológicos.
Uma alternativa para a construção de hipernarrativas apontada por Judy Malloy58,
é a construção de blocos, curtos o suficiente para prender a atenção do leitor e ao mesmo
tempo consistentes de forma que o leitor os guarde na memória , que incorpore-os à sua
experiência.
“Minhas hipernarrativas são escritas em blocos de construção de narrativa do
formato de uma tela, que podem tanto permanecer isolados como podem ser
combinados com outros blocos de diversas maneiras. Cada ‘tela’ representa uma
‘figura de memória’ completa, totalmente expressa e algumas vezes visual. De
‘Uncle Roger’ até o trabalho de “literatura pública” que venho escrevendo na
Web desde novembro de 1995 - ‘The Roar of Destiny Emanated from the
Refrigerator. I got up to get a beer.’, minhas hipernarrativas são coleções de
pequenos blocos de construção de informação narrativa intensamente escritos
que podem se sustentar independentemente mas podem também ser combinados
com outras telas para constituir-se num todo com um significado maior.
De maneira semelhante ao processo vivido pelo compositor ao compor diferentes
partes de uma música que eventualmente serão ouvidas em conjunto pelo
ouvinte, quando escrevo as telas individuais, tenho em mente as diversas
maneiras que um leitor pode combiná-las.
Na Web, não espero que o leitor leia mais do que três ou quatro telas antes de
saltar incansavelmente para outra url. Assim, é particularmente importante que
cada tela de uma narrativa na Web seja memorável em si e para si.”59.
Fragmento do hipertexto, caracterizado por informação, podendo ser som, imagem, vídeo ou outro tipo
de mídia.
57
58
Judy MALLOY, Hypernarrative in the Age of the Web
Judy Malloy: “My hypernarratives are written with screen sized narrative building blocks that can either
stand alone or be combined with each other in multiple ways. Each “screen” represents a complete, fully
73
59
Ao reagir a estímulos externos, explorando os links das páginas, a “leitura” que
se faz na Web aproxima-se do pensamento e da construção de significado que fazemos a
partir das experiências sensoriais que nos cercam.
Os conceitos apresentados anteriormente são consolidados no próximo capítulo,
que apresenta a transcriação da obra de Suassuna no ambiente hipermidiático.
expressed and often visual “memory picture”. From Uncle Roger to the work of “public literature”
that I have been writing on the web since November of 1995 - The Roar of Destiny Emanated from
the Refrigerator. I got up to get a beer., my hypernarratives are collections of small intensely
written building blocks of narrative information that can stand by themselves but can also be
combined with other screens to make a whole with greater meaning. // Somewhat like the process a
composer goes through in composing four different streams of music that will eventually be heard
together by the listener, when writing individual screens, I keep in mind the many ways in which a
reader might combine them. // On the web, I do not expect the reader to read more than three or
four screens before moving restlessly on to another url. So, it is particularly important in that each
screen of a web hypernarrative be memorable in and of itself.”
74
6. O Auto da Compadecida em Hipermídia
E
ste capítulo aborda a transcriação do Auto da Compadecida para suporte
digital utilizando a Linguagem da Hipermídia, com base nos conceitos vistos nos capítulos
anteriores.
A transcriação da obra de Ariano Suassuna para o ambiente hipermidiático, nesta
pesquisa, é feita considerando um aspecto fundamental: a definição de uma estrutura
hipertextual a partir da intertextualidade contida na obra. Esta estrutura hipertextual
deverá adaptar a obra a uma narrativa não-linear e permitir a exploração da interatividade
entre leitor e obra.
É utilizado aqui o termo interator como denominação de usuário.
6.1 Da Intertextualidade para a Hipertextualidade
Revisando os conceitos abordados nos capítulos anteriores, entendemos que a
relação tão próxima entre dois textos está incluída naquilo que podemos chamar de
relações intertextuais, e no que Genette60 chama de transtextualidade.
No caso do Auto da Compadecida, o texto da obra foi construído espelhandose em outros textos que lhe serviram de matriz. Os folhetos da Literatura de Cordel,
que serviram de referência ao texto do auto, são chamados hipotextos do texto recriado,
definidos por Genette como um texto ou gênero no qual o texto se baseia. O encadeamento
de desdobramentos de informações forma uma estrutura hipertextual da obra.
O Auto da Compadecida considera linearidade na apresentação dos atos. No
entanto, cada ato possui uma certa independência em relação aos outros, caracterizando
Gerard GENETTE, Palimsestos. apud Marta RIVERA DE LA CRUZ, Intertexto, Autotexto: la
importancia de la repetición en la obra de Gabriel García Márquez. Revista Especulo.
60
79
uma narrativa, e o autor consegue relacioná-las através dos personagens. Sem a intervenção
do autor, os eventos presentes nos cordéis que originaram a obra poderiam acontecer
simultaneamente.
Partindo desta observação e identificando os hipotextos da obra, é possível definir
as relações intertextuais que servem como base na criação de uma estrutura hipertextual.
O diagrama abaixo mostra a estrutura hipertextual no Auto da Compadecida:
Os hipotextos A História do Cavalo que Defecava Dinheiro e O Enterro do
Cachorro não têm suas narrativas modificadas quando inseridas no Auto da Compadecida
(intertextualidade), mas alguns dos personagens sofrem modificações. Estes são retirados
de outro hipotexto, o entremez de autoria de Suassuna, O Castigo da Soberba, inspirado
no cordel de mesmo nome. O entremez de Ariano Suassuna tem também como hipotexto
outro folheto chamado A Peleja da Alma.
Neste trabalho considera-se o folheto matricial que deu origem ao entremez do
autor, chamado o Castigo da Soberba, que não tem relacionamento com o cordel A Peleja
da Alma.
Esta pesquisa também resgata o cordel As Proezas de João Grilo, utilizado
como fonte na criação do personagem João Grilo, presente no Auto da Compadecida,
caracterizando assim relação intertextual com o texto da obra.
80
6.2 A Transcriação do Auto da Compadecida para a Hipermídia
A transcriação do auto de Suassuna no ambiente hipermidiático é realizada neste
trabalho considerando a desconstrução da obra, apresentando como conteúdo de um
website suas matrizes intertextuais caracterizadas pelos cordéis As Proezas de João Grilo,
O Enterro do Cachorro, O Castigo da Soberba e A História do Cavalo que Defecava
Dinheiro.
A partir da identificação da estrutura hipertextual da obra, conclui-se que as
narrativas originais utilizadas pelo autor, na composição da peça, podem ser apresentadas
simultaneamente em um projeto interativo, possibilitando uma leitura não-linear.
Como abordagem para a construção da peça digital, é realizada a desconstrução
dos cordéis fonte do Auto da Compadecida que são apresentados no website como blocos
de informações textuais, visuais e sonoras. É utilizado o conceito de livre-arbítro na
interação e navegação entre as áreas do website e também vários conceitos da igreja
Católica como os sete pecados capitais, a fé na salvação, o Céu e o Inferno, seguindo a
temática religiosa da obra de Suassuna. A identidade visual do website segue o projeto
de criação, elaborado anteriormente à construção do mesmo, abordando vários elementos
projetuais apresentados a seguir.
6.3 A Elementos Projetuais
Antes da elaboração do website, foi desenvolvido um projeto de criação que
aborda diversos elementos projetuais. Estes elementos, por sua vez, orientaram todo
o desenvolvimento da identidade visual, sonora, bem como o conceito de navegação
e interação utilizado na peça digital. Estes elementos são comentados nas próximas
seções.
6.3.1 Conceito Geral do Website
A peça digital utiliza a temática religiosa do Auto da Compadecida através do
conceito de livre-arbítrio presente no catolicismo. Este conceito presume, de acordo
com a doutrina cristã, que nós decidimos nosso caminho e este é fundamentado na idéia
81
da liberdade de escolhas na vida de um indivíduo. Escolhas que transitam entre o Bem e
o Mal.
Neste projeto utilizamos o conceito de livre-arbítro como liberdade de escolhas na
peça digital. São apresentadas as situações presentes no Auto da Compadecida referentes
aos cordéis que constituem as matrizes intertextuais da obra. A peça digital apresenta ao
interator os cordéis O Enterro do Cachorro, A História do Cavalo que Defecava Dinheiro
(Terra) e o julgamento da Alma (Céu/Inferno) representado no cordel O Castigo da
Soberba. Também é apresentado o personagem João Grilo através do cordel As Proezas
de João Grilo (Terra).
Na interação com o website, caso o interator cometa algum pecado, representado
pelo clique em elementos que representam pecados, tais como o testamento de O Enterro
do Cachorro, o dinheiro e o cavalo de A História do Cavalo que Defecava Dinheiro, este
é condenado a viver no Inferno em sofrimento eterno. O interator pode pedir a salvação
a uma entidade do Bem, neste caso, Nossa Senhora, representada no Inferno como
uma estátua. Ao clicar na estátua, o usuário é transportado para a área Céu, onde são
apresentados os principais trechos do cordel O Castigo da Soberba. O coração de Nossa
Senhora representa a salvação no website. No Céu, ao clicar no coração da Compadecida,
o interator retorna à área Terra, representando a ressurreição de João Grilo na obra de
Suassuna.
6.3.2 Iconografia
A seguir são mostradas as principais imagens utilizadas como referência para a
criação da identidade visual deste projeto.
82
Título: O Juízo Final (detalhe)
Autor: Hieronymus Bosch (1450-1516)
Técnica: Óleo sobre madeira
Dimensões: 163.7 x 127 cm
Acervo: Akademie der bilden kunste – Viena, Áustria
Título: A Tentação de Santo Antão (detalhe)
Autor: Hieronymus Bosch
Técnica: Óleo sobre madeira
Dimensões: 131,5 X 225 cm
Acervo: National Gallery of Canada– Otawa, Canadá
Título: Távola dos Sete Pecados
Capitais e as Quatro Últimas Coisas (detalhe)
Autor: Hieronymus Bosch (1450-1516)
Técnica: Óleo sobre madeira
Dimensões: 120 X 150 cm
Acervo: Museo del Prado – Madri, Espanha
Título: n/c
Autor: Christian Montenegro
Técnica: Ilustração
Fonte: Livro The Creation
83
Título: n/c
Autor: Christian Montenegro
Técnica: Ilustração
Fonte: Livro The Creation
Título: Ás de Ouro
Autor: Elisabetta Trevisan
Fonte: Crystal Tarot 2004
www.loscarabeo.com
84
Título: O Enforcado
Autor: Elisabetta Trevisan
Fonte: Crystal Tarot 2004
www.loscarabeo.com
Personagem do Teatro Brincante
Fonte: www.teatrobrincante.com.br
Mambembe
Teatro de Anônimo
Fonte: www.teatrodeanonimo.com.br
Teatro Brincante
Fonte: www.teatrobrincante.com.br
85
Mamulengo
Mamulengo Fâmulos de Bonifrates
Fonte: www.bonifrates.cjb.net
86
6.3.3 Paletas de Cores
Neste trabalho são utilizadas 4 paletas de cores selecionadas conforme as áreas
Terra, Céu, Inferno e interface, aqui denominada Paleta Palco.
A Paleta Céu utiliza cores frias que foram inspiradas nos quadros A Tentação de
Santo Antão e o Juízo Final de Hieronymus Bosch (1450-1516), onde aparecem anjos e
imagens divinas no céu.
São utilizadas cores frias nesta paleta em contraste às cores quentes da Paleta Inferno. A técnica de harmonização de cores foi aplicada nestas paletas através da seleção
de tons vizinhos no círculo cromático e também a combinação monocromática definida
pela seleção de tonalidades de uma só cor.
A Paleta Inferno utiliza cores quentes e gradações inspiradas nos quadros A Tentação de Santo Antão e A Morte do Avarento, de Hieronymus Bosch (1450-1516), em
que aparecem cenas de fogo e morte.
A paleta seguinte é denominada Paleta Terra e é inspirada na obra Távola dos
Sete Pecados Capitais e as Quatro Últimas Coisas de Hieronymus Bosch (1450-1516),
que apresenta cenas terrenas representativas dos Sete Pecados Capitais. Também foi utilizada, como inspiração nesta paleta, a ilustração de Christian Montenegro presente no
livro The Creation, retratando a criação do mundo segundo a Bíblia, no Livro de Gênesis,
onde as tonalidades de cores atendem a um espectro entre os tons amarelados (quentes),
os esverdeados (frios) e os neutros.
87
A Paleta Palco é inspirada em tons de terra (ocres e marrons) presentes nas cores
das roupas e acessórios de couro do sertanejo.
6.3.4 Tipografia
As fontes selecionadas para a área Terra são inspiradas nos cordéis e estilos de
letras escritas à mão (caligráfico gestual), adicionando um caráter artesanal ao projeto.
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Brasilero - Crystian Cruz
Thereza - Projeto experimental da PUC-Rio
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Chiller - Esselte Corp.
Chicken Scratch - Astigmatic One Eye
As áreas Céu e Inferno utilizam fontes góticas, que remetem à religiosidade e à
medievalidade presentes na obra de Suassuna.
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Bandit Regular - Budda Graphix
Valha-me Nossa Senhora,
mae de Deus de Nazare
Castiglione Regular
88
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Bens Gothic - Harold Lohner
Valha-me Nossa Senhora,
mae de Deus de Nazare!
Boister Black - Boister Black Corp.
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
Cretino - Ray Larabie
Valha-me Nossa Senhora,
mae de Deus de Nazare!
Diamond Gothic- Jim Fordyce
Valha-me Nossa Senhora,
mae de Deus de Nazare!
KellyAnnGothic - De Nada Industries
6.3.5 Som
Cada área do website tem sua trilha sonora. São utilizadas no repertório do projeto
músicas de Antonio Nóbrega, Sivuca e Canto Gregoriano.
Sivuca e Nóbrega têm em seus trabalhos a ingenuidade da cultura popular mesclada ao refinamento da cultura erudita. A música tema do trabalho, “Dança dos Arcos”,
foi selecionada do CD de Antonio Nóbrega, Marco do Meio-Dia. Neste CD, Nóbrega
faz uma reflexão sobre o desenvolver do Brasil 500 Anos. O músico procurou o Brasil
desconhecido, construído pelo povo que veio bem antes dos portugueses, com as populações indígenas. Violinista desde criança, o artista foi convidado, no final dos anos 60, por
Ariano Suassuna a fazer parte do Quinteto Armorial.
O Canto Gregoriano, foi utilizado como influência na estética Armorial. Segundo
Ariano Suassuna, pode-se notar o Canto Gregoriano nos primeiros acordes das melodias
mais trágicas do Sertão - as “excelências dos mortos e alguns baiões que servem ao
canto”.
O website apresenta trechos de Canto Gregoriano como trilha sonora para as
áreas Céu e Inferno. Como tema de O Enterro do Cachorro e As Proezas de João Grilo
foram selecionados trechos das músicas “Coco da Bicharada” e “Dança do Mergulhão”,
de Nóbrega. A História do Cavalo que Defecava Dinheiro tem como tema “Feira de
Mangaio” de Sivuca.
89
6.3.6 Ilustrações
As imagens desenvolvidas para o projeto utilizam um processo envolvendo
desenhos, ilustrações com lápis aquarelável e finalização no software Adobe
Photoshop, que associa o fazer artesanal com o fazer da tecnologia digital. São
aplicadas em fundos, partes de figuras ou personagens, imagens de estampas de
tecidos, padronagens de tapeçaria medieval e rendas, que foram selecionadas
de acordo com as características das áreas do website em que são mostradas.
Etapas de Desenvolvimento das Ilustrações
A primeira etapa para a elaboração de uma ilustração consiste na
definição do conceito e desenho a lápis. Após o desenho, é realizada
a pintura com lápis aquarelável.
Na segunda etapa é aplicada a pintura com água, com utilização
de pincel, para diluição do pigmento do lápis e preenchimento da
áreas que indicam volume ou espaços chapados.
No terceiro passo é realizada a digitalização das imagens e recorte
do objeto de interesse. Eventuais ajustes de cores e contraste são
feitos nesta etapa.
O quarto passo para a elaboração da ilustração é definido pela escolha
e ajuste de cores de textura do tecido para posterior composição da
imagem.
A finalização é dada através de ajuste de brilho e contraste e
eliminação de ruídos na imagem.
Caso a imagem seja animada em partes, é necessário desenhar as
partes separadas. Por fim, é realizada a composição com outras
imagens.
90
6.4 O Projeto em Hipermídia do Auto da Compadecida
O website é definido como um conjunto de áreas organizadas em três planos: Céu,
Terra e Inferno. Cada área é composta por um conjunto de interfaces que apresentam
partes do conteúdo e definem formas de interação presentes nestes planos. As interfaces
do plano Terra abordam a apresentação dos cordéis As Proezas de João Grilo, O Enterro
do Cachorro e A História do Cavalo que Defecava Dinheiro. Os planos Céu e Inferno
apresentam o cordel O Castigo da Soberba.
Enterro do
Cachorro
A História do
Cavalo que
Defecava Dinheiro
As Proezas
de João Grilo
Navegação entre as áreas
91
As interfaces plano Terra estão dispostas, de forma espacial, como um cenário
único e circular definindo a idéia de um mundo criado por Ariano Suassuna, onde o
interator é convidado a explorar o cenário, caracterizando assim a forma de navegação
e interação neste plano. O interator pode definir inúmeras interfaces dependendo do
enquadramento realizado para visualizar o plano Terra, que é visto sempre parcialmente,
pois é constituído por uma imagem de dimensão 6144 x 2304 pixels.
O website apresenta interfaces classificadas em:
- Abertura, como por exemplo a interface inicial do website;
- Transição, que representam a passagem entre os planos Terra, Inferno e Céu;
- Conteúdo, que mostram os cordéis e conteúdo adicional do website.
As Proezas
de João Grilo
A História do
Cavalo que
Defecava
Dinheiro
O Enterro do
Cachorro
Representação de Cenário Circular
Plano Terra – Cenário Circular
92
Além da apresentação dos cordéis, o plano Terra também permite ao interator o
acesso e download de conteúdo adicional através de clique em elementos presentes no
céu e embaixo da terra das interfaces do plano Terra. Este conteúdo caracteriza-se por
papéis de parede, cartões e marcadores de páginas para imprimir, os cordéis utilizados
como conteúdo do website, links para outros websites, o documento constituído por esta
pesquisa, processo de elaboração das ilustrações, informações de contato, créditos e o
projeto de criação do website.
Objetos representando material para download
A interface do website apresenta nas laterais quatro botões, que estão sempre
visíveis: um botão que abre interface de ajuda, um botão que abre interface com opção
para sair do website, um botão para habilitar/desabilitar o som e um botão que abre um
menu. Este menu apresenta links para os planos Céu, Terra e Inferno.
ajuda
sair
som
menu
Interface inicial e botões
93
Interface de Ajuda
Menu
As interfaces apresentadas nos planos Céu e Inferno estão dispostas como planos
superior e inferior respectivamente, em relação ao plano Terra. Todas as interfaces
apresentam alguns objetos que reagem ao clique ou arraste do mouse. Estes objetos ora
apresentam conteúdo, ora fornecem acesso aos planos Céu e Inferno. A navegação no
plano Terra é realizada arrastando o mouse nos sentidos horizontal e vertical. No entanto,
para acessar os planos Céu e Inferno é necessário interagir com objetos apresentados na
interface ou acessar o menu. Os objetos que possibilitam acesso ao plano Inferno são
mostrados com tipografia e cursores diferenciados, tais como o testamento de O Enterro
do Cachorro, o dinheiro e o cavalo de A História do Cavalo que Defecava Dinheiro. Um
objeto presente no plano Inferno permite acesso ao plano Céu, representado por uma
estátua de Nossa Senhora.
94
Para facilitar a navegação, foi desenvolvido um conjunto de cursores, integrados
a cada área do website, que visam orientar o interator sobre as possíveis ações que cada
objeto permite, como clique, arraste ou acesso a conteúdo. As imagens e as informações
verbais destes cursores indicam o tipo de ação que poderá ser realizada através deles.
Também é utilizado feedback sonoro quando o interator passa o mouse e quando é
realizado clique em objetos.
Cursores Céu
Cursores Inferno
Cursores Terra
6.4.1 As Proezas de João Grilo
A apresentação do personagem principal da obra de Suassuna, João Grilo, é
abordada na pesquisa como a definição de uma área no website que permite a interferência
por parte do interator no conteúdo apresentado em forma de texto e imagem. Esta
abordagem dá possibilidade da elaboração de uma narrativa construtiva, permitindo não
só a apresentação do cordel que deu origem ao personagem, mas também a possibilidade
da construção colaborativa de uma história.
O cordel As Proezas de João Grilo caracteriza-se como uma série de episódios
vividos pelo personagem João Grilo. Na peça digital, os versos iniciais destes episódios
encontram-se em uma área do plano Terra chamada “As Proezas de João Grilo”, em
forma de capítulos iniciais de várias histórias. O website apresenta ao interator as opções
95
de escrita de 7 histórias, sendo que cada história permite a inserção de 10 capítulos com
uma imagem associada a cada capítulo. O interator pode dar continuidade a uma das
histórias escrevendo um novo capítulo ou alterando o texto e a imagem de um capítulo
anterior, que pode ter sido criado por outro visitante do website. A imagem enviada pelo
interator é apresentada por uma animação em forma de um caleidoscópio que através de
sua parametrização permite inúmeras possibilidades de visualização de imagens.
Os textos dos capítulos e as imagens associadas são armazenados no website,
permitindo que outros visitantes também tenham acesso a esse conteúdo. Quando uma
história é finalizada, ou seja, seus 10 capítulos são escritos, esta fica disponível no website
para leitura e impressão, e é iniciada uma nova possibilidade de escrita desta história a
partir do capítulo inicial.
As Proezas de João Grilo
Foram implementadas interfaces adicionais em forma de janelas pop up para
definir áreas de leitura e escrita das histórias, que são apresentadas através de clique em
Interfaces adicionais para leitura das histórias
96
objetos do plano Terra. Estes objetos são representados por imagens de livros (escrita) e
um pacote sendo carregado por um personagem (leitura das histórias dos visitantes).
Interface de abertura da área de escrita de uma história
Ícones para indicação de capítulos em branco e escritos
A interface de leitura de histórias apresenta as 7 últimas histórias finalizadas e esta
é acessada através do clique no objeto representado por um pacote presente na interface
As Proezas de João Grilo. O interator pode escolher uma história e ler cada capítulo desta
individualmente. As interfaces de escrita e leitura das histórias fornecem ícones que
mostram se um capítulo foi escrito ou está em branco.
A interface de escrita e alteração de histórias é mostrada quando o usuário clica em
um objeto representado por um livro. Nesta interface o interator deve escolher um capítulo
para escrever. Caso seja escolhido um capítulo que já tenha conteúdo escrito, este poderá
ser alterado. Estão disponíveis 10 capítulos para cada uma das 7 histórias. Assim que uma
história é finalizada, isto é, tem seus 10 capítulos preenchidos, esta fica disponível na
interface de leitura de histórias finalizadas, com possibilidade de impressão.
As interfaces de escrita e leitura das histórias foram implementadas utilizando a
linguagem PHP, banco de dados MySQL, bem como tecnologia Macromedia Flash.
97
Desenho do Modelo Entidade Relacionamento
A seguir é descrito o modelo do banco de dados utilizado para o armazenamento
e consulta das histórias.
Modelo de Dados - Área As Proezas de João Grilo
Tabela “tipo_historia”
Armazena os tipos de histórias. São elas: João Grilo e o Mendigo, As charadas do Sultão,
João e o Rei, João Grilo na Escola, João Grilo e o Português, João e os Ladrões e João
Grilo e o Padre.
Campos da tabela:
tihi_cod: código seqüencial para os tipos de histórias (1 a 7)
tihi_titulo: armazena os títulos das histórias
tihi_inicio: armazena os inícios das histórias
Tabela “historias”
Armazena todas as histórias criadas, finalizadas ou não.
Campos da tabela:
tihi_cod: códigos dos tipos de histórias vindo da chave primária da tabela tipo_historia.
hist_cod: código seqüencial para as histórias. Forma junto com a chave estrangeira tihi_
cod a chave primária desta tabela permitindo então que se tenha várias histórias de um
mesmo tipo.
Tabela “capitulos”
Armazena os capítulos das histórias. Cada história deve ter no máximo 10 capítulos.
98
Campos da tabela:
hist_cod: códigos de histórias, chave primária da tabela historias.
capi_num: codigo seqüencial para os capítulos que junto com a chave estrangeira hist_
cod forma a chave primária desta tabela. Desta forma uma história pode ter mais de 1
capítulo.
capi_texto: armazena os textos escritos de cada capítulo para a determinada história.
capi_imagem: armazena “S” se tem uma imagem enviada para este capítulo.
6.4.2 O Enterro do Cachorro
Este cordel descreve a história de um enterro de um cachorro, cujo dono é inglês.
Este inglês elabora um testamento, em nome do cachorro, deixando dinheiro para um
padre, caso seu enterro seja realizado em latim. Outro personagem presente no cordel é um
padre ambicioso que realiza o enterro em troca do dinheiro do testamento do cachorro.
Nesta interface, personagens e objetos fornecem possibilidade de clique
apresentando os trechos principais do cordel, que podem ser lidos de forma não-linear.
O elemento principal desta história, o testamento, possibilita acesso ao plano Inferno
através de clique, e é representado no website como o sacrilégio da Simonia. O testamento
também indica o pecado da Avareza através da ambição do padre.
O Enterro do Cachorro
99
6.4.3 A História do Cavalo que Defecava Dinheiro
O principal episódio deste cordel é baseado na mentira contada por um homem, na
tentativa de vender um cavalo que não tem mais utilidade. Este homem põe moedas em um
cavalo e diz que o animal defeca dinheiro, atraindo a atenção de um duque ambicioso.
Na interface há possibilidade de interação através de clique e movimentos do mouse sobre
personagens e objetos, permitindo a leitura dos trechos principais da história do cavalo
de forma não-linear. O dinheiro e o cavalo nesta interface são considerados elementos
principais por centralizarem os pecados da Avareza e da Inveja, bem como a ambição e a
mentira. Através do clique nestes objetos o interator consegue acessar o plano Inferno.
A História do Cavalo que Defecava Dinheiro
6.4.4 O Castigo da Soberba
Este cordel apresenta como elemento central o julgamento de um personagem
depois da morte, denominado Alma. No julgamento estão presentes o Diabo, Jesus e
Nossa Senhora - a Compadecida.
No Auto da Compadecida de Suassuna, o julgamento dos personagens acontece
no Céu. Assim, no website, a apresentação do conteúdo do cordel O Castigo da Soberba
acontece no plano Céu, acessível através do Inferno ou pelo menu.
A interface do plano Inferno procura fornecer ao interator uma experiência que
caracterize a agonia de um castigo por cometer um pecado. A interface é visualmente
carregada de objetos sobrepostos que representam pecados e sofrimento. Apenas um
100
objeto fornece acesso ao Céu, representado por uma estátua de Nossa Senhora. O interator
deve realizar uma busca pela estátua de Nossa Senhora que aparece em posição aleatória,
movendo objetos na cena. Ao clicar na estátua da santa, é mostrada a cantiga de Canário
Pardo, em forma de texto e som, que é usada como invocação da Compadecida pelo
personagem João Grilo, na peça de Suassuna, e em seguida o interator é transportado ao
Céu através de interfaces de transição.
No plano Céu, o interator pode acessar os trechos principais do cordel O Castigo
da Soberba, que podem ser lidos sem uma seqüência pré-definida, através do movimento
do mouse sobre objetos e personagens, tais como as estrelas, anjos, Jesus, Diabo e Nossa
Senhora. A absolvição da Alma, personagem do cordel, é representada na interface pelo
clique no coração da Compadecida, significando a compaixão. Após o clique, o interator
pode ouvir a narração de um trecho do cordel que indica a absolvição e em seguida é
transportado ao plano Terra indicando a ressurreição do personagem João Grilo no Auto
da Compadecida.
As interfaces dos planos Céu e Inferno também apresentam feedback sonoro no
clique e na movimentação do mouse sobre objetos.
Céu
Inferno
101
7. Considerações Finais
U
ma das maiores realizações desta pesquisa é a transcriação da consagrada
obra de Ariano Suassuna no ambiente hipermidiático, possível através da identificação
dos textos que deram origem ao Auto da Compadecida. Este fato destaca que a peça foi
escrita utilizando como referência relatos orais repassados entre cantadores do Nordeste
do Brasil, através da Literatura de Cordel. O autor cita em sua obra literalmente os folhetos
e também faz modificações onde lhe convém, criando um contexto novo para os episódios
narrados pela tradição popular.
Estes episódios narrados pelos folhetos de Cordel definem relações intertextuais na
obra de Suassuna, permitindo a criação de uma estrutura hipertextual que é potencializada
pelo uso do link no ambiente hipermidiático.
Através dos links, as histórias contidas nos cordéis podem ser lidas sem uma
seqüência pré-estabelecida, possibilitando experiências diferenciadas aos leitores que são
ampliadas através da utilização de outros elementos da linguagem da Hipermídia, como
sons, imagens, vídeos e ambientes virtuais inter-relacionados.
A Hipermídia também rompe as fronteiras da leitura linear no momento em que
permite a interferência e interação por parte do leitor sobre o conteúdo apresentado a ele,
permitindo a incorporação de experiências pessoais ao conteúdo apresentado inicialmente.
Desta forma, este projeto reafirma que a Internet constitui o espaço ideal de convergência
entre experiências e informações.
O website resultante do desenvolvimento desta pesquisa constitui um projeto e
um produto experimental desenvolvido através da investigação sobre a intertextualidade
contida na obra de Suassuna. O ambiente hipermidiático possibilita várias formas de
transcriação de uma obra literária para o suporte digital. Assim, o tema utilizado nesta
pesquisa pode ser mais explorado, modificado e ampliado futuramente dando continuidade
ao produto iniciado aqui como um convite à participação e à interação.
107
8. Referências Bibliográficas
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ed. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda., 2005.
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Bookman, 2005.
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2005.
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Suassuna, Ariano. Auto da Compadecida. 35ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Agir,
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VASSALO, Lígia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna.
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VOUILLAMOZ, Núria. Literatura e hipermedia. Barcelona: Paidós PC, 2000.
Periódicos
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em São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso, Design Digital, Universidade Anhembi
Morumbi, São Paulo, 2001.
116
Anexo 1
Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira
Instituto Moreira Salles
O Autor
Ariano Villar Suassuna nasceu em 16 de junho de 1927, no palácio da Redenção,
na Paraíba, como era chamada a capital do Estado de mesmo nome. No ano seguinte, vai
morar com a família no sertão, na fazenda Acauhan, propriedade de seu pai. Em 1930, seu
pai, João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna, é assassinado por motivos políticos
e a família se muda constantemente para evitar os inimigos. No ano de 1933, Ariano
muda-se para Taperoá, onde vive até 1937. Lá, Ariano faz seus primeiros estudos e assiste
pela primeira vez a uma peça de mamulengos e a um desafio de viola, cujo caráter de
improvisação seria uma das marcas registradas também de sua produção teatral.
A partir de 1942 passa a viver em Recife, onde termina os estudos secundários
em 1945. No ano seguinte inicia a Faculdade de Direito, onde conhece Hermilo Borba
Filho e, por sugestão deste, começa a ler a obra do poeta e dramaturgo espanhol Federico
García Lorca e publica na revista Estudantes, da Faculdade de Direito, seus primeiros
poemas ligados ao Romanceiro Popular nordestino, sob influência de Lorca.
Em 1947 escreve sua primeira peça teatral, Uma mulher vestida de Sol. De 1952
a 1956, Suassuna dedica-se à Advocacia. Sem abandonar, porém, a atividade teatral. Em
121
1955 escreve o Auto da Compadecida que é encenado em 19 de janeiro de 1957, no Rio
de Janeiro, recebendo a medalha de Ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais.
O auto recebe sua primeira tradução lançada em Madri, em 1965 e estréia no cinema em
1969.
O Auto da Compadecida é então exibido em forma de minissérie pela Rede Globo
em 1999. A série recebe uma adaptação e é exibida no cinema em 2000. A peça recebeu
até o momento três versões cinematográficas.
Do ponto de vista da trajetória intelectual de Ariano Suassuna, o Auto da
Compadecida não é um marco apenas pela repercussão nacional, sobretudo pelo seu
amadurecimento como dramaturgo e pela escolha, que acaba por fazer, de abandonar a
advocacia em 1956, quando se torna professor de Estética na Universidade Federal de
Pernambuco.
Suassuna propicia a aproximação da cultura popular à cultura erudita, utilizando
o teatro para transmitir sua mensagem. O autor resgata em sua obra a figura circense
do palhaço, levando-o para o contexto do teatro moderno, misturando, assim, a cultura
popular com a erudita.
Improvisação mesclada à obediência, ora ao romanceiro popular, ora à tradição
ibérica: esta é a marca registrada do teatro de Ariano, cujo paradigma parece ser a
atuação de “João Grilo”, protagonista do Auto da Compadecida, misto de personagens
convencionais, como o Arlequim ou o Pícaro, como um malandro tão cheio de artimanhas
que consegue, inclusive, escapar do Inferno.
122
Anexo 2
O Castigo da Soberba
Obra recolhida por Leonardo Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (18671926)
Agora eu passo a contar
Do que houve em algum tempo:
O Castigo da Soberba,
Que ficou para exemplo,
Foi um caso acontecido,
Não é coisa que eu invento.
Era um homem muito rico,
Tinha honras de Barão,
Tinha vinte engenho de ferro,
Em metal trinta milhão,
Doze mil vacas paridas
Nas fazendas do sertão.
A mulher deste Barão
Tinha honras de rainha,
Sessenta e cinco criadas
Para lhe servir na cozinha,
Parecia inda mais bela
Pelos cabelos que tinha.
Com vinte anos de idade
Ele tomou novo estado,
Aumentou o cabedal
Adespois de ter casado,
Que, antes de interar dez anos,
Sete vez havia herdado.
Bem conhecido e falado
Dos mais homes brasileiro,
Tanto por bens de fortuna
Como em crédito de dinheiro,
Mas não tinha nem um filho
Para dele ser herdeiro.
Era grande no respeito
Pelos bens que possuía...
Se era grande na riqueza,
Maior era em fidalguia
E, se era grande em nobreza,
Maior era em soberbia.
Seus cinqüenta anos de idade
Tinha ele já contado,
Tinha vinte de solteiro,
Tinha trinta de casado,
Esperança de ter filho
Já estava desenganado.
Quando interou cinqüenta ano,
Deu-se um certo movimento:
Seus bens, sem se saber como,
Se acabavam num momento,
Era como ridimunho
Ou tempestade de vento.
No campo os bichos de folgo
De repente se acabavam,
As plantações que fazia
Nasciam mas não vingavam,
Dinheiro que desse juro
Nunca mais lhe pagavam.
Não se passou muito tempo,
Acabou-se a tal grandeza:
Olhe o pobre acabrunhado,
Carregado de pobreza,
Desprezado dos amigos
Em quem contava firmeza!
Caiu a mulher doente,
Bastante desabilitada,
Desprezada das amigas,
Por quem era visitada,
No meio desse desprezo
Apresentou-se pejada.
123
Foi-se aproximando o dia
Que deu à luz o filhinho:
Nasceu em tanta pobreza
Que enrolou-se em mulambinho,
Por sua grande miséria
Foi difice achar padrinho.
Criou-se sem ir à Missa
E nunca se confessou,
Pôs os pés na santa Igreja
Só quando se batizou,
Negócio de penitência
Ele nunca procurou.
Esmola por caridade
Isso nunca que ele deu;
Deitava e se levantava,
Porém nunca se benzeu;
Viveu assim, deste gosto,
Té o dia em que morreu.
Logo assim que ele morreu,
Cobriu-se os montes dum véu,
Mas a alma como invisive,
Chegou às portas do céu,
Em tristeza amortalhada
Para dar contas de réu.
Mais de doze mil demônios
Tudo isso lhe acompanhavam,
Uns se rindo, outros soltando
Gargalhadas que rolavam,
Todos eles muito alegres
Da certeza que levavam.
-“Ô divino São Miguel,
Vosso nome escularêço,
Valei-me nesta agonia,
Nestas pena em que padeço!”
São Miguel arrespondeu:
- “Alma, eu não te conheço!”
- “Vala-me o Senhor São Pedro
Por ser Apóstolo primeiro,
Foi quem recebeu as chaves,
124
Que do céu é o chaveiro,
É quem pode ver as faces
Do nosso Deus verdadeiro!”
- “Alma, eu te abro a porta
Porque tu me vem rogar,
Porém não tenho poder
Pra fazer-te aqui ficar...
Tu recorre a Jesus Cristo
Que é quem jeito pode dar.”
Abriu-se as portas do céu,
A alma viu toda a alegria,
Também viu Nossa Senhora,
Jesus, Filho de Maria,
Para Quem não pôde olhar
Pelas culpas que trazia.
Curvou-se, beijou-lhe pés,
Felizmente Ele aceitou...
-“Me acudi, meu doce Pai,
Valei-me, Nosso Senhor,
Sempre vejo vos chamar
Refúgio dos pecador!”
- “Arretira-te, alma ingrata,
Vai para donde tu andaste,
Que a santa Religião
Tu nunca que procuraste:
Te dei trinta e quatro anos,
Nunca de mim te lembraste.”
- “Ai, Senhor, por piedade,
Tenha de mim compaixão,
Pelo dia em que nasceu,
Por vossa Ressureição,
Por aquele grande dia
Da vossa Morte e Paixão!”
(Cão) – “Isto era o que faltava:
MANUEL padeceu as dor,
E tu reza e caridade
Nunca fez por seu amor,
Confissão e penitença
Tu toda vida abusou.”
(Jesus) – “Alma, tu bem estás ouvindo
Esta grande acusação,
Eu, até pra defender-te
Não vejo um pé de razão,
Abre a tua consciência,
Faz a tua confissão.”
(Cão) – “Isso é só tempo perdido,
Não tem ele o que dizer,
Pois, enquanto andou no mundo,
Só tratou de te ofender,
Nunca lhe veio à lembrança
Que ainda haverá de morrer!”
(Alma)- “Ai, Senhor, se compadeça,
Nunca a vós eu quis servir,
Não sei mesmo o que vos diga
Pois não vos posso iludir
E me vejo na presença
De Quem não posso mentir.”
Disse os demônio duns pros outros:
- “Boa confissão aquela!
Agora queremos ver
Essa alma pra quem apela...
MANUEL é reto e justo,
Nós hoje carreja ela!”
(Jesus) – “Alma, pelo que me dizes
Eu não posso te valer:
Tu me viste morto de fome,
Não me deste de comer!
Tu me viste morto a sede,
Não me deste de beber!”
“Eu estava muito mortal,
Tu não foste visitar;
Tu me viste na cadeia,
Não foste me consolar;
Quando eu te vi errado,
Te mandei aconselhar.”
“Assim agora, alma ingrata,
Vai cumprir teu triste fado,
Que tu não fez pela vida
De purgar os teus pecado,
Na minha Glória só entra
Coração purificado.”
(Alma) – “Vala-me, ó Virgem Maria,
Pelo vosso resplandor,
Pelo dia em que nasceu
Pelo nome que tomou,
O nome do vosso filho
Que no ventre carregou!”
(Maria) – “Alma, já que me chamaste,
Na presença te cheguei,
Tu falaste com fiança
Neste nome que eu tomei,
No nome do meu filhinho
Que no ventre carreguei.”
(Alma) – “Ai, Senhora, Virgem Pura,
Padroeira mãe dos home,
Valei-me nesta agonia,
Nesta sorte que consome,
Sempre vejo protegido
Quem recorre a vosso nome.”
(Cão) – “Como ele está com ponta
Só pra iludir Maria,
Com tantos anos de visa
Nome dela nem sabia,
Só sabia decorado
Era praga e harizia.”
(Maria) – “Alma, tu nunca assististe,
Nem ao menos um momento,
Dentro dum lugar sagrado
Onde houvesse um Sacramento,
Que tu ouvisses meu nome
Com grande contentamento?...”
(Alma) – “Senhora, eu passando, um dia,
Numa casa de oração,
Eu, vendo o povo lovando
A vossa consagração,
Eu ouvi com muito gosto
Com meus dois joelho no chão.”
125
(Cão) – “Já Maria está puxando,
A coisa se desmantela,
Aquilo nunca se deu,
Vejam que mentira aquela!
Eu vi que esta mulher
Todo mundo ilude ela!”
“Ela põe-se a esmiuçar
Puxa de diante pra trás,
Pega com tanta pergunta,
Também isso não se faz,
Até aparecer coisa
Que ninguém se lembra mais.”
(Alma) – “Mãe amada, me livrai
Das grandes rigoridade,
Sei que gastei meus dias
Envolvido em vaidade,
Mas espero ser valido:
Valei-me por caridade!”
(Maria) – “Alma, o que tu me pediste
Eu não posso prometer,
Se tivesse em penitença,
Com razão eu ia ver:
Mas assim é impossível
Te salvar, sem merecer.”
(Alma) – “Rainha, Mãe Amorosa,
Esperança dos mortais,
Quem me recorre a vosso nome
Sei que não desamparais,
Eu pegando em vossos pés,
Sei que não largo eles mais.”
(Maria) – “Pois, alma, demora aí,
Enquanto eu vou consultar,
Fazer pedido a meu Filho,
Ver se eu posso te salvar,
Ver se teus grandes pecados
Têm grau de se perdoar.”
(Cão) – “Como esta tal Maria
Eu mesmo nem nunca vi:
Uns pedem por interesse,
126
Pedem porque é para si,
Mas ela pede é pros outros,
Não se enjoa de pedir...”
(Maria) – “Meu filhinho, aqui cheguei,
Vim te fazer um pedido
Para uma alma que chegou
Lá do mundo corrompido...
Tu, não tendo compaixão,
Pra ela o céu está perdido.“
(Jesus) – “Mas, minha Mãe, não é assim,
Todos bem podem saber:
Lá deixei as Escrituras
Contando como há de ser...
Os profetas publicando,
Foi pra todos compreender.”
(Cão) – “Isso é outro português!
Quem se engana é porque quer...
Loucura grande a do home
Que se ilude com mulher...
Nem sei como se defende
Uma alma tão lheguelhé...”
(Maria) - “Meu Filho, dê-me a resposta
Pra ciença do cristão,
Eu sei que é grande pecado
Não procurar confissão,
Porém, meu filho, o pecado
Vem desde o tempo de Adão.”
(Jesus) – “Minha Mãe, larguemo esta alma,
Foi muito ruim criatura...
Se eu chegar a salvar ela,
Muitas outra estão segura,
E eu não posso salvar
A quem a mim não procura.”
(Maria) – “Pra isto mesmo, meu Filho,
Foi vossa ressureição,
Trespassaram vós no peito,
Foi Longuim cãs suas mão,
Sofrestes muito trumento
Na vossa morte e paixão.”
“Por vossa misericórdia
Cipriano se salvou,
Vós salvaste a outros muito
Pelo vosso santo amor,
Também perdoaste Paulo,
Sendo teu perseguidor.”
“Matia estava sofrendo,
Vós avisaste num sonho
Também livraste da morte
Pai do senhor Santo Antônio
E a filha de Cananéia
Da vexação do demônio.”
“Enfim sempre perdoaste
A quem vos pediu perdão;
Longuim, por se converter,
Prostrou-se e pediu perdão,
Por isto lhe deste a vida
E também a salvação.”
“Quando os Judeus vos faziam
Grandes tormentos e horror,
Pedro, por três vez seguida,
Vos desconheceu, negou,
Mas vós lhe deste o poder
De ser vosso sucessor.”
“Meu filho, perdoe esta alma,
Tenha dela compaixão!
Não se perdoando esta alma,
Faz-se é dar mais gosto ao cão:
Por isso abissolva ela,
Lançai a vossa benção.”
“Se vós não salvar esta alma
Que aos vossos pés se apresenta,
O demônio, sabendo disto,
Agora é que bem atenta,
E eu quero que ele hoje
Réle a teste e quebre a venta.”
(Jesus) – “Pois, minha Mãe, carregue a
alma,
Leve em sua proteção,
Dia às outras que a recebam,
Façam com ela união...
Fica feito o seu pedido:
Dou a ela salvação.”
(Cão) – “Vamos todos nos embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro!”
(Jesus) – “Os demônios se arretirem,
Vão lá pras suas prisão
Que é pra não atentar mais
A todo fiel cristão...
Quem recorrer ao meu nome,
Eu garanto a salvação.”
Agora acabei o verso
Minha história verdadeira...
Toda vez que eu canto ele,
Dez mil réis vem pra algibeira,
Porém hoje eu dou por cinco:
Talvez não ache quem queira!
127
Anexo 3
História do cavalo que defecava dinheiro
Anônimo (Em Mota, Leonardo. Violeiros do norte; poesia e linguagem do sertão
nordestino. 3ª ed. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, 1962, p.153-168)
Numa cidade distante
Antigamente existia
Um duque velho invejoso
Que nada o satisfazia
Pois desejava possuir
Todo objeto que via
Esse duque era compadre
De um pobre muito atrasado
Que morava em sua terra
Num rancho todo estragado
E sustentava seus filhos
Tendo vida de alugado
Se vendo o compadre pobre
Naquela vida apertada
Foi trabalhar num engenho
Longe da sua morada
Na volta trouxe um cavalo
Que não servia pra nada
O pobre disse à mulher:
— Como é que se há de passar?
O cavalo é magro e velho
Não pode mais trabalhar...
Vamos inventar um plano
Pra ver se o querem comprar
Foi na venda e de lá trouxe
Três moedas de cruzado
Sem dizer nada a ninguém
Para não ser censurado
No fiofó do cavalo
Fez o dinheiro guardado...
Do fiofó do cavalo
Ele fez um mealheiro
Saiu dizendo: — Sou rico
128
Inda mais que um fazendeiro
Porque possuo um cavalo
Que só defeca dinheiro
Quando o velho duque soube
Que ele tinha esse cavalo
Disse pra velha duquesa:
— Amanhã vou visitá-lo...
Se o animal for mesmo assim
Faço jeito de comprá-lo
Chegou, salvando o compadre
Muito desinteressado:
— Compadre, como lhe vai
Onde tanto tem andado?
Há dias que eu não lhe vejo...
Certo que anda melhorado
— É quase certo, compadre,
Ainda não melhorei
Porque andava por fora
Faz três dias que cheguei
Mas breve farei fortuna
Com um cavalo que comprei
— Se for assim, meu compadre
Você está muito bem
É bom guardar o segredo
Não dizer nada a ninguém...
Me conte qual a vantagem
Que este seu cavalo tem!
Disse o pobre: — Ele está magro
Só tem o osso e o couro
Porém, tratando-se dele
Meu cavalo é um tesouro
Basta dizer que defeca
Níquel, prata, cobre e ouro!
Aí chamou o compadre
E saiu muito vexado
Para o lugar onde tinha
O cavalo defecado
O duque ainda encontrou
Três moedas de cruzado
Aí exclamou o duque:
— Só pude achar estas três...
Disse o pobre: — Ontem, de tarde
Ele botou dezesseis
E até já tem defecado
Dez mil réis mais de uma vez
Enquanto ele está magro
Me serve de mealheiro
Só tenho tratado dele
Com babuge de terreiro
Porém, depois dele gordo
Não há quem vença dinheiro!
Disse o duque: — Meu compadre
Você não pode tratá-lo
Se for trabalhar com ele
Com certeza é para matá-lo...
O melhor que você faz
É vender-me este cavalo
— Meu compadre, este cavalo
Só posso negociar
Só se for por uma soma
Que dê bem para eu passar
Com toda a minha família
Sem precisar trabalhar
Disse o duque: — Meu compadre
Assim não é que se faz
Nossa amizade é antiga
Do tempo de nossos pais
Dou-lhe seis contos de réis!
Acha pouco? Inda quer mais?
— Compadre, o cavalo é seu
Eu nada mais lhe direi...
Ele, por esse dinheiro
Que agora me sujeitei
Para mim nem foi vendido
Faço de conta que dei...
O duque, pela ambição
Que era descomunal
Deu-lhe os seis contos de réis
Tudo em moeda legal
Depois, pegou no cabresto
Saiu puxando o animal
Quando ele chegou em casa
Foi gritando no terreiro:
— Eu sou o homem mais rico
Que habita no mundo inteiro
Porque possuo um cavalo
Que só defeca dinheiro
Pegou o dito cavalo
Botou-o na estrebaria...
Milho, farelo e alfafa
Era o que o bicho comia
O velho duque ia vê-lo
Dez, doze vezes por dia
Logo no primeiro dia
O duque desconfiou
Porque na presença dele
O cavalo defecou
E ele, remexendo tudo
Nem um tostão encontrou
Aí, o velho zangou-se
Começou logo a falar:
— Como é que meu compadre
Se atreveu a me enganar?
Eu quero ver, amanhã
O que ele vem me contar
Porém o compadre pobre
Bicho de quengo passado
Fez depressa um outro plano
Inda mais bem arranjado
Esperando o velho duque
Quando viesse zangado
129
O pobre foi na farmácia
Comprou uma borrachinha
Depois mandou encher ela
Com o sangue de uma galinha
E ficou olhando a estrada
Para ver quando o velho vinha
O pobre disse a mulher:
— Faça o trabalho direito
Segure essa borrachinha
Amarre em cima do peito
Para o velho não saber
Como o trabalho foi feito
Quando o velho aparecer
Na volta daquela estrada
Você começa a falar
E eu grito: — Mulher danada!
Quando ele aparecer
Eu lhe dou uma facada
Porém eu dou-lhe a facada
Em cima da borrachinha
E você fica lavada
Com o tal sangue de galinha
E eu grito: — Está danada
Nunca mais come farinha!
Quando ele ver você morta
Parte para me prender
Eu, então, digo pra ele:
— Eu dou jeito a ela viver...
O remédio eu tenho aqui
Faço para o senhor ver!
Eu vou buscar a rabeca
Começo logo a tocar
Você, então, se remexe
Como quem quer melhorar
Com pouco, diga: — Estou boa
Já posso me levantar
Foi-se acabando a conversa
E, na mesma ocasião
O duque veio chegando
130
Aí travou-se a questão:
O velho pegou a faca
Botou a mulher no chão
Aí o duque gritou
Quando viu a mulher morta:
— Você está preso, bandido!
E tomou conta da porta...
Disse o pobre: — Eu vou curá-la
Pra que é que o senhor se importa?
Correu, foi ver a rabeca
Começou logo a tocar...
De repente, o duque viu
A mulher se endireitar
Depois dizer: — Estou boa
Já posso me levantar
O duque ficou suspenso
De ver a mulher curada
Porém como estava vendo
Ela muito ensanguentada
Corregeu ela e não viu
Nenhum sinal de facada
O pobre,entusiasmado
Lhe disse: Já conheceu?
Quando esta rabeca estava
Nas mãos de quem me vendeu
Tinha feito muitas curas
De gente que já morreu...
No lugar que eu estiver
Não deixo ninguém morrer
Como eu adquiri ela
Muita gente quer saber
Mas ela me está tão cara
Que não me convém dizer
O duque, que tinha vindo
Somente propor questão
(Porque o cavalo velho
Nunca botou um tostão)
Quando foi vendo a rabeca
Quase morre de ambição
— Compadre, você desculpe
Eu ter-lhe tratado assim...
Agora estou mais que certo
Que eu mesmo fui o ruim
Mas olhe: a sua rabeca
Só serve bem é pra mim...
Como sabe, eu sou um homem
De muito grande poder...
O senhor é muito pobre
Ninguém o quer conhecer
Perca o amor da rabeca
Responda se quer vender...
Porque a minha mulher
Também é muito estouvada
Mas eu, comprando a rabeca
Dela não suporto nada
Se quiser teimar comigo
Também dou-lhe uma facada!
Ela se vê quase morta
Sente medo do castigo
Mas eu, com esta rabeca
Salvo ela do perigo
E ela, daí por diante
Não quer mais teimar comigo
Responde o compadre pobre:
— O senhor faz muito bem
Quer me comprar a rabeca
Não venderei a ninguém
Custa seis contos de réis
Por menos, nem um vintém!
O duque, muito contente
Disse, de si para si:
— A rabeca já é minha
Eu preciso a possuir...
Ela para mim foi dada
Ele nem soube pedir...
Pegou a rabeca e disse:
— Vou já mostrar à mulher...
A velha zangou-se e disse:
— Vá mostrar a quem quiser
Eu não quero ser culpada
Do prejuízo que houver
O senhor mesmo é um velho
Avarento e interesseiro...
Que é que fez do tal cavalo
Que defecava dinheiro?
Meu velho, dê-se a respeito
Seja menos trapaceiro!
O duque, que confiava
Na rabeca que comprou
Disse a ela: — Cale a boca
A coisa agora virou:
Dou-lhe quatro punhaladas
Já você sabe quem eu sou!
Ele findou as palavras
A velha ficou teimando
Diz ele: — Velha dos diabos
Você inda está falando?
Deu-lhe quatro punhaladas
E ela ficou arquejando...
O velho duque, ligeiro
Foi buscar a rabequinha
Ia tocando e dizendo:
— Acorde, minha velhinha!
Porém a pobre da velha
Nunca mais comeu farinha...
O duque estava pensando
Que a mulher inda tornava
Ela acabou de morrer
Ele ainda duvidava
Depois então conheceu
Que a rabeca não prestava...
Quando ele ficou ciente
Que a velha tinha morrido
Botou o joelho em terra
E deu tão grande gemido
Que o povo daquela casa
Ficou tudo comovido
131
Ele dizia chorando:
— Este crime hei de vingá-lo!
Seis contos desta rabeca
Com outros seis do cavalo...
Eu lá não mando ninguém
Eu mesmo quero matá-lo...
Mandou chamar dois capangas
E seguiu no outro dia
Prendeu o compadre pobre
Trancou-o numa enxovia
Para exercer a vingança
Da forma que pretendia
Disse ele aos dois capangas:
— Me faça um surrão bem feito
Façam isso com cuidado
Quero ele um pouco estreito
Com uma argola bem forte
Pra levar esse sujeito
Quando acabarem a coisa
Mandem este bandido entrar
Para dentro do surrão
E acabem de costurar
E levem para o rochedo
Sacudam dentro do mar
Os homens eram dispostos
Findaram no mesmo dia...
O pobre entrou no surrão
Pois era o jeito que havia
Botaro o surrão nas costas
Saíram numa folia...
Adiante, disse um capanga:
— Não aguento o rojão
Já estou muito cansado
Botemos isto no chão
Vamos tomar uma pinga
Arriemo o tal surrão
— Lembrou bem, meu companheiro
Vamos tomar a bicada
Falou o outro capanga
Respondendo ao camarada
132
E seguiram para a venda
Que ficava além da estrada
Quando os capangas seguiram
O preso ficou dizendo:
— Não caso porque não quero!
Me acabo aqui, padecendo!
A moça é milionária
Mas o resto eu bem estou vendo...
Foi passando um boiadeiro
Quando ele dizia assim
O boiadeiro pediu-lhe
— Arranje isto pra mim...
Eu não me embraço que a moça
Seja boa ou seja ruim!
Continua o fazendeiro:
— Eu dou-lhe, de mão beijada
Todos os meus possuídos
Que vão aqui na boiada
Fica o senhor como dono
Pode seguir a jornada
Ele, condenado à morte
Não fez questão, aceitou
Descozeu o tal surrão
Nele o boiadeiro entrou
E o pobre, morto de medo
Num minuto o costurou
O pobre quando se viu
Livre daquela enrascada
Montou-se num bom cavalo
Tomou conta da boiada
Saiu por ali dizendo:
— A mim não falta mais nada!
Os capangas nada viram
Que o serviço foi ligeiro...
Pegaram dito surrão
Com o pobre do boiadeiro
Jogaram de serra abaixo
Não ficou um osso inteiro!
Fazia dois ou três meses
Que o pobre negociava
A boiada, que lhe deram
Cada vez mais aumentava...
Foi ele, um dia, passear
Onde o compadre morava
Que quando o duque viu ele
De susto empalideceu:
— Compadre, por onde andava?
Só hoje me apareceu?
Muito me engano, ou você
Já é mais rico do que eu!
— Aqueles seus dois capangas
Voaram-me num lugar
Eu saí de serra abaixo
Até a beira do mar
Ali vi tanto dinheiro...
Quase não posso ajuntar!
Quando me faltar dinheiro
Eu prontamente vou ver...
O que trouxe não é pouco
Vai dando para eu viver
Junto com minha família
Passarei até morrer
— Compadre, sua riqueza
Diga que fui eu quem dei!
Mas, para recompensar-me
Tudo quanto lhe arrumei
É preciso que me bote
No lugar que eu lhe botei!
Disse-lhe o pobre: — Pois não!
Estou pronto pra lhe mostrar
E é mesmo com meus capangas
Nós mesmos vamos levar
E o surrão, de serra abaixo
Sou eu que quero empurrar...
O duque, no mesmo dia
Mandou fazer um surrão
Depressa meteu-se nele
Já cego pela ambição
E disse: — Compadre, estou
À sua disposição!
O pobre foi procurar
Dois cabras de confiança
Se fingindo satisfeito
Fazendo a coisa bem mansa
Só assim ele podia
Tomar a sua vingança
Saíram com o velho duque
Na carreira, sem parar
Subiram de serra acima
Té o mais alto lugar
Dali soltaro o surrão
Deixaro o velho embolar...
O duque ia pensando
De encontrar muito dinheiro
Porém sucedeu com ele
Do jeito do boiadeiro
Que, quando chegou embaixo
Não tinha um só osso inteiro...
Aprenda lá quem quiser
Neste mundo viver bem
A desmedida ambição
Decerto que não convém!
Em cima do que possui
Ninguém arrisca o que tem!
133
O Enterro do Cachorro
Anexo 4
Fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918)
Eu vi se narrar um fato
Que fiquei admirado:
Um sertanejo me disse
Que no século passado
Viu se enterrar um cachorro
Com honras de potentado
Um inglês tinha um cachorro
De uma grande estimação,
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse, estão:
- “Mim enterra este cachorro,
Inda que gaste um milhão,”
Foi ao vigário, lhe disse:
- “Morreu cachorro de mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim...”
- “Cachorro deixou dinheiro?”
(Perguntou-lhe o padre assim.)
- “Mim quer enterrar cachorro!”
Disse o vigário: - “ô inglês,
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?”
Disse o inglês: - “Com cachorro
Gasto tudo, desta vez...”
“Ele, antes de morrer,
Um testamento aprontou,
Só quatro contos de réis
Para o Vigário deixou...”
Antes do inglês findar,
O Vigário suspirou.
- “Coitado! (disse o Vigário)
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente
E que sentimento nobre!
Antes de partir do mundo,
134
Fez-me presente do cobre...”
“Leve-o para o cemitério
Que eu vou o encomendar,
Isto é, traga o dinheiro,
Antes dele se enterrar,
Que estes sufrágios fiado
É fatível não salvar!”
E lá chegou o cachorro,
O dinheiro foi na frente,
Teve imponente o enterro,
Missa de corpo presente,
Ladainha, etc., etc.,
Melhor do que certa gente...
Mandaram dar parte ao Bispo
Que o Vigário tinha feito
O enterro dum cachorro,
O que não era direito:
O Bispo, aí, falou muito,
Mostrou-se mal satisfeito.
Mandou chamar o Vigário...
- “Pronto! (o Vigário chegou)
Às ordens, Sua Excelência!”
O Bispo lhe perguntou:
- “Então, que cachorro foi
Que o reverendo enterrou?”
- “Foi um cachorro importante,
Animal de inteligência:
Ele, antes de morrer,
Deixou a Vossa Excelência
Dois contos de réis em ouro...
Se eu errei tenha paciência!”
- “Não errou, não, meu Vigário,
Você é um bom pastor,
Desculpe eu incomodá-lo,
A culpa é do portador...
Um cachorro como esse
Se vê que é merecedor!...”
135
Anexo 5
As Proezas de João Grilo
João Martins de Athayde
João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.
E nasceu de sete meses
chorou no bucho da mãe
quando ela pegou um gato
ele gritou: não me arranhe
não jogue neste animal
que talvez você não ganhe.
Na noite que João nasceu
houve um eclipse na lua
e detonou um vulcão
que ainda continua
naquela noite correu
um lobisome na rua.
Porém João Grilo criou-se
pequeno, magro e sambudo
as pernas tortas e finas
e boca grande e beiçudo
no sítio onde morava
dava notícia de tudo.
João perdeu o seu pai
com sete anos de idade
morava perto de um rio
Ia pescar toda tarde
um dia fez uma cena
que admirou a cidade.
O rio estava de nado
vinha um vaqueiro de fora
perguntou: dará passagem?
João Grilo disse: inda agora
136
o gadinho do meu pai
passou com o lombo de fora.
O vaqueiro bota o cavalo
com uma braça deu nado
foi sair já muito embaixo
quase que morre afogado
voltou e disse ao menino:
você é um desgraçado.
João Grilo foi ver o gado
pra provar aquele ato
veio trazendo na frente
um bom rebanho de pato
os pássaros passaram n”água
João provou que era exato.
Um dia a mãe de João Grilo
foi buscar água à tardinha
deixando João Grilo em casa
e quando deu fé, lá vinha
um padre pedindo água
nessa ocasião não tinha
João disse; só tem garapa;
disse o padre; donde é?
João Grilo lhe respondeu;
é do engenho catolé;
disse o padre: pois eu quero;
João levou uma coité.
O padre bebeu e disse:
oh! que garapa boa!
João Grilo disse: quer mais?
o padre disse: e a patroa
não brigará com você?
João disse: tem uma canoa.
João trouxe uma coité
naquele mesmo momento
disse ao padre: beba mais
não precisa acanhamento
na garapa tinha um rato
tava podre e fedorento.
O padre disse: menino
tenha mais educação
e por que não me disseste?
oh! natureza do cão!
pegou a dita coité
arrebentou-a no chão.
João Grilo disse: danou-se!
misericórdia, São Bento!
com isto mamãe se dana
me pague mil e quinhentos
essa coité, seu vigário,
é de mamãe mijar dentro!
O padre deu uma popa
disse para o sacristão:
esse menino é o diabo
em figura de cristão!
meteu o dedo na goela
quase vomita um pulmão.
João Grilo ficou sorrindo
pela cilada que fez
dizendo: vou confessar-me
no dia sete do mês
ele nunca confessou-se
foi essa a primeira vez.
João Grilo tinha um costume
pra toda parte que ia
era alegre e satisfeito
no convívio de alegria
João Grilo fazia graça
que todo mundo sorria.
Num dia de sexta-feira
às cinco horas da tarde
João Grilo disse: hoje à noite
eu assombro aquele padre
se ele não perdoar-me
na igreja há novidade.
pegou uma lagartixa
amarrou pelo gogó
botou-a numa caixinha
no bolso do paletó
foi confessar-se João Grilo
com paciência de Jó.
Às sete horas da noite
foi ao confessionário
fez logo o pelo sinal
posto nos pés do vigário
o padre disse: acuse-se;
João disse o necessário.
Eu sou aquele menino
da garapa e do coité;
o padre disse: levante-se
que já sei você quem é;
João tirou a lagartixa
Soltou-a junto do pé.
A largatixa subiu
por debaixo da batina
entrou na perna da calça
tornou-se feia a buzina
o padre meteu os pés
arrebentou a cortina.
Jogou a batina fora
naquela grande fadiga
a lagartixa cascuda
arranhando na barriga
João Grilo de lá gritava:
Seu padre, Deus lhe castiga!
O padre impaciente
naquele turututu
saltava pra todo lado
que parecia um timbu
terminou tirando as calças
ficou o esqueleto nu.
137
João disse: padre é homem
pensei que fosse mulher
anda vestido de saia
não casa porque não quer
isso é que é ser caviloso
cara de matar bebê.
O padre disse João Grilo
vai-te daqui infeliz!
João Grilo disse bravo
ao vigário da matriz:
é assim que ele me paga
o benefício que fiz?
João Grilo foi embora
o padre ficou zangado
João Grilo disse: ora sebo
eu não aliso croado
vou vingar-me duma raiva
que eu tive ano passado.
No subúrbio da cidade
morava um português
vivia de vender ovos
justamente nesse mês
denunciou de João Grilo
pelas artes que ele fez.
João encontrou o português
com a égua carregada
com duas caixas de ovos
João disse-lhe: oh camarada
quero dizer à tua égua
Uma pequena charada.
o português disse: diga;
João chegou bem no ouvido
com a ponta do cigarro
soltou-a dentro escondido
a égua meteu os pés
foi temeroso estampido.
derrubou o português
foi ovos pra todo lado
arrebentou a cangalha
138
ficou o chão ensopado
o português levantou-se
tristonho e todo melado.
O português perguntou:
o que foi que tu disseste
que causou tanto desgosto
a este anima agreste?
- Eu disse que a mãe morreu;
o português respondeu:
Oh égua besta da peste!
João Grilo foi à escola
com sete anos de idade
com dez anos ele saiu
por espontânea vontade
todos perdiam pra ele
outro Grilo como aquele
perdeu-se a propriedade.
João Grilo em qualquer escola
chamava o povo atenção
passava quinau nos mestres
nunca faltou com a lição
era um tipo inteligente
no futuro e no presente
João dava interpretação.
um dia perguntou ao mestre:
o que é que Deus não vê
o homem vê a qualquer hora
disse ele: não pode ser
pois Deus vê tudo no mundo
em menos de um segundo
de tudo pode saber.
João Grilo disse: qual nada
que dê os elementos seus?
abra os olhos, mestre velho
que vou lhe mostrar os meus
seus estudos se consomem
um homem vê outro homem
só Deus não vê outro Deus.
João Grilo disse: seu mestre
me diga como se chama
a mãe de todas as mães
tenha cuidado no drama
o mestre coça a cabeça
disse: antes que me esqueça
vou resolver o programa.
- A mãe de todas as mães
é Maria Concebida;
João Grilo disse: eu protesto
antes dela ser nascida
já esta mãe existia
não foi a Virgem Maria
oh! que resposta perdida.
João Grilo disse depois
num bonito português;
a mãe de todas as mães
já disse e digo outra vez
como a escritura ensina
é a natureza divina
que tudo criou e fez.
- Me responde, professor
entre grandes e pequenos
quero que fique notável
por todos nossos terrenos
responda com rapidez
como se chama o mês
que a mulher fala menos?
Este mês eu não conheço
quem fez esta taboada?
João Grilo lhe respondeu:
ora sebo, camarada
pra mim perdeu o valor
tem nome de professor
mas não conhece de nada
- Este mês é fevereiro
por todos bem conhecido
só tem vinte e oito dias
o tempo mais resumido
entre grandes e pequenos
é o que a mulher fala menos
mestre, você tá perdido.
- Seu professor, me responda
se algum tempo estudou
quem serviu a Jesus Cristo
morreu e não se salvou
no dia em que ele morreu
seu corpo urubu comeu
e ninguém o sepultou?
- Não conheço quem é esse
porque nunca vi escrito;
João Grilo lhe respondeu:
foi o jumento, está dito
que a Jesus Cristo servia
na noite em que ele fugia
de Belém para o Egito.
João Grilo olhou para o lado
disse para o diretor
este mestre é um quadrado
fique sabendo o senhor
sem dúvida exame não fez
o aluno desta vez
ensinou ao professor.
João Grilo foi para casa
encontrou sua mãe chorando
ele então disse: mamãe
não está ouvindo eu cantando?
não chore, cante mais antes
pois o seu filho garante
pra isso vive estudando .
A mãe de João Grilo disse:
choro por necessidade
sou uma pobre viúva
e tu de menor idade
até da escola saíste...
João disse: ainda existe
o mesmo Deus de bondade.
- A senhora pensa em carne
de vinte mil réis o quilo
ou talvez no meu destino
139
que à força hei de segui-lo
não chore, fique bem certa
a senhora só se aperta
quando matarem João Grilo.
João então chegou no rio
às cinco horas da tarde
passou até nove horas
porém inda foi debalde
na noite triste e sombria
João Grilo sem companhia
voltava sem novidade.
Chegando dentro da mata
ouviu lá dentro um gemido
dois lobos devoradores
o caminho interrompido
e trepou-se num pinheiro
como era forasteiro
ficou ali escondido.
Os lobos foram embora
e João não quis descer
disse: eu dormirei aqui
suceda o que suceder
eu hoje imito arapuan
só vou embora amanhã
quando o dia amanhecer.
O Grilo ficou trepado
temendo lobos e leões
pensando na fatal sorte
e recordando as lições
que na escola estudou
quando de súbito chegou
uns quatro ou cinco ladrões.
Eram uns ladrões de Meca
que roubavam no Egito
se ocultavam na mata
naquele bosque esquisito
pois cada um de per si
que vinha juntar-se ali
pra ver quem era perito.
140
O capitão dos ladrões
disse: não fala ninguém? um respondeu; não
senhor
disse ele: muito bem
cuidado não roubem vã
vamos juntar-nos amanhã
na capela de Belém.
Lá partiremos o dinheiro
pois aqui tudo é graúdo
temos um roubo a fazer
desde ontem que estudo
mas já estou preparado;
e o Grilo lá trepado
calado escutando tudo.
Os ladrões foram embora
depois da conversação
João Grilo ficou ciente
dizendo a seu coração:
se Deus ajudar a mim
acabou-se o tempo ruim
sou eu quem ganho a questão.
João Grilo desceu da árvore
quando o dia amanheceu
mas quando chegou em casa
não contou o que se deu
furtou um roupão de malha
vestiu, fez uma mortalha
lá no mato se escondeu.
À noite foi pra capela
por detrás da sacristia
vestiu-se com a mortalha
pois na capela jazia
sempre com a porta aberta
João pensou na certa
colher o que pretendia.
Deitou-se lá num caixão
que enterravam defunto
João Grilo disse: eu aqui
vou ganhar um bom presunto;
os ladrões foram chegando
e João Grilo observando
sem pensar em outro assunto.
Acenderam um farol
penduraram numa cruz
foram contar o dinheiro
no claro deu uma luz
João Grilo de lá gritou:
esperem por mim que eu vou
com as ordens de Jesus!
Os ladrões dali fugiram
quando viram a alma em pé
João Grilo ficou com tudo
disse: já sei como é nada
no mundo me atrasa
agora vou para casa
tomar um rico café.
Chegou e disse: mamãe
morreu nossa precisão
o ladrão que rouba outro
tem cem anos de perdão;
contou o que tinha feito
disse a velha: está direito
vamos fazer refeição.
Bartolomeu do Egito
foi um rei de opinião
mandou convidar João Grilo
pra uma adivinhação
João Grilo disse: eu vou;
no outro dia embarcou
para saudar o sultão.
João Grilo chegou na corte
cumprimentou o sultão
disse: pronto, senhor rei
(deu-lhe um aperto de mão)
com calma e maneira doce
o sultão admirou-se
da sua disposição.
O sultão pergunta ao Grilo;
de onde você saiu?
aonde você nasceu?
João fitou ele e sorriu
- Sou deste mundo d”agora
nasci na ditosa hora
em que minha mãe me pariu.
- João Grilo, tu adivinha?
o Grilo respondeu: não
eu digo algumas coisas
conforme a ocasião
quem canta de graça é galo
cangalha só pra cavalo
e sêca só no sertão.
_ Eu tenho doze perguntas
pra você me responder
no prazo de 15 dias
escute o que vou dizer
veja lá como se arruma
é bastante faltar uma
tá condenado a morrer.
João Grilo disse: estou pronto
pode dizer a primeira
se acaso sair-me bem
venha a segunda e a terceira
venha a quarta e a quinta
talvez o Grilo não minta
diga até a derradeira.
Perguntou: qual o animal
que mostra mais rapidez
que anda de quatro pés
de manhã por sua vez
ao meio-dia com dois
passando disto depois
à tarde anda com três?
O Grilo disse: é o homem
que se arrasta pelo chão
no tempo que engatinha
depois toma posição
anda em pé e bem seguro
mas quando fica maduro
faz três pés com o bastão.
141
O sultão maravilhou-se
com sua resposta linda
João disse: pergunte outra
vou ver se respondo ainda;
a segunda o sultão fez
João Grilo daquela vez
celebrizou sua vinda.
- Grilo você me responda
em termos bem divididos
uma cova bem cavada
doze mortos estendidos
e todos mortos falando
cinco vicos passeando
trabalham com três sentidos.
- Esta cova é a viola
com primo, baixo e bordão
mortas são as doze cordas
quando canta um cidadão
canta, toca, faz um verso
cinco vicos num progresso
os cinco dedos da mão.
Houve uma salva de palmas
com vivas que retumbou
o sultão ficou suspenso
seu viva também bradou
e depois pediu silêncio
com outro desejo imenso
a terceira perguntou.
- João Grilo, qual é a coisa
que eu mandei carregar
primeiro dia e segundo
no terceiro fui olhar
quase dá-me a tiririca
se tirar, mais grande fica
não míngua, faz aumentar?
- Senhor rei, sua pergunta
parece me fazer guerra
um Grilo não tem saber
criado dentro da serra
mas digo pra quem conhece
142
o que tirando mais cresce
é um buraco na terra.
João Grilo vou terminar
as perguntas do tratado
o Grilo disse; pergunte
quero ficar descansado
disse o rei: é muito exato
o que é que vem do alto
cai em pé, corre deitado?
- Aquele que cai em pé
e sai correndo pelo chão
será uma grande chuva
nos barros de um sertão;
o rei disse: muito bem
no mundo inteiro não tem
outro Grilo como João.
- João Grilo, você bebe?
João disse: bebo um pouquinho
e disse; eu não sou filho
de Baco que fez o vinho
o meu pai morreu bebendo
e eu o que estou fazendo?
sigo no mesmo caminho.
O rei disse: João Grilo
beber é cousa ruim;
o Grilo respondeu: qual
o meu pai dizia assim:
na casa de seu Henrique
zelam bem um alambique
melhor do que um jardim.
O rei disse: João Grilo
tua fama é um estrondo
João Grilo disse: eu sabendo
o que perguntar respondo;
disse o rei enfurecido;
o que tem o pé comprido
e faz o rastro redondo?
- Senhor rei, tenho lembrança
do tempo da minha avó
que ela tinha um compasso
na caixa do bororó
como este eu também ando
fazendo o rastro redondo
andando com uma perna só.
- João, qual é o bicho
que passa pela campina
a qualquer hora da noite
andando de lamparina?
é um pequeno animal
tem luz artificial;
veja o que determina.
- Esse bicho eu já vi
pois eu tinha de costume
de brincar sempre com ele
minha mãe tinha ciúme
ele andava pelo campo
uns chamavam pirilampo
e outros de vagalume.
O rei já tinha esgotado
a sua imaginação
não achou uma pergunta
que interrompesse a João
disse: me responda agora
qual é o olho que chora
sem haver consolação?
O Grilo então respondeu:
lá muito perto da gente
tem um outeito importante
um moó muito doente
suas lágrimas têm paladar
quem não deixa de chorar
é olho d”água de vertente.
o rei inventou um truque
do jeito que lhe convinha
- Vou arrumar uma cilada
ver se João adivinha;
mandou vir um alçapão
fez outra adivinhação
escondeu uma bacurinha.
- João, o que é que tem
dentro desse alçapão?
se não disser o que é
é morto não tem perdão;
João Grilo lhe respondeu:
quem mata um como eu
não tem dó no coração.
João lhe disse: esse objeto
nem é manso nem é brabo
nem é grande nem pequeno
nem é santo nem é diabo
bem que mamãe me dizia
que eu ainda caía
onde a porca torce o rabo.
Trouxeram uma bandeja
ornada com muitas flores
dentro dela uma latinha
cheia de muitos fulgores
o rei lhe disse: João Grilo
é este o último estrilo
que rebenta tuas dores.
João Grilo desta vez
passou na última estica
adivinhar uma coisa
nojenta que se pratica
fugir da sorte mesquinha
pois dentro da lata tinha
um pouquinho de xinica.
O rei disse: João Grilo
veja se escapa da morte;
o que tem nessa latinha?
responda se tiver sorte;
toda aquela populaça
queria ver a desgraça
do Grilo franzino e forte.
Minha mãe profetizou
que o futuro é minha perda
“Dessas adivinhações
brevemente você herda;”
faz de conta que já vi
143
como está hoje aqui
parece que dá em merda.
O rei achou muita graça
nada teve o que fazer
João Grilo ficou na corte
com regozijo e prazer
gozando um bom paladar
foi comer sem trabalhar
desta data até morrer.
E todas as questões do reino
era João que deslindava
qualquer pergunta difícil
ele sempre decifrava
julgamentos delicados
problemas muito enrascados
era João que desmanchava.
Certa vez chegou na corte
um mendigo esfarrapado
com uma mochila nas costas
dois guardas de cada lado
seu rosto cheio de mágoa
os olhos vertendo água
fazia pena o coitado.
Junto dele estava um duque
que veio denunciar
dizendo que o mendigo
na prisão ia morar
por não pagar a despesa
que fizera com afoiteza
sem ninguém lhe convidar.
João Grilo disse ao mendigo:
e como é, pobretão
que se faz uma despesa
sem ter no bolso um tostão?
me conte todo o passado
depois de ter-lhe escutado
lhe darei razão ou não.
Disse o mendigo: sou pobre
e fui pedir uma esmola
144
na casa do senhor duque
e levei minha sacola
quando cheguei na cozinha
vi cozinhando galinha
numa grande caçarola.
- Como a comida cheirava
eu tive apetite nela
tirei um taco de pão
e marchei prolado dela
e sem pensar na desgraça
botei o pão na fumaça
que saía da panela.
- O cozinheiro zangou-se
chamou logo seu senhor
dizendo que eu roubara
da comida seu d\sabor
só por eu ter colocado
um taco de pão mirrado
aproveitando o vapor.
- Por isso fui obrigado
a pagar esta quantia
como não tive dinheiro
o duque por tirania
mandou trazer-me escoltado
pra depois de ser julgado
ser posto na enxovia.
João Grilo disse: está bom
não precisa mais falar;
então pergunto ao duque:
quanto o homem vai pagar?
- Cinco coroas de prata
ou paga ou vai pra chibata
não lhe deve perdoar.
João Grilo tirou do bolso
a importância cobrada
na mochila do mendigo
deixou-a depositada
e disse para o mendigo:
balance a mochila, amigo
pro duque ouvir a zoada.
O mendigo sem demora
fez como o Grilo mandou
pegou sua mochilinha
com a prata balançou
sem compreender o truque
bem no ouvido do duque
o dinheiro tilintou.
Disse o duque enfurecido:
mas não recebi o meu;
diz o Grilo: sim senhor
e isto foi o que valeu
deixe de ser batoteiro
o tinido do dinheiro
o senhor já recebeu.
- Você diz que o mendigo
por ter provado o vapor
foi mesmo que ter comido
seu manjar e seu sabor
pois também é verdadeiro
que o tinir do dinheiro
represente seu valor.
Virou-se para o mendigo
e disse: estás perdoado
leva o dinheiro que dei-te
vai pra casa descansado;
o duque olhou para o Grilo
depois de dar um estrilo
saiu por ali danado.
A fama então de João Grilo
foi de nação em nação,
por sua sabedoria
e por seu bom coração
sem ser por ele esperado
um dia foi convidado
pra visitar um sultão.
O rei daquele país
quis o reino embandeirado
pra receber a visita
do ilustre convidado
o castelo estava em flores
cheios de grandes fulgores
ricamente engalanado.
As damas da alta côrte
trajavam decentemente
toda côrte imperial
esperava impaciente
ou por isso ou por aquilo
para conhecer João Grilo
figura tão eminente.
Afinal chegou João Grilo
no reinado do sultão
quando ele entrou na côrte
foi grande decepção
de paletó remendado
sapato velho furado
nas costas um matulão.
O rei disse: não é ele
pois assim já é demais!
João Grilo pediu licença
mostrou-lhe as credenciais
embora o rei não gostasse
mandou que ele ocupasse
os aposentos reais.
Só se ouvia cochichos
que vinham de todo lado
as damas então diziam
é esse o homem falado?
duma pobreza tamanha
e ele nem se acanha
de ser nosso convidado!
Até os membros da côrte
diziam num tom chocante:
pensava que o João Grilo
fosse um tipo elegante
mas nos manda um remendado
sem roupa esfarrapado
um maltrapilho ambulante.
E João Grilo ouvia tudo
145
mas sem dar demonstração
em toda a corte real
ninguém lhe dava atenção
por mostrar-se esmolambado
tinha sido desprezado
naquela rica nação.
Afinal veio um criado
e disse sem o fitar:
já preparei o banheiro
para o senhor se banhar
vista uma roupa minha
e depois vá na cozinha
na hora de almoçar.
João Grilo disse: está bem;
mas disse com seu botão:
roupas finas trouxe eu
dento do meu matulão
me apresentei rasgado
para ver nesse reinado
qual era a minha impressão.
João Grilo tomou um banho
vestiu uma roupa de gala
então muito bem vestido
apresentou-se na sala
ao ver seu traje tão belo
houve gente no castelo
que quase perdia a fala.
E então toda repulsa
transformou-se de repente
o rei chamou-o pra mesa
como homem competente
consigo dizia João:
na hora da refeição
vou ensinar essa gente.
O almoço foi servido
porém João não quis comer
despejou vinho na roupa
só para vê-lo escorrer
146
ante a côrte estarrecida
encheu os bolsos de comida
para todo mundo ver.
O rei muito aborrecido
perguntou para João:
por qual motivo o senhor
não come da refeição?
respondeu João com maldade:
tenha calma, majestade
digo já toda a razão.
- Esta mesa tão repleta
de tanta comida boa
não foi posta para mim
um ente vulgar à toa;
desde a sobremesa à sopa
foram postas à minha roupa
e não à minha pessoa.
Os comensais se olharam
o rei pergunta espantado:
por que o senhor diz isto
estando tão bem tratado?
disse João: isso se explica
por estar de roupa rica
não sou mais esmolambado.
Eu estando esmolambado
ia comer na cozinha
mas como troquei de roupa
como junto da rainha
vejo nisto um grande ultraje
homenagem ao meu traje
e não à pessoa minha.
Toda corte imperial
pediu desculpa a João
e muito tempo falou-se
naquela dura lição
e todo mundo dizia
que sua sabedoria
igualava a Salomão.
Anexo 6
Cantiga de Canário Pardo
Valha-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
a braba levanta o pé.
Já fui barco, já fui navio,
mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
só me falta ser mulher.
147
Peleja da Alma
Silvino Pirauá
Havia um homem no mundo
Dono de muita riqueza
Homem de muita valia
Homem de muita nobreza
Dizia que só trabalhava
Pra sustentar a avareza
Era rico desta forma
E não estimava a pobreza
Este homem era casado
E de Deus não tinha auxílio
Por sua infelicidade
A mulher não tinha filho
Andava se maldizendo
Com tão semelhante estrago
Dizia que só trabalhava
Pra sustentar o diabo
- Foi um dia na igreja
Pediu com lágrimas doces
Que o bom Deus lhe desse um filho
Fosse de que jeito fosse
- Assim que ele pediu
Deus do Céu determinou
Que a cabo de poucos meses
A mulher um filho encarnou
Teve nove meses no ventre
Foram nove meses de dor
Assim, do modo seguinte
Deus do Céu determinou
A cabo de poucos meses
A riqueza se acabou
Nascendo o dito menino
Riqueza nenhuma achou
Nasceu o dito menino
Ficou com muita alegria
148
Anexo 7
Procurando padrinho rico
Com arte de sabedoria
Procurando um homem rico
Para ser padrinho do filho
Só não procurava os pobres
Porque eles não serviam
Os restos dos farelinhos
Se acabaram nesse dia
- Pegou este menino
Mal educado criou
Nunca lhe deu um conselho
Para o bem nunca educou
O menino logo de pequeno
O pai e mãe largou
Não quis saber de padrinhos
Nunca mais o procurou
E para amar a Deus
Também nunca se lembrou
Nunca foi ao pé do padre
Também nunca jejuou
Nunca deu uma esmola
Nem por Deus, nem por seu amor
Os mandamentos divinos
Toda vida desprezou
Só entrou dentro da igreja
No dia em que se batizou
Nesta miserável vida
Deus depressa o matou
Quando teve de morrer
Neste ínterim infeliz
Foi logo se confessá
Com Deus, o reto juiz
E chegou aos pés de Deus
Tratou de se ajoelhar
Publicando estas palavras:
“Senhor, me quero salvar”
- Deus olhou para a alma:
“Alma de onde viesses?
Com idade de 31 anos
Que pelo mundo estivesses
Sem te lembrares de mim
Como é que me apareces?
Para eu poder te salvar
Primeiro te confesses
Publica por tua boca
Que benefícios fizesses?”
- Eram diabos de todas as maneiras
Diabo roxo, diabo preto
Uns com garfos
Outros com facas
Outros com ferro
Outros com espeto
Perguntavam uns aos outros:
“Em qual cama nós a deita?”
- A alma olhou para Deus:
“O que será de mim aqui
Nos pés do reto juiz
Onde não posso mentir...
Mas... como vós me obrigais
Com vós me confessarei
Meus ocultos pensamentos
Eu de vós não negarei:
Muito cedo, bem pequeno
Meu pai e minha mãe larguei
Não quis saber de padrinho
Nunca mais o procurei;
Para amar ao nosso Deus
Também nunca me lembrei
Nunca fui aos pés do padre
Também nunca jejuei
Esmola por vosso amor
Eu no mundo nunca dei
Os mandamentos divinos
Toda a vida desprezei
Só entrei dentro da igreja
No dia que me batizei
Nesta miserável vida
Não sei como me salvarei”
Todos os diabos falaram
Tudo em palavras belas
Lucifer dizia aos outros:
“Que confissão aquela!...”
Deus olhou para a alma
Em seu sentido moderno:
“Como eu sou reto juiz
Completo senhor eterno
Está justa minha sentença
Estás condenada ao inferno”.
Os diabos gritavam
Outros sorriam
Lucifer dizia aos outros:
“Daquela sentença eu sabia!”
Quando eles foram vendo
Deus do Céu sentenciá-la
Uns gritavam, outros uivavam
Batiam palma em senzala
“Se não fosse ao pé de Deus
Acolá queria pegá-la!”
A alma viu-se apertada
De angústias e agonias
Saiu dos pés de Jesus
Para os da Virgem Maria
Para ver se como mãe
Que ainda a socorria
“Maria, Virgem Maria
Mãe de meu Deus Redentor
Mãe de Deus e mãe de Cristo
Mãe do Padre Salvador
Rogai por mim a teu filho
149
Que nesta hora me condenou!”
Esta sentença é perdida”
- “Alma sai-te dos meus pés
Para que vem valer-te de mim?
Que meu filho, reto juiz
Não faz o que é ruim”
E os diabos lá ficaram
Todos com a cara torta
- “Lá vai a compadecida!
Mulher que com tudo se importa
Pelo jeito que estou vendo
Esta sentença está torta”
Lucifer se levantou
Disse: “Alma, que viesse ver cá?
Manuel já deu a sentença
Maria jeito não dá
Aquilo que Manuel faz
Não é para Maria desmanchar.”
- “Senhora, tem compaixão
De minha necessidade
Já que o pecado roubou
A minha felicidade
Será possível, Senhora?...
O próprio pecado diz
Que eu me vejo a vossos pés
- Ainda hei de ser feliz
Maria, Virgem Maria
Esposa do Espírito Santo
Se vós não me valerdes
De vossos pés não me levanto
- Maria, Virgem Maria
Vai pedir a teu bom filho
Que teu pedido não rejeita
Se vós não fores ouvida
Então irei satisfeita”
“Pobre alma fica aí
Que vou falar com Domício
Para ver se como mãe
Inda dou um jeito a isso”
- Os diabos quando foram vendo
A Virgem para a partida
Lucifer dizia aos outros:
- “Lá vai a compadecida!
Pelo jeito que estou vendo
150
Nossa Senhora pediu
Rogando a Nosso Senhor:
- “Filho meu, meu bento Filho
Filho e meu Redentor
Aquela alma esteve aqui
Por que Jesus não a salvou?
Dizei-me, meu bento Filho
Foi ela só quem pecou?”
- “Minha mãe, para que me pede
Perante sua linda imagem?”
- “Por que vós não condenastes
O bom ladrão da Pelagem?”
“Filho meu, meu bento Filho
Consolação dos aflitos
Para que vós salvastes
A Maria do Egito?”
- “Minha mãe, para que me pede
Como no seu coração?
Aquela infeliz esteve aqui
Privada da salvação
Que pecou sem ter temor
Sem a menor compaixão”
- “Valha-me Santa Isabel
Nossa Senhora Santana
Estou vendo meu bento Filho
Com as feições tão tiranas!
Por aqueles nove meses
Que estivesse em carne humana!”
- “Minha mãe, como me pede
Por Santana e Santa Isabel
Posso dar algum recurso
Com a vista de São Miguel!”
Bem pouco se salvaria”
- “Pronto estou aqui, Senhor
À vossa disposição!
Como havia de faltar
À Virgem da Conceição
Sabendo que, poderosa
Tem o remédio nas mãos!
“Vem cá, Miguel! - Quem me chama?
Lucifer que vá embora
Que ele não tem parte em nada
Que a alma que ele veio ver
Da Virgem foi amparada”
Felicidade da alma
A quem der a proteção
Ela querendo derruba
Té a força do Aragão!”
Lucifer se levantou:
- “Tenho razão de falar
Esta alma já é minha
Pois Miguel, queres tomar?”
- “Maldito cabo de embira
Quem foi que te chamou cá
Vais para as profundas do inferno
Pois é lá que é teu lugar
Voltemos pra trás, Miguel
Vamos falar com o juiz
Pra ver que se dá recurso
Pra aquela alma ser feliz.”
“Dizei-me, meu bento Filho?
Onde está vosso poder
Se aquela alma tem castigo
Pronta estou pra receber”
- “Minha Santíssima mãe
Botai-me vossa bênção
Que a senhora é a Rainha!
É a flor da Redenção”.
Foi a protetora da alma
Que satisfez a paixão!
Se não fosses, ó Maria
Uma protetora tão forte
Soberana Virgem Pia
Se não fosse a Rainha
“Está tão triste o Maldito!
Eu alegre agora estou!
Recebe esta embaixada
Que o Rei dos Reis te mandou:
Disse que fosses embora
Para tormentos eternos
Fosses em chamas de fogo
Pras profundas dos infernos
Disse mais que aquela alma
Que tu viesses tentar
Hoje triunfa na glória
A Virgem fez triunfar”
Disse o diabo a São Miguel:
“Pois nada posso lucrar?
Meus serviços são perdidos
Não vale a pena tentar!”
“Desgraçado sem ventura
Um milhão tem de tentar
A todos que iludires
Pretendo sempre tomar”
“Desgraçado sem ventura
Como queres pelejar?
Já estou fazendo um serviço
Sem Jesus Cristo mandar”
Lucifer se levantou
Lendo num livro sem letra
Com pé de preá cambeta
Faiscando pelos olhos
Lançando brasas de fogo
Fazendo muitas caretas
São Miguel saiu sorrindo
“Dou-te figas, cara preta!”
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