O kino-olho, o kino-punho e o homem novo (anos

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O kino-olho, o kino-punho e o homem novo (anos
O kino-olho, o kino-punho e o homem novo
(anos 20, séc. XX)
Por Jorge Campos
Doutorado em Ciências da Comunicação, Documentarista e Programador Cultural
Resumo:
Se há momentos decisivos na História do Cinema e, em particular, do Cinema
Documental, um deles remete certamente para os anos 20 do século passado na
URSS. Numa altura em que revolução e propaganda convergiam na utopia de uma
sociedade sem classes e na criação de um Homem Novo, o Cinema impôs-se como
a mais importante de todas as artes. Nesse laboratório de ideias, dois nomes
sobrelevam os demais: Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. Tiveram divergências e
alimentaram polémicas. Ambos eram comunistas com filiação nas vanguardas
artísticas e participaram nas transformações da Revolução de Outubro de 1917.
Com o estalinismo, na fase de consolidação do realismo socialista, ambos foram
acusados de formalismo. Hoje, as suas ideias e experiências são incontornáveis
para quem pensa o Cinema e o Mundo.
Palavras chave: revolução, homem novo, visão activa, cine–sensação do mundo,
pravda (verdade), kinoki–documentaristas, kino–olho, kino–punho, montagem,
dialéctica, alienação, reflexos condicionados.
Cinema, Filosofia e Literatura convergem nas obras de dois dos maiores cineastas
de todos os tempos: Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Cinema, por razões óbvias.
Filosofia, de certo modo, posto que ninguém como eles terá levado tão longe o
pensamento sobre a sua própria praxis. Literatura, é mais complicado. Na verdade,
rejeitando a cultura burguesa, ambos mantiveram distâncias e, no caso de Vertov,
há mesmo uma recusa radical de qualquer eventual contaminação do cinema pela
literatura. Sendo um construtivista, Vertov quis dar expressão formal à energia das
máquinas, símbolo dinâmico do progresso e, portanto, do futuro, bem como à luta do
homem pela transformação revolucionária da sociedade. O que o atraiu para o
cinema foi a estreita relação entre o processo fílmico e os mecanismos do
pensamento humano. Declarando não ter “qualquer interesse na chamada Arte” – a
expressão é sua e revela a extensão do corte epistemológico com o pensamento
burguês – Vertov quis dar corpo à vida sem artifícios. Seria essa a função do
Cinema.
Eisenstein tinha um ponto de vista diferente. Dada a circunstância de todo o cinema
soviético ser da responsabilidade do estado e estar inscrito num contexto
doutrinário, até os chamados filmes de ficção estavam subordinados a formas de
produção quanto aos temas, propósitos e métodos, cujos resultados de ordem social
e estética os aproximavam do filme documentário. Isso é evidente nos seus próprios
filmes. Mas, ao contrário de Vertov, Eisenstein estava convicto da impossibilidade de
captar a vida tal e qual. Homem de um saber enciclopédico, via no cinema a
ferramenta ideal para perseguir objectivos políticos libertando a imaginação criadora.
Para ele tudo era artifício, rigor, emoção, dialéctica, linguagem: revolução.
Dziga Vertov e a proporção leninista do filme
Dziga Vertov é o pseudónimo de Denis Arkadievitch Kaufman. Dziga é uma palavra
ucraniana que pode significar coisas tão diversas quanto toupeira ou roda que gira
sem parar. Vertov vem do russo vertet que pode querer dizer girar. Tudo junto,
Dziga Vertov poderia representar algo como movimento perpétuo, o que tem tudo a
ver com as correntes futuristas e construtivistas. Natural de Bialysto, na Polónia,
então uma província da Rússia czarista, Vertov teve uma educação orientada para a
arte e literatura revelando, desde muito cedo, uma propensão especial para a poesia
e para a música.
Em 1915, após a invasão da Polónia pelas tropas alemãs, a família refugiou-se em
Moscovo. Daí foi para São Petersburgo onde, nos dois anos seguintes, a par de
estudos universitários, estabeleceu relações com uma elite intelectual influenciada
por Maiakovski, Burlyuk, Khlebnikov e Kruchonykh, os autores do célebre manifesto
Uma Bofetada no Gosto do Público. Por essa altura, começou também a
desenvolver experiências no domínio do som tendo criado um Laboratório do
Ouvido, no qual, com recurso a um fonógrafo, gravou a voz humana e sons da rua, a
partir dos quais fez engenhosas montagens de poemas. No seguimento da
Revolução de Outubro de 1917, decidido a trabalhar no cinema, rumou a Moscovo
e, na Primavera de 1918, foi nomeado redactor responsável pelo primeiro jornal de
actualidades do governo soviético, o Kino-Nedelia.
Lenine é apontado como tendo sido o primeiro homem de estado a encarar o
cinema como uma ferramenta ao serviço de uma lógica revolucionária indissociável
da agitação e propaganda (agit-prop). Em 1963, num artigo publicado na revista
Iskusstvo Kino, Bontch-Bruievitch recorda uma conversa acalorada com Bogdanov,
em 1917, à qual Lenine assistia:
“Vladimir Ilitch escutava a conversa com atenção, meteu-se nela imediatamente e
começou a desenvolver a ideia de que o cinema, enquanto estivesse nas mãos de
vulgares comerciantes, faria mais mal do que bem, corrompendo frequentemente as
massas através do conteúdo ignóbil das suas obras. Mas, naturalmente, quando as
massas se apoderassem do cinema e quando ele se encontrasse nas mãos de
verdadeiros militantes da cultura socialista, apareceria então como um dos mais
poderosos meios de instrução” (Granja, 1981, p. 15).
Ao contrário do que por vezes se pensa, a Rússia pré-revolucionária dispunha de
uma indústria cinematográfica relativamente desenvolvida. Havia 25 produtoras que
davam saída a quinhentos filmes por ano e o país tinha mais de mil salas, nas quais
a produção nacional representava 60 por cento do total das obras exibidas. Em 27
de Agosto de 1919, Lenine decretou a nacionalização do cinema.
As concepções respeitantes à produção soviética dos primeiros tempos defendiam a
necessidade de um cinema capaz de reflectir sobre o quotidiano, o qual, segundo
Lenine, encontraria na crónica a sua expressão mais adequada. Nunca antes
alguém se referira ao cinema nestes termos. A crónica é um género jornalístico que
autoriza o autor não só a reportar sobre a actualidade, mas também a comentá-la de
um modo pessoal e impressionista. As actualidades cinematográficas deram
acolhimento a essa ideia. Durante a guerra civil que opôs os vermelhos aos brancos
– simpatizantes do antigo regime apoiados por tropas estrangeiras –, no meio de
dificuldades de toda a ordem como a penúria da energia eléctrica, a diminuição para
menos de metade do número de salas e estando praticamente esgotados os stocks
de película, foi dada prioridade à produção de filmes informativos.
Competia a Vertov reunir e seleccionar as imagens provenientes das diversas
frentes, organizá-las na mesa de montagem e fazê-las seguir de comboio para que
povo e soldados pudessem ter conhecimento do que estava a acontecer na
perspectiva do poder revolucionário. Pelo caminho esses “comboios da propaganda”
paravam na maioria das estações ferroviárias para que os filmes pudessem ser
exibidos e comentados como Chris Marker tão bem mostrou em Le Tombeau d’
Alexandre (1993), um documentário dedicado ao cineasta soviético Aleksandr
Medvedkine, figura central da memória desse tempo.
A cine-sensação do mundo
Vertov parte da matriz de newsreels – palavra que em inglês enfatiza a componente
das notícias mais do que actualités, em francês, ou actualidades em português –
para definir um percurso durante o qual a lógica informativa vai passar por diversas
metamorfoses. O Kino-Nedelia (Cine-Semanal) ainda está próximo dos jornais
produzidos pela Pathé ou pela Gaumont.
Em 1918-19, são elaborados 43 noticiários, todavia, sem a regularidade prevista,
visto as dificuldades não o permitirem. Em todo o caso, esta experiência permite a
Vertov não apenas aperceber-se do potencial persuasivo das imagens, mas também
das virtualidades da montagem. A partir do arquivo que, entretanto, foi juntando,
produz um primeiro documentário de três horas, dividido em 12 partes, ao qual
chamou O Aniversário da Revolução (1919). Este filme, merecedor do aplauso de
Eisenstein, é
considerado
a
primeira
tentativa
de
montagem
criativa
da
cinematografia soviética.
Numa segunda fase, já no final do ano de 1919, Vertov segue para a linha da frente
acompanhado pelo operador de câmara Ermolov. Dessa experiência resulta A
Batalha de Tsaritsyne (1920) onde, pela primeira vez, há sinais de como Vertov viria
a encarar a câmara de filmar no processo de construção da realidade. Tanto assim
que, em 1922, quando o Kino-Nedelia
dá lugar ao Kino-Pravda (Cine-Verdade)
aquilo a que se assiste pouco tem em comum com os jornais de actualidades feitos
noutros países. Vertov faz tábua rasa das convenções. Proclama a impossibilidade
de imagens banais permitirem a interpretação do mundo e desenvolve uma
montagem agressiva. Numa entrevista inédita publicada após a sua morte em 1958
no nº 6 da revista Iskusstvo Kino, Vertov afirma que o Kino-Pravda não era apenas
um vulgar jornal filmado:
“Este jornal (...) tinha a particularidade de estar sempre em movimento, de mudar
constantemente de um número para o outro. Cada novo Kino-Pravda era diferente
daquele que o precedia. O método de narração obtido pela montagem mudava
sempre. Tal como a maneira de tratar a filmagem. E também o carácter das
legendas e a maneira de as utilizar. O Kino-Pravda esforçava-se por dizer a verdade
através dos meios de expressão cinematográfica. Neste laboratório único no seu
género, o alfabeto da linguagem cinematográfica começava a formar-se lentamente,
obstinadamente. Alguns números do Kino-Pravda, que tinham a ambição de
apresentar um tema em profundidade, adoptavam já as proporções das longas
metragens. Foi nessa época que as discussões apareceram, que partidários e
adversários se manifestaram. Os debates sucederam-se. Mas a influência do KinoPravda não deixou de se estender” (Granja, 1981, p. 54).
As teses de Vertov são indissociáveis da recusa do cinema comercial tido como uma
espécie de veneno ideológico desagregador do espírito crítico das massas. O seu
pensamento teórico ganha espessura para fundamentar a linha do Kino-Pravda.
Funda o Soviet Troikh (Conselho dos Três), do qual fazem parte, além dele próprio,
a sua futura mulher Elisabeta Svilova, uma notável montadora de filmes, e o seu
irmão, Mikhail Kaufman, famoso operador de câmara e, mais tarde, documentarista.
No seu primeiro manifesto publicado no final de 1922, intitulado Nós, o grupo,
entretanto auto-denominado Kinoki-documentaristas, interdita a encenação diante
da câmara de filmar, ao mesmo tempo que reivindica a cine-sensação do mundo
como forma de aceder à consciência crítica. No jornal Pravda de 19 de Julho de
1924, Vertov escreve:
“Milhões de trabalhadores, recuperando a vista, começam a duvidar da absoluta
necessidade de sustentar a estrutura burguesa do mundo. Nesta grandiosa batalha
cinematográfica, pelo nosso lado, não participa qualquer realizador, actor ou
decorador – recusamos as facilidades do estúdio, varremos os cenários, a
caracterização, o guarda-roupa (...) Quer se apresente sob a forma de uma narrativa
cativante ou daquilo que se denomina uma folha de montagem preliminar, o
argumento, que é um elemento estranho ao cinema, deve desaparecer para
sempre” (Granja, 1981, p. 49).
Na sua defesa de um cinema de não-ficção liberto do teatro e da literatura Vertov
acompanhava a ideia inicial de Lenine segundo a qual 75 por cento da produção
soviética deveria ser virada para a crónica do quotidiano. Posteriormente, em 1925,
retomando aquilo que ficou conhecido como “a proporção leninista do filme”
(Graham, 1999, p. 40), insurgiu-se contra a percentagem do orçamento do cinema
destinada aos filmes de ficção, que calculou em 95 por cento, e avançou com uma
proposta alternativa de utilização de recursos que atribuía 45 por cento das verbas
ao Cine-Olho, 30 por cento aos filmes científicos e educativos e 25 por cento aos
filmes de ficção. Na mesma linha de pensamento propôs o alargamento do
documentário à rádio e defendeu o alargamento dos jornais radiofónicos.
O kine-olho
O processo evolutivo dos jornais cinematográficos de Vertov tem o seu ponto de
viragem a partir do momento em que começa a colaboração com Rodchenko no
número 13 do Kino Pravda e culmina com Kino-Glaz (Cine-Olho), um filme de nãoficção realizado em 1924, o qual rompe com as convenções narrativas para se
aventurar numa atmosfera que a partir de determinada altura mergulha noutras
vanguardas estranhas ao construtivismo.
Kino-Glaz principia de uma forma bastante prosaica com imagens de jovens
pioneiros nas suas actividades – eles são o símbolo de homem novo que a
revolução se propõe construir. Parte depois para um discurso sobre o preço da
carne do qual se concluiu pela necessidade de formar cooperativas de modo a
eliminar o papel de intermediários parasitas. É então que o filme volta para trás,
literalmente, num efeito que hoje nos pode parecer ingénuo, mas através do qual
Vertov dá a entender ser indispensável banir os procedimentos especulativos até
então dominantes. A partir daí, à medida que o filme vai mostrando o caleidoscópio
da sociedade soviética, há um criar de atmosferas que por vezes se aproximam do
surrealismo dos primeiros filmes de Luis Buñuel ou da matriz observacional muito
posterior dos filmes de Frederick Wiseman como acontece nas cenas do asilo de
alienados. Kino-Glaz não perde a sua função informativa nem deixa de ser
expositivo, mas percebe-se que mais do que a pretensão à objectividade cabe nele
uma linha de reflexão.
Essa linha enfrenta, porém, a incompreensão dos aparatchiks. Provavelmente, eles
apenas reconhecem modelos de persuasão lineares de causa e efeito ou então
simplesmente não entendem as propostas da cine-sensação do mundo e da visão
activa da câmara de filmar. Mas parte do público parece dar-lhes razão. Só entra
nas salas para assistir ao filme de fundo após a passagem do noticiário. Coerente
com os seus princípios, Vertov defende-se dizendo ser necessário mudar o público e
leva as suas actualidades até às associações operárias e camponesas. Identifica o
cinema como uma linguagem nova, total e infalível. Nos seus escritos, que por essa
altura se multiplicam dando origem a numerosas polémicas, a palavra cine-olho
aparece recorrentemente para afirmar a superioridade do olho da câmara sobre o
olho humano:
“O cine-olho é o cinema explicação do mundo visível, ainda que esse mundo seja
invisível para o olho humano” (Romaguera I Ramio, Joaquim y Thevenet,1989, p.
33).
Ou ainda:
“A história do cine-olho foi a de uma luta implacável para mudar o curso da
actividade cinematográfica (…) para substituir a mise-en-scène pelo documento,
para sair do proscénio do teatro e entrar no campo de batalha da própria vida”
(Barnow, 19, p. 59)
A Kino-Glaz (1924) seguiram-se, em 1926, Shagai, Soviet! (Avante, Soviéticos!) e
Shestaya Chast Mira (Uma Sexta Parte do Mundo), do qual Chris Marker viria a
dizer tratar-se do melhor documentário do mundo. Em 1929, Vertov fez a sua obra
mais radical, Chelovek Kinoapparatom (O Homem da Câmara de Filmar), um retrato
da sociedade soviética e, simultaneamente, um ensaio sobre os mecanismos do
cinema. Na entrevista de 1958 à revista Iskusstvo Kino, explicava-se:
“Porque motivo não faríamos um filme acerca da cine-linguagem, o primeiro filme
sem palavras, um filme internacional que não tivesse necessidade de ser traduzido
em qualquer outra língua? (...) Porque motivo (…) não tentaríamos nós descrever
com esta linguagem o comportamento de um homem vivo, os actos realizados em
diversas circunstâncias por um homem com uma câmara de filmar?” (Granja, 1981,
p. 55).
O Homem da Câmara de Filmar
Com O Homem da Câmara de Filmar Dziga Vertov atinge o zénite criativo.
Construído a partir de material filmado nos anos de 1924-28 pelos seus kinodocumentaristas o filme é o último grande manifesto do cinema soviético. Mikhail
Kauffman, o homem da câmara, observa através da objectiva o real circundante
como que a dizer-nos que o mundo, na aparente banalidade do quotidiano é, afinal,
muito mais interessante do que poderíamos supor. Esse real sofre uma dupla
metamorfose. Num primeiro momento, o olho da câmara selecciona e interpreta.
Num segundo momento, o material filmado é organizado na mesa de montagem
onde se cumpre a segunda etapa da passagem do real a realidade, a qual, por sua
vez, é, evidentemente, uma construção ideológica consequente da linguagem do
cinema.
O filme convoca uma leitura plural e encerra um paradoxo magnífico: suscita novas
contradições no âmbito da tese que se propunha demonstrar. Apesar do real
observado e surpreendido pelo olho da câmara e da ausência de actores, artifícios
de iluminação, cenários artificiais e de tudo o mais que Vertov recusava, nem por
isso deixa de ser encenação. Uma outra encenação, diga-se, cuja imprevisibilidade
o afasta do chamado cinema de mensagem. Nele, o meio é a mensagem, mas sem
que isso seja equivalente a algum tipo de determinismo tecnológico. Sim, a
tecnologia é indutora de linguagens, mas a estas só a aprendizagem e a descoberta
permitem aceder.
Por isso, a história – a havê-la – resulta da intervenção do destinatário em função
quer da sua experiência pessoal, quer do seu domínio da sintaxe do cinema, a qual,
por sua vez, requer aprendizagem permanente porque, afinal, o cinema está sempre
a reiventar-se. Assim encarado, o cine-olho sugere a presença de um demiurgo – a
câmara de filmar – capaz de levar o homem ao longo de um percurso com o intuito
de lhe proporcionar a oportunidade de ver claramente visto. Esse percurso, porém,
não sugere a facilidade. Pelo contrário, é feito de marcas que é preciso seguir,
identificar, ler e reinterpretar sem a garantia de uma via única. É, ao fim e ao cabo, o
processo segundo o qual, na filosofia marxista, é indispensável aceder a um nível de
consciência superior – a consciência de classe – com vista à construção do homem
novo.
O Homem da Câmara de Filmar remete, portanto, para um tipo de conhecimento
que exige uma espécie de distanciação brechtiana. Ao espectador impõe-se uma
atitude vigilante face ao espaço do ecrã e aos dispositivos que o condicionam. É a
partir dessa distância crítica que ganha espessura a revelação do real, não num
sentido de uma verdade inabalável, antes num contexto de abertura de
possibilidades onde cada um poderá encontrar um lugar particular ainda que num
quadro de referências previamente determinado de acordo com o ponto de vista do
autor.
Quando, em 1929, Vertov mostrou O Homem da Câmara de Filmar, ter-se-á
encerrado simbolicamente o ciclo em que a imagem foi rainha e a montagem
determinante. Nesse ano, o cineasta visitou Paris, onde deparou com uma restrita
vanguarda cinéfila entusiasmada com o cinema da União Soviética onde, por sinal, o
seu filme tinha sido recebido com mais reserva do que entusiasmo, suscitando, nos
círculos oficiais, insinuações de formalismo. Para mais, ao rejeitar o argumento
como veículo de concretização dos seus filmes, Vertov tornara-se suspeito de
perfilhar um ponto de vista anti-planificador.
Nesse mesmo ano de 1929, o Partido Comunista (PCUS) produziu uma normativa
segundo a qual a maioria dos trabalhadores da indústria cinematográfica deveria ser
de origem proletária e a Associação de Trabalhadores Revolucionários da
Cinematografia decretou como fim último destacar os êxitos do Plano Quinquenal...
Sergei Eisenstein e a sensorialidade do corte
Tal como Vertov, também Sergei Eisenstein, nascido em Riga, na Letónia, em 1898,
foi influenciado pelo ambiente familiar no interesse pela arte. Estudou no Instituto de
Engenharia de Petrogrado. Quando do derrube do Czar, os pais partiram para a
Europa mas ele optou por alistar-se como engenheiro no Exército Vermelho.
Durante dois anos, dedicou-se a construir pontes. Depois, seguindo a sua inclinação
artística, começou a desenhar cartazes de propaganda. Um acaso tê-lo-á levado até
ao mais famoso teatro de Moscovo, na linha do Proletkult, onde leccionavam
Stanislavsky e Meyerhold. Apaixonado pelo teatro, o jovem Eisenstein alimentava
suspeitas quanto ao cinema que considerava um meio pobre. Terá sido na tentativa
de demonstrar a superioridade do primeiro que sucumbiu ao fascínio do segundo.
Em todo o caso, Eisenstein foi discípulo de Meyerhold. Tributário da comedia
dell´arte e do romantismo alemão, Meyerhold procurou identificar o papel do actor
no contexto de um teatro desverbalizado entendido como uma forma de
conhecimento puro, veloz, plasticamente associado à importância atribuída à
expressão corporal. O corpo do actor seria uma espécie de máquina bem oleada, na
tradição popular da pantomima, devendo movimentar-se, como então se dizia, num
registo combinado da disciplina militar e do rigor da álgebra. Esta concepção, que
remete para a biomecânica, opunha-se à de Stanislavsky, mais de índole
psicológica e naturalista.
Quer no teatro, quer no cinema de Eisenstein são evidentes as marcas do mestre.
Exemplo dessa influência é a sua utilização da tipagem, ou seja, o processo que
permite o reconhecimento imediato dos traços de carácter das personagens em
função da importância atribuída ao corpo, vestuário e fisionomia dos actores. O
mesmo poderia afirmar-se a propósito ds sua montagem de atracções ligada a uma
gama de recursos expressivos nos quais avultam, por exemplo, o circo e outras
formas de cultura popular. Para Eisenstein a atracção é a unidade de significação
que cabe num discurso global orientado para a estimulação sensorial e psicológica
do espectador, de modo a dirigir e condicionar o seu envolvimento emotivo.
Esta linha de pensamento, complementada pelo universo conceptual de Pavlov, tem
pontos de contacto com os seus trabalhos teóricos sobre a montagem
cinematográfica, nos quais se reconhecem os princípios da dialéctica marxista: uma
força (tese) colide com a sua contrária (antítese), de modo a produzir um fenómeno
novo (síntese). A síntese, evidentemente, não corresponde a um mero somatório da
tese e da antítese. É algo de diferente. Dito de outra maneira, o plano, ou ‘célula de
montagem’, é uma tese; quando colocado em justaposição com outro conteúdo
visual oposto – a sua antítese – produz uma síntese, uma ideia sintética ou
impressão, a qual, por sua vez, se transforma na tese de um novo processo
dialéctico. A montagem dialéctica resulta, portanto, da colisão de diferentes planos
independentes. Utilizando uma metáfora industrial, Eisenstein comparava esse
processo “à série de explosões de um motor de combustão interna, levando para
diante o automóvel ou o tractor” (Campos, 1994, p. 74).
Em princípio, a montagem tem a idade do cinema, mas é evidente que ela só é
encarada em termos de produção de sentido, quando as imagens em movimento se
distanciam da mera reprodução do real e o cinema corta as amarras com o ‘teatro
filmado’. O passo decisivo nesse sentido foi dado por David Wark Griffith. Com ele
nasceu o cinema arte, o cinema espectáculo e o cinema grande indústria que viria a
ter Hollywood como epicentro. The Birth of a Nation, realizado em 1914-15, vale
como exercício narrativo e, nessa qualidade, é um filme paradigmático.
Apresentando os cavaleiros brancos da Ku Klux Klan como salvadores da velha
sociedade aristocrática e esclavagista do Sul dos Estados Unidos, desencadeou à
época protestos e tumultos. O seu teor racista amarrou-o à polémica. Até hoje.
Porém, a linguagem do cinema atingiu a maioridade com The Birth of a Nation. Ao
variar o ponto de vista da câmara, ao trabalhar a plasticidade das imagens, ao fazer
planos de diferentes tamanhos Griffith abriu caminho à articulação sequencial
reveladora da natureza semântica do corte. Por essa via, descobriu, igualmente, o
ritmo subjacente à estrutura narrativa.
Eisenstein foi mais longe. Estudioso de Griffith, mas também admirador de Chaplin,
Eisenstein elaborou a parte mais significativa de toda a produção teórica sobre a
montagem no cinema. Apoiado nas experiências de Kuleshov demonstrou como o
significado do plano ou da sequência depende de outros planos ou sequências que
lhes estejam associados. Para Kuleshov a montagem era o traço distintivo do
cinema. Segundo ele, os planos deviam ser simples e expressivos de modo a
proporcionarem clareza de leitura. Valorizou o ritmo a ponto de afirmar ser ele o
verdadeiro conteúdo de um filme, visto orientar o pensamento e as emoções do
público.
O Eisenstein dos anos 20 tomou boa nota da lição. Assim como dos
ensinamentos de Vertov.
O kino-punho
Embora contrário à tendência documentarista – “não acredito no kino-olho, acredito
no kino-punho” (Wollen, 1984, p. 43) – Eisenstein atribuía a Vertov a invenção do
ritmo musical no cinema, “conduzindo o andamento do filme por via do ritmo
calculado do corte” (Wollen, 1984, p. 51). Boa parte das modalidades de montagem
enunciadas por Eisenstein – as quais, pela sua complexidade, exigiriam outro texto
– é, de resto, justificada através da analogia com elementos musicais. Fiel, por um
lado, à ideia de que a obra de arte se destina a produzir emoção e, por outro, a uma
concepção materialista do mundo, não hesitou em utilizar o kino-punho como arma
para elevar a consciência política das massas:
“Se queremos que o espectador experimente uma tensão emocional máxima, pô-lo
em êxtase, devemos oferecer-lhe uma fórmula adequada que eventualmente
provoque nele as emoções desejáveis” (Wollen, 1984, p. 51).
No entanto, a um comunista colocar-se-ia sempre a questão de saber como
compatibilizar a proposta do homem novo do iluminismo marxista com o carácter
sensorial dos procedimentos inerentes ao corte e à sua função significante.
Eisenstein seguramente ter-se-á dado conta dessa contradição. Procurou por
diversas vezes lidar com ela, designadamente através daquilo a que chamou
montagem
vertical,
segundo
ele
a
mais
adequada
para
veicular
teses
ideologicamente dirigidas convocando razão e emoção. Na prática, porém, esta
ideia nunca foi suficientemente desenvolvida deixando em aberto o projecto que lhe
estava subjacente de fazer um cinema que fosse a síntese da arte e da ciência
numa perspectiva revolucionária.
Os filmes de Eisenstein dos anos 20, sendo inclassificáveis, têm pontos em comum
com o documentário. Estamos perante acontecimentos do presente ou do passado
em que os indivíduos são encarados numa perspectiva relacional com as
instituições, de modo a fazer emergir os aspectos de ordem política, económica e
social como elementos nucleares da narrativa. A Greve (1924) parte de um conflito
laboral para se interrogar sobre a consciência de classe. Aqui é patente a influência
de Meyerhold e da montagem das atraccões. O Couraçado Potemkin (1925) evoca
um episódio da revolução russa de 1905, a revolta dos marinheiros de um navio de
guerra contra a hierarquia de bordo, para construir uma metáfora da Revolução
social. Na célebre sequência da escadaria de Odessa constrói uma imagem da
repressão e do conflito de classes sem paralelo na história do cinema. Na sua
versão completa o filme dura 86 minutos à velocidade do cinema mudo – 16
imagens por segundo – enquanto O Nascimento de uma Nação de Griffith tem a
duração de 195 minutos, ou seja, mais do dobro. Em ambos os filmes há, porém, um
número quase idêntico de planos: 1.346 no caso de Eisenstein e 1.375 no caso de
Griffith. Se a isto se juntar o facto de cada plano de O Couraçado Potemkin ser
rigorosamente planeado facilmente se percebe a envergadura conceptual do autor
do filme. Outubro (1928), concebido para assinalar o 10º aniversário da tomada do
poder pelo partido de Lenine, faz a reconstituição histórica da conquista do Palácio
de Inverno em São Petersburgo e do derrube do governo de Kerenski numa
perspectiva de legitimação do poder soviético. A Linha Geral (1929) funciona como
uma espécie de Kino-Pravda alargado e aborda o quotidiano de uma cooperativa
agrícola, contrapondo o velho e o novo. Esta é a obra de Eisenstein na qual são
levadas mais longe as alegorias sexuais e mais se faz sentir a influência de Freud,
designadamente, na cena da desnatadeira, uma metáfora da libertação dos
preconceitos através da sugestão do orgasmo.
Onde estes filmes – pensados como épicos e construídos em cinco partes à maneira
da tragédia clássica, mas com um único coro que se identifica com a voz do herói
colectivo, o povo – mais se afastam da tendência documentarista é nas
reconstituições históricas e nas cenas de inspiração mais marcadamente teatral, que
são tanto um reflexo da imaginação criadora e da passagem do autor pelo Proletkult,
quanto uma consequência das suas concepções estéticas ligadas às agora
designadas Teorias Formalistas do Cinema, das quais, aliás, é o maior expoente.
Como resultado de uma notável energia criadora, a cada filme seu estão associadas
teses correspondentes a um trabalho teórico de mais de 30 anos. Em O Couraçado
Potemkin (1925), por exemplo, são patentes as marcas dos diferentes tipos de
montagem por ele identificados. No conjunto da sua obra, que vai para além do
advento do som, encontram-se referências tão distintas quanto as que decorrem do
seu fascínio pelo teatro kabuki, pela psicanálise ou pela utilização da música e da
cor. Nessa torrente de pensamento criou numerosos conceitos. Por exemplo, na
linha dos construtivistas, designou por neutralização o processo de decomposição
da realidade em blocos ou unidades em tensão dialéctica, não obedecendo a uma
qualquer ordem de significação hierárquica.
A abrangência e complexidade do seu trabalho marcou a distancia para outros
gigantes seus
contemporâneos, nomeadamente Vsevolod Pudovkin. Este
acreditava que a intervenção do realizador devia incidir sobre a escolha adequada e
posterior organização de aspectos do real que, sendo pré-existentes ao filme,
continham em si mesmos um sentido destinado a ser esclarecido através do cinema.
Nesta perspectiva, as propostas de Pudovkin estão mais próximas do realismo do
que as de Eisenstein. Mas, em qualquer dos casos, como de resto aconteceu com a
generalidade dos cineastas soviéticos dos anos 20, estava em causa fazer um
cinema indissociável da vida, capaz de a reinventar através de um processo
incessante de busca da forma certa para dizer o que se julgava necessário ser dito.
Mais tarde, Eisenstein diria em A Forma do Filme:
“Como arte genuinamente maior, o cinema é único porque, no sentido pleno do
termo, é um filho do socialismo. As outras artes têm séculos de tradição atrás de si.
Os anos cobertos por toda a história da
cinematografia são menos do que os
séculos durante os quais as outras artes se desenvolveram. Porém, mais essencial
é que o cinema como uma arte em geral e, alem disso, como uma arte não apenas
igual, mas em muitos aspectos superior às suas artes companheiras, começou a ser
considerado seriamente apenas com o início da cinematografia socialista”
(Eisenstein, 2002, p. 164).
Conclusão
A derradeira citação é uma consequência da experiência de Eisenstein em diversos
países europeus, nos Estados Unidos e no México na viragem da década de 20
para a década de 30. Nessa altura, apesar da censura, os filmes soviéticos
passavam em circuitos mais restritos e suscitavam o entusiasmo de elites tão
interessadas no Cinema quanto na Revolução. Vertov teve igual receptividade em
França. Certamente, as ideias de Eisenstein resultaram mais da curiosidade do
artista e do visionário do que propriamente dos métodos de uma qualquer ciência
exacta. O mesmo é aplicável a Vertov. Mas, por isso mesmo, o pensamento de
ambos tem singular alcance prospectivo, porventura ultrapassando até o universo do
cinema para se estender ao plano da teoria e da linguagem de outros media e, em
particular, da televisão. A ênfase posta nos processos fisiológicos e sensoriais nas
suas relações com o cinema antecipa, de algum modo, aspectos do pensamento
contemporâneo como sucede com Marshall McLuhan. Na medida em que se
estabelece um vínculo entre o que se considera ser a natureza de um medium e a
sua linguagem abre-se, por outro lado, o caminho à fundamentação que autoriza a
identificação de discursos e narrativas. Tal como na Literatura, também no cinema
há metáforas, alegorias, figuras de estilo, subtextos. Sim, o Cinema precisa de ser
pensado e as imagens carecem de ser lidas. E, expurgadas dos aspectos mais
datados da ideologia, as obras de Vertov e Eisenstein continuam a desafiar o
conformismo inscrevendo-se no plano da cidadania.
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