O crédito e a economia colonial: século XVIII Maximiliano M. Menz

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O crédito e a economia colonial: século XVIII Maximiliano M. Menz
O crédito e a economia colonial: século XVIII
Maximiliano M. Menz
“À vista ou a prazo; comércio e crédito nas Minas setecentistas”, livro que o
leitor agora tem em suas mãos, possui uma sólida unidade temática em torno do tema
do crédito, pois mesmo quando os artigos tratam de modo mais específico sobre o
comércio, o problema do crédito retorna pelas próprias fontes, pelos livros-caixa dos
homens de negócio onde estão registradas centenas de operações de crédito.
Deste modo, é um conjunto de reflexões extremamente importante pois
sistematiza os resultados de pesquisas em arquivos e lança luzes sobre um tema para o
qual apenas recentemente a historiografia brasileira acordou; não obstante a
disseminação das práticas de crédito e a sua grande importância para a compreensão
dos mecanismos elementares do sistema colonial portugês.
Todavia, a Idade Moderna com a qual este livro compartilha mais ou menos
um século, foi pródiga em reflexões sobre o tema. A reabertura do comércio de longa
distância produziu formas mais complexas de pagamento, como o caso das letras de
câmbio e de risco, sobre as quais os letrados e teólogos foram obrigado a lançar os
seus juízos morais, especialmente porque em algumas destas novas formas de crédito
as taxas de juros eram extremamente altas1.
Na sociedade contemporânea o juro é uma componente indissociável do
crédito, justificado pela prestação de um serviço ou pela renúncia do emprestador à
liquidez, e limitado unicamente pela lei “natural” da oferta e da procura. Já no iníco
da Idade Moderna a usura era reprovada, sendo aceita apenas em casos excepcionais
1
Era o caso das letras de riscos que podiam alcançar taxas de 100%, cf. COSTA, Leonor F. O
transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663), Lisboa: CNCDP,
2002, vol. 1, p. 231. Cf. também CARDOSO, José Luís. Os descobrimentos portugueses e a
emergência de um novo discurso econômico. in: Pensar a Economia em Portugal: digressões
históricas (37-58), Lisboa: Difel, 1997.
previstos pelos Códigos Eclesiástico e Civil2. Caberia, pois, aos príncipes resguardar
o bem comum e impor os limites à usura.
É verdade que ainda no século XVIII Adam Smith já havia denunciado a
inutilidade de proibir a cobrança dos juros e mesmo a impossibilidade de se impor um
limite legal inferior à taxa de mercado. Antes dele, autores como David Hume já
haviam investigado os fundamentos estritamente econômicos da usura. Mesmo assim,
na documentação colonial do século XVIII constam abundantes críticas morais à
atitude dos homens de negócio, ainda que, em geral, o problema costumava ser o
preço. Voltarei a este ponto. Tratava-se pois de um conhecimento imperfeito da
realidade econômica ou então de uma mera retórica mobilizada pelos governadores,
senhores de engenho e lavradores em momentos de conflito com os seus credores?
A primeira linha de interpretação deve ser descartada desde já pelo seu
anacronismo. Mas analisemos com mais cuidado a segunda interpretação: se
observarmos as datas em que foram reiteradas as leis que impediam o embargo da
propriedade dos engenhos para o pagamento de dívidas, notaremos uma certa
correlação com as baixas no preço do açúcar. Era principalmente nestes momentos
que os senhores de engenho faziam uso da retórica do bem comum para obter
privilégios que impediam os mercadores de executar suas propriedades3.
Esta idéia pode ser fecunda, mas dá conta apenas da dimensão discursiva a
respeito da relação entre crédito e produção e parece-me que o que estamos tentando
fazer aqui é justamente refletir sobre esta relação. Assim, uma terceira alternativa é
aberta pelo campo interpretativo desenvolvido a partir da obra de Karl Marx. Suas
reflexões a respeito das formas antediluvianas de capital estão inseridas no livro III
d’O Capital onde é contrastado o capital mercantil na sociedade industrial submetido a momento de valorização do capital industrial - à sua existência autônoma
nas sociedades pré-industriais. O capital comercial e o capital portador de juros
viveriam presos à circulação, parasitando os antigos modos de produção. Por esta
interpretação, o parasitismo do capital comercial seria a “base real” da crítica moral
da Época Moderna.
2
Ordenações do Senhor Rei D. Afonso V. Livro IV, título 19, 1792, pp. 94-96. Esta legislação do
século XV contrasta com a opinião de Pascoal José de Melo Freire que já no final do século XVIII
afirmava que a usura não era proibida, mas que deveria ser moderada pela “estimação do uso”.
Instituições de Direito Civil Português - Livro I, p. 71.
3
Ver sobre isto SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial.
2ª reimpr., São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 171.
Este modo de interpretar o capital comercial (e, por extensão, o crédito) nas
sociedades pré-industriais teve influência na historiografia sobre o Brasil colônia.
Fernando Novais, por exemplo, considera que o capital mercantil autônomo é um dos
elementos fundamentais da acumulação externa, marco do processo colonizador, nos
quadros da acumulação primitiva de capitais4. O comércio colonial e o tráfico de
escravos, caracterizados pela troca desigual, eram os mecanismos pelo qual o capital
mercantil metropolitano garantia a passagem do excedente produzido nas colônias
para o centro.
Uma outra interpretação, ainda calcada nos conceitos marxistas, foi produzida
por João Fragoso. Para ele, era a reprodução da economia agroexportadora que gerava
a demanda por alimentos e escravos, derivando assim formas de produção nãocapitalistas no espaço colonial. Na sua visão a agroexportação do Rio de Janeiro
absorveria a produção de alimentos de diferentes regiões da colônia (São Paulo,
Minas, Santa Catarina, Rio Grande do Sul), formando um mercado interno
configurado pelo “mosaico de formas de produção não-capitalistas” subsidiário ao
escravismo colonial. A produção para o abastecimento e a captura de escravos na
África eram controladas comercialmente por uma elite mercantil, residente no Rio de
Janeiro, através de uma rede de adiantamentos/endividamento; o crédito estabelecido
no comércio intracolonial era um dos mecanismos da troca desigual.5
Em um sentido bastante restrito é possível dizer que Fragoso inverteu o
modelo de Novais a partir da constatação da existência de uma elite mercantil no Rio
de Janeiro e de certas evidências indiretas do controle remoto por parte dos
mercadores da capital do Brasil do comércio intracolonial. É o caso, por exemplo, das
consignações das cargas e das embarcações registradas na entrada do porto do Rio de
Janeiro que seria altamente concentradas, o que, contudo, constitui uma interpretação
equivocada, pois ser consignatário não significa ser o proprietário da carga como
4
NOVAIS, Fernando. Portugal e o Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. (1979). 6ª ed. São
Paulo: Hucitec, 1995 Como escreve Eduardo Mariutti em seu comentário sobre Fernando Novais: “Na
era da acumulação primitiva de capitais (...) o capital comercial confunde-se com a esfera da
circulação, a qual se esforça para subsumir a produção à sua lógica, mas sem eliminar a separação
entre produção e circulação.” (MARIUTTI, E. O Antigo Sistema Colonial e a formação do
Capitalismo. A contribuição de Fernando Novais ao debate sobre a transição do Feudalismo ao
Capitalismo. p. 14).
5
FRAGOSO, João L. R. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). 2ª ed. rev., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
mostram as evidências da compra de escravos em Angola onde os proprietários eram
na maior parte das vezes mercadores residentes em Luanda6.
Os estudos reunidos aqui mostram que do ponto de vista de Minas Gerais esta
visão igualmente não se sustenta: Alexandra Pereira descreve o grande movimento
comercial de uma loja de Vila Rica, ainda na primeira metade do século XVIII, que
em um ano e meio vendeu aproximadamente 27 contos de réis, 88% do total a crédito.
E não se trata de um caso isolado, já que as lojas, estabelecimentos mercantis
dedicados ao atacado e varejo, distribuíam-se pelas comarcas mineradoras das Minas
Gerais. Por sua vez, Luiz Antônio Araújo mostra como o grupo de João de Souza
Lisboa, estabelecido na referida capitania, controlou os grandes contratos na metade
do século XVIII. Estas informações são iluminadas pelo trabalho de Felipe Rodrigues
de Oliveira sobre os registros do Caminho Novo que sugere eram os mercadores de
Minas que controlavam a saída do ouro e a entrada das mercadorias; deste modo o
crédito deixa de ser encarado como uma “cadeia” e passa a ser uma opção de
pagamento entre outras, como mostra a sua análise sobre o pagamento do imposto de
entrada sobre as mercadorias. O artigo de Raphael dos Santos simplesmente confirma
que, da “porta para dentro”, eram os mineiros que controlavam o crédito.
O mesmo parece ocorrer em São Paulo no final do século XVIII e em outras
zonas periféricas: ainda que os mercadores locais atuem como caixeiros e
consignatários dos homens de negócio das praças centrais da colônia, é deles o
controle dos mercados locais.7
A constatação da existência de grupos mercantis “autônomos” nos diversos
quadrantes do império foi o que, possivelmente, levou a João Fragoso inverter suas
próprias idéias. A troca desigual de “Homens de Grossa Aventura” deu lugar à
“reciprocidade” de “Mercados e negociantes imperiais”8. Trata-se de uma guinada
influenciada pela Antropologia e pela História Cultural, em que se procura realçar as
relações não-econômicas entre os homens de negócio. Esta perspectiva pode ser
encontrada aqui no texto de Raphael dos Santos, para quem o crédito na sociedade
6
MILLER, J., Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830.
Winscosin, The Universisty of Winscosin Press, 1988. Sobre o caráter pulverizado da propriedade das
cargas no comércio marítimo ver DAVIS, Ralph. The Rise of the English Shipping Industry. London:
MacMillan, 1962.
7
Ver por exemplo MOURA, Denise. O porto de Santos como pólo distribuidor de mercadorias
coloniais no funcionamento do organismo colonial português (1765-1822). Mneme: Revista de
Humanidades, Caicó, V. 9, n.24, Set/Out, 2008.
8
FRAGOSO, Mercado e Negociantes Imperiais. Um ensaio sobre a economia do Império Português
(séculos XVII e XIX). História Questões & Debates, Curitiba, n 36, 99-126, 2002.
mineira seria baseado em relações pessoais e, além disso, poderia ter o caráter de
“entreajuda”, situação sugerida pela ausência de juros em muitos dos créditos
registrados em cartórios e inventários.
Ora, se é verdade que as relações entre os comerciantes do império dependiam
do conhecimento direto entre eles, incluindo, algumas vezes, relações de parentesco,
na minha opinião isto é tomar o acessório por essencial. A inexistência de um
mercado “impessoal” não inviabiliza uma racionalidade plenamente “capitalista”
(num sentido weberiano); basta ler a correspondência entre os homens de negócio e a
escrituração de seus livros para notar que tudo era calculado, precificado,
racionalizado e os processos de falência e de cobrança judicial de dívidas estão aí para
comprovar isto. Portanto, segundo o que penso, a relação entre homens de negócio
não era caracterizada pela “troca desigual” nem tampouco pela “reciprocidade” ou
“economia moral”.
Tal afirmação impõe uma série de problemas a resolver, como a ausência do
juro e, mais uma vez, o problema de enfrentar a relação entre um discurso moral e as
práticas dos mercadores que até agora foi contornado.
Adam Smith dizia que era impossível reduzir a taxa de juros legal abaixo da
taxa de mercado e que tentativas deste tipo eram burladas de diferentes formas9.
Analisando as contas de João de Souza Lisboa, Luiz Antônio Araújo demonstra que a
contabilidade não era clara a respeito das taxas de juros, muito provavelmente
omitindo cobranças acima da lei. Os juros também podiam ser embutidos no preço,
como nota o próprio Raphael dos Santos, pois boa parte dos créditos dizia respeito à
venda de mercadorias. Creio que este é o principal modo pelo qual os juros e os
outros custos de transação eram transferidos aos tomadores de crédito: um breve
levantamento no catálogo dos documentos avulsos do AHU mostra que era em torno
dos preços que giravam os conflitos10.
9
“sempre se pode ganhar algo com o emprego de dinheiro, da mesma forma sempre se pagará algo
pelo uso do mesmo “ (SMITH, Adam. A Riqueza das Nações (1776). vol. 1, São Paulo: Abril Cultural,
1983, p. 303).
10
Por exemplo, AHU/RJ/CARTA dos oficiais da Câmara [do Rio de Janeiro], ao rei [D. João V], sobre
o ajuste dos preços do açúcar e a relação conflituosa entre os senhores de engenho, lavradores e os
mercadores, uma vez que estes últimos não queriam negociar os preços; Rio de Janeiro, 18 de
novembro de 1722 [cx. 12 doc. 1378];AHU/RJ/CARTA dos oficiais da Câmara [do Rio de Janeiro], ao
rei [D.João V], queixando-se das pessoas que fazem o transporte de escravos de Angola, da Costa da
Mina e de mais partes, para aquela cidade, uma vez que vendem os escravos ao povo, revendendo-os
aos senhores de engenho e lavradores por preços exorbitantes; solicitando cumprimento do provimento
do ouvidor-geral e corregedor da comarca, José de Siqueira, determinando que todas as pessoas que
servissem como atravessadores perdessem seus escravos, pagassem uma multa e fossem presos; Rio de
Janeiro, 9 de dezembro de 1722 [cx. 13, doc. 1441]; AHU/RJ/CARTA do ouvidor-geral do Rio de
Janeiro, Antônio de Sousa de Abreu Grade, ao rei [D. João V], sobre a representação da Câmara do Rio
de Janeiro, denunciando a existência de pessoas do povo que praticam o resgate e venda de escravos da
Mina e Angola naquela cidade, cobrando preços exorbitantes aos senhores de engenho e lavradores;
Rio de Janeiro, 1o. de outubro de 1724 [cx. 14, doc. 1562]; AHU/RJ/CARTA do [governador do Rio
de Janeiro], Luís Vaía Monteiro, ao rei [D. João V], relatando algumas medidas tomadas pela Junta de
ministros, Senado da Câmara, pessoas particulares e militares da cidade, com o objetivo de acabar com
a desordem administrativa dos preços de compra e venda do sal e azeite; Rio de Janeiro, 11 de agosto
de 1725 [cx. 15 doc. 1703]; AHU/RJ/OFÍCIO do [governador do Rio de Janeiro], Luís Vaía Monteiro,
ao [secretário de estado], Diogo de Mendonça Corte Real, informando ter mandado publicar um bando
anunciando a chegada e descarregamento da frota, tendo em seguida escrito aos oficiais da Câmara do
Rio de Janeiro para que estes, chamando os senhores de engenho, os homens de negócios e os mestres
de navios, para que procedessem à eleição de um responsável para fazer o ajuste do preço do açúcar
descarregado dessas embarcações, uma vez que por ordem régia os governadores estavam proibidos de
interferir nesta matéria; a indecisão da dita Câmara era o motivo principal para a demora ocorrida no
tabelamento dos preços dos gêneros a transportar pelos navios com destino ao Reino; Rio de Janeiro,
16 de junho de 1730 [cx. 21, doc. 2300]; AHU/RJ/CARTA dos oficiais da Câmara da vila de Nossa
Senhora dos Remédios de Parati, ao rei [D. João V], queixando-se dos exorbitantes preços do sal
cobrado pelos administradores do contrato deste gênero no Rio de Janeiro; solicitando uma ajuda de
custo para a igreja paroquial da dita vila; informando os inconvenientes de se recrutarem alguns filhos
desta vila para os postos de soldados devido à falta de pessoas para a defesa da cidade; requerendo
ainda a concessão dos mesmos privilégios concedidos as Câmaras de São Paulo e do Rio de Janeiro;
Parati, 3 de dezembro de 1735 [cx. 28, doc. 2962]; AHU/RJ/OFÍCIO dos oficiais da câmara do Rio de
Janeiro ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre
as irregularidades cometidas nas vendas dos vinhos pelos vendedores à miúdo, desrespeitando os
preços pré-estabelecidos pelo Reino e o valor segundo a qualidade, solicitando que se ordene à
Companhia dos Vinhos do Alto Douro que marque as pipas de vinho com observações quanto a
qualidade dos mesmos; Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1769 [cx. 87, doc. 7671]; AHU/RJ/OFÍCIO
dos oficiais da câmara do Rio de Janeiro ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, sobre o fato de os donos de estabelecimentos e taberneiros continuarem
desrespeitando os preços dos vinhos e qualidade dos mesmos; e solicitando ajuda para solucionar este
problema; Rio de Janeiro, 18 de março de 1769 [cx. 87, doc. 7686]; AHU/RJ/OFÍCIO do [vice-rei do
Estado do Brasil], marquês do Lavradio, [D. Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão Eça e Melo
Silva e Mascarenhas], ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,
informando que o atraso no transporte de anil para Lisboa se deve à diferença de preços entre os
comerciantes e os produtores; referindo-se as revoluções que ocorreram no Rio Grande, considerando
ser necessário enviar um oficial hábil para socorrer ao governador da Ilha de Santa Catarina e auxiliar
na exploração da cochonilha que existe na dita capitania; Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1774 [cx.
96, doc. 8323]; AHU/RJ/OFÍCIOS (cópias) do vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, [D.
José Luís de Castro] ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,
sobre os preços exorbitantes dos gêneros no Rio de Janeiro; a fragilidade da defesa da cidade; a
restituição recíproca de material de guerra, escravatura e embarcações acordado com os espanhóis; o
restabelecimento dos índios na aldeia de Taguaí; a chegada do desembargador Sebastião Xavier de
Vasconcelos Coutinho e mais ministros para conhecerem as devassas e processos da conjuração em
Minas Gerais; Rio de Janeiro, 1791 [cx. 143, doc. 11141]; AHU/RJ/ OFÍCIO do juiz de Fora do Rio de
Janeiro, Baltazar da Silva isboa, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e
Castro], sobre as providências tomadas para reprimir a ação dos comerciantes do Rio de Janeiro, que
aproveitando-se da fome em Pernambuco e na Paraíba, lotaram embarcações com mantimentos de
primeira necessidade por preços exacerbados, sem terem licença para tal e o que executou o Governo
do Rio de Janeiro acerca desta matéria; queixando-se do comportamento do provedor da Fazenda,
desembargador João de Figueiredo, contra as suas diligências; Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1792
[cx. 147, doc. 11327]; AHU/RJ/ OFÍCIO do [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Resende, [D. José
Luís de Castro], ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre
a deliberação de comprar carne no Rio Grande de São Pedro por ser menos oneroso para a Fazenda
Real, sugerindo que cada cultivador contribua com uma rês ou o valor dela para aliviar a Fazenda Real
na manutenção das esquadras, informando que a Fazenda Real não tem recursos para pagar pessoas
para cortar madeiras e transportá-las ao porto da cidade, recomendando que os moradores possam
recolher e vender as madeiras tanto a navios portugueses quanto estrangeiros; que se criem casas de
registro para acabar com o trabalho dos atravessadores que compram gêneros dos navios que aportam
Deste modo é possível dizer que por detrás dos preços escondiam-se os custos
de operação. Por este argumento, a hipótese da troca desigual entre homens de
negócio pode ser descartada o que, aliás, condiz com o resultado da mais recente
produção historiográfica: pois como seria possível a troca desigual conviver com o
desenvolvimento de comunidades mercantis “autônomas” em zonas periféricas da
colônia e com um tipo de trajetória entre mercadores que favorecia o enriquecimento
em zonas de fronteira?11
Penso que o mundo dos homens de negócio no Antigo Regime pode ser
analisado como o “mundo das mercadorias”, espaço da igualdade em que os
proprietários trocam suas mercadorias pelo seu valor (troca de equivalentes)12. Mas
esta é apenas a superfície imediata do problema.
Neste caso, o artigo de Alexandra Pereira é particularmente revelador, pois
traça o perfil típico dos proprietários das grandes lojas - portugueses, homens, brancos
- em oposição ao das donas de pequenas vendas - africanas, mulheres, negras. A
igualdade entre os grandes homens de negócio - e do valor de suas mercadorias assenta-se sobre a desigualdade e as hierarquias fundamentais da sociedade colonial.
Abstratamente falando o crédito possui um preço que é definido pelas leis “naturais”
de oferta e procura, concretamente observa-se que o acesso ao crédito na economia
colonial define-se por cortes étnicos, sexuais, raciais e jurídicos. Note-se que os
fundamentos sociais das relações de crédito já haviam sido discutidos pela
historiografia hispano-americana, como demonstra Angelo Carrara com a sua
oportuna revisão historiográfica.
Além disso, segundo Luiz Antônio Araújo, a preeminência econômica dos
grandes homens de negócio dependia de privilégios obtidos junto à Coroa. Em última
instância, o autor sugere que os privilégios eram os mecanismos de uma troca
desigual entre o capital mercantil e a produção. Permito-me dizer então que o “mundo
das mercadorias” no Antigo Regime é recortado pelo exclusivo. Com isto é possível
resolver o impasse conceitual: enquanto que entre os grandes mercadores
nesta cidade e vendem a retalho por preços exorbitantes ao povo, servindo estas casas também para
avaliar a qualidade dos mantimentos e licenciá-los para a venda, concedendo mais rendimentos para a
Fazenda Real; Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 1798 [cx. 164, doc. 12230].
11
cf. PEDREIRA, Jorge. Brasil, fronteira de Portugal. negócio, emigração e mobilidade social (séculos
XVII e XVIII). in: CUNHA, Mafalda (coord.). Do Brasil à Metrópole, efeitos sociais (séculos XVIIXVIII). Anais da Universidade de Évora, nr. 8 e 9, (47-72), 1998/1999.
12
MARX, Karl. A mercadoria in: O Capital: O processo de produção de capital. Livro I.(1867), São
Paulo: Abril Cultural, 1984.
privilegiados reinava a troca de equivalentes, sua relação com os produtores
caracterizava-se pela troca desigual. O raciocínio em parte esclarece a riqueza
generalizada entre os grandes comericantes e a decorrente probreza entre a população
em geral, independentemente da região do império.13
Isto não deve significar o retorno da velha polarização, presente na
historiografia mais antiga, entre senhores de engenho e comerciantes. É preciso que se
diga que os produtores no Brasil são principalmente escravos; quem pagava o pacto
colonial não eram os grandes senhores de engenho ou mineiros – muitos dos quais
antigos mercadores, que também alcançavam privilégios que lhes permitiam dividir
com os homens de negócio, ainda que com alguns conflitos, a riqueza gerada pelos
escravos. Um exemplo são os já referidos privilégios obtidos junto à Coroa que
impediam o embargo dos bens dos grandes mineiros e senhores de engenho
endividados. Em geral, os grandes homens de negócio possuíam propriedades agrárias
entre os seus investimentos. É importante notar que as categorias marxianas (como
por exemplo capital comercial) não se confundem necessariamente com pessoas, mas
com relações sociais.
Outro resultado lógico do raciocínio é que a troca desigual não possuía
necessariamente uma expressão contábil entre as regiões da colônia ou entre
metrópole e colônia. Ou seja, ela não deve ser buscada nos déficits e superávits das
balanças de comércio pois era o capital comercial como um todo, espalhado por todo
o Império, que era favorecido, em detrimento dos pequenos produtores e dos
escravos. Tanto João Fragoso, como Fernando Novais e Jobson Arruda parecem ter
acreditado durante um tempo que as zonas periféricas deveriam produzir déficits14,
mas é o fenômeno minerador no Brasil e no Rio da Prata e a decorrente produção do
“ouro-mercadoria” que explica os déficits aparentes.
13
Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro. A pobreza mineira no século XVIII. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Graal, 1986.
14
Ver, por exemplo, as reflexões de Arruda e Novais sobre a inversão da balança de comércio entre
Portugal e o Brasil no início do século XIX e a crise do Antigo Sistema Colonial (ARRUDA, José
Jobson de. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980; NOVAIS, Portugal e o Brasil, op.
cit.). Já João Fragoso, em artigo com Manolo Florentino, afirmava que o déficit do Rio de Janeiro era
sustentado pelos déficits do Rio Grande de Sul e São Paulo (FRAGOSO, João e FLORENTINO,
Manolo. Estrutura e dinâmica da praça mercantil do Rio de Janeiro entre 1790 e 1812. in: FURTADO,
Junia (org.) Diálogos oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma História do Império
Ultramarino Português. (155-180) Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001). No entanto o circuito é muito
mais complexo como já tive a oportunidade de discutir em outro lugar (MENZ, Maximiliano. Entre
Impérios. São Paulo: ed. Alameda, 2009). Por último, vale lembrar que Fernando Novais costuma dizer
que a acumulação primitiva de capitais ocorre em todo circuito, raciocínio que se assemelha ao descrito
aqui.
Pode parecer que as idéias deslindadas até agora apoiam uma tese recorrente
na historiografia recente: também do ponto de vista econômico o Império seria
descentralizado. Contudo, não é esta a minha conclusão, porque se não existiam
hierarquias pessoais no “mundo das mercadorias”, existiam sim hierarquias espaciais
no Império15. Em termos de fluxos mercantis, uma Lisboa vale três Rio de Janeiros,
um Rio de Janeiro vale oito Rio Grandes e assim por diante16. Por conseguinte, as
comunidades mercantis tendem a refletir esta distribuição do capital mercantil no
espaço.
Retomando o exemplo de João de Souza Lisboa discutido no livro, os valores
dos contratos arrematados por este grande contratador de Vila Rica até permitiria
situá-lo entre os dezoito maiores contratadores de Lisboa. Mas acredito não deveria
existir mais do que dois ou três homens de negócio do mesmo nível de riqueza que
João de Souza Lisboa em Vila Rica no mesmo período de sua atuação. Ademais, a
hierarquia espacial distribuía-se regionalmente, com um ou dois grandes comerciantes
dominando os mercadinhos fora da capital; e também nas próprias vilas, onde os
grandes lojistas expulsavam as pequenas vendas para a periferia mineradora17.
Trata-se, à primeira vista, de uma hierarquia com contornos econômicos já que
os mercados mais dinâmicos tendem a atrair um volume maior de capitais, como dizia
um professor meu da economia nos tempos do doutorado, “massa atrai massa”. No
final das contas, a importância imperial e regional das diversas praças portuguesas
variavam ao sabor das conjunturas econômicas, é o caso de Vila Rica que perdeu
importância com a diminuição da produção aurífera. Todavia, como já foi discutido,
estes mercados eram politicamente constituídos, o monopólio metropolitano garantia
ao Reino a exclusividade do milagre da transubstanciação das mercadorias coloniais
em produtos manufaturados. Além disso, apenas na capital era possível acessar os
contratos mais rendosos, como o do tabaco, atuar como emprestador da Coroa e com
15
Referindo-se ao comércio Atântico no século XVII Leonor da Freire Costa escreve: “A direção dos
fluxos, se definia hierarquias portuárias, não autoriza hierarquizar socialmente os agentes. Estas
redes eram constituídas po parcerias e não necessariamente por comerciantes e respectivos feitores”
(COSTA, Leonor F. Impérios e grupos mercantis entre o Oriente e o Atlântico, Lisboa: Livros
Horizonte, 2002, p. 60).
16
Cálculo a partir das importações marítimas de Lisboa (25.139 contos de réis), Rio de Janeiro (6.665
contos) e Rio Grande (911 contos) no ano de 1804. Tratam-se de valores aproximados, pois foi preciso
fazer algumas correções e estimativas. Fontes: Instituto Nacional de Estatística de Lisboa, Balanças
Gerais do Comércio do Reino de Portugal com os seus Domínios e Nações estrangeiras (1804). BNRJ,
I-32,14,5, Mapa das Fazendas e Gêneros importados na Alfândega da cidade do Rio de Janeiro em o
ano de 1804. MENZ, Entre Impérios..., op. cit.
17
Ver para isto os estudos Felipe Oliveira e Alexandra Pereira.
isto ficar mais próximo da principal fonte de privilégios. Os homens de negócio com
menor capacidade financeira poderiam exercer seus serviços nas periferias do
império, onde era possível arrematar contratos ligados às provedorias dos governos ou
então, na base da escala, os contratos das câmaras municipais.
Aliás, esta hierarquia entre contratatos pode explicar em parte a tendência de
retorno dos mercadores ao Reino descrita pela historiografia portuguesa18. Deste
modo, capitais obtidos nos domínios coloniais podiam ser reinvestidos em Portugal,
num circuito econômico, com fundamentos políticos, que só vai ser interrompido em
1808.
Em suma, os trabalhos aqui reunidos obrigam-nos uma vez mais a repensar os
paradigmas clássicos da historiografia sobre o Brasil colônia, mas, principalmente,
discutir de modo crítico o revisionismo das duas últimas décadas. Portanto, meu texto
não passa de uma das leituras possíveis sobre os dados e reflexões publicados aqui.
Ao leitor, fica o desafio cartesiano de exercer a dúvida e submeter as tradições à
crítica por conta própria.
18
Cf. PEDREIRA, Jorge Miguel de M. Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal
ao Vintismo. Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, 1995. (Tese de
Doutorado em Sociologia), Universidade Nova de Lisboa.

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