Sobre a existência e natureza de Deus na primeira parte da Summa

Transcrição

Sobre a existência e natureza de Deus na primeira parte da Summa
Revisitando a existência e a natureza de Deus na primeira parte da
Summa Theologiae de São Tomás de Aquino
Pe. Pedro M. Guimarães Ferreira S.J.
Professor do Centro Técnico Científico da PUC-Rio
(Abril de 2006 / Modificado em julho de 2011)
1. Introdução
São Tomás de Aquino é considerado por muitos o maior teólogo / filósofo cristão de todos
os tempos. Nascido em 1225 no que era então o reino de Duas Sicílias, numa pequena
cidade equidistante de Nápoles e Roma, fez-se dominicano, ordenado Sacerdote, professor
e escritor prolífico e profundo. Faleceu com 49 anos, ainda em plena produção teológica e
filosófica, quando se dirigia, por convite do Papa, para participar, como perito, no Segundo
Concílio de Lyon.
São Tomás reúne qualidades intelectuais dificilmente encontráveis numa mesma pessoa:
profundidade, precisão, clareza e concisão. Suas idéias e intuições fundamentais se repetem
muitas vezes ao longo de sua obra, ao abordar os diversos problemas teológicos e
filosóficos. Mas ao dar solução a cada problema, ele sempre o faz com as características
mencionadas. Clareza não significa que sua leitura seja sempre fácil, tendo em vista a
dificuldade e complexidade de muitos problemas.
A “Summa Theologiae”, a mais conhecida obra de São Tomás de Aquino, é constituída de
3 partes, sendo que a segunda parte, a maior, é subdividida em duas. Além disso, há um
Suplemento, escrito por um discípulo, após a morte do santo: trata-se de texto que segue os
princípios do “Doutor Angélico”, mas que lhe fica muito a dever em qualidade.
Na edição em latim do Instituto de Estudos Medievais de Ottawa (1941), os 4 volumes (no
formato 23 x 16 cm) ocupam um total de quase 3100 páginas em duas colunas em letra
pequena (1,5mm). Trata-se portanto de obra alentada. A obra toda é dividida em
“Questões”, subdivididas em “Artigos”.
Na Primeira Parte, depois de uma Questão introdutória sobre a doutrina sagrada, que é o
objeto de toda a obra, como diz o nome, São Tomás trata do problema da existência e da
natureza de Deus até a Questão Vigésima Sexta. A Primeira Parte se estende ainda por mais
93 Questões.
Neste pequeno texto vamos nos debruçar sobre o problema da existência de Deus e sobre
vários aspectos da sua natureza, de acordo com a Primeira Parte da “Summa”.
2. As provas da existência de Deus
São Tomás trata do problema da existência de Deus na segunda Questão da Primeira Parte
ao qual dedica apenas 4 páginas em 3 Artigos. A extrema concisão de São Tomás ao tratar
deste problema se explica porque para os seus contemporâneos a existência de Deus era
algo óbvio que não precisava de demonstração. Mas estas poucas páginas são de uma
notável profundidade, aí estando embutidas as principais idéias originais do Santo. Estas
páginas são provavelmente, de longe, as mais comentadas da sua obra ao longo da história.
São Tomás começa observando que a existência de Deus não é algo “evidente” no sentido
em que são evidentes os “primeiros princípios”, como afirmaram alguns grandes teólogos
antes dele. E a razão disso é que entendemos perfeitamente os primeiros princípios. Nestes,
com efeito, explica o Santo, o predicado está incluído no sujeito, temos então, nas suas
palavras, uma proposição conhecida por si mesma. Ora, a existência de Deus não é uma tal
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proposição, porque não conhecemos a Essência de Deus. Se a conhecêssemos, a existência
de Deus seria algo evidente, mas tal não é o caso.
A seguir, no segundo Artigo, São Tomás afirma que a existência de Deus é demonstrável.
Com efeito, diz ele, há dois tipos de demonstração: uma pelas causas e outra pelos efeitos.
No primeiro caso, a causa é conhecida e, por meio dela se demonstram os efeitos. São
Tomás não o diz, mas é claro que as demonstrações matemáticas são deste tipo. No outro
tipo de demonstração, é o efeito que nos é conhecido e a partir dele se chega à causa. A
partir de Francis Bacon, que viveu três séculos depois de São Tomás, este tipo de
demonstração passou a ser chamada de prova “por indução”. Este é o tipo de prova usado
nas ciências experimentais. Mas modernamente tomou-se consciência de modo mais claro
(Karl Popper) que este tipo de argumento não prova realmente, as teorias científicas sendo
sempre superáveis a partir de novos dados experimentais.
E acontece que as demonstrações da existência de Deus que São Tomás propõe são do
segundo tipo, a partir dos efeitos, como não poderia deixar de ser (seria absurdo pensar que
conheceríamos a “causa” de Deus). Procuraremos mostrar, entretanto, que as provas de São
Tomás resistem à crítica “popperiana”.
São Tomás afirma que se pode demonstrar a existência de Deus por cinco meios (as
celebérrimas “cinco vias”).
A primeira via, que é a mais evidente para nós, segundo o Santo, é a partir da mudança. O
mundo muda continuamente. Ora, se alguma coisa muda, há outro algo que a muda. E se
este outro algo, por sua vez, muda, há um terceiro que o muda, e assim sucessivamente...
Observe-se que nada se afirma quanto à natureza dessas coisas que movem e que mudam e,
portanto, creio que não cabe aqui a crítica “popperiana”: o que se afirma modernamente é
que, a partir dos efeitos, não se pode conhecer a natureza da causa e por isso as teorias
científicas são sempre ultrapassáveis. Mas a ciência moderna não nega a simples existência
do “motor” (entre aspas, na falta de palavra melhor em português), algo que produz a
mudança. Mas não se pode ser simplista: o ser vivo, por exemplo, muda-se por si próprio,
mas há sempre algo que produz a mudança, distinto daquilo que muda. Na realidade, o
argumento é metafísico, seria um equívoco identificar no plano biológico, por exemplo, o
“motor” bem como aquilo que muda: precisamente de acordo com a ciência esta
identificação nunca seria definitiva, estaria sempre sujeita a modificações de acordo com o
progresso científico. O que se afirma é a existência de um “motor” distinto daquilo que é
mudado. São Tomás formalmente: o que está em potência (para ser mudado) não pode estar
“em ato”, simultaneamente e sob o mesmo aspecto: isto violaria o princípio de nãocontradição. Ora, continua o Santo, esta série de “motores” e de mudados não pode ser
infinita: efetivamente uma série infinita não tem um primeiro elemento e, portanto,
concluiríamos, o processo ficaria ininteligível, posto que indeterminado. Uma hipótese não
contemplada por S. Tomás, mas que está implícita no seu raciocínio: a série não poderia ser
circular e finita, isto é, A mudando B, o qual mudaria C, ... o qual mudaria A? Mas se A
muda B e este muda C,..., então A muda C através de B, D através de C, ... e,
consequentemente, A mudar-se-ia a si próprio (através de B, C, ...), ou seja A estaria em
potência e ato, simultaneamente e sob o mesmo aspecto, o que repugna, como visto acima.
Note-se que o processo de mudanças deve ser simultâneo, ou seja, não se deve pensar em A
mudando B e este, depois mudando C, etc. “Sob o mesmo aspecto” não deve ser entendido
fenomenologicamente e sim ontologicamente: a mudança é a passagem da potência ao ato.
Se A muda-se a si mesmo, ele está em ato (porque “motor”) e em potência (para ser
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mudado) e isto é que constitui a contradição. E S. Tomás conclui: então existe um primeiro
“motor”, que não é mudado por outro. Nesta conclusão damos um “salto”, porque é claro
que este Ser está fora da nossa experiência. Mas negar a conclusão é negar a inteligibilidade
do mundo. Se não dermos o salto da conclusão, temos que concluir que o mundo é um
absurdo lógico, ou então a nossa inteligência é incapaz de atingir a inteligibilidade radical
das coisas, ou seja, não somos capazes de dar resposta a perguntas simples e fundamentais
a respeito da realidade em que vivemos.
A segunda via é parecida com a primeira. Ao invés de usar o conceito de mudança, usa o
da causa eficiente. Verificamos que as coisas têm causas eficientes (que as produzem). E
não é possível que algo seja causa e efeito simultaneamente e sob o mesmo aspecto, ou
seja, não pode ser causa de si mesmo. Então, temos no mundo uma série de causas, sendo
que não se pode proceder ao infinito pelas razões acima. Então tem que existir uma Causa
que não seja efeito de outra.
A terceira via é a partir da contingência das coisas: as coisas que encontramos (e nós
mesmos) são contingentes, ou seja, existem, mas poderiam não existir: não há necessidade
ontológica que as coisas existam ou não, sejam assim, ou não. Mas se tudo é contingente,
em algum momento nada existiu e a partir do nada, nada pode ser feito (ex nihilo, nihil).
Em outras palavras, se tudo é contingente, não há razão suficiente para a existência de algo.
(Estou usando aqui o Principio de Razão Suficiente, muito usado por Leibniz, e que torna a
3ª. via de S. Tomás mais evidente). Consequentemente, na natureza tem que haver seres
necessários. Mas o que é necessário ou tem a razão da necessidade em si mesmo ou em
outrem. Se em outrem, não se pode proceder ao infinito, nem cabe a circularidade pelas
razões acima. Então existe um ser necessário que tem a razão da necessidade em si mesmo.
A afirmação acima “se tudo é contingente, em algum momento nada existiu” é um
argumento metafísico e não fenomenológico: conforme dito acima, o que é contingente não
tem a razão do seu ser em si mesmo e se nada tem razão de ser em si mesmo, concluiríamos
que nada existiria.
A quarta via tem um sabor platônico. Observamos que as coisas ocorrem em graus
diversos: mais ou menos belo, bom, etc. ... Mas o relativo (mais ou menos) não existe sem
um Absoluto em Bondade, em Beleza, etc. Tanto nesta via como na anterior, pode-se
raciocinar usando o Princípio de razão suficiente (Leibniz): o que é relativo, não tem razão
suficiente de si em si mesmo e isto implica a existência de um Absoluto.
Quinta via. Existe ordem no universo: verificamos que os seres que não têm inteligência,
operam com certa finalidade. Existe portanto um Ser inteligente que dispôs / dispõe as
coisas, cada qual perseguindo sua finalidade.
Permito-me algumas observações a respeito das 5 vias:
O leitor terá notado que me detive muito mais na primeira via que nas outras, a razão sendo
que não precisaria repetir o que foi dito a respeito da crítica popperiana, nem elaborar sobre
a exclusão do processo infinito e a circularidade das causas na 2ª. e 3ª. vias bem como a
questão do “salto” metafísico.
A 5ª. via parece ser a menos metafísica de todas. E é a mais facilmente inteligível,
traduzível com o ditado popular “se há um relógio, há um relojoeiro”
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Uma terceira observação, bem menos óbvia, é que, ao que parece, S. Tomás não colocou o
problema da unicidade do Ser em cada uma das vias. Ele é único? Não poderia haver
linhas “paralelas” e independentes de mudanças que nos levariam a mais de um Primeiro
“Motor”? (A pergunta pode ser enfatizada tendo em vista a possibilidade, aventada pela
ciência moderna, de vários universos paralelos). Ou, por exemplo, não poderia haver uma
Causa Eficiente primeira para o Universo visível e uma outra para os seres espirituais
(anjos)? E da mesma forma se poderia raciocinar a respeito das outras vias? Quer me
parecer que a única via que responde afirmativamente à questão da unicidade é a quarta:
com efeito, se existem seres parcialmente perfeitos, então existe um Ser sumamente
perfeito. Ora um Ser sumamente perfeito só pode ser único, pois se houvesse outros, Ele
não teria as perfeições deles dos outros.
Uma quarta observação é sobre a aparente semelhança entre a quarta via e o famoso
“argumento ontológico”, de Santo Anselmo, retomado por outros, inclusive Descartes, ao
longo da história de filosofia, mas rejeitado por S. Tomás na formulação anselmiana. Ele é
enunciado de diversos modos, mas seria equivalente a (apesar das distinções subtis entre
suas várias formulações): “A idéia que temos de Deus é a de um ser perfeito; ora, a
perfeição inclui a existência; portanto Deus existe”. Para S. Tomás, a existência é a
perfeição das perfeições, ou seja, não faz sentido dizer que “a perfeição inclui a existência”.
Na quarta via, parte-se da existência de perfeições em maior ou menor grau para daí se
afirmar a existência de um Ser perfeitíssimo, o Existente por excelência, o único que tem a
razão da sua existência em si mesmo. Outra objeção contra o “argumento ontológico” é
que a conclusão deveria ser : “portanto a idéia que temos de Deus é que Ele existe”; mas
isto não implica que Ele de fato exista.... Entretanto há uma versão mais forte do argumento
ontológico do mesmo Santo Anselmo: a ideia que tenho de Deus é um ser perfeito, ora um
ser perfeito existe necessariamente. Logo Deus existe. Contra esta formulação a objeção
não é tão fácil como a outra.
3. Sobre a natureza de Deus
Nesta seção vamos nos ocupar das Questões da Primeira Parte da “Summa” que tratam da
Natureza de Deus. Não percorreremos todas, mas somente aquelas em que o Doutor
Angélico examina a Natureza Divina predominantemente à luz da razão e que parecem
mais interessantes a alguém do século XXI.
Começamos com o problema da simplicidade de Deus, tratado logo depois da existência de
Deus, portanto na Terceira Questão, a qual é subdividida em oito Artigos. Logo ao
princípio da Questão ele afirma algo que será um leit-motiv em toda a obra do Doutor
Angélico: “sobre Deus nós não podemos saber o que Ele é e sim o que não é”. Parece
conveniente esclarecer que este princípio vale principalmente e por si quando se trata da
nossa ciência de Deus à luz da razão. Mas vale também, guardadas as proporções, a
respeito do nosso conhecimento de Deus à luz da Revelação. São Tomás, não faz, ao menos
aqui, esta distinção, mas ela é óbvia da leitura de toda a sua obra. Sabemos pela revelação
que Deus é trino, que a Segunda Pessoa assumiu a natureza humana, etc. Mas também aqui
nosso conhecimento é na “penumbra da fé”, na “noite dos sentidos e do espírito” (São João
da Cruz): este é o pilar da teologia mística na tradição apofática, [N.B. Apófase =
proposição negativa; Catáfase = proposição positiva], que teve no Pseudo - Dionísio
Areopagita (aliás muito citado por São Tomás ao longo da sua obra) seu primeiro
sistematizador (ou foi São Gregório de Nissa?) e em São João da Cruz, provavelmente, o
seu ponto mais elevado, este próprio, aliás, formado de acordo com os princípios do
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Aquinate. São Tomás, que ao que tudo indica, foi também um místico, terá também
integrado, com toda probabilidade, a corrente apofática. No Quarto Artigo S. Tomás
demonstra uma de suas teses mais fundamentais e que perpassa toda a sua obra, a saber, em
Deus a essência e a existência se identificam. Ou por outras palavras, a essência de Deus é
existir. Só Deus é assim, nos outros seres existe “composição” de essência e existência:
essência e existência são dois co-princípios ontológicos de toda criatura. (Nos seres
corpóreos há composição ulterior, no nível da essência: matéria prima e forma substancial).
Não havendo composição em Deus, Ele é simplíssimo. S. Tomás aduz ainda outro
argumento para a simplicidade de Deus: se Ele fosse composto, suas partes seriam
anteriores a Ele, o que é um absurdo.
Na Questão seguinte (a Quarta), S. Tomás trata da perfeição de Deus e aí volta a uma das
suas teses centrais: a existência é a perfeição das perfeições, é ela que “atualiza” as outras
perfeições. Sendo a Essência de Deus a sua Existência, Ele é perfeitíssimo. Mais ainda,
todas as perfeições das criaturas estão em Deus, não de modo unívoco, mas de modo
eminente, visto que a causalidade de Deus com relação às criaturas não é unívoca, como é,
por exemplo, a geração de um filho por seus pais. Assim, Deus não tem perfeições
corporais, porque não tem corpo (se o tivesse, seria limitado e composto). No terceiro
Artigo desta Questão ele discute o problema da semelhança entre as criaturas e o Criador.
Utiliza, sem nomeá-lo, o princípio “operari sequitur esse” – esse princípio foi muito
desenvolvido e explorado pelo tomismo – ou seja, o resultado de uma ação é sempre
semelhante, de algum modo, ao agente. (“O estilo é o homem” é um Corolário deste
princípio). A semelhança, diz o Santo, pode ser em graus (maior ou menor), em espécie, em
gênero. Mas a semelhança entre Deus e as criaturas não pode ser de nenhum destes tipos:
Deus não pertence a algum gênero ou espécie. A semelhança é portanto segundo alguma
analogia, pois tanto Deus como as criaturas são seres. Admitindo que as criaturas sejam de
algum modo semelhantes a Deus, ele afirma enfaticamente que de nenhum modo se pode
conceder que Deus seja semelhante às criaturas. Isto poderia parecer um jogo de palavras,
pois se A é semelhante a B, então B é semelhante a A. Mas a analogia aqui seria, por
exemplo, quando dizemos que a imagem (a fotografia...) é semelhante à pessoa, mas não o
inverso. Longe de um jogo de palavras, trata-se aqui de uma forte afirmação da
transcendência de Deus (embora S. Tomás não use, pelo menos aqui, este termo): de Deus
podemos dizer o que Ele não é, mas não o que é. Sintomaticamente, ele cita aqui, mais uma
vez, o Pseudo – Dionísio Areopagita.
Na Sexta Questão, S. Tomás trata da bondade de Deus, bondade sendo entendida aqui no
sentido ontológico: todo ser é bom, a bondade sendo a “desejabilidade”, o “bem” do ser.
Ou seja, Deus é o Sumo Bem, é disso que se trata aqui.
Na Questão seguinte, a Sétima, o Santo trata da infinitude de Deus. E observa –
característica de sua teologia marcadamente intelectualista, e não voluntarista – que Deus,
cujo poder é infinito, não pode fazer algo contraditório: não pode, por exemplo, fazer algo
ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. (Por incrível que pareça, uma que
outra escola teológica admite a possibilidade de Deus poder fazer coisas absurdas,
logicamente absurdas).
Na Oitava Questão, S. Tomás trata da presença de Deus nas coisas. E observa que Deus
não está “contido” nas coisas, mas pelo contrário, as contém. Para o leitor que tem alguma
familiaridade com o pensamento do Aquinate ou que já assimilou bem o que foi escrito
acima, esta afirmação (Deus contém as coisas) é um corolário inescapável. Deus está
presente nas coisas não como uma parte delas, mas como o agente está presente na coisa
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em que age. A ação de Deus nas coisas consiste em dar o ser a elas, (conservando-as na
existência). Não só, mas Deus é tanto mais íntimo às coisas quanto “mais ser” elas são.
Este princípio, enunciado como simples corolário óbvio do pensamento do Aquinate, foi
desenvolvido com profundidade, e de forma paradoxal, por Karl Rahner, um dos maiores
teólogos do século XX: Deus é tanto mais transcendente a um ser quanto mais imanente a
ele. Quanto à imanência (intimidade), já está dita por S. Tomás acima. E por outro lado,
quanto mais ser, maior a ação de Deus (dando o ser) e portanto maior sua transcendência:
creio que é assim que se deve entender o princípio de Karl Rahner.
A Nona Questão trata da imutabilidade de Deus. Trata-se de uma consequência do fato de
Deus ser perfeitíssimo (o que muda não é perfeito), de ser Ato Puro (ou seja, não está em
potência para coisa alguma). Este atributo de Deus é paradoxal para as nossas inteligências,
porque o que não muda está associado, para nós, à falta de vida, de dinamismo. Tal
paradoxo decorre daquilo: de Deus sabemos o que Ele não é. Dizer que Deus é infinito é
dizer que Ele não é finito. Assim também, dizer que Deus não muda, significa que Ele é
perfeito. Um quadrado perfeito não pode ser aperfeiçoado enquanto quadrado. Deus não
pode ser aperfeiçoado e portanto é imutável. Mas esta imutabilidade (e aqui o sumo do
paradoxo) é o auge da Vida, o auge do Dinamismo. Poderíamos talvez dizer que a Vida e o
Dinamismo em Deus ocorrem no nível da Trindade, as Três Pessoas Divinas? Estamos aqui
tocando o maior dos mistérios.
Na Questão seguinte, a Décima, S. Tomás trata da eternidade de Deus. Esta é definida,
segundo Boécio (aqui citado explicitamente) como a “perfeita e simultânea possessão da
vida interminável”. A eternidade é, pois, um “instante interminável”, não é uma sucessão
interminável (sem princípio e sem fim) de instantes, como se pensa usualmente. Se a
eternidade fosse uma sucessão interminável de instantes, Deus estaria na eternidade, lhe
seria subordinado. Na realidade, Deus é a Eternidade, a Eternidade é Deus.
Na Décima Segunda Questão S. Tomás aborda o problema da cognoscibilidade de Deus.
Deus é, em si, maximamente cognoscível, sendo Ato Puro (uma coisa é tanto mais
cognoscível em si, quanto mais em ato e menos em potência). Mas isto não significa que
seja maximamente cognoscível por nós, em virtude da limitação de nossa inteligência. S.
Tomás compara com o sol, que é maximamente visível, mas não pode ser olhado por nós.
Mas seria contra a fé, diz o Santo, afirmar que nunca poderemos ver a Essência Divina.
Com efeito, diz ele, conforme nos ensina a fé, a Vida Bem-Aventurada consistirá na visão
intelectiva da Essência Divina. Mas S. Tomás nota que esta visão intelectiva não pode ser
imediata, isto é, sem um auxílio especial de Deus, a “Luz da Glória”, que “conforta” (no
sentido de tornar forte) a inteligência humana para poder ver a Deus. Cita aqui o Salmo 36
(35), 10, na tradução da Vulgata: “na tua luz veremos a luz”. (As traduções modernas põem
o verbo no presente). E as palavras de 1 Jo 3,2 são inequívocas: “quando Ele (Deus)
aparecer, seremos semelhantes a Ele e o veremos como Ele é”. Mas S. Tomás, após afirmar
isto com a fé católica, observa que ver Deus não significa que o “compreenderemos”. Com
efeito, sendo a Luz da Glória finita, pois recebida por inteligência finita, é impossível que
um intelecto criado (finito) compreenda Deus. Explicando melhor em que consiste a Luz da
Glória, S. Tomás diz que o intelecto criado não pode ver a Essência de Deus, a não ser que
Deus, por sua graça, se una ao intelecto como inteligível pelo mesmo. No Quinto Artigo
desta Questão ele considera a seguinte objeção: sendo Deus visto por um meio, a Luz da
Glória, então não é visto na sua Essência. Responde dizendo que a Luz da Glória não é um
meio em que Deus é visto, mas sob o qual é visto. São Tomás dá assim uma solução à
aparente contradição entre o dado da Revelação – veremos Deus como Ele é – e o dado da
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Razão – o intelecto finito não é capaz do infinito. E não esqueçamos a outra vertente da
solução apresentada por S. Tomás: ver Deus como Ele é não é o mesmo que compreender
Deus. Compreender Deus, segundo S. Tomás (Artigo Sétimo desta Questão) significa
conhecê-lo perfeitamente. Mas conhecê-lo perfeitamente significa conhecê-lo
“infinitamente”, isto é, na sua infinitude, o que não é possível a um intelecto criado.
Acrescente-se ainda que na Summa contra Gentiles , lib. III, cap. 56, São Tomás ensina que
nenhum intelecto criado, vendo Deus, vê tudo que nele pode ser visto. Poderíamos talvez
dizer que vendo Deus “como Ele é”, não o veremos com a mesma “nitidez” com que Ele se
vê, ou ainda, com a mesma profundidade. Enfim, só saberemos disto e de muitas outras
coisas quando chegarmos lá...
Na Questão Décima Oitava trata da Vida de Deus. Depois de afirmar que viver compete
maximamente a Deus, enfrenta a objeção da mudança, que é própria da vida. Lembra que
nos seres inteligentes os atos de compreender são mudanças vitais. Em Deus existe o Ato
de entender, não vários atos, e nisto consiste sua Vida. Em Deus, o Existir, o Entender e o
Viver são a mesma coisa.
Na Questão seguinte, a Décima Nona, trata da Vontade de Deus. A primeira objeção que
discute é a da liberdade: se Deus quer as coisas eternamente, então as quer necessariamente.
Efetivamente, Deus quer necessariamente ser o que é, quer necessariamente a sua Bondade,
etc. Também quer necessariamente, por exemplo, que a soma dos ângulos de um triângulo
no espaço euclideano seja igual a dois retos. Ou por outras palavras, Deus não pode querer
o absurdo. Mas Deus não quer necessariamente o que é contingente, ainda que o queira
eternamente. Assim como entende tudo na sua Essência com um único Ato, assim também
quer todas as coisas que são, na sua Bondade, com um único Ato, Bondade aqui de novo no
seu sentido ontológico referido antes: desejabilidade. A Vontade de Deus sempre se
cumpre, diz o Sexto Artigo desta Questão e a objeção levantada a partir de 1 Tim 2,4, a
saber, “Deus quer que todos os homens sejam salvos”, é respondida, seguindo São João
Damasceno (um dos autores mais citados por São Tomás), distinguindo entre a “vontade
antecedente” e a “vontade consequente”. Trata-se de uma distinção que precisa ser bem
entendida, não se tratando de duas vontades da parte de Deus e sim com relação à coisa
desejada: Deus, respeitando a liberdade humana, não pode impedir que alguém prefira o
mal ao bem.
Na Questão seguinte, a Vigésima, trata do Amor de Deus. E começa citando logo 1 Jo 4,
10: “Deus caritas est” (Deus é amor), as primeiras palavras da Encíclica de João Paulo II.
Observa que o amor é o primeiro ato da vontade. Amar alguém é querer-lhe o bem. E Deus
ama todas as coisas, porque tudo que existe, enquanto tal, é bom e, portanto, objeto do
amor de Deus. No Segundo Artigo desta Questão responde à objeção, motivada pelo
Salmista (Sl 5,6): “Deus odeia os que operam a iniquidade”. Responde primeiramente com
o Livro da Sabedoria (Sab 11,24): “Amas tudo o que existe e não odeias nada do que
fizeste”. Santo Agostinho já havia ensinado que devemos odiar o pecado, mas amar o
pecador. São Tomás ataca o problema em nível mais profundo, teológico-ontológico: nada
impede que o mesmo ser seja amado segundo um aspecto e não amado segundo outro.
Assim, Deus ama os pecadores, enquanto são, enquanto existem, participação do Ser
divino. Enquanto pecadores, eles “não são”, o pecado sendo ausência de ser, ausência da
perfeição própria do ser humano e, neste sentido, não são amados por Deus. São Tomás não
considera, aparentemente, nem aqui nem em lugares paralelos pesquisados, a questão dos
demônios e dos condenados: Deus os ama? Creio que usando os princípios acima, temos
que concluir que Deus os ama enquanto seres, enquanto existem; não os ama, claro,
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enquanto pecam continuamente na rejeição ao próprio Deus. Vou mais adiante e faço uma
conjectura: se os demônios e condenados se arrependessem, Deus lhes perdoaria.
Entretanto, a Fé nos ensina que o inferno é eterno (no sentido aqui de que não terá fim) e,
portanto, o arrependimento deles não acontecerá.
Tratando da Natureza de Deus, São Tomás discorre ainda sobre vários temas que não são
considerados neste breve estudo, ou porque menos interessantes para os nossos
contemporâneos, ou porque, de certa forma, são corolários (mas muito bem desenvolvidos)
dos princípios fundamentais que procurei apresentar e discutir nestas páginas. O autor
destas linhas se consideraria bem “pago” se o eventual leitor se animasse a ir ao próprio
texto do Doutor Angélico. Este foi o excelente conselho que recebi no meu primeiro ano
dos estudos filosóficos do saudoso Pe. Carlos Beraldo: ler o próprio São Tomás é muito
mais proveitoso do que ler seus comentadores – que alias é o que estou sendo aqui...
Naquela época, mais de 40 anos atrás, os chamados tomistas estavam presentes,
abundantemente, nas Bibliotecas de instituições católicas, vários deles excelentes,
desenvolvendo e aprofundando o pensamento do Aquinate: Maritain, Gilson, Sertillange,
Garrigou-Lagrange, Rousselot, Marechal, Lonergan, etc...
Hoje S. Tomás está meio fora de moda, mesmo dentro da Igreja Católica, sua obra e a de
seus seguidores estão rarefeitas nas prateleiras das Bibliotecas. Foi o que me animou a
escrever estas linhas.
E segue uma relação de sites, incompleta, claro, sobre a obra e a vida de São Tomás; o
primeiro tem toda a obra do Doutor Angélico.
http://www.corpusthomisticum.org/ Corpus thomisticum (todas as obras em latim).
http://www.newadvent.org/summa/ Suma teológica (texto integral) em inglês com vários
links de citações da Biblia, do próprio São Tomás e de outros autores importantes.
http://www.nd.edu/Departments/Maritain/etext/gc.htm Summa contra gentiles (texto com
algumas partes resumidas) em inglês.
http://www.geocities.com/tomistas/quotations.htm#Existencia%20de várias citações de
São Tomás e de outros a respeito do seu pensamento em espanhol.
http://www.geocities.com/tomistas/metafisica.htm uma boa introdução à metafísica tomista
em espanhol.
http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/filosofia/Raz%E3o,%20Natureza%20e%20Gra%E7a
%20-%20Tom%E1s%20de%20Aquino%20em%20Senten%E7as.htm Estudo introdutório
e frases escolhidas de S. Tomás de Aquino pelo Prof. Jean Lauand (USP), em português.
http://www.beatrix.pro.br/educacao/aquino.htm Vida em português, com resumo do
pensamento e endereço de alguns sites.
http://www.mundodosfilosofos.com.br/aquino.htm Vida em português com resumo de seu
pensamento.
http://www.mundodosfilosofos.com.br/aquino2.htm Resumo do pensamento em português.
http://www.mundociencia.com.br/filosofia/aquino.htm Resumo de vida e obra em
português.
http://www.consciencia.org/medieval/aquino.shtml Vida em português
http://www.pucsp.br/~filopuc/verbete/staquino.htm “
“
“
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