O plano Aga Khan - Visão 6-4-06 - CEG

Transcrição

O plano Aga Khan - Visão 6-4-06 - CEG
Publicação: Visão
Jornalista: H.B.
Data: 6 de Abril de 2006
O plano Aga Khan
Rede social do príncipe ismaelita apoia projectos comunitários em Portugal
No que era antes Musgueira e outros guetos junto do aeroporto, aplicou-se o último grito em urbanismo, em
300 hectares -- a Alta de Lisboa, destinada a coabitar realojamentos sociais e classe média. Entre os prédios
a estrear, ergue-se uma tenda onde se convida a um jogo labiríntico. Para a direita vão aqueles que não
querem fazer nada, estando-lhes reservado um sofá e uma TV. Fim de linha. Os que seguem pela esquerda
são confrontados com um espelho de corpo inteiro e a frase fatal: «A solução está em si.»
Ali se reflectiu Conceição Maia, uma desempregada de 37 anos, com um bebé ao colo. Há menos de um ano,
era uma deprimida realojada da Musgueira Sul, resignada com a falta de segurança e de creches. Agora, faz
parte de um grupo de mães empenhadas em mudar o bairro, depois de ter sofrido um abanão dos técnicos da
Fundação Aga Khan, quando estes, em Novembro de 2004, começaram a apalpar terreno. O quadro não era
brilhante. Um inquérito do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa revelou indicadores
sociais que deixam a Alta de Lisboa muito longe das médias nacionais: a dependência de protecção social,
por exemplo, é quase quatro vezes superior.
Do mesmo inquérito saiu um alerta a vermelho para um certo grupo de rapazes que parava à porta de um
café e que dava mau ambiente. Os mesmos rapazes que, espicaçados pela equipa Aga Khan, organizaram
dois torneios de futebol numa escola onde dantes estavam proibidos de entrar. E depois uma improvável tarde
de música na Galeria Zé dos Bois para 300 convidados. Eles próprios formaram a banda de hip hop BQG
(Bairro Quinta Grande) e editaram um CD, um novo passo numa caminhada que vai acabar numa associação
juvenil: «Ainda nos vamos safar sozinhos», acredita Santo, 22 anos, um desempregado em vias de inclusão.
O peixe e a cana
É a segunda vida da Fundação Aga Khan, nascida na Suíça há quase quatro décadas, e instalada em
Portugal há duas, pela mão de uns 8 mil ismaelitas, na maioria chegados das ex-colónias - tão discretos que
os seus 20 projectos educativos no nosso país nunca lograram grandes atenções.
Mas nuns poucos pares de anos tudo mudou. A inauguração em 1998, pelo ex-Presidente Sampaio, do
Centro Ismaili, em Lisboa, um portento arquitectónico, com referências islâmicas e manuelinas, assinado pelo
indiano Raj Rewal e Frederico Valsassina, deu visibilidade à comunidade. E agora a Rede Aga Khan
expande-se, levando, pela primeira vez, projectos sociais ao Primeiro Mundo: Portugal.
Os planos que o líder dos muçulmanos ismaelitas, príncipe Aga Khan, idealizou para este canto ibérico
passam, numa primeira fase, pela integração de cerca de 15 mil habitantes da Grande Lisboa através do
K'CIDADE, um projecto que não admite lógicas assistencialistas, antes capacitando as comunidades com
instrumentos para melhorar a sua qualidade de vida. Em suma, a história do peixe e da cana... «Conseguimos
ser aceites», diz Nazir Sacoor, 38 anos, director-executivo da Fundação. «As pessoas perceberam que têm
de tomar a iniciativa, porque não vamos ficar para sempre.»
Em 2014, a Alta de Lisboa deverá atingir, entre outras metas, um mínimo de 70% dos residentes satisfeitos
com a qualidade dos serviços na junta de freguesia, centro de saúde, escolas e polícia. E metade das cerca
de cem organizações locais deverão então ser importantes no desenvolvimento do bairro. «Uma utopia», nas
palavras de Ana Bandeira, 43 anos, coordenadora comunitária da Alta de Lisboa.
Objectivos ambiciosos aplicam-se também a outras duas zonas do K'CIDADE: Mira Sintra e Ameixoeira. Se
falharem, a Fundação continuará mais tempo, comprometendo dinheiros públicos e europeus e parcerias que
começam em Belém e no Governo, passam pela Igreja Católica e acabam nas instituições locais. «O conceito
não é novo, a prática sim», afirma Pedro Cunha, 32 anos, director deste projecto replicável onde houver
bolsas de pobreza.
Influenciar e revolucionar
Chove copiosamente quando surge ao virar da esquina da rua o cortejo do poder, trazendo o ministro do
Trabalho, Vieira da Silva, o presidente da Câmara de Lisboa, Carmona Rodrigues, responsáveis de
multinacionais, empresários e um bispo católico. Em duas penadas, foi inaugurado um par de lojas do Centro
de Inovação Comunitária, na Alta de Lisboa, com a sua artilharia informática para que as instituições locais
carreguem informações online e onde os moradores poderão aprender novas tecnologias.
Horas antes, pelo Centro Ismaili, já tinha passado um corrupio de entidades - mais ministros, secretários de
Estado, deputados, autarcas, empresários, sociólogos, Santa Casa, Gulbenkian e ONG - para ouvir Roque
Amaro, 54 anos, economista do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, falar da
«revolução» do K'CIDADE. «Em mais de 25 anos de trabalho em desenvolvimento, nunca tive esta audiência
pública e privada», confessaria à VISÃO.
Nenhuma das entidades do projecto recusou a liderança da Fundação Aga Khan, mesmo sabendo que esta
«não segue agendas políticas», afirma Nazir Sacoor, e que, em última análise, acrescenta Roque Amaro,
«acabará até por questioná-las a partir da experiência no terreno».
O que a instituição está a aplicar nos três bairros da Grande Lisboa já fora testado de forma isolada em
Portugal. Mas, ainda segundo o economista, «graças à capacidade de lóbi, assente no prestígio do príncipe e
na vasta experiência da Rede no Terceiro Mundo, os órgãos públicos depressa ficaram disponíveis». Por
outro lado, a instituição «mexe-se bem no mundo empresarial», com pontas-de-Iança da comunidade ismaelita, como os irmãos Sacoor e a sua cadeia de vestuário, ou o dono dos Sana Hotéis. Depois, diz Roque
Amaro, acercou-se do poder político, e teve ainda «a inteligência de seduzir as figuras proeminentes da
Igreja».
Em Dezembro último, Aga Khan fez a sua sétima visita a Portugal, foi condecorado por Jorge Sampaio e
avistou-se com o cardeal-patriarca de Lisboa, com quem assinou um protocolo envolvendo a Igreja no
K'CIDADE. D. José Policarpo tem o príncipe em elevada conta, prezando «os seus propósitos nobres e positivos», não o vendo como uma ameaça evangelizadora ou um concorrente no apoio social, confidencia um
bispo católico. D. José já foi, aliás, visita do líder ismaelita na sua mansão em Aiglemont, nos arredores de
Paris. «Para eles, dinheiro não é problema», adianta o mesmo prelado.
O grande passo seguinte
Presente em mais de 30 países, a Rede Aga Khan tem hoje para cima de 64 mil funcionários, mais do que a
Microsoft. Apoiando comunidades rurais ou refugiados afegãos, centra o seu trabalho em territórios remotos,
como as montanhas da Ásia Central, onde ergueu uma universidade.
Em 2005, a Agência Aga Khan para a Micro-Finança juntou-se às oito existentes, envolvendo um orçamento
filantrópico anual de 300 milhões de dólares, a que se somarão os fundos das parcerias internacionais, a
começar no Reino Unido, Canadá e EUA. Todos os ramos da Rede têm fins não lucrativos, à excepção da
Agência para o Desenvolvimento Económico, que mantém participações nos media, indústria, aviação e
turismo, em 16 países com dificuldades em atrair investimento estrangeiro. As suas 90 empresas geram
lucros anuais de 1,5 mil milhões de dólares.
Ao longo dos anos, a Rede Aga Khan criou 187 centros de saúde, cinco hospitais e sete maternidades, além
de 300 escolas, do pré-escolar ao secundário, abrangendo 54 mil alunos em todo o mundo. E as áreas de
actuação alargam-se a horizontes cada vez mais longínquos, como Cabo Delgado, em Moçambique: «Era um
região que vivia com insegurança alimentar quando chegámos, em 2001, e que se tornou produtiva», relata
Karim Merali, 43 anos, director executivo da Fundação neste país.
Em Portugal, o K'CIDADE foi só o começo. Em 19 de Dezembro último, foi assinado por Aga Khan e pelo primeiro-ministro, José Sócrates, um protocolo em grande, que dá luz verde à Rede do líder ismaelita para
actuar com as suas agências em território nacional.
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«Claro que este tipo de parcerias nos interessa» comenta o ministro do Trabalho, Vieira da Silva. «Esta
organização teve a coragem de juntar o Estado, a sociedade civil e as empresas para combater a pobreza e a
exclusão social.» As áreas de actuação específicas estão a ser preparadas pelo Governo, que ganhou a
corrida a outros concorrentes: «Muitos países gostariam de assinar acordos com sua alteza», nota Nazim
Ahmad, 63 anos, presidente da Fundação em Portugal, também ele condecorado por Sampaio, pelo seu
trabalho com a comunidade ismaelita desde que partiu de Moçambique: «O passado nas ex-colónias pesou.»
E voltará a pesar, já que o protocolo celebrado com Sócrates prevê que o nosso país seja rampa de
lançamento para os PALOP.
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