Dos jovens iracundos aos novos rebeldes 10 teses sobre o ciclo de

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Dos jovens iracundos aos novos rebeldes 10 teses sobre o ciclo de
Dos jovens iracundos aos novos rebeldes
10 teses sobre o ciclo de protestos no Brasil
Angel Calle Collado
Autor de La Transición Inaplazable. Los nuevos sujetos políticos para salir de la crisis (Icaria,
Barcelona, 2013)
Artigo Original en Revista Desinformémonos:
http://desinformemonos.org/2013/11/brasil-de-los-jovenes-iracundos-a-los-nuevosrebeldes/
O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro dedicou o seu livro: Os dilemas da
América Latina aos “jovens iracundos”, que surgiram nos anos 70, com duas
contribuições radicais no campo da política. A primeira delas foi contestar a
própria esquerda, mas não para defender o sistema vigente “e sim para
combatê-lo mais eficazmente”. A segunda era que estas “novas safras
revolucionárias” aprenderam que podiam “estar em desacordo, e mesmo assim
estar juntos”. O recente ciclo de protestos nas distintas cidades do Brasil
evidencia que os “jovens iracundos” voltaram e agora, com toda certeza,
renovados.
É bem certo, que o contexto é diferente, o muro de Berlim foi derrubado,
surgiram pontes sociais que facilitam o uso da internet em escala mundial. A
esquerda chegou ao poder institucional no Brasil e transformou significativos
cenários, como o da pobreza extrema do país, principalmente através de
programas assistencialistas. E com isso acabou trocando “emancipação” por
“inserção” dentro do marco da globalização neoliberal. O Brasil poderá chegar
a ser uma “potencia geopolítica”, como afirma o ex-presidente Lula, no entanto
não logrará este êxito sem rever algumas subordinações internas e externas.
As elites nacionais consolidam seu poder através do crédito público do BNDES –
Banco Nacional de Desenvolvimento, além disso, os empreendimentos de
infraestrutura (estradas, dutos, portos, barragens, etc.) são construídos para
fortalecer a criação de grandes conglomerados industriais (alimentação,
petroquímica, metalúrgicas, telecomunicações) e exportadores de matérias
primas (soja e petróleo), setores estes que vão consolidando sua hegemonia
pela América Latina1. Contudo, todos esses investimentos não alcança o bem
estar da classe trabalhadora, nem em seus salários ou em seus direitos sociais,
nem esta se identifica ou participa das políticas expansionistas, pois um maior
acesso ao consumo cresce a custa do endividamento das famílias e do
sucateamento dos serviços públicos como saúde e educação. Dessa forma,
como acontece em quase toda América Latina, o extrativismo se impõe como
motor da política energética e agroexportadora, mas dependente das
necessidades materiais de países como China, do consumo de carne dos países
industrializados que demandam soja e pasto para suas criações de animais ou
de biodiesel como fonte de reserva internacional, frente ao esvaziamento dos
poços petrolíferos. A isto, acrescentamos o peso do pagamento das dívidas
internas e externas que existem em países como o Brasil, que chegam a serem
superiores a 40% do orçamento federal.
Não é de se estranhar, que os (novos) jovens iracundos contestem também o
papel do núcleo dirigente do PT, como firme aliado das elites políticas1
Ver livro de Raúl Zibechi, Brasil Potencia: entre la integración regional y un nuevo imperialismo, Desde abajo
(Bogotá) y Baladre-Zambra (Málaga), 2012.
econômicas. O que unido aos frequentes casos de corrupção que afetaram aos
altos cargos da nação, fez com que o descontentamento buscasse novas vias
de canalização, superando o ciclo político (as manifestações) surgidas no Brasil
nos anos 80. Fala-se de “democracia real”, como também, assim realiza o
movimento 15M no estado Espanhol, que não restringem dita democracia a
eleição de representantes nos parlamentos ou em um partido determinado. A
democracia esta e se conquista em muitos lugares. O fenômeno mediático de
Mídia Ninja (Narrativas independentes, Jornalismo em Ação) ilustra muito bem
isto: “jornalismo cidadão” para “defender a democracia”. Também, as formas
de organização de protestos do movimento Passe Livre, defendem um
funcionamento “horizontal, autônomo, independente e apartidário” em cada
cidade. Através da campanha “Cadê o Amarildo?” se investiga e se acusa aos
diferentes governos e representantes policiais a respeito de todos os
“desaparecidos da democracia”, como é o caso de Amarildo na favela da
Rocinha no Rio de Janeiro.
A sucessão de manifestações populares que ocorreram em 2013 no Brasil, no
seu ponto mais alto, não representou só um ciclo de protestos, de demandas
concretas e ações pelas ruas. Há toda uma revolução nas formas de fazer e
entender a política, nas próprias articulações entre organizações políticas e
cidadãs. Trata-se, ao meu entender, de um ciclo de mobilizações mais amplo.
São três os gritos que se sobrepõem, com conexões com outras vozes
provenientes de América Latina e do resto do mundo. Em primeiro lugar
aparece com ecos globais, o grito de dignidade, dos direitos sociais e (auto)
governos em uma sociedade onde (mega) cidades que aumentam suas
dinâmicas de desigualdade e exclusão. Quiçá, os Zapatistas sejam os que
melhores simbolizam este grito com seu lema “Os rebeldes se buscam”, que
vem tendo eco em muitas das mobilizações globais do século 21. No Brasil
temos o grito dos excluídos que a cada setembro vem convocando (este ano
com mais repercussão social) aqueles que não têm uma parte do bolo do
“Brasil potencia”, ou aqueles que não estão de acordo com a construção desta
“potencia neoliberal”. Assomando-se a isto, estão também, as importantes
mobilizações realizadas pelos professores em defesa da escola, como exemplo,
as 50.000 pessoas que apoiaram aos professores em defesa de uma educação
pública, na cidade do Rio de Janeiro no dia 7 de outubro.
Este grito é compartilhado com o grito de direito ao território, mais presente
em outros países. Um caso mais recente e pragmático ocorreu em Colômbia,
nos protestos campesinos de agosto e setembro de 2013 que paralisaram o
país, demandando entre outras questões, a revisão do tratado de Livre
Comércio com Estados Unidos e a constituição de áreas de reserva campesinas
para orientação de soberania alimentar e para os sistemas agroalimentares
locais. Nas ultimas décadas assistimos ao auge dos movimentos de base sócio
comunitária, como os próprios zapatistas, a fortaleza dos movimentos “sem
terra” ou os de agricultores familiares que formam parte da via campesina, as
áreas indígenas de autogoverno conquistadas em Bolívia, Colômbia e
Venezuela. No entanto, as cidades também fazem parte do território e estas
devem democratizar-se ao invés de serem focos permanentes de exclusão. E
daí que, “tarifa zero” é mais que uma reclamação de transporte público, se
converte como eles e elas afirmam: “O MPL deve fomentar a discussão sobre
aspectos urbanos como crescimento desordenado das metrópoles, relação
cidade e meio ambiente, especulação imobiliária, a relação entre drogas e
violência, e desigualdade social”.
Finalmente, e aqui se incorporam totalmente as “novas camadas”, na
atualidade mais rebelde que revolucionário, o direito de decidir sobre questões
que nos afetam e que encontram ressonância em jovens acostumados a
palavras como “eleição” ou “liberdade”, que tem nas novas tecnologias a
possibilidade de construir redes de afinidade sem organismos centrais pelo
meio e estão sendo escutados em outras partes do mundo. É o grito de
radicalização da democracia, que também atravessam aos outros gritos (por
exemplo, as demanda de governo, gestão da democracia nas cidades,
conquista de direitos básicos: de soberania alimentar, de economia solidaria,
de cooperativismo nas fábricas e no campo, de gestão ambiental de território e
bens naturais, etc.), que hoje estão dando lugar aos protestos dos novos
movimentos globais, exemplificado pelo já citado movimento 15M espanhol,
pelas revoltas cidadãs islandesas frente aos ajustes neoliberais, no “Yo Soy
132# em México, na emergência de partidos baseados em assembleias como o
movimento 5 estrelas em Itália, o “Y’em a marre” (Ya basta!) em Senegal.
Além dos protestos, estes novos movimentos globais são à base da
constituição de “novos rebeldes” que como veremos a seguir, que juntamente
com redes mais clássicas também enfatizam a construção de outras
sociedades. Para isso defendem a ocupação de ruas, dos meios de
comunicação, das formas de produção, das formas de economia solidárias, dos
mercados locais (agroecológicos) e etc. Os novos rebeldes protagonizam
fenômenos menos visíveis, porém evidenciam o gosto pela diversidade, pela
revolução “vinda de baixo”, do politico mais cotidiano e desde o protagonismo
social. Nisso se parecem aos “jovens irancundos” de antes e da atualidade, que
se diferenciariam na menor orientação partidária vanguardista e na menor
presença de representantes políticos ou simbólicos, que aspiravam, a partir da
década de 60, figuras como Che Guevara, a própria revolução cubana ou as
insurreições foquistas de movimentos guerrilheiros em América Latina.
Dessa forma, os “jovens iracundos” voltaram se renovaram e buscam renovar
a política (o poder instituído) desde a política (social, do poder exercido no
cotidiano). Mas, até que ponto essa lutas são “globais”? E no Brasil, que tipo de
relações estes novos protestos mantém com as novas formas clássicas de fazer
política? Que papel, destinamos a atores como o chamado Black Block neste
ciclo de mobilizações? Qual é o potencial destes novos sujeitos políticos para
uma mudança real? Ao fio das reflexões da introdução, ofereço aqui algumas
teses.
1.
Os novos “jovens iracundos” formam parte dos “novos movimentos
globais”.
As características formuladas por Darcy Ribeiro são hoje aplicáveis a
fenômenos recentes como o 15M na Espanha, os “indignados” turcos ou as
convocatórias surgidas desde Yo Soy 132# em México. O protagonismo social
nas ruas (antes de qualquer bandeira) está presentes em todos esses países.
Os rebeldes se buscam e caminham perguntando, dizem os zapatistas.
Consequentemente, estes jovens, em colaboração com os desafetos da
democracia autoritária e das transformações vindas dos partidos verticais, se
buscam para identificar as demandas sociais a partir de uma radicalização da
democracia, visível em suas formas de organização (extremamente horizontais,
formando assembleias, evitando representantes dentro do possível) e em seus
protestos para pedir uma democratização das relações sociais em seu
conjunto. Estes novos movimentos se tornam “globais”, já que: i) recuperam
desafios que tem que ver com o sistema em seu conjunto, sendo a
radicalização da democracia seu substrato e consequência; ii) tem uma
vocação planetária em suas formas de expressão, em suas criticas
ambientalistas, no internacionalismo de suas lutas; iii) constroem com
facilidade, lutas globais a partir de demandas pontuais que tem a ver com
necessidades básicas da população: educação e saúde publicam; segurança e
soberania alimentar; direito de expressão política; críticam do autoritarismo
dos governos, políticas e meios de comunicação.
2.
O Brasil inicia um ciclo político próprio que fecha o ciclo nascido nos anos
80 com a esquerda mais clássica.
Os protestos no Brasil se nutrem do presente. Existe uma janela política que
inspira protestos e que continuará aberta nos próximos anos, que está
relacionada com a imposição de investimentos aos empreendimentos da copa
mundial de 2014 e das olimpíadas de 2016. Tais investimentos estão longe de
combater as desigualdades sociais, ao contrário, as intensificam. De um lado, a
especulação imobiliária e o redesenho da cidade, não favorecem aos mais
pobres, que tem que buscar novas periferias, novas favelas, como no caso do
Rio de Janeiro. Do outro lado, desviam fundos da área social para construção
de uma “marca” Brasil, que para tal, também se pode requerer um
ordenamento territorial e policial, como nos processos de “pacificação” das
favelas, que é uma das ações que tornou possível, lançar essa marca simbólica
de “país potencia” que nada na abundância e não na desigualdade.
Mas, existem outras razões, que tem mais a ver com um passado recente.
Jovens e não tão jovens sentem que um ciclo político nascido nos anos 80
tenha chegado ao seu limite. O final da ditadura foi acompanhado pela
ascensão de organizações como PT, CUT, e MST, além de outros atores. No
entanto, a bandeira de emancipação começa a não estar tão presente nos dois
primeiros protagonistas. As políticas, primeiro de Lula e depois da Dilma,
tiveram como objetivos, obter gestões melhoradas, para tanto, usou da criação
de programas sociais conjunturais contra a fome e pobreza, ou invés de
modificar as estruturas que reproduzem estas condições. Além do mais,
promoveu a inserção do país como “potencia”, através de “campeonatos
mundiais”, da presença estratégica de suas multinacionais nos países ao seu
entorno ou em África no campo da globalização neoliberal. Não há critica
(excessiva) em relação a este projeto político do PT e a sua evolução desta
forma nestes últimos anos. Os protestos no Brasil, então, supõem uma
contestação destas práticas e uma busca por mudanças no ciclo politico: é um
autentico “SãoPaulaço” 2 .Um exemplo similar e inaugurador de critica frente ao
neoliberalismo na América Latina foi o “Caracaço”: existe um projeto que não é
popular e não esta legitimado socialmente. No entanto, os protestos
brasileiros, ao contrário dos que os mexicanos e os da Espanha, não estão
marcados (ainda) pelo “saiam todos”, ao estilo dos panelaços argentinos de
2001. A crítica e as propostas se mostram como características diferenciais do
2
Ver artigo Entre o “SaoPaulaço”, o parque Gezi e o 15M: variações dos novos movimentos globais
em
Brasil, pois são mais articuladoras, menos propensas a uma “guerra de
guerrilhas”, a um desafio e a um questionamento mais amplo das autoridades
governamentais. Assim poderia ser o caso dos protestos nas cidades e
comunidades espanholas, marcadas por culturas “locais”, como o nacionalismo
periférico, o anarquismo, as correntes libertárias ou a credibilidade nas
instituições mais próximas e não das distanciadas como a União Europeia, hoje
refém da elite financeira neoliberal.
3.
O Black Block constitui uma ferramenta de ação que se move de outros
protestos, mais não constituem o coração das novas “safras revolucionárias”.
Efetivamente, nos recentes protestos ocorreu midiaticamente uma
sobreposição dos grupos que se autodeterminaram como Black Block. De uma
parte há a necessidade das elites de fazer com que os “iracundos” apareçam
como geradores de “caos”, apesar de a violência ter sido sempre “simbólica”
(objetos e não pessoas). O mesmo ocorreu na cumbre “antiglobalização”,
vivida no final dos anos 90, particularmente desde os protestos de 1999 frente
à Organização Mundial do Comércio, em Seattle (Estados Unidos). Isto em
parte também, pela novidade e efervescência manifestada pelos seus
integrantes.
No entanto, como particularidade brasileira, os adeptos do Black Block
manifestaram estarem mais identificados com táticas de protestos autônomos,
de ações sobre símbolos capitalistas, que com identidades que os colocassem
como herdeiros de tradições de autonomia política, como ocorre na velha
Europa. Essas tradições de autonomia política ou social resgatam espaços de
socialização e propostas ideológicas provenientes do anarquismo na Espanha
ou da autonomia dos trabalhadores na Itália, os quais buscam fundar outros
mundos, partindo de práticas de liberdade individual, mas antes de tudo, de
cooperação social, o chamado “apoio mútuo”. O Black Block europeu sempre
esteve próximo, mesmo de forma geral, a estes protestos sociais, tanto em seu
discurso, como ao mesmo tempo, na articulação de seus protestos
“simbólicos”, por meio de ataques aos bancos e centros comerciais. Grupos
anarquistas, centros sociais ocupados ou coletivos de autogestão de
trabalhadores são referencias significativas em países mediterrâneos e na
Alemanha. Ao mesmo tempo, o que os distanciam nestes mesmos países de
outras correntes de autonomia, como as experiências de anarcosindicalismo
(mais enfocadas na construção do “poder popular” a nível social) ou das
iniciativas de democracia libertária (onde a democracia direta ou mais radical
se faz mais presente como sinal de identidade de suas propostas de
transformação sociocultural). Neste sentido, o 15M no estado espanhol bebe
mais destas correntes libertadoras que de um anarquismo clássico.
Se o Black Block obteve todos os olhares, em minha observação, houve outros
espaços mais relevantes para entender esses ciclos de protestos. O
descontentamento entre a população não encontrou formas de manifestar-se
através das “velhas” ferramentas. Voltam-se, então a se ver discursos e
cenários já protagonizados por esses jovens (e não tão jovens) nas
convocatórias “Occupy”, que tiveram repercussão nas diversas cidades
brasileiras. Sem dúvida, foi o movimento passe livre que semeou as demandas
e as condições organizativas dos protestos, a raiz do êxito de suas
reivindicações em cidades como Porto Alegre e, consequentemente da
repressão contestada em São Paulo.
O descontentamento é global, não conjuntural: o Brasil é um país emergente
no qual não emergem nem a democracia nem os direitos sociais.
Quando me aproximei dos protagonistas destes protestos para entrevista-los,
estes
mencionaram
muitos
outros
fatores
que
constituíam
o
descontentamento. Já os movimentos por moradia, como na Espanha “V de
Vivienda” ou posteriormente a Plataforma de Afetados pelo crédito de moradia,
ajudaram a criar um clima de perda de direitos sociais que eclodiram no 15M.
As diferenças entre os países são obvias. Nos países centrais, se tratam de
preservar um estado de bem estar e possibilitar outras formas de democracia,
dado o autoritarismo crescente das elites neoliberais. No Brasil se trata da
construção de direitos, quando o país está direcionado para construção de
estruturas da copa do muno e posteriormente das olimpíadas, isto quando os
mortos, e um regime democrático superam, por exemplo, as cifras próprias dos
enfrentamentos armados de uma guerra como a da Líbia. No entanto, aqui
também há diferentes cidades que oferecem diferentes suportes. Dessa
maneira, no Rio de Janeiro os protestos de enfrentamento ao governador
Cabral, ou também em outras cidades contra os gastos com a Copa do mundo,
foram à ante sala da grande explosão de pessoas nas ruas no dia 17 de junho.
Da mesma maneira, em outras cidades se destacaram outras lutas urbanas
(“uma periferia ativa”) coma as protagonizadas pelas favelas e o MTST em São
Paulo. As ferramentas de “ocupar as ruas” de forma autônoma e frente às
políticas “globalizadoras” estavam já sendo moldadas no Brasil, anos antes de
2013. Nos novos movimentos globais (globais por internacionalistas, encaixam
as múltiplas necessidades básicas na busca de uma radicalização democrática
do sistema, incluindo os partidos) não são “espontaneistas”, mesmo que, seu
modo de operar se conceda grande peso e criatividade a reinvenção de formas
de fazer política, desde o protagonismo social.
Mais que jovens iracundos, são “novos rebeldes”: constroem-se ideias e
práticas para uma sociedade alternativa.
De forma menos visível, tanto para os grandes meios como para a grande
parte da esquerda clássica, existem uma serie de iniciativas sociais que vão
penetrando nas ideias resgatadas por Darcy Ribeiro: criticar a esquerda, para
combater o sistema social. A crítica se dirige as construções alternativas a
partir de um emaranhado de poderes que atuam num sentido contrario ao da
emancipação das pessoas e comunidades: um capitalismo que quebra limites
ambientais e sociais para nossa subsistência, um patriarcado percebido de
forma crescente como autoritarismo e uma homogeinizaçao cultural
segregacionista e anglosaxona (as zonas definidas como fora da “barbárie”
pelos centros “civilizados”, segundo Boaventura de Sousa Santos 3).A tecnologia
se tornou, em partes, aliada deste mundo financeiro depredador, que deixou de
ser “convencional”, que diria Ivan Illich nos anos 70, para construir impérios de
dominação com muita capilaridade, bem inseridos no cotidiano: desde o
consumo globalizado, até a repressão em todo espaço publico suscetível de
mercantilizar-se, passando pela educação cultural em estilos de vida
competitivos e insustentáveis. É por isso que a contestação, especialmente
entre os jovens “iracundos”, esta tomando como bandeiras, as práticas de
economia solidárias mais contestáveis e favoráveis aos processos de
3
Una epistemología del Sur. La reinvención del conocimiento y la emancipación social, México, CLACSO y
Siglo XXI, 2009.
cooperação social: fundos comunitários, fábricas ocupadas ou projetos de
controle territorial por parte de comunidades excluídas, a luta por soberania
alimentar (mercados agroecológicos, cooperativas de produção e consumo) ou
a construção de meios de comunicação e cultura comunitários (em bairros,
comunas, favelas , assentamentos rurais), etc. Estes fenômenos que atraem na
atualidade aos “jovens iracundos” é identificável tanto no Brasil como na
Espanha. Como ocorria nos anos 70, criticam a sociedade consumistaprodutivista, que não dá a felicidade. Nesse sentido, se aproximam aos novos
movimentos sociais (ecologismo, feminismo, autonomia política, direitos de
minoria). No entanto, em sua contestação sistêmica (impugnando a política
autoritária, as instituições capitalistas, a insustentabilidade global) se tornam
irmãos ao movimento de trabalhadores, ao mesmo tempo em que, na América
Latina ressoa neles os ecos sociocomunitários próprios de cada país. Assim, tão
abertos, caminham sem projeto unitário, por enquanto, porque “caminham
perguntando” como diria os zapatistas.
6. Os novos rebeldes revisitam a pedagogia de Paulo Freire.
Já estão ocorrendo em Brasil algumas assembleias de articulação entre
organizadores populares, em uma linha não acompanha as clássicas
plataformas de esquerda ou dos recentes fóruns locais. Tomando como
exemplo
a
Assembleia
Popular
Horizontal
de
Belo
Horizonte
(bh.assembleias.org), lemos que “era necessário um espaço espontâneo,
aberto e horizontal de debate que permitisse o levantamento das
reivindicações populares e a organização da pluralidade de vozes de forma
coordenada para obter resultados concretos”. Os ecos do 15M, como afirma um
militante, em relação a metodologias e formas de participação, me permite
afirmar a existência de uma cultura política por de trás dos novos movimentos
globais4. Nesta linha situaríamos também, organizações plurais e assembleias
como Levante Popular de Juventude.
Considero, portanto, que autonomia, redes horizontais e protagonismo social,
serão sinais de identificação das futuras mobilizações. E o serão por estas
dinâmicas emergentes, mas também pelo acervo sócio comunitário que
constituem uma referencia da vida ativa e da política do Brasil. A pedagogia de
Paulo Freire, o sentido territorial de algumas lutas (MST, MPA, Movimento dos
Atingidos por Barragens, quilombolas, grupos indígenas em defesa de seu
território, etc), a tradição emancipatória sócia comunitária ( e não a simples
“cordialidade” brasileira) dos anos 60 e 70, junto com a presença de
movimentos afro, campesinos e indígenas, são algumas das chaves que nos
explicarão também o porquê desta busca a partir de ações coletivas e “desde
abaixo”. Neste sentido, Brasil ou México realizam outras contribuições frente as
matrizes mobilizadoras de 15M espanhol, as quais são mais individuais e
libertarias, mais dirigidas em curto prazo que a construir processos de maior
alcance. Em todos estes casos, o conceito de “dignidade”, na política e na
economia, serve-lhes para irem conscientizando-se e construindo mais redes
dialógicas. Estes jovens iracundos construíram “imensas conversas” na parte
da sociedade que ficou de fora da agenda política, incluindo da esquerda, como
aquilo que entendemos por democracia, que em diversos lugares se encontram
presas a armadilhas; ou como enfrentar de forma local e global aos problemas
4
Leer artículo de Bernardo Gutiérrez “Las asambleas populares reinventan la participación política n Brasil”,
[visitado el 30 de octubre, http://www.eldiario.es/internacional/asambleas-populares-reinventan-participacionBrasil_0_184782265.html]
ambientais de alcance planetário.
7. Os novos rebeldes, ainda com grandes limitações, falam de processos
políticos, antes de projetos partidários.
Se nos anos 70 as ideias dos jovens iracundos se prendiam às revoluções
imediatas, trazida em muitos casos das mãos dos novos partidos, os novos
rebeldes parecem reconhecer que se trata de um processo mais complexo,
onde os partidos são ferramentas e não as peças centrais do tabuleiro politico.
Jovens e não tão jovens estão se organizando de forma “apartidária”. Como
afirmava um ativista: “o movimento está nas ruas, nas escolas, nos bairros”, só
que “não pensamos em um modelo pronto, acreditamos que é um processo
coletivo, tanto que trazemos isso para nossa própria organização” 5. Suas lutas
ambientais, feministas, anti-capitalistas e “por um mundo em que caibam
muitos mundos” (retomando ao discurso zapatista) são já expressões desses
modelos, que sem duvida serão mais abertos a outros focos de poder, que de
forma geral se centraram, nas ideologias do século XX. E suas práticas terão
que transformar-se mediante ao calor destas reivindicações, de suas propostas
de vida e da utilização de uma tecnologia que gere novas formas de
vinculações sociais pelo mundo inteiro.
O mais preocupante para valorar as limitações destes novos movimentos é sua
tendência de buscar “somas” e não “processos sociais”. Defino como a
“política do e” como essa cultura política que busca a diversidade, os outros e
outras, a construção a partir da complexidade. O 15M é um exemplo dessas
formas de agregação cidadã, como também, em grande parte, os protestos no
Brasil. As pessoas foram as ruas com seus cartazes expressivos e com atitude
desconfiada, por não dizer beligerante, a respeito daqueles que portavam
bandeiras. Este fato é positivo, pois os próprios protestos “dá voz” aos
descontentes, é uma mostra de uma “ágora física” que se mescla com “ágoras
virtuais” que vão fortificando muitos protestos. Para um ativista destas
mobilizações, com experiência em organizações sociais, essa foi a chave:
“justamente porque eles fizeram de outro jeito, sem bandeirinhas, animando a
expressão de cada um, isso fez com que as pessoas irem para rua”. No
entanto, em algumas ocasiões esta capacidade de atração se detém aí.
Individualidades que se unem e logo deixam de relacionar-se. Critica
expressiva, mas não uma insurgência social. Criação de afinidades, mas não de
construção de projetos alternativos vitais. Ressoam aqui, essencialmente, os
ecos de uma sociedade “líquida” (dita por Zygmunt Bauman), muita assimilada
nas formas de relacionamento do Facebook. Esta dinâmica também pode ser
visualizada na forma on/off de participação. Sujeita a apoios pontuais. As
exceções não são minoria, porém, como pode ser demonstrado há
organizações mais estáveis e de referencias como o Movimento Passe Livre,
que convocava novamente em outubro de 2013, uma semana de luta pelo
transporte público, também como “meio de construção de outra sociedade”.
Nem tudo são boas noticias. A “política do e” (mais agressiva, em forma de
assembleias) atraem a atenção dos mais jovens, frente a “política do ou”
(tradicionalmente, mais sectária, verticalizada na prática). Contudo, esta pode
se transformar facilmente em “líquida”: aparece em ocasiões onde as
contestações são mais expressivas na forma individualizada que as propostas
coletivas de disputa do poder, no cotidiano (o politico) e na forma mais
5
Ver número especial dedicado a este ciclo de protestas en la revista Caros Amigos, n. 196
institucionalizada e mediatizada (a política).
8. Existe uma dificuldade para construir alianças e articulações sociopolíticas
no contexto de dispersão da esquerda e da fragmentação de vínculos sociais
Não cabe duvida que no contexto brasileiro, muitas organizações do “projeto
dos anos 80” vão propor rever suas bases e formas de ação social. O
sindicalismo dos professores mexicanos exibe hoje formas de contestação que
saltam as barreiras clássicas dos sindicatos de cogestão das políticas
neoliberais. Isto está longe de ocorrer na Espanha. E no Brasil? No entanto,
desde organizações rurais campesinas e indígenas, penso que o objetivo está
em construir a democracia a partir da soberania alimentar e dos territórios,
como exemplificam neste ultimo caso os protestos campesinos em Colômbia.
Aí está ocorrendo protestos que reúne uma demanda fortíssima de
autogoverno e sustentabilidade em diferentes territórios, como a reivindicação
de uma extensão de área de reserva (afro, indígena) ante aos próprios
campesinos. Trata-se de produzir a partir de sistemas agroalimentarios locais e
agroecológicos. Mas, isto também cria sinergias com o entorno urbano e com
setores mais jovens, fruto das práticas dos novos movimentos globais. Assim,
no dia 26 de agosto, diversas cidades viram como centenas de pessoas saíram
para as ruas e praças no que ficou conhecido como “panelaço” 6 solidário,
depois de oito dias de luta campesina.
Nem sempre é fácil esta criação de sinergias entre diferentes culturas e
demandas políticas. Por exemplo, no Brasil, durante os protestos de junho,
houve repertórios de ação que sucederam no tempo e que de alguma maneira
se aproximaram das demandas das favelas com a dos novos jovens
“iracundos”. Tal seria o caso da campanha cadê Amarildo? Ou determinadas
lutas por moradia e a ocupação de edifícios na cidade. Porém, a sucessão de
repertórios esta longe de gerar sinergias entre estas novas redes e os protestos
já consolidados no Brasil de desigualdades. O território como espaço a ser
defendido de forma ambiental e social, aparece como estratégia frente às
formas de poderes capitalistas que tentam apossar-se de ecossistemas e
mercantilizar vínculos sociais7. As lutas pela defesa dos “bens comuns”, sejam
ambientais ou os que permitam a cooperação social (espaços públicos,
tecnologia social e autogoverno), serão uma referencia de práticas para
aqueles que queiram trabalhar a partir da interculturalidade e do dialogo entre
rebeldes.
9. Esta nova esquerda é rebelde, porém, será também insurgente?
Esta “nova esquerda” que transcende a “esquerda clássica” ainda está por
superar, como vemos nas ruas, dos momentos insurgentes dos protestos as
dinâmicas insurgentes do seio da sociedade. Os obstáculos estão aí. A questão
é de escala, é o de passar do político para a política: a dificuldade de construir
iniciativas que possam ir além das “ilhas”, que possam ser referencia para
população na hora de satisfazer as necessidades básicas. Outro assunto é a
relação conflituosa com o estado. Em geral, sobre tudo no Brasil, não se
reprova, se não, que se questiona que “o apoio publico não sirva para a
6
7
Aqui me resulta estimulante conectar estas dinâmicas com as observações de Harvey sobre a necessária
constituição territorial do capitalismo, de Silvia Federicci sobre o “cercamiento territorial” das mulheres como base da
acumulação primitiva do capitalismo, ou os protestos de numerosas ecofeministas que situam o poder moderno com a
dissociação da vida (humana, do planeta quanto habitat) como centro da reprodução social.
autonomia”, como me dizia um cooperado.
10. Os novos rebeldes propõem novas perguntas, não velhas respostas, essa é
sua principal contribuição: as discussões sociais mudaram.
Todavia levarão alguns anos para que gasto como os da Copa do Mundo sirvam
de motivo para protestos, porém e depois? Idealmente, a insurgência nas ruas
dos “iracundos” deveriam consolidar processos nos quais os “novos rebeldes”
praticam suas formas de vida e suas formas de fazer política. “Agora é
momento de se organizar, depois das passeatas”, indicava um ativista. Mas se
trata de uma organização diferente, inspirada como digo, nessa radicalização
da democracia tanto de forma interna (organização) como de forma externa
(demandas) dos protestos. E ao mesmo tempo em que a contestação nas ruas
se consolida, seria necessário acompanhar esta construção com a difusão de
ferramentas de participação e de alternativas econômicas e culturais para o
conjunto de excluídas e excluídos. Todo um objetivo, que não só compete aos
“novos rebeldes”. Precisamente, eles e elas veem evidenciando que temos que
refazermos muitas perguntas, ao mesmo tempo, que construímos
emancipações, antes de agir automaticamente ao compartilhar ou impor
respostas à sociedade. Trata-se, de dilemas próprios de movimentos e espaços
cooperativos, que queiram construir democracias emergentes, de baixo para
cima.
Concluindo: os jovens iracundos voltaram para impugnar a velha política e os
poderes autoritários estabelecidos. Quiçá o façam sempre, voltar e voltar. E
sempre que voltam modificam o contexto. As lutas de hoje, são impossíveis de
compreender sem as suas contribuições, geradas nas décadas de 60 e 70,
como uma crítica a partir da autonomia, a concepção ampla e critica do poder,
a denuncia de práticas patriarcais no sistema econômico, porém, também às
próprias organizações sociais, a consciência ambiental e aos limites do planeta,
etc. Daí, sua relevância. O mundo capitalista esta limitado pelo uso de recursos
e por sua criação permanente de insatisfação social, o que não que dizer que
vá desaparecer a partir de si mesmo (dentro).
Como justifiquei no livro La Transición inaplazable, existe a possibilidade de
uma transição dolorosa até campos próximos do fascismo sociais com o
governo de elites atrincheirada em suas comunidades, apropriando-se dos
bens de todos e todas. Os novos sujeitos políticos, estes novos rebeldes,
herdeiros dos jovens iracundos, estão propondo outras formas de fazer política
e outros tipos de sociedades. Sugerem uma transição humana. Esta “nova
esquerda” se está aproximando a centralidade de alguns problemas de forma
complexa, realidade extremante longínqua para processos revolucionários no
século passado: construir sociedades a partir da diversidade, do protagonismo
social e desde a sustentabilidade socioeconômica.

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