- Programa de Pós Graduação em História

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- Programa de Pós Graduação em História
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM HISTÓRIA
HISTÓRIA, TERRITÓRIOS e FRONTEIRAS
BRUNO PINHEIRO RODRIGUES
“HOMENS DE FERRO, MULHERES DE PEDRA”:
Resistências e Readaptações identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de
Benguela aos vales dos rios Paraguai-Guaporé e América espanhola – fugas, quilombos
e conspirações urbanas (1720-1809)
CUIABÁ-MT
Junho/2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM HISTÓRIA
HISTÓRIA, TERRITÓRIOS e FRONTEIRAS
BRUNO PINHEIRO RODRIGUES
“HOMENS DE FERRO, MULHERES DE PEDRA”:
Resistências e Readaptações identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de
Benguela aos vales dos rios Paraguai-Guaporé e América espanhola – fugas, quilombos
e conspirações urbanas (1720-1809)
Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História, do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT), como requisito parcial para
aprovação final.
Orientador: Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena.
CUIABÁ-MT
Junho/2015
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BRUNO PINHEIRO RODRIGUES
“HOMENS DE FERRO, MULHERES DE PEDRA”: Resistências e Readaptações
identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de Benguela aos vales dos rios ParaguaiGuaporé e América espanhola – fugas, quilombos e conspirações urbanas (1720-1809).
Tese de doutoramento apresentada como requisito para aprovação final, junto ao Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso.
Tese defendida e aprovada em __/__/____, pela Banca Examinadora:
_____________________________________________________
Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena (Presidente da Banca)
(Universidade Federal de Mato Grosso)
________________________________________________
Prof. Dr. Anderson Ribeiro Oliva (Titular Externo)
(Universidade de Brasília)
__________________________________________________
Prof. Dr. João Antonio Botelho Lucidio (Titular Interno)
(Universidade Federal de Mato Grosso)
__________________________________________________
Prof. Dr. Rafael da Cunha Scheffer (Titular Externo)
(Universidade do Estado de Mato Grosso)
________________________________________________
Profª. Drª. Alexandra Lima da Silva (Titular Interno)
(Universidade Federal de Mato Grosso)
_______________________________________________
Profª. Dr.ª Neuma Brihante Rodrigues (Suplente Externo)
(Universidade de Brasília)
________________________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho (Suplente Interno)
(Universidade Federal de Mato Grosso)
3
Dedico este trabalho a todos aqueles que
acreditam que outro mundo é possível.
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Agradecimentos
Não poderia iniciar sem agradecer a principal apoiadora deste estudo, a base que me
permitiu subir montanhas e sempre olhar à frente: Elzimar Muniz Pinheiro, a minha mãe.
Faltariam palavras para expressar o tamanho da gratidão por cada palavra de conforto,
preocupação e ligação ao longo de todos esses anos. O seu exemplo de vida, mãe solteira que
fez todo o possível para não deixar os filhos abandonarem a vida acadêmica, é o maior legado
e inspiração da minha trajetória.
Igualmente, não poderia deixar de agradecer a todo o companheirismo e contribuição
de Ernesto Cerveira de Sena, que desde a graduação tem participado diretamente do meu
crescimento como ser humano e historiador. Sou imensamente grato pelos tantos conselhos,
paciência e amizade. Não tenho dúvidas de que sem a sua participação não teria chegado a
esta etapa acadêmica. Tenho imenso orgulho por tê-lo em minha jornada durante tantos anos.
Agradeço também ao Governo Federal, especialmente à Coordenação de
Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES), que durante todo o percurso deu-me
suporte financeiro com bolsas e auxílios diversos para que vivenciasse numerosas
experiências de pesquisa, ao ter oportunidade de residir e estudar em outras cidades e no
estrangeiro, que enriqueceram e ampliaram consideravelmente o horizonte da pesquisa.
Desejo profundamente que outros tantos possam usufruir das mesmas oportunidades.
Agradeço ao conjunto de professores que estiveram à frente do PPGHIS/UFMT nos
últimos anos, especialmente ao Professor Leandro Rüst, que sempre se mostraram solícitos e
atentos aos nossos pedidos, auxiliando no que fosse necessário. Outrossim, sou muito grato a
toda cobertura proporcionada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PROPG) da UFMT,
especialmente à solicitude da Professora e Pró-Reitora Leny Caselli Anzai e Élida Furtado da
Silva Andrade, fundamental para concretização do doutoramento sanduíche e manutenção das
bolsas.
Durante a minha estadia em Lisboa, Portugal, a presença constante da minha coorientadora, Isabel Castro Henriques, foi fundamental para realização da pesquisa e
amadurecimento intelectual. Sou grato por toda contribuição e carinho dispensado. Na mesma
circunstância, também agradeço as valiosas sugestões das professoras Aida Freudenthal, Ana
Paula Ribeiro Tavares e José da Silva Horta, que me proporcionaram numerosos insights e
inspirações; além da amizade do meu amigo angolano Gime Luís Ibn e dos brasileiros
5
Francisco Aimara, Diego Bortoncello, Ricardo Miotto e Raquel Longhi. Certamente os dias
no “Velho Mundo” não teriam sido tão intensos e inspiradores sem a presença de todos eles.
Sou muito grato ao conjunto de pesquisadores que muito cordialmente auxiliaram-me
para que pudesse desenvolver a investigação junto aos arquivos bolivianos, especialmente a
Bismark Cuéllar-Chavez, Paula Peña Hásbun, J. Judith Terán R. (sub-diretora do ABNB) e a
Luis Enrrique Rivero Coimbra. A orientação e zeloso acompanhamento de todos foram de
suma importância para o melhor aproveitamento do tempo e realização da pesquisa.
Na ocasião em que estive residindo no Rio de Janeiro, numerosas pessoas foram de
fundamental importância para o andamento das atividades acadêmicas; especialmente a
Professora Maria Paula de Araújo, que me proporcionou gentilmente a possibilidade de
acompanhar um seminário como “aluno externo” e realizar o estágio docência; Priscilla
Gomes e Agata Gravante, pelo companheirismo e amizade.
Sou grato também a Monique Lordelo, sempre solicita no compartilhamento de
conhecimento; a Suellen Alves e Patrícia Acs que, respectivamente, foram as responsáveis
pelo primeiro mapa da tese e revisão ortográfica e gramatical. Thalita Pinheiro Rodrigues,
minha querida irmã, concedeu-nos gentilmente a honra de receber um produto do seu singular
talento: dois belos desenhos, um sobre o “Quilombo Grande” e outro sobre a rainha “Teresa
de Benguela”.
Quero registrar a minha gratidão aos professores João Antônio Botelho Lucídio e
Alexandra Lima, que durante a Banca de Qualificação foram determinantes para o repensar da
nossa abordagem, organização textual e maior cuidado na indagação das fontes.
Por fim, agradeço aos meus grandes amigos Christian Luiz Gomes e sua família, Luiz
Rodrigues, Antonio Fernandes, Max Rodrigues, Carol Weiss, Reinaldo Marchesi, Julio
Mangini, que durante todo esse percurso sempre me acolheram com alegria e atenção, nos
bons e maus momentos.
6
“Os esquecidos fazem-se lembrar pelo sangue”
(Mia Couto)
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Abreviaturas
APMT – Arquivo Público do Estado de Mato Grosso
RAPMT – Revista do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso
NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
BNP – Biblioteca Nacional de Portugal
ABNB – Biblioteca y Archivo Nacionales de Bolivia
8
Lista de Tabelas
Tabela 1 - exportação de cativos na África Central (1676-1832)........................ 150
Tabela 2 - Exportações Legais de Escravos de Benguela, 1730-1828................ 150
Tabela 3 - População de Caconda (1797-1850)................................................... 152
Tabela 4 - População de Benguela entre 1795 a 1850........................................
Tabela 5 – População da Província de Mato Grosso – 1849.............................
153
190
Tabela 6 - mapa geral dos Escravos que tem enviado nas Capitanias de Cuiabá
e Mato Grosso desde que se descobriram suas Minas conforme as memórias e
registros existentes 1720-1772............................................................................
191
Tabela 7 - Classificação da População escrava quanto a descendência e/ou
origem. Freguesia de Brotas (1838).....................................................................
192
Lista de Gráficos
Gráfico 1 - População escrava de Caconda por gênero (1795-1850)..............
Gráfico 2 - Estimativa de importação de escravos provenientes da África
Central Atlântica e da Costa da Mina pelo Brasil, 1700-1810.........................
154
260
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Índice de Ilustrações
Fig.1 – Tsibinda Ilunga.......................................................................................
Fig. 2 – Os “temíveis Jagas”................................................................................
Fig. 3 – As missões capuchinhas na África Central Ocidental.............................
Fig. 4 – O ungüento “maji-a-samba”.....................................................................
Fig. 5 – Os rituais de chuva entre os Jagas............................................................
Fig. 6 – O quilombo, segundo Cavazzi.................................................................
Fig. 7 – O kilombo, por Capello e Ivens (1881)...................................................
Fig. 8 – Escravos carregadores de autoridades.....................................................
Fig. 9 – Travessia de caravanas, por Capello e Ivens (1881)................................
Fig. 10 – Paragem de carregadores.......................................................................
Fig. 11 – O Quilombo Grande..............................................................................
Fig. 12 – Mulher de Pedra: a rainha Teresa de Benguela e o seu Parlamento......
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Lista de Mapas
Mapa 1 – Entre o hinterland de Benguela ao Alto Peru: a resistência dos Homens
de Ferro e Mulheres de Pedra ............................................................................
Mapa 2- Delineação geográfica dos reinos do Congo e Angola por volta de 1656.
Mapa 3 – Os reinos do Congo, Angola e Benguela (1747)
Mapa 4 – Mapa de identidades políticas e étnicas na África Centro-Ocidental
(século XVIII)....................................................................................................
Mapa 5 - Expansão das fronteiras escravistas, por Miller...............................
Mapa 6 – Geomorfologia e bacias de Angola ................................................
Mapa 7 - A Feira de Cassange ............................................................................
Mapa 8 – Rotas comerciais no Planalto Central de Benguela..............................
Mapa 9 - Benguela e o seu interior......................................................................
Mapa 10 - Benguela e o seu hinterland...............................................................
Mapa 11 – De Vila Bela ao Quilombo do Piolho: os rios Guaporé, Branco,
Sararé, Galera e afluentes......................................................................................
Mapa 12 – De Porto Feliz e Goiás a Cuiabá (caminho fluvial e terrestre) ..........
Mapa 13 – o vale do rio Paraguai .......................................................................
Mapa 14 - o vale do rio Guaporé .......................................................................
Mapa 15 – Os Bororos no Mato Grosso..............................................................
Mapa 16 - localização das terras indígenas Bakairi 1 .........................................
Mapa 17: Localização das terras indígenas Bakairi 2 .......................................
Mapa 18 – Migrações Xavante do Goiás para Mato Grosso................................
Mapa 19 – a repartição de Mato Grosso...............................................................
Mapa 20 – repartição de Mato Grosso e Cuiabá e a fronteira com as missões
jesuítas espanholas no século XVIII.....................................................................
Mapa 21 - fluxo de fugas da Capitania de Mato Grosso para as Missões dos
Mojos e Chiquitos e Paraguai................................................................................
Mapa 22 – O trajeto entre o Cuiabá-Vila Bela (Mato Grosso) e Santa Cruz de la
Sierra (1789).....................................................................................................
Mapa 23 – Cuiabá, os povos Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra (1778)..........
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Resumo
Este estudo investiga o percurso e trocas culturais efetuadas por africanos escravizados entre
os anos de 1720 a 1809, desde o hinterland do porto de Benguela à fuga e re-começo da vida
nos quilombos formados no vale do Guaporé ou nas cidades castelhanas da América
Espanhola. Para tanto, inicialmente analisamos os arranjos políticos e comerciais, bem como a
atuação dos diferentes agentes históricos, que possibilitaram a realização do comércio escravo
na região. Nesse contexto não somente alianças foram firmadas entre chefes locais e agentes
da coroa lusitana, como ocorreram situações de enfrentamento direto, tomada de navios
negreiros ou confrontos nas instâncias judiciais. Se por um lado o comércio escravo avançou
paulatinamente às áreas interioranas, sobretudo, por meios militares, por outro lado, o mesmo
só chegou a ser viável dentro das estruturas comerciais africanas, como as caravanas. Após a
longa travessia do Atlântico e comercialização nas cidades litorâneas da América portuguesa,
homens e mulheres de ferro seriam submetidos a uma nova e tortuosa viagem rumo ao
derradeiro destino, às minas do Cuiabá e Mato Grosso. Por meio de uma rota que intercalava
caminhos fluviais e terrestres, expostos a numerosos perigos, eram embarcados aos confins da
América portuguesa, onde seriam empregados na mineração intercalada com atividades
agrícolas e domésticas. Contudo, contrariando as expectativas senhoriais, parcela considerável
se evadiu e tentou um re-começo para além dos grilhões, que nas fronteiras entre as coroas
ibéricas poderia se dar na formação de quilombos, adesão a sociedades indígenas ou nas
cidades espanholas fronteiriças. Destacadamente investigamos a composição e longevidade
do chamado “Quilombo Grande”, liderado pela africana Teresa de Benguela. Tal como uma
“hidra”, o seguinte espaço renasceu após incursões e se configurou em um local de trocas e
reelaborações culturais, principalmente entre indígenas e africanos. Do outro lado da
fronteira, onde encerramos nosso itinerário, analisamos a tentativa de uma rebelião
protagonizada pela aliança entre negros fugidos da América portuguesa, escravos da América
espanhola e indígenas contra as autoridades políticas de Santa Cruz de La Sierra, em meio ao
alvorecer das guerras de independência. Em suma, em todos os pontos do itinerário estamos
diante de casos em que indivíduos para manterem acesas as esperanças por uma vida possível
além do cativeiro, resistiram, se adaptaram identitariamente, pegaram em armas, fugiram e
conspiraram.
Palavras-chave: África; escravidão; quilombo; resistência; Cuiabá; Mato Grosso; trocas
culturais; América espanhola.
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Abstract
This research investigates the route and identity formation of enslaved Africans between the
years 1720 to 1809, from the hinterland of the port of Benguela to escape and re-start life in
the quilombos formed in Guaporé valley or the Spanish American cities. Thus, initially we
analyze the political and commercial arrangements, as well as the performance of different
historical agents, which enabled the realization of slave trade in the region. In this context not
only alliances were settled between local chiefs and of the Portuguese crown agents, as
occurred direct confrontation situations, kidnapping of slave ships or clashes in the courts. If
on one hand the slave trade gradually advanced to inland areas, particularly by military
means, on the other hand, It became feasible only within African commercial structures, such
as caravans. After the long crossing of the Atlantic and marketing in the coastal cities of
Portuguese America, our iron men and women would be subjected to a new and tortuous
journey to the ultimate destination, the mines of Cuiabá and Mato Grosso. Through a route
that interspersed river and land paths, exposed to numerous dangers, they were shipped to the
confines of the Portuguese America, where they would be employed in mining interspersed
with agricultural and domestic activities. However, contrary to the manor expectations, a
considerable portion escaped and tried to re-start beyond the shackles, that in the borders
between the Iberian crowns could be achieved in the formation of quilombos, adherence to
indigenous societies or border Spanish cities. Notably We investigated the composition and
longevity of the "Quilombo Grande", led by African Teresa de Benguela. Such as a "hydra",
the space reborn after raids and set up in a place of cultural exchanges especially among
indigenous and African. Across the border, where we closed our itinerary, we analyze the
attempt at a rebellion carried by the alliance between runaway slaves from Portuguese
America, slaves from Spanish America and indigenous against Santa Cruz de La Sierra
political authorities at the time It began the wars of independence. In short, at all points of the
route We are faced with cases where individuals in order to keep their hopes on for a possible
life beyond the captivity, resisted, have adapted their identities, took up arms, fled and
conspired.
Key-words: Africa; slavery; quilombo; resistance; Cuiabá; Mato Grosso; cultural exchanges;
spanish America.
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SUMÁRIO
Dedicatória.................................................................................................................................. 3
Agradecimentos .......................................................................................................................... 4
Abreviaturas................................................................................................................................ 7
Lista de Tabelas .......................................................................................................................... 8
Lista de Gráficos ......................................................................................................................... 8
Índice de Ilustrações ................................................................................................................... 9
Lista de Mapas ............................................................................................................................ 9
Resumo ..................................................................................................................................... 10
Abstract ..................................................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14
“Homens de ferro, mulheres de pedra”: do objeto de estudo, percepção do outro, espaço e
temporalidades ...................................................................................................................... 14
Das fontes, do olhar e métodos ............................................................................................. 20
Das historiografias ................................................................................................................ 25
CAPÍTULO 1 - A chegada do mundo Atlântico e os povos do hinterland de Benguela
(século XVII-1720)................................................................................................................... 40
1.1. O cenário: condições geográficas, climáticas e diversidade etnoliguística desde o
século XVI ............................................................................................................................ 41
1.1.1.A “produção de cativos” frente ao universo “Ovimbundu” (1620-1720) ................ 45
1.2. A percepção ocidental dos Jagas-Imbangalas: da chegada dos “ávidos devoradores de
carne humana” às guerras justas ........................................................................................... 55
1.2.1. A chegada: relatos orais e produção historiográfica ............................................... 56
1.2.2. A Rainha Nzinga e os Imbangalas sob o olhar do colonizador ............................... 67
1.2.3. Kilombos: intercâmbios culturais entre Ovimbundu-Imbangalas e notas sobre a
organização militar ............................................................................................................ 74
CAPÍTULO 2 – Do hinterland à costa: o espaço e os “protagonistas” na produção de
escravos em Benguela (1730-1828). ........................................................................................ 92
2.1.Benguela-América portuguesa: estimativas de comércio ............................................... 93
2.2.A Organização do comércio no hinterland de Benguela ................................................ 97
a) Caravanas comerciais: do comércio escravista à sua decadência ................................. 97
b) Redes comerciais entre os reinos de Angola e Benguela ............................................ 109
c) Sertanejos, Pombeiros e Financiadores ....................................................................... 113
d) As instalações portuguesas: as “cidades costeiras” e as “cidades plataformas” ......... 122
2.3. Entre “guerras justas” e “injustas”: jogos de interesses no hinterland de Benguela .. 131
13
CAPÍTULO 3 – “Uma Devassa no sertão”: panorama da instituição escravista na fronteira do
território luso-brasileiro (1720-1795) ..................................................................................... 155
3.1.A Instituição escravista em Região de fronteira ........................................................... 158
3.2.Da chegada de cativos: monções .................................................................................. 173
3.3. Da procedência étnica .................................................................................................. 180
CAPÍTULO 4 - A vida para além sociedade escravista: o trânsito entre indígenas, espanhóis
e o retorno forçado .................................................................................................................. 193
4.1. As permanentes e inevitáveis relações entre cativos e indígenas: entre as guerras e
assimilações ........................................................................................................................ 201
4.2. Fugas e tentativas de recomeço do lado espanhol: da miragem e busca incessante pela
liberdade.............................................................................................................................. 219
4.3. O retorno é a morte: a volta de cativos fugidos à sociedade escravocrata ................... 240
CAPÍTULO 5 – O que atravessou o Atlântico: o Quilombo Grande entre começos e recomeços (1730-1795) ............................................................................................................. 261
5.1. O significado da agência cativa: notas gerais sobre os quilombos na América
Portuguesa e Capitania do Mato Grosso ............................................................................. 263
5.2. O Quilombo Grande: duração e “aruaquização” ......................................................... 271
5.3. O que atravessou o Atlântico: das “Áfricas” na organização e resistência políticomilitar do Quilombo Grande ............................................................................................... 284
5.3.1. A África-bantu para além da documentação oficial: congada, organização, familiar
e traços lingüísticos no vale do Guaporé ......................................................................... 285
5.3.2. Fúria e paixão: a organização política e militar do Quilombo Grande à luz dos
Imbangala-Ovimbundus .................................................................................................. 293
CAPÍTULO 6 – “Fogo da libedade”: das fugas à conjuração do agosto de 1809 em Santa
Cruz de La Sierra .................................................................................................................... 313
6.1. O cenário: Santa Cruz de la Sierra e o lugar da mão-de-obra escrava ......................... 315
6.2. “El fuego de la liberdad”: a conspiração do agosto de 1809 ....................................... 324
6.4. Re-começos e novas partidas: a agência escrava no Alto Peru e a vida possível aos
“corações corrompidos” ...................................................................................................... 343
7. Considerações finais ......................................................................................................... 353
8. Referências ......................................................................................................................... 356
14
INTRODUÇÃO
“Homens de ferro, mulheres de pedra”: do objeto de estudo, percepção do outro, espaço
e temporalidades
“(...) Um homem que conduzia seis ou sete escravos recém-chegados da
África, meio nus e coberto ainda da sarna que esses desgraçados apanham na
viagem marítima, foi surpreendido por um desses nevoeiros no seguir
estrada que ele não conhecia bem. Perdeu-se e achou-se no meio dos
campos, sem ver nada diante de si e sem saber onde estava. Os negros
passaram a noite tolhidos de frio e no dia seguinte estavam tão inanimados e
tesos, que o negociante, supondo-os mortos e não podendo mais consigo,
montou o cavalo e começou a vagar ao acaso. Andou todo o dia, indo e
voltando sobre seus passos. À tarde o tempo clareou e foi o que o salvou,
porque viu um sítio e lá chegou mais morto do que vivo e já sem fala.
Desceram-no do cavalo, aqueceram-lhe os membros gelados, deram-lhe um
caldo de galinha, e pouco a pouco foi voltando a si. Havia dia e meio que
nada comera. Foram à procura dos negros e os encontraram sem vida no
lugar onde o negociante os deixara”.1
“Militando pois todo este tropel de infortúnios, e de desgraças armadas
contra o infeliz escravo, a tudo isto ele resiste, vive, e falta, em países
americanos. Os escravos que ali aportão vem a ser mais um resto de
escravatura, do que de homens. É uma leva de enfermos, que de um hospital
se muda para outro, e por isto com uma razão disse, que os escravos eram
por natureza fortes, robustos e sadios; e os que escapavam de todas estas
calamidades com muita razão se podião chamar de homens de ferro, ou de
pedra”.2
Era preciso ter natureza de ferro ou pedra para suportar a longa travessia Atlântica e
continental a fim de se chegar ao derradeiro destino. Ao narrar a morte de escravos africanos
que chegavam a Serra Acima, um dos distritos de Cuiabá no final da década de 1820,
Hercules Florence, que acompanhava a “Expedição Langsdorff”,3 dava dimensão das
numerosas dificuldades e infortúnios a que estavam submetidos homens e mulheres que
haviam sido transformados em escravos ainda na África.
1
A resistência às condições
FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Tradução de Visconde de
Taunay. São Paulo: Editora Cultrix; Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, pp. 166-167.
2
MENDES, Luis Antonio de Oliveira. Memorias econômicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Tomo
IV. Lisboa: Tipografia da Academia, 1812, p.61
3
A expedição Langsdorff se deu entre 1825 a 1829 e percorreu uma longa extensão do território brasileiro,
passando pelo interior de São Paulo, Mato Grosso e Amazonas, intercalando trechos fluviais e terrestres.
Hercules Florence, artista nascido em Nice em 1804, havia se ligado à expedição logo após a mesma ter chegado
ao Brasil. Com o término da mesma presentou a família Taunay com o diário da expedição, que permaneceu
esquecido até o Visconde de Taunay o publicá-lo em 1875, junto ao tomo 38 do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Ver tese defendida por Rodrigo Luvizotto, sobre os diários de Langsdorff, trajeto percorrido (p.48) e
observações da natureza: LUVIZOTTO, Rodrigo. Os diários de Langsdorff: prelúdios paisagísticos. São
Paulo: Universdade de São Paulo – Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2012 (tese).
15
agravantes da travessia, ao mesmo tempo que suscitava preocupação, arrancava certa
“admiração”. É o que observamos no relato de Oliveira Mendes; luso-brasileiro que no final
do século XVIII elaborou uma obra cuja finalidade seria a “preservação da vida” dos
africanos transformados em escravos, motivada pela necessidade de proteção do patrimônio
de senhores e Estado e garantia do “bom funcionamento” da agricultura. 4
Aqueles homens e mulheres precisariam estar muito além das condições normais
humanas para resistirem à morte que estava à espreita, visível nas tentativas desesperadas de
fuga, desidratação, frio, doenças tropicais, nostalgia, inanição e maus-tratos. Muitos caminhos
levavam à mesma, desde a África até os confins das Américas, mas os sujeitos que trataremos
na presente tese optaram pela vida ou por ela lutaram quando assim foi possível escolher.
Assim, apresentamos no estudo que se segue uma reflexão sobre o papel ativo de
africanos escravizados numa das rotas do comércio de escravos, bem como as constantes
readaptações identitárias e trocas culturais vivenciadas em diferentes pontos do itinerário.
Entre o presídio de Caconda, importante entreposto comercial do hinterland de Benguela, 5 e
Santa Cruz de la Sierra, maior cidade da região leste do Alto Peru, 6na América espanhola, o
cativo poderia ter percorrido uma distância aproximada de 9.620 quilômetros, 7 vivenciando
numerosas situações que exprimiam, em última instância, a busca constante por uma vida para
além do cativeiro (ver mapa 1).
4
De acordo com o autor, a alta mortalidade dos negreiros prejudicava diretamente a economia e patrimôno do
Estado. Vale ressaltar que Luís Antonio Oliveira Mendes, além de ser formado em direito pela Universidade de
Coimbra, havia estudado filosofia, artes e letras. Embora tenha escrito sua obra no final do século XVIII,
somente foi publicada no início do século XIX, em 1812. Ver análise da obra e autor em ODA, Ana Maria
Galdini Raimundo. O banzo e outros males: o páthos dos negros escravos na Memória de Oliveira Mendes. Rev.
Lattinoam. Psicopat. Fund. X, 2, pp. 346-361.
5
No dicionário Windsor, “Hinterland” significa “hinterlândia” ou “interior; no dicionário Michaelis, por sua vez,
“hinterland” designa interior ou região distante. Utilizamos a expressão durante nosso trabalho para fazer
referência às áreas conectadas com o circuito comercial criado a partir da costa do Continente africano na
direção oeste-leste, a despeito das suas limitações (possivelmente traduza com maior veemência o ponto de vista
do “mundo Atlântico”). Embora o emprego do termo se justifique apenas por necessidade didática de
“localização geográfica” dos espaços analisados, fazemos questão de frisar que o processo de expansão
comercial escravista não se deu apenas por um impulso de agentes da coroa portuguesa, mas contou com a
participação direta ou indireta de agentes africanos, que por sua vez, possuíam interesses distintos que
abordaremos ao longo da presente tese. Ver COSTA, Heitor Ferreira da. Windsor Dictionary – Inglês e
Português.
São
Paulo:
Instituto
Brasileiro
de
Edições
Pedagógicas.
Ver
também
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php?lingua=ingles-portugues&palavra=hinterland>.
Acessado no dia 30/07/2014.
6
Alto Peru designa o atual território do Estado Boliviano. Sobre as diferentes denominações do território, ver
capítulo 6 deste tese.
7
Distância calculada em linha reta,com base em dados coletados junto ao GoogleMaps, seguinte a trajetória
Caconda-Benguela-Rio de Janeiro-Santos-Araritaguaba (atual Porto Feliz)-Camapuã-Cuiabá-Santa Cruz de la
Sierra. Contudo, entre os desvios que observaremos nos mapas ao longo da tese, que intercalavam trechos
percorridos via-terrestre e fluvial, tal distância poderia se alargar. Além disso, é preciso notar que nem todos os
navios que saíam do porto de Benguela, rumavam diretamente ao Rio de Janeiro. Até finais da década de 1720,
deveriam realizar escala no porto de Luanda.
16
Dessa maneira, estaremos defronte a casos de assaltos a navios negreiros, fugas em
todos os pontos da rota, formação de ajuntamentos-quilombos e alianças clandestinas com
comerciantes da sociedade luso-brasileira, estabelecimento de relações com povos indígenas –
conflituosas ou amigáveis –, ou mesmo com tentativas de insurreição em espaço urbano.
Apesar da constante vigilância, medo e repressão, em nenhum momento e em qualquer etapa
deste percurso, deixaram de aparecer casos em que cativos abandonassem a busca de
possibilidades de uma vida melhor fora da sociedade escravista normatizada.
Todavia, é preciso frisar que toda essa agência cativa verificada ao longo do itinerário
escolhido se deu em diferentes contextos e temporalidades; a começar por Benguela e o seu
hinterland, que vivenciava um novo contexto em termos de inserção na economia Atlântica a
partir de 1716, com a liberação gradativa do comércio direto com o Rio de Janeiro sem a
necessidade das embarcações passarem em Luanda para o pagamento de “direitos”. Com a
transferência progressiva de comerciantes do Rio de Janeiro para a Baía das Vacas (como
também era conhecida Benguela), atraídos pela alta oferta e potencial de mão-de-obra cativa,
motivados pela demanda crescente por escravos das minas de ouro no Brasil, o porto de
Benguela em poucas décadas se transformou num grande centro de comercialização de
escravos. Como podemos observar na Tabela 2, a quantidade de exportação de cativos
aumentaria ao longo das décadas do século XVIII, até chegar ao pico em 1795 – quando, a
partir deste ano, passaria a sofrer declínios, chegando ao encerramento em meados do século
XIX, ante as pressões inglesas e re-organização da economia na região. 8
Do outro lado do Atlântico, com as descobertas das novas minas na América
portuguesa e aumento da demanda de mão-de-obra escrava africana, já nas primeiras décadas
do século XVIII, o Rio de Janeiro passaria a se consolidar como o principal fornecedor de
cativos; sobretudo, com a abertura da “nova rota” que ligava a cidade às Minas Gerais, ao
mesmo tempo em que o volume de exportações de africanos escravizados na chamada África
Ocidental diminuía e se aumentava o volume comercial dos exportados pelos portos congoangolanos (ver Gráfico 2).
As minas de Cuiabá e Mato Grosso, descobertas nas primeiras décadas do século
XVIII, se inseriam nesse contexto. Destarte, por uma rota hegemonizada pela Capitania de
São Paulo até finais da década de 1740, que adquiria grande parte da mão-de-obra cativa do
8
No lugar do comércio já considerado ilegal no pós-década de 1830, era preciso organizar aquela economia
intrinsecamente fundamentada na escravidão, a partir da comercialização de produtos como marfim, cera,
borracha, entre outros. Ver reflexão acerca da estrutura comercial em Benguela no Capítulo 2 desta tese.
17
Rio de Janeiro, passou-se a transferir milhares de cativos por longos caminhos fluviais ou
terrestres à região que se encontrava no extremo-oeste das possessões portuguesas, a fim de
serem empregados na mineração intercalada com atividades agrícolas e domésticas.
Contudo, contrariando às expectativas senhoriais, uma quantidade considerável destes
homens e mulheres se evadiu do cativeiro para os mais diferentes destinos, desde a integração
à sociedade indígena, formação de quilombos, até mesmo para missões jesuítas ou cidades
localizadas na América espanhola. Entre essas cidades, destacava-se Santa Cruz de la Sierra,
que abrigou significativa quantidade de cativos fugidos de Mato Grosso e Cuiabá, cuja
economia se concentrava principalmente no plantio e cultivo da cana-de-açúcar - local
ocupado preferencialmente pelos “negros prófugos” da América portuguesa, que detinham
melhores conhecimentos sobre a cultura agrícola. Apesar dos constantes acordos entre as duas
coroas para devolução de escravos fugidos para América espanhola, como Santa Cruz de la
Sierra se encontrava distante dos grandes centros urbanos do Alto Peru, era freqüente o nãocumprimento de determinações provenientes de instâncias maiores para devolução de negros
à Portugal. Essa prática possibilitava margens para uma vida possível para além do cativeiro
no interior da cidade, mesmo que essa liberdade estivesse constantemente ameaçada.
Ademais, vale salientar que essa trajetória analisada se deu no interior do seguinte
recorte temporal: 1720 a 1809. A primeira data é referente ao mapa geral de importação de
cativos às minas do Cuiabá e Mato Grosso, apresentado em 1773 durante o governo do
Capitão-General Luiz de Albuquerque. Embora o trânsito e presença de escravos já fosse uma
realidade nas primeiras expedições junto às minas que levaram à fundação do Arraial de
Cuiabá, adotamos o ano de 1720 como marco inicial pela necessidade de se atenuar a
imprecisão da ausência de registros. O mapa, de maneira geral, contempla a entrada de
cativos entre os anos de 1720 a 1772, dividindo esse período em quatro momentos históricos e
apontando o primeiro (1720-1750) como aquele em que mais entrou cativos na região – ao
todo, 10.775.9
Vale frisar que entendemos a passagem por Mato Grosso e Cuiabá como ponto
articulador entre os dois lados da economia Atlântica e, principalmente, como um ponto
esclarecedor da agência cativa, uma vez que, ao fugir, formar quilombo ou atravessar as
fronteiras políticas convencionadas entre as coroas, acabava por romper com toda uma lógica
que o deslocara por milhares de quilômetros. A chegada e partida das minas do Mato Grosso e
9
Ver Tabela 6, no capítulo 3 desta tese.
18
Cuiabá é fundamental para se compreender a monumental estrutura comercial interligada aos
diferentes pontos do Império ultramarino lusitano, mas, acima de tudo, para se ter clareza da
recepção, ruptura e o vislumbrar de novos horizontes além do cativeiro.
No que diz respeito ao período compreendido entre 1720 e 1809, momento da inserção
do extremo oeste das possessões luso-brasileiras no quadro político-econômico atlântico,
devemos salientar a existência de três diferentes circunstâncias: 1720-1748, 1749-1778 e
1779-1809. A primeira está relacionada ao momento em que Cuiabá e, progressivamente, o
chamado Mato Grosso são edificados e permanecem sob jurisdição da Capitania de São
Paulo. Nesse contexto, africanos foram trazidos para a região por meio de monções que
partiam do sudeste (porto de Araritaguaba, atual Porto Feliz) ou aleatoriamente por
sertanistas. É um momento de constantes confrontos com diferentes nações indígenas,
sobretudo com os Payaguás, que atuavam especificamente no caminho fluvial entre a
Capitania de São Paulo e as minas do Cuiabá.
A segunda circunstância vivida na região é simultânea aos esforços de criação da
Capitania do Mato Grosso, em 1748, fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade, que viria
a ser a capital da nova Capitania (1752), e criação da Companhia Grão-Pará e Maranhão
(1755), que permitiu o fluxo de cativos via-norte, pela Capitania do Grão-Pará. Com a sua
extinção, em 1778, o comércio de escravos para a região voltou a ser realizado
hegemonicamente pelas rotas sul. 10 Já na terceira circunstância, entre os anos de 1779 a 1809,
com predominância da rota-sul em atividade e com o trânsito esparso via-Goiás, por meio de
uma estrada terrestre, o fluxo se fez com menos intensidade, verificando-se em alguns
momentos a baixa disponibilidade de mão-de-obra para tocar as atividades econômicas na
região. Este também é o momento em que se observa o crescimento da atividade açucareira
no final do século XVIII. No período, somente “Serra Acima” (atual Chapada dos
Guimarães), por exemplo, já possuía 22 engenhos, 6 monjolos e uma população escrava entre
africanos e crioulos de 738 indivíduos.11
10
Vale observar que mesmo durante à existência da Companhia Grão-Pará e Maranhão, as rotas comerciais que
traziam escravos via-sul nunca deixaram de predominar em termos de volume. Além disso, é preciso salientar
que apesar das dificuldades de travessia de territórios indígenas (principalmente Kayapós e Xavantes), a rota
terrestre via-Goiás,possivelmente também foi utilizada, como poderemos observar nalguns dados esparsos que
apontam o trânsito de cativos de Salvador para Cuiabá.
11
Sobre a presença e emprego de mão-de-obra escrava de origem africana em “Serra Acima”, ver
CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Casamentos de escravos africanos em Mato Grosso: um estudo
sobre Chapada dos Guimarães (1798-1830). Cuiabá-MT: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa
de Pós-Graduação em História, 2001, p. 11. Acerca do contexto econômico maior que vivenciava a Capitania de
19
O segundo marco temporal, o ano de 1809, é quando findamos nosso itinerário, junto à
tentativa de uma insurreição conspirada por negros fugidos do Mato Grosso e Cuiabá,
escravos e indígenas contra as autoridades espanholas da cidade de Santa Cruz de la Sierra. A
região, naquela altura, enfrentava forte crise política, sobretudo, a partir das invasões
napoleônicas e destituição do rei em território espanhol. Assim, formava-se uma crise de
legitimidade que abria espaço para germinação de ideias de independência. Cativos e “negros
livres” 12 que se encontravam na cidade estavam atentos aos acontecimentos e conscientes de
que a liberdade só seria assegurada pela própria ação; decidiram-se por tentar a tomada da
cidade entre os dias 15 e 20 de agosto de 1809. A análise deste episódio demonstra não
apenas a constante busca por liberdade, mas também a participação determinante nos
acontecimentos políticos que se passavam no mundo ibérico.
A despeito de todas as especificidades espaciais e temporais que acima discriminamos,
devemos ressaltar aquilo que une as duas pontas, ou os dois “sertões”, 13 de Benguela e o do
oeste luso-brasileiro: a economia atlântica e a atuação de agentes da coroa portuguesa. A
primeira é composta por numerosos agentes, desde funcionários da coroa portuguesa,
comerciantes europeus ou americanos, militares, chefes políticos africanos (os “sobas”) 14, até
indígenas – como os Payaguás que, nas suas incursões, ao capturarem africanos, procuravam
Mato Grosso no período, ver LENHARO, Alcir. Crise e mudança na frente oeste de colonização. In: Cadernos
do NDIHR UFMT- Ensaios, n° 1, Cuiabá: Imprensa Universitária - PROEDI, 1982.
12
Assim eram designados todos os negros fugidos dos domínios portugueses, de acordo com a documentação
colonial do período.
13
Empregamos a categoria “sertão” na presente pesquisa pela própria limitação que as fontes impõem – quase
todas produzidas por agentes coloniais. Contudo, frisamos que este “sertão”, enquanto categoria conceitual para
compreender o que está dissociada da sociedade colonial, esvazia em sentido quando passamos a vislumbrar o
possível ponto de vista acerca da própria territorialidade ocupada, de diferentes nações africanas ou indígenas,
como os “Parecis”, que habitavam o noroeste de Vila Bela da Santíssima Trindade - o mais puro sertão do ponto
de vista luso-sertanista – e concebiam de maneira sagrada a terra que ocupavam (haviam surgido da própria
terra, de acordo com Arruzzo, passim). Janaína Amado, ao reconstituir historicamente o emprego e diferentes
acepções ao longo da história, afirma que “sertão” em torno do século XII como referência à arcas situadas longe
de Lisboa, dentro de Portugal. A partir do século XV, passa a designar espaços recém-conquistados sob os quais
pouco ou nada se sabiam. E, no século XVI passou a ser largamente utilizada por viajantes que atravessam as
Américas, África e Ásia, e por autoridades que se faziam príncipes de regiões recém-conquistadas.Ver AMADO,
Janaína. Ponto de vista: Região, sertão, nação. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 8, n. 15, 1995, pp.
145-151.
14
Segundo Flávia Maria de Carvalho, que investigou as relações entre as elites políticas do Ndongo (atual norte
da Angola) e governadores portugueses, especialmente Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, “sobas” seriam
governantes do reino do Ndongo que teciam relações de “avassalagem” com a coroa portuguesa. Possuíam
séquitos, entre os quais os tandalas (conselheiros principais), os macotas (conselheiros) e os mancuzes
(embaixadores). Para a autora, tais personagens foram de fundamental importância para a “interiorização”
portuguesa nos sertões, em função das políticas de aliança para o fornecimento de escravos. Ver CARVALHO,
Flávia Maria de. Os homens do rei em Angola: sobas, governadores e capitães mores, séculos XVII e XVIII.
Universidade Federal Fluminense – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Programa de Pós-Graduação em
História, 2013 (tese); é preciso ressaltar que o uso da expressão também se deu para chefes políticos que se
recusaram a tecer alianças com os agentes da coroa portuguesa, como observaremos na seção 2.3. da presente
tese.
20
vendê-los a comerciantes de Assunção, na América espanhola. Por vários pontos, por um
imenso trajeto, essa economia atlântica englobou diferentes personagens, que possuíam os
mais variados objetivos, que poderiam diferir entre a acumulação de riquezas, poder ou a
própria sobrevivência.
A atuação dos agentes da coroa portuguesa, tanto na América dos povos indígenas
como nas territorialidades africanas, obedecia à mesma lógica: acumulação de riquezas para
coroa, alianças com chefes locais e “guerra justas” para àqueles que não se submetessem ou
evitassem o contato com o mundo atlântico que chegava. Para africanos, de acordo com
teorias raciais que se desenvolviam, estava reservado o cativeiro; aos indígenas, “negros da
terra”, o cativeiro, o “aldeamento” (conforme a edição do “Diretório” em 1757) ou a morte.
Em suma, investigar o percurso dos Homens de Ferro e Mulheres de pedra, aqueles
que resistiram às penosas condições da travessia Atlântica e cativeiro, ao longo de todo esse
circuito que conectava diferentes sujeitos, interesses e processos históricos, é elucidar a
própria agência humana, o papel ativo de africanos escravizados que acabava por forçar a
alteração de estratégias e, em última instância, frustrava as expectativas coloniais. Em ambos
os lados do Atlântico, esperava-se a assimilação pacífica e resignada, o que não aconteceu. As
fugas, confrontos, readaptações identitárias e levantes demonstram insistentemente a direção
contrária do escravismo.
Das fontes, do olhar e métodos
Na construção da presente pesquisa, a fim de traçarmos a rota dos africanos
escravizados e enviados ao extremo oeste das possessões luso-brasileiras na América,
consultamos diferentes acervos.
15
A começar pelas correspondências trocadas entre
autoridades ao longo do século XVIII e início do XIX, junto ao Arquivo Público do Estado de
Mato Grosso (APMT), especialmente nas caixas dispostas na Estante 1, que comportam livros
e registros manuscritos enviados principalmente por Capitães-Generais que estiveram à frente
da estrutura política luso-brasileira na região. Nas mesmas, encontramos dados acerca dos
constantes confrontos entre cativos e indígenas no estabelecimento das povoações nas minas
do Cuiabá e Mato Grosso, numerosas informações de fugas para América hispânica, notícias
de formação e combate de quilombos, regimentos e bandos (como aqueles que
15
No que tange aos arquivos consultados no Brasil, vale frisar que a pesquisa se deu entre os anos de 2013 a
2014, analogamente ao levantamento bibliográfico.
21
regulamentavam a atividade dos capitães do mato) e requerimentos enviados às autoridades
espanholas, solicitando a devolução de cativos evadidos aos diferentes pontos de Castela –
Santa Cruz de La Sierra, Assunção, Buenos Aires, Tucumán, Córdoba, entre outras.
Na sequência, no mesmo Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, consultamos os
exemplares ainda disponíveis da Revista do Arquivo Público de Mato Grosso (RAPMT). Nos
mesmos, encontramos uma gama de informações sobre a instituição escravista na
Capitania/Província de Mato Grosso e cotidiano dos cativos: dados sobre escravização de
indígenas, regimentos de Capitães do Mato, instruções para abordagem aos quilombos,
conflitos diplomáticos acerca da devolução de cativos evadidos para os domínios espanhóis e
bandos que prometiam o “esquecimento” e não-aplicação de punição aos cativos que
retornassem da fuga por livre e espontânea vontade.
No acervo do NDIHR (Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional),
que está localizado junto à Universidade Federal de Mato Grosso, ao longo das pesquisas
realizadas no doutoramento, tivemos a oportunidade de consultar a documentação microfilmada referente a Mato Grosso, dos anos de 1720 a 1827, organizada em 34 rolos de microfilme.
16
Nela, localizamos informações sobre o fluxo de entrada de cativos na
Capitania/Província de Mato Grosso via rotas que partiam do sudeste da América Portuguesa
ou norte, pela Capitania do Grão-Pará, além de numerosas cartas que denunciavam a
constante fuga de cativos para América Espanhola e posteriores pedidos de restituição.
16
No total foram micro-filmados 2.221 documentos referentes ao Mato Grosso, distribuídos em micro-filmes e
também em CD-Roms. A iniciativa de catalogação e microfilmagem foi fruto do trabalho realizado na
cooperação de numerosas instituições, a saber, a Universidade Federal de Mato Grosso, Casa da Memória
Arnaldo Estevão de Figueiredo, contribuições do professor Edvaldo de Assis, com apoio da direção do AHU,
especialmente da diretora Dra. Maria Luísa Abrantes, além do Projeto Resgate (iniciativa bilateral entre
autoridades brasileiras e portuguesas para preservação documental de ambos os países). De maneira geral, de
acordo Bertoletti (Fundação Biblioteca Nacional), Bellotto (Universidade de São Paulo) e Erika Dias
(Universidade Nova de Lisboa), ainda entre as décadas de 1970-1980, já haviam propostas para catalogação e
microfilmagem de documentos ibéricos, contudo, demasiadamente pontuais e sem continuidade. Então, a partir
da segunda metade da década de 1980 foi levado a cabo um projeto de catalogação e microfilmagem dos
arquivos referentes a Minas Gerais, dispostos no AHU-Lisboa. Tal exemplo serviu de base para o
estabelecimento do Projeto Resgate, que se institucionalizou em 1992. Assim, deu-se início a um minucioso
processo: “(...) foram elaborados catálogos constituídos de resumos unitários, os verbetes, introduções temáticas,
metodológicas e técnicas, além de índices temáticos, onomásticos e topográficos. Além disso – e essa é a grande
característica distintiva do projeto em relação a outros semelhantes – foi feita microfilmagem total dos
documentos, sendo que no topo de cada fotograma inicial de cada documento consta a reprodução do respectivo
verbete, sendo os microfilmes passados a CD-Roms. Assim para cada conjunto documental básico há um
catálogo, rolos de microfilmes e CD-Roms de acordo com a extensão do material respectivo”. Ver
BERTOLETTI, Esther Caldas; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; CARLOS DIAS, Erika Simone de Almeida. O
Projeto Resgate de documentação histórica Barão do Rio Branco: acesso às fontes da história do Brasil
existentes no exterior. In: Clio – Revista de Pesquisa Histórica, N. 29.1, 2011, pp. 3-4.
22
Igualmente, no acervo, aparecem dados sobre a ação de contrabandos e informações gerais
que dão conta do cotidiano de cativos na região de fronteira entre as duas coroas ibéricas.
Consultamos ainda, no bojo da documentação organizada por pesquisadores
brasileiros, os Anais de Vila Bela e os Anais do Senado da Câmara de Cuiabá. Acerca do
primeiro, compreende os anos de 1734 a 1789. Até poucos anos atrás, era tido como
extraviado ou perdido. Encontrado e transcrito pelas professoras Janaína Amado e Leny
Caselli Anzai, junto ao acervo da Newberry Library, apresenta uma fartura no que diz respeito
à presença de cativos na Capitania do Mato Grosso. Além das constantes informações sobre
fugas e devoluções de cativos à América espanhola, contém a descrição mais detalhada da
campanha movida contra o famoso “Quilombo Grande” (ou “Quariterê”), que, liderado pela
africana Teresa de Benguela, caiu em 1770.17
Nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, que foram produzidos por vereadores da
Câmara do Cuiabá a partir do ano de 1786, encontramos informações referentes ao contato
conflituoso de cativos com indígenas – Payaguás, Guaykurus, Bororos, Kayapós, entre outros
-, fugas, emprego da mão-de-obra cativa em Cuiabá (até mesmo enquanto soldados);
informações sobre quilombos inteiros destruídos por indígenas e dados sobre entrada de
cativos na região por diferentes meios. 18
Em Portugal, a pesquisa se concentrou em 3 principais instituições: Biblioteca
Nacional de Portugal (BNP), Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e Arquivo
17
Os Anais de Vila Bela devem ser compreendidos em dois momentos distintos: de 1734 a 1754 e entre 1754 a
1789. A primeira parte, foi redigida por Francisco Caetano Borges, após ser designado para tal tarefa. Após
Francisco, anualmente até 1789 os anais passaram a ser elaborados anualmente pelo “segundo vereador” da
Câmara. Tudo indica, afirmam Anzai e Amado, que teriam sido levados pelo Capitão-General Luiz de
Alquerque a Portugal em 1790 e, em Portugal, assim permaneceu por 200 anos, na “Casa Ínsua”, solar da família
Albuquerque, a 30 Km da cidade de Viseu, quando foi vendido em 1995 à Newberry Livrary, biblioteca situada
em Chicago nos Estados Unidos. Então, no ano de 2000, enquanto desenvolvia uma pesquisa junto à biblioteca,
a pesquisadora Janaína Amado o descobriu e, para constantar de que se tratava de uma fonte valiosa sobre a
América Portuguesa, contactou a historiadora Leny Caselli Anzai e, assim concluíram que se tratava de uma
fonte inédita e de grande importância para história do Brasil no século XVIII. Ver AMADO, Janaina; ANZAI,
Leny Caselli. Anais de Vila Bela (1734-1789). Cuiabá: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006.
18
Segundo o historiador Carlos Alberto Rosa, os Anais do Senado da Câmara de Cuiabá resultam da
combinação de 4 fatores: dos Estatutos ou Posturas de Vila Bela, do trabalho individual do advogado José
Barbosa de Sá, da “carta proposta” do provedor Real da Fazenda José Nogueira Coelho e de uma Ordem Régia
de Dona Maria Primeira. Segundo o historiador, os Anais de Cuiabá, que abarcam o período histórico de 1719 a
1830, pode ser descrito em 3 principais momentos: 1719-1786, narrativa baseada principalmente nos escritos de
Barbosa de Sá; 1787-1817, narrativa realizada pelos “segundos vereadores”; e finalmente, acerca dos anos de
1821, 1827 e 1830, em contexto imperial. Ver Annaes do Sennado da Camara do Cuyabá (1719-1830).
Transcrição e organização Yumiko Takamoto Suzuki Cuiabá:Entrelinhas/Arquivo Público de Mato Grosso,
2007.
23
Histórico Ultramarino/Angola (AHU).19 Na primeira, que comporta um acervo vasto em
termos de documentos e bibliografia abrangendo cerca de dez séculos, encontramos
importantes obras sobre as atividades escravistas na região de Angola, expansão portuguesa e
comércio de escravos com o Brasil, com destaque às seguintes obras: “História geral das
guerras Angolanas” (1681) de Antonio de Oliveira de Cadornega; “Descrição histórica dos
três reinos do Congo, Matamba e Angola” (1687) de Giovanni Antonio Cavazzi; “O jagado de
Cassange” (1898) de Henrique de Carvalho; “Apontamentos sobre a colonização dos
planaltos do litoral sul de Angola” (1940) de Felner; “Traços Gerais sobre a etnographia do
Distrito de Benguella” (1909) de Augusto Bastos; além das dissertações, teses e microfilmes,
como a “Memória da expedição a Cassange” (1850) do militar Antonio Antonio Rodrigues
Neves.
A pesquisa no ANTT, por sua vez, se concentrou em dois principais fundos: Feitos
Findos e Condes de Linhares. No primeiro, localizamos informações sobre a atuação de
comerciantes do Rio de Janeiro em Benguela, ao longo do século XVIII. No segundo, por
meio das cartas escritas pelo governante Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho,
encontramos dados de grande importância sobre o fluxo comercial entre os reinos de
Benguela e Angola, saída de navios negreiros, conflitos com chefes políticos locais que
abrigavam africanos escravizados fugidos e informações sobre o constante assédio de outras
potências coloniais européias junto ao litoral de Angola, principalmente comerciantes ingleses
e franceses.
No Arquivo Histórico Ultramarino, na seção referente a Angola, realizamos uma
pesquisa que se estendeu da década de 1720 ao final do século XVIII. Pelo fato da
documentação até o presente momento não ter sido catalogada ou microfilmada, foi
necessária a consulta direta e paciente junto a dezenas de caixas, cada qual comportando
dezenas de documentos manuscritos. Nas mesmas, foi possível localizar com grande fartura
notícias referentes a conflitos entre autoridades portuguesas e chefes políticos locais nos
entornos de Benguela e seu hinterland (as chamadas “guerras justas”), assim como tabelas
que davam conta do volume de atividades comerciais e, principalmente, acerca da exportação
de cativos dos portos de Benguela e Luanda. O rico acervo apresenta um universo formado
19
A pesquisa realizada em Portugal se deu no primeiro semestre de 2014, momento em que realizei um
“doutoramento sanduíche” sob a orientação da Professora Isabel Castro Henriques, junto a Universidade de
Lisboa.
24
por diferentes agentes em torno da empresa escravista, que rendia alta lucratividade à coroa
portuguesa (arrecadação de impostos) e a comerciantes.
Na Bolívia, por sua vez, tivemos a oportunidade de consultar os acervos coloniais dos
principais arquivos, a saber, o “Museu de Historia y Archivo Regional de Santa Cruz de la
Sierra” e o “Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia” (ABNB). No primeiro, pesquisamos
os documentos dispostos no fundo “Melgar y Montaño”, localizando, principalmente, dados a
respeito da ocupação de cativos na cidade no início do século XIX.20 Já no ABNB, a pesquisa
se distribuiu em três principais fundos: “Catalogo de Mojos y Chiquitos”, “Catalogo
Expedientes coloniais adicionales” e fundo de “Emancipación de la Audiencia de La Plata”
(1807-1824). Ao todo, levantamos 268 documentos referentes às mais diferentes
movimentações que envolveram cativos fugidos da América portuguesa para a espanhola,
principalmente, a “Sumária” que apurou a conjuração de 1809 em Santa Cruz de la Sierra,
com depoimentos dos “negros livres” aprisionados e ofícios de autoridade anexas. Tais
documentos localizados junto aos referidos fundos nos dão dimensão das diferentes atividades
que envolviam cativos no Alto Peru, como fugas e formação de “quilombos” e disputas na
justiça pela concessão de alforrias. Assim como na América portuguesa, nesta parte da
América espanhola, negros escravizados igualmente se valiam de diferentes estratégias para o
alcance de uma vida livre dos grilhões.
Mediante todo esse panorama documental produzido em sua grande parte pela figura
do colonizador, vale perguntar: como fazer emergir dizeres ou gritos ocultados do africano
escravizado e diasporizado? Aqui, nos valemos das considerações valiosas do historiador
italiano Carlo Ginzburg, que, assim como Marc Bloch, aventava a possibilidade de fazer
aparecer “testemunhos involuntários” nos testemunhos voluntários. Em palavras do autor,
“(...) escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos
fazer emergir vozes incontroladas”[grifo nosso]. 21
Em outras palavras, ao transcrevermos e incorporarmos, por exemplo, o relato de uma
“guerra justa” travada contra chefes africanos (sobas) no interior de Angola, os pormenores da
campanha, dificuldades enfrentadas por portugueses, alianças formadas frente às forças
lusitanas, estamos contribuindo para emersão de vozes antes sufocadas, silenciadas. Da
20
O fundo “Melgar y Montaño”, que corresponde ao período colonial, ou seja, anterior à independência da
Bolivia em 1825, é formado ao todo por 6 caixas. Tivemos a oportunidade de consultar todas as caixas.
21
Ver GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Tradução de Rosa Freire d’Aguiare Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, pp. 10-11.
25
mesma maneira, quando nos colocamos a descrever as freqüentes fugas de cativos para os
mais diferentes pontos, a resistência ao retorno à sociedade escravista, estamos a permitir às
testemunhas involuntárias da trama, contra a intenção daqueles que produziram a
documentação oficial, o lugar da enunciação, o direito à palavra.
Essas vozes incontroladas que emergem são vozes de “homens infames”,
parafraseando Foucault. O que as arrancou da escuridão e as fez chegar ao presente foi o
encontro com o poder, que lançou um feixe de luz sobre as suas vidas, suscitou as poucas
palavras que restam. Não têm existência a não ser no abrigo precário das palavras. De acordo
com o autor:
Essa pura existência verbal que faz desses infelizes ou desses facínoras seres
quase fictícios, eles a devem ao seu desaparecimento quase exaustivo e a
essa chance ou a esse azar que fez sobreviver, ao acaso dos documentos
encontrados, algumas raras palavras que falam deles ou que eles próprios
pronunciaram [grifos nossos].22
Foi o acaso, segundo Foucault, que fez com que essas pessoas sem glória nos chegasse
ao presente, mas ainda continuam gesticulando, manifestando raiva ou aflição. Portanto, se
tornam passíveis e descritíveis na medida em que foram atravessadas pelos mecanismos de
poder. 23
Das historiografias
A fim de consolidarmos a reflexão do percurso de reconstituição identitária dos
africanos escravizados à região fronteiriça das possessões portuguesas na América, nos
valemos de um amplo conjunto de obras, que podem ser sub-dividas da seguinte maneira:
historiografia da escravidão; historiografia da África Central-Ocidental; historiografia
regional; e historiografia hispânica. 24
22
FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In: Ditos e escritos: estratégia, poder-saber (v.4).
Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2° Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 209.
23
Ibidem, pp. 209-216.
24
É preciso salientar que grande parte desse conjunto de obras consultadas se deu entre os anos de 2011 a 2014,
momento em que cursei créditos optativos e obrigatórios no PPGHIS-UFMT e nos programas de pós-graduação
em história da UFRJ e UFF. No PPGHIS/UFMT, por meio dos seminários oferecidos pelos professores doutores
Fernando Tadeu de Miranda Borges, João Carlos Barrozo e Oswaldo Machado, reuni bibliografia sobre
temáticas referentes a cultura, formações identitárias, fronteiras e problematização do outro. Na UFRJ e UFF
junto à professora doutora Maria Paula de Araújo e Marcelo Bittencourt, tive oportunidade do contato,
26
No que concerne à primeira, é preciso salientar que se trata de uma historiografia
recente, grande parte elaborada a partir do último quartel do século XX, momento em que
vários campos da chamada “resistência escrava” se abrem para reflexão – como os embates
jurídicos, atuação das confrarias negras, festivais populares, família escrava, entre outros,
especialmente no final da década de 1980.25 É, igualmente, um momento de inclusão das
minorias, aproximação com outras disciplinas (antropologia, sociologia, arqueologia,
lingüística, entre outras) e aumento simultâneo de cursos de Pós-graduação no Brasil e linhas
investigativas com circunscrições regionais – estas últimas, que acabam por redimensionar o
que se considera “nacional ou transnacional”. 26
Em todo caso, é nesse contexto de aproximação com outras disciplinas e incorporação
de novas perspectivas que surge a obra “Negociação e Conflito” dos historiadores brasileiros
João José Reis e Eduardo Silva, em 1989.27 A mesma, de valor capital para esta tese,
apresenta o escravo como sujeito ativo e se opõe à clássica visão do cativo como vítima ou
herói. Por meio de 6 capítulos (os 3 primeiros escritos por Silva e o restante por João José
Reis) e análise de diversas fontes primárias – ofícios de governos, documentos policiais, atas,
respectivamente, com uma bibliografia pertinente ao debate sobre “memória e produção de conhecimento” e
produção historiográfica acerca do continente africano, colonialismos e pós-colonialismos. Ademais, a
realização da “bolsa sanduíche” sob a orientação da professora Isabel Castro Henriques, da Universidade de
Lisboa, no primeiro semestre de 2014, permitiu-me o contato direto com uma produção historiográfica
atualizada acerca da África Centro-Ocidental, que foi de grande valia especialmente para elaboração da primeira
parte da tese que ora apresentamos.A historiografia hispânica, por sua vez, foi a última a ser consultada. Sobre
esta, sou muito grato às contribuições diretas de Ernesto Cerveira de Sena.
25
Segundo o historiador Matthias Rörig Assunção, tal desbloqueio se deu em função da crise da teleologia
marxista em finais da década de 1990, que anteriormente identificava hegemonicamente como campos da
agência escrava apenas as insurreições, fugas, quilombos e rebeliões, em detrimento de outros aspectos da vida
cativa, que não necessariamente perpassam pelo recurso às táticas de resistência violentas. Ver ASSUNÇÃO,
Matthias Rörig. “A resistência escrava nas Américas: algumas considerações comparativas”. In:
FURTADO, Junia Ferreira; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos
XVIII e XIX. P. 325-341.
26
Sobre o contexto acadêmico brasileiro no período imbuído de um espírito “multidisciplnar”, ver SAMARA,
Eni de Mesquita. “A historiografia recente e a pesquisa multidisciplinar”. In: História & documento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007, pp. 43-65; acerca do redimensionamento do nacional ou transnacional, pelo
“regional”, vale mencionar o trabalho desenvolvido por Ernesto Cerveira de Sena, que ao refletir a área
fronteiriça entre Brasil e Bolívia, na primeira metade do século XIX, apresenta um universo dotado de diferentes
personagens – povos indígenas, colonizadores, ribeirinhos, escravos fugidos, entre outros -, onde nem todos
compartilhavam do projeto nacionalista de ambos os lados da fronteira. Se é verdade que tal área recebia
influência das autoridades centrais dos seus respectivos países, igualmente os seus habitantes apresentavam
respostas próprias ao lugar em que viviam, o que acaba por mobilizar os primeiros à adequarem as pretensões
nacionalistas, a partir dos interesses locais – como o episódio em que autoridades da Província de Mato Grosso
tentam convencer indígenas que haviam fugido da “Castela” a permanecerem em Vila Maria (Cáceres), pois
eram úteis para o propósito de povoamento da região e agricultura. Cf. CERVEIRA, Ernesto de. Representantes
de governo, povos indígenas e outros atores na zona fronteiriça de Bolívia e Brasil – 1825-1879. In: Revista
Eletrônica da ANPHLAC, n.15, jul/dez 2013, pp. 5-36.
27
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1989.
27
cartas de senhores, entre outras –, enfatiza o escravo como personagem principal de sua
própria trajetória, na busca incessante, por parte do cativo, em criar condições favoráveis para
si, fosse no conflito direto ou mesmo na negociação. Uma dessas circunstâncias, apresentada
pela obra, se dava na chamada “fuga reivindicatória”, intensificada durante o Tráfico
Interprovincial e motivada por razões diversas: após o recebimento de punição avaliada
injusta; reação a maus tratos físicos e morais; ou mesmo na forma de protesto contra transação
comercial e troca de senhor, mediante a incerteza de margem de negociação com o novo
senhor. 28
Nesse sentido, é importante frisar que, no mesmo contexto em que aparecia
Negociação e Conflito, durante a década de 1980, chegava ao Brasil um grande debate
relacionado à “História social”, que acabou por se refletir em 3 principais correntes de
pesquisa histórica: 1) a história social da família; (2) a história social do trabalho; (3) e
história social do Brasil Colonial.
29
A primeira se desenvolveu a partir da década de 1980,
influenciada diretamente pela demografia histórica e pela exploração de temas da sociologia e
antropologia, traduzindo-se diretamente no estudo das “famílias escravas”.30 A segunda
perspectiva, de maneira similar à primeira, é adotada a partir da década de 1980, quando
temas como história social do trabalho, urbanização, identidades sociais, controle social e
cidadania, constituem pano de fundo comum – estes se concentram na Primeira República e
cidade do Rio de Janeiro. 31Na terceira perspectiva, por sua vez, constata-se um diálogo com a
28
Especificamente, João José Reis, do final da década de 1980 à atualidade, tem desenvolvido uma obra de
extrema importância, com destaque aos livros “A morte é uma festa” (1991) - considerada uma das principais
referências da historiografia brasileira -, “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e
candomblé na Bahia no século XIX” (2008) e, mais recentemente “O alufá Rufino: tráfico, escravidão e
liberdade no Atlântico negro” (2010), em parceria com os historiadores Marcus de Carvalho e Flávio dos Santos
Gomes.
29
Cf. CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
História: ensaio de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 56.
30
Neste contexto, vale destacar um estudo de grande importância na historiografia contemporânea, que é o
Memórias do Cativeiro, onde as historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Lugão, investigam a memória coletiva
do ser escravo, por meio das lembranças de seus descendentes, por relatos orais: MATTOS, Hebe; LUGÃO, Ana
Maria. Memórias de cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005; outro exemplo de estudo sobre família escrava, por meio de registros de batismos é o trabalho
de Tarcísio R. Botelho, publicado na coletânea de artigos organizada por Douglas C. Libby e Junia Ferreira
Furtado: BOTELHO, Tarcísio R. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica”. In: FURTADO, Junia
Ferreira; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São
Paulo: Annablume, 2006, pp. 195-216.
31
Nesta sub-área do conhecimento histórico atualmente é referencia obrigatória o precioso estudo de Chalhoub
sobre a história dos cortiços e epidemias na cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Ver CHALHOUB, Sidney.
Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
28
historiografia internacional sobre Afro-América, redução de escala de abordagem e
valorização da experiência e cultura – que, de certa maneira, é o caso da obra de Reis e Silva.
Universidades como USP, UFBA, UNICAMP e UFF são considerados os principais centros
irradiadores deste último tópico de pesquisa.32
Outras obras de grande relevância, publicadas entre a década de 1980 até a atualidade,
que compreendem o cativo como agente e inspiram a presente tese em termos de perspectiva e
metodologia, podem ser mencionadas: Visões de Liberdade, de Sidney Chalhoub; Das cores
do silêncio, de Hebe Mattos; e Na Senzala uma Flor, de Robert Slenes.
33
A primeira obra,
resultado direto da tese defendida pelo autor em 1989 e de uma ampla pesquisa em diferentes
acervos documentais (processos criminais, civis, ações civis de liberdade, processos
comerciais, revistas da época, entre outros), 34apresenta a proposta de buscar compreensão do
significado da liberdade, conferido por cativos e forjado durante a experiência do cativeiro; de
maneira que o autor se propõe a abordar a percepção de escravos diante de situações de
transferência de propriedade, assim como a ideia de “cativeiro justo”, proveniente de uma
visão escrava, que influenciava diretamente as transações comerciais e as transformava em
situações muito mais complexas que simples trocas de mercado.35
Hebe Mattos, por sua vez, no cruzamento de diferentes escalas de observação e
utilização, assim como Chalhoub, de diferentes núcleos documentais – processos criminais,
civis, inventários e jornais da segunda metade do século XIX –, busca demarcar os termos
sobre os quais foram redefinidos os padrões de dominação nos últimos anos da escravidão –
contexto de acelerada perda de legitimidade do escravismo e de maior mobilidade escrava,
que forçou, por exemplo, o desaparecimento da menção cor branca para designar o livre e
negro para identificar o cativeiro. Sua análise é centrada no conceito de liberdade e dos
diferentes significados que lhes são atribuídos, tanto por escravos, como por recém-escravos.
32
CASTRO, Op. Cit., pp. 56-59.
Aqui lembramos novamente da obra “O alufá Rufino”, publicada na parceira entre o supracitado historiador
João José Reis, juntamente com os historiadores Marcus J. M. de Carvalho e Flávio dos Santos Gomes,. Rufino,
escravo liberto de origem nagô, mulçumano e preso em Recife no ano de 1853, onde vivia como adivinho e
curandeiro, sob acusação de estar participando de conspirações escravas. A obra acompanha com grande
desenvoltura toda trajetória de Rufino, desde o momento que é retirado da África, do Reino Oyó, desembarca ao
Brasil, inicialmente em Salvador, depois em Porto Alegre e, finalmente, no Rio de Janeiro, onde consegue
comprar a própria alforria, para alguns anos depois, escolher viver em Recife. REIS, João José Reis; GOMES,
Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
Negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
33
34
Vale ressaltar que o autor conserva, inclusive, o mesmo título de sua Tese de Doutorado, defendida em 1989
na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
35
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
29
A autora, portanto, ao tratar da re-elaboração das condições de dominação no final do período
escravista, considerando a participação cativa na atribuição de significados sobre termos
como liberdade, rompe com a supracitada visão do escravo como coisa e/ou vítima.36
A terceira obra, de autoria de Robert Slenes, investiga a agência escrava com ênfase
no âmbito familiar. Slenes dedica grande parte da obra para a crítica da literatura
historiográfica acerca do tratamento da questão da família – até então, a idéia da nãoexistência de família escrava era consensual. Tendo como principal base empírica o município
de Campinas, em São Paulo, o autor conclui que a família exercia enorme influência na vida
dos cativos. Todavia, o fulcro da análise do autor se encontra na tese da existência de herança
cultural africana na estruturação do viver familiar no cativeiro, especialmente de “grupos
bantus”. O autor, com grande perspicácia, se concentra em vários detalhes, tidos como
insignificantes, como a ausência de janelas nas casas de cativos, expressa em detalhes
desenhados em gravuras de viajantes – com a finalidade de tecer comparações entre senzalas
e aldeias africanas.37
Vale mencionar ainda a contribuição de Flávio dos Santos Gomes, que, na obra “A
hidra e os pântanos”,
38
nos apresenta uma reflexão acerca da atuação de “quilombolas” no
Brasil. Segundo o autor, esses quilombolas estavam interligados não somente à sociedade
luso-brasileira, mas também a cativos que ainda permaneciam “assenzalados”; o que acabava
por criar um complexo contexto sócio-econômico (“pântano”), dificultando a eliminação do
quilombo, que renascia constantemente após ataques – tal como a “hidra” da mitologia, que a
cada cabeça decepada, nasciam-lhe duas. Noutra instância, Gomes também trabalha com a
perspectiva do escravo como “sujeito da história”, ativo e participante das disputas políticas
contemporâneas; atento às possibilidades que se colocavam frente aos diferentes eventos,
como a abolição da escravatura na Guiana Francesa, guerra civil norte-americana, Guerra do
Paraguai, entre outros. Essa reflexão foi de grande valia para se pensar a agência cativa em
Santa Cruz de la Sierra, ante o irromper das lutas de independência na América espanhola no
alvorecer do século XIX, tema trabalhado do sexto capítulo da presente tese.
36
MATTOS, Hebe. Das cores do Silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, século
XIX. 2º Ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
37
SLENES, Robert. Na Senzala uma flor: Esperanças e Recordações da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século
XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
38
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil (séculos XVII- XIX). São Paulo: Ed.UNESP; Ed. Polis, 2005.
30
No que tange ao segundo grupo historiográfico consultado, relacionado ao que
chamamos de “historiografia da África Central-Ocidental”,
39
destacamos os seguintes
autores: Jan Vansina, Joseph Miller, John Thornton, Roquinaldo Ferreira, José Curto, Mariana
Cândido, Isabel Castro Henriques, Beatrix Heintze, e Maria Emília Madeira Santos. Assim
como o grupo anterior, trata-se de uma produção historiográfica desenvolvida do último
quartel do século passado até a atualidade, formada por numerosas obras e intensos debates.
Caracteriza-se, principalmente, pela interdisciplinaridade e uso simultâneo de diferentes
fontes, desde os tradicionais documentos oficiais, como também relatos de viajantes,
levantamentos etnográficos e lingüísticos, pesquisas arqueológicas e tradição oral. De maneira
ampla, o conjunto de autores trabalha com a perspectiva do africano integrado ao mercado
atlântico, não apenas como vítima, mas também como agente ativo.
O primeiro historiador da lista realizou ao longo da carreira a construção de uma obra
extremamente sólida, fundamentada em torno da etno-história, uso das fontes orais e
arqueológicas. Assim, Vansina torna obrigatório aos estudiosos da África Central a leitura de
várias obras, como “Kingdoms of the Savanna” (pré-história dos estados do Congo, Luba,
Lunda, entre outros), “Paths in the Rainforest” (considerado um dos melhores estudos sobre
os povos que habitam a África Equatorial) e “How societes are Born”, que utilizamos
diretamente na presente tese. Acerca desta última, ao tecer uma análise de longa-duração para
compreensão sobre como se formaram as sociedades que existiam na África Central Ocidental
por volta de 1600 d.C., o autor recuou em dois milênios, a fim de identificar o fluxo
migratório das diferentes sociedades para a região. Como em períodos anteriores a 1500 d.C.,
as fontes escritas são escassas ou inexistentes, muniu-se então de evidências arqueológicas,
lingüísticas e técnicas da biologia, para rastrear o passado.40
De Joseph Miller, considerado um dos mais importantes historiadores da África
Central, nos valemos das obras “Way of Death” e “Poder político e parentesco”, publicadas
respectivamente em 1988 e 1995. Na primeira, o autor discorre sobre temas complexos como
demografia, ecologia, economia política, sistemas de parentesco, entre outros. Sustentado em
um vasto conjunto documental coletado em arquivos brasileiros, portugueses e angolanos,
Miller intenta reconstituir o ponto de vista do escravo na historiografia do tráfico negreiro (de
1730 a 1830, nas rotas terrestres angolanas e oceânicas), ao demonstrar sensibilidade na
39
A África Central-Ocidental compreende principalmente os atuais países Congo e Angola.
VANSINA, Jan. How Societies are Born: governance in West central Africa before 1600. Virginia: University
of Virgina Press, 2004.
40
31
reconstituição vivida por africanos transformados em escravos em Angola. A obra ainda se
faz de grande importância, uma vez que traz à cena diferentes aspectos das dinâmicas internas
de poder, como as estratégias de troca e acumulação adotadas por grupos dominantes das
sociedades africanas, alternativas possíveis de negociação comercial em vista das formações
políticas africanas, entre outras.41
Na segunda obra, a partir do cruzamento de relatos etnográficos, documentos oficiais e
tradições orais dos povos Mbundu (norte da Angola), Miller apresenta uma densa reflexão a
respeito da organização do poder político na região, sobretudo, a partir das migrações dos
povos Lundas, encontro com os Ovimbundus e advento dos chamados “Imbangalas”. Ao
propor a substituição interpretativa do foco nos indivíduos para os “títulos” (por exemplo, no
lugar de “rei”, ler-se dinastia), Miller demonstrava o ponto de vista histórico dos homens
locais sobre os conflitos políticos na atual Angola e presença européia. Entre os objetos que
despertam grande atenção do autor, destaca-se a instituição “Kilombo”, resultado do
intercruzamento de numerosas noções políticas junto a diferentes processos migratórios.
De John Thornton, autor de importantes obras que tratam da África Central – com
destaque a “The kingdom of Kongo” (1983), “Africa and Africans in the formation of the
Atlantic world, 1400-1680” (1998) e “Walfare in Atlantic Africa, 1500-1800” –, utilizamos
principalmente o clássico artigo escrito em defesa da existência dos povos “Jagas”, do norte
da atual Angola, intitulado “A ressurection for the Jaga” (1978). Nele, o autor apresenta um
conjunto de obras extraídas das mais diferentes fontes, que buscavam reconstituir a trajetória
dos povos, fundamentais para entendermos na presente tese a formação multicultural dos
quilombos.
A leitura das teses de Roquinaldo Amaral Ferreira e Mariana Pinho Cândido foi de
grande valia para este trabalho. A primeira, intitulada “Transforming Atlantic Slaving: Trade,
warface and territorial control in Angola, 1650-1800” (2003), fundamentada em pesquisas
realizadas no Rio de Janeiro e Benguela, nos introduz à consideração de um grande fluxo
comercial de cativos na região, além da atuação direta de comerciantes nascidos na América
portuguesa. Na tese de Mariana Cândido, “Enslaving frontiers: slavery, trade and identity in
Benguela, 1780-1850”, defendida em 2006, ao analisar o universo populacional em Benguela
e Caconda, a autora constata a emergência de “sociedades crioulas” em função da empresa
41
MILLER, Joseph C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave trade (1730-1830). MadisonWisconsin: The University of Wisconsin Press, 1988.
32
escrava, fazendo com que comerciantes do além-mar e diferentes sociedades do hinterland de
Benguela dividissem o mesmo espaço.
A obra de José Curto, por sua vez, foi substancial não somente pelo fornecimento de
tabelas e dados atualizados acerca do volume de cativos exportados de Benguela para o
Brasil, mas também pela contextualização histórica de longa duração sobre a expansão das
atividades portuguesas junto aos Ovimbundus, que habitavam o hinterland de Benguela, e
sobre o envolvimento de diferentes personagens africanos no comércio Atlântico; em um
panorama que atravessa quatro séculos.
Por fim, as obras de Beatrix Heintze, Maria Emília Madeira Santos e Isabel Castro
Henriques contribuíram diretamente para compreensão da organização dos circuitos
comerciais que cortavam os reinos de Angola e Benguela, no período estudado. Em Heintze,
encontramos informações detalhadas referentes à organização das chamadas caravanas
comerciais; em Santos, dados sobre as condições daqueles que participavam das Caravanas,
sobretudo, carregadores e sertanejos como o brasileiro Silva Porto, conhecido por organizar
grandes caravanas na região.
Em Isabel Castro Henriques, sobremaneira, na obra “Percursos da modernidade em
Angola”, baseada na tese de doutorado defendida em 1992, pudemos localizar um vasto
conjunto de informações a respeito da organização comercial no território angolano, na qual
as diferentes sociedades africanas aparecem com papel fundamental para realização de
quaisquer atividades de cunho econômico. Na tese, encontramos numerosas referências às
caravanas comerciais, aos seus diferentes personagens (sertanistas, pombeiros, comerciantesfinanciadores), às diferentes rotas comerciais que cortavam o território angolano e instalações
portuguesas – cidades litorâneas, presídios, fortes, entre outras.
No que tange à produção historiográfica regional, embora seja muito recente e em
menor número se comparada aos estados do sudeste e nordeste brasileiro – pouco mais de
duas décadas –, podemos elencar várias obras de grande qualidade que contribuíram direta ou
indiretamente para a tessitura desta tese que se segue. A primeira e maior referência da
historiografia regional da escravidão é de autoria da historiadora Luiza Volpato, intitulada
“Cativos do Sertão”, cuja principal proposta foi realizar uma análise sobre o cotidiano dos
cativos na segunda metade do século XIX em Cuiabá, capital da então Província de Mato
Grosso. Assim como os outros autores, no cruzamento de diferentes fontes, a autora partiu do
pressuposto de que a vida de um escravo, no período, era dinâmica e não se resumia ao
33
simples “cumprir ordens”. O cativo, segundo Volpato, deveria ser interpretado como ser
humano, dotado de subjetividade e interventor do seu destino. Sobre tal perspectiva, Volpato
afirma:
(...) o presente trabalho procura pensar o cativo como ser humano no espaço
do seu dia-a-dia, considerando que mesmo aquele que não fugia, não se
suicidava, não participava de rebeliões, também lutava para ser uma pessoa.
Esta luta podia se dar no espaço da transgressão, quando o escravo roubava,
quando atuava como receptador e vendedor de objetos roubados; podia se
dar no espaço da justiça, quando ele denunciava e movia processo contra seu
senhor; podia se dar ainda de uma forma imensamente variada, quando ele
transitava pelo terreno fluido que se colocava entre aquilo que o senhor
considerava certo e o que considerava errado, quando, sem infringir seu
código disciplinar – mas atuando no seu limiar – tomava atitudes próprias do
indivíduo e lutava contra a sua coisificação [grifo nosso].42
Como podemos observar acima, a influência do Negociação e Conflito do João José
Reis e Eduardo Silva se faz notória na iniciativa de considerar o cativo atuante em todas as
dimensões da sua vida, protagonista da sua própria história. O espaço da agência escrava
analisado pela autora não somente se dava no confrontamento direto com o sistema escravista,
contudo, também nas mais diferentes transgressões e lugares (justiça, sabotagem, entre outros
elementos).
Ainda na mesma década de 1990, podemos destacar outra obra de grande importância,
da autoria do historiador Jovam Vilela da Silva, intitulada “Mistura de Cores”. Na mesma,
pela análise de variados censos na segunda metade do século XVIII, o autor apresenta a
população da Capitania do Mato Grosso composta majoritariamente por mestiços, na
miscigenação entre brancos, negros e incorporação de indígenas. A fim de elucidar tal
resultado, o autor direciona a sua investigação tanto às diferentes maneiras em que indígenas,
sobretudo Bororos e Parecis, foram assimilados como cativos, quanto às estratégias aplicadas
por autoridades portuguesas para povoamento da região, em vista da disputa da fronteira pelas
coroas ibéricas – casamento entre indígenas e escravos, aldeamentos, entre outras.
Podemos citar, ainda, como contribuição direta para este trabalho, três dissertações
recentes: a de Otávio Ribeiro Chaves (2000), de Maria Amélia Assis Alves Crivelente (2001)
e de Monique Lordelo (2010). A primeira, intitulada “Escravidão, Fronteira e Liberdade”,
defendida na UFBA, nos forneceu numerosas direções para se pensar o fluxo de entrada de
42
VOLPATO, Luiza. Cativos do Sertão. São Paulo: Editora Marco Zero; Cuiabá, MT: Editora da Universidade
Federal de Mato Grosso, 1993, p. 11.
34
cativos na Capitania/Província de Mato Grosso, assim como as possíveis procedências étnicas
africanas e atuação ativa dos cativos no cotidiano da região. A segunda autora, pela análise
dos casamentos realizados entre africanos em Chapada dos Guimarães, na primeira metade do
século XIX, apresenta um universo escravista composto majoritariamente por africanos bantu,
sobretudo por aqueles identificados como “Benguelas”. Lordelo, por sua vez, a partir da
análise da documentação referente ao século XVIII – incluindo documentos alocados no
Arquivo e Biblioteca Nacional da Bolívia (ABNB) de Sucre –, nos possibilita um quadro
amplo da agência escrava na região, marcado por fugas para as possessões espanholas e
formação constante de quilombos.
Igualmente, os recentes apontamentos da antropóloga Maria Fátima Roberto Machado
são de grande importância para esta tese. A mesma, no artigo apresentado em 2006, intitulado
“Quilombos, cabixis e caburés”, analisa a recorrência dos contatos interétnicos na região do
Vale do Guaporé, entre africanos fugidos e indígenas, principalmente nos quilombos. Para
tanto, parte do quilombo devassado em 1795, em que foi capturada uma população composta
majoritariamente por caburés, mestiços entre negros e indígenas.
Por fim, embora não discorram especificamente sobre a temática da escravidão, vale
notar que os historiadores Otávio Canavarros, João Antônio Botelho Lucídio e Carlos Alberto
Rosa foram fundamentais para a compreensão do espaço e temporalidade analisados no
decorrer da tese. O primeiro, com a obra “O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752)”,
nos propiciou ampla base para se pensar o estabelecimento lusitano na região, ante o contexto
de disputa fronteiriça com a coroa espanhola. O segundo autor, por meio da tese de
doutoramento defendida ainda em 2013, intitulada “‘A Ocidente do imenso Brasil’: as
conquistas dos rios Paraguai e Guaporé (1680-1750)”, nos permitiu vislumbrar um espaço
territorial repleto de numerosos personagens, acima de tudo indígenas, por meio da análise de
uma ampla documentação disposta em diferentes arquivos da América do Sul (Brasil, Bolívia,
Paraguai, entre outros) e Europa. O terceiro autor, historiador mato-grossense de importantes
obras, contribuiu substancialmente para compreensão de características gerais da vida
cotidiana na região, sobremodo, pela tese intitulada “A Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá: vida urbana em Mato Grosso no século XVIII (1722-1808), defendida junto ao
PPGHIS da USP em 1996.
Finalmente, valem algumas considerações sobre o que denominamos “historiografia
hispânica”, que foi de fundamental importância para se pensar o contexto histórico e social
35
em que atuaram cativos fugidos da América portuguesa no Alto Peru, entre o final do século
XVIII e início do XIX. Consultamos, principalmente, os autores Carlos Malamud, Alberto
Crespo Rodas, Paula Peña Hásbun, Humberto Vázquez Machicado, Bismark Cuéllar Chávez,
Georges Reid Andrews e Maria Verónica Secreto.
Em Malamud, na obra “Historia de America”, levantamos informações acerca da
estrutura política no mundo colonial espanhol, bem como sua organização na América
espanhola nas suas diferentes instituições – Vice-reino, Reais Audiências, Cabildos, entre
outros. Já em Alberto Crespo Rodas, no livro “Esclavos negros em Bolivia”, pudemos
vislumbrar o funcionamento da instituição escravista no Alto Peru, desde o período colonial
até a Independência da Bolívia. Na mesma, estão dispostas informações sobre as rotas
comerciais, procedências étnicas, emprego e diferentes ofícios ocupados por cativos, e a
análise da participação de negros junto às guerras de independência que envolveram o Alto
Peru a partir de 1810.
A consulta de Paula Peña Hásbun foi, igualmente, de grande valia para entender o
lugar da mão-de-obra cativa em Santa Cruz, assim como o próprio contexto social e político
em que a cidade estava imersa nos momentos anteriores ao eclodir das guerras de
independência. Especificamente, tivemos contatos com dois textos, a saber: “La Guerra de
Independencia en Santa Cruz de la Sierra” e “La permanente construción de lo cruceño: un
estúdio sobre la identidad en Santa Cruz de la Sierra”.
Em Humberto V. Machicado e Cuéllar Chávez, localizamos reflexões diretas sobre a
conspiração do agosto de 1809. O primeiro autor, cuja obra se intitula “La efervescência
libertaria en el Alto Peru de 1809 y la Insurrección de Esclavos en Santa Cruz de La Sierra”,
apresenta uma reflexão baseada em cartas trocadas entre “patriotas” envolvidos com rebeliões
no Alto Peru, no ano de 1809, que exprimiam conscientemente os eventos ocorridos em Santa
Cruz e cujos protagonistas foram negros livres, cativos e aliados. Cuéllar Chávez, por sua
feita, tece sua reflexão com base em cartas trocadas entre o subdelegado de Santa Cruz, o
Intendente de Cochabamba e autoridades do Vice-Reino de La Plata e Real Audiência,
apresentando um ambiente de intensa preocupação com as ações cativas e principalmente com
as possíveis alianças entre escravos e indígenas da região.
Por fim, a leitura de Georges R. Andrews e Secreto foram de suma importância para
vislumbrarmos as possibilidades que se colocavam aos cativos que se encontravam na
América espanhola para uma vida além do cativeiro. No primeiro autor, na obra “América
36
afro-latina (1800-2000)”, encontramos uma análise comparativa nos mais diferentes países da
América acerca das alianças firmadas por cativos e diferentes forças em meio às guerras de
independência. Para o autor, a população escrava das Américas estava atenta às possibilidades
lançadas para a concessão da liberdade e ao complexo embate de forças e, conscientemente,
escolhiam o lado que pudesse assegurar a alforria no pós-conflito. Já em Maria Verónica
Secreto, consultamos uma reflexão sobre a pretensa “benignidade” da escravidão na América
espanhola e a constante concessão de “manumissões”. A autora, partindo da reflexão das
tradições jurídicas no mundo hispânico, apresenta o cativo como sujeito atento às brechas
legais para concessão da alforria e relacionados ao restante da sociedade, a fim de que
pudessem obter ganho de causa. Na pesquisa documental realizada nos arquivos bolivianos,
encontramos casos de cativos atentos às movimentações políticas nos centros urbanos
hispânicos, como também outros em que tentavam a concessão da alforria no interior de
contendas judiciais.
***
A trajetória que nos propormos a acompanhar na presente tese está dividida em 6
capítulos: os dois primeiros referentes ao continente africano; os três seguintes à chegada,
emprego e ruptura com a sociedade escravista na América portuguesa; e o último pertinente à
fuga e vida na América espanhola. Assim, no primeiro capítulo, intitulado “A chegada do
mundo Atlântico e os povos do hinterland de Benguela:entre os Ovimbundus e Imbangalas
(século XVII-1720)”, apresentamos uma abordagem geral da chegada lusitana em Benguela,
ao sul de Angola, e sua expansão crescente ao leste do território. O capítulo está sub-dividido
em duas seções, sendo a primeira responsável por apresentar o espaço e os povos que o
habitavam (os chamados Ovimbundus e Imbangalas), de acordo com a documentação
analisada. Na mesma, são arroladas informações sobre a organização política, o caráter
militarista e expansão portuguesa crescente. A segunda seção, por sua vez, trata da percepção
acerca dos jagas-Imbangalas, povos militarizados que migraram para a região analisada e se
miscigenaram com os Ovimbundus. Entre as principais características que serão destacadas
nesse processo de hibridização, destaca-se a recorrência da instituição denominada
“kilombo”, que na região significava “campo de iniciação militar”.
No segundo capítulo – “Do hinterland à costa: o espaço e os protagonistas na produção
de escravos em Benguela (1730-1828)” –, tratamos principalmente dos mecanismos
comerciais que permitiram a realização do comércio de escravos do porto de Benguela para o
37
território luso-brasileiro. O capítulo também está subdividido em três seções: a primeira trata
das estimativas de comércio de escravos à luz das recentes produções historiográficas; a
segunda discorre sobre a organização do comércio, a partir das Caravanas comerciais,
variadas redes comerciais, personagens e instalações portuguesas; e a última traz uma reflexão
sobre as “guerras justas” junto à produção de escravos no hinterland de Benguela, a partir do
complexo quadro de alianças e perspectivas de vários sujeitos envolvidos em conflitos que se
deram entre as décadas de 1720 a 1730 nos arredores do presídio de Caconda, importante
entreposto comercial de escravos.
A partir do capítulo 3, passamos a acompanhar a trajetória de africanos escravizados
nas Américas. Desse modo, o terceiro capítulo, intitulado “Devassa no sertão: um panorama
da instituição escravista na fronteira do território luso-brasileiro (1720-1809)”, parte de uma
expedição organizada em 1795 para destruição de um quilombo e, por meio desta, assume a
proposta de se pensar a instituição escravista de maneira geral na região – desde a chegada
dos primeiros cativos, das rotas percorridas, até as assimilações culturais, acima de tudo, entre
indígenas e cativos africanos bantus.
No quarto capítulo, cujo título é “A vida para além da sociedade escravocrata: o
trânsito entre indígenas, espanhóis e o retorno forçado”, apresentamos o percurso daqueles
que se dissociaram da escravidão por meio das fugas, que se deram com grande freqüência
pelos mais diferentes caminhos. O capítulo, de maneira geral, está dividido em 3 seções, que
tratam, respectivamente, do inevitável contato com indígenas que habitavam a região, da fuga
para as possessões espanholas e do retorno à sociedade escravista, sob circunstâncias
forçosas.
No quinto capítulo, intitulado “O que atravessou o Atlântico: vida e morte do
Quilombo Grande (1730-1795)”, apresentamos uma reflexão em torno do maior e mais
famoso quilombo do Mato Grosso e Cuiabá, chamado “Quariterê” ou “Quilombo Grande”. A
partir de relatos etnográficos realizados pelo antropólogo Max Schmidt sobre a cultura
aruaque e os Pareci-Cabixis, junto a documentos históricos que buscaram descrever a
organização econômica e política do quilombo, observamos intensos intercâmbios entre
aquilombados e indígenas que habitavam a região do vale do Guaporé; assim como a
aplicação de possíveis noções políticas Ovimbundu-Imbangalas no que tange à organização,
principalmente no que diz respeito à flexibilização para a adesão de novos integrantes.
38
Finalmente, no sexto e último capítulo da tese, apresentamos a “conspiração” tramada
na aliança entre negros livres, cativos e indígenas na cidade de Santa Cruz de la Sierra no
agosto de 1809. O capítulo em si está dividido em quatro seções, sendo a primeira dedicada a
apresentar o lugar da mão-de-obra escrava em Santa Cruz de la Sierra e Alto Peru; a segunda,
concentrada na conspiração negro-indígena; a terceira, referente ao “malogro” da rebelião,
possíveis alianças com setores que começavam a amadurecer a ideia de independência no
Alto Peru e o destino dos conjurados aprisionados; e, por fim, a última, dedicada a pensar as
diferentes estratégias lançadas por cativos na região para uma vida além do cativeiro, desde
formação de quilombos a disputas na justiça.
2
40
CAPÍTULO 1 - A chegada do mundo Atlântico e os povos do hinterland de
Benguela (século XVII-1720)
(...) Nossos pais viviam numa grande planície junto ao mar...
Tinham animais e culturas. Tinha salinas e bananeiras...
De repente viram sobre o mar surgir um grande barco...
Este barco tinha asas muito brancas, brilhantes como facas...
Os homens brancos saíram da água e ficaram imóveis na praia...
Os nossos antepassados tiveram medo. Disseram que eram os ‘vumbis’, os
espíritos que regressam...
Repeliram-nos para o mar com frechadas...
Mas os ‘vumbis’ vomitaram fogo com um barulho de trovão...
Muitos homens foram mortos. Muitos fugiram. Outros ficaram junto do
grande mar...
Então os homens brancos desembarcaram de novo. Pediram galinhas e ovos.
Davam tecidos e missangas...
Pediram ouro, marfim, escravos!43
A compreensão do Outro possivelmente seja o elemento mais relevante para se
entender o comércio atlântico de escravos e o papel desempenhado por diferentes sujeitos.
Entender o ponto-de-vista do comerciante de escravos é tão importante quanto perceber o
possível significado atribuído à atividade pelo chefe africano – que se opôs ou negociou com
europeus –, o pombeiro ou ao próprio africano escravizado. Assim, partindo dessa
necessidade, nas últimas décadas têm se realizado investigações não somente centradas em
fontes oficiais – estas que em larga medida apresentam a leitura dos processos históricos a
partir de concepções não-africanas –, mas em relatos orais, descrições etnológicas e de outras
memórias, como aquelas produzidas por religiosos ou militares. Contudo, trechos que
demonstram as impressões africanas durante os primeiros contatos com o homem europeu,
como o que está acima transcrito, ainda são raros e escassos.
Adaptado de uma tradição oral dos povos Bapende, que habitavam o atual território do
Congo, foi transcrito e publicado por José Mena Abrantes na obra “Ana, Zé e os escravos”.
44
43
Aborda o exato momento de chegada das frotas portuguesas na costa africana durante o
Texto adaptado da tradição oral dos povos Bapende orientais, por ABRANTES, José Mena. Ana, Zé e os
escravos – in Teatro I. Coimbra: Cena Lusófona, 1999.
44
José Mena Abrantes é atualmente considerado um dos principais escritores e dramaturgos angolanos. A
transcrição e publicação, em si, remete a 1980. Na mesma destacam-se como personagens principais duas
figuras conhecidas da história angolana, que marcam o final da escravatura na região: Ana e Zé. A primeira era
uma famosa comerciante de escravos nas primeiras décadas do século XIX. O segundo, Zé Telhado, se tratava
41
século XV. Embora esteja relacionado a um contexto específico, de maneira geral, nos
remete às primeiras impressões africanas acerca do homem europeu que chegava em grandes
barcos: pensavam que eram espíritos, e por isso deveriam ser repelidos (versos 7 e 8). Após
os primeiros ataques dos Bapende, motivados por uma certa confusão ao que era
completamente desconhecido, veio a reação portuguesa, que culminou em mortes, exploração
dos recursos naturais e, finalmente, em escravidão.
O capítulo que se segue, portanto, constitui uma apresentação do mundo existente no
atual sul da Angola, no momento da chegada e expansão lusitana, assim como os diferentes
lugares ocupados por africanos, para, mais adiante, refletirmos a possível percepção africana
de todo esse processo. Grosso modo, primeiramente, apresentamos o território angolano,
destacando as suas características geográficas, desde a localização até as taxas de
pluviosidade e concentrações demográficas ao longo do território, em função do clima e
temperatura; em um segundo momento, dispomos sobre a localização etnoliguística ao longo
do espaço físico e, especialmente, tecemos algumas reflexões acerca do avanço português
junto aos domínios Ovimbundus.
Na sequência, com o fim de entender a principal instituição que organizava aqueles
que viviam na região dos Ovimbundus no século XVIII, a saber, o “kilombo”,
desenvolveremos uma reflexão sobre os “temíveis” Jagas-Imbangalas, a apropriação destes
pelo reinado de Nzinga e, por fim, algumas notas sobre o próprio “kilombo” – de sua gênese a
detalhes pertinentes para o seu formato ao longo das sociedades Ovimbundus ou Imbangalas.
1.1.O cenário: condições geográficas, climáticas e diversidade etnoliguística desde o
século XVI
A atual Angola, cujo nome se deriva de “Ngola” – dinastia dos povos Ambundo que
estavam fixados no Médio-Kwanza45 –, possui um território disposto entre os paralelos 4º 22’
e 18º 02’ e os meridianos 4º 05’ e 11º 41’ a leste de Greenwich, no Hemisfério Sul, na parte
ocidental da chamada África Austral, ocupando uma área de 1.246.700 Km². A mesma é
limitada ao norte pela República do Congo, a leste pela República da Zâmbia e República
de um degredado português, conhecido por dividir com os necessitados tudo aquilo roubava. A peça, de maneira
geral, levante um debate profundo sobre a história, cultura e identidade nacional angolana. Sobre uma análise
acerca da obra dramática de José Mena Abrantes e, especialmente, o texto em questão, ver ÉBOLI, Luciana
Morteo. A Literatura dramática em África de língua portuguesa: história e cultura. In: Língua Portuguesa:
ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Universidade de Évora, 2010.
45
Ver SANTOS, Eduardo. Religiões de Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1969, p. 19.
42
Democrática do Congo, ao sul pelo Namíbia e a oeste pelo Oceano Atlântico – possui uma
costa marítima de 1.650 Km. 46
No século XVI, momento em que se estabeleceram os primeiros contatos entre
portugueses e africanos da região, o espaço estava subdividido e ocupado por numerosos
povos, que possuíam singulares organizações políticas e trajetórias históricas distintas (ver
mapa 1, 2 e 3). O estabelecimento e conquista desse território pela coroa portuguesa foi
progressivo e lento, cadenciado pela atitude resistente de pequenos ou grandes potentados,
política de alianças e vassalagem (ver mapa 4); além das disposições geomorfológicas e
condições ambientais, que impuseram barreiras naturais aos avanços lusitanos, como a
dificuldade de trafegabilidade junto aos rios que cortavam o território.
De modo geral, o território em que se encontraram portugueses e diferentes povos
africanos era caracterizado por uma gama de microambientes, modificações climáticas,
diferentes altitudes, taxas de pluviosidade, que acabavam por favorecer o desenvolvimento
(ou não) de específicas atividades produtivas e, por conseguinte, indicar qual poderia ser o
perfil do africano incluído no comércio transatlântico de escravos – agricultor, guerreiro,
comerciante, entre outras atribuições.
Em primeiro lugar, vale chamar atenção para a estabilidade climática da região.
Segundo Vansina, pode-se dizer que: de 500 a.C. a 900 d.C., o clima no território angolano
foi marcado por maiores estações chuvosas; de 1000 a 1200 d.C., a existência de estação de
seca mais prolongada; e, partir de 1200 d.C. até cerca de 1950, o clima se estabilizou tal como
se conhece atualmente.
47
Dessa forma, a Angola que se inseriu no comércio transtlântico de
escravos, paulatinamente a partir do século XVI, durante o ano, era demarcada por duas
estações climáticas, a de chuvas e a de estiagem; a primeira, úmida e quente, entre setembro e
abril, ao passo que a segunda se estenderia do mês de maio a setembro – esta sendo seca e
fria.
Ao longo de todo o território, existia uma variação climática considerável. Se ao norte,
região de Cabinda, a precipitação poderia atingir por vezes 800 mm, no litoral sul estava em
torno de 50 mm, uma vez que a primeira região seria considerada “tropical” e a segunda se
encontraria localizada em uma região desértica. A temperatura também sofreria variações ao
longo do território angolano: no litoral sul, atingia a média de 23º C; ao norte, se elevava
(juntamente com as taxas de pluviosidade); na região dos planaltos, em função da altitude,
46
Sobre dados gerais acerca das características fisiográficas de Angola, ver DINIZ, Alberto Castanheira.
Características Mesológicas de Angola. Nova Lisboa: Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, 1973.
47
VANSINA, Op. Cit.
43
somava uma temperatura média de 19º; o Sudeste seguia a característica climática dos
planaltos; o sudoeste apresentava temperaturas baixas durante a estação seca e noite; e,
finalmente, o leste dispunha de um clima tropical moderado. Conforme aumentava-se a
distância da Linha do Equador, a estação de seca era mais prolongada e, inversamente, a
pluviosidade diminuía.
Essa variação climática se devia à localização do território junto ao globo terrestre –
acima do trópico de capricórnio, ao sul da linha do Equador e por fazer fronteira com o
Oceano Atlântico –, que provocava a sucessão de climas. A esses fatores, deve-se acrescentar
a altura em relação ao nível do mar, que acabava determinando a própria pluviosidade. De
maneira geral, o território Angolano possuía dois altos cumes, que correspondiam a uma
altura acima de 1500 metros: um se encontrava na região do planalto central, e separava a
costa do interior – marcado por escarpas íngremes –, ao passo que o outro separava a bacia do
Congo em direção à Baia do Okavango.48
No interior dessa configuração, igualmente havia uma complexa disposição dos fluxos
dos rios, que corriam para a costa ou para áreas do interior, fosse do Sul para o Norte (do
norte do Kasai e seus afluentes); ou na direção contrária, do Norte para o Sul do Cunene,
Okavango e Zambezi, interrompido apenas por cachoeiras;49 formava-se um vasto sistema
hidrográfico. Na região norte, os rios corriam para a chamada Bacia do Zaire, onde se
confluem os rios Kassai e Kwango. Cortando grande parte do território angolano, com uma
extensão de 960 Km, sendo 258 Km navegáveis (desde a sua foz, no Bié até do Dondo, na
província Kwanza-Norte), estava o rio Cuanza (ou Kwanza), que seguia do Sul (planalto do
Bié) a norte e, posteriormente, se dirigia ao oeste em direção ao Atlântico (ao sul de Luanda).
Ao Sul, por sua vez, estavam os rios que seguiam a bacia do Zambeze, que possuía uma
extensão de 1.390.000 Km², abrangendo os países de Angola, Namíbia, Botswana, Zimbabwe,
Malawi, Tanzânia e Moçambique.
50
Além destes mencionados, destacavam-se os rios Zaire
(ao norte), o Cunene (do Planalto ao sul), o Kubango (em direção à atual República da
Namíbia, ao sul), e o Keve, sentido leste-oeste (ver mapas 5).
A estrutura geomorfológica de Angola, partindo da costa para o interior, poderia ser
descrita da seguinte maneira: faixa litoral, zona de transição, cadeia marginal de montanhas,
planalto antigo, bacia do Zaire, Bacia do Zamzebe e bacia do Lubango; território
caracterizado, em sua grande parte, por planaltos e pelo talude atlântico, ou seja, por degraus
48
Sobre características geográficas e movimentação humana no território angolano em longa duração, ver
VANSINA, Op. Cit., pp. 15-22.
49
Ibidem, p. 16.
50
Somente em Angola a bacia hidrográfica do rio Zambeze atinge a área de 150.800 Km².
44
que descem até o oceano. Vale destacar ainda que as bacias se situavam nos planaltos (cerca
de 60% do território está caracterizado por planaltos) e que aproximadamente 65% de Angola
está situada numa altitude de 1000 a 1600 metros.
A vegetação que se formava nesse território seria resultado da combinação de
numerosos microambientes e a própria latitude, de modo que se dispõem de norte a sul do
país diferentes savanas, florestas, pastagens e estepes.51 Por exemplo, quando se pensa a área
de costa da Angola, deve-se considerar a combinação das correntes frias que partem do sul do
Atlântico, especialmente na região de Benguela, com a redução de pluviosidade e a existência
do deserto da Namíbia, que está na fronteira sudoeste da Angola.
Ademais, frente a todo esse quadro apresentado, é necessário entender a ocupação
humana deste espaço, diretamente influenciada pelas mudanças climáticas e instaladas,
sobretudo, em regiões onde se verificavam maiores possibilidades de desenvolvimento da
agricultura; de forma que, historicamente, os limites mais importantes, principalmente quando
se pensa em “termos demográficos”, estiveram localizados em torno das latitudes 11º e 12º e
16º e 17º, região onde se cultivou inicialmente a palmeira e inhame. Segundo Joseph Miller, é
provável que, na altura do século XVI, grande parte da população da região se dedicasse à
agricultura e estivesse fixada nas áreas mais baixas e úmidas, nas margens dos rios, onde
havia terra disponível para a atividade. Além da agricultura, indícios apontam que tanto os
povos do Norte como aqueles que habitavam o sul praticassem a caça, pesca e criação de
animais. 52
De maneira geral, na altura do século XVI, a população africana, que habitava a atual
Angola, estava distribuída da seguinte maneira: ao norte, estavam os Mbundus e os Kongos,
que falavam o Kimbundu e Kikongo, respectivamente; ao leste, os Cokwes e Lundas, cujo
idioma era o Kocokwe; e, finalmente, ao sul estavam os Ovimbundu, falantes do Umbundu.53
As fronteiras entre estes povos modificavam-se constantemente em função dos fluxos
migratórios e, a partir da chegada dos portugueses, em decorrência das guerras ou alianças
comerciais.
51
54
Ibidem, p. 19.
MILLER, 1995, p. 36.
53
Idem Ibidem, p. 38.
54
Autores como Cavazzi, Cadornega, Silva Porto, Rodrigues Graça, Magyar, Felner, Augusto Bastos, entre
outros, citados ao longo deste texto, mencionam grande diversidade entre os povos que habitavam a região, de
modo que entre os séculos XVII ao XIX, no interior das suas respectivas obras, haveriam os Ovimbundus, que
estavam subdivididos em Cacondas, Quiacas, Huambos, Biénos, entre outros; os Lundas, Bakongos e,
principalmente, os povos Mbundu, que foram àqueles que habitaram os entornos de Luanda e,
consequentemente, foram os que mais estabeleceram contatos com portugueses. Sobre estes últimos, ao longo
das descrições dos autores supracitados, são mencionados os Dembos, Gingas, Quissamas, Bangalas (ou
Imbangalas), Songos, Mussemedes, entre outros; Sobre mapa etnoliguístico contemporâneo em Angola, ver
52
45
Em linhas gerais, tais povos se originaram principalmente dos chamados “bantu”,
designação atribuída a quase todas as populações fixadas ao sul da linha do Equador, na
África. Segundo Rosa Cruz e Silva, estes migraram da região dos Camarões e adentraram
progressivamente na África Central, Oriental e Austral, por volta de 1.000 d.C., introduzindo
na África Meridional a metalurgia, cerâmica e agricultura; provocaram, por conseguinte, uma
mudança substancial nas antigas sociedades e deram origem, paulatinamente, a novas
formações étnicas. Especificamente, segundo a autora, tal migração seguiu três direções: a
primeira, pelo Norte, descendo rios e costas e atravessando o Baixo Zaire; a segunda, através
do oriente e nordeste, ao longo do Zamzebe; e, por fim, a terceira pelo Sul, do norte do
Calahari até o sudoeste de Angola. 55
Especialmente o quadro político que estava em formação no momento em que o
mundo transtlântico chegara ao território angolano era resultado, sobretudo, das migrações
originárias do Leste, dos povos Lundas, que, na adoção de instituições como o “kilombo” dos
Ovimbundus, passaram a ser conhecidos como Imbangalas.56 Assim, poderiam coexistir no
hinterland de Benguela – espaço por excelência da reflexão que se segue –, povos
Ovimbundus que reivindicavam ou não a descendência Imbangalas, cujo grau de
centralização entre os mesmos variava. O mundo encontrado por portugueses, em suma,
estava em contínua formação e re-formação e portava elementos culturais de diferentes povos
da África Central, que estavam em constante movimento.
1.1.1.A “produção de cativos” frente ao universo “Ovimbundu” (1620-1720)
Para uma primeira abordagem sobre os povos do Sul e, principalmente, dos
Ovimbundus, chamamos a atenção para o trabalho de Augusto Bastos. Tal estudioso intentou
a realização de uma etnografia dos povos que habitavam a região de Benguela, sob a
justificativa de contribuir para o aproveitamento das “benesses da conquista” com a
MARTINS, José Vicente. Crenças, Advinhação e Medicina Tradicionais dos Tutchokwe do nordeste de Angola.
Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1993.
55
Ver SILVA, ROSA CRUZ. Angola e seu Potencial. Luanda: Ministério da Cultura, 1997, p. 103. Ver também
OBENGA, Theophile. Les Bantu. Dakar: Présence Africane, 1980.
56
Na seção1.2.1. segue uma análise dos fluxos migratórios Lundas e adoção do “Kilombo”.
46
pacificação e conservação das boas relações com os povos locais. Segundo suas pesquisas,
habitavam na região no início do século XX os seguintes grupos:
Bihenos, Bailundos, Andulos, Quimbandes, Cachingues, Luimbes, Luelas,
Luenas, Capocos, Quiocos, Luchasses, Lobales, Bundas, Canhocas (sendo
estes últimos doze designados genericamente por Ganguellas), Dondes,
Momas, Sambos, Huambos, Quipeios, Quibandas, Quibullas, Soques,
Galangues, Gaandas, Ecumbiras, Lendes, Quiacas, Quimdumbos,
Galiatenas, Quissanges, Selles, Caialas, Hanhas (de Catumbella), Hanhas (de
Benguella), Gandas, Quingolos, Chicumas, Quequetes, Goas, Caluquembes,
Cacondas, Luceques, Fendes, Nhembas, Dongos, Chicungos, Chicarapiras,
Mussidos, Catocos, Mundombes, Mucuandos, Bacuisses, Quillengues, etc.57
Estes povos, segundo o autor, se originavam do cruzamento de três raças, a saber, os
Bantu, Congolezes e Hottentotes, prevalecendo a primeira.58 Contudo, as mesmas estavam
distribuídas por todo o território de Angola: ao norte prevaleciam os “congolezes” (distritos
de Congo e Loanda), ao sul e sudeste os Bantu (a partir de Benguela e Mossâmedes) e no
centro, uma mistura das três raças.
59
No decorrer da sua descrição, Bastos, a partir de concepções eurocêntricas, dividia
povos entre aqueles de “primitiva” ou “boa índole”. Entre os que eram considerados de pior
índole, segundo o autor, estavam os Selles, Gangalas, Caialas, Quissanges, Quibulas,
Quibandas, Quiacas e Ganguellas. A estes, o autor atribuía a alcunha de “traidores, traiçoeiros
e assassinos”. Aqueles considerados de “boa índole” seriam os Biénos, Cacondas e os povos
vizinhos a estes últimos, que eram os Uilengues, Mundombes e Mucuandos.
60
Certamente, o
critério utilizado pelo autor, para medir essas diferentes populações, era a intensidade das
relações comerciais desenvolvidas.
Interessante é observar a descrição dos “Quicos” por Bastos, que tece numerosos
elogios aos mesmos, destacando a capacidade organizativa e a transformação causada pela
adoção de vida “sedentária”, que lhes tirou da vida de roubo:
57
BASTOS, Augusto. Traços Gerais sobre a Ethnographia do Districto de Benguella. Lisboa: Composição e
Impressão na Typographia Universal, 1909, pp. 12-13.
58
A utilização do termo “raça” na obra do autor deve ser compreendia à luz da temporalidade na qual estava
inserida, entre final do século XIX e início do XX. Augusto Bastos, embora tenha nascido em Benguela, estudou
em Lisboa, local em que passou a se familiarizar com categorias analíticas recorrentes do período. Após a morte
do seu pai, retornou à cidade e exerceu várias atividades, entre elas o cargo de escrivão da Admnistração do
Conselho de Catumbela e a presidência da Câmara municipal da cidade, além de ser membro da “liga angolana”,
associação formada por africanos para ajuda mútua, que mantinha boas relações com a administração colonial.
Acerca da biobrafia de Augusto Bastos, ver LEMOS, Alberto de. “Augusto Bastos”, Nótulas históricas, Luanda,
1969. Para uma leitura das associações africanas em Angola, ver OLIVEIRA, Marcelo Santana. Liga Angolana
e Grêmio africano em perspectiva comparativa. Revista Eletrônica Boletim do Tempo, Ano 4, Nº 35, 2009.
59
BASTOS, Op.. Cit., p. 13.
60
Ibidem, p. 15.
47
Os Quiocos, cujo nome indígena é Chivokue, representam uma raça
particular dos Ganguellas que se tem ramificado e assentado núcleos nos
districtos de Loanda, Benguela e Mossamedes. Este povo primitivamente
nómada, é audaz, aventureiro, intelligente e laborioso. Tem o gênio de
conquista e do predomínio, e aonde chega, cria núcleos, não se deixando
mais arrancar d’alli.
Apodera-se do território, trabalha, impõe as suas eis, usos e costumes, e
assimila os outros povos não se curvando a nenhum outro. É guerreiro,
emprehendedor e altivo; e physica e intellectualmente é a melhor e mais
forte raça do districto. A sua organisação política, nõa é tão perfeita como as
do gentio do Nano e outros; têm, porém, um soba importante a quem
obedecem. Não consentem que elle faça injustiças exorbitando do poder de
que está investido. Quando nómadas exerciam o roubo. Hoje trabalham e
bastante; a mais pequena cousa, porém, que se lhes faça, é pretexto para
represálias.61
A descrição de Bastos, embora seja datada no início do século XX, 62 nos fornece
numerosos detalhes da organização política entre os diferentes povos que habitavam a região
de Benguela. O autor descreve a organização política a partir da hierarquia de “Estados” e
“Sub-estados”,63 sobas e sobetas, existente há séculos:
A organisação política de todos estes povos é por estados e sub-estados ou
estados subordinados, sendo os primeiros governados pelo sobas e os
segundos pelos sobetas. Estes são subordinados àqueles; e, por sua morte,
quando não há herdeiro ao throno, o novo sobeta sahe do grande sobado,
nomeado pelo soba entre os grandes do seu estado.
Nas resoluções das grandes questões entre diversos estados, os sobetas têm
de ouvir o parecer do soba ao qual estão subordinados, e que quase sempre
seguem. Assim os estados de Quissange, Quindumbo, etc., são subordinados
ao de Quiaca.
Em caso de desacordo entre os pareceres dos sobas e dos sobetas, estes,
quando se sentem fortes, desrespeitam o parecer d’aqueles e revoltam-se do
que resulta a guerra. Se os sobetas vencem, deixa de existir a subordinaão,
tornando-se independentes. Estes casos tém-se repetido de século para
século, desligando-se cada vez mais os estados uns dos outros,
desmebrando-se tal organisacao política a ponto de se encontrar hoje apenas
em poucas regiões, sendo na maior parte independentes uns dos outros.64
Bastos segue a sua descrição com uma análise do processo de sucessão e nomeação de
sobas na região, preferencialmente via hereditária, de modo que a sucessão do soba seguia a
61
Ibidem, p. 16.
E por conseguinte reflita a sua própria posição social, uma vez que este ao longo da vida ocupou cargos
próximos à administração colonial.
63
Vale chamar a atenção sobre o ponto de vista ocidental de Bastos, principalmente no que diz respeito ao
modelo ideal de organização política - o “Estado” -, que acabava por ser determinante para interpretação dos
povos africanos que havia entrado em contato, de modo que na medida que se distanciassem do padrão
conhecido pelo autor, seria progressivamente “sub-estado”.
64
Ibidem, p. 18.
62
48
seguinte ordem: filho, sobrinho, irmão ou outro parente. De acordo com o autor, os habitantes
do sertão de Benguela (ou Distrito) nunca buscariam um chefe estranho à família do soba
deposto ou morto, exceto em casos de pequenas tribos em que não havia hereditariedade. Em
caso de insubordinação de um “sobeta”, o soba, para substituir-lhe, cortava a sua
hereditariedade. 65
Dentro desse quadro descrito pelo autor, a autoridade do soba era absoluta, apesar da
existência de um “Conselho”. Decretavam leis ao seu bel prazer, sem aqueles que pudessem
lhe opor vontade. O autor, por exemplo, descreve um caso de uma punição rigorosa aplicada
por um soba a um súdito que cometera adultério a uma concubina real, em Catumbela:
Vimos uma occasião na Catumbella, já há annos, um exemplo vivo d’um
castigo mandado applicar por um soba a um súbdito que tivera o atrevimento
de commetter o crime de adultério com uma das concubinas reaes.
O soba mandou amputar ao criminoso, não só o penis, como as mãos, os pés,
as orelhas e o nariz, e procedeu ao curativo d’essas horríveis mutilações. O
criminoso ficou curado, mas ficou representando um exemplo terrível. 66
Segundo o autor, os sobas possuíam direito de vida ou de morte sobre os seus súditos,
sendo o crime punido ou com a morte, se assim sentenciasse o Chefe, ou com a escravidão:
“(...) Pagava com a vida ou com a liberdade quem cahisse no desagrado do chefe”. 67
Ainda sobre a organização política dos povos que habitavam a região de Benguela, de
acordo com a descrição de Bastos, vale mencionar que tanto os sobas como os sobetas eram
assistidos por um “Conselho de Estado” (óchidúri) e por “Dignatários da corte” (Vákuerobe).
Os primeiros, eram membros vitalícios e imóveis. Caso cometessem algum delito, poderiam
ser punidos, mas nunca perderiam o seu lugar, que era transmito de pais para filhos. Os
segundos, ao contrário, eram provisórios, nomeados e passíveis de demissão pelo soba ou
sobeta. Estes últimos eram escolhidos entre pessoas livres e formavam um gabinete com
ministros e um presidente.
68
Em todo caso, vale ressaltar que tanto os Conselheiros, quanto
os Dignatários, seriam autoridades respeitadas pelo povo e o próprio soba, que na maior parte
das vezes, salienta Bastos, seguia o parecer dos mesmos.
A despeito das transformações constantes que resultaram nessa complexa estrutura
política e hierárquica verificada por Bastos no início do século XX nos povos que habitavam a
região de Benguela, vale ressaltar que a mesma pode ter se originado a partir do encontro de
65
Ibidem, p. 22.
Ibidem, p. 24.
67
Ibidem.
68
Segundo Bastos, havendo mudança de Soba, havia simultaneamente mudança de Dignatários. Ibidem, p. 23.
66
49
Imbangalas e habitantes do planalto angolano; o que remonta às migrações Lundas do século
XVI, lideradas por Kinguri, e, posteriormente, às migrações dos Imbangalas do norte para o
sul do rio Cuanza, provocadas pelas instalações sucessivas de portugueses e conquista do
Ndongo, a fim de garantir o suprimento de escravos demandados pelo Novo Mundo.
69
Após
misturarem-se com as antigas populações dos planaltos, dariam origem a pequenos reinos
independentes, contabilizados entre doze a cerca de vinte, sendo os mais representativos os
potentados do Andulo, Bailundo, Bié, Chiyaka, Galangue e Huambo. 70
Nesse contexto, as pilhagens e assaltos às populações agrícolas e pastoris se
constituíram como as características marcantes que se sobressaíram neste momento de
chegada dos Imbangalas no planalto angolano. De acordo com Curto:
Casando com linhagens locais importantes, integrando pessoas deslocadas
pela guerra, seca e fome como escravos e clientes e garantindo segurança aos
agricultores em relação a outros raziadores em troca de um tributo, os
Imbangala, a pouco e pouco, reorganizaram o mapa político do planalto
numa constelação de cerca de vinte e dois estados autônomos, que ficaram
conhecidos como os reinos Ovimbundu (...).71
Essa reorganização do mapa político na região do planalto ainda assumira um caráter
militarista, uma vez que os primeiros reis Imbangalas que chegaram na região impuseram
uma direção militarista aos povos subjugados, com treino e disciplinas militares rígidas, o que
provocou o surgimento de grandes unidades de guerreiros. Tal caráter militarista foi base para
realização de saques periódicos nas sociedades do planalto e simultaneamente permitiu a
adição de escravos e aumento do potencial de tributos. 72
De qualquer maneira, vale pontuar que entre os séculos XVI e XVIII, que era
precisamente o momento de chegada e estabelecimento dos portugueses no sul de Angola, 73 a
região passava por um profundo rearranjo político com a migração e estabelecimento dos
povos Imbangalas no planalto.74 A chegada dos portugueses e penetração no interior
69
Sobre a migração dos Lundas liderados por Kinguri e posteriores sedições, ver MILLER, 1995, p. 152-157. Na
seção 1.2.1 da presente tese, algumas notas sobre o tema.
70
LUANSI, Lukonde. Angola: Movimentos migratórios e estados precoloniais – identidade nacional e
autonomia regional. In: International Symposium Angola on the move: transport routes, communication and
history, Berlin, 24-26 September 2003. Disponível em < http://www.zmo.de/angola/papers/Luansi_(29-0304).pdf> . Acesso no dia 14 de maio de 2014.
71
CURTO, José. Álcool e Escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela
durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central
Ocidental. Tradução de Márcia Lameirinhas. Lisboa: Editora Vulgata, 2002, p. 271.
72
De acordo com Curto, as referidas incursões que eram realizadas com o objetivo de aquisição de escravos, tão
logo se tornariam características marcantes dos reinos Ovimbundus em vias de criação. Ibidem, p. 271.
73
Dois momentos são significativos para pensarmos tal processo: a fundação da cidade de Benguela, em 1617, e
a edificação do Presídio de Caconda, na década de 1680.
74
Ibidem.
50
provocaria não somente novas migrações,75 mas uma nova configuração política no planalto,
integrando aqueles povos à economia atlântica, sobretudo, pelo comércio de escravos.
Esse processo de penetração do território ovimbundu é lento e gradual. Inicialmente, a
presença portuguesa se restringe à “Baía das Vacas” e mantém números de exportação de
cativos relativamente modestos.
76
Com o recurso às guerras, a quantidade passaria a se
alargar entre 1627 e 1629, quando haviam sido capturados cerca de 1000 cativos e 6 a 7 mil
cabeças de gado e carneiros. As décadas de 1630 e 1640 presenciam a expansão das
operações de captura para os arredores de Benguela, para área dos Ovimbundus Kilengues,
junto às margens do rio Kuropolo. Em 1650, os saques lusitanos se voltam para área de
Bemba, que estava localizada em volta do rio Katumbela superior; e, nas décadas seguintes,
até a altura dos anos 1720, as expansões prosseguiriam progressivamente ao leste, com a
invasão de novas terras e ampliação da produção de escravos, que paulatinamente atingia
números mais elevados (ver Mapa 4). Em palavras de Curto:
(...) na década de 1650, começaram a saquear a área de Bemba em volta do
rio Katumbela superior. De forma a levar as incursões ainda mais para leste,
foi erigido um forte, no início da década de 1680, a uma distância de quatro
a cinco dias de caminho de Benguela, mesmo no centro do corredor
Katumbela-Kuporolo, na terra dos Hanya. De Caconda, como era designada
esta base, as incursões dos portugueses e luso-africanos, com vista a produzir
escravos, alcançaram no final do século XVII Kitata, na sua margem
sudoeste, e Huambo, no coração do Planalto e, a partir daí, o rio Kunene
superior, a sul da escarpa, em finais da década de 1710 e início da de 1720.
77
A partir da fundação do Presídio de Caconda, acontece uma mudança na estratégia de
penetração do território Ovimbundu e na produção de escravos: se antes a maneira essencial
de obtenção de cativos era a promoção de “guerras”; a partir de Caconda, as táticas de
alianças e atividades comerciais passariam, progressivamente, a substituir as guerras diretas
travadas entre portugueses e populações locais.78 Todavia, não se deve perder de vista dois
fatores: em função da política de alianças, as guerras para produção de cativos também seriam
realizadas por sobas da região e, por conseguinte, o recurso às táticas militares nunca deixou
de ser uma possibilidade aos portugueses, principalmente quando estava em jogo a segurança
das atividades comerciais.
75
Como observa Mariana Candido (2006), ao refletir sobre o perfil da população que habitou Benguela no final
do século XVIII, sendo grande parte refugiada das guerras e incursões que aconteciam nos sertões.
76
Em 1619 a captura de escravos havia atingido a quantia de 350. Ibidem.
77
Ibidem, p. 270.
78
Ibidem, p. 270
51
Embora publicada já na metade do século XIX, a obra intitulada “Quarenta e cinco
dias em Angola”, escrita por um autor anônimo, ilustra com grande clareza a recorrência e
constância dos conflitos travados por sobas entre os reinos de Angola e Benguela, mesmo em
contexto pós-abolicionista do comércio de escravos.79 Apesar da proibição do comércio
intercontinental de escravos, naquela altura, sobas locais continuavam em situação de guerra
para o apresamento de escravos. Caso não conseguissem compradores para os capturados,
relata o autor anônimo, então era ordenado aos súditos por “medida econômica” que se lhes
cortassem as cabeças. Em palavras do autor:
(...) Ora como nem sempre há compradores, acontece algumas vezes que os
vencedores se vêem obrigados a conservar em seu poder, e sustentar os
prisioneiros; e não lhes agradando este ônus, se por desgraça a ausência dos
compradores se prolonga mais que o costume, o Sóba determina que, como
medida econômica, se corte a cabeça aos prisioneiros!80
Não podemos perder de vista que o fato de se declarar a todo o instante como “antiabolicionista” pode ter contribuído para um possível exagero no episódio narrado. Ao longo
de todo o livro, o mesmo questiona a liberdade concedida aos negros e a declaração do fim da
escravidão, expondo as suas contradições, como podemos observar no trecho a seguir:
É nas margens do Zaire que actualmente mais se trafica em escravatura, e
muitas das feitorias, par anão dizer todas, de que acima fallei, não são mais
do que capas que acobertam, ou dependem d’esse gênero de commercio, que
as convenções propostas pela humana Inglaterra, e acceites pelo ingênuo
Portugal tiveram a habilidade de tornar o mais lucrativo de toda a costa.
Apesar do apparato das estações navaes, e dos nomeados cruzeiros, a
escravatura continua, e há de sempre existir, já porque os lucros são enormes
e convidam, já porque o vapor empregado no transporte dos negros
apresenta um carregamento com menos despeza na Havana, fugindo
rapidamente a qualquer navio que por acaso appareça na occasião da sahida
(...) 81
O nosso autor ainda continua abordando os pormenores do destino e contradições da
continuidade da produção de cativos, comercializados clandestinamente no pós-abolição82:
79
No prefácio do livro o autor justifica o anonimato sob o argumento de que não desejava que os seus
argumentos apresentados ao longo da obra pudessem ser desqualificados com a alcunha de “vaidade’, ao revelar
sua identidade.
80
Anônimo, “Quarenta e cinco dias em Angola: apontamentos de viagem. Porto: Biblioteca Nacional de Lisboa,
1862.
81
Ibidem, pp.6-7.
82
Vale salientar que o processo que culminou na abolição da escravatura na década de 1830 nas possessões
portuguesas, é cadenciado por numerosos fatores, que reúnem diferentes personagens e conjunturas econômicas
e políticas, a começar pela ilegalização do comércio de escravos na Inglaterra em 1807, que acabou por
direcionar a Grã-Bretanha à interferência junto a nações estrangeiras, ante à redução da influência dos interesses
52
A fiscalização por parte da estação naval, a maior parte do tempo é feita por
um palhabote, commandado por um segundo tenente, ou por um guardamarinha, e tripulado por um patrão de dez a doze marinheiros; percorrem as
feitorias, visitam as barcas e navios que saem dos portos suspeitos, e quando
descobrem alguns pretos retidos para embarcar, ou que tenta levar para fora
escondidos entre lenha e outros gêneros, fazem a apprehensão, e condjuzemos para Loanda, onde são recolhidos no antigo convento ou collegio dos
jesuítas, vulgarmente conhecido pelo pomposo titulo de – Obras Publicas
(...).83
A reflexão do autor segue recomendando o envio destes cativos presos em Loango
para a Ilha de São Tomé e Príncipe, por acreditar que poderiam ser mais úteis nas colheitas de
café. Segundo o mesmo, os negros não eram dignos da liberdade que haviam recebido e,
igualmente, não era correto o estado português não se valer da mão-de-obra africana, por
numerosas razões:
(...) Não é certo n’um paiz onde há falta de braços e onde o preto é por
natureza o único entre próprio para o trabalho, porque elle só resiste ás
fadigas e á influencia de um clima que nos é tão prejudicial, que se lhe
deveria ter concedido a liberdade de que não é digno. O abuso que elles
fazem d’essa liberdade veio crear não poucos embaraços e difficuldades ao
commercio d’aquella Provincia (...). 84
mercantis baseados no açúcar das Antilhas e avanços da Revolução Industrial, que remetiam ao final do século
XVIII, analogamente a avanços de campanhas humanitárias contra o tráfico de escravos. Tal ilegalização surtiu
os primeiros efeitos junto nos domínios portugueses, quando em 1810 fora assinado um primeiro tratado,
bilateral entre a Grã-Bretanha e Portugal, que além de prometer a extinção futura do comércio escravista,
restringia a atuação portuguesa à Costa da Mina e demais possessões portuguesas. Adiante, em 1815, Portugal
assina a Convenção de Viena que tornava ilegal o comércio de escravos acima da Linha do Equador e, em 1817,
ratifica nova convenção que dava direito à marinha inglesa de inspecionar navios portugueses de exportarem
africanos de regiões proibidas. Na década de 1820, em face do desmantelamento do Império português e
independência brasileira, as pressões inglesas passam a se concentrar junto ao Rio de Janeiro – que naquela
altura já exercia a hegemonia do comércio escravista- e culminam na assinatura de um tratado em 1826, que
proibia o comércio de escravos no Brasil e entraria em vigor a partir de 1830. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha
continuava a pressionar a abolição em possessões portuguesas na África e, finalmente, em 10 de dezembro de
1836, num complexo jogo político que se dava face à pressão britânica e garantia da soberania portuguesa, Sá
Bandeira apresentou no dia 10 de dezembro de 1836 um decreto que abolia a escravidão nas possessões
portuguesas e projetava uma nova modalidade de colonização, centrada na exploração de recursos naturais e
necessidade de industrialização. Portanto, ao mencionarmos o período “pós-abolição” acima, nos referimos à
conjuntura subseqüente à promulgação do Decreto de 1836. Sobre a construção da legislação abolicionista
portuguesa, ver ALEXANDRE, Valentim. “Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-1851)”. In:
Análise Social, Vol. XXXVI (111), 1991 (2º Ed), 293-333; Acerca da abolição da escravatura na Inglaterra, ver
ANSTEY, Roger. The Atlantic Slave Trade and Britsh Abolition, 1760-1810. London: Macmillan; Atlantic
Highlands, 1975 e ELTIS, David. “The Impact of abolition on the Slave Trade”. In: The Abolition of the atlantic
slave trade. Madison: University of the Wisconsin Press, 1981; Sobre a pressão inglesa junto ao Império
brasileiro para abolição da escravatura, ver BETHELL, Leslie. The Abolition of the brazilian slave trade: Britain,
Brazil and Slave trade question, 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970.
83
84
Ibidem, p. 8.
Ibidem, p. 9.
53
É preciso salientar que a descrição deste autor anônimo, além de revelar uma profunda
frustração do setor relacionado ao comércio no mundo lusitano, demonstrava o mundo
português e africano integrado em torno da empresa escravista – o mundo lusitano ainda
estava intrinsecamente dependente da mão-de-obra escrava, como sobas, que ainda assumiam
a função direta de produção de escravos por meio de incursões militares, ou no envio de
“intermediários” para áreas ainda não congregadas ao comércio de cativos.
A carta escrita por João Alvares de Mello no final do século XVIII, publicada por
Felner, ilustra essa penetração e envio constante de “intermediários” aos sertões em busca de
melhores ofertas de cativos, por preços mais razoáveis:
“(...) Sabendo eu, que nesta Cidade estava hum homem muito pratico dos
sertoens de Benguella chamado Joaquim Jozé da Silva Guimaraens, logo o
mandei chamar para o ouvir sobre o que dezejava conhecer. Este homem me
disse, que as terras mais distantes em que tinha estado erao as do Souvas
Cataco Banze, e HOribamba, que são as ultimas, a onde, para aquellas
partes, costumão hir os negociantes portugueses; e segundo a conta, que me
deo poderão distar 70 até 80 legoas de Caconda. Aseverou-me mais, que da
hy para diante somente podião os nossos negociadores hir mais dous, ou três
dias de viagem, a humas terras, que são de huns parentes do dito Horibabe,
nas vezinhanças de hum Rio chamado Cutato. Que deste Sitio para o interior
do Sertão já não podião passar se não alguns Pretos disfarçados nos tajes da
terra, até o Souvado do Potentado Quiseta, hum mez de viagem do dito Sitio
de Banze; e que alguns ainda passavão a outras terras, a que dão o nome de
Zambuellas grandes, que distão do referido Sitio dous mezes de viagem;
aonde os escravos erão muito baratos; mas que as terras erão esteris, porque
apenas produzião algum pouco milho, massango, e humas frutas chamadas
mabocas, de que se mantinhão os pretos e de alguma carne” 85
Vários fatores chamam a atenção no relato, a começar pela expansão de Caconda, na
direção a sudeste, junto ao rio Cutato,86 onde habitavam parentes do soba Horibabe. Deste
85
FELNER, Alfredo de Albuquerque. Angola: apontamentos sobre a colonização dos planaltos e litoral do sul de
Angola. Divisão e Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colônias, 1940, p. 240. Acerca da instituição
que publicou a obra de Alfredo Felner, a Agência Geral das Colônias, valem algumas notas. Em primeiro lugar,
a mesma, criada em 30 de setembro de 1924, assumia como principal meta preencher a falta de informação e
divulgação sobre as colônias portuguesas naquela altura. Em segundo lugar, tal instituição, pela sua própria
natureza publicitária, assumia importante função comercial, na tarefa de apresentar ao mundo novos “eldorados”
junto às possessões ultramarinas portuguesas. Assim, se organizaram brochuras, conferências, congressos,
documentários, exposições, feiras e, principalmente, a publicação de livros como o de Felner, que nos
documentos publicados em seu interior, ilustravam o potencial de Angola e os pormenores da sua “conquista”.
Sobre o papel da Agência Geral da Colônia, para construção do “Outro”, a partir de concepções coloniais ver
SOUSA, Sandra I. Ficcções do Outro: Império, raça e subjetividade no Moçambique colonial. Lisboa:
CLEPUL, 2014; ver também a tese de doutoramento de GARCIA, José Luís Lima. Ideologia e propaganda
colonial no Estado Novo: da Agência Geral das Colônias à Agência Geral do Ultramar (1924-1974).
Coimbra: Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2011, pp. 119-120.
86
O rio Cutato está localizado a sudeste de Huambo e Bié, com as seguintes coordenadas: latitude, em graus,
minutos e segundos de 14º 38’ 00’’ S; longitude, em graus, minutos e segundos de 16º 30’ 00’’ E. Disponível em
< http://www.geographic.org/geographic_names/name.php?uni=-4006300&fid=314&c=angola >. Acesso em 19
de maio de 2014.
54
sítio em diante, a penetração ao interior não poderia se fazer sem a conivência dos sobas
locais – o que obrigava aos “intermediários” a utilização de trajes dos povos da região para
conseguirem passar desapercebidos. Por fim, vale chamar a atenção para o tempo de viagem –
dois longos meses – e a busca de novos cativos, que, segundo Joaquim Jozé, o informante,
poderiam ser adquiridos por preços mais razoáveis, já que o resultado da produção agrícola
daquelas terras era decadente – o que corrobora com a tese de que os sobas locais poderiam
ver a comercialização de cativos como uma possibilidade de garantir a sobrevivência dos seus
súditos pela troca de cativos por bens e mantimentos. 87
Em todo caso, a narrativa da penetração portuguesa em terras Ovimbundus, desde o
início do século XVII, via militar ou política de alianças, também pode ser encontrada numa
carta escrita pelo governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, de 4 de agosto de 1770,
na qual menciona o nome dos povos conquistados, tanto em seu tempo (1764 a 1772) como
desde o “descobrimento”, referente aos sertões de Benguela e Caconda:
Provincias conquistadas, e avassaladas no tempo do governo do Ilmo. Exmo.
Snr. D. Francisco Innocencio de Sousa Coutinho, 13, a saber: Capeyo –
Caioco – Galangui – Biyé (a maior povoação que há, presentemente se
mandou povoar de brancos) – Biris – Cutatu (que presentemente se mandou
povoar de brancos_ - Capango – A La Grande – Quipeyo – Galanga grande
(que presentemente se mandou povoar de brancos) – Ivangando (que
presentemente se mandou povoar de brancos) – Casenge – Gunza Cabolo
(...).
Provinciais conquistas, e avassaladas desde o tempo do descobrimento e nos
governos de vários Exmo. Governadores, 36, a saber: Cambuinda –
Cambimbe – Mipua – Quipia Pirua – Socoval – Huyla (...) Quipungo (idem)
– Luceue – Mosanjeracata – Fendi – Catala (sitio de muita agricultura
d’onde se deve fundar o Presídio de Caconda) – Quitata – Quingolo –
Candumbo – Anzamba – Balundo – Quiombela – Tinde – Quibonga – sete
sovas que dão filhos para o serviço das obras reaes do Prezo.88
Essa sequência, informada por Francisco Inocêncio, assim como as demais evidências
trabalhadas anteriormente, vem a contribuir, com a progressiva expansão ao leste e sul, com o
enfrentamento de potentados Ovimbundus, para a subseqüente construção de alianças cujo
objetivo seria o fornecimento de cativos; com destaque ao Bié, que, no final do século XVIII,
constituiria a maior região fornecedora de cativos.
87
88
Ver seção 2.3. desta tese.
Francisco Inocência de Sousa Coutinho, Documento Nº 9. In: Ibidem, p. 187.
55
Em suma, percorremos as minúcias da expansão portuguesa junto às terras
Ovimbundus, para produção de cativos ao longo dos séculos XVII e XVIII, abastecedoras dos
mercados brasileiros que demandavam cativos em função das descobertas auríferas no
período, o que incluía as minas do Cuiabá e Mato Grosso; em seguida, são necessárias
algumas notas acerca dos Imbangalas, estes povos que, como vimos anteriormente, migraram
para o Planalto central de Angola e provocaram um novo arranjo político no centro e sul da
Angola, especialmente, no que ficou conhecido como hinterland de Benguela.89
1.2. A percepção ocidental dos Jagas-Imbangalas: da chegada dos “ávidos devoradores
de carne humana” às guerras justas
Descritos pela literatura ocidental como antropófagos absolutos, opressores dos
africanos, expulsos do espaço concedido aos seres humanos, os Jagas-Imbangalas, ao serem
caracterizados como sub-humanos, seriam a própria justificativa para realização das guerras
justas e produção de escravos no território angolano, ao longo dos séculos XVI, XVII e
XVIII. Relatos como o de Cavazzi, datado do século XVII, permitem visualizar parte desta
perspectiva:
É uma gente de cuja boca sai continuamente a mentira e a falsidade, sempre
dada ao roubo e a qualquer crime. É um povo sempre sedento de sangue e de
carnificina, ávido devorador de carne humana, feroz contra as feras, cruel
para com os inimigos e até contra os próprios filhos. Numa palavra: parece
animado por sentimentos tão maus que o Inferno nunca vomitou e tiranos
que possam servir de comparação.90
Cadornega, que também escrevera no século XVII, assim como Cavazzi, discorreu
sobre tais povos da mesma perspectiva,91 ao narrar a ajuda militar portuguesa ao rei do
Congo, ante à invasão dos Jagas92:
Alguns portuguezes que forão por via do porto de Pinda e Condado de
Sonho do reino de Congo ajudarão aquelles reys em suas Conquistas e a
defendelos de alguns exércitos de Jagas que descerão da Serra Leoa a
infestar aquelle em cuja defensa se mostrarão e assinalarão aquelles
Portuguezes valerozamente defendendo o dito Rey de tamanhas opressoens
alcançando muitas victorias dos ditos Jagas, e mais gentio inimigo daquella
89
Ver nota 26.
CAVAZZI, Op. Cit., p. 175.
91
Além de compartilhar a tese de que os Jagas-Imbangalas se originariam de fluxos migratórios da região de
Serra Leoa.
92
Dois pontos a se considerar:autor segue a mesma tese de Cavazzi e leia-se “Jagas”, nesse momento, como
Imbangala.
90
56
coroa, que alem de serem mais destros soldados e exercitados nas armas
serão mais tímidos pello uso qe professavao em comerem carne humana que
era o seu mais regalado sustento, de que ainda tem por costume os que dah
procedem, de que He composto o quilombo da Raynha Ginga e de Cabucu e
o quilombo de Casagi, potentado grande, que tem dominado pello Sertão
dentro muitas Provincias e Naçoens de diversas línguas com quem fazem os
Portuguezes restate de peças que servem de utilidade ao comercio, e muito
mais ao serviço de Deos, e bem daquellas Almas;porque com estes resgates
se evitão a não haver tantos açougues de carne humana, e instruídos na fé de
nosso Senhor Jesus Christo hindo bautizados e catequizados se embarcão
para as partes do Brasil ou para outras que tem uso Catholico tirados da
gentilidade e redimindo-lhes as vidas com que se faz serviço a Deos e bem
ao Commercio. 93
O relato de Cadornega se faz importante por confirmar e reproduzir o espanto com a
antropofagia entre os Jagas-Imbangalas, já observado em Cavazzi. Contudo, além disso,
torna-se relevante, também, por expressar a perspectiva do europeu de que, apesar dos ditos
costumes que tanto lhe espantavam, por meio do “batismo” na fé cristã, esses indivíduos
poderiam ter utilidade, sobretudo, quando se transformavam em escravos – batizar o cativo no
cristianismo, pelo que dispõe o relato de Cadornega, era útil até mesmo para o “comércio”.
Em todo caso, na seção que se segue, inicialmente, apresentamos um histórico que
intenta dar conta da chegada dos Jagas e Imbangalas ao território angolano, baseado em
relatos orais; ao passo que, em um segundo momento, expomos o debate acerca da polêmica
diferenciação, fusão e expansão de tais povos. Na sequência, algumas notas sobre a atuação
Nzinga, por entendermos a sua relevante participação no cenário de expansão portuguesa na
África Central à luz da crescente demanda de cativos no Brasil. E, por fim, uma seção
dedicada ao kilombo, instituição que fora resultado de intensas trocas de diferentes povos que
habitavam o planalto central de Angola, como os que migraram para a região, assimilada pela
mesma rainha Nzinga.
1.2.1. A chegada: relatos orais e produção historiográfica
A reconstituição histórica dos Jagas e Imbangalas, desde a década de 1960, tem
mobilizado numerosos historiadores e tem sido objeto de grandes controvérsias. Se, por um
lado, temos aqueles que afirmam que os Jagas teriam existido apenas na imaginação dos
portugueses, por outro lado, há um conjunto de publicações que, a partir do entrecruzamento
de fontes orais, descrições etnográficas e relatos diversos, têm apresentado origens
diferenciadas para ambos os povos, que na altura do século XVII teriam se assimilado.
93
CADORNEGA, Op. Cit., p. 13-14.
57
Entre aqueles que defendem a inexistência dos Jagas e, por conseguinte, a sua abolição
do espaço da história africana, destaca-se Joseph Miller. Em seu artigo intitulado “Réquiem
for the Jaga”, afirma que tais povos só tiveram existência na imaginação dos missionários e
traficantes de escravos, sendo as suas descrições dotadas de estereótipos, confusões
geográficas e étnicas. O autor advoga pela consideração da hipótese de que a presença dos
Jagas, tidos como antropófagos – principal tom dos relatos de Cavazzi, por exemplo –, fora
parte da própria justificativa utilizada para as intervenções portuguesas na região, quer seja
pelo recurso à escravatura ou mesmo pela destruição física. 94
Isabel Castro Henriques é uma das autoras que apresenta uma discordância quanto à
posição de Miller. Segundo a autora, a sustentação da mesma, a despeito da auto-identificação
dos próprios africanos já na altura do século XVII com o termo “Jaga”, é prejudicial para se
compreender as relações entre portugueses e africanos. Pelas descrições do período, como a
de Cavazzi, é perceptível o papel dos Jagas, como africanos recrutados por portugueses ou, ao
contrário, como angolanos que se apresentam a portugueses oferecendo os seus serviços, na
condição de Jaga. Mesmo que não dispusessem de unidade étnica e estrutura política
homogênea, é inegável o fato de populações angolanas aceitarem ser designadas enquanto tal,
como se auto-definirem.95
John Thornton também se opôs à tese da inexistência dos Jagas, defendida por Miller,
ao identificar tais povos com os Yaka do Vale do Niari, que teriam invadido o reino do Congo
em 1568.96 O autor parte da própria proposta de Miller, de eliminação dos “Jagas” da história
do Congo, descrevendo-a pormenorizadamente, e da releitura da narrativa de Filippo
Pigafetta.97 Nesta última, os Yaka seriam um grupo de “guerreiros desenraizados”, sem
moradia fixa, que teriam invadido o Congo em 1568, pelo Leste, entrando pela Província de
Mbata e depois no Mbanza Kongo, saqueando a cidade e forçando a transferência do rei e sua
corte para os domínios e proteção portuguesa. Posteriormente, Francisco Gouveia formou um
grande contingente de soldados e conseguiu expulsar os invasores, forçando a sua migração, e
acabou por restituir o reino do Congo. Em vista da semelhança grafia, possivelmente, estes
grupos descritos como “Yaka” seriam os “Jaga”.
A tese de Miller ainda seria contestada por esta releitura de Pigafetta. Na medida em
que o primeiro afirmara que os invasores teriam se originado do Matamba ou Tyo,
94
Em Miller a designação “Jaga” aparece associada aos povos “Imbangalas”. Ibidem, p. 156.
HENRIQUES, Op. Cit., p. 155; 192.
96
THORNTON, John. A ressurection for the Jaga. Cahiers d’etudes africaines, v. 18., n. 69, p. 223-227
97
Ver FIlippo Pigafetta, Relatione del regno di Congo ET delle Circonvince Contrade tratta dalli scritti e
ragionamenti di Odarlo Lopez Portoghese (Rome, 1591), pp. 48-55; 58.
95
58
observando a narrativa do segundo, se tivesse vindo do Matamba, como afirma Miller, o
grupo teria atravessado o Wandu e Wembo. Todavia, nenhum destes lugares faziam fronteira
com o Mbata, a primeira região atingida pelos invasores. 98
Segundo Thornton, existem várias referências que comprovariam a atuação destes
grupos ao norte do rio Zaire, na literatura referente ao Congo. Em todas, esses povos
apareceriam como “hostis” e perigosos à nação. O autor menciona algumas: (a) a carta de
Matheus Cardoso ao prefeito de Luanda, que informava que os Jagas haviam destruído os
Vungus e eram originários do norte do rio Zaire; (b) os relatos do frei capuchinho Girolamo
da Montesarchio, que trabalhou no Congo entre 1648 a 1688, e dava conta de invasões de
povos intitulados “Aiacas” na região – após uma viagem realizada no sul da costa do Zaire o
autor afirma ter encontrado populações armadas contra invasões dos Aiacas;
99
(c) a menção,
na narrativa do frei Capuchinho Cavazzi, acerca das invasões da província congolesa Nsundi
por povos “Yakas”; (d) e o ataque de Pedro III Nzudi a seu rival em 1673, na tentativa de
restaurar o trono do Congo durante uma guerra civil que se deu na região, contando com a
ajuda dos “ferozes” guerreiros “Majaca”;100 (e) cartas de Merolla, no final do século XVII,
que descreveriam invasões na cidade de São Salvador (antiga capital do Reino do Congo), por
tropa de Pedro III, que contavam com o auxílio de guerreiros Yakas, que seriam encarregados
da venda de “carne humana” nos mercados da cidade – estas que eram compradas por
portugueses, que usavam-nas não para alimentação, mas para venda; (f) relato do frei
capuchinho em 1691, que vivia no Sonyo, uma província da costa do Congo, onde o rei que
governava Mbula era descrito como um “chefe dos Jagas”. 101
Todas essas evidências, além de apontar para a existência real dos povos Jagas, ainda
esclareceriam que os mesmos não seriam Imbangalas. Segundo Thornton, também não foram
necessariamente hostis ou canibais, mas eram povos desenraizados que vagavam pela região.
A designação de “Jaga”, antes de se ater a um grupo étnico em específico, fazia referência a
um estilo de vida.
Thornton ainda acrescentaria à confusão a respeito da designação Jaga, e confusão
entre autores, a prática portuguesa de nomear todos os outros povos que encontravam na
região com a designação que se valeram para nomear o primeiro que tiveram contato. Assim,
98
THORTON, Op. Cit., pp. 223-224.
Ver Archivio Provinciale dei Cappuccini di Toscana, Girolama da Montesarchio, ‘Viaggio dal Gongho’
(1669), fols. 39-41. Apud THORNTON, Ibidem,p. 225
100
Cadornega também cita os “Majacas”, mas diferenciados dos “Jagas”. Seriam povos “ferozes” como os Jagas.
THORNTON, Ibidem, p. 225.
101
Ver Archivio Provinciale dei Cappuccini di Toscana, BERNADI DE FIRENZE, Ragguagli, fol. 620. Apud
THORNTON, Ibidem, p. 226.
99
59
povos não-Imbangalas e não-jagas poderiam ter recebido erroneamente tal designação, o que
seria a principal fonte dos equívocos entre estudiosos do tema. 102
Anne Hilton, por sua vez, ao desenvolver uma reflexão sobre a história do Congo e os
contextos em que os Jagas foram identificados, verificou o uso de quatro sentidos para a
palavra, a saber: (1) o uso da palavra em sentido amplo, para designar o outro (aka) como
estrangeiro; (2) Designava os povos que viviam ao norte do rio Zaire;
103
(3) identificava os
Mbangala (Imbangalas), que eram bandos de militares sem linhagem que atuavam contra os
povos mbundo do sul; (4) por fim, a palavra aparecia, segundo a autora, para identificar os
povos Majacas, ao leste do Kongo dia Nlaza, conhecidos como ferozes – Cadornega, por
exemplo, incluía os Majacas entre os povos Jagas. 104
A confusão entre Jagas e Imbangalas, como a imprecisão sobre a chegada destes povos
à Angola, também se faz presente na grande narrativa de Cavazzi, que especulava duas
possibilidades:
(...) uma província qualquer do Muene-Muji, perto daquela maravilhosa
nascente donde brotam os dois grandes rios Nilo e Zaire, como já disse. Esta
opinião baseia-se no seu nome, que antigamente era Jacas ou Ngajacas. A
segunda opinião supõe que estes povos são um bando de indomáveis
salteadores habitantes daquela altíssima cadeia de montanhas situada perto
do oceano Atlântico, mais oumenos a 10 graus de latitude ao norte da linha,
chamada vulgarmente Serra Leoa. Esta segunda opinião parece mais
verossímil, embora a primeira explique melhor as correrias feiras em ambas
as Etiópias, oriental e ocidental. De facto, estes povos no passado
chamavam-se Aiaca, e depois Nsidos, Njindos, Quibângalas, nomes
equivalentes na sua língua. 105
Contudo, apesar da difícil precisão acerca das origens históricas de tais povos, vale
mencionar o estudo de Jan Vansina. Ao propor uma investigação centrada, sobretudo, nas
tradições orais dos povos Lundas, intercruzadas com relatos escritos entre os séculos XVII e
XIX – como as publicações de Henrique de Carvalho, Rodrigues Neves, entre outros – ,
propõe uma cronologia que explicita os Jagas e Imbangalas como povos diferentes, que se
hibridizaram durante o período estudado. Precisamente, no quadro apresentado pelo autor, os
Jagas chegariam a Angola em 1569 d.C., após a invasão do Congo, e os Lundas, que depois se
102
Ibidem, p. 224.
Sobre tal possibilidade, vale citar o documento publicado por Brásio, de meados do século XVII, que se
tratava de uma correspondência entre o padre Girolamo de Montesarchio (o mesmo trabalhado por Thornton) e o
padre Boaventura da Sorento, sobre povos ferozes que comiam “carne humana” e eram chamados de “Giacas”.
“Padre Girolamo da Montesarchio para padre Boaventura da Sorrento, 23 de março de 1650, Nsevo, Nsundi. In
Brasio, Vol. VII, p. 486.
104
HILTON, Anne. “The Jaga reconsidered”. The Journal of African history, Vol. 22, n.2 (1981), pp. 191-202.
105
Ibidem, p. 194.
103
60
metamorfoseariam em Imbangalas, haveriam chegado em 1600 d.C. Enquanto a migração dos
povos Jagas se caracterizava de maneira predatória e conquistadora, a realizada pelos Lundas
se dividira em numerosas submigrações, algumas lideradas pelo personagem histórico
chamado Kinguri – que, alguns anos após ter se instalado em Angola, encontrara-se com
portugueses.
O militar Rodrigues Neves, já em meados do século XIX, baseado na tradição oral
coletada entre os povos Imbangalas, nos permite vislumbrar tal personagem. Segundo Neves,
Kinguri vivia numa região chamada “Nyana”, pertecente ao governo de Mwatyavvua, do qual
era filho do rei. Por sua pretensão de ocupar mais terras e a oposição de sua irmã, Kinguri se
viu obrigado a se mudar, arrastando consigo numerosos macotas. Por brutalizar
excessivamente os seus súditos, foi expulso das terras Lundas e passou a se instalar nas
nascentes dos rios Pulo e Lacombo, em terras Quiocas. Não satisfeito com suas terras, passa a
enviar caçadores à busca de novas terras e durante uma expedição, os mesmos passam a ter
conhecimento da chegada de homens brancos a “Cazanga” (Luanda), que possuíam, entre os
seus bens, armas e pólvora. Kinguri, então, decide partir ao encontro dos brancos. Após
alguns anos, tendo-se estabelecido na região próxima a Kasanje, e pela continuidade do
“comportamento cruel”, foi objeto de uma emboscada arquitetada por Sungwe-a-Mboluma
com macotas. Diante de sua morte, procedeu-se à eleição para escolha de um novo chefe e foi
escolhido o seu sobrinho, Kasanje Ka Kulanshingu. 106
É relevante mencionar que o conflito de Kinguri e a irmã, de acordo com as tradições
orais, começara com a sua insatisfação em relação ao casamento dela, Lweji, com o caçador
luba Tsibinda Ilunga, que se aventurava pelos territórios controlados pelos Bundos. Baseada
nas descrições de Henrique Carvalho, Isabel Castro Henriques descreve tal episódio desde a
chegada de Tsibinda Ilunga ao território dos Lundo até a migração de Kinguri para a região
do rio Cuanza:
(...) um dia, um jovem caçador luba, Tsibinda Ilunga, que pertencia à
linhagem real, afastou-se do seu grupo, indo dar ao território então
controlado pelos Bungos. Aí encontrou, perto do rio Calaanhi, uma rapariga,
Lweji, acompanhada pela sua comitiva. A tradição hesita afirmar qual dos
dois se apaixonou primeiro. Podemos economizar efusões, concluídas pelo
casamento. Esta união provocou vários resultados: o caçador luba assegura a
transição das técnicas líticas para as da metarlugia, tal como introduz as
maneiras de corte, que impõem a modernização dos rituais e das relações
entre as diferentes autoridades do Estado. Enfim, ao aceitar das mãos de
106
Apud HENRIQUES, Ibidem, pp. 197-198; 191; sobre a designação “Kasanje” a partir de Kasanje Ka
Kulanshingu, ver MILLER, 1976, pp. 185-186.
61
Lweji o lukano, pulseira tecida com veias humanas, usada pelo chefe
supremo, ele assegura a passagem de um estado matrilinear para a
patrilinearidade, que caracterizava já o poder luba.
Esta operação provocou a cólera de vários parentes de Lweji – irmãos, tios e
tias – o que determinou algumas partidas, que desepenham um papel
fundamental na dispersão dos Lundas e dos lundaizados. Kinguri (...) foi o
primeiro a partir para o oeste até à região do Kwanza em busca das minas de
sal e também, provavelmente, à procura de portugueses, que acabou por
encontrar nos princípios do século XVII. A tia de Lweji, Anguina
Kambanda, teria partido para sul em companhia de Anduma-ua-Tembue,
Andubam e Quiniama (...).107
Precisamente, o momento em que estes povos Lundas, que migravam do Nordeste, se
converteram à denominação “Imbangalas” ocorreu quando macotas adotaram a instituição
ovimbundu “kilombo”, para deposição do chefe Kinguri.108 Sucedeu, então, o seu próprio
neto, chamado “Kasanje de Kulashingu”. Este acabou por dar o próprio nome ao seu
potentado, passando a se chamar “Jaga de Kasanje”, o que sugere a miscigenação dos Jagas
aos Lundas ao longo desse processo histórico.
Jan Vansina apresenta duas hipóteses para se pensar essa hibridação dos Jagas aos
Lundas: a primeira, de que possivelmente “Kasanje” já fosse jaga e, portanto, teria se filiado
num momento posterior; a segunda, de que no início do século XVII os Jagas e Lundas se
sentiam parte da mesma cultura.
109
O aparecimento freqüente das palavras Kasanje,
Kuluashingo ou Kinguri na narrativa do próprio Cavazzi, tem apontado para tal difusão entre
esses dois povos.
107
Ibidem, p. 157.
Na última seção deste capítulo, analisamos o quilombo enquanto instituição transcultural adotada por Lundas.
109
Ver VANSINA, More on the invasions of Kongo and Angola by the Jaga and the Lunda. The Journal of
African History, Vol. 7, No. 3 (1966), pp. 421-429; VANSINA, Jan. How Societies are Born: governance in
West central Africa before 1600. Virginia: University of Virgina Press, 2004.
108
62
Fig.1 – Tsibinda Ilunga
Fonte: Museu Etnográfico da Sociedade de Geografia de Lisboa.
A tradição recolhida por Henrique de Carvalho, por sua feita, também aponta esse
intercâmbio de diferentes povos, no momento de fundação do estado de Kasanje. Antes, o
autor afirma que o título de “Jaga” já havia sido atribuído por portugueses ao lunda Kinguri,
no encontro inicial. À medida que conquistavam novos domínios, atribuíam o título, pelo que
relata o autor: “(...) por isso que então os príncipes potentados dos povos que fomos
encontrando nas terras que íamos conquistando, estes lhe davam taes títulos ou porque
63
realmente lhes pertenciam ou por imitarem o que era d’outros povos”. 110 Somente com a
união das famílias Kuluashingo (lunda), Ngonga (libolo) e Calunga (jinga) que se formou o
próprio estado de Kasanje.
Apontemos, ainda, a existência de outra tese para a designação “Jaga”, proposta por
Alfredo Margarido. O autor observa a existência do termo na primeira metade do século XVI,
em referências portuguesas na região da Senegâmbia, além de formas derivadas da palavra,
como jagarefe ou diaraf. A utilização da expressão no contexto angolano, portanto, poderia
ser resultado de um comportamento já identificado e inventariado no Senegâmbia,
111
ou seja,
a expressão teria origem portuguesa.
O termo “Imbangala” (ou mbangala), assim como a designação “jaga”, se revela
problemático, sobretudo, pela escolha explícita do primeiro termo para descrever os mesmos
povos (Cavazzi e outros autores se referem a estes povos como “Jagas”). Em todo caso, é
consensual que a primeira referência aos “mbangala” remete a uma carta escrita pelo jesuíta
que acompanhava Paulo Dias de Novais, no ano de 1563, relatando que os povos de Ngola
faziam guerras a reis de “banguela”. Miller, a partir dessa referência, afirma que
possivelmente acontecera uma confusão lingüística e que o rei “banguela” que fora
referenciado deveria ser um rei “mbangala”, uma vez que, além do termo “mbangala” ou
“Imbangalas” ser desconhecido dos jesuítas, os falantes da língua portuguesa costumavam
omitir a primeira vogal das palavras do bantu. 112
A descrição de Carvalho, por sua vez, aponta que provavelmente o termo se originou
da palavra “bangala”, que eram paus utilizados por autoridades encarregadas pela cobrança de
impostos, na região de Ambaca. Era símbolo de autoridade e por esta razão portugueses
passaram a chamar os povos por essa alcunha. 113
Devemos observar, portanto, que, por trás das referências homogêneas a respeito dos
Imbangalas ou Jagas, existe toda uma história marcada por constantes cisões, processos
migratórios e assimilações institucionais; ainda mais quando pensamos o termo “Jaga”,
114
que designa, antes de tudo, nações que possuiriam um conjunto de diferenças entre si e que
podem ser encaradas como um grupo posto à serviço da figura do colonizador e/ou
organizado por portugueses, como já pudemos observar acima.
110
BNP. Microfilme F. 7183. CARVALHO, Henrique de. O Jagado de Cassange, Lisboa: Typ.de Cristovão
Augusto Rodrigues, 1898.
111
HENRIQUES, Op. Cit., p. 192.
112
Ver FONSECA, Mariana Bracks. Op. Cit., p.49.
113
CARVALHO. Op. Cit.,pp. 31-34.
114
Partindo do pressuposto de sua real existência, tal como defendem Thorton, Isabel Castro Henriques e
Vansina.
64
As estruturas que são formadas e descritas a partir desses intercâmbios se
caracterizam, principalmente, por serem flexíveis. O brasileiro Elias Corrêa observa tal ponto
com grande clareza, no final do século XVIII:
Os Jagas de que se compõem parte do Exercito, são governadores de gente
beliciosa, e ambulante, q admitem variedade de nasçoens; e debaixo do
mesmo nome se estendem os Governantes; e os Governados, q formão este
Corpo. Aquelles são elleitos por estes: faltando hum elegem o mais antigo
militar; mas quando sucede não ter merecimentos escolhem outro q melhor
sirva, de mais instrucção, e Liberalidade. Jurão administrar a justissa:
defender o seu povo: não dezamparar os brancos: não lhes ser traidor; e
morrer com elles, quando o sucesso da guerra seja infausto; apezar de serem
desamparados pela mesma sua Tropa. Estes animozos guerreiros tem mais
de huma vez dado exemplos da sua Constancia, e da fidelidade ao seu
sagrado juramento. Dividem-se os Jagas em companhias commandadas por
macotas subordinados a hum Golambole, q equivale a Major. 115
A descrição de Elias Corrêa, além de dar conta da supracitada flexibilidade – que fazia
com que fossem assimiladas diferentes nações –, ainda ensaia uma descrição sobre a
moralidade daqueles povos (ao falar da sua fidelidade) e de possíveis hierarquias políticomilitares – macotas subordinados a uma figura maior, intitulada “Golambole”.
No século seguinte, Rodrigues Neves nos oferece importantes pormenores sobre essa
organização política dos Imbangalas, dividida em três espaços: o kilombo, a Mbanza e a
senzala.
116
De acordo com o autor, o primeiro espaço estaria reservado ao Jaga, macotas,
Maquitas e outras personalidades políticas. A Mbanza poderia ser a sede do soba, ao passo
que a Senzala corresponderia às instalações das pessoas comuns. Tal organização espacial
refletiria as diferentes hierarquias existentes no interior das sociedades e as diferenças entre os
segmentos sociais. Esta organização do espaço (chamada por Henriques de “esquema
tartaruga”) comporta a casa do Jaga localizada no centro, seguida por uma segunda camada de
casas pertencentes a autoridades principais, de importância política, social ou religiosa – à
medida que estavam próximas do kilombo, seriam consideradas mais importantes. A última
camada seria ocupada pela Senzala, reservada às pessoas sem estatuto, ocupava as
vizinhanças daqueles que moravam na Mbanza.
115
117
CORRÊA, Elias Alexandre da Silva. História de Angola (1792), Lisboa: Editorial Ática, 1937, Vol. II, p. 50.
Apud HENRIQUES, Ibidem, p. 193.
116
BNP, Microfilme-Cota F7179. Neves, António Rodrigues NEVES, António Rodrigues. Memória da
expedição a Cassange commandada pelo Major graduado Francisco de Salles Ferreira em 1850, Escripta pelo
capitão móvel d’Ambriz António Rodrigues Neves, Lisboa, Imprensa Silviana, 1854.
.
117
Ver a análise da relação Kilombo, Mbanza e Senzala em HENRIQUES, Op. Cit., pp. 217-223.
65
Ademais, a fim de obter uma maior clareza sobre os Imbangala-Jagas, algumas notas
sobre a atuação da rainha Nzinga ao longo do século XVII são relevantes, em função da
necessidade de compreendermos em que medida as disputas políticas daquele século, que
ocasionaram a migração dos próprios Imbangalas ao planalto central, permaneceram e
contribuíram para reorganização política dos Ovimbundus, principalmente, no século XVIII.
Fig.2 - Os “temíveis Jagas”
Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 174
66
Fig.3 - As missões capuchinhas na África Central Ocidental
Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 277
Fig.4 - O ungüento “maji-a-samba”
Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 178
67
Fig. 5 - Os rituais de chuva entre os Jagas
Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 197
1.2.2. A Rainha Nzinga e os Imbangalas sob o olhar do colonizador
Cultuada pelos movimentos nacionalistas no século XX como uma das heroínas
angolanas contra presença portuguesa, permeando o imaginário cultural da diáspora
africana,118 sendo referenciada, por exemplo, nas chamadas “congadas” realizadas no
território brasileiro durante a escravidão,
118
119
a rainha Nzinga liderou por cerca de quarenta
O termo “diáspora”, apesar de estar relacionado a “dispersão de um povo segundo preceitos religiosos ou
étnicos” (frequentemente associado a dispersão judaica), tem sido empregado por autores que buscam reler a
colonização a partir de uma perspectiva transnacional ou transcultural, produzindo uma escrita do colonialismo
descentralizada. Nesse escopo, são denominados “diaspóricos” autores como Paul Gilroy, Edward Said, Homi
Bhabha, Franz Fanon, Stuart Hall e Gayatri Spivak. Sobre tradução do termo, ver FERREIRA, Aurélio Buarque
de Holanda. Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. 6ª ed. Curitiba: Editora Positivo, 2004, p. 317;
sobre autores diaspóricos e, especialmente, sobre a obra do jamaicano Stuart Hall e sua contribuição para se
repensar a história da cultura, ver ARMANI, Carlos Henrique. “Por uma escrita pós-colonial da história: uma
introdução ao pensamento de Stuart Hall”. In: Historiae, Rio Grande, 2 (1), 2011, pp. 25-36.
119
A chamada “congada” é um evento que acontece no Brasil desde o período colonial, congregando elementos
culturais oriundos de tradições africanas – especificamente de Congo e Angola- com influências cristãs, onde
entidades africanas são identificadas em santos do catolicismo. As tradicionais congadas se caracterizam pelo
formato de procissão, animadas por danças, cantos e música e no seu percurso acontece a cerimônia de
realização da coração do Rei do Congo e da Rainha Ginga da Angola. Sobre as Congadas no Brasil e referências
à Ginga e rei do Congo, ver WEBER, Priscila Maria; REMEDI, José Martinho Rodrigues. A literatura de
68
anos, entre o Ngola (Angola) e Matamba, uma resistência à ocupação portuguesa; fez uso da
utilização de diversas estratégias, que iam da conversão ao cristianismo até o enfrentamento
militar direto e adesão das táticas “Jagas-Imbangalas”, sobretudo no que diz respeito aos
kilombos. 120
Nzinga nasceu em Cabassa, provavelmente no ano de 1581.
121
Filha de Kiluanji, rei
do Ngola que resistira à ocupação portuguesa até a sua morte, é apresentada ao mundo
lusitano em meio a um contexto de disputas e desconfianças com o seu meio-irmão, Ngola
Mbandi, que sucedia o seu pai e a enviara para negociar com portugueses.
Segundo Cavazzi, por volta da década de 1620, Ngola-Mbandi travava uma guerra
com portugueses em função do estabelecimento do Presídio de Ambaca. Ao longo do
conflito, as irmãs e esposa de Mbadi são capturadas por portugueses; Mbadi, vendo-se com
pouca força, é obrigado a recuar, pedir trégua e a enviar Nzinga a Luanda, como embaixadora
para mediar um acordo de paz com portugueses. Cavazzi, que afirma ter conversado
pessoalmente com Nzinga, descreve até mesmo os pormenores da viagem que a mesma fez de
Cabassa a Luanda:
(...) De Cabasso, capital de Matamba, foi ela levada às costas, como é
costume do país, por todo aquele espaço de 100 léguas, te Luanda. O
magistrado, com um séquito de cidadãos, foi ao seu encontro até à entrada da
cidade, onde ela foi cumprimentada por muitas salvas de artilharia, de
maneira que, como me confessou a mim em seguida, não só ficou
assombrada por tanta pompa, mas até amedrontada com tantas milícias
disciplinadas e pelo estrondo de tantas armas, embora estivesse habituada às
batalhas.122
Nota-se, no relato do frei capuchinho, a necessidade lusitana de impressionar Nzinga,
ao que parece ter causado algum efeito. Contudo, a mesma não se deixou intimidar e, com o
que Cavazzi chamou de “desenvoltura” ou “inteligência”, acabou por impressionar a todos os
presentes, conseguindo o tratado de paz:
(...) Os presentes admiraram, todos pasmados, esta presteza em sair-se bem e
a vivacidade da sua inteligência, nunca esperando duma mulher tanta
desenvoltura. Usou ela de tal prudência, falando do seu irmão, pedindo paz,
oferecendo a aliança e tratando com natural desembaraço todo o negócio
viagem e o Império das festas: os coroamentos dos Reis do Congo no Brasil Meridional Oitocentista na
visão dos Viajantes. In: Signo, Santa Cruz, v. 34, n. 57, jul/dez de 2009, pp. 239-248.
120
Ver artigo o pequeno artigo de Serrano, que reconstitui Nzinga à luz a trajetória da mesma e tece reflexões
sobre a sua influência no imaginário cultural angolano e de cativos no Brasil. SERRANO, Carlos M. H. Ginga, a
rainha quilombola de Matamba e Angola. Revista USP, N. 28, Dezembro-fevereiro, 1995-1996, pp. 136-141.
121
Serrano afirma que Nzinga nasceu em 1581, ao passo que Cavazzi aponta o ano de 1582. Ibidem, p. 138;
CAVAZZI, Op. Cit., p. 64.
122
Ibidem, p. 67.
69
pela qual se apresentara, que os magistrados e os conselheiros ficaram sem
palavra. E quando lhe foi dito que Ngola-Mbandi teria de reconhecer a
Coroa de Portugal com ânuo tributo, respondeu que tal condição só se podia
exigir duma nação submetida, mas não duma nação que espontâneamente
oferecia uma mútua amizade. Portanto os Portugueses não insistiram sobre
este ponto e só pretenderam a restituição dos escravos portugueses e a mútua
assistência entre as duas nações contra os inimigos duma ou doutra. 123
Cadornega, alguns anos após Cavazzi, iria mais longe, ao descrever as guerras
lideradas pela rainha Nzinga contra a coroa portuguesa, ao compará-la até mesmo a
Cleópatra:
(...) e porque desta nova Raynha, se bem cruel a seu Sangue, se há nesta
historia tratar della em muitas partes, pella continuada guerra que nos fez no
discurso de tanto tempo que reinou que forão muitos annos, que parecia
immortal, de que se poderá fazer grande escritura, a qual se podia comparar
ou ainda preferir a Semiramis, a Pantasileja, a Cleopatra, e outras Raynhas
de que as historias nos dão noticia, governando a seus Vassalos a nossa
opposição com valor e animo varonil; para intelligencia desta historia e do
que obrou contra nós esta Raynha se fez aqui menção deste seu principio que
He atraz da historia a que himos do Reino de Angola, sendo este seu
primeiro fundamento [Grifo nosso].124
O relato de Cavazzi, por sua vez, segue com a curiosa conversão de Nzinga ao
cristianismo, tendo sido batizada em uma pomposa cerimônia em 1622, que contou com a
benção do próprio governador de Angola e esposa, nomeados padrinhos de Nzinga, que
passaria a se chamar Dona Maria de Sousa.
125
Posteriormente, as suas irmãs também se
converteriam e, de Cambi e Fungi, passaram a se chamar Dona Bárbara e Dona Garcia,
respectivamente.126
A descrição do processo que levou Nzinga a substituir o seu irmão em 1627, por
Cavazzi, é igualmente interessante. Segundo o capuchinho, Ngola-Mbandi tivera sido
envenenado pela própria Nzinga, que por anos desejava a vingança da morte que o irmão
provocara a seu filho, antes de ser enviada a Luanda.127 A ascensão ao trono, segundo o autor,
foi marcada por grande derramamento de sangue e extermínio de todos os opositores:
123
Ibidem, p. 68.
CADORNEGA, Op. Cit., p. 55.
125
Ibidem, p. 69.
126
SERRANO, Op. Cit.,p. 138.
127
Cavazzi, ao relatar o assassinato do irmão, por Nzinga, chega até mesmo a refletir as mágoas que infligidas a
uma mulher, dificilmente se superam: “(...)as afrontas recebidas no coração duma mulher ficam esculpidas
indelévelmente como por rijo diamante sobre o mármore, de maneira que não podem ser riscadas senão pelo
sangue (...)”. CAVAZZI, Op. Cit., p. 70.
124
70
(...) Jinga, portanto, agitada pela ambição do mando, tomou as insígnias de
rainha de Matamba e de Ndongo ou Angola, sob o pretexto de guardá-las
para o verdadeiro herdeiro. Depois empunhando as armas, com um grupo de
fiéis, matou todos aqueles que pareciam não aceitar a sua autoridade. Desta
maneira se assegurou do ceptro de que era verdadeiramente digna, se
considerarmos só os dotes da sua extraordinária prudência e coragem.128
Para a sua consolidação definitiva à frente dos reinos do Matamba e Ndongo, de
acordo com Cavazzi, Nzinga, por fim, acabou investindo contra o seu sobrinho – para o
capuchinho, o legítimo “herdeiro do trono” –, que estava sob a proteção do Jaga Cassa.
Segundo o autor, para chegar até a sua vítima, inicialmente, seduzira o Jaga e, quando este
estava desatento, jogou o herdeiro perante todos os seus súditos, no rio Cuanza, com a
justificativa de que ainda se vingava da morte do seu filho, morto por Ngola-Mbandi. 129
O reinado de Nzinga, pelo olhar de Cavazzi – e, por conseguinte, o olhar do
colonizador –, é descrito por uma marcante crueldade e rigidez. Chama a atenção os
insistentes destaques das possíveis características negativas de Nzinga e as suas alianças. Na
descrição de Cavazzi, Nzinga governava não apenas com crueldade, mas até mesmo pelo
recurso à imagem de feiticeira, conforme a narrativa de um episódio:
(...) Aconteceu um dia que um escravo da corte audava o meu companheiro
Fr. Inácio nos trabalhos da horta do hospício quando ouviu que chegava a
rainha. Imediatamente fugiu como um galgo, sem que o religioso
conseguisse detê-lo. Depois que a rainha se foi embora voltou ele ao
trabalho. Então Fr. Inácio perguntou-lhe porque fugira e se escondera. Ele
confessou que tinha feito um furto e que, embora ninguém ainda o soubesse,
era certo que a rainha teria descoberto na sua cara os sinais do furto e tê-lo-ia
castigado severamente. 130
Ao exemplificar a crueldade e rigidez de Nzinga, Cavazzi cita numerosos casos, como
o julgamento de uma donzela que se envolvera com um cortesão. Segundo o autor, quando
Nzinga soubera do caso, havia chamado os dois à sua presença e ordenou que se cortasse o
peito da donzela no meio e se retirasse o seu coração. Ao rapaz, ordenou que se cortassem as
suas duas orelhas. 131
A narrativa de Cavazzi no que se refere à crueldade de Nzinga também apresenta
episódios relacionados a crianças e mulheres grávidas, a fim de caracterizá-la como déspota e
tirana:
128
Idem Ibidem, p. 70.
Ibidem, p. 71.
130
Ibidem, p. 75.
131
Ibidem, p. 75.
129
71
(...) A toda a criança do sexo masculino que conseguia descobrir, por meio
dos numerosos espiões, ela mesma arrancava o coração e o comia. Até, por
vezes, nem aguardava o nascimento e abria as entranhas das mães, bebia o
sangue e lançava as carnes aos mastins ou, fazendo-as assar, distribuía-as
pelas vassalos. 132
A despeito da veracidade de tais relatos, é preciso salientar dois pontos: a perigosa
interpretação literal das narrativas e a própria utilização da figura do “Jaga”, como entidade
que representava crueldade ou algo fora do espaço humano. Miller, por exemplo, ao
investigar a origem dos povos “Mbangala” (Imbangala), na década de 1970, no distrito de
Malanje, constatou que os nomes que apareciam nas genealogias daqueles povos, como
Kiluanji, Lueji ou Kasanje, não eram personagens históricos permanentes, mas títulos. A
morte, pelo que constatou o autor, simbolizava a destituição de um título, e não de uma
pessoa.133 O autor ainda alertara os perigos da confiança excessiva nos relatos orais, pois estes
reteriam apenas o que interessa para a própria legitimação e eventos que afetam o sistema
político do qual se é parte, ou seja, não se pode perder de vista que são seletivos.
134
Henriques, ao analisar a atribuição de “antropofagia generalizada” aos Jagas, devoradores das
crianças nascidas no quiilombo, se questiona se haveria possibilidade de se construir uma
“organização estável”, em vista do mau grado que poderiam causar as adoções. 135
Apesar da controvérsia a respeito da existência ou não dos Jagas, exposta
anteriormente, devemos considerar a hipótese de que a presença dos mesmos, vistos como
antropófagos, fora parte da própria justificativa utilizada para as intervenções portuguesas na
região, quer seja pelo recurso à escravatura ou mesmo pela destruição física.
136
Além de
justificar a empresa escrava, a afirmação da presença Jaga realizada por lusitanos poderia ser
acrescida e reforçada pelo argumento de que seria melhor a escravidão aos povos Mbundos,
que habitavam a região, do que ser alvo de práticas canibais Jagas. 137
Ao retomarmos, portanto, nossas considerações sobre a rainha Nzinga – personagem
que ocupou, desde o século XVII, lugar de grande relevância no imaginário cultural na
história angolana e, por conseguinte, contribuiu para o desenhar de novas configurações
políticas naquela região –, vale compreender sua adesão à tática militar intitulada “kilombo”,
132
Ibidem, p. 75-78.
Com esta decifração o autor explicou a morte de “Kinguri” por seus súditos, os Macotas, que seria a sua
destituição do cargo de rei.
134
MILLER, Joseph. Poder e Parentesco: os antigos estados Mbundu em Angola. Tradução de Maria Conceição
Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional, 1995; MILLER, Joseph. The Imbangala and the cronology of early
central African history”. The Journal of African history, Vol. 13, n. 4, 1972, pp. 121-149.
135
HENRIQUES, Op. Cit., p. 193.
136
Ibidem, p. 156.
137
MILLER, 1972, p. 124.
133
72
no momento da miscigenação dos Jaga-Mbangala ao longo da sua resistência à ocupação
portuguesa. Essa adesão é descrita pelo próprio Cavazzi, que a justificava como objetivo de
Nzinga de se “expandir”:
(...) Juntou assim uma grande multidão destes bárbaros, gente que
desprezava a própria vida, implacável contra os inimigos, ávida de carne
humana mais que de glória militar. Além disso, mandou que fossem
rigorosamente cumpridas as quijila ou leis de Temba-Ndumba, que já
descrevi no livro segundo desta história.138
Importa esclarecer, pois, que as chamadas “quijilas” seriam as “proibições” ou leis de
Temba-Ndumba.
139
Segundo Cavazzi, estas eram antigas leis Jagas, criadas, inicialmente,
por um antigo chefe chamado “Zimbo” e, posteriormente, retomadas por Temba-Ndumba, sua
filha. O capuchinho, ao longo da sua narrativa, menciona por vários momentos algumas
“quijilas” e narra a própria cerimônia organizada por Temba-Ndumba, antes de promulgar as
“ímpias leis”, como assim chamara, sacrificando o próprio filho:
Não sei que gênio de megera lhe tirou qualquer sentimento materno,
inspirando-lhe uma crueldade repugnante às leis da natureza, de Deus e dos
homens. Qual o monstro que não sente afecto para com os filhos das suas
entranhas? Pois ela negou ao seu filho a piedade natural que até os tigres têm
para com as suas crias.
Na presença de todo o povo, fez trazer a sua criança e, em vez de a acariciar,
lançou-a furiosamente num almofariz e, com toda a força do seu cruel
instinto, começou a maltratá-la, batendo-lhe com um pau, sem dó e sem
compaixão pelos seus gritos. Reduzindo a carne, o sangue e os miolos a uma
massa informe, juntou mais umas raízes, uns pós e umas ervas, e pôs aquela
mistura sobre o lume, até ferver e se reduzir à consistência desejada. Depois
untou com esta massa todo o corpo e pôs o resto nalguns recipientes. Por
esta horrível cerimônia pretendeu que todos a julgassem imortal, invencível
e invulnerável.140
138
CAVAZZI, Op. Cit., p. 72.
No quimbundo “quijila” significa “proibição”.
140
Ibidem, p. 178; sobre o unguento produzido em tal cerimônia, vale destacar que o seu possível significado. De
acordo com Miller, é preciso pensá-lo enquanto substituição da necessidade de “linhagens”. Matando-se o filho,
negava-se o significado social de continuidade, e abria-se, inversamente, à adesão de membros externos ao
grupo. Em palavras do autor: “(...) Num sentido metafórico, a preparação do maji a samba pelo chefe, através do
assassínio ritual do seu filho (a), era um símbolo corrente do excessivo poder de um governante sobre o seu
povo. Os ‘filhos, na narrativa, representam os súbditos de um chefe político, em contraste com os seus parentes
que são sempre descritos como ‘sobrinhos e sobrinhas’. A cerimônia de matar o filho simbolizava o poder
absoluto do governante sobre os seus súbditos, tal como a imagem do Kinguri, assassinando escravos de cada
vez que se erguia ou se sentava, mostrava o temor superticioso que o seu povo lhe dedicava. Num sentido mais
literal, porém, a matança dos filhos, quando praticada por toda uma população, tornava-se um meio de abolir as
linhagens, uma vez que o assassinato dos filhos (ou a negação do significado social de um nascimento fiísico)
tinha sobre os grupos de filiação o mesmo efeito estrutural que a proibição do seu nascimento. MILLER, 1995,
p. 163.
139
73
Do corpo do próprio filho, relata Cavazzi, produziu-se um ungüento intitulado “majia-samba”, que daquele momento em diante passara a ser utilizado pelos Jagas antes da partida
para a guerra, produzido com o corpo dos “filhinhos das personagens julgadas mais nobres e
que têm maior autoridade”. 141
Entre as leis de Temba-Ndumba, que foram retomadas por Nzinga posteriormente,
Cavazzi as dividiam em domésticas, religiosas e civis. As primeiras prescreviam a abstinência
de carne de porco, elefante, serpente e outros animais, além de determinarem como deveriam
se dar os preparativos para uma viagem, guerra, o que comer e detalhes antes de se iniciar
qualquer operação militar. As chamadas leis religiosas, por sua vez, eram “inventadas” por
feiticeiros e tratavam da vida privada dos indivíduos, das contendas, perigos de morte, entre
outros assuntos. As “leis civis” eram ditadas pela própria Temba Ndumba e, segundo afirma o
autor, eram seguidas com o máximo de escrúpulos, mesmo que isso implicasse sacrifícios. 142
O exemplo que Cavazzi fornece, para pensar as “leis civis” nas sociedades Jagas,
referia-se a quijila, que dava conta da proibição da criação de filhos no interior dos
kilombos143:
(...) Só direi que a primeira destas leis proíbe criar filhos do sexo masculino
dentro do quilombo ou da cerca dos povoados, e também ocultá-los para os
criar fora da mesma cerca. Por isso, com a ameaça de graves castigos, cada
mulher, ao dar à luz um filho varão, deve imediatamente degolá-lo com uma
faca ou afogá-lo nas águas ou abandoná-lo à voracidade das feras, e são
declarados infames todos os filhos poupados e criados pelas suas mães.
Esta incrível crueldade foi cumprida com todo o rigor no decurso de cem
anos, como os mesmos Jagas me testemunharam. Como eu interrogasse
algumas mulheres convertidas à nossa santa fé, uma delas afirmou ter dado
cinco filhos às feras para serem devorados; outra sete, e outra até nove.
Confessaram também que, naquela condição de idólatras e sem o
conhecimento do verdadeiro Deus, não tinha experimentado remorso
nenhum nem o horror que mostravam ao fazerem estas narrações. 144
Conforme o autor reconhece, a sua descrição se baseava em testemunhos orais de
mulheres que haviam aceitado a conversão à fé cristã. Conforme observamos, é preciso
problematizar tais relatos orais e a própria descrição ocidental desses fatos, à luz dos objetivos
de conversão e caracterização negativa do outro, como suporte para a realização das guerras
justas e escravização. Em todo caso, é importante ressaltar a menção de Cavazzi aos
“kilombos”, adquiridos na hibridização dos costumes dos povos Jagas por Nzinga. Sobre
141
CAVAZZI, Op. Cit.
Ibidem, pp. 179-180.
143
Analisaremos pormenorizadamente o significado e adesão dos Jagas aos quilombos, na seção que se segue.
144
Ibidem, p. 180.
142
74
estes, a fim de refletirmos as trocas culturais entre os diferentes povos que habitaram a
Angola, valem algumas reflexões mais apuradas.
1.2.3. Kilombos: intercâmbios culturais entre Ovimbundu-Imbangalas e notas sobre a
organização militar
A palavra kilombo no decorrer da história, tanto angolana quanto brasileira, se vista
em longa duração, passou a se caracterizar por um lugar de imensa polissemia. Identificada
com as seguintes conotações, de acordo com Isabel Castro Henriques:
(...) Serve tanto para nomear os lugares, definir as técnicas de urbanismo,
sem esquecer a sua carga ideológica, como também para designar as
concentrações militares de caráter permanente e, bem assim, as feiras e
mercados de Kasanje, de Pungo Andongo, de Matamba e do Congo A
etimologia aparece no significado do substantivo em quimbundo, que
salienta a sua capacidade de juntar, de unir.
Para Childs, no seu estudo consagrado aos Umbundus, Kilombo é sinônimo
de Caconda ou Cilombo, nome de um dos principais grupos ovimbundos.
Cilombo teria tido uma origem mítica, pois tratar-se-ia da ‘mulher’ do herói
civilizador Caconda, que orignaria este Estado do centro costeiro angolano.
Retenhamos ainda que Kilombo foi também uma forma de organização
militar, como mostra a tradição ora recolhida por Cavazzi. Uma das figuras
míticas do ‘Jaga’, Temba-Ndumba, teria imposto a quijila, ‘proibição’ em
quimbundo, para poder organizar as operações militares.
O substantivo foi transferido para o Brasil, onde indica, em primeiríssimo
lugar, os locais em que são asseguradas as cerimônias religiosas africanas,
para mais tarde se transformar no nome dado às instalações dos negros
quilhambolas, no mato (...).145
Pensar o próprio histórico da instituição remete-nos a considerá-la como um lugar
“transcultural”, onde se cruzaram diferentes populações e culturas que estiveram nos
territórios que atualmente denominamos Angola e República Democrática do Congo.146 A
busca da compreensão da palavra envolve a própria história da região, marcada por conflitos
de poder, diferentes fluxos migratórios, cisões entre grupos e assimilações. 147
De acordo com Miller, a palavra se origina do idioma falado pelos povos
Ovimbundus, o umbundo. A começar, destaquemos que no próprio umbundo, falado pelos
145
HENRIQUES, Op. Cit., p. 204.
Entre estas, destacam-se os grupos Lundas, Ovimbundus, Mbundus, Kongos e Imbangalas.
147
MUNANGA, Kanbele. Origem e histórico do quilombo na África, Revista USP, São Paulo, No. 28,
dezembro-fevereiro, 1995/1996, pp. 56-63.
146
75
povos Mundombe que habitavam nos entornos de Benguela no século XIX, kilombo
designava “campo de iniciação”.148 No umbundo moderno, numerosas são as palavras
próximas a ela, indicam “circuncisão”: ocilombo, significa “pênis recém-circuncidado” e
ulombo designa remédio preparado com sangue e prepúcio149 dos iniciados. Nos outros
idiomas, no entanto, especialmente no cokwe ou mbundu, a circuncisão se traduz na palavra
mukanda. Se considerarmos que a “circuncisão” fazia parte do conjunto de rituais de iniciação
aos meninos que aderiam ao kilombo, tais evidências lingüísticas acabam por sustentar a tese
da referida origem etimológica ovimbundu.
Dessa forma, a análise da polissemia da palavra e sua utilização histórica
compreendem, de partida, o encontro e intercâmbio de diferentes povos, na troca de diferentes
táticas militares; adaptações tanto para fazer frente ao colonizador, como para potencializar as
conquistas internas e produção de cativos, assim como a designação das transferências e
permanências culturais no Novo Mundo, partissem elas dos lusitanos ou dos próprios
africanos organizados nas matas. 150
A instituição kilombo, levando-se em conta o seu papel estratégico militar, percorreu
diferentes populações e culturas. De início, designava o grupo de guerreiros que seguia
Kulembe,
151
esposo de Temba Ndumba – a supracitada criadora das quijilas adotadas por
Nzinga anos mais tarde. Após a morte da sua esposa,
152
Kulembe assumiu o comando dos
kilombos e, por meio deles, com apoio de generais, expandiu consideravelmente os seus
domínios, pelo que relata Cavazzi:
Havia naquele tempo entre os Jagas muitas pessoas estimadas pelo seu valor
e pela sua ferocidade, como Calanda, Caete, Cassa, Cabuco, Caiomba e
outros mais, dos quais provém muitas famílias ainda existentes. Estes,
nomeados capitães de numerosos exércitos, correram uma e outra Etiópia,
assolando muitas regiões e não deixando nelas mais que sinais da sua
bárbara crueldade.153
Na pesquisa realizada por Miller, o autor encontrou correspondência entre os nomes
dos capitães, informados por Cavazzi, e as tradições Imbangalas, como “títulos”; de modo que
“Calanda” seria “Kalanda Ka Imbe”, “Cabuco” apareceria como “Kabuco Ka Ndonga”, o
148
MILLER, 1995, p. 21.
Segundo o Dicionário Michaelis, “prepúcio” significa “dobra de pele que cobre a glande do pênis”.
150
No capítulo X, apresentamos uma análise do papel dos quilombos no Brasil.
151
Culembe, como assim escreve Cavazzi, é pelo mesmo como o esposo da rainha Temba Ndumba. Este,
segundo o capunhico, apesar de ser “inferior de nascimento”, era igual em alma e costumes. CAVAZZI, Op.
Cit., p. 188.
152
Cavazzi, baseado em relatos orais, afirma que foi por envenenamento preparado pelo próprio “Culembe”.
CAVAZZI, Ibidem, p. 189.
153
Ibidem.
149
76
“Cassa” aparentemente pertenceria ao Libolo, onde consta um título chamado “Kasa Ka
Hango”, entre outros. 154
O “kilombo” também marcaria a transformação de Lunda a Imbangala, quando estes,
especificamente os chamados “macotas”, passam a se valer da instituição para concretizar a
deposição de Kinguri. Como vimos anteriormente, Kinguri era um lunda descrito nas
tradições dos povos locais como um chefe cruel, que posteriormente foi sucedido pelo
Kasanje Ka Kulanshingu.155 Tais lundas, que se transformaram em Imbangalas com a adoção
do kilombo, viam na flexibilidade da instituição uma maneira de abolir o antigo título de
Kinguri. 156
A rainha Nzinga, ao se associar aos Jagas, no século XVII, igualmente havia notado o
potencial da instituição, a fim de acelerar a expansão dos seus exércitos e fazer frente ao
avanço português, pelo que relata Cavazzi. Potencial que, obviamente no espaço africano,
deve ser destrinchado nas suas diferentes características, a começar pela ruptura das estruturas
de linhagem.
Ao permitir a incorporação de jovens dos povos vencidos às suas fileiras,
independente da linhagem, o kilombo permitia a criação de uma estrutura firme capaz de
reunir rapidamente um grande número de estranhos desvinculados das tradicionais
linhagens,157 organizados sob uma rigorosa disciplina militar e dramáticos rituais de
iniciação, narrados por diferentes personagens; como o próprio Cavazzi, que afirmava ter
presenciado cerimônias de “recebimento de meninos no kilombo” e o definia como um
“acampamento militar”:
A cerimônia de receber os meninos no quilombo pratica-se ainda hoje com
solenidade, e eu, que a presenciei muitas vezes, posso descrevê-la
exactamente. Quando o chefe do quilombo, que é ordinariamente o
comandante militar, quer conceder este privilégio, determina o dia da
função. No intervalo de tempo precedente à data, os pais, que são sempre
numerosos, suplicam insistentemente a concessão desta graça, persuadidos
de que os seus filhinhos, antes da admissão, são aboinados pela autora da lei,
e eu só depois de purificados serão benzidos por ela. O dia é de grande festa,
com o concurso de muitos homens armados e enfeitados o melhor possível.
Aparecem na praça em boa ordem e com muito decoro os cofres em que se
conservam os ossos de algumas pessoas principais e que são guardados nas
suas casas por pessoas qualificadas. Depois aparecem os cofres com os ossos
154
MILLER, 1995, p. 132.
Segundo Mariana Bracks Fonseca, no momento que os Lundas adotam a instituição “quilombo”,
transformam-se em guerreiros Mbangalas (Imbangalas). FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as
guerras de resistência em Angola (século XVII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Departamento de
História – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2012 (dissertação), p. 48.
156
Ibidem, p. 48.
157
MUNANGA, Kabengele. Op. Cit., p. 60.
155
77
dos antigos chefes do quilombo e dos seus parentes. Todos são colocados
sobre uns montões de terra, na presença do povo, rodeados por guardas e por
uma multidão de tocadores e de dançarinos, que festejam e honram os ossos
daqueles falecidos. Por fim chega o comandante com a sua favorita,
chamada tembanza, ou “senhora da casa”, ambos festejados pela música e
pela comitiva dos seus familiares. Ambos untam os seus corpos e as suas
armas e se sentam, ela à esquerda e ele à direita dos ditos cofres. Então,
todos os presentes, divididos em grupos, fingem uma batalha, acometendo-se
furiosamente. Acabada a batalha e as danças, que são bastante demoradas,
até todos perderem o fôlego, saem de algumas moitas predispostas as mães
que nelas estavam escondidas, com os meninos, e, mostrando-se muito
preocupadas, com mil getos vão ao encontro dos maridos, indicando-lhes o
lugar em que cada menina está escondido. Então eles correm para lá com os
arcos fechados e, descobrindo a criatura, tocam levemente nela com a seta,
para demonstrar que não a consideram como filho, mas como preso de
guerra, e que, portanto, a ei não fica violada. Depois, usando uma perna de
galinha (nunca pude descobri a razão disto), untam a criança com aquele
ungüento no peito, nos lombos e no braço direito. Desta maneira, os
pequenos são julgados purificados e podem ser introduzidos pelas mães no
quilombo na noite seguinte. Há mais umas prescrições para as mães, mas,
por serem muitíssimo obscenas, não as descrevo.158
Chamamos a atenção para alguns fatos na descrição de Cavazzi: em primeiro lugar, a
honra que poderia significar ser incorporado ao kilombo, quando observamos a súplica para
“concessão” daquela graça pelos pais; em segundo lugar, o quão era tradicional a festa, com a
apresentação dos cofres onde eram guardados os restos mortais das antigas autoridades. A
importância da própria cerimônia também se expressava por uma grande festa, com presença
do povo e principais lideranças. Por fim, a necessária realização da cerimônia, com fins de
purificar a criança e, posteriormente, e somente assim, incluí-la no kilombo.
No decorrer do seu relato, o capuchinho destaca o fato de que nem todas as crianças
poderiam ser aceitas no kilombo, apesar da flexibilidade de incorporação de indivíduos para
além das tradicionais linhagens. Segundo o autor, crianças que tivessem nascido no interior do
espaço, se fossem gêmeas, nascessem deformadas ou se fossem demasiadamente pobres,
deveriam ser mortas. No primeiro caso, se descoberto que a mulher tivesse dado à luz dentro
do kilombo, a mesma seria condenada à pena capital, junto com a criança; e do corpo desta
última, seria produzido um “ungüento”, que serviria para banhar o corpo de soldados e assim
aumentar as suas confianças. Contudo, havia uma possibilidade de salvar a vida da criança:
(...) Se os pais quisessem conservá-lo com vida, devia apresentar outro em
seu lugar, para que os oficiais o sacrificassem. Depois, o filho que tinha sido
poupado não podia ser introduzido no quilombo antes que lhe aparecessem
os dentes. Então os soldados untavam-no fora da cerca com aquele ungüento
que ela tinha preparado, na falta do qual se matavam outros rapazes presos
158
CAVAZZI, Op. Cit., p. 182.
78
na guerra ou filhos de pessoas qualificadas. Desta maneira, havia sempre
novo unguento para fortificar o corpo e a alma. 159
As crianças gêmeas eram consideradas um presságio ruim, que indicava extermínio
dos Jagas, por isso, não poderiam sobreviver. Às crianças que nascessem com alguma
deformidade, também estava reservada a morte, uma vez que eram consideradas
“abominações”. Entretanto, poderiam escapar das punições se os seus pais fossem ricos,
submetendo-a a numerosos rituais. Já a morte às crianças demasiadamente pobres era
determinada pela justificativa de que as suas mães não teriam condições de acompanhar com
presentes a admissão da mesma no kilombo. 160
No interior do kilombo, vigoravam as quijilas, sobre as quais discorremos
anteriormente. Aqui, novamente nos chama a atenção a insistência de Cavazzi no
“canibalismo” praticado no interior dos kilombos, nas populações identificadas como Jagas. O
autor, ao longo do seu relato, afirma a todo momento que essa era uma prática levada a cabo
indiscriminadamente e incentivada pela própria rainha Jaga (provavelmente se refere a
Nzinga). Cavazzi chegara a afirmar que a maior razão de qualquer guerra em que aqueles
povos pudessem se envolver seria a captura de “escravos robustos e matança dos mais fracos
para serem devorados”.
161
De Acordo com o capuchinho, estavam livres do canibalismo
apenas as mulheres, que seriam preservadas para serem sacrificadas aos defuntos nos
funerais.162 O autor menciona, por exemplo, o episódio em que intervira na execução de uma
mulher, acusada de adultério. Segundo Cavazzi, como o soldado não poderia levar a sua
esposa para a guerra, ao retornar, levaria consigo o coração ou cérebro do inimigo e entregaria
para sua mulher. Se esta comesse sem resistência, seria considerado de imediato a prova de
fidelidade da mulher. Todavia, se a mesma se recusasse a comer a carne do inimigo, chegavase à conclusão de que não tivera sido fiel, portanto, seria condenada à morte. Em palavras do
autor:
Eu mesmo fui testemunha deste execrável abuso quando, um dia, vi alguns
soldados, ao voltarem de uma guerra, contenderem ferozmente entre si.
Acorri para impedir qualquer desordem e perguntei a causa da contenda.
Responderam que um deles, achando que a mulher lhe fora infiel, queria
matá-la. Perguntei se havia testemunha desta infidelidade e responderam que
159
Ibidem.
Ibidem, pp. 182-183.
161
Ibidem, p. 183.
162
Embora o autor afirme que mesmo com esta proibição geral entre os Jagas, haviam exceções, como o hábito
do “Jaga Cassange” de comer mulheres – afirmava, nas palavras de Cavazzi, que eram mais saborosas e,
portanto, matava vários por dia. Ibidem, p. 183.
160
79
sim, porque ela não quisera cmer a carne dos inimigos que o marido lhe
tinha trazido. 163
Ainda no relato de Cavazzi, o kilombo apareceria como uma habitação tradicional dos
jagas, fácil de construir e transportar.
164
À maneira romana, todas teriam a mesma planta e
seriam formadas de palhota. No interior do espaço que estava designado ao kilombo,
organizar-se-iam da seguinte maneira:
(...) dividem-se em sete quarteirões e nomeiam um oficial como chefe de
cada um. No centro está construída a morada do príncipe, rodeada por uma
cerca de cada um. No centro está construída a morada do príncipe, rodeada
por uma cerca quadrada de sebe muito forte, em forma de labirinto. Dentro
desta cerca, além das arrecadações dos criados, fica a habitação das pessoas
mais importantes, para assistirem ao príncipe em caso de doença ou de
invasão dos inimigos. Todas estas pessoas, sob pena de lesa-majestade, têm
de morar na respectiva habitação. 165
Assim como observamos nos relatos de Rodrigues Neves, sobre hierarquia sóciopolítica e localização dentro dos espaços, na medida de aproximação do espaço do Jaga,
também encontramos tal questão no relato de Cavazzi; este último afirma que, seguindo a
hierarquia, no segundo quarteirão, estava o ngolambole, suposto general comandante dos
guardas – depois do príncipe, seria a pessoa mais qualificada. O referido personagem sempre
estava acompanhado de um xinguila, que seria o responsável pelo exame do sítio escolhido
para o estabelecimento do kilombo.
O terceiro quarteirão seria ocupado pelo tandala, conhecido como “comandante da
retaguarda” e primeiro entre os eleitores do rei. Na ausência deste último, estaria autorizado a
presidir o estado. Os súditos lhe venerariam como um príncipe e ele teria autoridade até para
sentenciar réus. Ao seu lado, estava o personagem chamado mutunda, encarregado pela
manutenção das cercas e trincheiras ao redor do kilombo e habitações do príncipe.
O sexto quarteirão (ou lugar, como descreve Cavazzi) estava reservado ao ilunda, que
seria dependente do ngolambole. Em tempos de paz, sua função seria guardar o depósito de
armas para necessidades em futuras guerras. Por fim, Cavazzi ainda menciona outros
personagens, que ocupariam o que denominou de “sétima posição”, espécie de outro ilunda,
responsável pelo guarda-roupa do príncipe – para essa função, seriam denominadas pessoas
163
Ibidem, p. 184.
Cavazzi também chama essas habitações de “libatas”.
165
Ibidem, p. 191.
164
80
de comprovada fidelidade, quase sempre um membro da família –; e o mani-cúdia, que seria
um vivandeiro ou responsável por negociar viveres no acampamento. 166
Fig. 6 – O kilombo, segundo Cavazzi
Fonte: CAVAZZI, Op. Cit., p. 191.
166
Ibidem, pp. 191-192.
81
Fig.7 - O Kilombo, por Capello e Ivens (1881)
Fonte: HENRIQUES, Ibidem, p. 421
Deve-se destacar, a partir da descrição de Cavazzi, do século XVII, a significativa
complexidade no interior dos kilombos. Eles constituiriam, mais do que apenas instituições
militares, o próprio fundamento organizativo daquelas sociedades. Em alguns relatos, são
descritos com proporções consideráveis, como o comentário tecido pelo militar Cadornega
sobre a habitação do Jaga de Cassanje, no final do século XVII:
(...) consta todo ele de gentio jaga, que não vive mais que da guerra, tendo
muitos macotas com os seus somgos ou trocos de que são senhores
absolutos, reconhecendo só Casanji como sua cabeça e senhor, e muitos
capitães de valor com gentio de sua jurisdição, com que saem a conquistar
fazendo guerra pelo íntimo deste dilatado sertão (...). O seu kilombo e as
suas terras cultivadas ocupam um território de mais de 40 léguas, o que
permite que aí se encontrem concentrados mais de 300 mil Jagas, todos
gente feroz e carniceira, assim como uma grande quantidade de armas de
fogo, pólvora, e balas em abundância, com as quais atemoriza muita parte
desta Etiópia (...) e há no seu opulento quilombo muito trato de peças e
marfim, onde se gastam a maior parte do vinho e fazendas que vêm de mar
em fora a este reino de Angola167
É relevante citar, ainda, aquilo que poderia conferir prestígio e destaque no interior
desses kilombos: a possessão de escravos. Dentro do kilombo, eles se localizariam próximos
às entradas, ao que indica, para servirem de escudo às autoridades.
168
Segundo Cavazzi, os
cativos que viviam junto aos Jagas nos kilombos poderiam ser compreendidos em três
167
168
CADORNEGA, Op. Cit.,Vol. III, p. 215.
HENRIQUES, Op.Cit.,p. 218.
82
categorias: (1) quisico, filhos de escravos e seriam marcados com sinal pelos seus respectivos
donos – ficavam quase sempre livres e dificilmente eram vendidos; (2) os prisioneiros de
guerra, que, além de serem marcados, eram vendidos e frequentemente sacrificados e
comidos; (3) e os chamados escravos de fogo, que viveriam em perpétuo serviço até a morte
do comprador, obedientes e fiéis. 169
O viajante húngaro Magyar, ao analisar as sociedades Ovimbundus do Bié já no século
XIX, apontara cinco principais maneiras de se ter sua condição reduzida à escravidão
naquelas sociedades; de certo modo, elas complementam a descrição realizada pelo
capuchinho Cavazzi no século XVII acerca das sociedades Jagas. Em primeiro lugar, por
hereditariedade – se os pais fossem escravos, os filhos continuavam a sê-lo. Em segundo
lugar, por dívida. Nesse caso, a escravidão era provisória, uma vez que, paga a dívida, a
liberdade poderia ser concedida novamente – na situação contrária, o provisório se tornaria o
definitivo. Didaticamente, Magyar explicava tal modalidade:
(...) Os chefes de família mais pobres, quando não podem pagar as dívidas
aos credores não querem vender, para as pagar, um ou mais membros da
família como escravos de maneira definitiva, dirigem-se àquele que possui
tecidos europeus, pedindo-lhe, como empréstimo, a quantidade necessária de
tecidos e empenhando, entretanto, um ou mais membros de família, dos dois
sexos (...) Estas pessoas assim empenhadas tornam-se criadas, sem salário,
como se fossem escravos daquele (...) que lhe emprestou as mercadorias
necessárias a título de empréstimo; mas nem vendidos pelo proprietário, que
os deve libertar imediatamente em caso de resgate que obriga [aquele que
pediu emprestado a restituir o dobro das mercadorias emprestadas.170
A terceira modalidade descrita pelo húngaro para produção de escravo seria a compra,
em que homens e mulheres seriam vendidos como animais. A quarta, por conseguinte, era a
guerra. Frequentemente, após a vitória, velhos e crianças eram massacrados e os demais
prisioneiros, capazes de trabalhar, eram amarrados uns aos outros e arrastados. A última
modalidade mencionada pelo autor seria a escravidão por “feitiçaria”, considerada por ele
como a principal causa da abundância de escravos; por vezes, famílias inteiras eram
arrastadas à escravidão em função de uma acusação. Nas palavras do autor:
(...) Esta terrível lei tão desumana é a principal causa da abundância de
escravos para vender, entre estas populações, porque um homem condenado
desta maneira tem, com muita freqüência, 30 ou 40 parentes que são
vendidos com ele.171
169
CAVAZZI, Op. Cit., p. 161.
MAGYAR, Lázlo Apud HENRIQUES, Op. Cit., p. 227.
171
Idem Ibidem, p. 229.
170
83
No que se refere a esta última modalidade de se reduzir à escravidão, vale mencionar
os apontamentos de Joseph Miller referentes ao papel da feitiçaria, ou bruxaria (witchcraft),
na produção de cativos na África Central; apontamentos feitos dentro de um fórum realizado
no ano de 2003 (e publicado em 2004), que tratava das possibilidades da inserção da história
da África na chamada História Mundial.172 Segundo o autor, com o estabelecimento do
comércio com o Atlântico, várias mudanças foram provocadas naquelas sociedades,
principalmente a alteração do “caráter doméstico e político” das relações econômicas para o
anonimato dos estrangeiros – o ganho material ultrapassava o caráter comunal das sociedades
africanas. Nesse quadro, ganhos materiais, provenientes das trocas realizadas com europeus,
por parte até mesmo de autoridades políticas, passaram a ser alvo de acusações associadas à
traição e feitiçaria, causando a necessidade de eliminação dos “párias”, com a sua entrega a
mercadores passantes e, por conseguinte, aos europeus instalados nas costas.173
De qualquer maneira, para além das modalidades de produção de cativos no interior
dessas sociedades e sua distribuição dentro dos kilombos, vale frisar que possuir escravos,
dentro dessa configuração, era um sinal de prestígio e poder. Desse modo, o cativo apareceria
como um elemento central na organização dessas sociedades, fato que explicaria, por vezes, o
que Henriques chamou de “tratamento benevolente” dado aos cativos. Esse tratamento não se
originaria em função de uma atitude humanista, mas por conta do medo de perder escravos,
que poderiam se decidir pela fuga, também intitulada “vatira”, “shimbika” ou “tombika”.
Dentro de alguns procedimentos, tais fugas consistiriam em mecanismos legais em que o
escravo poderia escolher um novo senhor. Magyar fornecera mais uma vez detalhes acerca
desta possibilidade:
A vatira designa a fuga simples. O escravo aproveita um momento propício,
abandona tudo, vai-se embora e procura fugir o mais longe possível (...) Para
os proprietários dos escravos a shimbika ou tombika é muito prejudicial e
perigosa, porque este tipo de fuga é não só fácil de levar a cabo, mas tornado
possível pela lei. O escravo descontente com o seu proprietário pode afastarse facilmente da casa, dizendo que pretende apenas ir visitar alguém nos
172
Participam deste fórum, além de Joseph Miller, Ricardo Duchesne, Patrick Manning, William H. McNeill,
David Northrup, John Thorton, entre outros.
173
Ao longo do forum Miller afirma que o caminho para inserir a “África” na história mundial deve ser a adoção
de uma perspectiva multi-centrica, que dê primazia à perspectiva do africano enquanto agente, inseridos em
multi-camadas, e multi-centros, com atenção tanto às experiências individuais como àquelas em escala
intercontinentais. Principalmente, o autor defende a escrita de uma história que não retenha o chamado “caráter
triunfal”, de que uma raça se sobressaia sobre a outra, tecnologia sobre a outra, etc. MILLER, Joseph. “Beyond
Black, bondage and blame: why a multi-centric wolrd history needs Africa. In: Historically Speaking,
November/December, 2004, pp. 3-4.
84
arredores; mas em vez deste passeio, dirige-se à casa de um chefe de família,
geralmente abastado e em vez deste passeio, dirige-se à casa de um chefe de
família, geralmente abastado influente que já tinha escolhido. Chega, mata
diante de testemunhas um cão, uma cabra, uma ovelha ou qualquer outra
animal doméstico, o primeiro que encontrar.174
Apesar da descrição de Magyar não se referir especificamente ao kilombo no contexto
Jaga, e se ater aos povos Ovimbundus e leste da Angola – embora alguns chefes Ovimbundus
também reivindicassem ancestralidade Imbangala –, ela nos remete à complexa situação que
era ser escravo nessas sociedades; principalmente, porque apresenta uma condição em que o
proprietário de escravo não dispõe de maneira absoluta sobre os seus cativos. Nessas
circunstâncias, o proprietário se via obrigado a renunciar ao comportamento de “senhor
absoluto” para adotar uma atitude “paternalista” e evitar a “vatira”, que sempre permaneceria
como uma possibilidade em aberto. 175
Fig.8 - Escravos carregadores de autoridades
Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 150
174
MAGYAR, Lászlo (Ladislas), “Breve informação sobre os países Moluva ou Moropuu e os estados Lobal”,
Boletim da Academia de Ciencias da Hungria, Budapest, n. XI, Année XIX, 1859, pp. 62-921. Tradução
portuguesa não publicada, 1992 Apud HENRIQUES, p. 230.
175
HENRIQUES, Ibidem, p. 231.
85
É interessante observar o contraste entre a descrição fornecida por Cavazzi, que
menciona a todo momento o direito sobre a vida dos cativos aprisionados em guerra, dentro
do kilombo, pela submissão a sacrifícios e canibalismo, e a descrição fornecida por Magyar,
viajante que organizara caravanas comerciais em meados do século XIX e vivera entre os
Ovimbundus, especificamente no Bié. Podemos acrescentar a esse contraste o destaque de que
o primeiro autor está associado diretamente aos “projetos civilizatórios” do mundo ocidental,
por fazer parte de uma ordem religiosa; ao passo que o segundo, por sua condição mais livre,
que lhe permitiu até mesmo adoção de uma perspectiva africana – uma vez que se casara,
enquanto estabelecido no Bié, com uma africana integrante de uma família real africana –,
estaria mais propenso a observar outros traços nas sociedade ovimbundu, para além da
violência e espanto.
Destarte, a reflexão sobre essas instituições organizativas das sociedades africanas nos
remete à ideia de uma permanente construção e movimento; especialmente o kilombo que,
como pudemos observar ao longo desta seção, se constituiu como um lugar de intercâmbios
culturais, onde são cambiados idiomas, estruturas sócio-políticas, em um processo cadenciado
por cisões e diferentes assimilações. Se por um lado, na África Central, especificamente na
Angola, ele foi um acampamento militar que deu base para expansão dos povos Imbangalas e,
por conseguinte, sustentou os impérios Ovimbundus no século XVIII; por outro lado, o
kilombo se referia também ao próprio espaço urbano daquelas sociedades, hierarquizado e,
como vimos, associado à escravidão.
***
Considerar a trajetória e função do kilombo em solo africano à luz do histórico de
migrações e formação dos povos Ovimbundus, Imbangalas e Jagas, é de grande utilidade para
compreendermos em que medida africanos escravizados embarcados dos portos da atual
Angola mantiveram, nas Américas, algumas noções organizacionais – como hierárquicas e
políticas de adesão – ; ou, ainda, como as adaptaram às novas circunstâncias, sobretudo, em
situação de refugiados do sistema escravista; exemplo disso é o caso dos quilombolas das
minas do Cuiabá e Mato Grosso, na fronteira entre as Américas espanhola e portuguesa, que,
ao construírem as suas fortificações em territórios indígenas, viram-se obrigados a estabelecer
relações com eles, conflituosas e, possivelmente, de tolerância.
Apresentado o complexo quadro político existente no território angolano,
especialmente na parte sul, assim como as primeiras percepções dos povos existentes na
86
região e das suas instituições organizativas, cabe-nos explicitar como o mercado transtlântico
de escravos se inseriu e envolveu todos os sujeitos e espaços acima apresentados.
87
Mapa 2 – “Delineação geográfica dos reinos de Congo e Angola” por volta de 1656
Fonte:
CAVAZZI, Giovanni Antonio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução de
Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.
88
Mapa 3 – Os reinos do Congo, Angola e Benguela (1747)
Fonte: BELLIN, Jacques Nicolas. Carte des Royaumes de Congo, Angola et Benguela [1747].Disponível em
< http://bndigital.bn.br/acervo-digital/ >. Acessado no dia 5 de dezembro de 2014.
89
Mapa 4 – Mapa de identidades políticas e étnicas na África Centro-Ocidental (século
XVIII)
Fonte: MILLER, 1988, P. 24.176
176
Vale destacar no mapa elaborado por Miller a movimentação dos povos Imbangalas, tanto na direção dos
Ovimbundus, como ao norte e oeste.
90
Mapa 5 - Expansão das fronteiras escravistas, por Miller
Fonte: MILLER, 1988., p. 148
91
Mapa 6 – Geomorfologia e bacias de Angola
Fonte: HENRIQUES, Ibidem, p. 655.
92
CAPÍTULO 2 – Do hinterland à costa: o espaço e os “protagonistas” na
produção de escravos em Benguela (1730-1828).
A razão que eles alegam é que às vezes encontram pêlos nos odres, e eles
julgam serem pêlos de homem esfolados para este fim. Portanto, só pelo
terror de serem mandados para a América, agitam-se frenéticamente e, se
possível, fogem para as matas. Outros, no momento de embarcar, desafiam
as pauladas e matam-se por si mesmos, atirando-se à água (...).177
“O Novo Mundo era a morte”, assim o africano proveniente da África Central
Ocidental poderia conceber a ideia de ser embarcado para outro continente.178 A narrativa de
Cavazzi ilustra uma possível percepção do africano em relação a todo esse processo: ante a
crença de que os seus ossos seriam retirados à pólvora ou que portugueses produziriam azeite
à base de miolo e carne, resistiam desesperadamente para evitar tal destino e, se fosse preciso,
com a própria vida. Apesar de recentes trabalhos lançarem luz sobre relatos “autobiográficos”, em que africanos narram a própria experiência da captura, cativeiro e, em alguns
casos, a alforria,
179
pouco se conhece ainda a respeito do ponto-de-vista, angústia ou
perspectiva de vida destes homens e mulheres – que, inseridos no comércio transtlântico de
escravos, detinham poucas chances de retorno à terra natal. Por outro lado, mesmo diante da
ausência quase generalizada da “voz do escravo” na documentação produzida pelos agentes
da coroa portuguesa, é possível ao historiador, parafraseando o italiano Carlo Ginzburg,
escavar os “meandros dos textos”, mesmo contra a vontade de quem os produziu e fazer
emergir “vozes incontroladas”.180
Dessa maneira, o presente capítulo configura-se como uma análise da estrutura de
produção de cativos. Inicialmente, apresenta um panorama sobre o volume de homens e
mulheres comercializados de Benguela aos portos da América Portuguesa; subsequentemente,
um panorama dos espaços e protagonistas do mundo escravista – luso-brasileiros ou africanos
177
CAVAZZI, Giovanni Antonio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução
de Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965. p.160.
178
Joseph Miller, por exemplo, afirma que existia uma crença antiga na África Central Ocidental contada por
ansiões, que afirmava que para além das montanhas e deserto existiria uma grande região de água e sua travessia
poderia representar a morte. MILLER, 1988, p.4.
179
Entre as auto-biografias que têm sido objetos de análise, destacamos a escrita por Mahommah Gardo
Baquaqua, que nascido na atual Serra Leoa, foi escravizado em 1840, sobreviveu a diversos contextos –
escravidão no Brasl, EUA, entre outros -, se letrou, conseguiu sua liberdade (1847) e passou a articular o seu
retorno à África. Em 1854 em Detroid, Michigan, conseguiu publicar sua auto-biografia de 65 páginas, que
incluía um poema no apêndice de James Whitfield. Para uma análise da trajetória de Baquaqua, ver LAW,
Robin; LOVEJOY, Paul E (orgs.). The Biography of Mohommah Gardo Baquaqua: his passage from
slavery to freedom in Africa and America. Princeton: Markus Wiener Publishers, 2001. Ver também
LOVEJOY, Paul E. Identidade e miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Barbo Baquaqua. AfroÁsia, 27 (2002), pp. 9-39
180
Ver GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Tradução de Rosa Freire d’Aguiare Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, pp. 10-11.
93
–, assim como as estratégias lançadas para o apresamento “legítimo” de africanos.
Observaremos adiante que, enquanto a empresa escrava pudesse representar a morte para
grande parte daqueles que foram escravizados, para outros africanos, poderia significar
possibilidades comerciais ou prestígio político.
2.1.Benguela-América portuguesa: estimativas de comércio
As estimativas gerais sobre a quantidade de escravos exportados da África Central,
especialmente do porto de Benguela, nas últimas décadas têm sido constantemente revisadas,
pela comparação ou consideração de novos núcleos documentais. Paul Lovejoy, por exemplo,
afirma que do Oeste-Central Africano foram exportados cerca de 3 milhões de escravos,181 ao
passo que Herbert Klein, na combinação de dados obtidos de portos, apresenta a estimativa de
exportação de 2.082.250 escravos. No interior desse quadro, Lovejoy, David Eltis e David
Richardson apontam que Benguela, entre os anos de 1676 a 1832, enviou para o Novo Mundo
205.700 escravos (ver tabela 1).
A estimativa de exportação de escravos de José Curto, por sua vez, altera
significativamente tal quadro ao ampliá-lo. Em um levantamento realizado entre os anos de
1730 a 1828, o autor apresenta a volumosa quantia de 407.166 cativos. Desse total, somente
os dados apresentados pelo autor no século XVIII já ultrapassam as estimativas de Lovejoy,
Eltis e Richardson, somando 283.071 (ver tabela 2).
De acordo com José Curto, existe uma tendência crescente de comércio escravista ao
longo do século XVIII, chegando ao seu auge na década de 1790 (especialmente no ano de
1793 quando foram enviados do Porto de Benguela 11.668 cativos) e, posteriormente,
conhecendo um declínio gradativo. Em todo caso, a análise e interpretação desses dados deve
considerar conjuntamente as relações comerciais estabelecidas no Atlântico e, localmente, as
novas configurações político-econômicas que se formaram durante os séculos XVIII e XIX.
Assim, o recorte temporal proposto pela pesquisadora Mariana Pinho Candido nos
parece de grande valia. A autora apresenta um quadro do comércio na região de Benguela em
que aparecem três diferentes etapas: a primeira, referente aos anos de 1617 a 1716, na qual os
escravos enviados para o Novo Mundo, obrigatoriamente, deveriam passar por Luanda; a
segunda, de 1716 a 1785, em que o comércio começa a ser feito sem a intermediação de
181
LOVEJOY, Paul. Transforming in Slavery. A history of slavery in Africa. 2 ed.. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000.
94
Luanda, realizado principalmente na rota Benguela-Rio de Janeiro; a terceira é compreendida
entre os anos de 1785 e 1850, considerada o auge das atividades comerciais. 182
Para o primeiro período, apesar das dificuldades de precisar a quantidade de cativos
exportados (em função da incompletude dos dados) de Benguela, já é possível verificar a
presença de atividades comerciais na região. Segundo o pesquisador Roquinaldo Amaral
Ferreira, até a década de 1680, Benguela já representava 1/3 dos escravos que saíam de
Angola. É o que observa o autor no ano de 1688, em que, de 6.000 cativos exportados de
Luanda, 2.000 se originavam de Benguela. 183
De acordo com Ferreira, as atividades comerciais escravistas já haviam se iniciado um
pouco depois da fundação de Benguela, em 1617. No entanto, a intensificação do comércio só
veio a se dar a partir da década de 1650, em função da expansão global do comércio de
escravos em Angola. Essa expansão foi provocada, em larga medida, pelo aumento da
demanda de escravos no Brasil à luz das descobertas auríferas,
184
juntamente com a fuga das
práticas monopolistas dos governadores, que obrigaram mercadores a buscarem outras regiões
da Angola; contribuiu, além disso, a falta de burocracia como a observada em Luanda, que
favorecia uma prática de mercado mais livre na região. 185
Ao contrário de Luanda, não existia, no século XVII, uma extensiva rede de postos da
administração portuguesa no interior de Benguela. Acrescenta-se a essa razão, a incapacidade
de Benguela para conduzir operações militares de larga escala.
186
Tal falta de burocracia
tornou a região um lugar atraente para mercadores. Ao mesmo tempo, verificava-se em
Luanda a queda na exportação de escravos. Se entre 1654 a 1656 foram exportados 13.945,
187
no final da década de 1680 tal volume caiu para 6.000.
Em todo caso, o estabelecimento do comércio direto entre Benguela e Rio de Janeiro,
dentro do segundo recorte temporal proposto por Candido, contrariando aos interesses de
comerciantes em Luanda, revelava o amadurecimento das relações comerciais na região, que
acabou pressionando os chamados formuladores de políticas portuguesas para autorizarem o
182
CANDIDO, .2006, p. 21.
AHU, Cód. 554, fls. 47-50.Apud FERREIRA, Op. Cit.
184
Sobre o aumento da demanda de escravos, após o crescimento da mineração na Minas Gerais, ver BOXER,
C.R. O Império Marítimo Português. Rio de Janeiro: São Paulo, 2002 [1969], pp. 167-173.
185
Segundo Roquinaldo Ferreira, na metade do século XVII o comércio de escravos em Luanda era diretamente
controlado por autoridades coloniais, que cobravam direitos para financiamento de campanhas militares no
interior de Luanda. FERREIRA, 2003, pp. 75-76.
186
Para tanto basta pensarmos as dificultosas campanhas nos sertões de Benguela travadas na década de 1720,
narradas no final deste capítulo. Acerca das diferenças administrativas de Luanda e Benguela ver FERREIRA,
2003, p. 75.
187
AHU, Angola, Cx. 6, Doc. 128.
183
95
trajeto.
188
Ainda até o final da década de 1720, os navios que saíam de Benguela eram
obrigados a passarem por Luanda para pagarem direitos – resultado das pressões exercidas
por moradores daquela cidade envolvidos com a empresa escrava. Contudo, com a
transferência gradativa de comerciantes do Rio de Janeiro para Baía das Vacas (onde se
localizava Benguela), atraídos pela alta oferta de mão-de-obra escrava e motivados pela alta
demanda proveniente das minas de ouro no Brasil, no limiar da década de 1730, finalmente
estava livre a navegação direta entre o porto de Benguela e Brasil.
189
Deve-se ressaltar que,
desde 1716, navios começavam a obter autorizações reais para navegação de Benguela ao
Brasil. Entre 1725 a 1728, por exemplo, quatro navios transportaram escravos diretamente ao
Brasil sem a prévia-autorização das classes políticas de Luanda. 190
Tais fatores, associados à expansão da atuação de sertanejos e pombeiros nos sertões
de Benguela, fizeram subir a taxa anual de exportação de escravos para a média de 1.102
escravos. Com a incorporação de novas localidades para o leste e sul, tais dados de exportação
continuaram a subir: na década de 1750 com a média anual de 2.264, na década de 1760 com
4.717, na década de 1770 para 5.301 cativos; e, finalmente, adentrando o terceiro recorte
temporal proposto por Candido, o auge da empresa escravista na região, com a média de
6.493 cativos nos anos 1780 e 9.275 na primeira metade dos anos 1790.
191
Então, a partir da
segunda metade da década de 1790, a empresa escravista passa a sofrer um declínio gradativo,
a ponto de se dar por encerrada em meados do século XIX.
A composição do pano de fundo desse último momento das atividades escravistas em
Angola e, precisamente, em Benguela, reúne numerosos fatores, destacadamente as pressões
externas exercidas pela coroa inglesa;192 assim como a reorganização da economia na região,
que, até o início do século XIX, estava intrinsecamente associada à empresa escravista. Essa
reorganização se deu na combinação da prática de comércio escravista ilegal (pós-1830) com
a migração gradual de pombeiros e sertanejos para o comércio das mercadorias consideradas
“legítimas”, tais como o marfim, cera, borracha, entre outras. 193
188
Ferreira afirma que para compreensão do “pano de fundo” do que se passava durante a década de 1720 na
região, é preciso considerar conjuntamente 3 fatores: o declínio das atividades comerciais no Loango (ao norte
de Luanda), as invasões de competidores europeus de outras regiões e o crescimento das redes de contrabando
entre o Brasil e África. FERREIRA, Op. Cit., p. 82.
189
CURTO, 2000, p. 274.
190
FERREIRA, Op. Cit., pp. 79-80.
191
CURTO, Op. Cit.,pp. 274-280.
192
Mediante às pressões inglesas para abolição do tráfico intercontinental, o governo brasileiro comprometeu-se
em 23 de Novembro de 1826 a ilegalizar as importações de escravos a partir de 1830. Ver CANDIDO, 2008, p.
63; FLORENTINO, 1997, p. 43.
193
CANDIDO, 2008, p. 69.
96
Para Caconda, presídio estabelecido entre os rios Sucula e Cabala nos finais do século
XVII no planalto de Hanya, tal declínio se fez sentir de maneira turbulenta.194 O mesmo, no
auge das exportações escravas na região, era considerado o grande entreposto comercial de
escravos. Fundado nos anos 1680, inicialmente, sua razão de ser estava correlacionada com o
fato de ser passagem para as caravanas que partiam do interior, além de parada obrigatória
para aqueles que necessitavam de água, alimentos ou outros suprimentos. Com a expansão
gradativa das atividades escravistas para o leste e sul, o presídio, até o final do século XVIII,
passou a ser a grande base de pombeiros e sertanejos, que adquiriam cativos no interior, para
exportação dos portos de Benguela. A ruína da localidade, ante a proibição do comércio de
escravos, se fez sentir na constante reconfiguração da população, que, segundo Candido,
aumentou vertiginosamente a partir da década de 1850 (ver tabela 3). 195
Como Caconda era um grande entreposto comercial de escravos, com a abolição do
comércio intercontinental, uma grande quantidade de cativos permaneceu no presídio, o que
forçou comerciantes a adotarem novas estratégias no pós-1830 para venda desse contingente.
Aqueles não comercializados no interior da região foram utilizados como carregadores de
mercadorias que circulavam nas redes comerciais, sobretudo, o marfim e cera de abelha,
dentro do novo quadro de reorganização comercial. De toda forma, quando finalmente o
tráfico de escravos é abolido no Brasil, em 1850, o crescimento considerável da população
escrava na região elucida com clareza tal situação: entre 1795 e 1850, de uma população
escrava feminina de 1.600 para 10. 100 e masculina de 1. 800 para 10. 300 (ver gráfico 1).
Em suma, essa retenção de cativos em Caconda, combinada com as estatísticas
levantadas por Curto, que demonstram uma graduação do declínio de exportação até 1830,196
aponta para uma economia no atlântico que articulava não somente a costa com o sertão, mas
continentes e numerosos personagens. Tal conjunção de diferentes agentes e contextos
políticos, sociais, econômicos, foi o grande pano de fundo que permitiu tornar o porto de
Benguela um dos principais da África Central. Ademais, para compreender mais a fundo o
194
O presídio de Caconda inicialmente foi erigido nas terras de Bango. Após ataque do soba Bango, foi
completamente destruído. Posteriormente, as forças portuguesas retornam, repelem Bango para o interior e
levantam um novo presídio, numa terra mais ao leste do Hanya, numa região conhecida como Catala. Segundo
Francisco Inocência, governador de Angola no século XVIII, a nova região escolhida se apresentava mais
vantajosa tanto na qualidade do ar e água, ao contrário da primeira escolhida, considerada pelo mesmo de “pior
lugar do mundo”. Ver BNP, Cód. 8553, fl.92-92v, 14 de agosto de 1768.
195
Candido analisa numerosos censos entre 1790 a 1850 realizados no Presídio de Caconda (em torno de 22). A
autora observa com estranheza a subida vertiginosa da quantidade de habitantes de 1844 a 1850 – de 22.100 para
60.229 -, que poderia ser resultado de constantes imigrações ou de falhas nas contagens dos anos anteriores. Ver
capítulo 5 de CANDIDO, Op. Cit., 2003.
196
Entre 1796 a 1799 a média anual de exportação de 6, 421; de 1800 a 1809 a média de 6, 241 cativos; entre
1810 a 1819 a média de 4, 518; e, finalmente, na década de 1820 a média de 4, 192. CURTO, 2003, pp. 283-4.
97
contexto histórico que possibilitou a existência do comércio escravo no Atlântico no século
XVIII, é preciso acrescentar a esta reflexão algumas notas; primeiro, sobre como tal comércio
se organizou em território angolano e, segundo, a respeito do arranjo da configuração política
na região, na medida em que os negócios luso-brasileiros cresceram nessa localidade.
2.2.A Organização do comércio no hinterland de Benguela
A rede comercial que se organizou desde a chegada dos europeus à região é composta
por diferentes personagens e lugares. No que diz respeito aos principais personagens, é
preciso ressaltar, além da presença constante de lusitanos e brasileiros, a atuação direta de
africanos, principalmente, chefes, sem os quais não seria possível o desenvolvimento da
empresa escrava. Sobre tal participação, Isabel Castro Henriques pontua:
(...) Perante as solicitações européias, os Africanos procuraram responder, ao
mesmo tempo que se davam os meios para impor as regras africanas. A
pressão européia nunca teria sido suficiente para provocar uma mudança das
estruturas africanas, a não ser com a participação activa dos produtores e dos
responsáveis políticos africanos. 197
Partindo desse pressuposto, devemos considerar o que circulava nos entrepostos –
Caravanas e pombeiros –, motivados por interesses tanto de comerciantes da costa, como do
além-mar, para finalmente entendermos o estabelecimento e fixação européia em
determinados pontos, em presídios e feiras.
a) Caravanas comerciais: do comércio escravista à sua decadência
Instituições originárias das experiências comerciais africanas de média e longa
distância, as caravanas comerciais, até a segunda metade do século XIX, e, portanto, ao longo
do comércio atlântico de escravos, dependiam intrinsecamente das estruturas de parentesco e
autoridades locais. Sobretudo, na dependência direta dos chamados “carregadores”,
personagens fundamentais para sua realização, já que naquela altura não se havia adotado a
prática de domesticação de animais na região. 198
197
198
HENRIQUES, Isabel Castro... p. 15.
HENRIQUES, Op. Cit., p. 402.
98
Apesar da aparente homogeneidade das caravanas, ao longo do território que
atualmente se compreende como Angola, elas foram caracterizadas por uma multiplicidade de
cargos e hierarquias, que diferiam de acordo com a região, tempo, dimensão e destino final –
fato que aponta uma grande flexibilidade no que tange à estrutura organizativa. 199
Beatrix Heintze, por exemplo, ao investigar as caravanas na região de Benguela e no
Bié, já em meados do século XIX, apontou a existência dos seguintes personagens:
intérpretes, quissongo, pombeiro, agregados e carregadores. Os intérpretes seriam
personagens fundamentais para a realização e contato com as demais populações que
apareciam ao longo do trajeto realizado pela caravana. Geralmente, eram nomeados um ou
dois intérpretes. De acordo com o viajante húngaro Magyar, na região de Benguela, recebia a
denominação de Kalei e, hierarquicamente, estava abaixo do quissongo, 200 que era o chefe de
grupos que se formavam no interior das caravanas, de acordo com o local de origem.
201
Hierarquicamente, abaixo do quissongo, estava o “sukulu”, o personagem à frente dos
carregadores da própria aldeia.
O pombeiro, no interior da caravana, era um africano negociante encarregado de
comercializar escravos para portugueses, frequentemente, um escravo de confiança e com
autonomia. O termo, em si, possivelmente se originou do topônomio “Mpumbu”, um grande
mercado junto ao lago “Malebo” e que posteriormente passou a fazer referência aos grandes
mercados do Kongo.
202
No interior da caravana, existiam três maneiras principais de ser um
pombeiro: (1) carregadores de famílias livres elegiam alguém para ser pombeiro; (2)
carregadores livres tomavam a decisão de se colocarem sob as ordens de algum pombeiro que
acompanhava a caravana; (3) ou, o pombeiro se fazia presente chefiando os seus escravos. 203
Os agregados, por sua vez, seriam aqueles que se incorporavam às caravanas
aleatoriamente, ao longo do seu trajeto, em busca de maior proteção. Normalmente,
esperavam semanas abrigados em aldeias remotas, à espera da passagem da caravana. As suas
razões poderiam ser as mais variadas, desde a realização de negócios até a cobrança de
199
HEINTZE, Beatrix. Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história. Tradução de
Marina Santos. Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 275.
200
Idem Ibidem, p. 276; Ver também HENRIQUES, que argumenta que possivelmente tal função tenha sido
introduzida por europeus. Op. Cit., p. 407.
201
No Mdongo era chamado de “Muleque”, no Kongo de “capata” e na parte setentrional de Angola, recebia a
designação de “cabo”. HEINTZE, Op. Cit., p. 272.
202
Na seção que se segue, uma reflexão mais apurada acerca de tais personagens.
203
Idem Ibidem, p. 275.
99
dívidas. A presença, geralmente temporária, era um fator que também contribuía para a
constante flutuação e mudança nas dimensões das caravanas. 204
Temos, ainda, os carregadores, personagens centrais para realização de uma caravana,
tanto no período referente ao comércio escravista, como após a abolição da escravatura. 205 De
maneira geral, existiam os carregadores de “tipóia” e aqueles que levavam mercadorias. A
tipóia era um equipamento cuja finalidade consistia no transporte de chefes de caravanas.
Tratava-se de uma espécie de rede formada por um pedaço de lona presa a um varão,
transportada por dois carregadores – um à frente e outro atrás –, que a cada dez minutos
mudavam a carga de ombro. Por ser um trabalho pesado, o carregador só conseguia conduzir
a tipóia durante quatro horas e, às vezes, até seis horas. Em trajetos longos, os carregadores de
tipóia necessitavam de suplentes, para revezamento. Frequentemente, tais carregadores
recebiam a remuneração mais elevada da caravana.
Em meados do século XIX, na região de Benguela, ainda se observaria uma certa
divisão de cargos entre os carregadores. Em ordem de importância e valor da remuneração,
em primeiro lugar haviam os carregadores de têxteis, artigos de porcelana e vidros. Em
segundo lugar, encontravam-se aqueles responsabilizados pelo transporte de aguardente,
pólvora e armas. E, com menos prestígio e menor salário, haviam os carregadores de sal.
Além destes, somavam-se às caravanas, os chamados “peritos”, que estavam encarregados da
“proteção” durante a viagem de doenças e até da prevenção a ‘feitiçarias’.206
Vale ressaltar que, além desses personagens, ainda faziam parte do corpo da caravana
os ajudantes, parentes, criados, escravos e jovens que se apresentavam voluntariamente.
Henriques, que também investigou as rotas comerciais que cortavam o território angolano
desde a fase de pré-colonização portuguesa, chamou a atenção para a recorrência de outros
personagens que compunham o universo de uma caravana: os Kimbálo e Vakongo. Os
Kimbálo eram os possuidores das mercadorias e desejavam transportá-la.207 Para o auxilio
deles, era preciso que se reunissem transportadores (os chamados “Gambas”), que geralmente
eram conhecidos ou familiares e deveriam consentir com o salário ofertado. Quanto aos
204
Ibidem, p. 279.
Levando-se em consideração que uma caravana, durante o comércio escravista, não se realizava
exclusivamente com o transporte de cativos, visto que para obtenção e compra de escravos, era necessário o
carregamento de manufaturas e artefatos diversos.
206
Como europeus não estavam à parte ou ridicularizavam, não existem relatos mais detalhados sobre tal função.
HEINTZE, Ibidem, p. 278.
207
Esta atribuição não poderia caber, por exemplo, a jovens aventureiros, mas sim a indivíduos ricos e
possuidores de prestígio dentro da comunidade, haja visto que a sua organização perpassava por todos os níveis
da sociedade.
205
100
Vakongo, seriam os caçadores de elefantes, que acompanhavam a caravana até o final do seu
destino e tradicionalmente se dividiam em grupos no decorrer desta. Quando obtinham muito
marfim, vendiam uma parte aos Kimbalo, em troca de outros produtos.
Existia também a presença dos Kikumba e a diferenciação entre os escravos. Os
Kikumba desempenhariam o papel dos criados, na maior parte dos casos, escravos comprados
para execução de serviços que se relacionavam à função das mulheres, visto que elas não
eram permitidas durante a realização das caravanas.
208
A presença dos Kikumba poderia ser
compreendida como uma maneira de solucionar a ausência das mulheres.
Quanto aos
escravos, durante a realização das caravanas, diferenciavam-se em “escravos da aldeia” e
“escravos comprados”. Os primeiros poderiam executar a função de carregadores, ao passo
que a segunda categoria realizaria, assim como os Kikumba, as atividades associadas ao
estatuto das mulheres.
Aquele que organizava a caravana precisava levar em consideração que os integrantes
do grupo, especialmente os carregadores, eram especializados apenas em rotas específicas e,
dificilmente, faziam rotas alternativas ou partiam por caminhos desconhecidos. Logo, tal fato
tornava mais interessante a compra de escravos para o trabalho de carregadores, já que os
mesmos deveriam se submeter a qualquer percurso e se contentar com a “ração” fornecida
pelo proprietário.
209
Além disso, escravos-carregadores também não organizavam greves ou
causavam conflitos por aumentos salariais – fatos freqüentes durante a realização de
caravanas210 – e, distantes do lugar de origem, se adaptavam mais facilmente aos seus amos:
(...) Após a sua adaptação ao meio e face à distância relativamente à sua terra
natal das regiões desconhecidas em que se encontrava, onde uma tentativa de
fuga só podia significar uma nova escravização, os escravos recém-
208
Vale lembrar que para o viajante húngaro Magyar levar consigo sua esposa junto à caravana que organizou
em meados do século XIX, foi preciso requerer autorização do Chefe Bié, que a concedeu – possivelmente
porque Magyar havia se casado com uma integrante da corte. Pressupomos que a presença feminina poderia
causar algum transtorno ou atraso, pelo argumento do chefe Bié, narrado por Magyar, que autorizou o embarque
da sua esposa com a justificativa de que a mesma possuía escravos para transportá-la na tipóia e que, por isso
não causaria nenhum atraso: “(...) Quanto a minha mulher, podia levá-la ou deixá-la em casa, a meu bel prazer.
Que ele já não tinha nem poder nem direito de dispor da sua filha depois de ela se ter tornado minha esposa. Mas
era sua convicção que a mulher devia servir fielmente ao marido em todas as situações, por conseguinte achava
em que a minha esposa quisesse acompanhar-me; além disso ela tinha escravos bastantes, os quais a podiam
transportar na tipóia, de modo que ela não me iria causar atrasos nem criar obstáculos na viagem. Tmabém não
seria exposta a perigos, pois não era provável que os Ganguela ousassem atacar uma caravana chefiada e apoiada
por um branco”. Sobre a diferenciação de escravos e a caravana de Magyar ver HENRIQUES, Op. Cit., p. 718.
209
A ração seria o subsídio de alimentação diária, parte da remuneração dos carregadores. Ver HEINTZE, Op.
Cit., p. 284.
210
Os carregadores Nzinga, que preferiam rotas rumo ao interior de Angola, no período analisado, tinham fama
de promoverem greves para obtenção de rações maiores. Ver Heintze, Ibidem, p. 266.
101
adquiridos ligavam-se, por questões de sobrevivência, mais estreitamente ao
seu novo amo do que carregadores livres.211
Carregadores livres também apresentavam vantagens, principalmente no manuseio de
armas de fogo – fundamental para garantia da segurança da caravana – e no contato com
populações locais durante a viagem – fato que inspirava maior respeito à caravana. Estes,
recrutados em sua maioria entre os mais pobres e aqueles que não possuíam relação influente
dentro de suas respectivas sociedades,212 igualmente eram vítimas de maus tratos pelo
caminho, que por vezes conduziram à morte.
213
A esses elementos, acrescentam-se as
péssimas condições de trabalho, em que carregadores transportavam a carga sobre rios de
difícil acesso, bosques, subidas, com jornadas que poderiam chegar até 10 horas diárias, com
soldo considerado baixo. Em regiões devastadas por guerras, desabitadas ou em mal estado de
desenvolvimento agrícola, multiplicavam-se os casos de carregadores enfraquecidos pela
fome e moribundos, que acabavam sendo abandonados à beira do caminho, ou para não
atrapalhar o andamento da caravana ou para a epidemia não se espalhar. 214
No que diz respeito ao recrutamento de carregadores, a abolição do comércio atlântico
de escravos constituiu um fator importante para a compreensão da lógica em que o mesmo se
processou. Ainda que os carregadores fossem figuras essenciais para composição de uma
caravana comercial, como observamos anteriormente, a proibição do envio de escravos para o
Novo Mundo, na década de 1830, forçou o rearranjo da economia no território angolano,
investindo-se em outros produtos, como o marfim, a cera e a borracha. Tal rearranjo, por sua
vez, provocou um “boom” na demanda de carregadores, visto que o novo motor da economia
na região não era uma “carga móvel”, como outrora foram descritos os escravos por
sertanejos como Silva Porto. 215
Com a sucessiva proibição do comércio de escravos, criou-se toda uma situação de
instabilidade e incerteza na região, de modo que dois desafios se colocavam a todos aqueles
que estavam envolvidos com a economia escravista no território angolano: em primeiro lugar,
como eliminar a exportação de escravos de Angola e evitar que ingleses, que guarneciam a
costa, se aproveitassem da situação e, consequentemente, como manter os mesmos
211
Idem Ibidem, p. 263.
Heintze chama atenção que nalgumas caravanas poderia se ver entre pobres e pessoas sem prestígio a
presença de carregadores oriundos de famílias nobres, como filhos de sobas e às vezes até chefes de aldeias.
Idem Ibidem.
213
Embora tais casos fossem raramente documentados. Ibidem, p. 265.
214
SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos caminhos de África: Serventia e Posse. Lisboa: Instituto de
Investigação Científica Tropical, 1998, pp. 20-22.
215
Idem Ibidem, p. 292.
212
102
rendimentos alfandegários que se obtinham anteriormente com o comércio escravista. A
situação se mostrava mais complexa na medida em que existia toda uma estrutura que
envolvia diferentes personagens, elites locais e do além-mar, entre outras. Frente a estas e à
eliminação do comércio escravista, o Governo Central esperava que a necessidade forçasse o
interior africano a fornecer outros produtos que não fossem escravos e o mesmo,
analogamente, se adequasse às manufaturas européias – assim, se manteria o mesmo nível de
arrecadação aduaneira. 216
Todavia, apesar da extinção do comércio de escravos para as Américas em 1836,
somente em 1845 as casas comerciais de Benguela passaram a pôr restrições ao recebimento
de cativos. Como a fiscalização inglesa se intensificara a partir da década de 1830, na costa da
África Centro-Ocidental, o comércio de escravos assumia a forma clandestina e, mesmo com
as dificuldades para se chegar às Américas, os números se mantiveram estáveis até final da
década de 1840; quando finalmente os portos brasileiros se fecharam ao recebimento de
escravos africanos, com a lei de 4 de setembro de 1850 . 217 Após o fechamento definitivo do
mercado escravista, o comércio de cativos, que atuava desde a década de 1830 na
clandestinidade, passaria a desaparecer gradualmente. No entanto, vale destacar que, em
regiões no interior, o comércio de escravos perduraria ainda; porém, se antes esses escravos
eram a própria razão que motivava a realização das caravanas, nessa nova etapa, precisamente
na segunda metade do século XIX, estariam reduzidos à posição de “moeda de troca” para
obtenção de marfim. 218
À frente desse rearranjo, estava o marfim. Com a abolição do comércio escravista,
passaria a ser o principal produto que movimentaria a economia na região angolana. Apesar
de estar longe de equilibrar a balança de pagamentos, o marfim foi o principal produto que
contribuiu para que a economia local se libertasse da escravidão, forçando a ampliação das
redes de comércio para o interior – em Luanda por intermédio da feira de Kasanje e em
Benguela por meio do Bié. 219
216
Ibidem, p. 84.
SANTOS, Op. Cit., p. 87.
218
Idem Ibidem, p. 89.
219
Segundo Maria Emília Santos, a história comercial de Angola, do final do século XVIII ao XIX, pode ser
demarcada entre a “primeira e segunda Plêiade” de sertanejos. A primeira, estaria situada entre o final do século
XVIII e primeiras décadas do XIX, onde o comércio escravista ocuparia posição central e seria a própria razão
de ser da realização das caravanas, ao passo que a segunda plêiade, se encontraria num momento de
reestruturação da economia, onde o marfim, seguido da cera e borracha, seriam os grandes motores da economia
e, o escravo, que antes era a razão de ser, nesta seria apenas um complemento, que desapareceria de cena aos
poucos. Ver SANTOS, Ibidem, pp.87-88.
217
103
As caravanas, portanto, a depender do período histórico, teriam diferentes motivações
e objetivos. Contudo, o seu formato e procedimento de composição, antes ou após abolição do
comércio escravista, a despeito das diferenças micro-regionais, atenderiam aos mesmos
padrões. O sertanejo Silva Porto, que organizou numerosas caravanas durante o século XIX,
apontava três regras básicas que todos aqueles que pretendessem organizar uma caravana
deveriam seguir: as caravanas precisariam ser numerosas, disciplinadas e bem-armadas. 220 As
vantagens de uma caravana numerosa eram diversas, a começar pela imposição de respeito
aos ladrões que haviam pelo caminho, a esperar oportunidades para atacar. A outra vantagem
se dava na possibilidade de substituir rapidamente carregadores que eram acometidos por
doenças ou acidentes no decorrer do percurso. 221
Entretanto, se, por um lado, uma grande caravana poderia ser benéfica para proteção
externa, por outro lado, trazia complicações no sentido de disciplinar a grande massa,
principalmente, quando se levava em conta o caráter heterogêneo das caravanas –
carregadores de várias etnias, por vezes até rivais. Como a responsabilidade acerca dos
carregadores recaía sobre o sertanejo que organizava a caravana – sobretudo, quando os
carregadores eram fornecidos por sobas –, os cuidados com a disciplina mereciam atenção
especial. Disciplinar uma caravana, antes de mais nada, estava longe de ser um mero exercício
de força. Era preciso que o chefe da caravana observasse minuciosos detalhes:
(...) Os chefes das caravanas precisavam organizar internamente a sua gente
e paralelamente vigiar tanto quanto possível os contatos com o exterior.
Nesse sentido adotaram uma série de medidas de segurança e de soluções
para casos pontuais que lhe permitiam preservar a integridade da
caravana. Qualquer ordem ou resolução para o dia seguinte era transmitida à
noite no quilombo pelo pregoeiro, para que todos os membros da comitiva
tomassem conhecimento ao mesmo tempo e não pudessem alegar
ignorância.222
Durante o percorrer da caravana, existiam regras básicas de disciplinas, como a
imposição de nunca ultrapassar a bandeira ou avançar nas guardas da frente, e, igualmente,
não deixar ninguém na retaguarda, a fim de que se prevenisse a possível ação dos ladrões, que
segundo Silva Porto
220
Ibidem, p. 18.
Deve-se salientar que uma caravana numerosa poderia agregar até mil integrantes e, nalguns casos, chegou a
reunir até 3 mil pessoas. Ver SANTOS, Ibidem, p. 18.
222
Idem Ibidem, p. 26.
221
104
(...) vendo e não sendo vistos eles acompanhavam durante grandes percursos
a caravana, à espera do momento propício para atacar. Se um desgraçado
doente se deixava ficar para trás, aprendiam-no e tratavam-no,adquirindo
assim um escravo.223
Até a escolha do lugar onde se armaria o acampamento deveria ser objeto de cautela.
Geralmente, era montado em regiões próximas à água, pois lugares ressequidos poderiam
deixar o acampamento vulnerável a incêndios. A fim de evitar incêndios, várias precauções
eram tomadas:
(...) A fim de evitar catástrofes destas os sertanejos passaram a não entrar
nos quilombos antigos, nem sequer naqueles que tinham construído na ida.
Na torna-viagem fabricavam novo acampamento nas imediações, utilizando
a madeira antiga apenas para combustível. Terminado o trabalho do fabrico
passava o pregoeiro por todos os grupos de barracas deitando o pregão de:
“Fogo! Fogo! Cautela com o fogo!”. Era o aviso para limparem e varrerem
circularmente no local das fogueiras, a fim de não se comunicar às barracas
ou ao certo.224
Finalmente, além da quantidade de integrantes e disciplina, a caravana deveria estar
sempre bem armada. Estima-se, por exemplo, que, nas grandes caravanas realizadas entre o
Bié e Benguela no século XIX, metade dos seus integrantes se encontravam armados. Em
algumas ocasiões, bastava a apresentação dessas armas ou disparos para intimidar ladrões que
as espreitassem. Salienta-se que as caravanas, precedidas pela fama de possuírem armas de
fogo, se sentiam mais fortes e seguras.
225
A posse e o uso correto das armas, frente às
populações que não sabiam como utilizá-las (ou que as desconheciam), dava vantagem ao
sertanejo e à caravana. 226
O recrutamento, de maneira geral, era realizado de bloco ou individualmente. Na
primeira modalidade, a negociação se dava diretamente com sobas, ao passo que, na segunda,
os próprios carregadores se apresentavam ao organizador da caravana. Precisamente, é a
primeira modalidade de recrutamento que prevalece no período investigado (século XVIII e
primeiras décadas do XIX)227, e ela se mostra repleta de detalhes e protocolos, conforme
observa Heintze:
223
SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, vol. 1º, p. 8, 16 de maio de 1846 Apud SANTOS, Op. Cit.,p. 26.
Idem Ibidem, p. 28.
225
HEINTZE, Op. Cit.,p. 296.
226
SANTOS, Op. Cit.,p. 29.
227
Segundo Heintze, a segunda modalidade de recrutamento ultrapassa em importância o recrutamento via-sobas
ou chefes de aldeias, somente no final do século XIX, com o boom da produção de borracha. Ver HEINTZE, Op.
Cit.,p. 270.
224
105
(...) Um comerciante que, por exemplo, quisesse expedir mercadorias de
Malanje, mandava chamar um soba ou um ambaquista das imediações (isto
quando não eram estes os próprios empresários) – geralmente corriam
rumores acerca do sítio onde talvez ainda se pudesse encontrar carregadores
- , dava-lhes as boas vindas com aguardente e tecidos e depois negociava
com ele o número necessário de carregadores para uma determinada data,
uma determinada rota, um determinado destino e um determinado salário. O
soba assumia então a responsabilidade pelo pessoal assim contratado, com
toda a sua fortuna como garantia, responsabilidade essa que durante a
viagem podia recair parcialmente sobre o chefe, ou seja, o cabo desse grupo
de contratados. Caso o próprio soba participasse da viagem, ficavam sempre
as suas mulheres, uma parte dos restantes dos bens ou um fiador abastado,
nomeado de antemão, a quem mais tarde se podia pedir contas por eventuais
prejuízos causados pelos carregadores. Estes acordos eram depois ratificados
num protocolo antes da partida, na presença de ambas as partes, frente ao
chefe do distrito ou do comando militar. Este zelava também pela
comparência dos carregadores mais lentos no momento da partida, para o
que os convocava os respectivos sobas e os metia na cadeia sem cerimônias
até que estes tivessem honrado os compromissos acordados.228
Quando um soba não possuía carregadores suficientes, acabava por negociar com
outro chefe a quantia de que necessitava. Essas situações, se, por um lado, solucionavam a
necessidade de braços, por outro lado, criavam novos problemas, pois em alguns casos os
carregadores convocados pertenciam a povos rivais. 229 Todavia, mesmo com tal problema de
demasiada heterogeneidade, a contratação de bloco ainda se mostrava mais vantajosa, pois
facilitava o desfecho e rápida realização da caravana.
Apesar de já estar em meados do século XIX, a descrição do viajante húngaro Magyar
é de grande valia para se pensar todos os procedimentos que se deviam ser tomados para a
organização de uma caravana, no sul do território angolano. Entre os anos de 1840 e 1850, o
viajante, que havia se fixado na região do Bié, detalhou os pormenores que antecediam à
partida de uma caravana na região. Esteve por um ano no sul da Angola, estudando diferentes
idiomas, a fim de se sentir mais seguro para realização dos seus futuros projetos. O seu
objetivo era organizar uma caravana do Bié até a região dos Lundas, ao leste de Angola. Essa
rota havia sido abandonada há vários anos, relata o viajante, por conta dos freqüentes ataques
dos bangalas (ou Imbangalas), que estavam entre a partida e a chegada da rota. Ao descrever
o que significavam as caravanas na metade do século XIX, o autor dizia:
(...) As caravanas que viajam para os territórios distantes do interior
costumam partir no começo da estação seca, e aqueles que querem tomar
228
229
Idem Ibidem, p. 269.
Ibidem, p. 270.
106
parte nelas começam alguns meses antes dos preparativos necessários. Logo
que acabam os seus preparativos após terem posto em ordem os assuntos
domésticos com vista à longa ausência, partem e reúnem-se no dia
combinado, no sítio designado, geralmente entre Kokéma e o Koanza. Ali, as
pessoas reunidas esperam alguns dias até estarem no local todos os membros
da caravana, que vêm de diversas regiões e chegam pouco a pouco. Após o
que, sob a orientação de um chefe de caravana já conhecido e de confiança,
eles iniciam a viagem. 230
Segundo Magyar, o procedimento para organização de uma Caravana, ainda naquela
época, era caracterizado por uma grande mobilização da comunidade; os membros de
diferentes famílias, se envolvidos e se dessem o consentimento, estavam obrigados a
participar para composição das mesmas, inclusive com responsabilidades para com os
mobilizados. O viajante relata que, se o convidado morresse durante a realização da caravana,
aquele que convidou era considerado culpado. Nesse caso, teria que pagar uma indenização
aos familiares, em espécie ou a “preço de sangue”. 231
A descrição que Magyar faz da convocação e convencimento da população local, para
realização da caravana, ilustra o quão poderia ser importante a realização do empreendimento
para as comunidades bienas:
(...) Quem pretende organizar uma caravana para uma terra qualquer, reúne
primeiramente a sua própria gente de maior importância no Jango da sua
libáta e informa-a da sua intenção. As pessoas reunidas, entre as quais o
kissongo desempenha evidentemente o papel principal, reflectem então no
plano que lhes foi proposto, sob todos os aspectos calculam o proveito e o
lucro que se pode esperar do empreendimento planejado e ponderam os
factores favoráveis e os obstáculos que tornariam o empreendimento ou
realizável ou impossível. Posto o que, conforme as circunstâncias, ou dão o
seu consentimento, ou recusam tomar parte no empreendimento. No
primeiro caso, comprometem-se logo a querer apoiar, com todas as suas
forças a realização da caravana; no segundo, abandonam o Jango sem dizer
palavra e dão assim a entender ao autor do plano que deve desistir
absolutamente desse plano, ou pelo menos que deve modificar bastante.232
Após todos os preparativos e realização de cerimônias, 233 a caravana partia para o seu
destino. Embora fosse organizada já dentro de um contexto de inexistência do comércio
atlântico de escravos, a caravana de Magyar ilustrava a continuidade do comércio escravo no
interior de Angola, após a proibição intercontinental, e também o grau de envolvimento da
230
A referida carta foi publicada no apêndice da tese de doutoramento de Isabel Castro Henriques. Segundo a
autora, a tradução das cartas de Lázlo Magyar foram cedidas pela pesquisadora do AHNA (Arquivo Histórico
Nacional da Angola) Dr.ª Maria Conceição Neto. HENRIQUES 1996, p. 715.
231
Pressupomos que seria com a própria vida, ou com a vida do considerado responsável.
232
Idem Ibidem, p. 716.
233
Magyar menciona a realização de diversas solenidades com comidas, bebidas e danças, antes da partida da
Caravana. Idem Ibidem, p. 718.
107
comunidade com a sua própria realização, sem o qual não seria possível, o que implicava
sérios riscos para viabilidade do comércio escravista.
É preciso considerar que as caravanas, às quais se referia o viajante húngaro, eram as
chamadas “caravanas Ovimbundus", que tradicionalmente tinham como ponto de partida o
Bié e, como ponto de chegada, uma imensa rede de relações comerciais direcionadas ao leste,
às vezes nas proximidades do Oceano Indico ou costa oriental. Compravam marfim em troca
de mercadorias européias, gado e até escravos jovens. 234
Elas não eram organizadas em portos como Luanda ou Benguela, mas sim em
localidades do interior, como Mbanza, Kongo, Kasanje, Bailundo, Bié e Caconda. E,
fundamentalmente, aqueles que se encarregavam de promovê-las, como observamos nos
mesmos relatos de Magyar, seriam numerosos agentes, desde luso-europeus, chefes africanos
até comerciantes africanos, embora a sua origem fosse eminentemente africana, segundo
Henriques.
Organizadas no contexto africano, à medida que o comércio crescia de média a longa
distância, essas caravanas formaram-se, inicialmente, com o intuito de defender as redes
comerciais dos obstáculos, tais como os perigos da floresta, rios, feras (que era preciso ou
matá-las ou permanecer longe) e mesmo dos “outros” que comumente consideravam
ameaçadora a presença de outros povos nos seus respectivos territórios.
235
Apesar da
tentativa de “laicização” das caravanas, organizando-as estritamente em lógicas comerciais,
com a chegada dos europeus, 236 elas permaneceram predominantemente concebidas dentro de
lógicas africanas, uma vez que a sua montagem dependia em sua essência das estruturas de
parentesco africanas – o próprio Magyar organiza a sua caravana segundo lógicas africanas,
aproveitando-se do fato de ter se casado com uma africana da corte. 237
Finalmente, podemos atribuir às caravanas o papel de organizar as rotas de longa
distância no interior da África, mesmo antes da chegada dos europeus. 238 Para tanto, é preciso
equacionar o tempo e a distância, sob contexto africano, em que nem sempre o “tempo" (ou
sua velocidade) será o juiz do sucesso do empreendimento, à luz de todo cerimonioso
234
HENRIQUES, Op. Cit., p. 397.
Tal como o temor dos Bienos quanto à ação dos “Bangalas”, descrito por Magyar.
236
As caravanas organizadas pelo brasileiro Silva Porto refletem isso, no século XIX.
237
HENRIQUES, Ibidem, p. 402.
238
Acerca desta tese, Isabel Castro Henriques questiona a chamada “branquização” da história comercial da
África, tese que sustenta que o comércio de longa distância só passou a existir com a presença européia.
Contrária a tal posição, a autora menciona numerosas rotas de comércio que ligavam os diferentes povos na
Angola, que foram utilizadas posteriormente por europeus.
235
108
preparativo de uma caravana comercial na região, tal como observamos na narrativa do
viajante Magyar.
Fig. 9- Travessia de caravanas, por Capello e Ivens (1881)
Fonte: HENRIQUES, Ibidem, p. 423
Fig. 10 - Paragem de carregadores
Fonte: CARVALHO (1892) Apud HENRIQUES, Ibidem, p. 421
109
b) Redes comerciais entre os reinos de Angola e Benguela
A complementaridade e a interdependência foram as principais características que
ligavam as rotas de comércio entre os reinos de Angola e Benguela, e permitiam que as
diferentes mercadorias cruzassem as províncias com segurança. Pode-se dizer que, antes da
chegada dos europeus, existia uma estrutura interna, formada por diferentes trajetos que
conectavam diferentes regiões. A partir do século XVI, o que se observa, principalmente, é
uma pressão exercida externamente, tanto pelas mercadorias que chegavam da costa
Ocidental como as da Oriental. Todavia, tal pressão:
(...) serviu para reforçar o carácter estratégico das zonas comerciais já
existentes, pois a maneira mais rápida de assegurar a comercialização residia
no recurso aos caminhos que já tinham dado provas de eficácia. O comércio
exterior só pode tentar recuperar para si os circuitos que até então tinham
assegurado a regularidade das trocas interafricanas. Este comércio exterior
exerce, em primeiro lugar, uma pressão constante para suscitar, conservar ou
ampliar o comércio de escravos, o que não o impede de aceitar as
mercadorias que podem interessar os mercados internacionais europeus,
americanos ou até asiáticos.239
Observa-se que, mesmo diante da pressão externa, africanos não renunciaram ao
controle das rotas comerciais. Pudemos notar isso na própria reclamação do Governador
Paulo Caetano, em 1728, de que havia falta de escravos porque os negros não os levavam
mais, após a repressão da ação rebelde dos sobas nos sertões de Benguela.240
Certamente, os casos mais significativos, no que se referem a Angola, e que ilustram o
controle africano dessas rotas, estão associados à famosa feira de “Kasanje” e à atuação
política e militar da rainha Nzinga, ambos presentes na vida política portuguesa no mundo
africano anterior ao século XVIII. A primeira localizava-se em uma região conhecida como
Baixa de Kasanje, cujo território estava limitado a leste pela margem esquerda do rio
Kwangu, a norte pelo rio Lui e oeste pelas montanhas de Talla-Mugongo (ver mapas 6).
Ocupava uma superfície de cerca de 8500 Km², estendendo sua influência para todas as
regiões vizinhas. 241 A sua importância se elevou a tal grau nos anos setecentos, que a ideia de
239
Ibidem, p. 359.
Na última seção do presente capítulo, uma análise da instabilidade formada no hinterland de Benguela entre
sobas (chefes) locais e funcionários da coroa lusitana.
241
Existem 3 autores fundamentais, para se pensar a localização do reino de Cassange e sua hegemonia
comercial na região: Rodrigues Neves, Salles Ferreira e Henrique Carvalho. Os dois primeiros foram militares
que estiveram no território e coletaram informações junto aos Maquita (filhos de Jaga). Ambos fizeram questão
de salientar a imprecisão das fontes. Carvalho, por sua vez, aparenta ter colhido suas informações junto a
240
110
um comércio português para além das fronteiras do território Kasanje, ao leste,
principalmente, seria impensável. Assim observara o brasileiro Correia Leitão em meados do
século XVIII:
(...) este grande Cassange impede todos que em caso nenhum tenham os
portugueses trato ou comércio com os poderosos e muitos potentados de
além do rio; pena de vida, e de geração vendida aos seus vassalados que
mostrarem tal caminho, e a razão da sua teima e ordem e, além de outras
particularidades, para que se não ponham os portugueses da outra banda do
rio e lhe tiremos o comércio dos escravos de que vivem, e os deixemos
avassalados e sujeitos a presídios e nos não façamos senhores dessas muitas
gentes que habitam tão dilatadas terras.242
O militar Cadornega, por sua vez, já destacava com detalhes o quão poderoso havia se
tornado o potentado de Cassanje, ainda no final do século XVII:
[O Chefe] veste mui ricos panos e telas e sedas [governa] com justiça e
razão, é o poderosíssimo Jaga Casangi que rei e imperador se pudera intitular
pela imensidade dos vassalos que tem de sua conquista e domínio (...) que se
avaliam em mais de mil sobas fidalgos, senhores de muitas terras e vassalos,
que seu númer se não pode compreender.243
As narrativas em torno da rainha Nzinga, assim como as descrições da poderosa feira
de Cassanje, se revelam igualmente numerosas. Nzinga, em uma combinação variada de
várias estratégias, que iam da conversão ao cristianismo até às práticas, liderou a resistência
ao avanço lusitano no território da atual Angola por cerca de 40 anos – do momento que
assume o potentado, por volta de 1627, até sua morte aos 82 anos em 1663.244 Entre os pontos
notáveis dessa resistência, no que tange às questões comerciais, destacava-se o fato dos
domínios de Nzinga abrigarem escravos fugitivos – elemento que acabava instabilizando as
relações comerciais na região, já que elucidava a insegurança das operações e possibilidades
de prejuízo. O próprio Cadornega, em 1660, narra um episódio em que tivera sido convocado
na qualidade de juiz para tratar de um assunto na corte de Nzinga e menciona a situação de
vários escravos fugidos de pombeiros existentes naquele domínio. 245
Quiocos e Lundas, não entre Imbangalas. Ver CARVALHO, Henrique. Ethnografia e História tradicional dos
povos da Lunda, 1890; Idem, O Jagado de Cassanje, 1998; FERREIRA, Francisco de Salles. A Campanha de
Cassange, Lisboa, 1851; NEVES, António Rodrigues. Memória da expedição a Cassange commandada pelo
Major graduado Francisco de Salles Ferreira em 1850, Escripta pelo capitão móvel d’Ambriz António Rodrigues
Neves, Lisboa, Imprensa Silviana, 1854.
242
LEITÃO, Manuel Correia, “Viagem que eu, sargento môr dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas
partes de Cassagen e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756, 56.ª série, n. os. 1-2, Janeiro-Fevereiro 1938,
p.30
243
CADORNEGA, 1972, III,p. 215 Apud Henriques, Op. Cit.,p. 203.
244
Lembramos a reflexão da seção 1.2.2. do capítulo I, desta tese, acerca da resistência e possível impacto no
imaginário do povo angolano de Nzinga. .
245
CADORNEGA, 1940-1942, III, p. 74.
111
Nesse quadro, vale citar o estudo de Beatrix Heintze, que, ao investigar as fugas de
cativos ocorridas ao longo do século XVII, no território de Angola, aponta o potentado de
Nzinga como um dos destinos preferidos dos fugitivos, quando de Luanda, ou no trajeto para
Luanda, estavam a fugir para o leste.246 Na análise dos documentos do período, a autora
informa que, em alguns casos, aldeias inteiras foram se refugiar nos domínios de Nzinga e,
em outros casos, pessoas perderam 150 cativos de uma única vez. Vários desses cativos
fugitivos, ao serem aceitos, principalmente aqueles treinados militarmente, se somavam às
fileiras da rainha.
247
As constantes queixas de fugas, asilos de cativos e campanhas militares
movimentadas contra sobados acusados de abrigar cativos, revelam a necessidade de garantir
a estabilidade entre os potentados, para o bom fluir das relações comerciais. É o que se nota
no regulamento para o funcionamento das Feiras em 1764, ou seja, cerca de 100 anos após os
conflitos com a rainha Nzinga, no território angolano. No mesmo, é notória a preocupação em
proteger o comércio dos chamados “atravessadores” e garantir a segurança dos comerciantes
de “cabeças” e ceras.
248
O conteúdo dos artigos é ilustrativo nesse sentido: no Artigo 6º,
determina-se que os “sobas e potentados vivam na boa fé e sob os princípios da verdade; no
Art. 10º., que o escrivão cuidasse para que os brancos não enganassem os negros; o Art. 12,
por sua vez, dispõe sobre a necessidade dos Capitães-mores atraírem potentados, para o
crescimento do comércio; e, finalmente, o Art. 14, que determina que nenhum capitão deveria
intervir nos negócios internos dos potentados, e tratarem apenas de negócios.
249
Ou seja, a
fim de que fosse garantido o bom funcionamento das redes comerciais, era preciso assegurar a
paz tanto internamente, como nas relações entre agentes lusitanos e africanos.
246
Segundo a autora, tais fugas se davam no interior de um contexto onde nem todos os escravos capturados nas
chamadas “Guerras justas” ou relações comerciais diversas, no interior de Angola, foram enviados para o
“Além-Mar”. Vários permaneceram na região, o que facilitava a possibilidade de vislumbrarem a fuga, uma vez
que conheciam o terreno onde se encontravam e tinha parentes na região, que poderia auxiliar nos planos. Além
do potentado de Nzinga, durante o século XVII existiam numerosos destinos que poderia se valer cativos
fugitivos: o sertão de Luanda, onde havia uma mata cerrada e impenetrável e o soba Nsaka; o sobado de
Quissama, ao sul do Kwanza, que foi destino dos cativos que fugiam dos presídios de Muxima, Massangano e
Cabambe; e a região dos Ndembu e Reino do Kongo – este último sítio, passou a ser inseguro, uma vez que
foram vários os casos de entrega de cativos fugitivos aos portugueses, após pressões. HEINTZE, Beatrix. Asilo
Ameaçado: oportunidades e consequências da fuga de escravos em Angola no século XVII. Tradução de Lotte
Pluger. Luanda: Ministério da Cultura, 1995, pp. 14-16.
247
Ver também Idem, “Das Ende des unabhangigen staates Ndongo (Angola). Neue Chrnologie und
Reinterpretation (1617-1630)”. Paideuma, 17, pp. 197-273; LOVEJOY, Paul E. “Fugitive slaves: resistance to
slavery in the Sokoto Caliphate”. In: Gary Y. Okihiro (Org.). In: Resistance, Studies in African, Caribeean, and
Afro-American History. Ambherst, 1986.
248
“Cabeças”, de acordo com as nossas observações nos arquivos de Angola do acerco do Arquivo Histórico
Ultramarino, eram como eram denominados os cativos, ao longo das operações.
249
É interessante observar o cuidado, ao menos no regulamento, para a não-intervenção nos negócios internos
dos sobados, apesar dos constantes documentos que demonstram intervenção no sentido de proibir manifestações
religiosas no interior dos domínios lusitanos. AHU, Angola, Cx. 48, Doc. 35.
112
E quais seriam as principais redes que cortavam o território de Angola e, por
conseguinte, transitaram nelas as chamadas “cabeças”? A análise dos numerosos registros de
viajantes, sertanejos e dados oficiais, entre os séculos XVIII e XIX, demonstra a existência de
diversas estradas que cortam o território de Angola, de norte a sul e leste a oeste,
destacadamente as seguintes: “Kasanje-Musumba”, “Jia Dia Panda”, “Bié ao Lovale” e do
“Bié-Kasanje”. 250
A primeira ligava a supracitada feira de Kasanje à Musumba, capital dos Lundas, de
onde partiam caminhos para o Kazembe, na costa oriental da África. Era considerada a
principal fornecedora da feira de Kasanje, “porta dos sertões da Lunda”, por assegurar o fluxo
de mercadorias européias, à troca de escravos e marfim. A mesma era controlada por
Imbangalas e populações que dependiam de tal circuito. 251
A Jia Dia Panda, também chamada de “o grande caminho”, ligava o território de
Kasanje à Musumba, através do território Quioco, ao sul. Esta também fora utilizada por
Bienos, que se direcionavam ao Musumba, e buscavam evitar o Kasanje, uma vez que a
mesma se dirigia a Musumba pelo Sul (território dos Songos).
252
Além de ligar o Bié ao
Musumba, também possuía caminhos que levavam ao Lovale, no sudeste de Angola:
(...) Próximo do alto do Tchikapa, a Jia possuía uma conexão com os
caminhos que subiam do Sul. Esta característica dava-lhe o estatuto de nó
comercial estratégico, dado que assegurava a confluência com um caminho
que levava até ao eixo transversal que ligava o Bié aos territórios ganguela e
luena (lovale), situados a leste, quando flectia para leste – para lá do
Zambeze – e para as regiões do centro-Sul do continente.253
Sobre a Jia, pelo que atesta o viajante Linvingstone,254 havia um intenso fluxo de
caravanas, que levavam não apenas produtos como feijão, cera e marfim, mas também
escravos. Ela era objeto de intensa disputa entre Imbangalas e Ovimbundus. Segundo
Henriques, por um lado, os Imbangalas eram os antigos e dominadores comerciantes; por
outro lado, os Ovimbundus que viviam nos reinos Bailundo, Huambo e Bié, até o final do
século XVIII, haviam se tornado poderosos comerciantes de escravos, que os concentravam,
sobretudo no Bié, para depois remeterem-nos à Benguela. Tais grupos organizavam
250
Ver mapa 18, sobre as rotas comerciais em Angola...
HENRIQUES, Op. Cit., pp. 385-388.
252
Possivelmente o viajante Magyar, citado na seção anterior, percorreu o mesmo trajeto, a fim de evitar os
Imbangalas.
253
HENRIQUES, Ibidem, p. 392.
254
LIVINGSTONE, David. Explorations dans l’intérieur de l’Afrique australe ET voyages à traver Le continent
(...) de 1840 à 1856, 2 vols. Apud HENRIQUES, 1996, p. 393.
251
113
imponentes caravanas que penetravam progressivamente no interior, pondo termo ao
monopólio imbangala nas regiões atravessadas pela Jia. 255
A terceira rota, que ligava o Bié ao Lovale, fazia conexão com a Jia e era percorrida,
principalmente, pelas caravanas ovimbundo. Atravessava todo o território da África Central,
fazendo conexão com a costa ocidental e chegando às proximidades com o Oceano Índico, às
vezes até a costa oriental. Tal rota cruzava diferentes territórios, como os reinos de Muropoe
Kalovar (lovale), Lubanda, Katanga e Kazembe, e colocava o Bié em contato comercial com
os Quiocos (a leste) e os Bundo e Ambuelas (ou Banguelas) a sudeste, além dos Songos, que
estavam entre o Bié e o Lovale. Destaca-se que os comerciantes visitavam a região,
principalmente, por lá adquirirem escravos a preços reduzidos. 256
A última principal rota comercial na região ligava o Bié à feira de Kasanje, através do
território Songo. Ela percorria uma linha reta até o rio Cuanza e de lá haveria um caminho que
adentrava o território songo. Deste ponto até a feira de Cassanje, levava-se em média 4 dias.
De acordo com comerciantes que estiveram na região do Bié nos anos oitocentos, nela, havia
uma intensa circulação de cera, marfim e escravos. 257
c) Sertanejos, Pombeiros e Financiadores
No ano de 1796, uma instrução encaminhada pela rainha D. Maria I pusera em relevo
a complexa situação comercial em Benguela. Na mesma, a rainha instruía o governador de
Benguela, Alexandre José Botelho de Vasconcelos, a prevenir possíveis disputas entre
sertanejos, pombeiros e sobas, principalmente, na hora do contrato dos chamados
“carregadores”. Era preciso que comerciantes procurassem primeiramente os sobas e, assim,
estabelecessem um salário justo.
258
No mesmo período, escrevia Silva Correia, observava-se
possíveis complicações para sertanejos conseguirem carregadores. Segundo o autor, eram
255
Progressivamente, do final do século XVIII a meados do XIX tal rota passa a ser dominada por caravanas
Ovimbundus. Ibidem, p. 395.
256
Ibidem, p. 397-399.
257
Ibidem, p. 400. Ver também mapa 7, acerca das rotas existentes no “Planalto central de Benguela”, antes e
após 1750.
258
AHU, Angola, Cx. 83, Doc. 41, de 13 de abril de 1796.
114
recorrentes os casos de corrupção de Capitães, encarregados de mediar a distribuição de
“carregadores’; motivados por “ambição”, usavam suas respectivas atribuições a troco de
presentes – caso não recebessem, havia o grande risco dos produtos comercializados não
atingirem o destino final.
259
Segundo Cândido, diante desse contexto, era freqüente que
Sertanejos e Pombeiros preferissem negociar diretamente com sobas do que se submeterem às
corrupções dos agentes da coroa portuguesa; os sobas, além de controlarem diretamente o
comércio nas suas áreas, poderiam fornecer os carregadores necessários. 260
Esses personagens, pombeiros e sertanejos, foram nomes fundamentais na realização
das redes comerciais e obtenção de cativos, na medida em que a empresa escrava se alargava
aos sertões.261 Tal rede articulava diferentes lugares e personagens, a depender das
circunstâncias. Se, por um lado, as guerras, desde a instalação portuguesa naqueles territórios,
se constituíram como as principais maneiras de obtenção de cativos,
262
por outro lado, os
constantes tratados (a exemplo do que vimos acima, quando sertanejos e pombeiros
procuravam diretamente os sobas) foram elementos fundamentais na produção de escravos,
visto que somente em uma situação estável seria possível o movimento desses comerciantes.
263
Em termos diretos, ambos os personagens seriam a ponte entre comerciantes da costa e
em áreas do interior. Sertanejos, propriamente dizendo, seriam agentes comerciais e estariam
encarregados de organizar o transporte de bens (cera e marfim, por exemplo) e escravos.
264
Poderiam ter as origens mais diversas, entre condenados, criminosos exilados, desertores ou
até mesmo aventureiros. 265
A descrição do explorador Serpa Pinto, já na segunda metade do século XIX, nos
fornece uma dimensão do que poderia ser o “sertanejo” no mundo comercial angolano:
259
Silva Correia, História de Angola, 1, p. 37. Apud HENRIQUES, Op. Cit.
CÂNDIDO, Op. Cit., p. 126.
261
O seguinte alargamento aos “sertões” em Angola se passa ordenadamente a partir da edificação de Luanda,
em 1576 e avança gradualmente ao interior nos séculos seguintes.
262
Segundo Curto, até a instalação do Presídio de Caconda, a prática da guerra foi a principal maneira de
obtenção de cativos no sul de Angola. Após tal instalação, passou a ser substituída gradativamente pelo
comércio. CURTO, Op. Cit.,p. 270.
263
Vale ressaltar que um indivíduo poderia se tornar escravo não somente por meios violentos, tais como as
guerras ou incursões, fartamente documentadas, mas inclusive por meios jurídicos, não-pagamento de dívidas,
adultérios, roubos, entre outras razões. Em 1812, por exemplo, chegara ao Rio de Janeiro vários escravos que
não somente haviam sido apresados em guerras, mas condenados por adultério, roubos e demais crimes. Ver
Cândido, Op. Cit.,p. 48.
264
Ibidem, p. 100.
265
CURTO, Op. Cit., p. 272.
260
115
(...) São condenados, fugidos dos presídios da costa, são homens a quem a
sociedade surprimiu as garantias de cidadão, são réprobos a quem a sentença
da justiça imprimiu um indelével ferrete de ignomínia; são salteadores e
assassinos, a quem a Pátria baniu do seu seio com horror, que pudesse
quebrar o grilhão de ferro com que estavam acorrentados ao patíbulo
aviltante e fugindo a um mundo onde só os esperava o desprezo da gente
civilizada vão longe buscar entre os selvagens a guarida que perderam, e
continuar ali a vida de crimes.266
Silva Porto, como sertanejo, apresentava uma visão mais amena do perfil social dos
seus pares:
(...) escória da sociedade, e infelizmente quantos desta mesma índole não
têm aparecido achado benéfica proteccção do Bié? Mas quantas vezes se
tratava de homens com que o destino foi cruel que essa sociedade bania de
si, mais pelos erros do que pelos crimes que cometeram?267
A despeito da origem social, sertanejos procediam da seguinte maneira: desciam ao
litoral para se abastecerem de mercadorias européias (tecidos, pólvora, aguardente, entre
outras) e vender produtos africanos (escravos, marfim, cera, etc.). A sua vida, de maneira
geral, se passava longe do olhar das autoridades portuguesas, já que viviam tradicionalmente
no sertão. Todavia, a liberdade da qual se beneficiavam também encontrava limites:
(...) No interior, o sertanejo ficava fora do alcance das autoridades
portuguesas. Se era desertor ou foragido beneficiava da imunidade que lhe
concediam a extensão e a virgindade do país. Se era apenas aventureiro
ambicioso beneficiava de uma grande liberdade em relação às regras da
sociedade européia. Havia, porém, uma contrapartida: a sua integração e
defesa em relação ao meio africano. Também aí havia leis rígidas e regras a
cumprir, para acautelar uma convivência prolongada possível.268
O essencial, no que diz respeito ao estilo de vida do sertanejo, era a sobrevivência.
Para tanto, aprendiam a oferecer resistência com o mínimo de desgaste, a se adaptar por vezes
até ao nível do nivelamento e fazer valer a superioridade financeira e aptidão para o comércio.
Nesse bojo, também se aproveitavam da experiência e organização africana, a ponto de se
valerem da instituição casamento, que lhes permitia rápida integração e usufruto das benesses
– o casamento com filhas de sobas/chefes africanos colocava de imediato o sertanejo em
266
Apud SANTOS, Op. Cit., p. 8.
PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Viagens e Apontamentos de um Portuense em África.Vol.II.
Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimba, 1986, p. 270.
268
SANTOS, Op. Cit., p. 5.
267
116
posição de vantagem.
269
Todavia, à medida que enfraqueciam os seus laços com a sociedade
de origem, aumentavam as obrigações para com a sociedade acolhedora. 270
O soba africano, ao longo do século XVIII e XIX, em linhas gerais, desejava a
presença do sertanejo e, para o seu acolhimento, em uma terra ligada à soberania portuguesa
por tênues laços administrativos, oferecia-lhes:
(...) uma excelente base, geograficamente bem situada, quer em relação ao
mercado de venda quer ao mercado de compra; o seu território estava
cortado por grandes rotas comerciais e dele irradiavam rios em todas as
direções. Punha-lhes à disposição colaboradores qualificados para o
comércio de longa distância (...).271
Em contrapartida, o sertanejo oferecia ao soba e à população em geral a circulação do
seu crédito até o território onde se instalava e, por conseguinte, a criação de um entreposto
comercial. Em alguns casos, chegavam mesmo a dar apoio militar ao soba, como se passou
ante a invasão do Bié, na guerra contra o Bailundo em 1823. 272
A experiência sertaneja do brasileiro António Francisco Ferreira da Silva Porto,
embora seja datada de meados do século XIX, é emblemática para pensarmos o perfil geral do
personagem no território angolano.273 Este, que esteve fixado na região do Bié entre os anos
de 1846 a 1890, atuando como sertanejo e organizador de caravanas, escreveu um diário que
dava conta das rotas, especificidades comerciais do período, informações sobre sobas locais e
dados sobre a fauna e flora, de uma perspectiva de observador participante – ou seja, de
alguém que vivenciou entre biénos e adotou os métodos utilizados pelos mesmos, para
organizar as suas caravanas. O autor, que desenvolveu suas atividades em um contexto
abolicionista e vivenciou a crise comercial na região do Bié – que como observamos, desde o
final do século XVIII se estruturava basicamente no comércio escravo –, se identificava como
“anti-abolicionista por convicção”. No seu diário, em diversas ocasiões, Silva Porto menciona
a circulação de escravos no interior de Angola no pós-1850; além do contato com sobas, que o
procuravam, na qualidade de sertanejo e organizador de caravanas, em vista dos benefícios
que estas poderiam trazer por onde passassem. É o caso do encontro do sertanejo com o soba
biéno Quicuamanga, no dia 20 de maio de 1846:
269
O húngaro Magyar, anteriormente citado, organizou a sua caravana enquanto africano, uma vez que havia se
casado com uma integrante da realeza biéna.
270
Por exemplo, nenhum comerciante poderia sair do território de um dado soba sem a sua autorização. Ver
SANTOS, Ibidem, p. 9-10.
271
Idem Ibidem, p. 62.
272
Ibidem, p. 62.
273
Assim como Silva Porto, vários brasileiros estiveram na Angola ao longo dos séculos XVIII e XIX enquanto
sertanejos.
117
(...) Pelas oito horas da manhã o soba Quicuamanga, seguido de grande
comitiva de povo de ambos os sexos, de marimbas e bamtores e uma manada
de bois, apresentou-se a curta distância da cerca do quilombo, onde fez alto,
e, introduzindo no seu recinto, foi cumprimentado pelas pessoas principais
da caravana, ficando assim satisfeito por esta espécie de cortesia que, de fato
e de direito lhe pertencia. Terminados os cumprimentos, passou a expor os
motivos da sua visita, que disse ter por objecto estreitar relações de amizade
com os sertanejos do Bié, visto que com esse intuito todos lucravam: ele, em
virtude da passagem continuada das caravanas, para o usufruto dos
benefícios provenientes de tal passo, e nós pela segurança dos haveres e
brevidade do caminho em direcção a Benguela. Respondemos
afirmativamente aos desejos expendidos e concluindo por dizer que faríamos
da nossa parte por corresponder. Em seguida deu ordem para a entrega de
dois bois castrados, quindas de farinhas de milho e cabeças de capata, que
retribuímos segundo o valor o rifão peculiar da tribo Quimbunda e ganguela
(...).274
Acerca do segundo personagem, o pombeiro, vale ressaltar que a sua utilização se
devia ao fato de existirem restrições para penetração de comerciantes lusitanos (ou mesmo
brasileiros) nos sertões africanos. Segundo Marcelo Caetano, pombeiros seriam pretos ou
mulatos, assimilados, que serviam os sertanejos antes da penetração no sertão não-ocupado
por portugueses. De acordo com o autor, seriam uma “espécie de caixeiros-viajantes ou
mensageiros diplomáticos dos aviados brancos”. 275
Cadornega, por sua vez, afirma que o termo “pombeiro” seria resultado do
alargamento semântico da expressão originada da palavra “Pumbo” (mercado) – inicialmente
“pombeiros” eram aqueles que freqüentavam o Pumbo. Segundo o mesmo:
(...) Mais tarde, o sentido do substantivo alargou-se de maneira nítida para
designar qualquer espécie de agentes itinerantes que se dirigiam ao interior
das terras, à frente de caravanas, para negociar com os ‘indígenas’ por conta
dos comerciantes portugueses proprietários de casas de exportação nas
cidades portuárias, primeiro em Luanda, seguidamente em Benguela. Muitas
vezes tratava-se de escravos destes comerciantes, mas podiam também ser
homens forros ou livres 276
Ademais, uma vez que o “pombeiro” era aquele encarregado dos contatos iniciais com
terras desconhecidas dos comerciantes lusitanos, a escolha dos mesmos deveria considerar,
inclusive, a competência lingüística. Em todo o caso, os pombeiros, assim como sertanejos,
foram personagens fundamentais no escopo das relações comerciais na região. Roquinaldo
Ferreira, por exemplo, menciona que em 1798, somente em Benguela, existiam 900
274
PORTO, Op. Cit., pp. 241-242.
275
CAETANO Apud HENRIQUES, Op. Cit.,p. 117.
CADORNEGA, Op. Cit.,p. 619.
276
118
pombeiros registrados.
277
Estes eram enviados por comerciantes da costa ou sertanejos para
penetração cada vez mais progressiva no interior, em busca principalmente de escravos.
Além dos “comerciantes-intermediários” (sertanejos e pombeiros), é preciso chamar a
atenção para um terceiro personagem, que detinha grande importância no funcionamento da
empresa escravista: os comerciantes-financiadores, que habitavam as cidades da costa e, em
alguns casos, se originavam do além-mar. A primeira categoria, a dos “comerciantesintermediários”, dependia desta última, pois não possuía capital pessoal para se deslocar nos
sertões. O mecanismo que regulava tal relação se estruturava da seguinte maneira:
(...) face à possibilidade de desaparição de alguns destes comerciantesintermeditários, que não prestavam contas, os comerciantes-financiadores
procuravam eliminar o risco de perder parte ou a totalidade das mercadorias,
aumentando os preços como os juros. Os ‘comerciantes-intermediários’, que
acabavam por pagar de maneira mais ou menos regular, deviam bastar para
compensar as perdas sofridas neste sistema.278
José dos Santos Torres, comerciante nascido no Brasil, Bahia, parece ilustrar com
clareza qual seria o perfil destes comerciantes que financiaram a empresa escrava na região.
Torres seguramente poderia ser considerado o negociante mais proeminente na região, ao
longo do século XVIII. Sua trajetória de vida pessoal, ao passo que demonstra a justaposição
entre Angola e Costa da Mina – até o momento em que a primeira passa a ser mais
interessante comercialmente que a segunda –, igualmente está inserida no contexto que
formalizou o comércio direto entre o porto de Benguela e Rio de Janeiro. 279
Torres, já na década de 1720, atuava em Angola como comerciante de escravos e,
portanto, enfrentou grandes dificuldades com a atuação holandesa na região.
280
Além dos
riscos de ataques no Atlântico, havia as taxas que deveriam ser pagas aos holandeses.
281
Diante de tais dificuldades, o próprio Torres obteve autorização para construção de um forte
na Costa da Mina, no final da década de 1720, para prevenção dos ataques holandeses; e, de
277
Ver capítulo 3 da tese de Roquinaldo Ferreira (2003).
HENRIQUES, Op. Cit., p. 116.
279
Roquinaldo Ferreira, analisando numa perspectiva micro-histórica o comércio entre Benguela e Rio de
Janeiro, nos século XVIII e XIX, estabelece uma reflexão de grande valia sobre a trajetória de José dos Santos
Torres. Vale registrar que grande parte da nossa reflexão é tributária deste artigo específico que segue na
referência. FERREIRA, Roquinaldo. Biografia, Mobilidade e Cultura Atlântica: A Micro-Escala do Tráfico de
Escravos em Benguela,séculos XVIII-XIX. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n20/03.pdf >.
Acesso no dia 11/04/2014.
280
Segundo Ferreira, entre 1715 a 1756, foram apreendidos por holandeses cerca de 12 mil escravos, que
viajavam em navios negreiros no Atlântico. Ibidem, p. 40.
281
Ferreira afirma que entre os anos de 1715 a 1756, 500 navios foram obrigados a pagarem 10% de taxas sobre
os escravos e produtos que eram transportados em navios aos holandeses. FERREIRA, 2003, p. 91; AHU, São
Tomé, Cx. 9, Doc. 83.
278
119
fato, conseguiu capturar entre 1725 e 1727 três navios negreiros holandeses.
282
Nesse bojo,
Torres passou a direcionar os seus investimentos, juntamente com outros comerciantes,
também para a região de Benguela, que se mostrava um porto comercial mais seguro. De
acordo com Ferreira:
No final do século XVII, os embarques em Benguela ofereciam um
contraponto à erosão do controle luandense do tráfico no norte de Angola
(entre Loango e a costa do Congo). Enquanto em Luanda as regras précapitalistas do tráfico favoreciam os governadores de Angola e seus
associados, em detrimento de negociantes privados, Benguela proporcionava
uma espécie de refúgio para os negociantes privados. Perto de Benguela,
recorrentes operações militares eram o meio usado para escravizar
comunidades próximas da costa (...).283
Em 1735, Torres radicou-se em Luanda e passou a dirigir as suas operações daquele
sítio, fartamente documentadas, em posse de 4 navios. Sem passar por Luanda, entre 1735 e
1739, seus navios velejaram entre Benguela e Rio de Janeiro, ao que constam nas
documentações, ao menos quatro vezes.284 O brasileiro continuou a atuar no comércio nas
décadas seguintes e só interrompeu suas atividades em 1774, ano da sua morte.
285
Torres,
assim como os seus pares, representava o perfil daqueles que financiavam a empresa escrava
nas costas de Angola: originários do além-mar, das mais diversas camadas sociais e
associados a numerosos fatores, entre os quais, o jogo de interesses entre as nações européias
– sobretudo, França, Inglaterra, Holanda e Portugal –, assim como a atuação, motivada pela
demanda de mão-de-obra, de comerciantes brasileiros.
O juiz José Joaquim Guedes, por exemplo, em um levantamento realizado dentro de
um inquérito, no ano de 1778, apontou a existência de 15 ou 16 principais comerciantes em
Benguela, originários de diferentes regiões: Branga, Porto, Lisboa, Bahia, Ilha da Madeira e
Rio de Janeiro.
286
Esse apontamento vem corroborar os dados identificados no decorrer dos
séculos XVIII e XIX, em Benguela, que apresentam, de um lado, uma cidade controlada por
um número restrito de grandes comerciantes e, de outro, a atuação de vários pequenos
282
De acordo com Roquinaldo, embora houvessem preocupações com a atuação de ingleses e franceses, não
resta dúvida que os holandeses foram os maiores inimigos dos portugueses na costa Oeste da África. Ibidem, p.
91.
283
FERREIRA, Op. Cit., p. 40.
284
Requerimento de Manoel da Silva, em 22 de outubro de 1735, AHU, Rio de Janeiro, cx. 31, doc. 21; Petição
de Manoel da Silva em 26 de janeiro de 1736, AHU, Angola, cx. 29, doc. 12; Requerimento de Manoel da Silva,
em 15 de abril de 1738, AHU, Rio de Janeiro, cx. 35, doc.3; Petição de José de Torres, em 3 de setembro de
1739, AHU, Angola, cx. 31, doc. 59. Cf. FERREIRA, Ibidem, p. 40.
285
Registro de Óbitos da Paróquia de Remédios, 1748-1779, ABL, fl. 243. Apud Ibidem, p. 41.
286
CANDIDO, Op. Cit., p. 102.
120
comerciantes. 287 A compra efetuada pelo Capitão Costa Pinheiro em 1764 ilustra tal situação:
o mesmo comprou 410 escravos naquele ano, de 27 comerciantes diferentes, sendo que 77,
5% da sua carga humana foi fornecida por apenas 7 comerciantes. 288
Vinte anos após o levantamento do juiz José Joaquim Guedes, um novo levantamento
aponta a existência de 30 comerciantes em Benguela e vários destes haviam nascido no Brasil
– Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Alguns deles, inclusive, até ocupavam funções
administrativas.
289
Ou seja, era notório o domínio do comércio nos portos de Benguela por
brasileiros, materializado no fluxo comercial de escravos entre Benguela e Rio de Janeiro,
principalmente.290 Herbert Klein, por exemplo, defende que 48% de todos os escravos que
entraram no Brasil, principalmente via porto do Rio de Janeiro, entre os anos de 1795 e 1811,
foram enviados de Benguela. 291
Se, no final do século XVIII, a quantidade de pombeiros em Benguela chegava à casa
dos 900 (cifra anteriormente informada), a dos comerciantes (financiadores) girava em torno
dos 33 a 50 indivíduos – como vimos no levantamento de 1798 –, sendo a grande parte destes
nascidos na América portuguesa-Brasil e com procedências diversas, como “degregados”. A
história de José Rodrigues Maia, nesse sentido, é emblemática. Nascido na América
portuguesa, chegou a Benguela em meados da década de 1760, empobrecido e na condição de
degregado. Nos anos que se seguiram, tornou-se representante da Companhia de comércio
criada para suprir escravos para o Grão-Pará e Maranhão, em Benguela, chegando a
despachar, entre os anos de 1772 e 1786, 16, 586 escravos. 292 Até meados da década de 1780,
havia adquirido tanto prestígio e poder que, em uma expedição para o Cabo Negro, Sul de
Angola, Maia se comprometera a fornecer apoio logístico e financeiro ao governador de
Angola, em troca dos exclusivos de embarcação de cativos no Cabo Negro. 293
287
Da segunda metade do século XVIII até final do século XIX, cerca de 12 principais comerciantes dominaram
as atividades comerciais escravistas na região. Ibidem, p. 101.
288
Segundo Candido, casos como o narrado acima, exemplificam o quanto a atuação de um numero reduzido de
comerciantes foi capaz de corresponder as demandas do além-mar. Ibidem, pp. 101-102.
289
AHU, Angola, Cx. 89, Doc. 67.
290
Candido afirma que a partir da década de 1780 operaram em Benguela 3 ou 4 empresas, que mantiveram no
período laços estreitos com mercadores do Rio de Janeiro. CANDIDO, Op. Cit., p. 103; Sobre comerciantes que
atuavam em Angola, que mantiveram laços com brasileiros: AHU, Angola, cx. 74, doc. 49; ANTT, FF, JU,
África, Mç.24, doc. 6, de 7 de março de 1792; ANTT, FF, JU, África, Mç. 2, doc. 3B, de 15 de abril de 1780.
291
KLEIN, Herbert. The atlantic slave trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
292
Ver Carta da Junta de Administração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 14 de março
de 1781, ANTT, AHMF, Livro 291; Carta da Junta de Admnistração da Companhia de Comércio de
Pernambuco e Paraíba, em 23 de janeiro de 1792, ANTT, AHMF, livro 291; Carta da Junta de Admnistração da
Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 17 de maio de 1782, ANTT, livro 291; Ibidem, p. 42.
293
Ibidem, p. 43.
121
Contratos como o firmado por Maia foram comuns durante o século XVIII, em que o
Conselho Ultramarino fornecia alguma exclusividade ou facilidade ao comerciante. Um deles
foi o contrato firmado entre o Conselho Ultramarino e Domingos Dias da Silva, juntamente
com os seus sócios Joseph Alvares Bandeira e Gonçalo Ribeiro dos Santos, entre os anos de
1766 e 1772, acerca do comércio de marfim e escravos na região do Congo, Angola, Loango e
Benguela. Mediante o pagamento de oito contos e trinta mil réis, de cada um, os comerciantes
não seriam obrigados a pagar algum subsídio ou taxa sobre os escravos adquiridos naquelas
regiões, desde que os declarassem. 294
O contrato em si fornece numerosas informações que permitem vislumbrar como
operava o mundo comercial no período e a própria noção de valores de cativos, a depender da
idade e estatuto. Em uma das páginas, o contrato dispõe sobre situações em que cativos
embarcados poderiam estar isentos da cobrança de taxas: se as “crias de pé”295 tivessem um
tamanho em torno dos 4 palmos, pagariam apenas metade dos direitos, o que equivalia a
4$350 réis:
(...) Porém, as crias de pé, que pela prefente condição cicão reguladas na
altura de quatro palmos, e dahi para baixo, pagarão cada huma ametade dos
ditos direitos, que fão quatro mil e trezentos e fincoenta reis, fem outra
alguma avaliação mais, que a evidencia de eftarem comprehendidas na altura
dos referidos quatro palmos, e dahi para baixo: Bem entendido, as quaes
ferão livres de todo o impofto fazendo com fuás refpectivas Mãis huma Fo
cabeça para dellas Fe cobrar o direito de oito mil fetecentos reis, que fica
determinado (...).296
Crianças consideradas “crias de peito”297 seriam contabilizadas com a mãe, ou seja, no
interior da frieza dos cálculos comerciais, já estariam inclusas nas taxas que se teriam que
pagar pela mãe – no caso, 8$300 réis. No transcorrer do restante do documento, nota-se a
ênfase posta em cada artigo que tratasse da necessidade de registro de tudo que fosse
comercializado na região e de todos os valores pagos em tributos.
Em suma, era nesse contexto, marcado pelo constante embate de interesses
econômicos e políticos, fossem eles lusitanos, brasileiros ou mesmo daqueles que se
embrenhavam nos sertões em busca de melhores oportunidades de acúmulo de riqueza, que
294
Caso não declarassem exatamente a quantidade de cativos adquiridos, os mesmos poderiam ser confiscados
sob a acusação de “contrabando”. AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 12, 1768.
295
“Crias de pé” era o nome técnico, atribuído no interior das operações comerciais, que se dava às crianças que
já não amamentavam mais.
296
AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 12, p. 7.
297
Crianças que ainda amamentavam.
122
circulavam comerciantes-financiadores e intermediários – pombeiros e sertanejos. Assim,
resta-nos entender qual era o cenário onde, de fato, atuavam todos esses personagens.
d) As instalações portuguesas: as “cidades costeiras” e as “cidades plataformas”
A compreensão das instalações portuguesas no território africano deve partir de dois
elementos: as “cidades costeiras” e as chamadas “cidades plataformas”. As primeiras,
localizadas no litoral, teriam a função de ser importadoras e exportadoras, além de se
caracterizarem como grandes fortalezas, para proteção dos inimigos externos e internos. No
decorrer dos séculos XVIII e XIX, destacaram-se no território angolano, pelo volume
comercial e importância política, as cidades de Luanda e Benguela. Luanda foi fundada em
1576, por Paulo Dias de Novais (que é considerado o primeiro governador de angola, do ano
que recebeu o título de capitão-donatário, 1575, até 1589), após a guerra travada contra o rei
Ngola Kiluange e acordo firmado com as populações Mushiluanda.
298
Antes da fundação de
Luanda, os portugueses mantinham suas atividades na região do interior do reino do Kongo
(desde 1483) – as populações Ba-Kongo impediam a construção de uma cidade portuguesa
naquelas redondezas. A partir dela organizou-se toda uma estrutura administrativa, com a
fundação subseqüente de cidades e presídios. 299
Luanda, fundada em região desértica,
300
voltava seu olhar, desde sua fundação em
1576, para duas direções: a América portuguesa, que lhe exigia escravos, e o interior do seu
país, que fornecia escravos em troca de mercadorias. Todavia, é preciso ressaltar que, embora
o comércio escravista tenha sido aquilo que alimentara o movimento na cidade desde a sua
fundação até início da década de 1830, sempre se registrou o comércio de outras mercadorias
e mesmo a existência de uma agricultura destinada a alimentar a população local, na medida
em que as suas necessidades cresciam. 301
Em mapa que informava o volume de atividades comerciais no porto de Luanda, em
1767, as referidas existências de outros empreendimentos comerciais, para além dos negócios
298
HENRIQUES, Isabel Castro. Percursos da Modernidade em Angola: Dinâmicas comerciais e
transformações sociais no século XIX. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Instituto de Investigação
Científica Tropical; Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997, p. 110; Ver também HENRIQUES, Isabel Castro;
MEDINA, João. A rota dos escravos: Angola e a Rede do Comércio Negreiro. Lisboa: Cegia, 1996, p. 224.
299
Como a fundação do Presídio de Massangano, para fazer frente ao reino de Kiluange, em 1579.
Posteriormente o mesmo se transformou numa feira. Ver CRUZ E SILVA, Rosa da. “Rotas do tráfico”. In:
HENRIQUES, Ibidem, pp. 224-225.
300
Fato que explicaria a falta de água potável na região, de acordo com o geógrafo Ilídio do Amaral. Ibidem, p.
110.
301
Ibidem, p. 113.
123
escravistas, eram evidentes. O mapa informa a arrecadação de impostos com o marfim
exportado, juntamente com outros produtos: 1:854$043 réis. Contudo, a superioridade dos
negócios relacionados a escravos se fazia notória e desproporcional: de um total de 8. 928
escravos exportados do porto de Luanda no ano de 1767 (sendo 13 “crias de pé”, 8 “crias do
meio” e 67 “crias de peito”), fora arrecadado o montante de 77: 821$500 réis. O documento
ainda dava conta da quantidade de cativos exportados de Luanda, no mesmo período, um
pouco abaixo daqueles enviados de Luanda (18 embarcações, que levaram 6. 583 cativos de
Benguela para portos brasileiros).302
A urbanização de Luanda datava do século XVIII, especificamente do governo de
Francisco Inocência de Souza Coutinho (1764-1772), e até meados do século XIX era
considerada a terceira cidade colonial da África ao sul do Sahara, atrás da cidade do Cabo e
São Luís do Senegal. Naquela altura, aparecia nas descrições, especialmente de José Joaquim
Lopes de Lima, como uma cidade “notável, bela e cheia de beleza”, que comportava uma
população de 5.605 habitantes, entre brancos, pretos e mestiços. 303 Ocupando um espaço que
ia das colinas até o porto e mar, a cidade estava dividida em duas partes, a cidade alta e a
baixa. A parte “baixa” correspondia ao coração da cidade, onde se encontravam o centro
político, religioso e administrativo e toda estrutura relacionada ao comércio na colônia.
Embora a cidade fosse construída basicamente com “alvenaria importada de Portugal”, era
cercada por habitações africanas, formadas de madeira cobertas de folhas de palmeiras. De
acordo com Henriques, assim poderia ser descrita Luanda entre os séculos XVIII e XIX:
Ruas alinhadas e amplas, jardins, praças públicas, igrejas, por vezes
imponentes, lindas casas, a Câmara Municipal, o hospital, as instalações
militares, as belas residências dos europeus, o palácio do governador, a Casa
do Tesouro, os conventos, os mercados, entre os quais a Quitanda Grande
(ou mercado principal), o Terreiro Público prolongavam-se para a cidade alta
e completavam o quadro da ‘cidade branca’ ou ‘civilizada’. 304
A segunda cidade, Benguela, foi fundada no ano de 1617, entre os rios Catumbela e
Karapolo, até transformar-se em um grande porto de exportação de cativos; era parada
obrigatória para navios que velejavam entre Lisboa e Luanda – em função dos ventos
predominantes e correntes marítimas –, ou mesmo para aqueles navios que saíam do Brasil ou
302
Entre àqueles cativos (as) que foram exportados de Benguela em 1767, o mapa informava que 12 eram crias
do meio e 40 eram “crias de peito”. Vale ainda salientar que os principais destinos das embarcações que saíram
de Luanda para o Brasil foram Rio de Janeiro (13 embarcações), Bahia (6 embarcações) e Pernambuco (6
embarcações). AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 5.
303
Segundo Lima, em 1846 a cidade era formada por 1601 brancos, 491 mestiços, 780 pretos livres e 2733
escravos. LIMA, 1846, Parte II, pp. 5-13. Apud HENRIQUES, Op. Cit.,p. 111.
304
Ibidem.
124
do Oceano índico.
305
Antes de se transformar em um grande porto transatlântico, Benguela
estava encarregada, principalmente, de fornecer água, alimentos e suprimentos diversos
àqueles que seguiam para outros destinos. Contudo, a partir de 1650, com a expansão dos
negócios escravistas e, posteriormente, com a fundação do Presídio de Caconda, passou a ser
plataforma para produção dos escravos que se davam no seu sertão (ver mapa 4).
A região onde se edificou a cidade de Benguela, também conhecida como “Baía das
vacas”, antes mesmo da sua fundação, era considerada rica em sal, marfim, peles, peixe seco,
cobres e com potencial de produção de escravos. Já em 1612, por exemplo, Manuel Cerveira
Pereira, ex-governador de Angola, propusera, ao rei Felipe II, a conquista da região que
compreendia o rio Kuvo até o rio Kubal e, em direção ao interior, da costa à margem do rio
Kwanza (ver mapa 8). Chegando ao sul do rio Katumbela, acompanhado de 130 soldados,
Cerveira passou a ser considerado o grande “Conquistador de Benguela”. 306
O comércio na região, se comparado a Luanda e Mpinda (outra cidade com grande
importância, ao norte de Luanda), tardou a se desenvolver. Contudo, já nos primeiros anos, os
habitantes dos arredores da Baía das Vacas passaram a levar gados e escravos àquela
localidade, para troca por produtos euro-asiáticos que não possuíam. 307
Benguela, em si, apesar do elevado movimento de exportação de escravos, foi uma
cidade relativamente pequena desde a sua fundação. Entre os anos de 1795 e 1850, por
exemplo, contou com uma população que variava de 1.500 a 3.000 pessoas – sem levar em
consideração a população escrava que sempre estava em trânsito (ver tabela 4). A cidade, ao
longo da existência do comércio escravista, se manteve como um ponto de encontro entre
caravanas que vinham do interior e navios que chegavam da América portuguesa e Portugal.
Tal ambiente produziu uma sociedade híbrida, com constante interação de indivíduos
originários de diferentes povos locais e de países estrangeiros.308
Ao se debruçar qualitativamente sobre a população de Benguela, entre o final do
século XVIII e primeira metade do século XIX, a pesquisadora Mariana Candido chamou a
atenção para alguns dados: em primeiro lugar, apesar dos diversos idiomas falados em
Benguela, pelo fato de haver uma grande circulação de populações de numerosas origens, se
sobressaía o idioma “Umbundu”. Em segundo lugar, a superioridade feminina, com exceção
da população branca, é evidente em todo o período abrangido pela tabela 4 (no que diz
305
CÂNDIDO, 2006, p. 4.
Ver CURTO, Op. Cit.,pp. 266-268.
307
Ibidem, p. 268.
308
Mariana Cândido afirma que Benguela, assim como Caconda e outras cidades do Atlântico, era uma cidade
“crioula”, ou seja, marcada por uma forte amalgamação e negociação de diferentes identidades, ou hibridização
cultural. Sobre tal debate, ver especialmente a introdução da tese de CANDIDO, 2006, P. v.
306
125
respeito à população mulata e negra).309 Finalmente, essa população escrava que permanecera
na cidade estava ocupada de diversas maneiras: vendedores de rua, lavadeiras de roupa e
operadores de negócio. 310
As chamadas “cidades-plataformas”, por sua vez, poderiam ser tanto os “presídios”
edificados em território inimigo, principalmente no interior, como as próprias feiras. A
escolha dos seus lugares deveria atentar, sobretudo, para as redes comerciais, ou seja, para as
possibilidades de realização do comércio e escoação para o exterior.
311
À medida que o
comércio se expandia e as cidades da costa se fortaleciam, os presídios foram se expandindo
em quantidade. A exemplo desse processo, podemos citar o primeiro presídio a ser fundado,
após a instalação de Luanda em 1576, que foi o de “Massangano”, na confluência do rio
Lucala e Cuanza, em 1585. 312
Ressalta-se que aquilo que movimentava, e era a própria razão de ser de tais espaços,
seria os negócios e possibilidades de acumulação de riquezas. Era comum todos os habitantes
de presídios, se livres, estarem envolvidos com o “comércio”, principalmente, soldados e
oficiais de diferentes hierarquias do exército português. Não são poucos os documentos de
soldados que solicitavam aumento dos “soldos”, ou mesmo aqueles em que integrantes da
hierarquia militar aparecem entre os principais comerciantes de escravos.
Em 1764, uma lista detalhada dos escravos que haviam saído de Benguela para o
Brasil no ano anterior, com escala em Luanda,
313
apresenta esse universo; com nomes dos
vendedores e preços, assim como dados das perdas (mortes durante o transporte para o Brasil)
e gastos com batismos, antes do embarque. Ao todo, foram 368 cativos (identificados como
“cabeças”), acompanhados de “crias de pé” (não especifica o número). Entre os compradores,
estavam tenentes, sargentos, capitães, coronéis, soldados, entre outros. Nesse bojo, fizeram as
maiores vendas o Tenente Coronel Ignacio Reis (15 cativos), 314 o Capitão Manoel Gomes (24
cativos) e o Capitão José Santos Torres (28 cativos). Por fim, a mesma relação dá conta de 34
309
Proporção que sugere maior permanência de escravas na cidade e maior propensão para exportação de
homens.
310
Os censos analisados por Mariana Candido foram extraídos das caixas referentes à Angola, alocados no AHU,
a saber: Caixas 88, 89, 113, 116, 118, 120, 121, 124, 127, 131, 133, 136, 138, 156.
311
HENRIQUES, 1997; Ver também Idem, 1996.
Ibidem, p. 113.
313
O que demonstra que até a década de 1760 ainda localizamos navios que tiveram que realizar escala em
Luanda.
314
Na mesma relação, o Tenente Ignacio Reis aparece novamente como o vendedor de outras “17 cabeças”.
312
126
perdas, sendo 12 cativos por epidemias adquiridas ainda no Presídio de Benguela, uma por
mar, duas por fugas e o restante em Luanda, por razões não esclarecidas. 315
A supracitada lista, além de elucidar um cenário com numerosos personagens
envolvidos no comércio escravista, apresentava a própria razão de ser das instalações
portuguesas, intrinsecamente relacionada à empresa escrava. Tal situação, de maneira geral,
ao longo dos anos setecentos, seria recorrente e comum. Em 1728, por exemplo, a carta
escrita pelo então governador de Angola, Paulo Caetano, ao rei, ilustraria o envolvimento
generalizado dos habitantes das chamadas cidades costeiras com a empresa escrava. Na
mesma, o governador apresentava as razões que impossibilitavam ao Reino de Angola de
contribuir com doações para o casamento real em Portugal, em função da ruína da empresa
escrava na região. Entre os numerosos trechos, destacamos o condicionamento da ruína
econômica da região à decadência do comércio escravista, que envolvia a grande maioria dos
moradores:
(...) Toda a substtancia em que sempre consentio a conservação dos
moradores deste Reino são os escravos com que se servem e fabricam (sic)
fazenndaz, com o aumento das cabeças são os grandes lucros que Fe
extrahiam do comercio do resgate dos escravos, e embarque delle para os
Portos do Brasil, mas tudo está hoje reduzido ahum tão lastimozo estado que
apenas há vestígios do q foi Angola; e pondo de parte os motivos com q se
tem afollado os Sertoez e Prezidios q He sua das principaez Ruinas do
Comercio (...). 316
Certamente, quando o governador Paulo Caetano alegava a instabilidade nos sertões e
presídios, se referia às constantes rebeliões de sobados durante a década de 1720, que serão
trabalhadas na seção posterior. De qualquer maneira, prosseguindo suas justificativas ao Rei,
ainda chegaria a mencionar uma epidemia de “bexiga” que levou à morte vários cativos e
provocou o endividamento dos comerciantes locais:
(...) só representamos a S. Ex. que no anno 1725 foi deos servido que
houvesse neste reino hum contagio de bexigas tam universal e tam grande e
a mortande e tão considerável, a perda q ficaram os moradores estruhidoz, os
homez de negocio, e senhorios dos navios aruinados, e os comifsarios
perdidos; os moradores que perderam a may (sic) dos escravos ladinos com
que se serviam, agenciavam, e fabricavam as fazendas. Os homens de
negócios e comiffarioz porque se morrerão todos quantos escravoz
embarcarão para o Brasil no decurso de trez annos q durou o contagio, de q
resultou excefivo numero de letras protestadas, crescerão as dividas e
aumentaram os empenhos em tal forma que esgotados os lemitados fez da
315
Chama a atenção para as 12 perdas no Presídio de Benguela, o que supõe a ausência de cuidados mínimos
para com aqueles que chegavam dos sertões, alguns dos quais, já enfraquecidos pelas longas caminhadas.
316
AHU, Angola, Cx. 24, Doc. 96.
127
mayor parte dos moradorez dificultozamente puderam cobrir e sahi fazer o
que devem, e ao mesmo tempo q cada hum não sabe os meyos com q há de
evitar as execuçoez de tantas dividaz como He possível q se possa dar
Cumprimento ao q S. Magestade pede poiz He sua dificuldade q por meyos
humanos senão pode vencer porque sem fez não se pagam dividaz, e sem
cabedaes não se podem oferecer donativos (...)” [grifo nosso].317
A partir da carta de Paulo Caetano, é evidente a existência de uma ampla rede que
envolvia o comércio escravista no território angolano, ainda mais perceptível no
endividamento citado – supõe-se que os comerciantes que perderam escravos para a epidemia
de “bexiga” fossem financiados por outros comerciantes do “além-mar”, seja do Brasil ou
mesmo de Portugal, e, uma vez que perdiam cativos, perdiam as possibilidades de pagamento
dos empréstimos e investimentos. Em todo o caso, o trecho final da carta escrita por Paulo
Caetano deixa expresso o quanto a economia de Angola dependia do comércio de cativos:
(...) o comercio dos escravos único meyo de recuperarmoz parte de tam
repetidaz perdaz, experimentamos agora a ruína de que nos portos do Brazil
fao tam diminutoz os preços dos escravos que não chegam dar por cada hum
a metade do valor principal que a que custam, acrescendo a isto a perda dos
q morrem, (sic) tez e direitos e gastos do tempo q com tam em ser” [grifo
nosso].318
De modo geral, é preciso salientar que se, por um lado, havia a necessidade de associar
a própria existência dos presídios (aqui chamamos de “cidades-plataformas”) às rotas de
comércio escravo, por outro, era preciso pensar constantemente na adesão das populações
locais, em vista da incapacidade de recrutamento de forças militares européias. 319
Observamos este último ponto com grande clareza, quando o então governador de
Angola, Francisco Inocência de Souza Coutinho, relata os pormenores da fundação do
Presídio de Novo Redondo (entre os rios Cuvo e Catumbela) em 1769, sob os pretextos de
evitar o comércio ilegal de estrangeiros, assim como de iniciar a abertura de uma estrada de
chão entre Luanda e Benguela. Francisco Inocência narra que, para a fundação do dito
presídio, edificado nas terras do soba Gunza Cabolo, foi necessário um destacamento de 1000
homens de infantaria e uma quantidade não especificada de negros. Entre os pontos que
chamam a atenção no documento, sobressai-se a preocupação do governador com a adesão da
população local:
317
Ibidem.
Ibidem.
319
O que impusera aos portugueses, segundo Henriques, a aposta no recurso de utilização de “poderes africanos”
para o controle indireto das regiões circundantes aos presídios e cidades. HENRIQUES, Op. Cit.,p. 113.
318
128
(...) Não sei se os habitantes concordarão as minhas idéas com as suas
porque He muito precioza a liberdade, para que ainda estes Brutos
desprezem as suas conveniências; e porq aquela povoação hê na verdade
hum novo Mundo a que desde os primeiros tempos de Conquista deste reino,
passaram muito pouco brancos. 320
Francisco Inocência entendia que a adesão às ideias portuguesas, pelas populações
locais, seria uma questão de valorizar ou não a liberdade. Igualmente, podemos notar acima o
emprego da expressão “novo mundo” para pensar os contatos escassos com as populações que
ali estavam. De fato, a região, em si, com os diferentes sobados existentes no Quissama e nos
entornos, ao longo do século XVIII, foi o maior obstáculo para criação de uma estrada que
ligasse Benguela à Luanda. Na carta apresentada por Manuel Simões ainda em 1732, é
possível verificar a supracitada instabilidade do Quissama; nela, eram descritas todas as suas
façanhas desde o final do século XVII, em função da vacância do cargo de Mestre de Campo,
anteriormente ocupado por Joseph Carvalho da Costa, que havia saído de licença. Entre as
numerosas participações de Manuel, que naquela altura havia participado inclusive da
repressão à rebelião do soba Cabuinda nos sertões de Caconda (o mesmo da próxima seção),
constava a atuação vitoriosa nas campanhas militares contra os potentados do Quissama em
torno do ano de 1722.321
A mesma instabilidade aparece relatada em 18 de outubro de 1769, por Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, em carta endereçada ao rei.322 Apesar da fertilidade geral da
Angola, que o autor compara com a Europa em alguns momentos, a região não conseguia
prosperar, em grande parte pela presença indesejada de degredados e desertores, que, segundo
Francisco, estavam em procriação com negros da região. Portanto, sob o pretexto de
“moralizar” Angola e colocá-la finalmente na rota da prosperidade, Francisco Xavier
solicitava ao rei o envio de mulheres européias, pois a existência de “cazais europeus” era um
fator indispensável para o projeto civilizacional. Na lista de proposições para a re-colocação
da Angola no caminho da prosperidade, estava o que o autor chamou de “necessária
comunicação” entre os fortes, que deveria se efetivar com o combate dos roubos entre as
instalações portuguesas. Nesse sentido, menciona a atuação dos sobas do Quissama, que, além
320
AHU, Angola, Cx. 53, Doc. 29 (1769).
Pelo que consta na carta de apresentação dos feitos de Manuel Simões, a vitória havia sido tão significativa
sobre os potentados do Quissama, que os mesmos além de “restituírem gente” (possivelmente soldados escravos
perdidos na batalha), ainda enviaram os seus embaixadores para formalizarem pedidos de desculpas às
autoridades portuguesas. AHU, Angola, Cx. 26, Doc. 115.
322
Naquela altura Francisco Xavier era secretário da Marinha e Ultramar. No entanto, já havia sido
administrador colonial, sendo governador do Grão-Pará (1751).
321
129
dos roubos, ainda abrigavam escravos fugidos que viam naquelas terras um asilo seguro para
o que Francisco chamava de “maldade”. 323
Ainda no escopo das descrições e sugestões de Francisco Xavier, desperta atenção a
descrição do Presídio de Caconda, na década de 1760, que o autor considerava o “lugar mais
infeliz do mundo”, mesmo que fosse a cabeça de todas as províncias da região. 324 Logo, para
Francisco Xavier, era uma justa sentença para os degredados passarem por ali, em vista das
duras condições de vida e dos roubos seguidos de morte, naquele período. 325
Em todo caso, é preciso pontuar que, durante a presença portuguesa na região, os
presídios ocuparam posição central na organização das atividades econômicas e políticas
relacionadas ao comércio transatlântico, na medida em que expressavam o avanço das
fronteiras e a desagregação de poderes africanos, pelo contato direito ou indireto com
portugueses. Nesse sentido, tendo em vista o papel dos presídios no conjunto das instalações
portuguesas, é possível compreender a verdadeira articulação e ritmo das relações entre estes
e as cidades.326
Ao lado dos presídios, ou mesmo de principais poderes africanos, estavam as feiras,
espaços fundamentais para pensarmos o funcionamento comercial na Angola e,
principalmente, a circulação de escravos. Estas instituições se constituíam como um nó
fundamental de troca entre homens e mercadorias. Segundo Henriques, se a designação
“feira”, por um lado, fazia parte do vocabulário e experiências portuguesas, a estrutura da
própria instalação – sistemas de troca, controle político e militar – eram indubitavelmente
africanas.
327
Tal situação ficava expressa na própria feira de Kasanje, onde comerciantes
portugueses só poderiam se instalar sob a autorização e vigilância africana, ao lado da
residência do Jaga. 328
323
AHU, Angola, Cx. 53, Doc. 71, de 18 de outubro de 1769.
Possivelmente, se refere aos sobados do sul de Angola.
325
A instabilidade em torno do Presídio de Caconda é documentada desde a sua fundação. Todavia, mesmo com
a insegurança constante, percebemos o aumento do fluxo de comércio de escravos no final do mesmo século
XVIII.
326
Conforme se estabeleciam as cidades, os presídios seriam edificados gradualmente. Até metade do século
XIX, por exemplo, Luanda contava e administrava diretamente 7 presídios, a saber: Muxima (1599),
Massangano (cerca de 1585), Cambambe (finais do século XVI, instalado perto da importante feira do Dondo),
Pedras de Pungo Andongo (1671, sediado no burgo, onde se encontrava a corte do rei de Dongo), Duque de
Bragança (1838), Pedras de Encoje ou S. José de Encoge (1759) e Novo Redondo (1769), na costa, entre Luanda
e Benguela.
327
HENRIQUES, Op. Cit., p. 366
328
Idem Ibidem, p. 367.
324
130
Apesar das raríssimas descrições sobre a constituição das feiras anteriores a 1850, 329 é
possível vislumbrar, minimamente, a divisão entre espaços portugueses e africanos no interior
desses espaços. Nesse contexto, a descrição mais importante provém de Jean-Baptiste
Douville, referente ao ano de 1828, intitulada “Voyage au Congo et dans l’intérieur de
l’Afrique équinoxiale”.
330
Nesta, o autor apresenta a feira como um espaço circular, onde
estavam instalados comerciantes lusitanos que negociavam diretamente com o Jaga, que
possuía mais de mil escravos, dotada de mil e quinhentas habitações, sendo cada uma com a
capacidade de abrigo de quatro pessoas, a incluir crianças e escravos. Segundo o viajante, a
população da feira rondaria a casa de 6 mil pessoas. 331
Ao lado da feira, estava a cidade, cercada por uma paliçada construída de estacas e
dividida por bairros, havendo o do soberano, que era designado por “banza ou palácio” e
defendido por um forte. Ao lado, também estava a casa das mulheres do Jaga e o bairro dos
nobres. Em outras palavras, assim como outros viajantes posteriores, Douville salientava a
nítida divisão entre portugueses e africanos – os primeiros deveriam ficar nos espaços
designados para as feiras. 332
Em suma, o que se percebe, no decorrer do século XVIII e primeiras décadas do XIX,
é um processo lento de edificação de cidades, presídios, e, por conseguinte, de adesão às
feiras ou espaços de comércio africanos. Foram apresentadas as coordenadas acerca das
instalações, rotas e personagens, o universo encontrado por portugueses no atual território
angolano, especialmente em Benguela e o seu hinterland ; em resumo, o ponto de partida do
itinerário de cativos africanos que foram embarcados ao Novo Mundo. Agora, são necessárias
algumas notas sobre os diferentes personagens que habitavam os reinos de Angola e Benguela
no escopo do mercado de escravos, assim como as lógicas que permeavam e justificavam as
declarações de guerra e a própria produção de escravos.
329
A falta de descrição, de acordo com Henriques, revela o perfil daqueles que eram recrutados para as
operações comerciais – grande parte analfabetos e iletrados. Em palavras da autora: “(...) sabem ler e escrever
para assegurar a escrituração comercial mínima, mas são incapazes de se lançar numa literatura minimamente
descritiva”. Somente as obrigações administrativas forçavam funcionários a fornecerem elementos que permitem
reconstituir as relações existentes naqueles espaços. Ibidem, p. 372.
330
Apesar do pouco rigor nas descrições, as descrições fornecidas por Douville contribuem para compreensão da
estruturação das feiras, que integravam europeus, obrigando-os simultaneamente a manter em distância. Ibidem,
p. 373.
331
Ibidem, p. 373.
332
No século XVII o capuchinho Cavazzi também discorreu sobre a estruturação de uma cidade “Jaga”, com as
seguintes palavras: dividem-no em sete quarteirões e nomeiam um oficial como chefe de cada um. No centro
está construída a morada do príncipe, rodeada por uma cerca quadrada de sebe muito forte, em forma de
labirinto. Dentro desta cerca, além das arrecadações dos criados, fica a habitação das pessoas mais importantes,
para assistirem ao príncipe em caso de doença ou de invasão dos inimigos. Todas estas pessoas, sob pena de
lesa-majestade, têm de morar na respectiva habitação (...)”. CAVAZZI, Op. Cit., p. 192.
131
2.3. Entre “guerras justas” e “injustas”: jogos de interesses no hinterland de Benguela
No dia 7 de Agosto de 1761, Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, o então
governador do Reino de Angola, escreveu ao rei a solicitar providências sobre uma delicada
situação ocorrida no ano de 1760, quando uma embarcação de cativos que rumava ao Brasil,
de propriedade de Manoel da Costa Pinheiro e sócios, foi surpreendida por uma rebelião,
resultando na morte da grande parte dos marinheiros e o Capitão Mestre. Aqueles que haviam
sobrevivido foram obrigados a desviarem o percurso do navio novamente para a África, rumo
aos domínios do soba Dembo Manicembo, que estava localizado ao norte de Luanda, onde
foram recebidos e asilados.
O desenrolar da história prosseguiria com as tentativas fracassadas de reaver os cativos
refugiados junto ao potentado de Dembo – afirmava Francisco Inocêncio que o seu
antecessor, Antonio de Vasconcelos, havia encaminhado uma carta ao Chefe africano e o
mesmo nem tivera o trabalho de respondê-la. Numerosos fatores preocupavam o então
governador, face à morosidade da resposta:
(...) a incerteza da paz da Europa, e as pequenas forças com que se achava o
referido meu antecesor lhe dificultaram o castigo, que devia dar a este
soberbo potentado para conservar a reputaçam do Estado que aqui nos
sustenta, e a cautelar semelhantes sucesos que na (sic) deste homem
dezanimao, enfraquecem o comercio(...). 333
Em outras palavras, mais do que a necessidade de castigar o potentado, era preciso
manter a reputação, pois estava em jogo o próprio sucesso do comércio na região. Na
sequência da carta encaminhada ao rei, Francisco ainda fez menção sobre o que deveria fazer
no caso dos negros fugirem, antes da aplicação do castigo ao soba Dembo, bem como sobre o
desconforto da não-resposta das cartas que o próprio havia encaminhado semanas antes.
De fato, no dia 30 de julho daquele ano, o governador Francisco Inocêncio enviara
uma carta ao soba Dembo Manicembo, afirmando dar-lhe uma última chance, antes de aplicar
um castigo que o levaria à ruína completa:
(...)Recebendo o Debmo Manicembo esta carta saberá que o muito alto e
poderozo Rey didelisimo de Portugal me mandou governar este Reyno, e
que tomando posse dele achei a noticia de que levantando se huma
embacassam de escravos se recolhera nos seus Estados, e que escrevendo lhe
o meu antecessor para que os entregase logo e não tem feito atté agora como
hera obrigado pelo que lhe se achava disposto a castigallo com huma Guerra,
333
ANTT, Condes de Linhares, Liv. 99 I, 7 de Agosto de 1761, pp. 30-31.
132
que o destruise; porem eu suspendi este justisimo castigo atté He fazer
concluída esta resolucçam propondo lhe o meyo de satisfazer o nosso
agravo, que nos tem feito entregando logo logo sem demora os escravos, o
que sendo assim serei sempre muito Amigo do Dembo Manicembo, e o
ajudarei e protejerei em tudo quanto a Real grandeza de S. Magestade
promete aos seus vassalos, e aos que executam de boa fé as suas ordens,
assim como uzarei das armas do mesmo S.m. para o destruir senão entregar
os escravos com huma publica satisfassam a este Estado ofendido pelo dito
Mao procedimento[grifos nossos].
A Pessoa de Dembo Manicembo... de 30 de julho de 1764 [grifo nosso].334
No mesmo dia, Francisco Inocêncio despacharia mais duas cartas, uma endereçada ao
“Príncipe Songo” e outra ao “Marques Moçulo”. Para o primeiro, o governador recomendava
que se valesse de toda força possível para persuadir o seu vizinho à entrega dos cativos
fugitivos, pois seria de grande dano ter uma guerra na sua vizinhança:
(...) participo ao Principe do Songo para que saiba persuadir o seu
vizinho e confinante dos prejuízos deste castigo, e de que o deve
evitar entregando os ditos escravos logo logo sem demora, pois de
outra sorte o castigares como costumam as armas portuguezas, e o
Principe de Songo deve empregar toda a sua força na persuaçam pois
senao faz convenieencia ter huma guerra na sua vizinhança, o que
assim hefasso saber para que o não venha a experimentar (...). 335
Ao segundo, informava que as tropas portuguesas passariam pelo seu território e ele
não deveria fazer-lhes nenhum mal, socorrendo em tudo que fosse necessário, pelo que as
recomendavam as obrigações enquanto “amigo da coroa de Portugal”. 336
Mais do que revelar a constante instabilidade da região, a contenda aponta relações
fundamentais na produção de escravos, comuns a todo o Reino de Angola, a saber: a “guerra
justa” e o comércio e, principalmente, a complexa relação entre a aplicação do castigo e o
tecer de alianças com Chefes locais.
Francisco de Sousa Coutinho, ao justificar a urgência do resgate e castigo ao soba
Dembo Manicembo por ter abrigado cativos fugitivos – e vale salientar que a situação se
agravava por estes cativos terem assassinado toda uma tripulação –, assumira uma postura que
era comum à atuação portuguesa na chamada África Central, movida pela crescente demanda
de cativos no Novo Mundo, ainda mais no período de descobertas das minas – séculos XVII e
XVIII – na América portuguesa. A guerra sempre seria “justa” na medida em que houvessem
334
AHU, Angola, Cx. 48, Doc. 27.
Ibidem.
336
Ibidem.
335
133
obstáculos à instalação portuguesa no território estrangeiro ou mesmo se, após instalados,
aparecessem empecilhos ao bom funcionamento do comércio, isto é, à garantia de que as rotas
comerciais funcionassem sem assaltos, roubos ou interferências de populações locais –aquelas
que não participavam diretamente das negociações com o mundo lusitano.
Ademais, além da desobstrução de obstáculos ao funcionamento da economia
atlântica, a noção de “guerra justa” estaria circunscrita à ampliação da fé cristã junto a outros
povos, de modo que remontaria às expulsões de muçulmanos da Península Ibérica no final do
século XIV; especialmente, na bula papal de 1452, que autorizava o rei de Portugal a atacar,
conquistar e submeter povos pagãos, “inimigos de cristo”. 337
Em linhas gerais, o termo se aplicava aos povos que não professavam a fé cristã.
Entendia-se que a guerra seria capaz de corrigir a hostilidade. Contudo, para ter legitimidade,
além da necessidade de propagação da fé cristã frente a possíveis impedimentos, deveria se
fundamentar na conjunção de outros fatores, como extorsões contra colonos ou missionários,
invasão de aldeias protegidas pela coroa portuguesa ou quebra de pactos celebrados.
338
Dessa
forma, o seqüestro do navio e posterior abrigo dos fugitivos, ao mesmo tempo em que
causava instabilidade no funcionamento da empresa escrava, representava uma quebra de
pacto com a coroa e, portanto, uma afronta, uma vez que o soba Dembo era tratado como
“vassalo”, pelo que sugere Francisco Inocêncio.
Vale assinalar que contratos de vassalagem eram práticas comuns no controle das
possessões ultramarinas portuguesas. No caso do reino de Angola, por exemplo, constituíam
estratégias para assegurar o controle do território, ante a impossibilidade de domínio militar.
De modo geral, ofereciam vantagens para ambos, chefes locais e coroa lusitana:
(...)Se por um lado o estado colonial dependia da cooptação e da colaboração
dos sobas, por outro as autoridades locais viam seu poder legitimado e
337
Em palavras de Candido: “(...)a expansão portuguesa pela costa da África deve ser entendida no contexto do
conflito religioso na Península Ibérica e no Mediterrâneo, principalmente quando os portugueses encontraram
muçulmanos na costa da Senegâmbia e utilizaram a lógica dos conflitos entre cristãos e muçulmanos para
legitimar a sua captura e escravização.” CANDIDO, Mariana P. “O limite tênue entre liberdade e escravidão
em Benguela durante a Era do comércio Transatlântico”. In: Afro-Ásia, 47 (2013), p. 251.
338
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Para conter a fereza dos contrários: guerras na legislação indiginista
colonial. Cadernos Cedes, n. 30, pp.57-64. Sobre o conceito de “Guerra justa” ver também DOMINGUES,
Angela. “Os conceitos de guerra justa e resgate e os ameríndios do Norte do Brasil”. In: SILVA, Maria B.
N. (org.). Brasil: colonização, escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
134
apoiado pela colônia que fornecia bebidas alcoólicas, tabaco, armas de fogo
e fazendas aos sobas avassalados.339
Outrossim, os contratos passaram a ser utilizados como proteção à escravidão, uma
vez que súditos estavam legalmente imunes ao cativeiro. O caso da comerciante e mulata
dona Leonor ilustra a circunstância. Presa em 1811, quando viajava juntamente com suas
filhas ao Bailundu, a leste de Benguela, para cobrar dívidas comerciais deixadas pelo seu
falecido marido, foi transformada em escrava pelo soba da região e vendida a Benguela,
levada em uma caravana. Em Benguela, foi vendida ao capitão do navio Grão-Penedo que
rumava ao Rio de Janeiro. Então, em uma parada em Luanda, a história chegou ao governador
de Angola, José de Oliveira Barbosa, que, sob o embasamento de que Leonor fosse vassala,
interviu no caso e ordenou a sua imediata soltura e regresso a Benguela. 340
De qualquer forma, décadas antes, no reino de Benguela, o debate sobre o caráter justo
ou injusto das guerras movidas contra sobados africanos já aparecia no ponto central de uma
grande polêmica. Nessa mesma região, especificamente, no sertão de Benguela e entorno do
Presídio de Caconda, em um período de pouco mais de dez anos, podemos presenciar duas
situações: a chamada “guerra justa” e, alguns anos depois, um modelo que poderia ser
considerado “guerra injusta”.
A primeira nos é apresentada em 1719, em uma carta endereçada ao Conselho
Ultramarino, por Henrique de Figueiredo, o então governador de Angola. Relatava os
pormenores de uma típica campanha no sertão de Benguela, que objetivava sufocar uma
grande rebelião e garantir a normalidade do comércio de escravos na região. Segundo o ele, a
campanha teria sido impulsionada pelas ações do soba Cambuinda, que há tempos praticava
roubos nos pombeiros341 que circulavam na região, levando as mais diversas posses, incluindo
escravos, promovendo matanças e incêndios naquele Presídio [Caconda]; o ponto mais
elevado das provocações seria a tentativa de assassinato de dois capitães que passavam por
suas terras. Como resposta ao pedido de ajuda do Capitão de Caconda, foi enviado o
339
CANDIDO, 2013, p. 256.
Mariana Candido argumenta que a história de Leonor, juntamente com outros casos similares encontrados nos
arquivos referentes ao reino de Benguela, demonstram um limite “tênue” entre a liberdade e escravidão, de modo
que nenhum indivíduo, mesmo que próximo do litoral, pudesse estar totalmente imune à escravidão. Por outro
lado, a autora observa a atuação junto às esferas legais de numerosos africanos, que intentavam evitar a
escravidão,principalmente sob o argumento de que “vassalos” do rei não pudessem ser reduzidos à condição de
cativos. Ver CANDIDO, Ibidem,p.261.
341
Pombeiros na África eram aqueles que atravessavam os diferentes territórios de posse principalmente de
escravos. Ver capítulo 2, seção 2.2., item C da parte I da presente tese.
340
135
Sargento-Mor Manoel da Crus Pais, acompanhado de soldados e guerras pretas342. Pelo que
consta na carta, a crise na região teria se agravado com a adesão de outros potentados
africanos, que, segundo o Governador Henrique de Figueiredo, faltavam com “obediência há
muito tempo”. Ao todo, nove sobas reuniram-se à conjuração de Cabuinda, causando mais
trabalho que o esperado e forçando o combate simultâneo em três frentes. Após dias intensos
de combate, os inimigos africanos foram derrotados:
(...) o inimigo foi inteiramente vencido e miseravelmente destruído e
esburacado, a perda da nossa parte foram pouco mais de cem negros feridos,
e oito, ou des mortos, do inimigo senão sabe com certeza dos mortos, huns
dizem que duzentos, outros que menos, e dos feridos grande cantidade
(...).343
Além da vitória avassaladora, narrada pelo Governador Henrique de Figueiredo, a
campanha militar festejou o êxito de terem capturado 4 sobas e degolado outros 3 macotas,344
acrescendo-se a isso os despojos enviados à Coroa – 400 vacas, cerca de 100 carneiros, entre
outros. Na carta, o Governador fazia questão de acentuar que os sobas capturados não seriam
dignos de perdão e que deveriam ser enviados ao Brasil como escravos, como exemplo de
castigo, pois, caso retornassem àquela localidade, representariam a total ruína do Reino.
Não há conhecimento se, de fato, tais sobas foram enviados ao Brasil, como desejava
o Governador do reino de Angola, Henrique de Figueiredo, a fim de intimidar futuras
rebeliões. Porém, a festejada vitória aparentemente não havia surtido o efeito esperado, uma
vez que, alguns anos após tal episódio, novas rebeliões atormentaram o sonhado sossego da
empresa escrava na região. Dessa maneira, nos deparamos com uma nova situação conflituosa
no Sertão de Benguela, mas, nessa ocasião, relatada curiosamente como “Guerra Injusta”. O
novo episódio tem o seu ponto de partida na carta encaminhada ao Rei Dom João VI, pelo
Provedor da Fazenda Real do Reino de Angola, Francisco Pereira da Costa, no ano de 1727.
345
O Provedor, além de informar a grande instabilidade na região, denunciava
diretamente o Capitão-Mor de Benguela, Francisco de Sousa da Fonseca, por promover uma
guerra injusta contra os potentados da região. Sob o pretexto de vingar a morte de oficiais e
342
Guerras Pretas designavam africanos recrutados para o serviço militar. Nalguns casos, forçosamente. Sobre
uma reflexão minuciosa das características e atuações deste grupo no sul de Angola, ver capítulo 4 da tese de
Roquinaldo Ferreira (2003), intitulado “Soldiers and territorial control”.
343
AHU, Angola, Caixa 20, Doc. 98.
344
Na hierarquia política das diferentes populações africanas, Macotas detinham grande importância, após os
Sobas.
345
AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 66, 1727.
136
pombeiros, o Capitão-Mor havia organizado uma expedição punitiva ao soba Quiombella e
Ivanjanda. Todavia, movido pela “ambição”, se deslocara às Províncias de Bembe e Luseque,
causando grande destruição de mantimentos, apreensão de gados e escravos. A operação
havia causado tanta indignação no Provedor, que o mesmo chegou a solicitar ao Rei que
considerasse a restituição da liberdade dos negros colocados em cativeiro, pelo fato de serem
originários de uma guerra injusta.
Na sequência, o Conselho Ultramarino despachou a seguinte decisão: o governador
deveria não somente destituir o Capitão-Mor do Presídio de Benguela do seu cargo, como
encaminhá-lo a um Presídio e castigá-lo.
346
Manuel Pires, substituindo Francisco de Sousa,
foi nomeado o novo Capitão-Mor e, a fim de garantir a paz na região, reforçou com soldados
não somente Benguela, como o Presídio de Caconda. A crise havia crescido em tanta
intensidade que para assegurar a paz dos moradores do Caconda, que se sentiam ameaçados
com a presença de negros junto às muralhas, Manuel Pires foi obrigado a deslocar 60 homens
para guarnecê-lo e, posteriormente, mais 50 soldados. 347
No ano seguinte, em carta escrita ao Rei, pelo Governador de Angola, Paulo Caetano
informava que o sertão de Benguela finalmente se encontrava “sossegado”, após a aplicação
bem-sucedida dos castigos aos “rebeldes”. Entretanto, apesar da paz temporária, admitia na
mesma carta a falta de escravos na região, possivelmente porque não estavam sendo levados
por negros como antes.
348
O governador ainda voltaria a se referir à crise do sertão de
Benguela em duas outras ocasiões: no balanço do seu triênio, como governador de Angola,
349
e na carta enviada ao Rei, ainda sobre a contenção da rebelião. 350
Na primeira, além de informar os detalhes acima narrados, comenta a submissão e
obediência de três “grandes Províncias” à coroa portuguesa. A segunda, por sua vez, enfatiza
o sucesso da campanha militar na região, afirmando que aqueles sobas que não fugiram foram
mortos e que, a partir daquele momento, o comércio estaria desembaraçado. Junto à segunda
menção, uma carta escrita pelo Coronel Alvaro de Barros da Silva, que havia sido
encarregado de conduzir a expedição militar contra Quiombella. Pelo que consta no
documento, nota-se que o caminho que levou à pacificação da região se mostrou largamente
dificultoso, com o percorrer de vários potentados, conflitos militares, alianças diversas,
346
AHU, Angola, Caixa 24, Doc.67, 1727.
AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 41, 1727.
348
Certamente Paulo Caetano se refere a ação dos pombeiros. AHU, Angola, Cx. 24, doc. 80, 12 de março de
1728.
349
AHU, Angola, Cx. 24, doc. 97, 29 de maio de 1729.
350
AHU, Angola, Cx. 24, doc. 120.
347
137
aprisionamentos e o constante deslocamento de Quiombella e os seus vassalos. Numerosos
trechos demonstram o complexo quadro político de alianças na região, a começar pela oferta
de aliança “enganosa” após a primeira fuga de Quiombella (segundo o relato do capitão,
“fugiu sem que sua gente o visse”), por um soba autônomo:
(...)O sova hautonomo seu vezinho e confederado enganozamente me veyo
dar obediência offerecendo a sua guerra e guiar para o nofso destacamente
aceitando huma couza achei depões que no dia do que havia (sic)
Quiombella (sic) pelejando connosco sem embargo de nos ter dado hum
cabo com sua partida e gente Sua, e que os guias hiam dedicados a
entregarnos e precipitarno (...). 351
O relato da devassa segue com mais ofertas de alianças e obediência:
(...) um cepto Sova Gandu e Quimdembe que vieram dar obediência, e me a
companharam por algus diaz e nem estes (sic) senhorez do Pay sabiam dar
heram do dito Sova, e vafsallosz. Sem embargo das fuas diligenciaz, fui com
o Destacamente a libata do soveta donde morreram os fete homez o qual
havia mesez que fahio da Provincia comtudo o que Metocava, e mandeya
queimar ate o ultimo pão; feitas estas execuções me retirey por Quijange a
seguir as ordez de V. Exa (...).352
Acerca de toda a contenda acima apresentada, é preciso ponderar alguns elementos.
Em primeiro lugar, não se tratava de um fato inédito na história da região que a guerra movida
contra chefes locais fosse taxada de “injusta” ou ilegal. Fatos similares precediam o episódio.
Em 1610, por exemplo, padres jesuítas questionavam a legitimidade do comércio escravo em
Luanda. Luís Brandão, reitor do Colégio da Companhia de Jesus, questionava se todos os
cativos que se encontravam no porto de Luanda haviam sido capturados “legalmente”, ou em
conflitos legítimos com as forças portuguesas, ou seja, nas guerras reservadas aos nãovassalos. O religioso alegava que seria impossível averiguar as circunstâncias de cada captura
e que restava aos comerciantes locais confiarem na “boa fé” dos intermediários que enviavam
aos mercados interiores.
353
Já em 1652, Bento Teixeira, o então ouvidor e provedor de
fazenda do reino de Angola, acusou as chamadas “guerras de expansão” de servirem apenas
como pretexto para escravizar populações vizinhas. Com argumentos semelhantes ao
provedor do reino de Benguela de 1727, Teixeira relatava: “(...) tomam os governadores
351
AHU, Angola, Cx. 24, Doc. 115, 19 de setembro de 1729.
Idem Ibidem.
353
CANDIDO, 2013, p. 253.
352
138
honestos pretextos para fazer guerra aos gentios sem a realidade haver outra causa mais que a
cobiça de cativá-los e vendê-los, atropelando as leis da natureza” [grifo nosso]. 354
Em segundo lugar, o caráter “justo” ou “injusto” das guerras, presente em casos
similares à contenda de Caconda, igualmente deve ser compreendido no escopo da legislação
lusitana ultramarina, que desde o século XVII estabelecia procedimentos para se fazer
guerras. O conjunto de leis e alvarás editados referentes à legitimidade da escravidão de
indígenas obtidos via “guerras justas”, promovidas no Pará e Maranhã, ilustra o tema. Na lei
publicada em 9 de abril de 1655, por exemplo, existiriam dois tipos de guerras justas: a
defensiva e a ofensiva. As diferenças entre si eram tênues, mas, em linhas gerais, enquanto a
primeira deveria ser uma resposta a invasões movidas por indígenas dos domínios
portugueses, a segunda seria motivada por preocupação, antecipando-se a iminentes perigos
dos povos vizinhos. 355
Essa lei, pelo que consta no seu primeiro parágrafo, era fundamentada em leis editadas
em séculos anteriores, como nos de 1570, 1587, 1595, 1652 e 1653, além de conhecimentos
jurídicos acumulados por todo o reino. Não somente especificava quais eram os tipos de
“guerras justas”, como previa a libertação imediata de indivíduos aprisionados, caso não
fosse constatada a condição ou razão do conflito. Tal assertiva assim estava discriminada no
corpo da lei:
(...) serão os captivos postos em sua liberdade, entendendo por guerra
defensiva a que fizer qualquer cabeça ou comunidade, por que tem cabeça e
soberania para vir fazer e cometer guerra ao Estado, por que faltando esta
qualidade aquem faz guerra, ainda que seja feita com ajuntamento de
pessoas, as que se tomarem não serão captivos, antes, segundo o delicto que
cometterem serão castigados na forma das Leys ordenações destes Reynos
no que havião de ser quaesquer vassalos meus que os ditos crimes
cometterem [grifo nosso].356
Na ausência da “qualidade” ou justificativa para a “guerra”, os aprisionados deveriam
ser postos em liberdade e julgados como quaisquer outros “vassalos”, o que excluía o
cativeiro, assim como do outro lado do Atlântico, no reino de Angola. De todo modo, em 28
354
Idem Ibidem, pp. 254-255.
A referida lei determinava que as “guerras defensivas” poderiam ser declaradas por governadores, ao passo
que as “ofensivas” somente caberiam ao rei. Em 1688 foi publicado um novo Alvará que aboliu tal distinção e
conferiu maior autonomia aos governadores. Para uma análise da legislação que abordou as “guerras justas”
contra indígenas do Maranhão, ver SOUZA e MELLO, Marcia Eliane Alves de. A paz e a guerra: as juntas
das Missões e a ocupação do território na Amazônia colonial do século XVIII. Comunicação apresentada no
52º Congresso Internacional de Americanistas. Sevilha, 15 a 17 de julho de 2006.
355
356
Anais da Biblioteca do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. V. 66, 1948, p. 26. Também
disponível no endereço eletrônico: < http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais_066_1948.pdf >. Acessado
no dia 23 de janeiro de 2015.
139
de abril de 1688, circulou no Maranhão outro documento jurídico que modificava algumas
disposições da lei de 1655 e estabelecia novos critérios, igualmente baseado nas experiências
coloniais acumuladas pelas possessões ultramarinas do reino lusitano. O Alvará foi editado ao
mesmo tempo que aumentava a autonomia do governador responsável pela Capitania,
obrigava-o a obedecer numerosas condições. Para as chamadas “guerras defensivas”,
determinava:
(...) a defensiva da invasão dos inimigos se justificará com documentos
jurídicos de maior prova de testemunhas, que tirará o Ouvidor Geral, ao
mesmo tempo que der logar á mesma guerra, e por certidões juradas dos
Missionarios que assistirem nas terras e Aldeas que forem invadidas; e do
mesmo modo será justificada, quando o Indios, e inimigos da Fé, impedirem
a entrada dos Sertões aos missionários, e a pregação do Santa Evangelho
(...). 357
Para as “guerras ofensivas”, o rei exigia o envio de pareceres a si e ao Conselho
Ultramarino, para o exame cauteloso a fim de averiguar a devida legalidade do conflito:
(...) a offensiva se justificará legalissimamente, primeiro e antes de se fazer a
guerra, sendo a primeira prova os pareceres por escripto dos Padres
Superiores e Prelados das Missões da Companhia, e da Religião de Santo
Antonio, que assitirem nas cidades de S. Luiz do Maranhão, ou de Belém do
Pará, onde a tal guerra se ordenar, e outrosim do Ouvidor Geral; sem os
quaes em nenhum modo se poderá fazer; e as darão com toda a distincção e
individualidade das circunstancias também que ficam apontadas a este fim
[grifo nosso]. 358
Podemos observar que, tanto em um caso como em outro, a declaração de uma “guerra
justa” deveria passar pelas mãos de numerosos personagens da administração portuguesa. No
caso da “defensiva”, além do Ouvidor ser responsável pela reunião de provas coletadas com
testemunhas, era preciso que responsáveis religiosos pelo local invadido emitissem certidões
comprobatórias. Na “ofensiva”, a decisão para se fazer uma “guerra justa” passaria por várias
instâncias, sob risco de punição do governador e Ouvidor da região e libertação imediata dos
aprisionados, se assim fosse comprovada a irregularidade.
357
359
Na contenda em torno do
O seguinte Alvará se encontra disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, na seção de documentos
reservados 2434A. O mesmo também foi digitalizado e está disponível no sítio “Ius Lusitaniae”, que consiste
numa base de dados de fontes históricas do Direito Português, capitaneado pelo Departamento de História da
Universidade Nova de Lisboa, pelo Programa Organizacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (POCTI) e
Fundação
para
Ciência
e
Tecnologia
(FCT):
<
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=103&id_obra=63&pagina=1238 >. Acessado no dia
23 de janeiro de 2015.
358
Idem Ibidem.
359
Assim estava discriminado no Alvará: “(...) e não fazendo assim, serão havidos por livres todos os índios que
de facto tiverem sido captivos, e me darei por muito mal servido dos ditos Governador e Ouvidor: e desta culpa
mando se inquira em suas residencias, e que sendo-lhe posta nellas, se me dê especial conta de como as
140
presídio de Caconda em 1727, nenhum procedimento acima foi obedecido, de acordo com a
acusação do provedor Francisco Peireira da Costa.
De outro modo, o conflito que observamos em torno da legitimidade ou não da guerra
movida contra os sobas do hinterland de Benguela poderia ser resultado de uma complexa
trama de interesses, arranjos e rearranjos de alianças; ultrapassariam a simplificada divisão
que colocava, de um lado, reinóis e, de outro, as forças locais, no caso, provedor da Fazenda
Real e Governador do reino de Benguela. João Antonio Botelho Lucídio, na análise de uma
contenda formada nas minas do Cuiabá em 1740,360 observara o referido jogo de interesses.
Na ocasião, contrariando as determinações régias, comerciantes locais, membros do Senado
da Câmara e o Ouvidor, João Gonçalves Pereira, decidiram-se por realizar comércio com os
padres da Companhia de Jesus da missão de San Rafael de los Chiquitos, possessão
espanhola, contrariamente à posição do provedor da Fazenda Real. No decorrer do impasse, o
provedor, em correspondências às instâncias superiores, afirmava ser acusado pelo Ouvidor,
outro funcionário da coroa, de ter chegado às minas do Cuiabá com “El Rey na barriga”,
expressão que designava autoritarismo, prepotência, egoísmo ou alguém que não estava
disposto a respeitar a opinião alheia. 361
Para além das especificidades locais, uma compreensão das alianças tecidas naquela
localidade deve partir de diferentes pressupostos, conforme argumenta Lucídio:
(...) Governar naquelas lonjuras era a arte de saber fazer e desfazer alianças
com as pessoas e os momentos certos. Não importava se fosse paulista,
reinol, do senado da câmara ou oficial régio. As alianças eram
circunstanciais e não espeitavam as origens europeia ou brasílica de quem as
faziam. Parece-nos também que sua lógica e o seu sentido obedeciam a
regras muito peculiares que passavam por interesses econômicos, paixões
políticas, lugar de precedência nas conquistas, disputas por mercês e
reconhecimento na corte, honras e compromissos de famílias, compadrios,
rixas ancestrais, enfim uma gama enorme de possibilidades [grifo nosso].362
O provedor, que contrariava interesses locais, argumenta Lucídio, não havia sido
capaz de compreender o espaço político que vivia e, como não conseguiu formar uma rede de
relações, acabou por ficar isolado e foi estigmatizado como aquele que possuía “El Rey na
incorreram, para mandar ter com elles a demonstração que me parecer conveniente” [grifo nosso]. Idem Ibidem,
p.486.
360
As minas do Cuiabá no período estavam circunscritas aos domínios da Capitania de São Paulo, na América
portuguesa. Eram consideradas a parte mais ocidental das possessões lusitanas, área fronteiriça com os domínios
espanhóis.
361
LUCÍDIO, Op. Cit., p. 247.
362
Idem Ibidem.
141
barriga”. Ao direcionarmos nossa atenção novamente à contenda entre o provedor da Fazenda
Real de Benguela e o governador, poderíamos dizer que este último não havia sido capaz de
formar relações que pudessem sustentá-lo no seu cargo, uma vez que acabou por ser
destituído? O governador do reino de Benguela, assim como o provedor das minas do Cuiabá,
não havia sido capaz de entender o espaço político que vivia ao atacar chefes políticos
considerados vassalos e aliados da coroa portuguesa? Embora a repressão aos sobas tenha se
seguido após a destituição do governador, o caso demonstrava grande preocupação com a
manutenção dos arranjos e alianças formadas na região, entre a coroa lusitana e sobas
avassalados, que garantiriam o controle da região e regularidade do fornecimento de escravos.
Vale destacar, ainda, a atuação do soba Quiombella. Tal soba mantém presença
constante nos documentos oficiais, durante as décadas de 1720 e 1730, podendo ser
considerado o maior inimigo, ou obstáculo, para o estabelecimento português na região; tanto
por enfrentar diretamente o poder português, como por sua capacidade mobilizadora de
formar confederações de rebelados.
O soba Quiombella, citado em várias passagens ao longo da década de 1720, já
aparece, por exemplo, em 1722, como personagem central de uma rebelião, juntamente com
outros confederados, contra o Presídio de Caconda; é o que podemos observar na carta de
defesa de promoção militar de Felipe de Souza Meira, que serviu, entre 1702 e 1729, como
soldado e, posteriormente, como Capitão-Mor do Caconda:
(...) Em 722 ser mandado pello Capitão Mor do Reyno de Angolla por cabo
de fines Companhya de Infantaria de Sua de Empa(sic) e bastante gente de
guerra para acudir ao Prezidio de Caconda que se achava cittiado de
inumeráveis perto do Rebellado Sova Quiombella e seos confederados com
empenho de invadirem, e no dycurso do tempo q durou a campanha tratou
geral a todos com paternal amor (...) [grifo nosso].363
A mesma rebelião informada na carta de promoção de Felipe de Souza também
aparece disposta na carta de candidatura de Manuel Simões, que disputava a ocupação do
cargo de “Mestre de Campo”, vago com a saída de Joseph Carvalho da Costa, em 1732.
Manuel, naquela altura, já havia participado de várias campanhas militares, tendo servido
363
AHU, Angola, Cx. 24, doc. 136. Aqui vale destacar a riqueza de informações que dispõem tais cartas de
apresentação de determinados soldados, para promoção na hierarquia militar. As caixas que dão conta do Reino
de Angola, durante o século XVIII estão repletas de tais documentos, que informam sobre campanhas militares,
alianças e a expansão portuguesa na região.
142
como Capitão-Mor nos Presídios de Cambambe, das Pedras e Benguela. A respeito da sua
participação na guerra de 1722 nos sertões de Benguela, assim dispõe o documento:
(...) Em 722 rebelando se vários sovas e potentados dos Certoes de
Benguella contra a fortaelza do Seu Prezidio e do de Caconda pondo-se em
armas cinco Provincias contra os três presídios formando-se um poderozo
exercito, foi ordenado ao Supplicante convocafe (convocasse) os vezinhos e
com a gente lhe montafem formafe um campo e fosse rebater a fúria dos
inimigos. O que executou em tal forma que os fez desalojar do citio que
haviam posto a Caconda socorrendo o ditto presdio; e seguindo-os lhe deu
batalha que durou por espaço de trey sovas, vencendo o potentado Mulundo
com mortandade de muita gente e com despovo; e porque o v. Inimigo
tornou de novo a grassar o seu poder foi o u seguimento e Suppe. em seu
seguimento e encontradose com elle lhe deu outra batalha, que durou sey
horas em que ficou (sic) cm grande mortandade de feridos e despoos e o
Reyno de Benguella e Caconda dezasombrados daquella opreçao (opressão)
devendo se tudo ao valor e a coragem do millitar do Suppe; em que passou
quazi de um anno rendendo e vassalando muitos rebeldes das cinco
Provincias com grande credito das armas portuguesas e pouca despeza da
fazenda Real.364
Vale destacar que a mesma carta de apresentação dos feitos de Manuel também dá
conta da sua participação nas campanhas militares contra o soba Cabuinda em 1719, que
autorizou o envio de reforços do Presídio de Benguela a Caconda, culminando na vitória
sobre os potentados e prisão de cativos e sobas supracitados no início deste capítulo.
Quiombella, que atuou contra a coroa portuguesa entre as décadas de 1720 e 1730,
mobilizando outros potentados, uma vez que as suas ações estavam circunscritas aos entornos
do Presídio de Caconda, que havia sido fundado na década de 1680, à distância de 4 ou 5 dias
de Benguela, no corredor formado entre os rios Katumbela-Kuparolo (ver Mapa 9, acerca do
hinterland de Benguela), provavelmente, seria um soba ovimbundu relacionado aos Hanya,
visto que o presídio fora fundado em meio a turbulentas relações com os habitantes locais e,
desde a sua edificação, estas relações permaneceram, como bem pudemos observar nos
documentos citados anteriormente.365
Ademais, pensar a construção da legitimitidade das guerras movidas contra africanos
que habitavam o hinterland de Benguela implica considerar a ação dos africanos frente o
comércio transatlântico de escravos, que ora estiveram no pólo oposto, como o soba
Quiombella, ora mantiveram relações de vassalagem que proporcionavam recíprocas
vantagens. Por outro lado, episódios em que africanos escravizados fogem do cativeiro,
364
AHU, Angola, Cx. 26, doc. 114;115.
Igualmente, podemos considerar a possível origem imbangala de Quiombella, uma vez que desde o século
XVII chefes que atuavam na região do Caconda, reivindicavam tal ancestralidade. Ver MILLER, 1995, p. 209.
365
143
atacam e sequestram navios negreiros, ou aqueles em que lutam na justiça pela garantia da
liberdade ilustram que estes indivíduos não permaneceram passivos ante o comércio
transatlântico e que reagiram da maneira que lhes era possível.
Sobre as guerras, não restam dúvidas de que a promoção e sua realização foi o
principal meio de obtenção de cativos na África Central, embora, como assinala Mariana
Candido, nos reinos de Angola e Benguela, houvesse outros meios para escravização, como
seqüestros e embuste.366
Todavia, a questão não se resolve com a simples afirmativa da primazia do recurso
para o apresamento de cativos. É preciso elucidar as diferentes modalidades de guerras, suas
peculiaridades. De tal sorte, ao analisarmos a “guerra” como instrumento de produção de
mão-de-obra escrava em Angola, temos as seguintes situações: a) a guerra travada
diretamente entre a coroa portuguesa e sobados locais, justificada sob diversos fundamentos,
fosse “defensiva” ou “ofensiva”; b) As guerras travadas entre a coroa portuguesa e poderes
locais, para o estabelecimento e fortalecimento de alianças comerciais ou militares; c) as
guerras travadas entre lusitanos e sobados africanos, injustificadas ou ilegítimas; d) e, por fim,
as guerras travadas entre sobados locais. Cada modalidade obedece a uma lógica
mercadológica cadenciada por circunstâncias intercontinentais, como por rearranjos de
poderes locais que podem relativizar a legitimidade ou não do conflito, quando em lados
opostos estão forças locais e a coroa portuguesa.
De maneira geral, os embates travados em torno do caráter justo ou injusto das guerras
perpetradas nos arredores do presídio de Caconda perpassam as três primeiras situações.
Sobre a última, vale salientar que, com o mercado transatlântico de escravos e necessidade de
produção de cativos, foi presença constante na história não somente do reino de Benguela,
mas de toda África Centro-Ocidental; marcou desde o recrutamento de Imbangalas para
realização de incursões militares e apresamento de cativos até o próprio estabelecimento dos
potentados Ovimbundus entre os séculos XVII e XVIII, no sul da Angola. Devemos lembrar
que, no próprio documento que outrora apresentamos, existe uma oferta de aliança de um
soba considerado “autônomo” com as forças portuguesas, para captura e luta contra
Quiobella.
366
Aqui vale ressaltar que no período ainda não existia a “Angola” enquanto Estado-nação, mas o Reino de
Angola e Benguela e os seus respectivos hiterlands (interiores, regiões desconhecidas), do ponto de vista
português. Para além dos domínios portugueses, que se edificaram progressivamente a partir do século XVI,
existiam no atual território angolano, numerosas nações e potentados. Algumas destas últimas serão objeto do
estudo que se segue.
144
Sobre essa questão, vale mencionar a reflexão de Miller, que verificou atentamente o
avanço das “fronteiras escravas”, ao longo dos séculos XVII e XVIII em Angola,
principalmente em Benguela. Segundo o autor, esse universo de expansão da empresa escrava
esteve marcado pela conjunção entre a atuação de sobas, na condição de “senhores da guerra”,
juntamente com as crises ecológicas sucessivas que atingiam a região e favoreciam aos
primeiros, ao provocarem o aumento de súditos que buscavam proteção da seca e fome, como
a conquista dos mais vulneráveis.
367
Analogamente, na medida em que as secas, fome e
doenças atingiam as regiões da costa de Angola, reduzindo-as severamente, os portugueses se
viam forçados a expandir as suas atividades para o leste. 368
Os antigos chefes Ovimbundus, face os desastres naturais e chegada lusitana,
passaram a ver na empresa escravista a possibilidade de importação de bens com a exportação
de escravos, criando progressivamente, na região, uma situação de dependência com a
economia atlântica, com zonas de toque referenciais, tais como Caconda e, no final do século
XVIII, o Bié – implica dizer que o suprimento da demanda de cativos que vinha do outro lado
do Atlântico, especificamente das minas brasileiras, foi correspondido principalmente pela
atuação de sobas na produção de cativos, que pressupomos, via-recurso de incursões e
guerras.369 Em outras palavras, essa expansão do oeste para o leste de Angola, no sul e centro
de Angola, combinou a congregação de reis locais e aristocracia com comerciantes, que, além
de financiarem incursões militares a populações vizinhas, passaram a contar com a presença
de “intermediários”, que se lançavam sucessivamente a vilas mais afastadas.370
Finalmente, acrescentemos a esta reflexão a proposição de José Curto, acerca da
utilização da guerra como instrumento para produção de cativos no sertão de Benguela, entre
os Ovimbundus. De acordo com o autor, até a fundação do Presídio de Caconda, na década de
1680, a tática fundamental lançada pelo mundo lusitano para obtenção de cativos fora o
recurso à guerra. Com a edificação de Caconda, passou paulatinamente a ser substituída pelas
alianças comerciais – que garantia o suprimento de cativos e segurança dos agentes
367
MILLER, 1988, pp. 143-146.
Miller, para exemplificar a reflexão, menciona a forte crise demográfica que abatera Luanda na década de
1680, quando o potencial de exportação de cativos, foi reduzido em pelo menos 50%. Ibidem, p. 151.
369
Aqui vale chamar a atenção para preocupação constante do autor em circunscrever o ponto de vista do
africano, expressa no próprio prefácio da obra e noutros artigos subseqüentes à publicação da mesma. Miller
afirma que além dessa inclusão da perspectiva africana, é preciso a realização de um cruzamento de diferentes
perspectivas, a fim de que se produza uma teoria do sistema mundial “ecletista” e múltipla. Se questiona a todo
momento sobre a possibilidade de se produzir uma história mundial com “tons mais quentes”, à despeito da
frieza dos dados quantitativos. Ver “Preface”, Ibidem.
370
Joseph Miller salienta que essa construção de uma nova configuração política no Planalto Central, marcada
pela erupção de antigos potentados, com a combinação do colapso ecológico e intervenções estrangeiras, foi
irregular ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ibidem, p. 152.
368
145
comerciais no interior das rotas. Contudo, pelos próprios fatos que outrora apresentamos ao
longo das décadas de 1720 e 1760, mesmo com tal política de alianças com chefes locais, que
visava a produção de cativos, o recurso à guerra nunca deixou de ser uma possibilidade à
vista. Principalmente, quando estava em jogo a segurança das atividades comerciais, além da
própria necessidade de se manter a reputação, importante para garantir a estabilidade política
na região e, consequentemente, econômica. De toda maneira, tanto no confronto direto como
no estabelecimento de relações de vassalagens, o comércio transatlântico de escravos só foi
possível com a presença africana. É ela que deu contornos específicos e viabilidade à
empresa, pela oferta ou recusa de alianças, utilização de antigas rotas e lógicas comerciais,
como as caravanas, ou ataques movidos por povos Imbangalas aliados, que garantiam o
suprimento de cativos nos mercados africanos. Estes últimos, mesmo quando alcançados pelo
mercado transtlântico de escravos, não cessavam de tentar um recomeço, de se
ressignificarem. Nos capítulos seguintes, trataremos desses homens de ferro e mulheres de
pedra, que atravessaram o Atlântico e, na medida do possível, escreveram as suas histórias
com as próprias mãos.
146
Mapa 7 - A Feira de Cassange
Fonte: HENRIQUES, Op. Cit., p. 683.
147
Mapa 8 – Rotas comerciais no Planalto Central de Benguela
Fonte: MILLER, 1988, p. 221
148
Mapa 9 - Benguela e o seu interior
Fonte: CANDIDO, Op. Cit., p. 41.
149
Mapa 10 - Benguela e o seu hinterland
Fonte: CURTO, 2002, p. 267.
150
Tabela 1 – exportação de cativos na África Central (1676-1832)
Porto
Escravos
Percentual
Cabinda
272.800
25.3
Luanda
213.500
19.8
Benguela
205.700
19.1
Malembo
116.600
10.8
Congo
100.800
9.3
Ambriz
80,500
7.5
Loango
77,900
7.2
Others
11,100
1
Fonte: Eltis, Lovejoy and Richardson. “Slave-trading Ports”, 21. Apud CÂNDIDO, Mariana Pinho. Enslaving
frontiers: slavery, trade and identity in Bengela, 1780-1850. York University – Graduate Program in History,
Toronto, 2006 (tese).
Tabela 2 - Exportações Legais de Escravos de Benguela, 1730-1828
Ano
Escravos
exportados
Ano
Escravos
Exportados
1730
2,035
1781
6488
1731-1737
n.a.
1782
6437
1738
1793
1783
6436
1739
n.a.
1784
7832
151
1740
898
1785
6192
1741
774
1786
5508
1742
898
1787
7215
1743
n.a.
1788
6211
1744
1311
1789
6157
1745-1746
n.a.
1790
6243
1747
963
1791
6499
1748
328
1792
10867
1749
916
1793
11668
1750
1704
1794
9973
1751
1378
1795
10399
1752
1921
1796
8115
1753
2819
1797
7075
1754
2787
1798
6554
1755
2196
1799
3942
1756
2541
1800
7065
1757
1461
1801
6942
1758
2419
1802
8687
1759
412
1803
5639
1760
2507
1804
7350
1761
3940
1805
5706
1762
4180
1806
5902
1763
3445
1807
4963
1764
3867
1808
4828
1765
6183
1809
5325
1766
5160
1810
5511
1767
6635
1811
4970
1768
5658
1812
5015
1769
5598
1813
4640
152
1770
4733
1814
4504
1771
5293
1815
3776
1772
5021
1816
4868
1773
5367
1817
3480
1774
4328
1818
3547
1775
5739
1819
4867
1776
5983
1820
3360
1777
3967
1821-1824
n.a.
1778
5510
1825
4408
1779
7072
1826-1827
n.a.
1780
6455
1828
4808
Fonte: CURTO, José C. “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 1730-1828: A Quantitative
Re-Appraisal”. Africa (São Paulo), Nos, 16-17, 1993, p. 362.
Tabela 3 - População de Caconda (1797-1850):
Ano
Total de População
1797
11, 882
1798
13, 052
1799
13, 138
1803
13, 274
1804
13, 209
1805
13, 206
1806
13, 208
1809
13, 206
1813
13, 226
1815
13, 440
153
1817
13, 592
1818
13, 600
1819
20, 203
1825
21, 362
1826
20, 932
1827
22, 262
1829
22, 113
1831
22, 186
1832
22, 140
1836
23, 604
1844
22, 100
1850
60, 229
Fonte: CANDIDO, 2008, p. 188.
Tabela 4 - População de Benguela entre 1795 a 1850
Ano
População total
1797
2, 244
1798
3, 023
1800
2, 709
1804
2, 007
1805
2, 042
1806
2, 083
1808
2, 094
1809
2, 096
1811
1, 432
1813
2, 187
154
1815
2, 274
1816
2, 462
1817
2, 441
1819
2, 289
1826
2, 394
1844
2, 438
1850
2, 634
Fonte: CANDIDO, Op. Cit., p. 135.
Gráfico 1 - População escrava de Caconda por gênero (1795-1850).
Fonte: LIMA, Ensaios sobre a statística, 4; and Almanak Statístico, 9. Apud CANDIDO, Op. Cit.
155
CAPÍTULO 3 – “Uma Devassa no sertão”: panorama da instituição
escravista na fronteira do território luso-brasileiro (1720-1795)
(...) Considerem-se desde já filhos de Deus. Esqueçam seus países de origem,
deixem de comer cães, ratos e cavalos. Sejam contentes. 371
(...) Nossa passagem, porém, pareceu afetá-los pouco. A maior parte desses seres
infelizes estava [no convés] quase imóvel, embora não percebêssemos que estavam
acorrentados; alguns dirigiram para nós um olhar de aparente indiferença; outros,
com seus braços dobrados, pareciam acabrunhados pela tristeza; enquanto muitos,
debruçados na amurada, olhavam para as ilhas verdes da baía, as montanhas
rochosas e toda a exuberância selvagem da paisagem sorridente.372
A partir do embarque, o africano deveria esquecer para sempre quem havia sido até
então. Transmutado em escravo, fosse em áreas interioranas ou próximas à costa, enviado ao
Novo Mundo, embarcava em uma viagem com poucas possibilidades de retorno. Medo,
abatimento e pavor diante do desconhecido e da coação poderiam ser sentimentos presentes.
Reunidos anonimamente em um bando único, distinto por sexo, idade ou, às vezes, “reações
imprevistas”, 373 enfrentariam uma penosa travessia, que variava de acordo com o destino: dos
portos dos reinos de Angola ou Benguela a Pernambuco, a viagem dar-se-ia em torno de 35
dias; à Bahia, cerca de 40 dias; e ao Rio de Janeiro, a média de 50 dias. Todavia, se as
condições de navegabilidade não fossem adequadas, a viagem poderia se estender por até 5
meses, agravando as condições de sobrevivência e segurança.374
As condições no interior dos navios negreiros que faziam a travessia poderiam variar
de um navio para o outro. Contudo, apesar das constantes obrigações que capitães eram
371
Fragmento de um discurso proferido por um padre responsável pela catequização de africanos, no momento
do embarque aos Navios Negreiros na África. MATTOSO, Ser escravo no Brasil. Tradução de James Amado.
São Paulo: Brasiliense, 2003., p. 44.
372
Relato do viajante Ellis, sobre a chegada de africanos na baía de Guanabara, Rio de Janeiro, início do século
XIX. KARASH, Op. Cit., p. 73.
373
Segundo Mattoso, os chamados “cabeças quentes” eram postos a ferros. MATTOSO, Op. Cit.
374
Idem Ibidem, p. 47.
156
obrigados a atender para garantir que escravos chegassem ao novo mundo com vida, 375 os
mesmos tendiam a burlá-las, em nome de margens de lucro mais generosas. Assim, relatos
como o do irmão Carli, transcrito por Mattoso, exemplificam o que poderia ser a rotina dentro
de uma embarcação que rumava ao Novo Mundo:
(...) Os homens estavam empilhados no porão à cunha, acorrentados por
medo de que se revoltem e mate todos os brancos a bordo. Às mulheres
reservava-se a segunda meia-ponte, as grávidas ocupavam a cabine da popa.
As crianças apinhavam-se na primeira meia-ponte como arenques num
barril. Se tinham sono, caíam uns sobre os outros. Havia sentinas para
satisfazer as necessidades naturais, mas como muitos temiam perder seus
lugares, aliviavam-se onde estavam, em especial os homens, cruelmente
comprimidos uns contra os outros. O calor e o mau cheiro tornavam-se
insuportáveis.376
Dessa maneira, poucos eram aqueles que saíam imunes à travessia.
377
E aqueles que
chegavam, como afirmava Oliveira Mendes, poderiam ser considerados homens de ferro ou
pedra. Após percorrerem milhares de quilômetros, finalmente chegavam a um dos destinos,
no caso de serem direcionados ao Rio de Janeiro, apáticos ou acabrunhados pela tristeza. Nos
dias que se seguiriam, defrontar-se-iam com uma das transições mais decisivas das suas vidas,
que determinaria a quem serviriam, trabalho que realizariam ou se viveriam ou morreriam
precocemente: a venda no Valongo, maior mercado de escravos da América portuguesa. 378
Magros, com aparência esquelética, pele com tom acinzentado, repleta de feridas,
escrofulosa, semivestidos,
379
após o navio ancorar, africanos escravizados eram
encaminhados diretamente à alfândega, onde passavam a ser contados por sexo e número de
“crias” que eventualmente possuíssem. Pagos os impostos, eram então levados em grupo ao
local em que seriam preparados para a futura venda. Os preparativos eram diversos e
375
Como o aprovisionamento de água. Segundo Mattoso, cada navio negreiro ao longo dos séculos XVII e
XVIII era obrigado a transportar 25 pipas de água para cada 100 cativos. Frequentemente capitães pechinchavam
menor quantidade. Ibidem, p. 46.
376
Idem Ibidem, p. 47.
377
Vários autores trabalham com a taxa de mortalidade nos negreiros. Mattoso (Ibidem, p. 48), por exemplo,
afirma que variava entre 15 a 20%. Ver também KLEIN, Herbert. The trade in African Slaves to Rio de
Janeiro, 1825-1811: Estimates mortality and Patterns Voyages. Londres, X (4), pp. 33-549, 1969; Florentino,
Alexandre Vieira Ribeiro e Daniel Silva afirmam que a taxa de mortandade dependia da região de embarque na
África e que os dados acerca das mortes nos negreiros também devem ser compreendidos partindo do fato de que
vários embarcados nos negreiros já apresentavam debilidades, o que tornava propício do desenvolvimento da
enfermidade no negreiro que levava ao óbito, a exemplo daqueles embarcados de Luanda, que poderiam
apresentar doenças como varíola, escorbuto, sarampo, oftalmia e maculo (diarréia). A partir de listas navais,
registros de alfândegas e notícias coletadas em jornais baianos, cariocas e pernambucanos, os autores apresentam
uma tabela (4), que dispõe detalhadamente o percentual de mortandade no interior dos negreiros. Ver
FLORENTINO, Manolo. RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues da. “Aspectos comparativos
do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)”. In: Afro-Ásia, 31 (2004), pp. 83-126.,
378
KARASH, Op. Cit., p. 67.
379
Essas são definições de viajantes que estiveram no Rio de Janeiro no início do século XIX, como Ellis, Brand,
MacDuall, entre outros, analisados por Mary Karash. Ibidem, pp. 67-85.
157
intentava-se, principalmente, esconder os defeitos físicos e causar uma melhor aparência, para
facilidade da venda. Nesse intento, eram banhados e tinham o cabelo e barba raspados. Caso
demonstrassem aparência demasiadamente magra, comerciantes cuidavam de alimentá-los até
atingirem condições razoáveis.
Contudo, só estariam definitivamente “preparados” se camuflassem a tristeza ou
“tendência depressiva”, elementos determinantes para o sucesso de uma venda no Valongo.
Então, eram fornecidos aos cativos estimulantes diversos (como gengibre ou tabaco) e, se não
obtivessem sucesso, a ameaça com chicote ou vara. Analogamente, deveriam dançar e cantar
músicas da terra natal, de maneira alegre e sob o olhar do feitor, pronto para açoitá-los no
caso de expressarem apatia.380
Expostos frequentemente nus, finalmente chegava o momento da venda – motivo de
tristeza para uns e “libertação” para outros, em vista da atmosfera “fétida” do Valongo.381
Várias eram as maneiras de se vender no mercado, como a exposição nos próprios pátios das
casas comerciais – sentados em bancos ou agachados –, acorrentados pelas ruas e anunciados
de porta em porta ou levados à praça popular ou mercado, e exibidos ao lado de animais,
verduras e frutas. Ao se concluir o negócio, escravos eram marcados com ferro aquecido e
desembarcavam no derradeiro destino, 382 negociado entre compradores e vendedores.
As minas do Cuiabá e Mato Grosso, localizadas no extremo oeste das possessões
lusitanas, figuravam entre as numerosas possibilidades que estavam reservadas aos africanos
recém-embarcados. Assim, iniciariam uma nova viagem, igualmente penosa e repleta de
novos perigos, como o enfrentamento de ataques indígenas durante o caminho, o perecimento
por doenças tropicais e a extensa jornada, que poderia ter a duração de meses, por qualquer
das rotas. Em síntese, o próprio caminho seria mais um obstáculo a ser superado por estes
homens e mulheres de ferro e pedra.
Em suma, o presente capítulo parte da apresentação e reflexão sobre a organização de
uma bandeira no final do século XVIII, na Capitania do Mato Grosso, que se deu pelo período
380
Idem Ibidem, p. 80.
Se por um lado o viajante Mansfeldt, afirma que após vendidos escravos deixavam o Valongo num profundo
estado de apatia e indiferença, Rugendas afirma que a venda poderia ser motivo de “libertação”, uma vez que se
findava o tempo de insegurança e espera do novo destino. Ver relatos em Karash, Ibidem, pp. 84-85.
382
O dramático processo de marcação é narrado por Mansfeldt: “(...) o processo de marcação incluía lambuzar a
área com gordura e depois aplicar sobre ela um pedaço de papel mergulhado em óleo. Um pedaç de ‘estanho
aquecido cortado na forma da marca’ era então pressionado em cima, fazendo a carne inchar. Uma vez feita, a
marca não saía mais. Com o sinal de seu novo dono na carne, muitos africanos deixavam o mercado num estado
de indiferença e apatia”. Ibidem, p. 84.
381
158
de cerca de seis meses, provocando uma verdadeira devassa no sertão. Sua análise ainda
permitirá apresentar ao leitor uma leitura panorâmica da conjuntura econômica e social da
Capitania desde a chegada das primeiras bandeiras paulistas ao Cuiabá em busca de ouro e
indígenas, que perpassa o século XVIII, bem como desvelar as minúcias das rotas que
trouxeram os cativos, dados quantitativos e informações referentes à procedência étnica
africana.
Embora a bandeira tenha sido organizada em 1795, adotamos como ponto de partida o
ano de 1720, por entendermos que ele fornece base para compreensão da repressão aos
quilombolas na região durante o século XVIII. A data indica o marco inicial de um mapa
elaborado no governo do Capitão-General Luís de Albuquerque, que além de informar os
dados referentes à importação de cativos às minas do Cuiabá entre os anos de 1720 e 1772,
fornecera um panorama da entrada de escravos na região por duas rotas (norte e sul), a saber,
a chamada rota-sul (Rio de Janeiro-Santos-Porto Feliz-Cuiabá) e a rota norte (via Grão-Pará e
Maranhão).383
Em última instância, para além desses apontamentos expostos, no capítulo que se
segue, pensamos igualmente as constantes trocas culturais em região de fronteira entre
quilombolas – principalmente africanos de origem “bantu” –, indígenas (os Nambiquaras,
Parecis e Cabixis) e homens brancos, a fim de vislumbrarmos em que medida e como algumas
reformulações culturais ou hibridismos aconteceram nos interstícios.
3.1.A Instituição escravista em Região de fronteira
De maio a novembro de 1795, empreendeu-se no Vale do Guaporé, oeste da Capitania
do Mato Grosso, uma das maiores operações – se não a maior – de busca de cativos fugitivos
e quilombolas. Preparada por cerca de dois meses e financiada por autoridades políticas e
contribuições voluntárias de moradores de Villa Bela e arraiais próximos, contou com 45
homens, o comandante Dragão Francisco Pedro de Mello,
384
além de seis pedestres, todos
municiados, pelo que reportou o capitão-general João de Albuquerque Pereira de Mello e
383
Adiante, no capítulo 3, seção 3.3., analisaremos o referido mapa.
Acerca do “Dragão”, vale salientar que o mesmo era aquele soldado que se deslocava montado em cavalo.
Durante o período colonial tal tipo de soldado se configurou com uma das funções de maiores prestígios,
encarregados da defesa externa e segurança interna. Nesse intento, na primeira metade do século XVIII, são
trazidas companhias de Portugal e, analogamente, são criadas em território brasileiro.
384
159
Cáceres em correspondência ao Conselho Ultramarino.385 Juntamente com tal relato, o
capitão-general encaminhou mapas da região do Guaporé, com numerosos detalhes
geográficos (principalmente no que se refere à localização dos rios Galera, Sararé, Guaporé e
Juruena, conforme mapa 10 e 11), e uma cópia do diário escrito pelo comandante, relatando
minuciosamente a diligência.
O referido diário, assim como a correspondência, encontra-se sob guarda do Instituto
Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB), no Códice 246, demarcado pelos anos de 1777 e
1805, no banco identificado como “correspondência entre governadores”. Veio a
conhecimento público após ser citado e transcrito por Roquette-Pinto na obra “Rondônia”, em
1917, publicada nos Archivos do Museu Nacional. Considerada referência obrigatória para
compreensão da prática social e científica do início do século XX, tal obra, de maneira geral,
se originou de observações e descrições realizadas pelo autor acerca dos índios da Serra Norte
nos territórios atualmente compreendidos como Rondônia e Mato Grosso, durante cinco
meses em 1912; isso na expedição científica perpetrada pela Comissão Rondon, que tinha por
objetivo a instalação de linhas telegráficas entre o Mato Grosso e Amazonas e, especialmente,
o estudo dos povos Nambiquaras.386 Apresenta tal documento logo na partida de suas
reflexões, no momento em que o autor tece as suas considerações sobre as origens históricas
das populações que habitaram a “Serra do Norte”, preocupado em discorrer sobre o histórico
de contatos entre os povos da região – Nambiquaras, negros fugidos, portugueses, entre
outros.
O diário em si, apesar de sua pouca exploração na historiografia brasileira, constitui
um documento de grande valia para compreensão da instituição escravista na fronteira do
território luso-brasileiro. Nele, estão expostas detalhadamente informações acerca das
possibilidades de uma vida para além da escravidão, através dos quilombos e estratégias
adotadas pelos fugitivos para sobrevivência, no contato com ameríndios, organização política
e prática de agricultura, por meio de uma ótica colonizadora e escravista.
Essa diligência, pelo que argumenta o capitão-general João de Albuquerque, se
justificou por duas razões: (1) em função da decadência das minas do Mato Grosso e (2) os
385
Sobre o Diário de Diligência, ver MELLO, Francisco Pedro. Diário de Diligência. In: ROQUETTE-PINT.
Rondônia. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Volume XX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1917;
386
KEULLER, Adriana T. A. Martins. Revisitando Rondônia: história, memória e ciência. In: História, ciência,
Saúde, V. 14, n. 2, Abril-Junho, 2007, pp. 641-642.
160
constantes danos causados com as fugas de escravos para o Vale do Guaporé, conforme
podemos observar abaixo:
Ilmo. e Exmo. Sr. – Vendo eu que alem da decadência actual das minas de
Matto Grosso, experimentam os mineiros, e mais moradores desta Capitania
a perda, e damno da fuga de muitos escravos que tranquilamente existiam
aquilombados na escarpada extensa Serra dos Parecís, derramados pelos
terrenos de que nascem os rios Piolho (hoje denominado de S. João), Galera,
Sararé, Pindantuba e outros segundo huma constante noticia.
Para aliviar pois estes damnos e felicitar a utilidade publica, chamei a 24 de
março deste anno, ao Juiz Presidente da Camara desta Villa Bella, e ao
Vereador mais velho aos quais lembrei, que huma das espessiaes obrigações
da Camara, era ocorrer ás necessidades publicas e a actual falta de terras
mineraes, e repetidas fugas de muitos escravos, que hiam aquilombar nas
vizinhanças do Guaporé e dos arrayaes, contíguos á esta Capital, eram
objectos que exigiam o promptissimo remédio da formação de huma
bandeira que explorasse aquelles certões , com dois ponderados fins: e que
para a sua despeza, convocando a Camara do Povo, se pedisse huma
contribuição voluntaria aos moradores de Villa Bella, e dos seus Arrayaes,
prometendo eu concorrer por parte da Fazenda Real, como efectivamente
pratiquei, com a quinta parte da gente, que se empregasse nesta diligencia
armada e moniciada pela mesma Real Fazenda [Grifo nosso].387
Considerar o primeiro aspecto nos impõe a tarefa de pensar a conjuntura econômica
local e transatlântica. Deve-se lembrar que o próprio processo de fundação da Capitania do
Mato Grosso, edificação de Vila Bela, e, posteriormente, a transferência da capital para
Cuiabá, entre o século XVIII e primeira metade do século XIX, é demarcado estritamente
pelas descobertas auríferas e sua exploração, além da necessidade de proteção da região de
fronteira, que demarcava os limites entre os domínios portugueses e espanhóis.
O território da Capitania, objeto de disputas militares entre ameríndios e a ação
bandeirante, apesar de ter sido ordenadamente povoado por estes últimos a partir de um
projeto de Estado durante o século XVIII, ainda no XVII já havia sido visitado por Pascoal
Moreira Cabral Melo, entre 1684 e 1685, quando o mesmo incursionava nos domínios
hispânico-jesuíticos preando índios e levando-os a Sorocaba para o trabalho agrícola.388 Em
387
MELLO, Francisco Pedro. Diário de Diligência. In: Rondônia. Archivos do Museu Nacional do Rio de
Janeiro (Volume XX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
388
Segundo Carlos Rosa, em carta endereçada a D. João V, Moreira Cabral informa o seu deslocamento ao atual
sul do Estado de Mato Grosso do Sul com a intenção de descobrir ouro, prata e pedras preciosas. Todavia, devese considerar que tal justificativa poderia camuflar a verdadeira intenção que seria levar “gentios da terra” para o
trabalho em Sorocaba. Cf.ROSA Apud CHAVES, Otavio Ribeiro. Escravidão, Fronteira e Liberdade:
resistência escrava em Mato Grosso (1752-1850). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade
Federal da Bahia, 2000 (dissertação), p. 14.
161
todo caso, a chegada do homem branco naquilo que seria considerado, a partir de 1748,
Capitania do Mato Grosso, tradicionalmente é compreendida em função das descobertas
auríferas e defesa da fronteira territorial entre as coroas portuguesa e espanhola, que em 1750
havia sido definida no Tratado de Madri pelo princípio de “uti possidetis e pelas balizas
naturais”. 389
As primeiras descobertas auríferas na localidade se deram no início do século XVIII,
com achados no Coxipó-Mirim (1718) e lavras do Sutil (1722). O fato provocou um novo
episódio na história das ações portuguesas, tanto no que diz respeito ao pretexto para
fortalecimento da fronteira que se forjava, quanto no que se refere aos contatos com os povos
ameríndios que viviam na região. José Barbosa de Sá, 390 cronista que viveu na região durante
o período, expressa a grande euforia provocada por tais descobertas, emblemática para se
pensar a importância do episódio:
Divulgada a notícia pelos povoados foi tal o movimento que causou nos
ânimos que das Minas Gerais, Rio de Janeiro e toda a Capitania de São
Paulo se abalaram muitas gentes deixando casa, fazendas, mulheres e filhos
botando-se para estes Sertões como se fora a terra da promissão ou o Paraíso
encoberto em que Deus pôs nossos primeiros pais.391
O cronista, ao tecer a sua narrativa acerca do caminho que levava aos sertões do
Cuiabá, também relata a numerosa presença ameríndia que habitava a região:
(...) e entrando pelas grandes baías, foram achando tantas nações de gentes
que não cabem nos arquivos da memória e só me lembro das seguintes:
Caroyas, Taquasentes, Xixibes, Xanites, Porrudos, Xacorés, Aragoarés,
Coxiponés, Pocuris, Arapoconés, Mocos, Goatás, Araviras, Buripoconés,
Arapares, Hytaporés, Ianés, Aycurus, Bororos, Payagoas, Xaraés,
Penacuícas e outros (...). 392
389
Segundo Lia Osório Machado, Uti Possidetis se trata de um princípio originário do Direito Romano, no qual
àqueles que ocupam o território possuem direito sobre o mesmo. Cf. MACHADO, Lia Osório. Mitos e
Realidades da Amazônia no contexto geopolítico internacional (1540-1912). Barcelona: Universitat de
Barcelona, 1989 (tese).
390
José Barbosa de Sá é considerado o primeiro cronista letrado da região, autodidata e dono da primeira livraria
de Cuiabá. Estima-se que tenha chegado na época da elevação de Cuiabá à categoria de vila, em 1727. Durante a
sua estadia na região exerceu as funções de sertanista, observador oficial das missões hispânicas limítrofes no rio
Guaporé, advogado e procurador do povo em Cuiabá (ROSA, 1996).
391
SÁ, Joseph Barboza de. Relação das povoações do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé o s
prezentes tempos (1775). Cuiabá: UFMT/SEC, 1975, p.12.
392
Ibidem, p. 11.
162
Observemos que, com a penetração da região, pelo apresamento de índios e busca de
ouro, grande parte desses reinos ameríndios foram devassados.393 É o que podemos observar
no plano estratégico de conquista área, pelo Capitão-General da Capitania de São Paulo,
Rodrigo César Menezes, que ao chegar às minas do Cuiabá em 1726 relata:
(...) Achando-se [as minas de Cuiabá] cercadas de várias nações de gentio,
que não nos deixavam alargar pelo centro do sertão, matando e sustentandose de carne humana, procurou reconduzi-los e metê-los de paz S. Exº.
[Rodrigo César Menezes], para o que lhes mandou alguns pombeiros,
contentando-os e persuadindo-os com mimos (...), mas estes não só
recusaram a nossa amizade, mas responderam que eles eram homens e que
só a força de armas seriam mortos ou conquistados. Ouvida esta insolente
resposta, mando S. Exº. pôr logo pronto um cabo com bastante soldados
sertanistas, com ordem positiva que os atacassem em qualquer parte que os
achassem: assim se fez e sem embargo de uma vigorosa resistência, mataram
os nossos uma grande parte deles e trouxeram prisioneiro o resto, com toda a
sua família [grifo nosso].394
Todavia, o tratamento com os nativos se altera substancialmente com a edição do
“Diretório” em 1757 e o envio de instruções régias nos anos de 1749, 1758 e 1772, que
orientavam a incorporação do nativo como vassalo. No lugar da devassa, a primazia deveria
ser dada à educação baseada nos preceitos civilizacionais. Em tese, criava-se um novo
entendimento acerca do nativo: se antes poderia ser considerado uma barreira para o avanço
do progresso, agora seria elemento útil para se resguardar a fronteira da coroa portuguesa. 395
Nesse sentido, várias medidas foram recomendadas, principalmente aquelas que buscavam
393
GUIMARÃES, Tereza Martha Borges. Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América
do Sul: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo
Regime: poderes e sociedade, 2005, p. 4.
394
Ibidem, p. 7.
Duas obras exploram tal perspectiva, do indígena enquanto “muralha” ou “Guardião da Fronteira” da coroa
portuguesa: MEIRELES, Denise Maldi. Guardiões da Fronteira – Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis:
Vozes, 1989; FARAGE, Nadia. Muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização.
Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991; Contudo, é preciso atentar para o “perigo” de não se considerar a
atuação de indígenas junto a esse processo histórico, sob pena de interpretá-los enquanto “agentes passivos”,
restritamente usados pela coroa a partir de uma leitura “eurocêntrica” que não percebe as estratégias levadas a
cabo por distintos povos indígenas. Na análise da historiografia hispânica acerca das relações entre as coroas
espanhola e portuguesa, no alvorecer do século XVIII, Lucídio menciona o debate sobre o chamado “cordão de
isolamento” formado pelas missões jesuítas, entre as autoridades civis das duas coroas. A presença jesuíta pode
ter sido estimulada, sobretudo, por morades de Santa Cruz de la Sierra, temerosos de que luso-paulistas que
habitavam Cuiabá alcançassem as minas do Potosí, ou pela indisposição de recursos para contenção dos avanços
paulistas junto aos domínios espanhóis, que acabou por obrigar a busca por alianças com indígenas Chiquitos,
que se encontravam na região. Noutras palavras, para compreensão da edição de regulamentos e conquistas
ibéricas na região, é preciso se considerar a presença e importante papel das diferentes sociedades indígenas em
meio aos distintos jogos de interesses. Sobre o debate, ver LUCÍDIO, Op. Cit., p. 228.
395
163
estimular o casamento com nativos e a criação de aldeamentos.
396
O governador Rolim de
Moura, por exemplo, em correspondência datada de 1756, sugere que o melhor modo de ligálos (indígenas) à sociedade civil seria misturá-los com negros ou brancos, especialmente com
os primeiros, que daria origem aos “Caborés”, que eram próprios para “qualquer
empreendimento”. 397
A despeito de tais recomendações, vale lembrar que não somente as campanhas
militares contra ameríndios não deixaram de existir, como também o próprio indígena não
deixou de ser utilizado como escravo. É o que podemos ver nas correspondências enviadas
pelo Capitão-General Dom Antonio Rolim de Moura, no período em que governou a
Capitania do Mato Grosso (1751-1765). Em 1751, ao tecer comentários sobre a situação dos
nativos que estavam sob a “zelosa” administração de moradores do Cuiabá, afirmava:
(...) Neste princípio, sempre ela há de ser maior, porque é tal o desamparo,
em que estes miseráveis se viam na mão dos seus administradores, que a
maior parte andavam quase inteiramente nus, e adoecendo, os deixavam
morrer, sem assistência pelo que aos que se tem vindo recolher, foi e é
necessário acudir-lhe a muitos com alguma cobertura, e curá-los das queixas
que padeciam sem remédio, que principalmente este ano tem sido muito
gerais, no que, e no sustento dos missionários se tem feito a despesa de perto
de quatrocentas oitavas.398
Rolim de Moura também informava a quantidade de indígenas “administrados” no
distrito do Cuiabá em 1751 e o próprio proceder de sertanistas desde a chegada às minas:
(...) Todo este distrito de Cuiabá acharam os primeiros sertanistas, coalhando
de gentio, de que hoje não há mais do que uns restos, e os que se acham nas
mãos dos admnistradores, que me parece não chegarão a seiscentos.
Precisamente assim havia de ser desde que estas terras se descobriram,
sempre os sertanistas, andaram na busca deles (...).399
Na mesma carta, o Capitão-General chega até a detalhar sobre como se dava o
apresamento de indígenas:
Chegando a alguma aldeia depois de a renderem a poder de fogo metiam em
correntes as mulheres e os homens que podiam ter-lhe serventia, ou para a
concupiscência, ou para o serviço das roças, e o que era inútil, passavam a
396
As técnicas de aldeamento, ou agrupamento de diferentes grupos indígenas, foram das mais diversas. No
geral, o aldeamento deveria comportar no mínimo 150 pessoas, substituir as “ocas” por casas nos moldes
portugueses (a fim de se evitar a promiscuidade), sendo estas bem arejadas com janelas e portas. No espaço
ainda deveria haver um pelourinho para aplicação de justiça e deveria se ensinar o idioma português, no lugar de
línguas nativas. SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores: políticas de povoamento e população na
Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995, p.277.
397
Idem Ibidem, p. 263.
RAPMT, Vol.1, março/Agosto de 1982, p. 47.
399
Idem Ibidem, p.47.
398
164
cutelo ordinariamente como também aos que no caminho mostravam
qualquer repugnância (...).400
Em 1761, em correspondência enviada à autoridade do Cuiabá, o mesmo CapitãoGeneral, Rolim de Moura, ordenara a libertação imediata de indígenas Paiaguá e de todas as
outras nações, que se achavam na condição de cativos (as), baseado na lei de 8 de maio de
1758, que determinava alforria de nativos. 401 No entanto, na mesma carta, o Capitão-General
flexibilizava a sua posição e afirmava que indígenas poderiam eleger sob livre-vontade um
administrador, casa, pessoa ou aldeia, que desejassem habitar.402 Em todo caso, tal carta
implicava que, mesmo com a recorrência de instruções régias que determinavam a
incorporação do nativo como “vassalo” e edição do Diretório, os mesmos ainda continuavam
empregados na condição de cativos na região.
A formação de uma bandeira movida contra os indígenas Kayapós em 1771, anos mais
tarde, também exemplifica a utilização da mão-de-obra escrava indígena. Na ocasião, o então
governador e Capitão-General da Capitania do Mato Grosso, Luiz Pinto de Souza Coutinho,
apresentava como principal justificativa o chamado “direito natural” de prevenção aos
inimigos:
(...) O Direito natural que authoriza aos homens a previnir a seos inimigos,
ainda quando os não tem hostilizado (sic) tão somente eminente risco, lhes
permitte com dobrada força o direito de reprimir os seus insultos por todas
as vias de execução e de força, principalmente sendo os ditos inimigos
salteadores, assacinos e inhumanos, sem cuja destruição e castigo, seria
impossível manter a segurança dos Povos e a firmeza das sociedades (...).403
Ainda chamam a atenção alguns dados sobre a composição da bandeira. O primeiro,
referente à impossibilidade do envio de tropas para a formação da expedição militar, apenas
400
Ibidem, p. 48.
A alvará de 8 de maio de 1758 com força de lei, fazia parte do bojo de uma nova política de colonização na
América Portuguesa, que visava de maneira geral a inserção de indígenas enquanto trabalhadores livres na
economia regional. Anteriormente a esta, a liberdade dada a indígenas já havia sido concedida nas leis de 6 e 7
de junho de 1755 no Maranhão. Especificamente, a inovação trazida pela lei de 8 de maio de 1758, se
consubstancia na implantação de um novo modelo de conversão e cristianização de povos indígenas, e paralelo
fim do sistema de jesuítas. Sobre tal temática ver “O testemunho do tempo, e a prova da experiência” (Capítulo
2), da dissertação de SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na
Bahia (1750-1800). Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de
Pós-Graduação em História, 2012 (dissertação).
402
Na carta de 1761 Rolim de Moura determinava quais seriam as obrigações dos “Administradores” que
quisessem manter nativos “administrados”: “(...) Enquanto Aos salários que os amos devem dar aos índios, o
costume desta capitania é que os ditos amos lhes dão de comer e vestir, lhes pagam as desobrigas despezas de
casamento e enterroros, ensinam-lhes a deoutrinha cristã e os governam não só como amos senão como tutores,
de que os índios tem grande necessidade, pelo curto alcance do seu juízo: a maior parte deles a não ter quem os
domine, dariam em ladrões ou fugiriam para o mato”. RAPMT, Vol.1, n. 1, março/agosto de 1982, p. 50.
403
APMT, Livro de termos Livro de termos de fiança, cartas expedidas e rematações nos Governos de Luiz Pinto
de Souza Coutinho e Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Estante 1, C-07 (1751-1775), 1771.
401
165
de munições e pólvora, em vista da atual “conjuntura” em que se encontravam as tropas da
Capitania. Caberia aos moradores, a formação da bandeira, após convocação. O segundo fator
refere-se à preocupação com os possíveis abusos da campanha: proibia o assassinato frio do
inimigo após rendição e a amputação dos corpos mortos. Estava permitido “apenas” o
incêndio a todas as casas que encontrassem e a contagem dos corpos.404
A continuidade das guerras e apresamento de indígenas mais uma vez ficariam
evidentes nas campanhas organizadas contra os povos Bororos, que habitavam os entornos do
rio Porrudos, nos anos de 1779 e 1781. A primeira bandeira, liderada por Francisco Leme de
Moraes, após preparativos iniciais, partira a uma paragem conhecida como Cruará para
punição de indígenas que atemorizavam os que passavam por aquela localidade. Seguiram
inicialmente pelo rio Cuiabá e adentraram o rio Porrudos, local em que encontraram indígenas
Bororos. Após combate, a bandeira conseguiu aprisionar indígenas de ambos os sexos,
incluindo crianças, e os levaram para Cuiabá, onde foi determinado que deveriam ser
encaminhados para Vila Bela, a então capital da Província. No trajeto, para surpresa das
autoridades e moradores, os Bororos conseguem “arrebentar os ferros”, lutam contra guardas
e conseguem evadir do cativeiro.
405
Após dois anos, uma nova bandeira seria organizada, sob a justificativa de que os
Bororos eram “gentio bárbaro” e “capital inimigo”. Assim como a anterior, seguiu o rio
Cuiabá, adentrou o rio Porrudos e, após combates, aprisionou cerca de 200 indígenas.
Curiosamente, também se repetiu a fuga dos nativos, que se valeram do baixo número de
guardas e dispersão dos soldados:
Foi o cazo vindo em marcha a nsosa gente com os bugres prezos, fizerão alto
para comer; e porque havião suas frutas silvestres, forão-se espalhando os
nossos soldados, sem se lembrarem que vinham acompanhados de inimigos,
ficando tão só mente humas poucas sintinelas tendo sentido, e vigilância
com os Bugres. Assim que estes conhecerão, que os Soldados que estavam
espalhados pelos campos, e matos não podião fácil mente dar adjutório as
poucas sentinelas, que com elles havião ficado, dando hum horrível urro,
imediata mente acometerão de subido, e tumultouzoa mente as ditas
sentinelas, que erão hum João Leme Correa, hum João de Pinho e, outros, e
os matarão , e fugirão, vindosse a perder por cauza daquella bem indiscreta
404
Vale frisar que o incêndio às habitações indígenas era prática comum no desfecho das bandeiras. É o que se
pode observar nos regulamentos editados para formação das expedições militares contra nativos tanto no período
que Mato Grosso e Cuiabá estiveram sob jurisdição da Capitania de São Paulo (1719-1748), como da própria
Província de Mato Grosso.
405
Annais do Senado de Cuyabá, Op. Cit, p. 118.
166
facilidade não só soldados, como tão bem armas que os Bugres carregarão
recolhendosse a Bandeira peior do que foi para o Certam.406
Vários fatos chamam a atenção no que diz respeito às bandeiras organizadas contra os
Bororos, mas por ora destacamos o aprisionamento e encaminhamento de indígenas para Vila
Bela, onde possivelmente seriam distribuídos entre “administradores” ou incorporados às
aldeias. As “guerras justas”, se por um lado garantiam o suprimento extra de mão-de-obra
para os empreendimentos coloniais407 – pois estes indígenas, ao que indica, estariam sendo
encaminhados para o trabalho na fronteira –, por outro, especificamente na região, garantiam
o resguardar da fronteira habitada por cristãos ou indígenas cristianizados e, portanto,
vassalos do rei de Portugal.
Em suma, para se pensar a penetração lusitana e estabelecimento no território que
atualmente compreendemos por Mato Grosso, inevitavelmente precisamos levar em
consideração a existência de numerosas nações indígenas e as relações entre não-índios e
indígenas. Essas relações oscilaram entre conflitos armados e incorporações que visavam
estratégias de povoamento da fronteira408 e, principalmente, a criação de condições para a
exploração mineira na região, que provocou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, diferentes
fluxos migratórios na Capitania/Província de Mato Grosso.
Ao retornarmos às razões que justificaram a realização da bandeira, nos deparamos
com um segundo argumento – o das constantes fugas de escravos que causavam prejuízo.
Considerá-lo nos coloca na posição privilegiada de refletirmos, quiçá, a característica mais
singular da instituição escravista no oeste do território luso-brasileiro, visto que as fugas para
além das fronteiras foram elementos recorrentes na história da escravidão negra que aqui
vigorou desde o seu primórdio. 409
Em todo caso, é preciso enfatizar que o ponto de partida para qualquer análise acerca
da instituição escravista durante os séculos XVIII e XIX na região deve considerar dois
elementos históricos, a saber: o povoamento luso-brasileiro da região a partir das descobertas
406
407
SUZUKI , Anais do Senado de Cuiabá, pp. 123-124.
Tendo em vista as dificuldades de se importar cativos africanos, notórias nas cartas e diferentes
correspondências trocadas entre capitães-generais que governaram a capitania durante o período colonial.
408
Como postula Jovam Vilela da Silva, na sua obra “Mistura de Cores”. Segundo o mesmo, os constantes
fluxos migratórios motivados por descobertas auríferas do sudeste, que trouxeram brancos e africanos,
juntamente com a incorporação de nativos da região, sobretudo os “Bororos”, aos espaços urbanos recémfundados, imprimiram na população local um caráter estreitamente “mestiço”. Ver especialmente capítulo III,
“População nativa incorporada (tapuios)” de SILVA, Op. Cit.,1995.
409
Na seção 4.2. do próximo capítulo, uma analise mais pormenorizada sobre as fugas de cativos na região,
assim como os seus impactos na economia local e relações diplomáticas entre as autoridades de ambos os lados
da fronteira.
167
auríferas e, similarmente, a condição de fronteira. Essa consideração basea-se no fato de que a
mão-de-obra escrava foi deslocada até as minas do Mato grosso e Cuiabá para o trabalho na
mineração,
410
e a condição de guardiã dos domínios lusos na fronteira411 constituiu
justificativa fundamental para o comércio intensivo de negros escravizados para a região, com
o fim de alicerçar o povoamento e viabilizar as atividades mineradoras.
Finalmente, no dia 7 de maio, após realização de dispendiosos preparativos, a bandeira
partiu em busca de cativos evadidos e novas minas. Durante o tempo de pouco mais de um
mês, poucos acontecimentos foram relatados por Francisco Pedro de Mello. Com saída do
porto de Vila Bela, seguiram pelo Rio Guaporé e foz do rio Branco até dia 17 daquele mês,
quando atracaram as embarcações à esquerda do último e lá permaneceram por três dias, com
minuciosas averiguações da região, na expectativa de encontrarem ouro. Em função dos
achados irregulares, prosseguiram a diligência até a chegada de uma confluência de dois
braços em que o rio se dividia. Por lá, permaneceram até o dia 23 e, por constatarem a
impossibilidade de navegar com canoas por ambos os lados, a bandeira decidiu retornar as
canoas para Vila Bela e seguir por terra.
Os vestígios de quilombolas só viriam a aparecer no dia 16 de junho, quando a
bandeira havia se deparado com rastros de gente e fogos, que inicialmente julgaram ser de
indígenas. No encalço rigoroso das pistas, a expedição, que naquela altura contava com o
comandante e 39 homens armados, conseguiu surpreender um pequeno grupo composto por
um negro, três índios e um caburé. Destes, um conseguira escapar e, na sua busca, chegaram
inesperadamente ao almejado Quilombo.
Apesar das tentativas de fuga dos habitantes, a bandeira capturou inicialmente 3
negros e 32 outras pessoas, entre homens e mulheres, sendo índios e caburés. Segundo
Francisco Pedro de Mello, a expedição permaneceu no Quilombo, com o intento de capturar
aqueles que haviam fugido com a incursão, entre os dias 20 de junho e 5 de agosto, além de
realizar rondas nas matas vizinhas à habitação. Transcorridos 15 dias, haviam reunido 54
quilombolas, sendo 6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caburés e 11 caburés do sexo feminino.
Pelo que consta no diário, uma possível origem da composição mista do quilombo se dava nos
remanescentes do Quilombo Grande (ou Quariterê), que havia sido destruído em 1770 e que
410
O que não significa que não pudessem estar empregados em atividades agropastoris, uma vez que a
mineração não se dava ao longo de todo ano, mas apenas em determinados meses do ano.
411
Ver MEIRELES, Op. Cit.
168
se localizava naquela região, assim como no seqüestro de mulheres indígenas Cabixis, ao
longo dos anos.412
Essa composição mista revela uma característica marcante para aqueles que tentam
recomeçar a vida para além da fronteira da civilização: o contato interétnico entre negros
evadidos e indígenas. Antes de uma análise propriamente dita sobre os contatos interétnicos
no interior dos quilombos, vale destacar as considerações de Max Gluckman, antropólogo
associado à escola “dinamista”, acerca do conceito em.413 O antropólogo concebe o contato de
culturas a partir da noção de comunidade, que é diferente da noção de sociedade (unidade
predefinida). Para ele, a comunidade é palco de um conjunto de atores interagindo
socialmente em um dado momento, abrangendo sociedades, classes, grupos étnicos ou
culturas. No ato de contato, os valores são ressignificados e acabam por refletir e incorporar
padrões e símbolos de outras culturas.414 Na sua análise sobre as relações entre zulus e
europeus no norte da África do Sul, Gluckman expõe uma situação social marcada por
cooperação e oposição, a partir da inauguração de uma ponte no distrito de Mahlabatini em
1938. Se, por um lado, em sua observação, os dois grupos cooperam entre si – na construção
da ponte –, por outro, expressam diferenças – diferentes agrupamentos,415 hábitos e até
idiomas, conforme observa o autor:
(...) O desejo dos zulus por bens materiais dos europeus e a necessidade dos
europeus do trabalho zulu, bem como a riqueza obtida por este trabalho,
estabelecem interesses fortes e interdependentes entre os dois grupos. É,
também, uma fonte latente de seus conflitos. No grupo zulu, os polígamos
que precisam de muita terra, homens com grandes rebanhos de gado, homens
que desejam ardentemente a riqueza européia, e outros, constituem
diferentes grupos de interesse. Por isso, a posse de bens materiais diferentes
entre os dois grupos dificulta a diferenciação baseada em critério racial.416
412
Ver capítulo 5 desta tese, que expõe minuciosamente dados referentes à organização, localização e
resistência.
413
A escola antropológica dinamista, segundo Jacó César Piccoli, se desenvolve durante as décadas de 1950 e
1960, na crítica e ruptura com a tradição funcionalista (Malinowski) e culturalista. Tem como principais
expoentes os antropólogos Gluckman e Balandier, que interpretam as demais tendências enquanto “a-históricas”
e reducionistas. Propõem uma antropologia histórica e integrada a fatores sociológicos, psicológicos,
econômicos, ideológicos, entre outros, a fim de se chegar a uma visão mais completa das “sociedades em
contato”. PICCOLI, Jacó César. Considerações sobre as teorias das relações interétnicas. Disponível em <
www.grupos.com.br>. Acesso no dia 24 de janeiro de 2014.
414
MACHADO, Maria de Fátima Roberto. Quilombos, Cabixis e Caburés: índios e negros em Mato Grosso
no século XVIII. Goiania: Associação Brasileira de Antropologia – 25º Reunião Brasileira de Antropologia –
GT 48: Saberes Coloniais sobre os indígenas em exame: relatos de viagens, mapas, censos e iconografias, junho
de 2006, p. 17.
415
Gluckman cita a presença de três agrupamentos tribais no ato de inauguração da ponte: Usuthu, Amateni e
Mandlakazi. Cf. GLUCKMAN, Max. “Análise de uma situação social na Zululândia Moderna”. In:
BIANCO, Bela Feldman. Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1997, p. 236.
416
Idem Ibidem, p. 251.
169
O contato interétnico, mediado por uma confluência de interesses entre os grupos,
seria antes de mais nada um fator constitutivo, na medida em que atuaria como elemento
organizador da situação social. Outrossim, ressalta-se que as diferentes oposições (que até
certo ponto seriam excludentes e hostis, como frisa o autor) comporiam a própria estrutura
social, sendo o “conflito” e a sua superação dois aspectos do mesmo processo social,
presentes em todas as relações sociais.417 No caso do quilombo encontrado pela bandeira, é
notório o fato do contato “interétnico” atuar como elemento constitutivo, a começar pela
possível composição daquele agrupamento, que, como pudemos observar acima, era formado
em sua maioria por caburés.
É importante observar que, para se chegar a uma predominância de caburés no
quilombo encontrado pela bandeira, além da presença de remanescentes do Quilombo Grande,
devemos considerar os contatos culturais entre negros fugidos e indígenas que, assim como os
primeiros, estavam para além das fronteiras. A região do Alto Guaporé, naquele período, era
habitada por numerosos grupos Nambiquaras,418 que tinham como vizinhos os Parecicozárini.419 Todavia, na documentação do período, como a própria diligência, observamos
constantes referências à presença dos cabixi, como podemos notar na descrição geográfica da
Capitania do Mato Grosso, de Ricardo Franco em 1797:
Nas montanhas, serras, matos e campos dos Parecis vivem muitas nações de
índios ainda não domados, de que os mais proximos a nós e conhecidos são
os seguintes: - Cabixis, nação que transita os campos dos Parecis, vivem nas
cabeceiras e matos dos rios Guaporé, Sararé, Galera, Piolho e Branco, entre
417
GLUCKMAN, Op. Cit., p. 267.
Segundo Maria Fátima Roberto Machado, nambiquara se trata de uma identidade atribuída no século XVIII.
Diferentemente dos Parecis, no caso destes não existe uma autodenominação coletiva. Em função da língua
pouco estudada, existe uma dificuldade para identificar os diferentes grupos. Entretanto, a partir de informações
coletadas em pesquisa de campo com os próprios indígenas, foi possível identificar os seguintes grupos:
Aikutesu, Kwalisatesu, Namkutesu, Erahinkãtesu, Alakutesu, Yotusu, Alantesu, Hahaintesu (Manairisu),
Waikutesu, Katithaulu (Sararé), todos no Vale do Guaporé; Sawentê, Yalakaloré, Lacondê (Yalakunté), Sabanê,
Hinkatesu, Latundê, Siwaihsu (Manduca), Nagarotê, Mamaindê, todos na Serra do Norte; Wakalitesu, Kithaulu,
Halotesu e Sawantesu, conhecidos como os Nambiquaras do cerrado. Cf. MACHADO, Op. Cit. pp. 15-16.
419
De acordo com Roberta Carvalho Arruzzo, os parecis ocupam a Chapada dos Pareci há séculos. Já estiveram
divididos em cinco subgrupos: Kaxiniti, Waimaré, Kozárini, Warére e Kawali, com grande variedade de grafias
ao longo dos anos. Atualmente restaram apenas três: Kozárini, os Waimaré e Kaxiniti.Cf. ARRUZZO, Op. Cit.
João Antônio Botelho Lucídio, por sua vez, em recente tese de doutoramento defendida na Universidade Nova
de Lisboa, ao investir o lugar ocupado por ameríndios no processo de conquistas lusitanas entre os rios Paraguai
e Guaporé no final do século XVII à metade do XVIII, apresenta, com base em numerosas documentações, o
Vale do Guaporé repleto de nações indígenas de ambas as margens. A partir de diferentes narrativas, apresenta
um quadro amplo composto por 29 populações que habitavam a “margem oriental” do rio Guaporé no idos da
década de 1740, com as suas características (“dóceis”, “ferozes”, entre outras) e respectivas localizações.
LUCÍDIO, João Antônio Botelho. ‘A Ocidente do Imenso Brasil’: as conquistas dos rios Paraguai e
Guaporé (1680-1750). Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013 (tese),
p. 287.
418
170
os quais se ocultam muitos escravos fugidos (...). - Parecis, antiga nação
dominante dos campos d’este nome, que habitavam as origens dos seus
principais rios que correm para o Tapajoz, e que as incursões, captiveiros, e
emigração causadas pelos portuguezes, quasi extinguiu, devendo esta nação
a sua ruína ao seu valor e pacifica conducta: o resto que escapou se misturou
com os cabixis e mambaras [Waimare] (...) – Mambaré[a]s, com quem se
misturam os cabixis n’um braço do Juruena (...).420
A presença dos Cabixi na região ainda será mencionada em 1848 por Joaquim Alves
Ferreira, na conhecida “Noticia sobre os índios de Mato Grosso dada em ofício de 2 de
dezembro de 1848 ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império”. Nela, o
autor informa que viviam na região os pareci (250 índios), maibarés (400 índios),
Nambiquaras (600 índios), tapanhunas (800 índios) e, finalmente, os cabixi (500 índios).421
Nesse bojo, Maria Fátima Roberto Machado chama a atenção para duas problemáticas
referentes à designação cabixi: a conotação negativa e sua possível origem no quimbundo. Na
explicação da primeira, a autora afirma que, apesar do abandono da utilização da expressão
desde o século XIX, possivelmente a expressão indicava os Parecis e Nambiquaras, com os
quais os negros formavam os seus quilombos no Mato Grosso, no rapto de mulheres e
crianças. Não se sabe ao certo a quantos grupos a designação se aplicou, mas, ao menos pelas
pesquisas etnológicas realizadas por Max Schmidt no início do século XX, é possível
circunscrever que a denominação cabixi foi atribuída aos pareci-kabisi, do grupo cozárini e
aos guainguacuré Aruaquisados, que eram provenientes dos Nambiquaras da região ocidental
da Serra dos Parecis. Em ambos os casos, a designação estava associada a “elementos étnicos
de nível inferior” ou subalternos. Aqueles que faziam parte deste grupo estavam relacionados
à servidão, nos seus diferentes sentidos: servos, vassalos, criados, escravos ou súditos.422
A partir dos relatos de Max Schmidt, é possível pressupor que a relação estabelecida
entre os povos Parecis e Nambiquaras, desde o século XVIII, era permeada de conflitos, que
poderiam ocorrer na demarcação de fronteiras territoriais, no rapto de mulheres e crianças.
Este último ponto, que provavelmente pode ter sido assimilado por quilombolas, aparenta ser
prática comum nas relações das duas etnias supracitadas, como podemos notar no relato que
se segue:
Quando atravessei em 1910 a região da Serra dos Parecis e visitei as
diferentes aldeias dos Pareci-Kabisi, o alto Juruena formava a divisa da
região desses índios com a região dos Guainguacuré, que com eles viviam na
420
Cf. MACHADO, Op. Cit., p. 13.
Idem Ibide, p. 13.
422
Ibidem, pp. 16-23.
421
171
mais feroz inimizade. Mas, por certos dados, ainda se pode verificar e provar
que a região desses Guainguacuré anteriormente se estendia mais para o
ocidente, pelo menos até as cabeceiras do Jauru. Assim me foi assegurado
pelo meu informante, um índio meio sangue que vivia entre os PareciKabisi, de nome José Vieira, que no lugar de sua atual morada, em Calugaré,
existia, ainda não há muito tempo, uma aldeia Guainguacuré. A mesma foi
assaltada pelos Pareci-Kabisi e foi incendiada. Sob a gente de José Vieira
existiam dois irmãos que tinham sido carregados durante esse assalto, após
ter seu pai sido morto na luta. Outro assalto consta ter sido efetuado pelos
Pareci-Kabisi contra uma aldeia Guainguacuré, que teria existido na
cabeceira do Juruena, não longe da atual aldeia Pareci-Kabisi
Hanauihahirtigo. Consta serem ainda visíveis os vestígios de duas casas
destruídas. No ataque foram mortos dois homens e os demais habitantes,
mulheres e crianças, foram carregados. Esses assaltos foram levados a cabo,
como me asseguraram, principalmente para raptar as mulheres e crianças das
tribos vizinhas, inimigas, e o grande número de índios Guainguacuré que
moravam como classe trabalhadora entre os Pareci-Kabisi mostra claramente
que esses encontros, muitas vezes, devem ter sido muito produtivos. 423
Sobre a segunda problemática, referente a possível origem quimbundo da designação
cabixi, vale salientar a observação de Nina Rodrigues. Na sua reflexão sobre a sobrevivência
lingüística dos idiomas africanos no Brasil e da influência exercida sobre o português, notou o
emprego do prefixo “Ca” (ou “Ká”), que no quimbundo exerce a função de “diminutivo do
singular”. O autor exemplifica: “pele” em quimbundo é “kiba”, “pelinha” é “kákiba”;
espingarda é uta, “espingardinha” é “ká-uta”; “cobra” é “niok”, “cobrinha” é “ká-niok”.424
A constatação da origem bantu do vocábulo, como a sua incorporação pelas nações
indígenas Nambiquaras e Parecis e a sua incorporação por portugueses, sugere um intenso
contato cultural entre negros, portugueses e indígenas; notoriamente caracterizado por trocas e
incorporações culturais, sobretudo, nas regiões de fronteira. De todo modo, vale registrar
prováveis vocábulos originários do quimbundo/umbundo que, assim como o cabixi, indicam
contatos interétnicos: caburé e quilombo. O primeiro, praticamente desaparecido de
documentos históricos a partir do século XIX, ao passo que o segundo é largamente utilizado,
principalmente, por autoridades luso-brasileiras durante grande parte do período escravista.
Caburé (ou “caboré” como aparece nos documentos históricos, inclusive, no próprio Diário da
diligência) designa o mestiço de “índio” e “negro”. Provavelmente, de acordo com Machado,
423
SCHMIDT, Max. Die Aruaken: um classic da etnologia sul-americanista. Leipzig: Veit & Comp., 1917.
Disponível
em
<
http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Aschmidt-1917aruaques/schmidt_1917_aruaques.pdf >. Acessado no dia 06/12/2014.
424
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais,
2010,
p.
161.
Disponível
em
<http://www.capoeiravadiacao.org/attachments/382_Os%20africanos%20no%20Brasil%20%20Raymundo%20Nina%20Rodrigues.pdf >. Acesso no dia 15/01/2014
172
o uso do prefixo “Ca” se deve a baixa estatura dos Nambiquaras e Parecis – ambos tinham em
média 1, 60m. Quilombo, aportuguesamento de “kilombo”, como já tivemos oportunidade de
refletir, origina-se do idioma “umbundo”, dos chamados povos Ovimbundus, que habitavam
as regiões que circunscreviam Benguela e parte do seu hinterland. 425
Em outras palavras, ao voltarmos nossa atenção, mais uma vez, para os dados
apresentados no Diário da Diligência e para o perfil dos 54 capturados pela bandeira, nos
colocamos diante do contato multi-étnico peculiar. Contato expresso não somente no perfil
mestiço dos quilombolas – como vimos, uma junção de negros evadidos, com cabixis, que
poderiam ser Nambiquaras ou Parecis –, mas também nos próprios termos utilizados na
narrativa escrita pelo homem branco – o que sugere troca cultural na integração de vocábulos
bantu. Estamos diante de um ponto de encontro de etnias, para além da fronteira, que se revela
como um espaço móvel e dinâmico, influenciando, inclusive, a correlação de forças políticas
no espaço lusitano.
É o que observa Luiza Volpato, após a volta triunfante da bandeira em novembro de
1795. Naquele período, a Capitania, que tinha à sua frente o capitão-general João
Albuquerque, enfrentava uma crise econômica agravada, marcada pela busca de novas
alternativas econômicas na transferência dos recursos da mineração para a agricultura e
pecuária. Ao mesmo tempo em que o governo e comerciantes da capital da Capitania (Vila
Bela) eram pressionados por fornecedores do litoral para o recebimento de dívidas, segmentos
dominantes do Cuiabá eram estimulados, passando esta última a ser o pólo mais rico e
populoso da Capitania. Assim, uma vitória sobre quilombolas naquele contexto ganhava
contornos significativos para a elite política da capitania mato-grossense, como nota a autora:
(...) a vitória sobre os quilombolas representava trunfo político para o
capitão-general tanto no interior da capitania como perante as autoridades
metropolitanas. Vencendo quilombos, o governador vencia um inimigo
antigo e temido. Além disso, a vitória também levantava os ânimos de uma
população extenuada na luta pela sobrevivência em região tão distantes dos
núcleos mais dinâmicos da colônia e que arcava, com muita dificuldade, com
os custos da guerra de fronteira.426
425
No capítulo 1, seção 1.2.3., desta tese, reflexões acerca da origem etimológica e do caráter multicultural da
instituição, ainda em contexto africano.
426
VOLPATO, Luiza. Quilombos em Mato Grosso: Resistência negra em área de fronteira. In: REIS, João
José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, pp. 225-226.
173
Destarte, a partir do Diário da Diligência, fazem-se necessárias as seguintes
indagações: os cativos evadidos que formaram quilombos, na região do Vale do Guaporé, na
segunda metade do século XVIII, se originaram especificamente dos bantus ou havia a
presença dos sudaneses de alguma forma? Em segunda instância, em que medida
permaneceram traços de organização política e elementos culturais no interior destas
sociedades – quilombos – para além das fronteiras internas? A fim de elucidarmos essas
questões, teceremos abaixo considerações sobre as rotas comerciais que trouxeram cativos à
Capitania de Mato no século XVIII e, posteriormente, alguns apontamentos sobre a
procedência étnica dos mesmos.
3.2.Da chegada de cativos: monções
A instituição escravista que vigorou oficialmente no território luso-brasileiro da
chegada dos europeus até 1888 deve ser compreendida a partir das especificidades de cada
região. Diversos fatores imprimem singularidades às diferentes localidades, entre eles a
organização sócio-econômica, localização geográfica e proveniência étnica da população
escravizada. A estes, devemos acrescentar um fato de grande relevância e pouco explorado
pela historiografia: a longa trajetória percorrida até a chegada ao destino final – local de
emprego da mão-de-obra escrava – e, consequentemente, o tempo suportado dentro do
tumbeiro. A Capitania/Província de Mato Grosso, extremo oeste do território luso-brasileiro,
apresenta peculiaridades no que tange a todos os aspectos citados, sobretudo, quando
pensamos a sua localização espacial distante dos grandes centros comerciais do Sudeste.
O elemento distância, desde a edificação dos primeiros agrupamentos urbanos no
século XVIII, percorre de maneira constante a percepção de si, como indivíduo agente de
civilização no sertão, e a percepção do outro – do olhar das autoridades políticas, mercadores
ou aventureiros para aqueles encarregados de protegerem a fronteira e desbravarem novos
horizontes de exploração aurífera. A distância, por vezes, se coloca como barreira para a
chegada do progresso. Numerosas lideranças políticas, viajantes e cronistas observam tal
paradigma,427 entre eles, destaca-se Joaquim Ferreira Moutinho, que em 1869 afirmou:
427
Sobre tais relatos, ver BOSSI, Bartolomé.Viagem pitoresca por los rios Paraná, San Lorenzo, Cuyabá
com La descripcion de La Provincia de Mato-Grosso. Paris Libreria Parisiense Dupray de La Mahérie, 1863;
FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial ao Tietê ao Amazonas de 1825 a 1828. São Paulo: Cultrix, EDUSP,
1977;
174
Matto-Grosso é uma das Províncias do Brasil que mais ricamente forão
dotadas pela natureza; está, porém, situada tão longe, e tão pouco
aquinhoada tem sido pelo Governo na distribuição dos seus favores, que
tudo ali é difficil, e tudo existe no seu estado embryonario.428
Se o potencial natural do Mato Grosso era constantemente exaltado – maravilhas da
flora, fauna, culturas vegetais como cana-de-açúcar, milho, rios piscosos, ouro, diamante,
entre outros –, a distância aliada ao chamado perfil não-empreendedor dos habitantes 429estava
no caminho para o desenvolvimento. Em outras palavras, se a distância era elemento
fundamental a ser considerado por aqueles que viviam ou se deslocavam para o Mato Grosso
em busca de novas oportunidades, para cativos carregados ao oeste brasileiro, ela era fator
indispensável a se levar em conta, haja vista a tortuosa viagem até o destino final e a elevada
possibilidade de mortalidade.
Devemos salientar que entre todos aqueles trazidos a Mato Grosso, principalmente no
século XVIII, vários experimentavam o “tumbeiro” pela segunda vez.430 É o que argumenta o
historiador norte-americano Richard Graham, que, ao analisar o fluxo de tráfico de escravos
interno no Brasil, antes e depois da abolição do tráfico intercontinental em 1850, apresenta
um universo de movimento de cativos africanos considerável. Mesmo que o tráfico interno
tenha se intensificado após 1850 – gradualmente, com maior presença de crioulos, na medida
em que os africanos envelheciam –, Graham menciona numerosos exemplos de africanos
transportados por rotas no interior do Brasil; como a que levava cativos através das “monções
do norte” à capitania do Mato Grosso – Salvador-Maranhão – Pará - Rio Amazonas/MadeiraMamoré –, ou mesmo a rota que deslocou milhares de cativos para Minas Gerais, após as
descobertas de ouro e diamante no século XVIII – em alguns casos os traficantes obrigaram
os cativos recém-chegados da África a marcharem por terra até as minas. Nesse último
exemplo, afirma o autor, entre os anos de 1695 a 1735, Minas Gerais foi transformada, de
uma área quase que habitada por indígenas, para um local povoado por cerca de 96 mil
escravos, sendo 90% de origem africana.431
Portanto, para se pensar quais são os africanos que desembarcam no Brasil e, por
conseguinte, quais eram os africanos que haviam formado quilombos na região do Guaporé, é
428
VOLPATO, 1993, p.23.
A historiadora Luiza Volpato, no seu consagrado “Cativos do Sertão”, apresenta grande fartura documental,
relacionada a discursos de habitantes do Mato Grosso, que teciam reflexões sobre o perfil dos habitantes de Mato
Grosso, como Bartolomé Bossi, que dizia: “A fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo, que ali devia
viver na abundância”.
430
Leia-se, navio negreiro. Faz alusão ao substantivo “tumba”, que designa “pedra sepulcral”, em função da alta
taxa de mortalidade nos negreiros. Ver FERREIRA, Op. Cit., p. 796.
431
GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil.
In: Afro-Ásia, N. 27, 2002, p. 125.
429
175
necessária a concentração nos séculos XVIII e início do XIX, em face do contexto local e
internacional. Em função da documentação fragmentária, a tarefa de afirmar com exatidão o
volume de importação de cativos para o Mato Grosso apresenta dificuldades. Todavia, como
ponto de partida, podemos considerar dois documentos elaborados durante o governo de Luís
Pinto de Sousa Coutinho: um mapa de determinados segmentos populacionais da Capitania de
Mato Grosso elaborado no ano de 1771 (ver tabela 5) e um levantamento geral acerca da
entrada de escravos na capitania desde 1720 até 1772 (ver tabela 6).
No primeiro, para além dos dados referentes à população indígena e à quantidade de
cativos restituídos pela coroa espanhola, são apontadas três rotas comerciais fundamentais que
transferiam escravos à Capitania: via-Pará, Bahia-Goiás e Rio de Janeiro, com predominância
da última, tanto em Vila Bela como no Cuiabá. 432
Quanto ao segundo documento, são informadas duas principais rotas que, divididas em
quatro temporalidades, foram responsáveis pelo suprimento da mão-de-obra escrava na
Capitania, a saber: (1) as primeiras três décadas, desde os momentos iniciais referentes à
fundação do arraial do Cuiabá (1720-1750); o período referente ao governo de D. Antonio
Rolim de Moura, entre 1751 e 1764; (3) o governo de João Pedro Camera (1765-1768); e, por
fim, (4) o período pertinente à governança de Luís Pinto de Sousa Coutinho. Assim como no
documento anterior, é apresentada neste mapa a superioridade numérica da rota via-Rio de
Janeiro - enquanto os cativos provenientes via-norte totalizavam 874, a rota via-Sul atingia a
cifra de 16.606.
De maneira geral, a chegada dos cativos nas minas do Cuiabá e Mato Grosso já havia
se iniciado ainda com as primeiras expedições bandeirantes, responsáveis por achados de ouro
nas margens do rio Coxipó-Mirim, que traziam consigo escravos.
433
Nos anos seguintes, o
fluxo de mão-de-obra escrava se efetivou por duas principais rotas, circunscritas nos
levantamentos supracitados: caminho das monções que partiam do Sudeste (rota sul) e a rota
fluvial entre os rios “Madeira-Mamoré” (rota norte), ativada pela Companhia Grão-Pará, a
partir de 1752. 434
432
Na referida tabela, chama atenção a coluna indicada “mortos por gentio”, totalizando 65 no Cuiabá. Sobre tal
tema, ser a reflexão desenvolvida na próxima seção do capítulo que se segue.
433
Segundo Chaves, tal grupo de escravos, no interior das expedições bandeirantes, esteva subdivido em
diferentes funções: carregadores, cozinheiros, remadores, garimpeiros, pedreiros, carpinteiros e ferreiros. Cf.
CHAVES, Op. Cit., p. 29.
434
Segundo Valderez Antonio da Silva, monção se tratava de uma expedição fluvial com o fim abastecer o
interior do Brasil com viveres, principalmente Mato Grosso. As mesmas tiveram existência durante o século
XVIII até a década de 1830, quando se abrem os caminhos terrestres que ligavam Mato Grosso ao Goiás. Cf.
SILVA, Valderez Antonio da. Os fantasmas do rio: um estudo sobre a memória das monções do Vale Médio
do Tiete. Programa de Pós-graduação em História – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade
Estadual de Campinas, 2004, p.7 (dissertação).
176
As monções que seguiam a primeira rota, após a compra de escravos no Rio de Janeiro
e passagem pelo porto de Santos, partiam do Vale do Médio Tietê, do porto paulista de
Araritaguaba (atual Porto Feliz), e percorriam cerca de 3.500 quilômetros por diversos rios
com numerosos obstáculos – desde pestilências a ataques de indígenas –, até chegarem às
minas do Cuiabá, com viveres, manufaturados e escravos. A rota em si, era penosa, visto que
obedecia à sequência de numerosos rios – Tietê, Paraná, Pardo, Camapuã, Coxim, Taquari,
Paraguai, Porrudos e Cuiabá –, distribuídos entre duas grandes bacias hidrográficas, a do
Paraná e do Paraguai. A ligação entre estas últimas era feita por um trecho terrestre de 14
quilômetros, em que os monçoeiros arrastavam as embarcações por força de bois ou braços
humanos. Ao longo do século XVIII, as constantes mazelas foram descritas repetidamente por
viajantes: risco de febres, insalubridade das águas, escassez de viveres, despedaçamento de
canoas, naufrágio, entre outros. O cumprimento de tal roteiro variava de acordo com o nível
das águas e sucesso da expedição, de modo que poderia se estender de quatro a seis meses
(ver mapa 12).435
A segunda rota, entre os rios Madeira-Mamoré, foi efetivamente liberada em 14 de
novembro de 1752 por meio de uma provisão régia, publicada oficialmente em 1754, após
insistência das autoridades coloniais do Pará e Mato Grosso. Alegavam as mesmas que a
abertura da navegação entre os rios Guaporé, Madeira e Amazonas, propiciaria vantagens
recíprocas para ambas as capitanias, além de maior rapidez na comunicação.
Especificamente, Rolim de Moura, o então governador da Capitania do Mato Grosso,
queixava-se constantemente às autoridades reais acerca do elevado custo de gêneros
comercializados no Guaporé, originários da rota São Paulo-Cuiabá. Ainda em 1751 aventava
de maneira direta os possíveis benefícios que a comunicação entre as capitanias poderia
proporcionar:
A primeira que do Pará hão de concorrer naturalmente muitas pessoas para
aquelas minas. A segunda, que as fazendas e mantimentos do reino vindos
por ali hão de ser mais baratos, o que facilitará a subsistência dos seus
moradores. A terceira, que por aquela parte fica muita mais breve a
comunicação com a corte, donde pode ser socorrida esta capitania com
grande brevidade. E quarta fazermo-nos senhores daquelas navegações436
435
Idem Ibidem, p. 24.
MESQUITA, Ana & VALADÃO, Nyl-Iza. D. Antônio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja:
correspondências. Cuiabá: UFMT/ NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA
REGIONAL,Vol. 1, 1982. (Coleção Documentos Ibéricos, série: Capitães-generais), p. 32.
436
177
No ano seguinte, em carta remetida a Diogo Mendonça Corte Real, no dia 28 de maio,
Rolim de Moura pleiteia diretamente a abertura do comércio pela rota fluvial:
Não haver outro meio para o aumento desta terra mais do que buscar modo
por que se elimina a grande carestia dela. O único que me ocorre é franquear
Sua majestade o comércio com o Pará, pois só por esta via podem vir às
fazendas por preços que façam conta aos seus moradores... A experiência o
mostrou já, por que na ocasião em que aqui chegaram as primeiras canoas do
Pará se venderam os gêneros todos por preços inferiores, que os de Cuiabá437
(CRAIG apud TEIXEIRA, 1998, p. 3).
Vale ressaltar que a seguinte rota, de acordo com o cronista Joaquim Barbosa de Sá,
havia sido descoberta em 1742 por Manuel Félix de Lima, negociante falido que, fugindo dos
seus credores, juntou-se a alguns aventureiros e, com algumas canoas, navegou pelo rio
Guaporé abaixo em busca de populações castelhanas que pudessem passar.438
A rota em si, assim como a percorrida pelas monções que partiam do vale médio do
Tietê, em Porto Feliz, apresentava numerosas dificuldades: a enorme distância com constantes
obstáculos naturais, como as cachoeiras do Madeira, ataques das nações indígenas
Mundurucu, escassez de alimentos, fome; por terra, o perigo dos animais peçonhentos,
formigas, onças e plantas venenosas. O próprio nome do rio – “Madeira” – fazia alusão aos
inúmeros troncos e árvores atravessados no rio que, por vezes, provocavam naufrágios e
mortes. 439
Com a criação da Companhia Grão-Pará e Maranhão, por alvará régio em 7 de junho
de 1755, estabeleceu-se pelo Madeira uma intensa atividade comercial, que garantiu à
Capitania do Mato Grosso o suprimento de gêneros alimentícios, munições, materiais de
garimpo e, principalmente, escravos440
Para além da monumental estrutura da Companhia Grão-Pará e Maranhão, formada
por 1164 ações no valor de 400$000 réis cada uma, frotas compostas por naus de guerra,
mercantes, lanchas, entre outras, ela possuía feitorias e fortes em Cabo Verde, Bissau, Cacheu
e Costa do Guiné, que exportavam, entre outros produtos, escravos à troca de produtos
manufaturados.441 Com a sua extinção em 1778, a rota foi gradualmente abandonada e, em
437
CRAIG Apud TEIXEIRA, Marco Antonio Domingues. “O comércio e as rotas fluviais na sociedade
guaporeana colonial”. In: Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente – Set – Nº 13, Vol. II, 1998, p. 3.
438
RODRIGUES, Nathália Maria Dorado. “A atuação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão na Capitania de Mato Grosso entre 1755 e 1778”. In: “Usos do Passado – XII Encontro Regional
de História ANPUH-RJ”, 2006, p. 6.
439
Ver TEIXEIRA, Op. Cit., p. 6.
TEIXEIRA, Op. Cit., p. 7.
441
Sobre a estrutura da Cia Grão Pará, ver RODRIGUES, Op. Cit., pp. 4-5.
440
178
meados do século XIX, terminou por extinguir-se. O abastecimento da região, com esse fato,
passa a ser realizado novamente, e de maneira hegemônica, pela rota fluvial Rio de JaneiroSão Paulo-Cuiabá.
Contudo, a preocupação com a rota que fora utilizada por décadas pela Companhia
Grão-Pará e Maranhão ainda não deixaria de ocupar as autoridades reais. É o que observamos
na carta régia encaminhada pela realeza ao Capitão General do Estado do Pará, D. Francisco
de Souza Coutinho, no dia 12 de maio de 1778.
442
Na referida carta, orientava-se que o
Capitão-General auxiliasse o Mato Grosso na fundação de povoações, com a criação de
aldeias que pudessem desenvolver agricultura para abastecimento com víveres de
comerciantes que ainda subiriam e desceriam o rio Madeira, a cada 6 meses. Tais aldeias
deveriam primar por uma composição mista, que reunisse brancos, negros e indígenas.
Preferencialmente, para o trabalho na lavoura, orientava-se que o Capitão-General do Pará
importasse cativos provenientes dos Reinos de Angola e Benguela, ou mesmo de outras
Capitanias, a fim de se animar a importação de cativos na região. 443
A carta determinava que os gastos do transporte das monções fossem divididos entre
as duas Capitanias (até a primeira cachoeira, partindo da Capitania do Pará, ficaria por conta
desta última e, deste ponto em diante, sob responsabilidade da Capitania do Mato Grosso).
Além disso, orientava a doação de ferramentas, gêneros alimentícios, instrumentos para
trabalho e até mesmo o empréstimo de 6 escravos, de um ou outro sexo, para aqueles que
quisessem formar aldeias, durante o primeiro ano de residência. 444 Sobre tal “empréstimo”, a
Carta Régia proibia expressamente qualquer atividade de alienação ou comércio dos escravos
concedidos antes do pagamento à Fazenda Real. Estabelecia, ainda, que o interessado só
poderia usufruir do empréstimo se atendesse a determinados pré-requisitos:
(...) Aos escravos não concederei-vos se não aos primeiros doze indivíduos,
que se oferecerem, para principiar a formar a povoação, se forem casados e
mostrarem que são lavradores e que não têm crimes alguns, porquanto
estabelecidos estes, facilmente se atrairão outros sem tanto incoômodo (...)
445
442
“Carta regia encaminhada pela ‘rainha’ ao capitão General do Estado do Pará em 12 de maio de 1778”. In:
RAPMT, Vol.1, n.3, março-setembro de 1987, pp. 37-38.
443
A menção à possível importação de cativos dos reinos de Angola e Benguela só vem a corroborar com os
apontamentos levantados na primeira parte desta tese, de que o comércio entre portos luso-brasileiros e a África
Centro-Ocidental, se fazia de grande intensidade.
444
A carta estabelecia que vencido o primeiro ano de empréstimo, o colono deveria pagar num prazo de 5 anos o
valor dos cativos. SUZUKI , Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, p. 38.
445
Idem Ibidem, p.8.
179
Ademais, para além destas duas rotas comerciais acima apresentadas, é preciso
considerar a existência e importância da terceira rota de entrada de cativos no Mato Grosso e
Cuiabá, especialmente entre o último quartel do século XVIII e as primeiras décadas do
século XIX, a saber: a rota terrestre que partia da Bahia, atravessava o Goiás e finalmente
chegava à Cuiabá. Somente no ano de 1771, conforme observamos na tabela 5, os
“adventícios” via Bahia e Goiás somavam 186, ao passo que aqueles trazidos por via-Pará
totalizavam 93 indivíduos. Ou seja, ao menos naquele momento, esse trajeto poderia ser mais
significativo que a rota norte.
Outrossim, apenas no ano de 1805, por exemplo, os Anais do Senado de Cuiabá
registram a chegada 3 baianos: Joaquim da Silva Prado, com 9 cativos; Jozé Pinheiro, com 25
cativos; e Manoel Dias Gonçalves, com 49 escravos. Além destes, os Anais também
informam que chegou, no mesmo ano, o particular Joze Roiz de Sá do Rio de Janeiro,
acompanhado de 25 escravos. No entanto, sobre este último, não estava especificado se havia
tomado a rota sul ou se seguira a rota terrestre por Goiás.446 Em todo caso, não deixa de
impressionar que, só para o ano de 1805, entraram juntamente com particulares o total de 123
cativos, número maior do que a entrada de cativos via rota norte, trazidos pela Companhia
Grão-Pará, ao longo de todo o governo do Capitão General Rolim de Moura.447
No último quartel do século XVIII, nas instruções de Luiz de Albuquerque para o seu
irmão João de Albuquerque de Mello e Pereira e Cáceres, na qual relata pormenorizadamente
a situação em que se encontrava a Capitania, tanto internamente como externamente
(sobretudo nas relações com as Províncias dos Moxos e Chiquitos, nos domínios castelhanos),
o Capitão-General no §30 do documento também já informava a existência de uma boa
relação entre a Bahia e a região: “(...) Pelo certão do Cuyabá se liga a mesma Capitania com a
de Goyás, e se matem aberto há poucos annos huma boa correspondência com a Praça da
Bahia, pelo que toca ao comercio dos escravos” [grifo nosso]. 448
Em resumo, identificadas as rotas de entrada de cativos na Capitania do Mato Grosso,
é preciso delinear a procedência étnica desses cativos, a fim de que possamos construir uma
visão mais sólida da presença africana na região.
446
447
SUZUKI , Op. Cit., p. 175.
Ver tabela 6.
APMT, Cópia da instrução de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres a João de Albuquerque Mello
Pereira e Cáceres, Estante 1, C-03 (1749-1772). Sobre tal rota, vale salientar que a mesma não é desenvolvida na
historiografia local,que aborda a escravidão na Capitania/Província de Mato Grosso. A mesma ainda carece de
maior pesquisa, para que se tenha dimensão do perfil daqueles que circulavam, tanto comerciantes, como cativos
(procedência étnica, gênero, idade, etc.).
448
180
3.3. Da procedência étnica
A procedência étnica dos escravos trazidos no interior das três rotas obedeceu a
numerosas variáveis, sobretudo, no que tange à região de compra no território luso-brasileiro.
Em dados extraídos de testamentos (1773-1783), o historiador Carlos Alberto Rosa afirma
existir uma predominância de “sudaneses” (“minas” e em menor escala “nagôs”), seguidos de
“Bantus.449 No entanto, se considerarmos os dados informados pelo levantamento realizado
durante o governo de Luíz Pinto de Souza Coutinho (tabela 6), podemos aventar a posição
inversa, de modo que o volume de cativos importados via monções do Sul – como vimos
acima, comercializado do porto do Rio de Janeiro – se mostrou constante, mesmo diante da
atuação da Companhia Grão-Pará, pelo roteiro fluvial Madeira-Mamoré. Mesmo no período
(1769-1772) de maior importação via rota do Norte, é possível constatar a superioridade das
rotas do Sul (quase o triplo, com 1.246 escravos). Assim sendo, podemos levantar a seguinte
questão: se grande parte dos escravos que chegam às minas do Cuiabá e Mato Grosso, no
século XVIII, chegaram ao Brasil pelos portos do Rio de Janeiro, quem eram estes escravos
africanos?
De acordo com Otávio Ribeiro Chaves, os bantus provavelmente chegaram dos portos
do Rio de Janeiro, ao passo que os Minas desembarcaram pela Bahia. 450 A afirmação do autor
corrobora os dados levantados por Nireu Oliveira Cavalcanti, que, entre os anos de 1731 a
1735, verificou a entrada de 21.506 escravos no Rio de Janeiro, oriundos da África Central –
principalmente de Angola, Moçambique e Costa da Mina.451
A seguinte simetria também é verificada por Kátia Mattoso, Mary Karash e Manolo
Florentino. A primeira autora, de maneira panorâmica, afirma que, em função das descobertas
de ouro que se iniciaram no final do século XVII e se estenderam a meados do século XVIII,
a demanda por mão-de-obra escrava triplicou o tráfico intercontinental. Segundo Mattoso,
somente nesse contexto, foram trazidos para 1.700.000 cativos, sendo 1.140.00 da Angola e o
restante da Costa da Mina. Desse total, estima-se que 2/3 foram distribuídos entre as minas de
Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A importação massiva de cativos prosseguiria ainda no
449
Contudo o mesmo autor afirma que a predominância de uma etnia africana sobre a outra, na Província de
Mato Grosso, variou nos diferentes micro-espaços (freguesias, paróquias, vilas, arraias, entre outros) e tempo.
Cf. ROSA, Op. Cit., p. 214.
450
CHAVES, Op. Cit., p. 29.
451
Apud CRIVELENTE, Op. Cit., p. 53.
181
final do século XVIII e início do XIX, com os novos impulsos da produção açucareira e o
advento do café no sudeste brasileiro. Nesse contexto, os principais portos de entrada dos
africanos no Brasil foram o do Rio de Janeiro (570.000), seguido pelo da Bahia (220.000),
Pernambuco (150.000) e Maranhão (40.000).452
Mary Karash, por sua feita, no interior de uma pesquisa volumosa sobre o cotidiano
dos cativos na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 1808 a 1850, inventaria registros de
saída (de portos africanos), de entrada nos portos brasileiros, além de dados referentes a
enterros no Rio de Janeiro, a fim de apresentar a procedência étnica daqueles que chegaram
naquela cidade na primeira metade do século XIX. Nos registros de enterro, por exemplo, a
autora observa a seguinte proporção: no total de 479 africanos enterrados pela Santa Casa da
Misericórdia no ano de 1833, 34 se originavam da “África Ocidental”, 90 do Congo Norte, 91
do norte de Angola, 87 do sul de Angola (sendo dessa quantia 82 identificados como
originários de Benguela), entre outras regiões.
453
Nota-se, nesse arrolamento de dados, a
predominância clara daqueles originários do Centro-Oeste africano, identificados como
Bantus.454
A referida predominância novamente é confirmada na amostra, reunida pela autora,
dos grupos étnicos registrados nos arquivos históricos do Itamarati, junto ao Arquivo
Nacional, pelo Tribunal de Comissão Mista. 455 Percentualmente, Karash apresenta a seguinte
proporção de procedência étnica entre os anos de 1830 a 1852: 79, 7% originária do CentroOeste Africano, 17, 9% da África Oriental, 1,5% da África Ocidental e 0,9 % de regiões
desconhecidas.456
O terceiro autor, Manolo Florentino, na sua pesquisa documental e bibliográfica sobre
o tráfico escravista e sua lógica, assim como as autoras anteriores, discorre sobre a
superioridade dos “bantus” no Rio de Janeiro, entre 1795 a 1830. Todavia, chama a atenção
452
MATTOSO, Kátia. Op. Cit., pp.54-55.
453
Karash subdivide as regiões, da seguinte maneira: Cabo-Verde, Camarões, Calabar, Mina, Nagô, Ussá como
parte da África Ocidental; Congo, Cabinda, Monjollo, Munjolo, Ambaca, Angola, Cabundá, Cacajá, Cassagen,
Muxicongo, Bangala, Luanda, Camundongo, Benguela e Gangella como parte do Centro-Oeste Africano; além
de outras localidades referentes à África Oriental e regiões não-identificadas. Cf. KARASH, Mary. A vida dos
escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras,
2000, pp. 46-47.
454
455
Idem Ibidem, p. 46.
O seguinte tribunal foi estabelecido pelo governo brasileiro e britânico, a fim de pressionarem a supressão do
tráfico de escravos. Após serem capturados a bordo de navios ilegais (década de 1830), os africanos eram
levados ao tribunal, registrados e, posteriormente, colocados sob tutela de influentes senhores do Rio de Janeiro,
haja vista a preocupação de que não resistissem a uma viagem de retorno à África Idem Ibidem, p. 48.
456
Idem Ibide, p. 45.
182
para a predominância na Bahia daqueles africanos originários da África Ocidental. Se, por um
lado, no Rio de Janeiro, a quantidade de cativos trazidos da África Ocidental é praticamente
irrisória (3% entre 1795 e 1811), na Bahia detém maior expressividade. Estima-se que, entre
1650 e 1850, no interior das grandes redes de comércio escravista na África Ocidental,
tenham circulado cerca de 5 milhões de cativos, sendo a maior parte enviada para a Costa do
Ouro e Baía de Benin.457
O Rio de Janeiro, por sua vez, é abastecido principalmente por rotas que partiam de
Angola e Congo, na África Central Atlântica.
458
Segundo Florentino, a partir dos registros de
chegada de embarcações, divulgados nos periódicos do período, é possível afirmar que
aportaram na cidade 1580 navios negreiros. Desse total, vale ressaltar que 24 são estimativas
e um registro não especificou o porto de saída no continente africano. De todo esse fluxo, a
hegemonia de exportação da região se faz com grande clareza: a cada dez navios que saiam
dos portos africanos, oito se originavam da África Central, sobretudo, dos portos de Luanda e
Benguela.459
Destarte, tendo em vista o volume de informações acerca do tráfico transatlântico, é
importante destacar, a despeito dos dados fragmentários, que seja perfeitamente cabível
reconhecer a predominância de “bantus” sobre “sudaneses” na Capitania/Província de Mato
Grosso, uma vez que as rotas provenientes do sudeste brasileiro foram responsáveis por maior
parte do abastecimento de cativos na região, em maior ou menor grau. Nesse bojo, importa
observar que, com a falência da Companhia Grão-Pará e Maranhão, a posição do Rio de
Janeiro, como maior porto fornecedor de escravos para o Mato Grosso, se intensifica através
das relações comerciais com paulistas; estes negociavam escravos no Rio de Janeiro, que
desde o final do século XVIII havia assumido a posição de principal fornecedor de escravos
do território luso-brasileiro.460
457
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 78-79.
458
Além de africanos provenientes da África Central Atlântica, o Rio de Janeiro recebeu, como afirmado
anterior, cativos da África Ocidental (em menor proporção) e, igualmente, da África Oriental. Esta última rota se
expande no limiar do século XIX, conforme Florentino (apêndice 13), fundamentado em pesquisas realizadas no
Arquivo Nacional (Códice 242, Seção de Microfilmes) e nos periódicos: Gazeta do Rio de Janeiro, Espelho,
Volantim, Diário do Governo, Diário do Rio e Janeiro, Jornal do Commércio e Diário Fluminense. Cf. Idem
Ibidem, p. 218.
459
Idem Ibidem, p. 81;234.
460
O Rio de Janeiro, entre 1790 a 1830 recebeu anualmente 17.023 africanos, chegando a ser considerado o local
de maior movimento escravista do mundo. Tal fluxo permitiu ao Rio de Janeiro a distribuição de cativos, via
terrestre ou fluvial, para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e,principalmente, Minas Gerais que foi
responsável por 40 a 60% dos escravos que saíam do Rio de Janeiro Cf. HONORATO, Claudio de Paula.
Valongo: o mercado de escravos no Rio de Janeiro, 1758-1831. Universidade Federal do Rio de Janeiro –
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Programa de Pós-Graduação em História, 2008, p. 62 (Dissertação).
183
A superioridade numérica de “bantus” sobre outras etnias no Mato Grosso também é
tratada em duas pesquisas recentes: a primeira, realizada por Divino Marco Sena, acerca dos
“livres pobres e agregados” na Província de Mato Grosso na primeira metade do século XIX;
a segunda, de autoria de Maria Amélia Crivelente, sobre os casamentos de escravos africanos
na Chapada dos Guimarães, entre 1798 e 1830.
O primeiro autor, a partir dos dados levantados no Arquivo Público de Mato Grosso,
apresenta uma tabela classificatória de escravos de acordo com a descendência ou origem, na
Freguesia de Brotas em 1838.461 Nela, em um universo de cerca de 300 cativos, fica
evidenciada a presença de bantus e sudaneses, com predominância dos primeiros: 15
provenientes de Benguela, 8 originários da Nação Congo, 4 de Moçambique, seguidos de 7 da
“Nação Mina”, 4 Haussás (ver tabela 7).
No levantamento realizado pelo autor, chamamos atenção para predominância de
crioulos: ao passo que reflete a diminuição do fluxo de comércio de escravos para a região,
elucida as possibilidades de sobrevida no interior do sistema escravista na procriação e, em
alguns casos, casamentos realizados à luz das tradições católicas. Sobre este último aspecto, a
investigação realizada por Maria Crivelente, na Serra Acima (atual Chapada dos Guimarães),
apresenta avanços significativos, apesar da autora não se concentrar especificamente no
casamento de “crioulos”, mas sim nas uniões conjugais entre africanos.
Crivelente, na análise dos documentos paroquiais entre os anos de 1798 e 1830,
dispostos no livro de casamentos entre livres e escravos da Igreja Matriz de Santana do
Sacramento de Chapada dos Guimarães, toma o ato de casamento, à luz das tradições cristãs,
como parte da estratégia para construção de uma nova identidade no Novo Mundo, assim
como mecanismo de composição de alianças para obtenção de possíveis benefícios. Com o
fim de desenvolver a sua reflexão, a autora apresenta “Serra Acima” como o grande “Empório
da Capital”,462 que, a partir do final do século XVIII, passou a ser a grande abastecedora da
capital da Província, com a produção açucareira e de viveres.463
Segundo a autora, no final do século XVIII, somente a Freguesia de Santana de
Chapada (Serra Acima) contava com 22 engenhos, 6 monjolos para produção de farinha e
uma população de escravos de 738 indivíduos, entre africano e crioulos. Com o fim iminente
da escravidão, em função das pressões inglesas, contexto das independências nas Américas e
461
A Freguesia de Nossa Senhora das Brotas pertencente ao termo de Cuiabá, contava com uma economia
caracterizada pela criação de animais, lavoura, engenhos de produção de açúcar e aguardente que eram
comercializados em Cuiabá, na primeira metade do século XIX. No total, era formada por uma população de
livres de 1456 e 298 cativos. SENA, 2010, p. 49.
462
Célebre expressão para referenciar “Serra Acima” (Chapada dos Guimarães) de autoria de José de Mesquita.
463
CRIVELENTE, Op. Cit., p. 10.
184
incremento da produção açucareira, o tráfico de africanos conheceu um novo impulso, do
final do século XVIII à década de 1820.464 Tal processo provocou um novo fluxo de cativos
africanos para a região, que haviam desembarcado inicialmente no porto do Rio de Janeiro.
Nesse contexto, de acordo com Alcir Lenharo, ainda no ano de 1797, chegaram à Capitania
do Mato Grosso, entre animais, cargas e camaradas, 200 escravos novos e 40 ladinos.465
Nessa conjuntura, Crivelente aponta que, entre 1798 e 1830, aconteceram 479
casamentos realizados na Igreja Matriz de Chapada dos Guimarães. Deles, 290 eram de
escravos (60, 5%) de notória origem bantu, identificada nas atas de registros de casamento,
que, ao lado do novo nome cristão, especificavam a procedência africana – como Vicente
Congo, Benedito Moçambique, Sebastião Nagô, entre outros.
Dentre os 290 casamentos realizados entre escravos, a autora aponta uma tendência
endogâmica, na superioridade de casamentos entre africanos e africanos: da soma total, 108
(37,2%) uniões conjugais correspondem a africanos e, especificamente, os Benguela
apresentaram maior propensão à endogamia: dos 33 casamentos realizados de africanos da
mesma nação, 13 foram de Benguelas, o que correspondia a 39, 5%, seguidos por Minas, com
oito casamentos (24, 3%).466 A seguinte tendência, afirma Crivelente, revela uma preocupação
comum de estar “entre os seus”, ou seja, entre aqueles que mais se identificavam
culturalmente.467
Em outras palavras, a reunião e cruzamento dos diferentes documentos sugerem, para
além da predominância de uma e outra etnia, a presença de africanos “bantus” e “sudaneses”.
Identificá-los e buscar os rastros que os trouxeram até a Capitania do Mato Grosso significa,
antes de qualquer tarefa, pensar a dinâmica interna do tráfico escravista para o oeste lusobrasileiro, para adiante refletirmos a lógica organizacional e política dos quilombos formados
na região.
***
464
Vale lembrar os acordos bilaterais firmados entre a coroa portuguesa e inglesa desde o início do século XIX,
mencionados anteriormente neste estudo, como o tratado assinado em 1810 que comprometia portugueses à
futura extinção do tráfico de escravos e restringia as atividades comerciais à Costa da Mina e demais possessões
lusitanas. Sobre tais acordos, rever nota 83, da seção 1.1.1. desta tese.
465
Idem Ibidem, p. 11.
466
Crivelente apresenta duas tabelas, ao longo da dissertação, de grande interesse para compreensão da
tendência “endogâmica” entre os cativos: a tabela nº. 7, que expõe de maneira organizada a quantidade de
casamentos entre africanos, africanos com crioulos, crioulos com crioulos, entre outros; e a tabela nº. 8, que se
propõe a explicitar casamentos de africanos da mesma nação, Cf. CRIVELENTE, 2001, pp. 109-110.
467
Idem Ibidem, pp. 109-110.
185
Para finalizarmos nossa viagem junto à bandeira que percorreu o Vale do Guaporé por
cerca de 6 meses no encalço de cativos evadidos e ouro, alguns episódios ainda podem ser
destacados. A fartura alimentícia encontrada nos entornos do quilombo certamente é um fato
de grande relevância. No Diário de Francisco Pedro de Mello, não somente merecem destaque
os elogios à qualidade do terreno escolhido para prática da agricultura – superior às terras
cultivadas no Antigo Quilombo Grande, às margens dos rios Galera, Sararé e Guaporé –,
como a própria variedade do que era cultivado: “(...)plantações de milho, feijão, favas,
mandiocas, manduin, batatas, caraz e outras raízes, assim como bananas, ananazes, aboboras,
fumo, gallinhas e algodão de que faziam panos grossos e fortíssimos com que se cobriam”. 468
Como ressalta Volpato, em um período em que Vila Bela e Cuiabá enfrentavam constantes
surtos de queda de produção, com a fome se alastrando e penalizando a população, não
deixava de impressionar a agricultura bem estruturada e produtiva, que mantinha os habitantes
do quilombo abastecidos.469
De todo modo, após permanecerem por dias acampados nos entornos do quilombo,
com o intento de capturar todos os cativos evadidos da incursão, finalmente a bandeira partiu.
Antes, remete os 54 quilombolas à Vila Bela, que, quando lá chegam, impressionam tanto por
todos falarem português, como pelo fato d’alguns conhecerem rudimentos da doutrina cristã.
Com isso, a captura dos quilombolas passou a representar maiores possibilidades de
povoamento da fronteira, por súditos do Rei e adeptos da fé cristã: houve a organização de
uma grande cerimônia de batismo, que contou com as várias autoridades coloniais e a
presença do próprio Governador, que se tornou padrinho de alguns ex-quilombolas.
Interessante observar a inversão do status de capturados. Como quilombolas, eram
inimigos que deveriam ser subjugados, a partir de todas as razões apresentadas ao longo deste
capítulo – principalmente porque a vitória daria uma sobrevida de entusiasmo e ânimo às
autoridades políticas da Vila Bela e os seus habitantes. Contudo, no momento que “aderem” à
fé cristã e, portanto, se submetem à autoridade real portuguesa, passam a ser considerados
aliados para defesa dos domínios lusos na fronteira. Assim, após batizados, aqueles exquilombolas, metamorfoseados em “cristãos” e “súditos do Rei”, são autorizados a retornarem
à antiga habitação, para fundarem a “Aldeia Carlota”, partindo com numerosas canoas
repletas de mantimentos, grãos, sementes, porcos, patos e galinhas para criação. Pelo descrito
468
469
MELLO, Op. Cit.
VOLPATO, 1996, p.226.
186
no Diário, a expectativa era de que aqueles novos cidadãos pudessem fundar uma habitação
de “futuro próspero e pública utilidade”.470
Outro fator digno de nota disposto no Diário refere-se à continuidade da Bandeira, em
busca de novos quilombos e rotas de exploração de ouro. Logo que enviam os 54 capturados,
seguem a devassa no sertão, nas proximidades dos rios Galera, Sararé e Pindaituba. No início
de outubro, guiados por dois escravos que afirmavam saber onde se localizava um quilombo
às margens do Pindaituba, chegam a um novo acampamento. Este formado por dois
arranchamentos, divididos entre si por cinqüenta passos. Um, comandado pelo negro Antônio
Brandão, com 11 casas, 14 negros e cinco escravos; outro, comandado pelo escravo Joaquim
Feliz, com 10 casas, 13 negros e 7 negras. Assim que obtêm notícias da chegada da
expedição, abandonam o local para formar um novo quilombo a seis léguas do primeiro local,
no chamado “córrego do Mutuca”. Entretanto, serão obrigados a levantar acampamento
novamente, com a aproximação da expedição.
A busca ainda prosseguiria por todo o outubro, obtendo êxito na captura de negros e
cativos evadidos. Na segunda quinzena de novembro, a bandeira retorna a Vila Bela em posse
de 18 escravos. Aqueles que não haviam sido capturados, pelo que consta no Diário, se
entregaram espontaneamente pela impossibilidade de estabelecer novas habitações após a
passagem devastadora da bandeira.
Por fim, após penosos seis meses e meio, a expedição se deu por encerrada. O saldo
final correspondeu à captura de 30 escravos evadidos, destruição dos maiores quilombos na
região, assim como as suas plantações. Contudo, apesar da euforia da vitoriosa campanha
contra os quilombolas, essas mesmas sociedades não deixariam de existir no século seguinte
até as vésperas da abolição da escravatura. 471
Ademais, para além de ser uma possibilidade de reflexão da instituição escravista nas
fronteiras do território luso-brasileiro, o Diário de Francisco Pedro de Mello desvela
possibilidades de pensarmos a fluidez da vida para além das próprias fronteiras, caracterizada
470
MELLO, Op. Cit., p. 15.
Adiléa Benedita Delamônica, na sua pesquisa sobre os quilombos no Mato Grosso no século XIX, baseada na
documentação existente do período, sobretudo, os Relatórios de Presidente de Província, afirma ter existido na
região do Manso diversos quilombos – localizados entre 30 léguas da capital Cuiabá e 14 léguas da Freguesia de
Chapada dos Guimarães -, divididos em numerosos arranchamentos, como o “Quilombo do Cansansão”,
“Quilombo do Bicho”, “Quilombo do Gaia-Gaia” e “Manso”. A documentação pesquisada pela autora informa
ainda que os habitantes desses quilombos estavam subdivididos por funções: “guardiões”, que zelavam pela
segurança da população; “permutadores”, encarregados da compra e troca de gêneros alimentícios geralmente
em Cuiabá; “mineiros”, responsáveis pelo trabalho nas minas de Cuiabá; “lavradores”, que trabalhavam nas
lavouras. Cf. DELAMÔNICA, Adiléa Benedita. “A cor do medo e os seus vários significados: os quilombos
mato-grossenses do Rio Manso (1850-1888)”. In: BORGES, Fernando Tadeu de Miranda; PERARO, Maria
Adenir (Orgs.). Sonhos e Pesadelos na história. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2006, p.130.
471
187
por constantes contatos interétnicos e trocas culturais. Quais seriam as características das
relações estabelecidas, longe dos domínios políticos lusitanos e espanhóis, entre cativos
africanos, crioulos e indígenas? Em que medida indígenas incorporaram costumes africanos e,
inversamente, o que perpassou o Atlântico e orientou a organização da vida social nesses
espaços distantes dos centros políticos ocidentais? Essas são questões que serão retomadas no
capítulo quinto da presente tese. Por ora, enfatizamos que a análise das heranças culturais,
mais do que contribuir para uma visão global da escravidão, permite a possibilidade de
compreender a laboriosa trama humana desses homens e mulheres que, ao serem
transportados de um continente ao outro, do litoral ao oeste luso-brasileiro, tiveram que se reinventar constantemente, ora na fuga e organização sócio-política, ora nas novas relações
estabelecidas em território de nações indígenas.
188
Mapa 11 – De Vila Bela ao Quilombo do Piolho: os rios Guaporé, Branco, Sararé,
Galera e afluentes
Fonte: “Mappa de parte do rio Guaporé, e dos rios Sararé, Galera, S. João e Branco e seus braços”. Disponível
em < http://bndigital.bn.br/acervo-digital >. Acessado no dia 13 de janeiro de 2015.
189
Mapa 12 – De Porto Feliz e Goiás a Cuiabá (caminho fluvial e terrestre)
Fonte: ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados,
MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Graduação em História, 2005
190
Tabela 5 – Mapa dos adventícios e escravos fugidos da Capitania de Mato Grosso (1771)
Fonte: Disponível em <www.cmd.unb.br >. Acessado no dia 25/03/2015. Disponível também em LORDELO,
Op. Cit., p. 113.
191
Tabela 6 - mapa geral dos Escravos que tem enviado nas Capitanias do Cuiabá e Mato
Grosso desde que se descobriram suas Minas conforme as memórias e registros
existentes 1720-1772
Diferentes
Anos
Anos
Importados ImportaSomas Ano comum =
Períodos
comparati- Relatipor via do dos por Via totais
311
vo
aos vos
Pará
Sul
diferentes
períodos
Anos
anteriores a
fundação do
governo
própria da
Capitania
31
Gov.
de
Antônio
Rolim
de
Moura
Tavares
14
Governo de
João Pedro 4
Camera
Governo de
Luiz Pinto
4
Soma total
53
De 1720
à 1750
5.951
8.424
10.775
De 1751
à 1764
117
2.934
3.501
De 1765
à 1768
292
651
943
De 1769
1772
465
1.246
1.741
53 anos
874
16.606
16.480
Neste período
é
que
se
descobrirão as
Minas
de
Cuiabá e Mato
Grosso, e nele
houve a maior
fluência
de
escravos. Bem
entendido que
neste n. e em
todos os mais
sucessivos
e
compreendem
tanto
varões
como fêmeas
assim maiores
e menores.
O comércio de
escravos
importados por
via do GrãoPará
não
principiou no
período desde
Governo,
se
não no ano de
1756.
NB. (...) dos
escravos
vindos pelos
postos do sul
entrarão
em
vila Bela nos
Quatro
anos
descritos.
Fonte: NDIHR, Capitania de Mato Grosso, ano 1773: AHU, doc. 1054 microfilme, rolo 15, cx. 17. Anexo: 2º.
192
TABELA 7: Classificação da População escrava quanto a descendência e/ou origem.
Freguesia de Brotas (1838)
Especificação
Benguela
Caboré
Cabra
Camundá
Crioulo
Hauça
Mulato
Nação
Nação Angola
Nação
Cavanje
Nação Congo
Nação Mina
Nação
Moçambique
Nação
Monjolo
Nação Rebolo
Nagô
Pardo
Tapa
Não
informado
Escravas
0 a 7 8 a 15 16 a
anos
anos1 50
anos
--1
1
1
4
5
3
16
--1
19
12
41
---1
-1
-----1
----
Escravos
Acima 0 a 7 8 a 15 16 a
de 50 anos anos1
50
anos
anos
3
--9
--1
2
-5
3
8
--1
4
12
21
45
---3
--1
----2
-------1
Acima
de 50
anos
2
-2
-2
1
--1
--
----
----
1
1
--
----
----
----
6
5
4
--
--
--
--
--
--
-----4
--7
-1
--7
-1
------
--2
---
--4
----
Total
Nº
%
15
9
42
2
156
4
4
2
2
1
5
3
14
0,6
53
1,3
1,3
0,6
0,6
0,3
1
1
--
8
7
4
2,6
2,3
1,3
3
---
3
1
-3
4
1
4
1
--
1
3
24
1
10
0,3
1
8
0,3
3,5
---
Fonte: Mapa da População da Freguesia de Nossa Senhora das Brotas, 1838, Lata 1838, APMT (Apud SENA,
2010, p. 52)
193
CAPÍTULO 4 - A vida para além sociedade escravista: o trânsito entre
indígenas, espanhóis e o retorno forçado
A vida do cativo no Oeste do que veio a ser brasileiro foi indelevelmente marcada pela
possibilidade de cruzar fronteiras. Não somente as fronteiras políticas entre as coroas
portuguesa e espanhola, mas as ditas “fronteiras civilizacionais” entre aqueles que habitavam
povoamentos luso-brasileiros e tudo aquilo que estava fora, reservado aos domínios do que
era considerado selvagem. No decorrer de todo o período escravista na região, observaremos
constantes idas e vindas, constantes tentativas de se recomeçar a vida para além da sociedade
escravista, individuais ou coletivas, frustradas por diferentes circunstâncias, que acabaram por
forçar, em alguns casos, o temível retorno ao cativeiro.
O capítulo que se segue é uma faceta dessa história, em que ameríndios e africanos
trazidos para as minas do Mato Grosso e Cuiabá são personagens ativos e acabam por
influenciar autoridades coloniais à adoção de diferentes estratégias para se estabelecerem na
região. De maneira geral, a reflexão que aqui apresentamos trata daqueles que cruzaram a
fronteira da sociedade escravista. Com o intento de apresentá-los, balizamos a nossa análise
em três seções. A primeira é construída a partir da necessidade de considerar a presença
indígena no cotidiano do cativo negro que se encontrava no oeste luso-brasileiro, ou que
estava a caminho. Na seção seguinte, tecemos uma reflexão sobre as constantes fugas dos
domínios espanhóis ao longo do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, que
acabavam por forçar a comunicação não somente de autoridades de Capitanias da América
portuguesa, mas principalmente entre autoridades dos domínios espanhóis. Por fim, na última
seção deste capítulo, trataremos daqueles que retornaram por forças maiores, assim como da
promessa de “esquecimento” pelo crime de fuga aos que se entregassem por livre e
espontânea vontade.
A presente análise atravessa diferentes territorialidades, transversal aos povoamentos
luso-brasileiros, hispânicos e, especialmente, alguns dos povos ameríndios que habitavam a
região, a saber: Payaguás, Guaykurus, Kayapós, Bororos, Bakairis, Xavantes e Parecis. Para
tanto, cumpre-nos o dever de situar o leitor acerca das diferentes espacialidades daqueles que
protagonizam a reflexão que ora apresentamos.
Em primeiro lugar, uma observação geral sobre a espacialidade na qual se concentra a
nossa reflexão histórica: se distribui entre os vales dos rios Paraguai e Guaporé (ver mapas 13
194
e 14), “Extremo Oeste” ou a região mais ocidental das possessões luso-portuguesas. De
maneira geral, era caracterizada no período por grande indefinição e vagamente limitada pela
disposição dos rios:
Era a região limitada pelos rios Madeira, Guaporé, Paraguai e afluentes
contravertentes deste e do Rio Grande (Paraná), até o Grande Salto (Sete
Quedas). O Rio Paraná era o divisor da nova Capitania com São Paulo,
enquanto outro Rio Grande (Araguaia) separaria as Capitanias de Goiás e
Mato Grosso, caso fossem confirmadas as circunscrições administrativas,
conforme os perímetros dados às comarcas eclesiásticas das Prelazias. Os
limites com o Estado do Grão-Pará e Maranhão ficaram, também,
indeterminados à época, para posterior estabelecimento.472
No chamado vale do Rio Paraguai, encontrava-se Cuiabá, povoação luso-sertanista, e
todo o conjunto dos seus arraiais. Fundada, como vimos no capítulo anterior, em 1719
(inicialmente na qualidade de Arraial) com a descoberta de ouro no Coxipó-Mirim, foi o
principal foco populacional de não-indígenas em todo vale do Paraguai. Desde a sua
fundação, houve o aparecimento de lavras, arraiais e fortalezas, conforme podemos observar
nos registros coletados pelo historiador Jovam Vilela da Silva:
1719 – Forquilha ou Arraial de N. S. da Penha de França.
1722 – Lavras do Sutil (antigo taque do Arnesto), riacho Prainha.
1724 – Arraial de N. Senhora da Conceição (uma légua de Cuiabá).
- Arraial do Ribeirão (meia légua de Cuiabá).
- Arraial do Jacey (3 a 4 léguas do Coxipó).
- Lavra do Motuca (córrego motuca, acima do Jocey).
- Porto Geral (meia légua da vila).
- Porto do Boralho (Rio Cuiabá) acima).
1725 – Fazenda de Camapoã (varaduro entre os rios Pardo e Taquari – às
margens de um ribeirão homônimo).
1728 – Minas do Alto Paraguai (atual Diamantino).
1730 – Arraial dos Cocaes (atual Livramento).
1734 – Lavras do Brumado (ribeirão do mesmo nome – início das Minas do
Mato Grosso – Rios Galera, Sararé, afluentes do Guaporé).
1736 – Arraial de São Francisco Xavier (próximo ao rio Sararé).
1731 a 1740 – Arraial de Santa Anna, São Vicente, Nossa Senhora d Pilar.
Ouro fino. Lavrinhas (entre os rios Alegre, Sararé e Galera, afluentes do rio
Guaporé).
472
CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EdUFMT, 2004, p. 13.
195
1744 – Arraial de Santa Izabel.
1745 – Minas do Rio Arinos.
- Minas de Corumbiara
1747 – Arraial de N. S. do Parto (no alto Paraguai).
1750 – Minas do Araés ou Amarante (no rio das Mortes).
- Arraial de Santo Antônio (atual Leverger)”.473
Para além da vila do Cuiabá (a partir de 1727) e de todos esses arraiais e lavras, havia
no vale do Rio Paraguai numerosos povos indígenas, com destaque aos Payaguás, Guaykurus,
Bororos, Kayapós, Xavantes e Bakairis.474 Os primeiros povos viviam ao longo do Rio
Paraguai e ocupavam uma extensão navegável de 1000 quilômetros, conquistada na força das
armas.
475
Também eram chamados de “corso”, por serem nômades, viverem em canoas e
sobreviverem de assaltos e recursos do pantanal. Felix Azara, assim os definia como povos de
origem (...) puramente marinera, y dominaba privativamente La navegación del Rio
Paraguay... su union com El Paraná... por esta razon llamaban entonces los guaranis à este Rio
Paraguay, rio de los Payaguás, cuyo nombre alteraron algo los espagnoles”.476
Os Payaguás estavam divididos em dois grupos: os Siacua ou Agace, localizados ao
sul, e os Sariguê, ao Norte. Estes últimos estabeleceram contatos tanto com moradores de
Assunção (domínios espanhóis), como com forças luso-paulistas, no confronto direto,
principalmente, nos caminhos que levavam às minas do Cuiabá.477
Os Guaykurus também habitavam as margens do rio Paraguai e, na parte ocidental,
executavam as suas ações entre os rios Taquari, ao norte, e Jejuí, ao sul. Eram conhecidos
principalmente pela domesticação e uso de cavalos. Já os Kayapós, povos do tronco
473
A lista de arraiais, lavras e povoamentos fornecida por Jovam Vilela, a partir da fundação do Arraial de
Cuiabá em 1719, foi baseada em numerosas fontes coletadas junto à revistas do IHGB-MT, RAPMT, obras de
Virgílio Correa, Joseph Barbosa de Sá e dados dispostos no AHU. Ver SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de
cores: políticas de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá:
EdUFMT, 1995, pp. 45-46.
474
Como veremos adiante, a localização histórica destes dois últimos, Bakairis e Xavantes, estava mais próxima
da Bacia do Araguaia, ao leste do atual Mato Grosso. Contudo, por existirem registros da atuação destes povos
junto às povoações não-indígenas circunscritas aos limites do Cuiabá, os consideramos como atuantes no vale do
Rio Paraguai.
475
Ver LUCÍDIO, João Antonio Botelho. ‘A Ocidente do imenso Brasil’: as conquistas dos rios Paraguai e
Guaporé (1680-1750). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013
(tese), p. 93.
476
AZARA, d. Félix de. Descripción y Historia del Paraguay y del Rio de La Plata. Madrid, Imprenta de
Sandriz, 1847, 2 v. v.I, p. 215 Apud CANAVARROS, Op. Cit., p. 249.
477
Idem Ibidem, p. 249.
196
lingüístico macro-jê, costumavam a freqüentar áreas entre o médio e alto rio Taquari, além de
atuarem junto ao rio Paraná. Assaltavam companhias que vinham por estrada via-Goiás, vale
do rio Pardo ou varadouro do Camapuã (ver Mapa 13), como também efetuaram ataques em
áreas próximos à vila do Cuiabá, como o Arraial Velho, Carandá, Figueira e vizinhanças.
Igualmente, eram conhecidos por serem excelentes marchadores e utilizarem bordunas. 478
Os Bororos ocupavam um vasto território a leste e oeste do Cuiabá (ver mapa 15).479
Apesar da impossibilidade de se projetar de maneira estática o território dos povos Bororos,
por conta das constantes migrações anteriores à chegada dos não-indígenas na região, é
possível precisar, a partir de registros etnohistóricos e etnográficos, que estiveram em uma
área compreendida entre 15º e 20º graus de latitude Sul e 51º e 59º de longitude Oeste de
Greenwich. No total, a extensão territorial poderia chegar a cerca de 400.000 Km². Segundo a
pesquisadora Lisandra Zago, no interior deste quadro, estavam distribuídos da seguinte
maneira:
(...) Sua extensão, de mais de 400.000 Km², atingia a Bolívia, a Oeste, até as
cabeceiras do Jauru e Cabaçal; pelo Rio Araguaia, de ambos os lados, desde
as cabeceiras até as proximidades de Aruanã, onde se iniciava o território
dos Karajá, estendendo-se por Mineiros e a antiga capital de Goiás, ao Leste;
as cabeceiras dos rios Cuiabá e Paraguai, acompanhando o Rio das Mortes
até a atual cidade de Nova Xavantina, ao Norte; as cabeceiras dos rios
Miranda, Taquari, Coxim e Aquidauna, ao Sul.480
Estima-se que tais povos tenham habitado toda essa vastidão por cerca de 1000 anos.
Associados ao tronco lingüístico Macro-jê, a vida dos povos Bororos era movida por um
conjunto de atividades, que compreendia a pesca, caça, coleta, cultivo, artesanato, entre
outros. O etnômio, em si, é uma atribuição de colonizadores,
481
e significa “pátio da aldeia”.
Bordignon especula que a razão provável para se ter adotado esse etnômio se deve ao possível
fato dos primeiros bandeirantes terem observado a contínua repetição da palavra nos cantos e,
por isso, acabaram por utilizar a palavra para designá-los. Colbacchini, por sua vez, afirma
que tudo indica que houve um mal-entendido na chegada dos bandeirantes: entravam nas
478
Idem Ibidem, pp.270-273.
O conjunto de mapas que precisam a localização dos povos Bororos foi extraído da recente dissertação
defendida por Lisandra Zago, na UFMS. Na mesma, poderemos notar a toda a localização junto aos rios, antigas
e atuais aldeias Bororos.
480
ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados, MS:
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Graduação em História, 2005, p. 36.
481
Ao longo da história os Bororos também foram denominados de diversas maneiras: Araés, Aracys,Bóe,
Bororo da Campanha, Bororo do Cabaçal, Bororo Oriental ou Ocidental, Coxiponés, Coroados, Porrudos, entre
outros. Ver ZAGO, Ibidem, p. 24.
479
197
habitações indígenas e eles apontavam para o pátio, repetindo sucessivamente “bororo”,
recomendando que ficassem do lado de fora. 482
A partir dos primeiros contatos com bandeirantes no início do século XVIII, os
Bororos passariam a ser divididos em Orientais e Ocidentais, de modo que os primeiros
seriam aqueles que estariam localizados em ambas as margens do Rio Cuiabá, rios São
Lourenço, Piquiri, Taquari, Alto Rio Araguaia, Rio Garças e Rio Manso ou das Mortes. Os
Bororos ocidentais, por sua feita, estavam fixados a Oeste e Leste do Rio Paraguai, do Rio
Cabaçal à região das grandes lagoas (razão pela qual os que viviam nessa região passaram a
ser conhecidos como Bororo Cabaçal). Segundo Zago:
Viviam às margens dos rios Cabaçal e Jauru, afluentes Rio Paraguai, e
habitavam as planícies do Alto Paraguai, ao norte da foz do rio Cuiabá, até a
altura da atual cidade boliviana de San Mathias, a região das atuais cidades
de Cáceres, Poconé e Barra do Bugres.483
Os Bakairis viviam a leste do Cuiabá (ver mapas 16 e 17) e eram falantes da língua
Karib. A partir de relatos orais coletados, a antropóloga Edir Pina de Barros identificou
constantes migrações e conflitos destes com os povos Mundurukus, Nambikwaras,
Tapayunas, Bororos, Suyas, Parecis, Kayapós, “Canoeiros” e Kayabis.484 Estes últimos, os
mais temidos, eram classificados por Bakairis como “Otonoli” e “Turi”. Os primeiros viviam
na região conhecida como “Sawâpa”485 e os segundos vinham de longe para atacá-los, usando
pintura facial preta de traço contínuo que ia da extremidade da boca até as orelhas. Tais
conflitos acabaram por causar uma dispersão entre o Alto Xingu e o Paranatinga – apenas
uma parte dos que rumaram para o Paranatinga chegou à cabeceira do rio Arinos. Assim, os
povos que marcharam para o Alto Xingu passaram a ser conhecidos por “iduodano” (os da
“mata”) e “sanadwarê” (os do campo) designavam o segundo grupo. Respectivamente, na
classificação de Steinen, seriam os “Bakairis Orientais” e os “Ocidentais”.
482
486
Esse primeiro
COLBACCHINI, A. & VENTURELI, C. Os Boróros Orientais: Orarimodogue do Planalto Oriental de
Mato Grosso. Campo Grande: MSMT, 1942; BORDIGNON, Mário. Os Bororos na História d Centro Oeste
brasileiro (1716-1086). Campo Grande: Missão Salesiana de Mato Grosso/CIMI, 1986; ver também a discussão
acerca do etnômio Bororo a partir de estudos etnográficos, em ZAGO, Op. Cit., pp. 24-28.
483
Idem Ibidem, p. 43.
484
BARROS, Edir Pina de. Os filhos do sol: história e cosmologia na organização social de um povo Karib:
Os Kurâ-Bakairi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
485
O “Sawapâ” era um Salto, que segundo Edir Pina de Barros, estava localizada perto da confluência entre o rio
Verde com o Paranatinga. Ibidem, p. 52.
486
Adiante observaremos algumas situações de contatos entre populações não-indígenas e Bakairis. Pela própria
localização, temos razões para crer que se tratavam dos “Bakairis Ocidentais”.
198
grupo permaneceu desconhecido por não-indígenas até o final do século XIX, quando foram
realizadas expedições nos afluentes do Xingu. 487
No presente capítulo, também vislumbraremos a presença de Xavantes na região.
Estes, que faziam parte do grupo Akuen,488 viveram por séculos no cerrado do centro-oeste,
ocupando uma ampla área que poderia se estender, ao longo de sucessivas migrações, entre os
atuais estados de Goiás, Minas Gerais, Tocantins e Mato Grosso. As primeiras notícias que se
registrariam sobre tais povos entre brancos datam de meados do século XVIII, e apontavam
sua localização entre os rios Araguaia e Tocantins. Em função de epidemias de sarampo que
os havia acometido durante o século XIX e da constante violência que vivenciavam nos
contatos com brancos junto a tentativas de aldeamento,489 passaram a migrar gradualmente
para o atual Mato-Grosso, atravessando o Rio Araguaia. Entre o final do século XVIII e
século XIX, a partir da saída da “Aldeia Pedro III” e criações sucessivas de aldeias Xavantes
– Duaró, Maratobré, Wededze e Tsõrepré –, tal fluxo migratório se faz perceptível, como
podemos observar no Mapa 18.
No que diz respeito ao vale do rio Guaporé, do lado português, destacamos os
povoamentos luso-sertanistas surgidos em torno de Vila Bela da Santíssima Trindade e o
espaço ocupado por indígenas Pareci. Vila Bela, edificada em 1752 (portanto, após a criação
da Capitania do Mato Grosso, em 1748), estava localizada numa região conhecida como Mato
Grosso, ou Alto Guaporé. Por estar mais próxima das possessões espanholas (missões dos
Mojos e Chiquitos e Santa Cruz de La Sierra) e pelas possibilidades de navegação junto aos
rios Guaporé, Mamoré e Madeira, foi construída para ser a capital da recém-criada Capitania.
490
A região do Mato Grosso, em si, era identificada como área florestada, com terrenos
alagados boa parte do ano. Possivelmente o termo teria se originado durante o processo que
levou cada vez mais sertanistas, após terem se estabelecido em Cuiabá, a avançarem terra
adentro atrás de ouro e indígena: no momento em que se encontraram com “matos virgens de
487
BARROS, Ibidem, p. 59.
O grupo Akuen é formado por indígenas Xavante, Xerente, Xacriabá e Acroá. Ver GOMIDE, Maria Lucia
Cereda. Território no mundo A’uwe Xavante. Disponível em <http://confins.revues.org/6888?lang=pt#ftn1>.
Acessado n dia 13 de setembro de 2014.
489
Em 1784, na tentativa de pacificá-los, as autoridades portuguesas criaram o Aldeamento Pedro III, cuja maior
população era formada por Xavante.
490
PRESOTTI, Thereza Martha. Na trilha das águas: Índios e natureza na conquista colonial do centro da
América do Sul – sertões e minas do Cuiabá e Mato Grosso (século XVIII). Brasília: Universidade de
Brasília – Departamento de História, 2008 (tese).
488
199
arvoredo muito elevado e corpulento”. Passariam, então, a chamar a região por Mato Grosso
e, assim, acabou se designando a margem oriental do rio Guaporé.491
Conforme podemos observar no Mapa 19, a ocupação não-indígena da região já havia
se iniciado ainda na década de 1730, com os Arraiais de São Francisco, Ouro Fino e Pilar.
Igualmente, após a fundação de Vila Bela, se seguiram a edificação dos Fortes Nossa Senhora
da Conceição, Príncipe da Beira e Casalvasco.
Os povos Parecis, por sua vez, habitavam, como já tivemos oportunidade de conferir
no capítulo anterior, a região noroeste do atual estado de Mato Grosso, portanto, ao lado das
consideradas possessões portuguesas, especificamente na Chapada dos Pareci. Entre as
características marcantes destes povos, destacava-se a grande importância conferida ao
território para o grupo, amparada no próprio mito fundador dos povos Parecis, no qual o
homem teria surgido da terra, em uma localidade conhecida como “Ponte de Pedra”, brotando
por suas fendas para o rio Sucuri-Winã (Sucuruína, tribuário do rio Arinos). Os subgrupos
parecis seriam originários das relações entre os irmãos e irmãs surgidos da terra.492
No vale do rio Guaporé, no chamado oriente boliviano,493 ainda estavam as missões
jesuítas dos Chiquitos e Mojos, situadas junto às possessões espanholas (ver mapa 20). As
primeiras foram fundadas entre os anos de 1690 e 1767 e chegaram a totalizar 11 missões,
situavam-se no altiplano divisor entre as bacias amazônica e platina; as segundas, que entre os
anos de 1680 e 1767 chegaram à soma de 25 reduções, postavam-se ao longo do Mamoré e
em afluentes dos rios Beni e Guaporé. 494
De maneira geral as missões chiquitanas eram compostas pelos pueblos de San Javier,
Concepción, San Miguel, San Rafael, San José, San Juan Bautista, San Ignacio Zambuco, San
491
ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk
Maria de (orgs.). A terra da conquista: a história do Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003, p. 4042.
492
ARRUZZO, Roberta Carvalho. Construindo e desfazendo territórios: as relações territoriais entre os
Paresi e os não-índios na segunda metade do século XX. In: XII Colóquio Internacional de Geocrítica.
Disponível em < http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/08-R-Carvalho.pdf>. Acessado no dia 12 de
setembro de 2014.
493
Alcides Pareja Moreno, assim define o “Oriente Boliviano”: “(...)Se conoce con el nombre de Oriente
Boliviano una amplia zona de la República de Bolivia, que se extiende desde las ultimas estribaciones de la
Cordillera de Los Andes, hacia el Este, hasta la región del Mato Grosso en el Brasil; y desde los ríos Madera y
Abuná, en el Norte, hasta las llanuras del Chaco Boreal em el Sur. Ocupa los actuales departamentos de Pando,
Beni y Santa Cruz y parte do La Paz y Cochabamba más de 50% del territorio nacional”. Apud LUCÍDIO, Op.
Cit, p. 28.
494
Ver LUCÍDIO (2013), especialmente o capítulo 4. LUCÍDIO, Op. Cit., p. 15; Para uma visão panorâmica,
acerca da localização do oeste brasileiro para com as possessões espanholas, ver o capítulo 1 da dissertação de
LORDELO, Op. Cit.
200
Ignacio de Chiquitos, Santiago, Santa Ana e Santo Corazón. No que diz respeito aos Mojos,
que estavam divididos em três áreas – rio Mamoré, Pampas e Baure –, existiam as seguintes
missões: Nuestra Senhora de Loreto, Trinidad, San Francisco Javier, S. José de Chiquitos, San
Miguel 1, San Pedro, Santa Rosa 1, Exaltación, Santa Ana, Patrocinio de Nª Sª, San Ignacio,
San José, San Francisco de Borja, San Luis, San Pablo, Reys, Concepción, San Joaquin, San
Juan Bautista, San Martin, Magdalena, San Miguel 2, San Nicolás, Santa Rosa 2 e San Simón.
495
Assim como as missões jesuítas dos Chiquitanos e Mojos, ao lado das possessões
espanholas, Santa Cruz de La Sierra também teve grande participação no cotidiano dos
moradores do oeste brasileiro, uma vez que sempre apareceria como um dos principais
destinos dos cativos fugidos das minas mato-grossenses. A cidade, fundada em 1561 pelo
espanhol Ñuflo Chávez que havia partido de Assunção, foi subordinada politicamente ao vicereinado do Peru até 1776, quando a partir desta data passou a compor o recém-criado ViceReinado de La Plata.
No plano da justiça, esteve vinculada à Audiência de Charcas e, no plano religioso, ao
Arcebispado e Província jesuítica do Peru, em lima. Santa Cruz de La Sierra era o ponto mais
interior das conquistas hispânicas e ligava o chamado “Alto do Peru” (atual Bolívia) à
planície amazônica e pantanal. Em função das dificuldades encontradas no local inicialmente
escolhido, após 30 anos, a localização da cidade se modificaria para proximidades do rio
Piraí, onde estava facilitado o trânsito para La Plata, Potossí e Lima. 496
Diante das tantas territorialidades dispostas ao longo dos vales dos rios Paraguai e
Guaporé, como poderemos observar no presente capítulo, a evasão do sistema escravista
poderia significar um imenso horizonte de possibilidades e re-começos, em que
principalmente aqueles cativos trazidos da África deveriam lançar mão de todos os meios
possíveis para sobrevivência, adaptação e confrontação com o “Outro”. A sua identidade
nesse contexto, em vista do constante movimento e em nome de uma vida livre do cativeiro,
estaria sempre disponível para ser negociada ou reconstruída.
495
O mapa fornecido por Lucídio, com datas de abertura e fechamento das missões, e dividido por áreas, nos
permite ter uma dimensão panorâmica da atuação jesuíta no oriente boliviano junto aos Mojos. LUCÍDIO, Op,
Cit,, p. 196. Sobre as missões dos Chiquitos e Mojos, ver também BLOCK, David. La cultura reducionall de
los llanos de Mojos. Tradução de Joseph Barnadas. Sucre, Bolivia, 1997; JUSTINIANO, Oscar Tonelli. Reseña
histórica social y econômica de La Chiquitania. Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, 2004; MEIRELES, Op. Cit.
496
Sobre a conquista do Oriente Boliviano, via-caráter civil e religioso (atuação jesuítica) ver LUCÍDIO, Op.
Cit, pp. 28-35.
201
4.1. As permanentes e inevitáveis relações entre cativos e indígenas: entre as guerras e
assimilações
O cativeiro, para o escravo negro encaminhado para fronteira do Império Português,
poderia significar uma vida exposta aos mais diferentes perigos e infelicidades, desde a
comum violência inerente à escravidão até a morte por fome. Se as condições de vida
poderiam ser de penúria para o homem branco sertanista que estivera na região desde a
descoberta das minas em Cuiabá, sem dúvidas, para o escravo, eram muito mais agravantes497
; ainda mais se pensarmos a situação vulnerável em que se encontravam quando tinham diante
de si, na condição de cativos, homens indígenas em situação conflituosa. Tais contextos o
colocavam diante de uma dupla resistência: ao homem branco que o mantinha sob cativeiro e,
analogamente, aos indígenas, que indistintamente o tomavam como o inimigo a ser combatido
ou, no caso dos Payaguás, como elemento útil para a própria preservação, uma vez que
posteriormente comerciavam os bens saqueados498 com outras nações indígenas e
hispanocriollos de Assunção. 499
A luta travada pelo cativo Sebastião em 1733, da nação Benguela, contribui para
considerarmos a situação desconfortável em que escravos poderiam se ver diante de
emboscadas. Este era trazido juntamente com um grupo de escravos por uma monção de 50
canoas liderada por Jozé Cardoso Pimentel. No momento em que a monção passou a navegar
pelo Pantanal e chegou a um sítio chamado Carandá, foi surpreendida por um ataque
fulminante de indígenas Payaguás. Apesar da prolongada resistência, acabou não resistindo ao
497
Logo nas primeiras páginas dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá é narrada a situação de penúria em
que se encontravam os primeiros moradores das minas de Cuiabá, a ponto de sertanistas serem obrigados a trocar
cativos por alimento: “(...) Chegaram as gentes de povoado este anno com as fazendas podres, pois não sabiam
ainda toldar as canoas; morreram á fome muitos pelo caminho, faltou o milho em toda esta povoação, as gente
vivendo d montaria; não faltava quem desse um negro por quatro alqueires de milho para remir as vidas e pelo
não ver expirar á fome, que todas as horas se viam ir a enterrar, principalmente dos que de novo chegaram de
povoado”. Ver SUZUKI , Op. Cit., p. 51.
498
O que incluía os cativos que conseguissem capturar nas incursões. Sobre este tema, no capítulo que se segue
poderemos vislumbrar casos de escravos negros tomados por indígenas Payaguás após ataques, para serem
negociados noutras ocasiões com moradores de Assunção, na América Espanhola. Ou seja, poderiam ser
percebidos, a depender da nação indígena, como inimigos, ou na qualidade de “moeda de troca”.
499
Aqui chamamos a atenção para as recentes considerações de João Antônio Botelho Lucídio, acerca do
possível sentido da guerra para os Payaguás: ao contrário do que convencionalmente é aceito, de que os seus
ataques pudessem representar a defesa do território ou expulsão dos inimigos, o autor postula, em vista dos
acordos temporários de paz para troca de prisioneiros por mercadorias que subsequentemente trocavam com
outras nações indígenas, a guerra pudesse ser uma maneira de incrementar e preservar a própria sobrevivência.
Assim, o inimigo poderia ser útil, desejado e necessário. Ver LUCÍDIO, Op. Cit.; É igualmente verdade que
nalguns casos escravos negros foram tomados por indígenas, após ataques, para serem negociados noutras
ocasiões, ou seja, poderia ser observados por indígenas da região como “moeda de troca” ou unidade monetária.
No capítulo que se segue, poderemos observar a atuação de indígenas Payaguás no comércio de cativos
capturados na América Portuguesa, junto aos moradores de Assunção, América Espanhola.
202
ataque. Contudo, mesmo diante da queda inevitável, relataram quatro sobreviventes,
Sebastião lutava bravamente:
(...) Achou se no mesmo conflito hum negro por nome Sebastião de nação
Benguella corpulento, e forçozo, peleijou este primeiro de sua canoa com
hum varejão com tanta vantagem, que cada bordoada, que com elle dava, era
hum inimigo morto e vendo que na canoa não esgremia a seo gosto, saltou
para o campo, aonde deo que fazer a turba, que toda cahio sobre elle para o
prenderem, e não matar, e querendo-o amarrar sacaram lhe o varejão das
mãos, porem elle avanssando abrassos, a hum arancou a lingoa, e a outro
torsseo o pescosso, que lhe pós a cara para as costas, thé que a sugeitarão, e
levarão vivo com toda a mais companhia, sem que escapassem mais que
quatro pessoaz, que por terra trouserão a noticia. 500
O relato da luta travada por Sebastião surpreende em vários pontos, como as
estratégias adotadas para manter a peleja – vendo a impossibilidade de lutar junto à canoa,
saltou para o campo – e a sua descomunal força, que foi capaz de arrancar a língua de um,
torcer o pescoço de outro e avançar somente com o poder dos braços sobre o inimigo. Nota-se
que Sebastião não se tratava de um cativo sem prática de luta e, possivelmente, já havia sido
“iniciado” na prática militar.
Como tantos outros, a documentação não informa o ano de entrada do cativo no Brasil,
mas podemos conjecturar, com base no contexto maior que se apresentava, que muito
possivelmente Sebastião tenha sido capturado no sertão de Benguela, em terras dos povos
Ovimbundus e Imbangalas, local onde haviam os chamados “quilombos”, ou campos de
iniciação, como observamos anteriormente. Muito provável que tenha sido posto em cativeiro
no final da década de 1720 e trazido, posteriormente, para a América Portuguesa junto ao
porto do Rio de Janeiro, encaminhado para São Paulo, que detinha o controle sobre quem
entrava ou saía do Cuiabá,501 para finalmente ser enviado às minas recém-descobertas.
Como tivemos oportunidade de expor antes, o sertão de Benguela (principalmente, nos
entornos do Presídio de Caconda) enfrentava grande instabilidade na década de 1720, com a
recorrência não somente de “guerras justas” para produção de cativos, como de guerras
500
501
SUZUKI , Op. Cit., p. 67.
O historiador Jovam Vilela da Silva, ao investigar uma série de bandos e regulamentos publicados pela
governança da Capitania de São Paulo nos idos das décadas de 1720 e 1730, constatou uma série de tentativas de
controle do fluxo de habitantes para as minas de Cuiabá. Segundo o autor, nesse contexto foram criados vários
registros que “(...) tinham a incumbência de controlar a migração pendular, mercadorias e ouro. Neles
funcionava também um provedor que tinha a responsabilidade de gravar o número de indivíduos e de seus
respectivos servos e escravos. As penas fixadas para quem fugisse do recenseamento e ou não declarasse pessoa
livre ou forra nas comitivas foram estipuladas, em certo período, com multa de 40 oitavas de ouro. Essas listas
censitárias eram anuais e divulgadas em todas as freguesias, nos locais mais públicos, ‘a fim de estimular o zelo
dos fiscaes delatores dos indivíduos que omitissem os nomes de seus escravos’, podendo incorrer quem o fizesse
a uma multa ‘de uma libra de ouro’ (128 oitavas)”. Ver SILVA, Op. Cit., pp. 36-37.
203
travadas entre sobas da região.
502
Aqueles que eram capturados ao longo dessa campanha, se
“corpulentos”, como Sebastião, eram comercializados como escravos e enviados para o Novo
Mundo.
Não se sabe ao certo qual foi o destino de Sebastião, se foi morto em outra
circunstância, comercializado por Payaguás posteriormente ou assimilado de alguma maneira
pela sociedade que o capturara, mas certamente a luta que travara era motivada pela própria
sobrevivência. Em todo caso, a documentação referente ao século XVIII, nas minas do Cuiabá
e Mato Grosso, nos apresenta um universo repleto de situações similares, em que o cativo
poderia se ver dentro de uma peleja tanto no caminho ao cativeiro como no próprio. Em
1725, por exemplo, os Annais do Senado de Cuiabá informam um poderoso ataque dos
Payaguás, que resultou na ruína da monção capitaneada por Diego de Souza, com a morte de
600 pessoas que se dirigiam a Cuiabá em 20 canoas. Escaparam apenas um branco e um
negro:
(...) Vindo neste anno gentes de povoado para estas minas, capitaneando
Diogo de Souza um troço de canoas, em conserva, em que trouxe bastantes
suas, com muita fazenda e escravatura; foi acommettido do gentio Payaguá,
junto a barra do Xanés, onde acabaram todos os que vinham na conserva,
escapando um só branco e negro, que foram tomados por outras canoas que
vinham atraz. O numero de canoas havia de ser vinte com o melhor de 600
pessoas (...).503
Pelo que dispõe a descrição, com exceção do negro que conseguiu escapar, toda a
escravatura pereceu. Em 1731, os Annais do Senado de Cuiabá voltariam a informar a captura
e morte de cativos junto aos ataques dos Payaguás. A primeira situação se passou em um
ataque a um sítio chamado de “Arrayal Velho”, descrito como um local onde se achava muita
gente fazendo pescaria. Na ofensiva, além das várias mortes, foram capturados tanto cativos
como até mesmo homens brancos, como um certo Antonio Furtado, natural do Rio de Janeiro.
504
No mesmo ano, outro episódio ganharia as linhas dos Annais: um camarada, cujo nome
não é informado, havia induzido cativos de Miguel Antonio de Soaveral e João Lopes Zedas à
fuga, por meio de canoas. No caminho da evasão, fugitivos e aqueles que os perseguiam
502
Lembramos que no capítulo 2 desta tese, apresentamos uma situação de grande instabilidade na década de
1720 no sertão de Benguela, onde são aprisionados africanos e até mesmo os seus chefes políticos, para posterior
comercialização com mercadores escravistas do Rio de Janeiro. Sobre a expansão da produção de cativos no
reino de Angola e Benguela, ver Mapa 4.
503
SUZUKI , Op. Cit., p. 52.
504
Idem Ibidem, p. 65 [1731].
204
foram surpreendidos por um ataque Payaguá e todos pereceram. Miguel Antonio perdeu 10
cativos e João Lopes Zedas tomou o prejuízo de 5. 505
Os ataques prosseguiriam ao longo do século XVIII e, em todas as situações, entre as
vítimas, estariam contabilizados cativos negros que possivelmente estivessem mais
vulneráveis, primeiro por estarem presos a ferros e, em segundo lugar, por ser proibida a
posse de armas. Em 1743, por exemplo, observamos um bando publicado por Dom Luiz de
Mascarenhas, governador da Capitania de São Paulo, que proibia a posse de armas para
escravos sob a justificativa de que acabavam por causar desassossego, transtornos e desaforos
aos moradores da Capitania, com pena de prisão. As armas em questão seriam as baetas,
espingardas, facas, porretes, espadas, entre outras. É interessante registrar que a posse estava
proibida não somente aos negros, mas se estendia a carijós,
506
bastardos e mulatos. Estes
últimos, embora pudessem ser contabilizados no bojo da população escrava,
507
também
poderiam aparecer como parte da população livre, como fica evidente no registro de um
confronto travado entre um mulato que vinha da Capitania de São Paulo, juntamente com a
sua mulher, e indígenas em 1736:
Manoel Rodrigues do Prado mulato fusco natural da Villa de
Pindaminhangaba da Capitania de S. Paulo a quem chamavão nesta Villa
Manduasú, vinha este por pilloto de huma canoa com sua mulher tam bem
mulata junto a si; cercou-os o Gentio entrou aos tiros com elles, carregando
lhe a mulher as armas, e elle a fazer pontarias, que não errava com tanto
exforço, valor e presteza, dando rizadas, e asenando aos infiéis que
guegarem, que os atemorizou e fés a retirar, e postos elles em fuga, ainda
mandou remar a canoa, e deo sobre elles matando a muitos. Era o mulato
fusco corpulento, estremado em forças, e vallor,foi nestas Minas Capitam do
Mato muitoz annos, e ultima mente morto por hum vil soldado, que nada
valia508
Além de vir à Capitania na condição de livre e acompanhado da sua esposa, que
durante a peleja carregou as armas, ainda se tornou Capitão do Mato e acabou por ser morto
505
Ibidem, p.65 [1731].
Carijó foram populações indígenas que habitaram a Capitania de São Paulo e outras localidades do sudeste,
como a Comarca de Vila Rica, em Minas Gerais. Produtores de cerâmica, são associados à matriz lingüística
macro-jê. A expressão também foi largamente utilizada para designar a miscigenação entre indígenas, negros e
brancos, assumindo uma conotação aproximada ao “Caboclo”. Ver BARBOSA, Waldemar. Dicionário
Histórico Geográfico de Minas Gerais. Itatiaia: Belo Horizonte, 1995; LOURES OLIVEIRA, A. P. P.
Arqueologia e história indígena de Minas Gerais: os Carijós de Vila Rica. In: LOURES OLIVEIRA, A.
P.P.; MONTEIRO OLIVEIRA, L. (org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais: Ouro Preto, Juiz de Fora:
Ed. UFJF, pp. 155-164.
507
Ver Tabela 7 do capítulo anterior, são contabilizados 4 escravos mulatos na população cativa da Freguesia de
Brotas em 1838.
508
SUZUKI , Op. Cit., p. 70 [1736].
506
205
por um soldado. De qualquer maneira, provavelmente, se tal mulato estivesse numa condição
análoga àquela que cativos eram trazidos desarmados, a sua história poderia ter outro final.
Cativos, no escopo das relações conflituosas com indígenas, poderiam ocupar uma
posição menos vulnerável, caso fossem recrutados para punição de indígenas junto às
bandeiras. Em 1731, uma expedição militar foi organizada para atacar indígenas Payaguás. A
campanha contou com imensa frota de guerra e entre os recrutados estavam brancos, pardos e
pretos. A perseguição não foi exitosa, como se esperava, pois os Payaguás na fuga se
aproximaram de aldeias cristãs na Província do Paraguai, e, temendo desrespeitar o regimento
enviado pelo governador de respeito às fronteiras com a coroa espanhola, o cabo da armada
ponderou e recuou. 509 Contudo, alguns indígenas foram capturados:
(...) e tendo as o Brigadeiro Seguroz prendeo huns, que consigo trousse, e a
outroz mandou cortar as mãos e orelhas, dizendo lhez, que se fosem mostrar
aos seus cassiques, e aos Payogoas seoz amigoz. Feito isto voltarão dando
afunção por acabada.510
No ano de 1734, a presença de cativos negros também ganharia lugar em outra
bandeira, movida contra os mesmos Payaguás. Esta, mais estruturada que as anteriores, foi
iniciada em agosto de 1733 no porto de Araritaguaba; partiu com 400 homens de guerra,
chegando em Cuiabá em março de 1734, para dar início aos preparativos finais. É importante
pautar no regimento de 1733 511 que, entre as suas principais justificativas, assumia a tarefa de
desobstruir o caminho que ligava São Paulo às minas do Cuiabá. Alegava que os Payaguás
atrapalhavam o trânsito das monções, causavam insegurança no Vale do Paraguai, roubavam,
matavam e capturavam sertanistas e cativos, além de causarem o despovoamento da região.
Nos parágrafos que detalhavam a organização da bandeira, vários pontos chamam a
atenção, a começar pelo §8 que afirmava que todos aqueles encontrados ao longo do caminho
da bandeira deveriam ser aprisionados e transformados em cativos por quem participasse da
expedição, com a destruição subseqüente das suas aldeias. O §11, por sua vez, menciona o
nome de outros personagens que obstruíam o caminho das monções e causavam problemas,
apesar da primazia que deveria se dar à destruição dos Payaguás:
O Gentio que se deve dar guerra He todo os que infesta os caminhos e minas
do Cuyaba, pois em todo elle extinçao as suas estençao e roubos, sendo os
primeyos os Cayapos, que tem as suas aldeyas de outra parte do Rio grande
509
LUCÍDIO, Op. Cit., p. 107.
SUZUKI , Op. Cit., p. 65.
511
APMT, Manuscrito, Estante 1, C-02, 30 de agosto de 1733.
510
206
defronte da Barra que faz o Rio Tiete e por ser de(sic) este gentio chega a
Camapua e outras partes e por não demorar a viagem da tropa e monção se
deve reservar a guerra q se (sic) fazer para afim castigando-fe em primeyro
lugar os Payaguases e todos os feus confederados, que senhorio o Rio
Paraguay, passagem principal das nossas tropas e destridos (sic) inteiramente
se deve continuar a guerra entre os mais gentios que infestam as minas do
Cuyaba e seu caminho a que chamao Bororos dos morros pelas mortes que
tem feito aos moradores das dittas minas (...) [grifo nosso]512
Pelo que consta nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, a bandeira partiu com 28
canoas de guerra, 80 de bagagem, 3 balsas-casas e 842 homens, entre brancos, pardos e
negros, divididos em 3 regimentos.513 O saldo final foi avassalador: 266 indígenas capturados
e repartidos enquanto cativos e 600 mortes.
Além da possibilidade de serem utilizados em bandeiras contra indígenas, cativos
também poderiam ser recrutados para engrossarem as fileiras militares para proteção da
fronteira, contra possíveis ameaças espanholas. A constante solicitude do morador Jozé Paes
Falcão demonstra tal situação. Ele chegou a armar os seus escravos em duas ocasiões, para
socorrer a fronteira da coroa portuguesa. Na primeira, em 1763, armou 30 homens, sendo 20
cativos considerados os melhores, conforme registra os Anais do Senado de Cuiabá:
(...) armou de todas as armas, e aprontou de tudo o necessário a trinta
homens, entre os quaes se compreehendião vinte escravos dos melhores,
mais alentados, e rezolutos, e debaixo da direcção de hum cabo todo o tempo
que durasse a guerra, mas todo o mais que bem lhe parecesse, o que cm
effeito se efectuou chegando todos a salvamento da dita Fortaleza, de onde
agradecço o mesmo General em seo nome, e de sSua Magestade por carta de
3 de outubro de 1763.514
No ano de 1766, o mesmo morador voltaria a socorrer a Capitania, dessa vez, com 40
soldados, sendo 24 pretos. Nos Anais, afirma-se que chegou à Vila Bela no dia 4 de maio
daquele ano, para socorrer a cidade dos possíveis ataques espanhóis.
515
Jozé Paes Falcão
vivia nas lavras dos Cocaes, que estavam a 5 léguas além do rio Cuiabá. Decerto, a sua
capacidade de mobilização de cativos para proteção da fronteira estava atrelada à sua fama de
conseguir extrair grandes “cabedaes de ouro” das suas minas.
Ao retornarmos as nossas atenções às incursões Payaguás, ao contrário do que se
defendia após a bandeira de 1734, que afirmam que haviam sido extintos, em 1736, voltam a
512
Idem Ibidem, §11.
Na narrativa dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, afirma-se que até padres se somaram à bandeira,
para rezarem missas dentro das balsas. SUZUKI , Op. Cit.,, p. 68.
514
Idem Ibidem, pp.93-94 [1763].
515
Idem Ibidem.
513
207
aparecer com novos ataques e, nas décadas subsequentes, realizam novas ações que também
levariam à morte de cativos.
Os Kayapós, mencionados no regimento para o ataque aos Payaguás na bandeira de
1734, de forma semelhante, ganhariam cada vez mais espaço no escopo das preocupações de
sertanistas. No Regimento Geral dos Governadores, escrito em janeiro de 1749 e
encaminhado a Dom Rolim de Moura, além de mencionar os contínuos problemas que os
Payaguás continuavam a causar (no §16), os Kayapós eram descritos como inimigos odiosos
ao longo do §17:
Em toda o vasto Pais que medeia entre o Paraguai e o Paraná, ou Rio Grande
se acha vivendo o Gentio Caiapó que He o mais bárbaro e alheio de toda a
cultura e civilidade que ate agora se descobrio no Brazil. As continuas
ostiliddes com que infesta os caminhos de S. Paulo para Goias, e para a
Cuiabá, e até a mesma povoações do Goias, me obrigarão a mandar
ultimamente se deliberasse em huma junta de Missoes no Rio de Janeiro se
devia fazer lhe guerra e dispor os meios com que se haveria de executar o
caso que se julgasse indispensável.516
No mesmo regimento, apareceria ainda uma menção aos Parecis, que, ao contrário dos
Payaguás, Kayapós e demais povos que atacavam às monções que rumavam ao extremo-oeste
do Império Lusitano, eram descritos como povos úteis à coroa, principalmente no que diz
respeito ao povoamento da fronteira. O documento apresentava uma crítica ao proceder dos
sertanistas para com estes povos:
(...) Nas terras que medeiao entre o Cuiabá e o Mato Grosso se encontrão há
alguns annos a nação dos Indios Parecis mui próprios para domesticarse, e
com muitos princípios de Civilidade e outras naçoens de que poderiao teser
formado aldeãs numerozas e uteis, e com muito desprazer soube que os
sertanejos do Cuiabá não só lhes destruirão as povoações, mas quase
totalmente tem dissipado os mesmos Indios com tratamentos indignos de se
praticarem por homens Christaos. Por serviço de Deos e meu, e pela
obrigação da irmandade, deveis por o maior cuidado em que não se tornem a
cometer semelhantes desordens, castigando severamente os autores delas, e
encarregando aos Ministros que pela sua parte e mande, reprimao
vigorosamente tudo o que neste particular se houver feito, ou ao diante se
fizer contra as repetidas ordens que tem manado neste matéria. 517
Ou seja, a depender dos objetivos e disposição das populações indígenas que se
encontravam na região para com a movimentação luso-paulista (sobretudo, comercial),
haviam dois caminhos: a espada ou a domesticação. No caso dos Parecis, por uma
516
517
APMT, Manuscritos, Estante 1, C-03, 1749,
Idem Ibidem, §18.
208
necessidade de proteção da fronteira, estava reservado o aldeamento.518 Por essa razão, o
documento apresentava críticas à escravidão de tais povos, que desde a década de 1730 eram
comercializados às “escâncaras” na praça do Cuiabá. 519
Os Bororos também figurariam entre aqueles que obstacularizavam o estabelecimento
luso-paulista na região, apesar da oscilação de estratégias para com estes povos.
520
Foram
atacados tanto pela necessidade de mão-de-obra como pelos assaltos praticados. Assim como
os Parecis, também foram comercializados como escravos. É o que afirma Virgílio Noya
Pinto:
(...) a preação de índios (...) existiu paralela à mineração. O trabalho nas
lavras cuiabanas diferiu, na paisagem humana, de suas congêneres das
Gerais e dos Goiases, pela presença índia. A ‘Relação’ de J. Barbosa de Sá
fornece informações sobre a existência de escravidão índia naquelas minas...
Em 1727 diz que elementos do Cuiabá ‘botaram-se para o sertão do gentio
Bororo, outros para os Parecis, que então se descobriram de onde traziam
indivíduos de uma e de outra nação que vendiam como escravos (...).521
Entretanto, apesar das bandeiras organizadas contra Bororos, apresamento e
comercialização, em 1737, já haveria polêmicas acerca das ações movidas contra estes povos,
conforme observamos na carta do Ouvidor da Comarca do Cuiabá, João Gonçalves Pereira,
que admitia a escravidão de Payaguás e Kayapós, mas condenava o apresamento dos Bororos:
(...) Consta-me que no decurso da referida viagem aprisionou o dito capitão
Antonio de Pinho Azevedo e seus camaradas bastante gentio Bororo, e que
por justificação que fizeram nos Goiases de ser o dito gentio guerreiro e
confederado Caiapó se julgaram cativos todos os que aprisionaram e com
efeito vi um bando do Conde de Sarzedas governador desta capitania em que
se declara o dito gentio cativo mas os fundamentos dele são, tão leves; como
é falsa toda e qualquer justificação que fizessem de ser o dito gentio Bororo,
ou outro qualquer confederado com o Caiapó, e na dita comitiva foram
vários paulistas que todo o seu empenho é aprisionar e cativar gentio, e
julgariam como interessados e atendendo a que tudo isto foi uma malsinada
falsidade e tão prejudicial como tirar a liberdade natural de Deus deu a este
índios e aqui nestes sertões, não há gentio que mereça cativeiro mais que os
Paiaguá e Caiapó que por tal está declarada uma e outra nação conforme as
518
É preciso também considerar o ponto de vista Pareci no interior dos jogos de interesses, assim como as
distintas estratégias aplicadas de acordo com os seus respectivos interesses. Para uma leitura crítica da agência
indígena entre os vales do Paraguai e Guaporé, ver a crítica de Lucídio a Uacury Bastos, que intentou a
compreensão da presença portuguesa e espanhola e, principalmente, a atuação indígena no vale do Paraguai, que
acabou por bloquear a expansão da colonização na região. Segundo Lucídio, o autor ao atribuir o sucesso da
presença portuguesa na região, em função da “habilidade de cooptação”, teria esvaziado o sentido e diferentes
estratégias indígenas durante o processo. LUCÍDIO, Op. Cit., p.238 e ss.
519
Sobre o tom diferenciado para com os Parecis, ver CANAVARROS, Op. Cit., p. 269.
520
Lembramos ao leitor acerca das incursões contra indígenas Bororos nos anos de 1779 e 1781 no Rio
Porrudos, descritos aqui nesta tese como “capital inimigo”, no capítulo 3, seção 3.1.
521
PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo. Companhia Editora
Nacional, 1979, p. 72.
209
ordens de Vossa Majestade resolvi atalhar pelo modo possível o pestífero e
antigo costume do cativeiro do gentio mandando fazer um edital que
modere o dito bando porque com a publicação dele porá este cativeiro no
maior auge (...) [grifo nosso]522
A posição para com os Bororos, durante o século XVIII, continuaria a se modificar, de
acordo com numerosas variáveis. Entre elas, a falta de fileiras militares para submissão
violenta de todos os povos que se colocavam no caminho da comunicação entre as minas do
Cuiabá e Mato Grosso (a partir de 1748); a necessidade de suprir mão-de-obra em função das
dificuldades de se levar escravos negros à região; ou mesmo pela disposição dos Bororos, que
ora se colocavam como inimigos, ora ofereciam alianças. Em 12 de outubro de 1742, por
exemplo, nota-se o estabelecimento de “alianças militares” com Bororos, quando o Coronel
Antônio Pires de Campos obrigava ao Capitão-General de São Paulo, D. Luiz Mascarenhas, a
lançar todos os meses os “seus Bororos” contra os Kayapós que habitavam os sertões de
Goiás.
523
Em 1742, outra aliança militar, agora para o combate contra os indígenas Acroá,
Xacri e outros que fustigavam mineiros ao norte de Goiás.
524
Já no ano de 1748, os Bororos
acertam nova participação em campanhas contra Kayapós, com o coronel Antônio Pires de
Campos, e ainda acertavam o próprio aldeamento. 525
A despeito dessa aproximação, até o final do século XVIII, ainda haveria notícia de
ataques de Bororos aos sertanistas e aos seus cativos, juntamente com Payaguás e Kayapós.
Somente no ano de 1771, os Anais do Senado de Cuiabá informam, no mês de março, a
recorrência de dois ataques, nos dias 10 e 21; este último o mais poderoso, por levar à morte
44 indivíduos. A maioria das vítimas era parte da população cativa:
(...) em dia 10 de março se vem não só no Rio Cuyabá abaixo na paragem
chamada o Cruará, asaltados os seos habitantes do inimigo Payagoá, de
quem tantas vezes temos falado, que prizionarão alguns escravos, e Indios
que acharão, e consigo levarão, mas também na tarde do dia vinte e hum do
mesmo mês, pouco antes de se por o sol, do Gentio Barbaro Cayapó ou
Bororó como querem outros, sobre o eu diremos a seo tempo, na paragem
chamada Lavras do Medico, distante desta Villa seis legoas, em cujo conflito
forão mortos quarenta e quatro indivíduos a saber três brancos, e cujos
522
RAPMT, Carta do Ouvidor da Comarca de Cuiabá João Gonçalves Pereira, de 1º de setembro de 1737. Vol.1,
N.1, março/agosto de 1982, p.45. Sobre a “ausência de justificativa” alegada pelo Ouvidor na citação,
lembramos a contenda de 1727 em torno do presídio de Caconda, em que o Provedor da Fazenda Real acusava o
governador de Benguela de não ter procedido legalmente no conflito. João Gonçalves Pereira, Ouvidor da
comarca do Cuiabá, ao denunciar o apresamento dos Bororos, estaria com “El Rei na barriga”, ao desconsiderar
as alianças e necessidades locais?
523
D.I. AESP, São Paulo, v. XIII, 1895, p. 259 Apud CANAVARROS, Op. Cit., p. 266.
524
Nesse caso, os Bororos recuaram na aliança, receiosos de não mais poderem retornar às terras de Cuiabá.
Idem Ibidem, p. 266.
525
Segundo Canavarros, ao se comprometerem ao aldeamento, concediam vitória ao “sertanismo cuiabano”.
Ibidem, p. 267.
210
nomes sam = Jozé Rodrigues de Almeida = Jozé Luis Francisco = e
Francisco de Campos que suposto valerozos, não poderão rezisitir a este
inopinado acazo, por ser de subido, e acharem se dezarmados, e 41 escravos,
de diferentes donos, sendo delles o mais prejudicado Antonio Luis da Rocha,
hoje Capitam mor destas minas, de quem forão oito alem de quatro feridos
que escaparam, consta da devassa que se tirou com data de 26 de março de
1771 que se acha no Cartorio do Geral desta Villa.526
No relato, chama atenção a justificativa das mortes dos três brancos: ataque de
“subido” e por se acharem “dezarmados”. A partir dessa descrição, podemos imaginar a
circunstância vulnerável em que foram surpreendidos os 41 escravos que pereceram. Como
não podiam portar armas, sempre estariam mais expostos à morte. Nota-se ainda que
escaparam do ataque 4 escravos, mas feridos. Os Anais não informam detalhes das
circunstâncias da fuga destes últimos.
527
Logo após o ataque, foi organizada uma expedição punitiva, ainda no dia seguinte. Ela
partiu no encalço dos indígenas, contudo, não obteve êxito. Todavia, sucedidos alguns dias,
chegara uma notícia sobre os possíveis rastros dos indígenas procurados, um grande cemitério
formado por “caveiras”, possivelmente de quilombolas:
(...) foi embora praticando todas as mais hostilidades, que costuma, e que
matou na retirada muito mais gente porque passados alguns dias depois do
sucesso, correo nesta Villa que em certa paragem se acharão muitas caveiras
de gente, por onde se collige ser algum quilombo de negros fugidos, que
matarão e destruirão.528
Esse episódio nos coloca diante de mais um aspecto dos contatos entre cativos e
ameríndios na fronteira dos domínios lusitanos: mesmo para além da fronteira da sociedade
escravista, agrupados e, em tese, mais protegidos, cativos poderiam ser atacados
coletivamente, tanto por incursões constantes de Capitães do Mato529 como por populações
indígenas. A sobrevivência de um quilombo, longe da sociedade escravista, no sertão do
526
527
SUZUKI , Op. Cit., p. 97.
Tal vulnerabilidade pela ausência de armas voltará a aparecer em vários trechos da documentação consultada,
como em 1776, em que um ataque de indígenas (não especifica a nação), além de dizimar o roceiro Antonio
Vieira de Brito, famoso por ser aquele de maior tráfico no Rio Cuiabá, levou à morte 16 escravos. Entre as
explicações que procuravam dar conta à tragédia, os Anais destacavam o fato do roceiro feitorava os seus
escravos sem a presença de “camaradas armados”. Ver Idem Ibidem.
528
Idem Ibidem, p. 97.
529
Constantes bandos emitidos para regular a atividade dos Capitães do Mato. Mais adiante, na segunda seção
deste capítulo, discorremos sobre o assunto. Em todo caso, vale acrescentar que a seguinte constância nos leva a
pressupor que estes, os Capitães do Mato, tinha presença ativa nos sertões de Cuiabá e Mato Grosso, em vista da
demanda por captura de escravos fugidos.
211
Cuiabá e Mato Grosso, portanto, dependeria da capacidade de defesa ou até mesmo da
possível relação com as nações indígenas vizinhas, ou com a própria sociedade escravista. 530
Cerca de 30 anos após esse episódio, no ano de 1798, a história de um cativo
capturado que vivia entre ameríndios nos levaria a outro quilombo destruído por indígenas. O
cativo, pelo que consta nos Anais, era propriedade de Ignacio de Sam Paio Couto e havia
fugido do seu senhor e se abrigado junto às terras dos Bacari. Em certa feita, no Engenho do
Sargento Mor Antonio da Silva de Albuquerque, próximo ao Rio da Casca, foram vistos tais
ameríndios nos arredores. Por temor de possíveis hostilidades, pressentidas por camaradas e
escravos do engenho, de acordo com o documento, o grupo de indígenas foi atacado e, como
resultado, conseguiram a prisão de um Bacari e um cativo negro fugido, que acompanhava o
grupo. 531
Após dois anos, teríamos novas notícias desse cativo, que ainda se encontrava na
prisão. Segundo o mesmo, haveria um grande quilombo no mesmo sertão onde fora preso –
notícia confirmada por um índio “Chavante”. Tal notícia ocasionou a formação de uma
bandeira, que seria liderada pelo Joze Luis Monteiro Salgado, tendo como guia o próprio
cativo delator que, até então, estava na prisão, com a missão de capturar todos os fugitivos. 532
Os Anais não especificam a troco de que o cativo delatou outros que estavam fugidos e
também não informa o que aconteceu com o mesmo após o desfecho da expedição, mas
podemos supor que possivelmente fosse a própria liberdade. Aqui, podemos aventar
questionamentos acerca da delação premiada: não se sentiria mais identificado com outros
cativos que haviam fugido do sistema escravista? O contato e aceitação aos indígenas Bacari
lhe causaram modificação na própria percepção de si? Ou, apenas desejava a liberdade e, para
isso, se fosse preciso, utilizaria de todos os meios possíveis, incluindo a entrega ao cativeiro
de outros escravos?
A ausência de maiores informações sobre o seu destino nos limita as constatações
mais amplas. Entretanto, certamente o contato e aceitação aos “Bacari” provavelmente deve
ter impresso marcas na própria percepção de si, se partirmos do pressuposto de que toda
formação identitária é um processo de hibridização ou, como diria Stuart Hall, um lugar de
530
No capítulo 5
uma análise dos Quilombos no sertão de Cuiabá e Mato Grosso. Possivelmente o Quilombo Grande perdurou
por quase um século por estar localizado próximo aos Parecis, povos menos ofensivos que os Kayapós,
Payaguás, etc.
531
Idem Ibidem, 1798, p. 157.
532
Idem Ibidem, 1800, p. 160.
212
constante revisão de referências, normas e valores, onde o antagonismo e ambivalência se
fazem presentes em todo processo de tradução cultural (de uma para outra).
533
Tanto no caso
deste cativo ser crioulo ou africano, ao transitar de uma sociedade para outra, se via em pleno
processo de “tradução cultural” ou hibridação, o que implica dizer que estava em constante
“re-significação de si”.
Em outra instância, esse caso também demonstra que, a depender do território e nação
indígena, o encontro poderia ser diferente, ou seja, a aceitação ou adesão ao outro em lugar do
conflito. Vale notar que, no relato de 1800, a mesma nação indígena que aceitou o cativo
aparece grafada como “Abacairi”, o que nos leva a aventar que estes eram os povos Bakairis,
que ocupavam um território a leste do Cuiabá. Tais povos, apesar de se auto-denominarem
“Kura”, que significa “nossa gente”, foram designados por “Bakairis” por não-índios,
possivelmente por serem consumidores tradicionais de uma variante de mandioca, que levava
a mesma designação. O primeiro registro de que se tem notícia é a menção de Antônio Pires
de Campos aos mesmos, no século XVIII. 534
Em todo caso, o desfecho da expedição em busca dos quilombolas nos levaria
novamente à notícia de uma nova devassa de indígenas contra cativos fugidos. Ao seguirem
os rastros indicados pelo negro informante, depararam-se com um antigo acampamento em
ruínas e supuseram que se tratava de mais um quilombo devassado por indígenas, no caso, os
“Chavantes”.535 Então, para não retornarem sem ‘nada’, a bandeira se lançou contra os
Abaicaris e Chavantes, considerados culpados, e levaram-nos para Cuiabá. Na capital, foram
distribuídos entre moradores, para facilitar a “catequização”.
536
Contudo, a adaptação não se
fez de maneira fácil aos Abaicaris, que estranharam alimentos e acabaram por desenvolver
“dezinterias incuráveis”, o que ocasionou a morte de alguns.
Se, principalmente nas décadas de 1720 e 1730, os Payaguás protagonizaram os
ataques àqueles que se dirigiam às minas do Cuiabá, assim como a alta mortandade de cativos
junto às monções que rumavam para a região, no último quartel do século XVIII, os Kayapós
533
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 52.
534
TUAKANE, Isabel Teresa Cristina. Na trilha das Pekobaym Guerreiras Kura-Bakairi: de mulheres
árvores ao associativismo do Instituto Yukamaniru. Universidade de Brasília – Centro de Desenvolvimento
Sustentável (CDS), 2013 (dissertação), p. 20.
535
Certamente a grafia “chavante” se refere aos povos xavantes, que viviam entre o leste da Capitania de Mato
Grosso e o oeste de Goiás.
536
Em vista da necessidade de mão-de-obra, que motivou inicialmente a busca de cativos aquilombados, o
apresamento destes indígenas talvez tenha sido uma maneira de compensar os esforços e sanar provisoriamente o
problema.
213
e Bororos aparecerão com frequência cada vez maior nos Anais do Senado de Cuiabá. Para se
ter uma ideia ampla da mortandade de cativos, somente na década de 1770, pereceram 76
cativos, a maioria em ataques de emboscada, que dificilmente deixavam rastros.537 Se tais
números conferem com a realidade que vivenciavam os moradores que habitavam Cuiabá no
período, não surpreende o pânico na descrição dos ameríndios no período: “(...) Assim como
aos febrecitantes, não há agoa que sacie, pois quanto mais bebem mais apetecem, assim
paresse, devemos, considerar os nossos inimigos bárbaros, porque quanto mais matão, mais
querem matar, e o preseguem a fazer”.538
Nota-se na descrição, além do pânico, um tom de preocupação. De qualquer maneira,
o pesquisador deve se mostrar atento às possíveis “valorizações” dos números de ataques por
parte de sertanistas que se encontravam na região, como estratégia para justificar recompensas
e direitos a privilégios. Sobre esse ponto, ao analisar a documentação que narra as guerras
contra os Payaguás, o historiador João Antônio Botelho Lucídio chama a atenção para as
possíveis razões que poderiam justificar a “valoração” dos relatos:
(...) Uma primeira hipótese é que defendiam suas vidas e patrimônio. Em
segundo plano, entrariam questões de ordem política e projeção social.
Basicamente seriam dois os tipos de ‘ganhos’: justificar muitas das medidas
adotadas pelas instâncias governativas e administrativas do Cuiabá, às vezes
contrárias as determinações de Lisboa; e, com propósitos similares, no plano
das disputas internas, visavam legalizar a situação dos seus plantéis cativos
de negros da terra. Era também oportunidade de requisitarem honras,
patentes, cargos e outras mercês por serviços prestados junto à sua coroa.539
A despeito da verossimilhança dos números apresentados nas narrativas, os ataques
prosseguiriam com mortes de cativos e subsequente apresamento de indígenas. Em 1773, um
caso que vale menção. Naquele ano, ocorrera um ataque de indígenas que causara grande
mortandade aos cativos negros de Antonio Ferreira Velho. Então, formou-se uma bandeira,
que seria capitaneada por Pascoal Delgado Lobo e partiria para aplicação de castigo aos
Bororos, a quem se atribuía a culpa. Ao desembarcar no Rio Porrudos, surpreenderam-nos e
efetuaram uma grande prisão, com cerca de 80 indivíduos, entre homens, mulheres e crianças.
Contudo, os Bororos não assumiram a autoria do ataque e acusaram os indígenas Kayapós. 540
537
Lembrar que na tabela elaborada pelo Capitão-General Luís de Sousa Coutinho, somente para 1771 foram
mortos 65 cativos nos arredores do Cuiabá. Ver tabela 5.
538
SUZUKI , Anais do Senado da Câmara do Cuiabá, Op. Cit., p. 102.
539
LUCÍDIO, Op. Cit., p. 106.
540
SUZUKI , Op. Cit., p. 102 [1773].
214
Novas bandeiras ainda seriam realizadas contra indígenas Bororos, como vimos
anteriormente (1789 e 1781), e contra os Kayapós, com ataques e mortandade da população
escrava; esses ataques estiveram presentes no imaginário e cotidiano da população local até o
final do século XVIII. Em 1787, por exemplo, os Anais informam dois ataques. No primeiro,
é relatada a morte de 3 cativos na roça de José Roza Cordeiro Leal, e os Kayapós apareciam
como as principais suspeitas, em vista da área de atuação: “(...)que dese do sertão do Caminho
de Goyases pela serra à planises que ficão entre ellas e o Rio Cuyaba (...)”. 541 O segundo
ataque ocorreu no dia seguinte, com a morte de 5 pessoas, sendo 4 crianças entre as vítimas,
pelo que dispõe a descrição dos Anais.542
Ainda na década de 1770, teríamos mais um poderoso ataque, que também levaria a
população cativa à mortandade, por parte dos Guaykurus. Estes habitavam ambas as margens
do Rio Paraguai. À esquerda, no lado ocidental ou espanhol, nos idos do século XVII,
estavam à frente da cidade de Assunção, com a qual mantiveram contato, assim como também
estabeleceram relações com habitantes da Província de Tucumán.543 Na parte oriental, a sua
respectiva área de influência se dava entre os rios Taquari, ao norte, e Jejuí, ao sul.544
Conhecidos por utilizarem cavalos desde o século XVII,
545
eram poderosos inimigos na área
em que estavam estabelecidos, e “(...) quando investiam, nada sobrava, principalmente se
acompanhada de tropel de boiadas”. 546
Os Guaykurus eram conhecidos da população da região, principalmente pela memória
do traumático episódio de 1740. Nessa ocasião, colonos tentaram aproximação, na
organização de uma expedição que contou com 140 homens, 12 canoas de guerra e 6 de
bagagem, armas, petrechos e fazendas para presentear-lhes,
547
além de um filho de um
cacique aprisionado em emboscadas anteriores, para mediar a comunicação.548 A expedição já
era objeto de discussões desde o ano de 1736 e fora financiada pelo Senado da Câmara, o
541
Idem Ibidem, p. 135.
Ibidem.
543
Lucídio tece uma análise capilar dos primeiros contatos com estes povos, como foram percebidos por
hispanocriollos e luso-paulistas, de ambos os lados do rio Paraguai. Ver especialmente capítulo 2 da tese
LUCÍDIO, Op. Cit.,pp. 77-92.
544
Otávio Canavarros também discorre sobre a percepção lusitano-paulista dos Guaykurus. Ver
CANAVARROS, Op. Cit., pp. 259-262.
545
Segundo Canavarros, em 1661, na migração no lado ocidental do Rio Paraguai, especificamente à frente de
Assunção, para o norte, roubaram cavalos e éguas dos colonos que encontraram e assim tornaram-se cavaleiros.
Idem Ibidem, p. 259.
546
Ibidem, p. 260.
547
Ibidem, p. 262.
548
LUCÍDIO, Op. Cit.,p. 91.
542
215
ouvidor João Gonçalves Pereira, Antônio de Almeida Lara e alguns comerciantes da vila. O
desenrolar dessa história seria inesperado e trágico:
Uma vez alcançado o “distrito dos Aicurús”, foi despachado o linguará e
dois soldados para declarar as intenções do grupo. Por segurança, os demais
membros aportaram numa ilha. O primeiro encontro entre o cabo da
bandeira e o cacique Guaykuru foi animador, pois trocaram presentes,
acordaram em fazer guerra aos Payaguá e negociar cavalos, e ainda
“plantou-se ahy huma crus aclamouce em vozes altas: Viva EL Rey de
Portugal”. Ao findar o dia de boa paz, recolheram-se a seus respectivos
acampamentos.
No dia seguinte, confiados e gananciosos, os membros da bandeira passaram
à terra firme com as suas mercadorias e puseram-se a negociar com os
Guaykurus, que, por seu lado, haviam urdido uma trama e, seduzindo os
soldados com promessas de trazer cavalos, tomaram as armas que se
achavam enterradas e “introu a matar nos nossos que andavaó com elles
baralhados”. Os homens que ficaram na ilha dispararam a peça de artilharia,
o que pôs os Guaykuru em fuga, deixando cinqüenta mortos entre os
membros da expedição e, dos índios, cinco. Destroçada, a bandeira retornou
a Cuiabá.549
O ataque do último quartel do século XVIII, propriamente dito, ocorreu no ano de
1778, por meio de uma emboscada que surpreendeu soldados que estavam desarmados. Na
narrativa do episódio, ainda ficava evidente o trauma com os Guaykurus:
(...) Estando assim nestes termos, e tendo a des armas, que havião levados os
dês soldados que forão de guarda ao dito Ajudante postadas em terra, e
cobertas por ordem do mesmo Ajudante, afim de que se capacitassem
aquelles malévolos, que não desconfiavamos delles, e só apetecíamos a sua
correspondência, e amizade, ao mesmo tempo, que elles nunca largarão das
que uzão que consigo então tazião, neste tempo, em que mais que
descuidados nos achavamoz das antigas traiçones daquelles cruéis,
barbaroz, e diabólicos inimigos, chegão os lingoas que havião estado no
Prezídio com o Commandante e immediatamente que elles aparecerão, como
se fossem senhas destinados para o cazo, sem mais outra alguma cauza,
repentina mente descarregarão aquelles péssimos, e infames trahidores toda
a sua furioza ira contra nossos Soldados, que se achavão dezarmados, e entre
elles, e em breves instantes matarão cicoenta e quatro Pessoas (...) [grifo
nosso].550
Dos 54 mortos, 10 eram cativos. Após o ataque fulminante, degolaram uns, despiram
outros e partiram apressadamente a cavalo, pelo que dispõe a narrativa dos Anais. Alguns
anos depois, esse temor e trauma retrocederiam, principalmente com os acordos de paz da
549
550
Idem Ibidem, pp. 91-92.
SUZUKI , Op. Cit., pp.111-112.
216
década de 1790. 551 No ano de 1800, por exemplo, consta o relato de uma visita ao Capitão da
Vila do Cuiabá, por indígenas Guaykurus. 552
No interior desse quadro amplo que nos é apresentado tanto nos Anais como nas
correspondências de Governadores e demais autoridades do período, em que são mencionados
numerosos ataques e alta mortandade, de sertanistas e de escravos, a dúvida sobre a exatidão
das mortes informadas nos leva a elucidarmos as próprias estratégias coloniais para
dominação. E elas estariam alicerçadas na construção do “medo” do Outro. Essa dúvida nos
direciona também para a análise da própria tessitura do discurso colonial, fundamentada
basicamente na produção de conhecimento sobre o colonizador e colonizado, no
reconhecimento e posterior repúdio às diferenças de ordem racial, culturais e históricas. 553
Tal construção do discurso colonial, de acordo com o diaspórico indiano Homi
Bhabha, opera principalmente por “fixidez” e “estereotipação”. A fixidez consiste em um
signo, que conota ordem imutável de desordem e degeneração ou repetição demoníaca. O
estereótipo, por sua vez, como estratégia discursiva, opera pelo estabelecimento de
ambivalências (diferenças), na formação de marginalizações para produção de efeitos de
verdade acerca do outro. O fato deste último operar por ambivalência garante-lhe a sua
repetição em diferentes conjunturas históricas e discursivas mutantes.554 Retomando as
descrições dos indígenas, nos Anais e Correspondências de Governadores acima
mencionados, que se lançavam contra as monções e povoados recém-estabelecidos,
principalmente no século XVIII, observamos justamente um Outro nativo que, caso não se
permitisse alianças, submissão ou aldeamentos, poderia ser tomado ou estereotipado
fixamente como “bárbaro”, “selvagem” e degenerado. A despeito das especificidades
históricas do período analisado, entre o século XVIII e primeiras décadas do XIX, o Outro
que não se curvasse deveria ou poderia ser eliminado. As menções aos Payaguás, Kayapós,
Bororos, Guaykurus, Bakairis e Xavantes nas décadas de 1730, 1740, 1770.1780 e 1790 se
dão nesse sentido.
551
Ver FERREIRA, Alexandre Rodrigues. “Sobre o gentio Guaikuru”. In: Viagem filosófica pelas Capitanias
do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Brasília: C.F.C., 1974; CORRÊA FILHO, Virgilio. As raias
de Mato Grosso (Fronteira Meridional). São Paulo, 1924, 4vol., v. 1, p. 131; CANAVARROS, Op. Cit.,p.
262.
552
SUZUKI , Op. Cit., p. 166.
553
Aqui nos valemos das reflexões do diaspórico indiano Homi Bhabha, da obra “Locais da Cultura”,
especialmente no seu capítulo III, intitulado “A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso”,
em que o mesmo tece uma análise da construção do discurso colonial à luz das obras de Franz Fanon. BHABHA,
Op. Cit.,pp. 105-127.
554
Idem Ibidem, pp.105-106.
217
Contudo, é preciso elucidar a própria característica paradoxal do discurso colonial: ao
mesmo tempo em que se afirma no Outro uma “cisão subversora”, considera-o como passível
de recuperação no interior de estratégias de controle social e político. Apesar da degeneração,
é possível recuperar esse Outro. Nesses termos, são percebidos, em diferentes contextos, o
indígena insubmisso, o próprio negro quilombola ou aquele africano que se recusa às alianças
com europeus ainda na África, como pudemos observar no primeiro capítulo desta tese.
Bhabha observa esse tratamento paradoxal do negro no discurso colonial:
O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e
digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encarnação da sexualidade
desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico, primitivo,
simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e
manipulador de forças sociais.555
Dessa forma, temos à frente um discurso colonial portador de uma cadeia de
significação estereotípica essencialmente misturada, dividida e polimorfa, caracterizada por
uma constante “permeabilidade” do Outro, apesar do estabelecimento de binaridades – o
Outro e o Eu. No que se refere a esse ponto, Pelbart observa que no choque de civilizações
existe um constante demarcar-se, sobretudo, por parte do “Império”. Essa insistência na
demarcação e defesa da alteridade revela, em primeira instância, que o Outro já rasga o
Império por dentro, que se encontra no seu próprio coração e este rumor precisa ser abafado.
A polarização binária, portanto, seria uma tentativa de compensar a binaridade, contaminação
ou miscigenação que a dilatação das fronteiras do Império provocou. 556
À luz das considerações de Pelbart sobre o estabelecimento de “polarizações binárias”
para o abafamento de permeabilidades, lembramos as próprias justificativas apresentadas por
sertanistas para a realização de bandeiras contra indígenas. Ao lado dos relatos de assassinatos
de súditos da coroa (e depois de 1822, do Império brasileiro), cativos, roubos de mercadorias,
entre outras, estava a própria justificativa moral das expedições: o Outro que deveria ser
combatido porque era bárbaro, “salteador, assassino e inumano”, como observamos na
justificativa da formação de uma bandeira contra os Kayapós, em 1771, na descrição do
governador Luis Pinto.557 O governador alegava o tal “direito natural de prevenção dos
inimigos”, em vista dos constantes riscos que a proximidade dos mesmos causava. 558 É o que
podemos observar também nas expedições movidas contra Bororos nos anos de 1779 1781,
555
Ibidem, p. 126.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003, p.120.
557
Não podemos deixar de notar a semelhança discursiva para o tratamento de Sobas africanos em Angola, como
“Quiumbella”, que se levantaram contra a presença portuguesa na região, analisado no capítulo 2 desta tese.
558
A mesma citada no capítulo 3.
556
218
em que eram descritos como “gentio bárbaros” e que, por essa e outras razões (atemorizavam
monçoeiros que passavam nas imediações do Rio Porrudos), deveriam ser combatidos e
aprisionados. 559
Curiosamente, esse mesmo estabelecimento de polarizações binárias, se, por um lado,
voltava-se contra a figura do Outro bárbaro, poderia se voltar contra o próprio proceder
colonizador. Lembramos aqui a crítica veemente aos sertanistas do Cuiabá, disposta no
Regimento encaminhado à Capitania de Mato Grosso em 1749; a crítica que se refere aos
tratamentos dispensados aos indígenas Parecis, considerados úteis à coroa, mas devassados
por colonizadores: “indignos de se praticarem por homens christaos”. Se esse Outro não
estivesse no caminho do projeto colonizador, a permeabilização poderia não representar
incômodos maiores.
Vale chamar a atenção para a preocupação com o limite da devassa que a bandeira
promovida contra os Kayapós em 1771 deveria observar: os expedicionários poderiam matar
desenfreadamente todos aqueles que resistissem, porém, não estava permitido matar o inimigo
depois de se render e amputar corpos dos mortos, “apenas” a sua contagem. Cerca de 40 anos
antes, a grande bandeira que se lançara contra os indígenas Payaguás
560
seguiria uma
orientação contrária: para que o cacique, que se encontrava em Assunção a comerciar
escravos, morresse de “pasmo”, cortaram a cabeça de cinqüenta Payaguás mortos e as
enfiaram em espetos de pau ao longo da praia.561
Estes últimos episódios vêm corroborar a tese que ora apresentamos: o colonizador, ao
devassar indígenas Parecis, a defender ponderação com a mutilação de corpos de Kayapós (o
que pressupõe que tal prática fazia parte do Modus Operandi das expedições) ou ao decepar a
cabeça do Payaguá, já estaria permeado por aquilo que o mesmo acusava pertencer ao Outro
nativo: a barbaridade, selvageria e condição inumana. Em suma, o Outro, como diria Pelbart,
já estaria no próprio coração do Império – o que expõe um discurso colonial fragilizado entre
tentativas de binarizações e a inevitável permeabilidade “do” ou “no” Outro.
Em todo caso, quando observamos o contexto específico da escravidão nas minas do
Cuiabá e Mato Grosso ao longo do século XVIII, precisamos elucidar o fim último do
discurso colonial: a manutenção da estrutura colonial, que indelevelmente inclui a
559
E como já vimos no capítulo 3 desta tese, chegaram a ser aprisionados. No entanto, fugiram nas duas
ocasiões.
560
A mesma organizada entre 1733-1734, descrita na primeira seca deste capítulo.
561
CANAVARROS, Op. Cit., p. 258.
219
manutenção da escravidão e a necessidade constante de se afirmar o medo do que está fora da
sociedade escravista. Perguntamo-nos aqui se todas essas caracterizações do “outro nativo” e
números de mortandade de cativos divulgados ao longo do século XVIII (especialmente, na
década de 1770), além de funcionarem como pretexto para suprimento de mão-de-obra na
região e conseqüente utilização de indígenas como escravos, analogamente, não seria uma
maneira de incrustar no imaginário do cativo os riscos a que estaria submetido caso decidisse
pela evasão da sociedade escravista.
Não sabemos, pela própria limitação das fontes, qual teria sido o efeito da divulgação
desses dados junto à população escrava. Todavia, certamente, o material consultado nos
coloca diante de uma faceta, que merece ser melhor explorada em pesquisas futuras, acerca da
escravidão na região: a constante relação com os variados grupos indígenas, harmônica ou
conflituosa, no cotidiano de um cativo que habitava as minas do Cuiabá e Mato Grosso. Por
outro lado, vale lembrar que, mesmo com a constante organização de expedições contra
populações indígenas que habitavam o caminho da Capitania de São Paulo para Cuiabá e
Mato Grosso, as fugas seriam um fator constante na região, tanto para a floresta, populações
indígenas (como o caso do cativo que foi aceito entre os Bakairis) ou mesmo para os
domínios espanhóis. De igual modo, são constantes as notas sobre formação e subseqüente
enfrentamento de quilombos. Logo, se existia ou não uma divulgação por parte do
colonizador para a população cativa da região (ou entre os próprios cativos), parece-nos que
não tenha atingido os efeitos de controle desejáveis. Ademais, na seção que se segue,
trataremos especificamente da constante evasão de cativos.
4.2. Fugas e tentativas de recomeço do lado espanhol: da miragem e busca incessante
pela liberdade
A consulta da documentação a respeito da escravidão de negros em Cuiabá e Mato
Grosso, ao longo do século XVIII e início do XIX, apresenta a fuga de cativos negros como o
principal problema da instituição escravista na região, pois não somente poderia originar
quilombos – fontes de transtornos onde quer que estivessem instalados –, mas também
desfalcava a mão-de-obra já escassa nas minas e lavouras. Apesar das várias estratégias
220
adotadas, como a incorporação de indígenas – como vimos no capítulo anterior –,562 a fuga de
cativos, em última instância, significava prejuízo financeiro, considerando o elevado preço de
cativos no período.563
A fuga colocava no horizonte do cativo quatro possibilidades: (1) formação de
quilombo; (2) busca de incorporação à população indígena; (3) tentar a sorte nos domínios
espanhóis; (4) e, por fim, a tentativa de vida nas matas. 564 Nesta seção, especificamente, nos
concentraremos na terceira possibilidade, em vista do lugar estratégico em que se
posicionaram os povoados de não-indígenas nesta parte da América portuguesa e da fuga de
cativos que acabava por articular relações não somente entre as Capitanias da coroa
portuguesa, mas também entre as duas coroas ibéricas na América.
De partida, chamamos a atenção para a existência de duas fronteiras a serem cruzadas,
junto às quatro possibilidades mencionadas acima: a interna e aquela que dividia os domínios
portugueses e espanhóis. A primeira, de acordo com Ernesto Cerveira de Sena, 565 no período,
era o termo que se utilizava para demarcar até onde a “civilização” havia chegado. Deve ser
compreendida à luz da própria característica de povoamento luso do território, que se dava em
“arquipélagos” – entre um núcleo de povoamento e outro, existiam vastas áreas sem a
presença lusitana. O território do Mato Grosso é emblemático nesse sentido, notadamente no
período imperial: possuía uma vasta extensão territorial de limites a serem definidos e
considerável área não-ocupada por cidades, vilas e povoados. A fuga de um cativo,
certamente, visava o cruzamento e distanciamento de tal fronteira interna.
A segunda fronteira, a linha limítrofe que dividia os domínios espanhóis e
portugueses, conforme vimos anteriormente, passou a ganhar contornos após o tratado de
Madri (1755). Todavia, ainda no século XIX, período de formação dos Estados Nacionais,
562
É preciso entender tal “incorporação” de tal modo que se considere também a agência indígena, que também
negociava o aldeamento ou alianças com as coroas ibéricas na região. Lembramos o caso dos Kayapós, que
trafegavam entre Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso (seção anterior), ou mesmo o convencimento para que
indígenas chiquitanos que haviam migrado dos domínios castelhanos, permanecessem em Vila Maria (Cáceres).
De acordo com Seckinger, com as guerras de independência, entraram nos domínios brasileiros, na altura do ano
1835, 603 chiquitanos. Ver SENA, 2013a, p. 9.
563
Em meados do século XVIII, por exemplo, a provedoria da Capitania de Mato Grosso avaliava que cada
cativo custava em torno de 130 a 150 oitavas de ouro, ou seja, de 157$000 a 225$000 réis, o que já poderia ser
considerado um preço elevado. Ver SILVA, Op. Cit., p. 237.
564
No tocante à primeira possibilidade, lembramos o caso do cativo que se incorporou aos indígenas Bakairis.
Acerca da segunda, de maneira específica, no próximo capítulo apresentamos uma análise acerca dos quilombos
na região. Finalmente, sobre a última, na seção que segue a esta, alguns apontamentos.
565
SENA, Ernesto Cerveira de. Fugas e reescravizações em região fronteiriça – Bolívia e Brasil nas
primeiras décadas dos Estados nacionais. In: Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 39, n.1, p. 82-89, jan/Jun.
2013, p. 85.
221
caracterizava-se por uma imensa área de imprecisões. Segundo Sena, apesar do pretendido
consenso entre as autoridades nacionais – Brasil e Bolívia – sobre os limites territoriais, a
prática de descendentes portugueses e espanhóis transformava a “região” numa imensa área
demarcada por justaposição de várias fronteiras, fluidez e não fixação efetiva.566 No interior
dessa imprecisão, de acordo com os documentos do período, havia índios, ribeirinhos,
desertores e, principalmente, cativos evadidos dos domínios luso-brasileiros, sobretudo, no
que se refere àqueles refugiados do lado castelhano, que faziam sua própria “fronteira”.
Além disso, ao consultarmos a documentação brasileira pertinente à fuga de escravos
para os domínios espanhóis, desde o estabelecimento das minas do Cuiabá até as primeiras
décadas do século XIX, temos os principais destinos: as missões dos Mojos e Chiquitos, as
províncias de Santa Cruz de La Sierra, Assunção, Buenos Aires, Cordoba, Tucumán e, em
algumas situações, o Peru. De maneira geral, pelo Vale do Guaporé, cativos se evadiam para
Mojos e Santa Cruz de La Sierra, e, pelo Vale do Paraguai, para as demais localidades (ver
Mapa 14).
É importante observar que essas rotas passaram a ser utilizadas de acordo com a
chegada e expansão do povoamento não-indígena na região, de modo que as fugas que se
deram entre os anos de 1718, ano de descoberta das minas no Coxipó-Mirim (afluente do Rio
Cuiabá), até finais da década de 1740, passam de maneira geral pelo Vale do Paraguai. A
partir de 1748, com a fundação da Capitania do Mato Grosso, as mesmas também passam a se
dar pelo vale do Rio Guaporé.
O Regimento criado ainda em 1733, que regulamentava a recompensa que os Capitães
do Mato teriam direito ao capturar fugitivos, assim como o próprio proceder, acaba por
indicar que essas fugas foram constantes e concomitantes à chegada dos não-indígenas à
região. Logo nas primeiras clásulas, afirmava-se que os “negros fugidos” causavam danos e
prejuízos aos povos da Capitania,567 que praticavam toda sorte de injúrias, roubos,
assassinatos e insultos nas roças, currais e estradas. A recompensa, de modo geral, variava de
acordo com a distância em que o cativo fugitivo fosse encontrado. Por exemplo, para aqueles
566
Idem Ibidem, p. 86.
No caso, de São Paulo ainda, visto que a região esteva sob jurisdição da mesma até a fundação da Capitania
de Mato Grosso em 1748.
567
222
que se encontrassem a uma légua568 de distância da residência onde servia como escravo,
determinava o artigo segundo:
(...) Pelo negro mulato escravo que os cappitanes Mores e sargentos mores, e
capitanes das estradas a que chamam do Matto, prenderem nesta cidade ou
nos seus arredores distancia de huma legoa desta cidade ou dos bairros e
freguesia onde viverem seus senhores, e constando que andam fugidos e fora
dos serviços poderam levar cada hum dos dittos officiaes na sobreditta
distancia mil e dusentos reis por cada fogido que prender attendendo a
pobreza dos moradores desta Capitania. Com declaração que cada escravo
se fugido, que for apanhado ou preso distancia de huma legoa donde morar o
Capitao do Matto, recebrá este os mesmos mil e duzentos reis e taes escravos
no limitte de hua legoa os de morarem seus senhores (...) [grifo nosso].569
Em até 3 léguas, o capitão poderia receber 4 mil réis. Para cada légua acima das 3, o
Capitão do Mato receberia 10 tostões,
570
até completar 1000 réis e deste ponto não poderia
passar mais. Ainda estava determinado no Regulamento que a recompensa seria maior para a
captura de quilombolas, homicidas e acusados de roubo.
571
Sobre a abordagem junto aos
quilombos, é interessante observar a recomendação para um tratamento cauteloso, que denota
preocupação com a possível perda da mercadoria:
(...) Outras instruções se recomendam aos ditos Officiaes das estradas
mayaores ou menores, que nas investidas dos Quilombos de outras quaes
que prizoens de fugidos se não hajam com tanta crueldade, que passe o
excesso e só em ocasião de Resistencia poderão os dittos capitanes do matto
usar de defesa natural porque fazendo o contrário se tomará (sic) desta
matéria [grifo nosso].572
Em outras palavras, só usariam a “defesa natural” em caso de resistência, mas
poderiam agir com crueldade, desde que não fosse excessiva e não passasse do excesso. O
Regulamento, no entanto, não especificava o caráter e o limite desse “excesso”, o que deixa
implícito o conhecimento generalizado acerca dos eventuais abusos em missões do gênero.
Todavia, se, por um lado, Capitães do Mato teriam a possibilidade de se beneficiar
desta padronização de recompensas, por outro lado, deveriam atender a numerosos prérequisitos, começando pela atuação, que deveria estar circunscrita apenas à cidade onde ele
568
De acordo com Iraci del Nero da Costa, uma légua, no sistema de medição utilizado no período colonial,
correspondia a 6.660 metros. Ver COSTA, Iraci del Nero da (compilador). Pesos e medidas no período
colonial brasileiro: denominações e relações. Boletim de História Demográfica. São Paulo, FEA-USP, 1(1),
1994.
569
APMT, Manuscritos, Estante 1, C-02, 1733.
570
A palavra Tostão se origina do francês teston, e designava uma antiga moeda portuguesa do valor de 100 réis.
No Dicionário Aurélio assim está definida: “Moeda brasileira antiga, de níque que valia cem réis”. Ver
FERREIRA, Op. Cit.
571
Fato que aponta a existência de formação de quilombos desde os primórdios do povoamento de não-indígenas
na região.
572
Idem Ibidem.
223
estivesse cadastrado. Caso o Capitão do Mato prendesse um cativo não-considerado fugitivo
para benefício próprio, estavam previstas punições com prisão (artigo 10). Eram obrigados
também a encaminhar, a cada 3 meses, uma lista com o nome de todos os cativos capturados e
dos seus respectivos donos, e esta deveria ser enviada subsequentemente ao Provedor Geral
da Fazenda (Artigo 13º). Além disso, eram obrigados a informar às autoridades locais quais as
armas que tinham em posse (Artigo 14º), sendo necessário registrá-las (Artigo 14º). Um
destaque sobre este último artigo: enfatizava-se que era necessário possuir armas, uma vez
que escravos fugidos também as possuíam, principalmente quilombolas.573
A documentação do período analisado demonstra não somente um cruzamento
constante das fronteiras com os domínios castelhanos, por livre e espontânea vontade de
cativos que buscavam a fuga do sistema escravista, como até mesmo situações em que eram
forçados ao cruzamento dos limites fronteiriços ambicionado pelas coroas e depois pelos
Estados nacionais.574 Nesse sentido, chamamos a atenção para uma celeuma entre o português
Antonio França Sylva e a Provedoria dos Ausentes, registrada nos arquivos dispostos no
Arquivo Histórico Ultramarino, ao longo das décadas de 1750 a 1760.575 Ela envolveu, ao
mesmo tempo, portugueses, espanhóis, instituições e autoridades, circulação em territórios
diversos e cativos africanos provenientes de diferentes lugares.
Consta na documentação que Antonio França Sylva, ex-Provedor dos Ausentes,
576
fugiu às escondidas do Cuiabá em 1756, em companhia dos seus escravos. Por dever 20 mil
réis à Provedoria dos Ausentes, acusado de beneficiar a si mesmo enquanto ocupara o cargo
de Provedor, tivera os seus bens penhorados,577 incluindo 31 cativos. Embora o caso tivesse
se passado em 1756, ele ainda continuaria a ser mencionado em ofícios até 1763 e parecia não
ser solucionável, pois Antonio conseguira se evadir aos domínios castelhanos.
573
O que novamente aponta para as relações externas dos quilombos locais com as sociedades de não-indígenas,
visto que nem todos conseguiam fugir com posse de armas de fogo.
574
Para uma problematização acerca das tentativas de estabelecimento de limites fronteiriços, no período
colonial e pós-independência, ver SENA, 2013.
575
O primeiro registro que localizamos foi uma carta encaminhada pelo então Capitão-General da Capitania de
Mato Grosso, Dom Rolim de Moura, aos Capitães-generais do Rio de Janeiro e Minas Gerais discorrendo sobre
Antonio de França, que era fugitivo e os seus escravos estavam penhorados à Provedoria dos Ausentes. AHU,
Mato Grosso, Cx. 11, doc. 658, de 17 de novembro de 1761.
576
Vale ressaltar que a Provedoria dos Ausentes, que integrava a administração do mundo lusitano, foi uma
instituição criada em 1613, cuja função consistia em arrecadar e administrar bens de ausentes ou defuntos que
não deixassem procuradores nomeados em seus testamentos, assim como de pessoas coletivas, tais como
conventos, capelas, hospitais, entre outros. Ver HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan:
instituições e poder político, Portugal (século XVII). Coimbra: Almedina, 1994, pp.206-209.
577
AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 709 (rolo 11), de 15 de setembro de 1763.
224
O caso, em si, era repleto de fatos notáveis, a começar pela própria população escrava
que tecnicamente pertencia a Antonio de França, declarada no ofício que pedia a penhora:
(...) Francisco de Nação Angola = Sylvestre de nação mina = Manoel de
nação mina = André de nação mina = Francisco de nação mina = Amaro de
nação Mina= Joaquim de nação Mina = André de nação Mina = Feliz de
nação Mina = Thimotio de nação mina = Ponsato de nação Mina = António
de nação Angola = João de nação Angola = João de nação Mina = Antonio
de nação Benguela = Francisco de nação Mina = Anastacio de nação Mina =
Miguel de nação Mina = Domingo de nasçam Mina = Miguel de nasçao
Mina = `Pedro de nasçao Mina = Agostinho de nasção Mina = Paschoal de
nasçao Mina = Benedito de nação mina = Thimotio de nasçao Mina = Joseph
de nasçao Mina = hThomé de nasçao Mina = André de nasção Mina =
Apolónia Mulata com duas filhas, huma chamada Rita, e outra chamada
Marte (...).578
Chama a atenção acima não somente a predominância masculina sobre as mulheres –
28 homens para 3 mulheres –, mas também o fato da população masculina de Antonio ser
totalmente africana e a única mulher, com as suas duas filhas, serem mulatas, certamente
todas nascidas no Brasil. Tudo indica que tais cativos foram trazidos para o trabalho nas
minas do Cuiabá, que demandava mais força masculina.
A predominância mina, nesse momento, pode ser tomada como um fator dissonante,
em vista do progressivo avanço da presença de cativos congo-angolanos na região durante o
século XVIII e primeiras décadas do século XIX, que podemos observar no Gráfico 2.
Precisamente, na década de 1730, observamos a baixa das importações de cativos da
Costa da Mina e podemos verificar uma alta nas importações dos portos angolanos, sobretudo
de Luanda. A explicação para essa redução drástica do comércio na Costa da Mina acaba por
combinar numerosos fatores, a começar pelos constantes conflitos políticos entre os reinos
africanos que habitavam ou se relacionavam com a Costa da Mina. 579 A estes fatores, deve-se
acrescentar a atuação holandesa na região, com saques e apreensões de embarcações, que
578
579
AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761 (rolo 11).
Em primeiro lugar, na década de 1720 a região enfrentava um período turbulento, com disputas políticas entre
diversos reinos africanos. Destaca-se nesse contexto a invasão do porto de “Ajudá”, pelo rei do Daomé, Agaja; a
intervenção do Reino do Óio, que dominava as rotas de tráfico no interior da Costa da Mina, entre os anos de
1726 a 1730; a tomada do porto de “Jaquim”, pelo rei do Daomé; e, finalmente, a destruição do porto de Jaquim
e forte português do Ajudá. Ver FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel
Domingues. Aspectos comparativos do tráfico de africanos no Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31
(2004), p. 86; Sobre conflitos na África Ocidental e o impacto no fluxo comercial de escravos para o Novo
Mundo, ver também Alexandre V. Ribeiro, “O tráfico atlântico entre a Bahia e a Costa da Mina: flutuações e
conjunturas (1683-1815)”, Estudos de História, vol. 9, nº 2 (2002).
225
acabou por contribuir para que se esfriassem as atividades.580 Como a Costa da Mina era a
principal fornecedora dos traficantes baianos, o fornecimento para região, nesse quadro,
ficava comprometido.
Analogamente, na América portuguesa, os traficantes do Rio de Janeiro vivenciavam
outra situação, como demonstra o gráfico 2, sobretudo após a abertura da “nova rota”, que
ligava a região a Minas Gerais entre 10 a 12 dias – fato que diminuía as taxas de mortalidade,
fugas, tornava o negócio mais lucrativo e abria vantagem sobre comerciantes de Salvador. 581
Devemos observar que o aumento das taxas de importação de escravos no Rio de Janeiro e
crescente alta de exportações dos portos nos Reinos de Angola e Benguela acabam por
coincidir no período. Portanto, uma vez que o Rio de Janeiro foi o principal fornecedor de
cativos,582 a despeito das outras rotas que levaram escravos para as Minas do Cuiabá e Mato
Grosso,583 podemos sustentar a dissonância da superioridade de africanos mina junto a
Antonio de França em meados do século XVIII.
Em todo caso, logo ao sair do Cuiabá, Antonio de França seria surpreendido por um
fator inesperado: dentro da própria fuga que já perpetrava, 7 entre os seus 31 escravos
também conseguiram fugir – todos da nação mina – e retornaram à vila. O sertanejo então
prosseguiu sua partida e, pelo que nos informa a documentação, Antonio de França pretendia
encontrar-se com o espanhol D. Francisco França Sanches, que o esperava em um sítio
chamado Corumbati. Em função das inundações dos rios, atracou no Porto de Araritaguaba
(Capitania de São Paulo). Na sequência, encontrou uma nova maneira de chegar ao sítio
inicialmente combinado; onde conseguiu finalmente efetuar a venda de 21 escravos para o
580
Se antes o tempo de viagem para Costa da Mina poderia equivaler a 6 meses, na década de 1730, chegaria até
a 18 meses. Ver FLORENTINO; RIBEIRO; SILVA, Op. Cit. p.86.
581
De acordo com Florentino, Ribeiro e Silva (2004), ate as primeiras décadas do século XVIII, os comerciantes
escravistas eram os principais fornecedores de escravos para Minas Gerais. Com a abertura do novo caminho, e
dificuldades de abastecimento na Costa da Mina, tal função passou a ser suprida por traficantes do Rio de
Janeiro. Vale salientar que a rota que ligava a Bahia a Minas Gerais era de 1.200 quilômetros, ao passo que a
nova rota, do Rio de Janeiro as Minas Gerais, percorria apenas 480 quilômetros. Idem Ibidem, p. 87.
582
Aqui lembramos ao leitor novamente do mapa de entradas de cativos encontrado junto aos arquivos do AHU,
que abrangia os anos de 1720 a 1772, em que se observa em todos os períodos a superioridade do porto do Rio
de Janeiro, enquanto principal fornecedor, analisado no capitulo anterior.
583
Florentino, Silva e Ribeiro (2004) salientam que apesar do declínio do comercio escravista em Salvador, os
navios ainda continuaram a aportar na cidade e esta acabou por assumir a função de abastecimento de escravos
no interior do Brasil, do fim do século XVIII e inicio do XIX, o que incluía as vilas de Goiás e Mato Grosso.
Idem Ibidem, p.91; ver também KARASCH, Mary. "Central Africans in Central Brazil." In: Central Africans
and Cultural Transformations in the American Diaspora, ed. Linda M. Heywood (Cambridge: Cambridge
University Press, 2002), 117-151. No caso de Mato Grosso, novamente frisamos que apesar de entrarem cativos
no ultimo quartel do século XVIII via-Goiás, como observamos no capitulo anterior, ou pela via-rotas do norte,
junto a Companhia do Grão-Para e Maranhão, o Rio de Janeiro durante o século XVIII inteiro predominou no
fornecimento de cativos as minas de Cuiabá e Mato Grosso.
226
português Francisco Jubas Americano, que, posteriormente, deveria encaminhá-los para o
espanhol D. Francisco. 584
Com o negócio concluído, Antonio, juntamente com o espanhol D. Francisco, uma
moça com quem se casara e alguns escravos, decidiram rumar em 1760 para os domínios
castelhanos; acabaram detidos pelas patrulhas de cavalaria militar da fronteira, junto ao Rio
Paraguai, e levados aprisionados. Esperava-se, consta o ofício, que lá fosse comprovado o
“contrabando” em que estivera envolvido o espanhol D. Francisco, o que aparentemente não
foi, em vista das reclamações de 1763 em que a Provedoria dos Ausentes ainda reclamava o
prejuízo e prisão de Antonio de França. Quanto ao destino dos demais, de Antonio de França
e dos seus cativos, só é informado o paradeiro da mulata Rita, filha de Apolônia, levada para
Córdova, nos domínios castelhanos.585
O caso tem potencial para uma análise em várias dimensões, mas aqui destacamos a
presença do espanhol em território brasileiro, que denota uma movimentação castelhana ilegal
em “território português”, para transferência de mão-de-obra para o outro lado da fronteira.
Tal fato, se compreendido com a comercialização de cativos entre indígenas Payaguás e
Assuncenhos, mencionada na seção anterior, nos leva a crer que no período que ora
analisamos também existia demanda de mão-de-obra cativa do outro lado da fronteira. Ou
seja, o cativo africano que poderia ser transportado por meses, desde a sua terra natal,
provavelmente no hinterland das cidades costeiras,
586
para chegar ao Novo Mundo, e, após
vendido, enfrentava uma nova viagem que tomava novos meses, poderia ainda ser submetido
a novos trajetos a oeste da América, se envolvidos em operações como a de Antonio de
França.
A presença do contrabandista de escravos D. Francisco ao longo das fronteiras ibéricas
estava longe de ser um caso isolado. Em 1776, por exemplo, os Anais de Vila Bela, a então
capital da Capitania do Mato Grosso, discorrem sobre a atuação de contrabandistas espanhóis
na parte portuguesa, no comércio de cativos para aquele lado:
584
O documento não especifica detalhes desse trâmite, mas aparentemente a estratégia de vender primeiro ao
português, para depois o português repassar ao espanhol poderia ser uma estratégia para burlar a fiscalização.
AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761 (rolo 11).
585
Cordova está atualmente localizada no território que conhecemos por Argentina. A partir de 1776 passa a
compor o Vice-Reinado do Prata, se tratando de uma das maiores cidades da América Espanhola.
586
Como vimos nos capítulos 1 e 2 desta tese, geralmente o cativo que era embarcado, por exemplo, em
Benguela, provinha de regiões ao interior daquela cidade e às vezes levava meses para ser transportado para a
cidade costeira.
227
Tendo Sua Excelência notícia que os contrabandistas espanhóis que vinham
trocar as mulas que haviam introduzido no fim do ano próximo passado por
escravos, considerando que eles, nestas colônias, são da primeira
necessidade, proibiu que se executassem tão prejudiciais convenções,
impondo graves penas aos portugueses que as celebrassem, para o que se
afixou e publicou um bando em 13 de março do presente ano [grifo nosso]587
O trânsito forçado de cativos do território português também foi registrado por
autoridades dos domínios espanhóis. No conjunto de documentos referentes ao período
colonial, dispostos no Arquivo da Biblioteca Nacional da Bolívia (ABNB), em Sucre, entre os
vários fatos relacionados à entrada de escravos fugidos nos domínios castelhanos, localizamos
a história do pardo Juan da Silva Nogueira, no ano de 1796, que se decidiu fugir com os seus
escravos para o lado castelhano. Juan foi preso e durante o seu interrogatório foi obrigado a
fornecer numerosas informações, acerca da sua naturalidade, razões da fuga, religião que
professava, entre outras. Assim, relatou ser natural do Cuiabá, viver em Casalvasco,
588
casado e com 3 filhos, onde teria uma casa com outras comodidades. Juan era ex-soldado e se
encontrava endividado (cerca de 500 pesos), razão pela qual fora ordenado o confisco dos
seus bens, incluindo escravos. Como sua esposa não poderia se ausentar, pois estava a cuidar
da própria mãe, decidiu partir sem ela e os seus filhos. Sobre a população escrava, ao depor às
autoridades castelhanas, afirmava:
Os escravos que igualmente se vieram são de África, homens, assim mesmo
duas menores da mesma nação, casadas com estes, e todos quatro e mais de
cinquenta anos de idade, uma mulatinha de vinte um a vinte e dois anos,
casada, mas seu marido se ficou em Casalvasco. Estas cinco peças disseram
que eram escravos legítimos [...].589
Nos documentos que se seguem ao depoimento de Juan, encontramos outra versão
para a fuga do ex-soldado e, principalmente, dados sobre os africanos que estavam consigo.
Na carta escrita por Ricardo Franco de Almeida, Tenente-Coronel de Vila Bela, às
autoridades castelhanas, nos é apresentado outro Juan. De acordo com o Tenente-Coronel, o
ex-soldado era um desertor e, antes de se evadir de Casalvasco, havia roubado dois cavalos e
uma besta da “Real Fazenda”, deixando “desamparada” a sua esposa e filhos. No seu encalço,
seguiu uma escolta que não obteve sucesso na sua captura; apenas a testemunha de um
indígena que se encontrava na “Estância de Miguel”, local em que atravessou ao domínio
587
AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 204.
Casalvasco se tratava de um presídio fundado em 1782 durante o governo de Luiz de Albuquerque, em área
próxima a Vila Bela.
589
ABNB, 1796, MyCh GRM vol.8-323, 324, 324v. Monique Lordelo também localizou o caso de Juan e
mencionou o caso na sua dissertação, enfatizando a primeira parte do inquérito, referente ao depoimento do exsoldado. O presente trecho originalmente está escrito em espanhol e a tradução que transcrevemos foi realizada
por Lordelo. Ver LORDELO, Op. Cit., p. 110.
588
228
espanhol, afirmou ter visto Juan e os escravos. Segundo o informante, antes de atravessarem,
Juan permitiu que todos descassem um pouco para a jornada. Ricardo Franco de Almeida
exigia imediata restituição de Juan e escravos, em concordância com tratados firmados pelas
coroas ibéricas, para que procedesse a punição do desertor. 590
Quanto ao perfil dos escravos africanos que atravessaram juntamente com Juan a
fronteira, o Tenente-Coronel detalhava: chamavam-se Sebastian Cabinda, Anna Benguela,
Antonio Paratu e Maria, todos casados, sendo o primeiro proveniente do reino de Angola e os
três últimos, de Benguela. Além deles, havia uma mulata livre chamada “Sebastiana”, que, de
acordo com Ricardo Franco, fora raptada “violentamente” e contra a vontade do marido, que
depois se evadiu aos domínios castelhanos em busca da sua esposa, segundo o TenenteCoronel.
Apesar de não estarem disponíveis as informações que revelam o final da história de
Juan e os cativos que o acompanhavam, ao que consta nas últimas folhas do processo,
aparentemente as autoridades espanholas cederam ao pedido de prisão e “restituição”
reclamada. Em todo caso, no que diz respeito aos cativos, vale destacar que todos se
encontravam casados naquela altura e com cativas da mesma nação (com exceção da mulata
Sebastiana); fato que revelava uma preferência endogâmica, tal como Crivelente já obsevara
nas uniões conjugais de Serra Acima (atual Chapada dos Guimarães) entre o final do século
XVIII e primeiras décadas do XIX – entre 1798 a 1830, Crivelente levantou a realização de
108 casamentos entre africanos e entre aqueles que realizavam casamentos com cativos da
mesma nação (33), os originários de Benguela se sobressaíam (correspondiam a 39, 5%) .591
Portanto, se é verdade que os domínios espanhóis pudessem representar uma terra de
liberdade para escravos que se encontravam na América portuguesa e, por isso, poderiam
movimentar todos os esforços possíveis para cruzar a fronteira, também é verdade que esse
trânsito entre fronteiras não fora totalmente voluntário, uma vez que cativos poderiam ser
590
Assim escrevia o Tenente-Coronel às autoridades castelhanas: “No es oculto a La iluminada penetracion
conocimientos, y notira providad de V.S. ilustríssimo que todo El Militar, que larga El puesto de que se halla
encarregado para desertar a Dominio Estrangero, duplica em esta dos acciones, para crimen desertor, y que
quand acumula a este miesmo crimen para de ladron, no solo es indigno de amparo, mas debe ser luego
restituído, sin que La immunidad de hllarse em l fierza de S. Magestad Catolica, Le havia de mas protección, que
El de no padecer castigo violento (...).” ABNB, MyCh GRM vol.8-323, Op. Cit.
591
Ver capítulo 3 desta tese.
229
comercializados por indígenas, portugueses acusados de crimes (como Antonio de França) ou
até trocados, como vimos acima. 592
No tocante às fugas, vale frisar, poderiam tanto ser individuais como planejadas
coletivamente. No conjunto da documentação referente ao período colonial, encontramos
diversas situações; como a de 1772, junto aos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, em que
é narrada a fuga coletiva bem-sucedida de cativos, que, após assassinarem o seu senhor e
pegarem uma canoa, cruzaram para os domínios de “Castella”:
Logo depois da partida do General sucedeo o horrorozo cazo da morte cruel
mente dada ao Thenente de Auxiliares desta Villa Manoel Jozé Pinto no seo
Ingenho chamado da Itapeva, sitio a margem do Rio Cuyabá abaixo, por
huns seos escravos, que depois de executado o delicto, se retirarão furtiva
mente em huma canoa levando consigo, e a força mais alguns escravos da
caza, e mantimento necessário, e se passarão a salvo para Castella, pois não
tiverão na caza quem lhes fizesse resistência, por que tudo erão lagrimas,
confuzões, e sustos da mulher, e filho do disgraçado, defunto que todos
herão menores, e sem capacidade, nem forças para se oporem, e prizionarem
os facinorozos. Deusse parte do sucesso ao General que ainda estava em
distancia de dezaseis legoas desta Villa, mandou, que logo logo se expedice
a custa da Real Fazenda huma escolta sobre os asasinos, assim se fés porem
sem fruto, por haverem passado dias, e levarem vantagem grande na marcha
que fazião de dia, e de noite sem parar593
O episódio, além de sugerir um certo planejamento – afinal, sem este não
conseguiriam navegar pelo vale do Paraguai e obter o êxito na fuga para os domínios
castelhanos –, apontava justamente para o outro lado da fronteira como uma terra que
representava ao menos alguma liberdade para população escrava do Cuiabá e Mato Grosso. E
a partir desta imagem é que as cenas de fugas se repetirão constantemente em várias ocasiões,
pelo vale do Paraguai ou Guaporé, conforme o povoamento luso-paulista fosse se
estabelecendo gradualmente desde 1718 na região.
Após quatro anos, em 1778, a prisão de dois negros, Joaquim e Antônio, apontaria
para recorrência de fugas individuais influenciadas por quilombolas:
Para a cadeia de Vila Bela remeto a ordem de Vossa Excelência dois negros
presos, um por nome de Joaquim, escravo de José Francisco Monsores, outro
por nome de Antônio, pertence a Luiz Rodrigues de Prado, cujos tem andado
um par de anos fugidos no distrito deste arraial [Vila Bela], fazendo vários
592
Sobre o caso de Juan, precisamos também considerar que os cativos que o acompanhavam, assim o fizeram,
por consentirem com a sua decisão. Mesmo armado, como conseguiria controlar 5 escravos ao longo de uma
fuga que se dava no meio da floresta e incorporava trechos fluviais?
593
SUZUKI , Op. Cit., p. 101.
230
distúrbios, e conduzindo para o seu quilombo várias negras, fazendo roubos
conhecidos, e talvez cumprindo-se das mortes que cá tem sucedido. 594
Sobre esse tema, novamente lembramos o leitor da Diligência que se fez no sertão do
Mato Grosso em 1795. A bandeira, que havia destruído o quilombo de remanescentes do
antigo “Quilombo Grande”, após a captura dos 54 aquilombados, partiu para a captura de
novos cativos evadidos, nos entornos do rio Pindaituba, onde havia novos quilombos. Pelo
que consta no Diário, era recorrente que os habitantes desses quilombos, além de
freqüentarem as vilas e arraiais da região, convidassem os escravos para a fuga.
595
A
documentação não informa até que ponto essa “sedução” surtiu efeitos, mas deixa notória a
possibilidade de fuga, possivelmente com auxílio de quilombolas.
De maneira geral, essas fugas foram reclamadas pelas autoridades da Capitania do
Mato Grosso, desde os primeiros anos de sua fundação. Em 1754, por exemplo, em carta
escrita a Diego Mendonça, o então Capitão-General da Capitania, Rolim de Moura,
expressava preocupação com a fuga de escravos que adentravam os domínios espanhóis pela
travessia do vale do Paraguai: “no que é preciso lembrar a Vossa Excelência que por ora
quase todos os escravos que forem passar a Assunção é por mão do Paiaguá, a quem a dita
cidade os compram por terem ordinariamente pazes com o dito gentio.”596 Destacamos dois
aspectos dessa menção: os cativos, aqui, eram atravessados por indígenas Payaguás, ou seja,
provavelmente teriam sido seqüestrados nos assaltos às monções de que tratamos
anteriormente; em segundo lugar, a demanda de mão-de-obra escrava em Assunção poderia
ser suprida com a atividade de contrabandistas ou comércio com Payaguás, também já
tratados anteriormente.
Em 1765, o segundo Capitão-General Pedro Câmera da Capitania voltaria a
demonstrar preocupação com a constância das fugas, em uma carta que buscava dar conta da
situação da capital Vila Bela com a fronteira. Relatava que a recorrência de fugas para o lado
espanhol (o que chamava de “Nova Espanha”), juntamente com a não-devolução, acabavam
por prejudicar as minas. Em determinado trecho, desferia ataques aos padres missionários do
594
1778, BR APMT CVB CA 0091 Caixa nº 001 Apud LORDELO, Op. Cit., p. 104.
O Diário não informa se houveram fugas individuais ou em grupo, mas nota-se o grande incomodo que a
existência daqueles quilombos causavam aos proprietários de cativos. Por outro lado, apesar do incômodo, não
abriam mão de comerciar com quilombolas, o que revela uma certa dependência de ambos os lados. Sobre o
Diário da diligência de 1795, ver ROQUETTE-PINTO, Op. Cit..
596
MOURA, Carlos Francisco. D. Antônio Rolim de Moura, Primeiro Conde de Azambuja – Biografia.
Cuiabá: Imprensa Universitária, 1982, p. 128.
595
231
lado espanhol, que, apesar de terem ordens da Real Audiência
597
para aprisionarem cativos,
não os devolviam:
(...) de tudo athe o que tem feito pouco ou nenhum cazo os ditos padrey,
antes pello que obrao mostrao seguir por máxima não entregarem escravos
nenhum fugido, para com isso facilitarem mais as fugas, persuadidos que
por este meyo dificultam a subsistência de novos estabelecimentos no rio
Guaporé. E talves destas Minas, pois seguramente methodo desde que a
estou neste Villa [grifo nosso].598
Ou seja, a manutenção de cativos no interior das missões poderia fomentar esperanças
de novas fugas nos cativos que se encontravam do lado português, além de dificultar a
subsistência de moradores na região, sem a mão-de-obra escrava. A sequência da carta de
Pedro Câmara é igualmente interessante: relata que em determinada ocasião havia mandado
soldados seguirem escravos fugidos até as Missões, mas, como não tinham nenhuma ordem
por escrito que poderia servir de prova para a captura dos cativos, eles não foram devolvidos.
Dessa forma, acabava por reclamar da falta de certidões que comprovassem a posse e fuga de
escravos, que inviabilizava a captura em território castelhano. Logo no final da carta, uma
nota curiosa: no ato de perseguição aos fugitivos, as expedições poderiam aproveitar o ensejo
e queimar algumas aldeias, por questão de defesa, mas tudo deveria aparentar que fosse uma
ação proveniente da vontade de soldados e não por ordem da “Vossa Excelência”. 599
As fugas individuais ou coletivas se seguiriam, apesar das reclamações do governador
Pedro Câmara. Em 1769, uma carta indignada escrita pelo então Capitão-General do Mato
Grosso, Luis Pinto, às autoridades de Buenos Aires, apontaria a continuidade das evasões.
Nela, o governador contestava uma resposta encaminhada anteriormente sobre o pedido de
devolução de escravos que lá estivessem; segundo afirmava, só devolveriam se também
fossem entregues indígenas que haviam fugido de missões para o território da Capitania. Luis
Pinto, em contrapartida, alegava que as nações indígenas já eram livres:
(...) Não deixo porém de surprehenderem de que atendendo V. Ex.a. tão (...)
as justas razões de minha súplica, haja de propor me paralelos com a
restituição dos ditos Escravos a entrega daqueles Índios que nos Domínios
d’EL rei meu Amo tem procurado um natural asilo V. Exa. Sabe melhor que
597
As Reais Audiências eram órgãos instalados nas colônias espanholas responsáveis por questões relacionadas à
justiça. No caso território em questão, região do Vale do Guaporé da margem ocidental, este estava submetido a
Real Audiência de Charcas. No capítulo 6 da presente tese, analisamos a estrutura política existente no Alto Perú
no período colonial.
598
APMT, Manuscritos, Estante 1, C-03, 1765.
599
Idem Ibidem.
232
ninguém que tanto pelas leis de Castela, como de Portugal, há muito tempo
que estas nações são declaradas livre (...).600
Acerca desta condição de devolução de cativos por indígenas, Alessandra Blau, em
dissertação defendida em 2007, ao analisar a política de povoamento na Capitania do Mato
Grosso, afirma serem freqüentes as acusações de sequestros de indígenas por parte de
portugueses. E, se era verdade que espanhóis fossem morosos na devolução de escravos
evadidos para os seus domínios, portugueses também poderiam não devolver os indígenas
solicitados e até utilizados nas estratégias de povoamento da região. A autora lembra que o
ato de fundação de Vila Maria do Paraguai (atual município de Cáceres) ocorreu durante o
governo de Luiz de Albuquerque e contou com indígenas fugidos das Missões dos Mojos e
Chiquitos.601
O governador Luís Pinto trocaria correspondências com o Governador de Santa Cruz
sobre o fluxo de evasão de cativos na outra fronteira, no vale do Guaporé, no mesmo ano
(1769), bem como sobre a entrada nas Missões Jesuíticas. Luis Pinto rogava ao dito
governador que negasse a chegada de novos escravos e que devolvesse aqueles que
conseguisse identificar. Lembrava ao governador sobre um acordo firmado com a Real
Audiência de Charcas, que comprometia a região à devolução de cativos evadidos do
território português. Entre outros compromissos, também dava a sua palavra de que aqueles
que fossem devolvidos não seriam submetidos a castigos. 602
Dois aspectos ainda devem ser destacados nesta correspondência. Em primeiro lugar,
Luis Pinto requeria aos senhores o envio de dados dos cativos para se concluir a negociação –
nomes, naturalidade e senhores –, não sendo necessária a especificação daqueles que eram
casados “nessas immediaçoes” – o que indica a existência de matrimônios entre a população
cativa.603 Em segundo lugar, presumia, em determinado trecho ao Governador de Santa Cruz,
que alguns escravos que se achavam escondidos no que se entendia como América espanhola,
ao se informarem da determinação de que deveriam ser devolvidos à América portuguesa,
evadir-se-iam cada vez mais para o interior das Províncias do Peru. Assim sendo, a conquista
600
NDIHR, AHU, MF.311, doc. 3621.
BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da Capitania de Mato
Grosso: 1752-1798. Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2007
(dissertação), pp. 92-93.
602
APMT, Manuscritos, Estante 1, 1769, C-04.
603
Vale ressaltar que até o presente momento, não encontramos dados regulares à respeito de matrimônios de
cativos, apenas informações esparsas.
601
233
da liberdade pelo cativo ainda não terminaria no desterro. Era preciso seguir adiante e a terra
da liberdade poderia não ser mais que uma miragem.
Ainda no governo de Luís Pinto, precisamente no ano de 1771, um fato envolvendo
militares e questões diplomáticas ilustraria a continuidade das fugas. Na perseguição a 3
escravos que fugiam para os domínios dos Mojos, o Tenente Figueiredo junto a alguns
soldados Dragões atravessou o Rio Guaporé e conseguiu aprisionar os fugitivos. Para manter
os tratados firmados entre as Coroas, Luis Pinto ordenou a prisão do Tenente e devolução dos
cativos aos Mojos e condenou veementemente a sua ação:
Não era preciso ter mais do que o sentido comum para não chegar a cahir em
semelhante absurdo. Porem se V. Magestade tivessem o cuidado de ler e
consultar as ordens que se achao registradas em os Livros desse Forte, como
erao obrigados, não teriao o desacordo de commeter semelhantes
irregularidades.604
Era preciso entregar às autoridades castelhanas da região dos Mojos os escravos
fugidos e esperar a restituição oficial, a fim de se preservar a “amizade e benevolência” entre
as duas Coroas. Não se sabe quais interesses o Capitão-General contrariou para emitir tais
ordens, se desagradou proprietários locais que constantemente reclamavam das fugas para o
lado espanhol, para facilitar futuros pedidos de devolução, ou se procedeu de tal maneira após
pressão espanhola.605 Contudo, o fato é que, a partir de 1772, os Anais de Vila Bela
registrariam uma grande entrega de escravos na capital de Mato Grosso:
Por efeito de uma [ilegível]... que o ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Luís Pinto havia dado sobre o apoio nas Índias de Espanha ordinariamente
fazia aos escravos que desertavam nesta Capitania, se conseguiu um decreto
dos reis de Castela para requisição e entrega de todos os escravos que se
achassem alienados naquelas Índias.
Por virtude desse decreto e de outras admiradas providências, que a respeito
foi servido dar o sobredito Senhor Luís Pinto, no dia 29 de dezembro teve o
povo grande contentamento de ver entrar, pelas ruas desta Vila, um cordão
de 56 escravos, de um e outro sexo, debaixo de guarda e acorrentados, que
imediatamente se distribuíram por seus donos, pagando cada um pro rata a
despesa que lhe tocou, que ao todo montou de mais de mil oitavas.606
604
APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 1771.
Monique Lordelo localizou no Arquivo e Biblioteca Nacional da Bolívia uma carta em que Luís Pinto
solicitava a restituição de dois cativos à Capitania de Mato Grosso, que anteriormente haviam sido apresados
violentamente em terras espanhola contra “tratados”. Tudo leva a crer que os cativos em questão são os mesmos
que estamos a tratar. A pergunta que fica é se Luís Pinto teria ordenado a restituição após receber alguma
correspondência de autoridades espanholas. ABNB, 1771, MyCh, 97-2 Apud LORDELO, Op. Cit.,p.107.
606
AMADO; ANZAI, 2006, p. 185.
605
234
Impressiona neste relato a quantidade avultosa de cativos fugitivos devolvidos, sob
guarda e acorrentados. Ao que tudo indica, as fugas que se davam para os domínios espanhóis
ocorriam em grupos pequenos, de três ou mais cativos. No entanto, pela quantidade
mencionada acima, sugere-se que elas foram constantes na região e continuaram, mesmo com
episódios semelhantes a esse descrito. Os domínios espanhóis não deixariam de representar
liberdade aos escravos sob cativeiro na América espanhola.
Em todo caso, durante as décadas de 1770 e 1780, ao longo do governo de Luiz de
Albuquerque, observaremos a multiplicação dos esforços para restituição dos cativos fugidos
e, igualmente, dos relatos de fugas. O bando emitido em 1773 pelo Capitão General Luiz de
Albuquerque é emblemático nesse sentido. Primeiramente, informava a constante devolução
de cativos que haviam evadido, remetidos pelas autoridades de Santa Cruz de La Sierra a Vila
Bela em segundo lugar, expressava o desejo de que os moradores do Cuiabá lograssem do
mesmo benefício, com a devolução daqueles que se encontravam em Assunção, evadidos pelo
Vale do Rio Paraguai:
(...) Faço saber aos que presente Edital virem que havendo-me
proximamente manifestado a experiência que não foram por fim infrutíferas
as repetidas instâncias de meus predecessores, praticadas com os
Governadores dos Domínios Espanhóis desta Fronteira, a fim de se
restituírem os Escravos fugidos, como se vê bastante número deles, que
ultimamente foram remetidos a esta Capital; e desejando concorrer com a
minha diligência, tentativa para que os habitantes do Distrito de Cuiabá
possa talvez lograr o benefício de uma igual restituição, pelo que pertence
aos Escravos que aí tenham evadido em direitura à Cidade de Assumpção,
pelos rios abaixo; solicitando daquele Governador uma semelhante
correspondência à referida (...) [grifo nosso].607
Assim, solicitou aos moradores da cidade, que tivessem escravos fugidos para o
Paraguai, que procurassem o Juiz de Fora da Vila, munidos de descrições:
(...) pelos expressados motivos me pareceu mandar declarar que todas as
pessoas a quem pela sobredita via dos rios tenha fugido alguns Escravos
constando principalmente terem encaminhado a sua derrota, não só para a
dita Cidade de Assumpção, mas para alguns outros estabelecimentos
castelhanos do Paraguai; vão entregar em casa do Doutor Juiz de Fora da
mesma vila de Cuiabá, parecendo eles os sinais, idades, nomes e mais
confrontações que eles representem conveniente declarar, para indicar
legitimações aos sobreditos prófugos, a fim de que podendo eu dirigir em
relação a seu número e qualidades, possa juntamente pretender do Senhor
Governador um procedimento semelhante aos que acabam de praticar os
607
RAPMT, “Carta de Luiz de Albuquerque – bando de 10 de janeiro de 1773”. Vol. 1, n.3, março/setembro de
1987, p. 40.
235
Comandantes dos outros Governos, que por aqui confinam e fazem
vizinhança.608
No mesmo ano, essa preocupação com escravos que haviam fugido e se abrigado no
Paraguai continuaria presente nas correspondências enviadas pelo Capitão-General Luiz de
Albuquerque, que voltaria a escrever no dia 11 de junho; em uma carta enviada ao CapitãoGeneral de São Paulo, solicitava mediação para negociar a devolução de escravos fugidos
para Assunção ou Tucumán. Como na anterior, mencionava a devolução de escravos por
Santa Cruz de La Sierra, dos Mojos e Chiquitos, junto ao Vale do Guaporé. Acreditava que
finalmente, com a interseção da Capitania de São Paulo, pela prática de ajuda mútua que já
estava estabelecida há muitos anos com as Províncias da América Espanhola (principalmente,
Buenos Aires), a almejada devolução poderia ser exitosa. 609
O episódio chama atenção por deixar notória a existência de uma rota de fuga pelo
Vale do Paraguai para as cidades de Assunção, Tucumán e Buenos Aires (como vimos
anteriormente), utilizada por diferentes gerações de escravos que eram trazidos para a região
fronteiriça entre as duas Coroas; vale também pela destreza do Capitão-General Luiz de
Albuquerque, em se valer de um conjunto de estratégias para conseguir a devolução de
cativos que haviam atravessado a fronteira. Na tentativa inicial de comunicação direta com
Assunção, alegou que a colaboração e devolução já era realidade em outro ponto da fronteira
(Província de Santa Cruz). Não obtendo êxito, acionou outro Capitão-General de São Paulo
que, pelo disposto no documento, era conhecido por ter relações mais profícuas na região. A
confiança no êxito dessa mediação era tão evidente que o Capitão-General do Mato Grosso
chegou a afirmar: “(...) suplico a V. Exca. de designar e interceder sobre esta matéria para que
da vossa cidade porque me persuado que elle não deixará de atender a huma semelhante
restituição (...)”. 610
A destreza do Capitão-General Luiz de Albuquerque para negociação com autoridades
castelhanas e mesmo de outras Capitanias da América Portuguesa também deve ser destacada.
De fato, Luiz de Abuquerque informava a verdade, quando se referia aos constantes êxitos na
devolução da população cativa que havia atravessado a fronteira na altura do Vale do
Guaporé. Contudo, tal sucesso na entrega dos escravos fugidos fora atingido gradualmente,
após numerosas idas e vindas e pressão por parte das autoridades da Capitania do Mato
608
Idem Ibidem.
APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 11 de junho de 1773, f.149.
610
Idem Ibidem.
609
236
Grosso que buscavam intermediação até em instâncias hierárquicas maiores da coroa
espanhola.
Por outro lado, se Luiz de Albuquerque havia atingido determinados êxitos nas
“restituições”, também é verdade que cativos não permaneceram passivos ante as articulações
entre as autoridades de ambos os lados da fronteira para captura e devolução. Em 1773, por
exemplo, os Anais de Vila Bela acabariam por confirmar que, naquela altura, talvez o interior
do Peru já fosse uma realidade para cativos que fugiam da América Portuguesa. Ao descrever
uma operação de cooperação entre as duas coroas na devolução de cativos e pagamento das
despesas com a restituição, os Anais de Vila Bela ainda registravam:
Não se entregaram todos os escravos, porque alguns se tinham entranhado
no Reino do Peru. Outros se achavam casados; enquanto destes se ordenou
muito poucos foram lá vendidos, a benefício de seus senhores.611
É relevante observar que o Capitão-General, além de enviar o pagamento diretamente
ao vice-rei da cidade de Lima, pelo que consta nos Anais, novamente tomava notícia sobre a
insistência de devolução de indígenas que se abrigavam em território português. Os espanhóis
tinham a visão de que tais ameríndios estivessem nas mesmas condições que os escravos
fugidos, portanto, assim como escravos que estavam sendo reivindicados, indígenas deveriam
ser devolvidos. Portugueses, por outro lado, sustentavam a seguinte visão: “pois que, estes
fugindo [escravos], cometem furto; e aqueles [indígenas] são livres, e como tais podem residir
onde lhes parecer” [grifos nossos]. Em resumo, para além da fuga ser considerada um
prejuízo financeiro e fator negativo para o desenvolvimento das atividades econômicas nas
minas da Capitania do Mato Grosso, ela era interpretada, ainda, roubo. Ou seja, o cativo, ao se
dar a própria liberdade, roubava a propriedade de outrem.
Outro documento disposto no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino apresentava o
mesmo caso:
Ponho na presença de Vossa Excelência que no dia 29 do mês passado
chegaram, finalmente, a esta Vila, 51 escravos que se achavam fugidos nos
domínios castelhanos, pertencentes a moradores desta Vila e de Cuiabá,
havendo ser preciso empregar alguns anos antes que efetivamente se
terminasse esta negociação, pela renitência que os governadores das
províncias de Moxos e Santa Cruz manifestavam em executar as ordens
precisas, que ultimamente lhes tinha dirigido sobre esta matéria, o vice-rei de
Lima. E ainda que mandaram entregar geralmente a todos os escravos
fugitivos, com muitos deles tinham se internado no reino de Peru, não foi
611
AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 189.
237
possível descobrir e apreender mais que o referido número que exponho a
Vossa Excelência [grifo nosso]. 612
Importante notar que, em função da resistência dos Governadores dos Mojos e de
Santa Cruz, o Capitão-General do Mato Grosso estava a se dirigir diretamente ao Vice-Rei do
Peru, que novamente afirmava a impossibilidade de captura e devolução, por conta de novas
fugas para terras mais distantes.
Em geral, da década de 1750 a 1780, podemos dizer que o quadro de relações entre as
duas coroas oscilou entre cooperação e morosidade. Assim como Luiz de Albuquerque
apresentava reclamações em 1773, o general que anteriormente estivera à frente da Capitania,
Luís Pinto (1769-1772), também já tecia críticas à Audiência de Charcas sobre a nãodevolução e falta de providências. Mencionava principalmente Santa Cruz e discorria sobre o
aumento das fugas, reclamadas desde 1768 por meio de ofícios. 613
No ano de 1773, outro caso notável se passou na fronteira entre as duas coroas,
demonstrando a posição “ativa” dos cativos frente às forças escravistas: em correspondência
enviada ao governador dos Mojos, as autoridades da Capitania do Mato Grosso pediam a
devolução de 3 cativos que habitavam um sítio chamado “Fazenda de Payla”.
614
Posteriormente, em nova correspondência enviada, mais informações são reveladas acerca
desses personagens, cujos nomes eram Pedro, Felix e Miguel;615 após o envio da primeira
correspondência, haviam sido entregues aos seus respectivos senhores na América
Portuguesa. Quando localizados, o documento informava que os mesmos se encontravam
casados e, especialmente Felix, apresentava uma situação diferenciada: casara-se com uma
cativa que havia raptado na Capitania do Mato Grosso. Felix, após ter sido trazido para Mato
Grosso, conseguiu empreender nova fuga. A carta afirmava que provavelmente teria ido ao
encontro da cativa com quem era casado. O que motivava a correspondência, portanto, era
uma nova captura de Felix e o envio da recompensa pelos gastos realizados com a devolução.
Depois desse episódio, não teremos mais notícias de Felix, possivelmente avançara na sua
fuga para terras mais distantes.
612
1773, janeiro, 1, Vila Bela. Ofício do [governador e capitão general da capitania de Mato Grosso] Luis de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e
Castro sobre a chegada de 51 escravos que andavam fugidos nos domínios castelhanos. CTA: AHU - Mato
Grosso, cx. 15, doc. 69.Apud LORDELO, Op. Cit.,pp.100-101.
613
APMT, Manuscritos, Estante 1, 1770, C-04, fl. 19.
614
APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 1773.
615
No documento Felix aparece grafado como “Fely”.
238
A história do escravo Felix e dos seus companheiros demonstra uma perspectiva de
vida para além das fronteiras escravistas ou, ao menos, uma tentativa, com o casamento e a
continuidade das fugas. Felix se casara com outra cativa e é muito provável que tenha sido
obrigado a uma nova fuga, caso quisesse se ver livre do cativeiro. Miguel e Pedro, por outro
lado, pelo que consta no documento, aparentemente se encontravam “casados”; infelizmente
as duas cartas que tratam sobre o caso não especificam com quem estavam casados, se com
indígenas ou com outras escravas. De qualquer maneira, parece-nos que o casamento seria
uma tentativa de re-começo de uma vida, ou talvez uma estratégia para proteção de uma
possível devolução. Aqui, lembramos, ao leitor, do trecho que anteriormente transcrevemos
dos Anais de Vila Bela, 1773; alegava-se que umas das razões apresentadas para nãodevolução total dos cativos fugidos, além das novas fugas para o interior, era o fato de que
alguns já estavam “casados”, o que aparentemente impossibilitava devolvê-los ao cativeiro.616
As fugas pelo Vale do Guaporé em direção às terras espanholas prosseguiriam nas
décadas de 1770 e 1780 e seriam cada vez mais numerosas, para os mais diferentes destinos,
inclusive para as Missões dos Mojos.617 Somente em 1775, informava-se que haviam fugido
para os domínios espanhóis a quantia de 60 escravos;
618
no ano de 1782, no ato de chegada
do cabo Francisco Pedro de Melo, acompanhado de 27 escravos devolvidos pelo governo de
Santa Cruz, afirmava-se que a quantidade era insuficiente porque registrava-se a fuga de mais
de 200 escravos naquela altura. 619
Esse tom frustrado acerca da devolução de cativos fugidos também pode ser observado
em 1786 nos Anais de Vila Bela, apresentado à Câmara pelo Vereador João Nunes Fernandes,
em que é relatado o retorno de Jorge Pompeu, com três escravos, ao território luso:
Em 4 de outubro, chegou das missões de Espanha o cabo-de-dragões Jorge
Pompeu, com três escravos, dizendo que os padres curas lhe prometeram
616
O casamento na América espanhola enquanto instituição protetora do escravismo na América Portuguesa
merece uma reflexão especial, pois no caso de Felix e seus companheiros que já estavam casados, vimos que
mesmo assim foram capturados e devolvidos à América Espanhola. Haveria diferenças em termos de proteção
social com a instituição de matrimônio, conforme a região da América Espanhola, no caso, entre os entornos de
Santa Cruz e o Peru?
617
Denise Maldi Meireles, por exemplo, afirma que em 1770 a missão de Magdalena recebeu 51 escravos; em
1772 a missão de Loreto recebeu 24 cativos; e a missão de Exaltación recebeu 46. Ver MEIRELES, Denise
Maldi. Guardiães da fronteira: Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989, p. 178.
618
619
APMT CVB CA 0057 Caixa nº 001 Apud LORDELO, Op. Cit., p. 114.
AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 233.
239
entregar quantos por ali aparecessem fugidos desta Capitania, o que é bem
para duvidar, pelo que temos experimentado [grifo nosso] 620
As constantes fugas para o “território castelhano” não cessaram quando a República da
Bolívia começou a se formar, “inaugurada” oficialmente em seu estatuto constitucional de
1825. Como mostra Sena,621 o novo país, com seus símbolos liberais de um Estado nacional
tido como “moderno”, não estava livre da escravidão, ainda que fosse previsto seu fim desde a
primeira constituição e nas outras seguintes, até meados do século XIX. Mostrar-se para seu
vizinho imperial, o Brasil, como “solo livre” era muito mais uma maneira de possuir trunfos
em negociações sobre territórios e outros assuntos do que erradicar tal forma de trabalho; era,
inclusive, uma forma de reconhecimento como “filantropia” por parte das autoridades de
regiões fronteiriças, quando seu senhor disponibilizava seu “objeto” para executar serviços à
sociedade.
No entanto, a ideia de que o Oeste continuava sendo um bom lugar para fuga do Mato
Grosso não desapareceu com os novos regimes do século XIX, mesmo as autoridades matogrossenses procurando reforçar os pontos de evasão. Já durante as guerras de independências,
como mostrou Seckinger, ocorreu um boato de que as tropas de Bolívar iriam invadir Mato
Grosso, justamente pela propagação do ideário liberal republicano, com a finalidade primeira
de libertar os africanos ou seus descendentes em cativeiro. Confirmou-se que a notícia era
falsa, mas existia uma senha; a fuga para o oeste, logo tornado Bolívia, continuaria.622
***
Finalmente, a partir de todo esse panorama exposto acima, podemos considerar que a
fuga de cativos para os domínios espanhóis foi elemento fundamental no que tange à
620
Idem Ibidem, p. 258.
Cf. SENA, 2013b.
622
Segundo Sena, não havia mais espaço para negociar a devolução de escravos quando o Império assina seu
primeiro tratado com a Bolívia, em 1867. Ver SENA, Ibidem; Villafañe Gomes Santos, por sua vez, mostra que
desde o início o Império tinha como pauta em suas relações internacionais as fugas de escravos, ou procurava
defender-se em suas argumentações por ser francamente escravagista. Dessa maneira, parecia ser um “estranho”
entre tantas repúblicas, sendo dificultadas várias relações. Ver SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O
Brasil entre a América e a Europa – O Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à
Conferência de Washington). São Paulo, Unesp, 2003; SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O Império e
as repúblicas do pacífico – As relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia (18221889). Curitiba: UFPR, 2002; sobre a pressão que as Américas recebiam, para não mais haver escravidão, ver,
por exemplo, o fundamental livro de Eric Fonner “Nada Além da Liberdade”, quando aconteceu a Guerra Civil
no início da década de 1860 - FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
621
240
instalação de povoamentos não-indígenas no extremo-oeste da América portuguesa; não
somente porque influenciava a adoção de estratégias que visavam diversificar o suprimento de
mão-de-obra (como o apresamento e “administração” de indígenas), constantemente
desfalcado pelas fugas de escravos, mas porque acabava provocando o próprio
relacionamento diplomático entre as autoridades das duas coroas, além das próprias capitanias
dos domínios portugueses.
As fugas de escravos na região, em última instância, podem ter sido “pivôs” e umas
das responsáveis pelo próprio perfil “mestiço” da população da Capitania. Os luso-paulistas,
ao se verem diante da necessidade de dar continuidade à exploração do ouro e desfalcados de
mão-de-obra, recorreram ao apresamento e incorporações de indígenas, sob numerosas
justificativas. Isso contribuiu para que a Capitania fosse composta por uma população
majoritariamente mestiça,623 com poucos brancos, escravos africanos, indígenas incorporados;
sobretudo, Bororos, cujas mulheres e crianças eram constantemente capturadas e trazidas para
Cuiabá, sendo distribuídas entre as famílias e incorporadas como escravas. 624
Em suma, ao vislumbrarmos tais casos, estamos diante não somente de tentativas
individuais de re-começar a vida para além do cativeiro, mas até mesmo da própria agência
escrava, que possivelmente obrigou a elaboração de estratégias políticas entre as coroas e a
adaptação às resistências ao sistema escravista. Resta-nos, portanto, seguir com uma reflexão
sobre aqueles que seriam forçados a abrir mão do próprio desterro e liberdade.
4.3. O retorno é a morte: a volta de cativos fugidos à sociedade escravocrata
Se é verdade que as fugas foram concomitantes ao instalar de povoamentos nãoindígenas no oeste do Brasil, as estratégias para estancar este grande problema – levadas a
cabo pela coroa portuguesa e moradores locais – e, assim, evitar a ocorrência, foram das mais
diversas. Elas abarcaram desde o estabelecimento de fortes junto às fronteiras e negociações
com autoridades vizinhas – fossem com a coroa espanhola ou capitães-generais de outras
623
Segundo Jovam Vilela, que analisou mapas demográficos ao longo do século XVIII, a população mestiça da
Capitania correspondeu cerca de 3/ 4 do total, composta em sua maioria por negros, indígenas incorporados e
caburés. SILVA, Op. Cit.,p. 23.
624
Segundo Joaquim Francisco Moutinho, “(...) as mulheres bororos ao chegarem ‘recusavam a princípio toda a
sorte de alimentos; depois foram-se acostumando, e hoje estão lindas e bem civilizadas, empregadas como
criadas em casas de família”. MOUTINHO, Joaquim Francisco. Notícias sobre a Província de MT. Typographia
de Henrique Schroeder, SP, 1869, p. 191; ver também SILVA, Op. Cit. , p. 247.
241
Capitanias, como vimos na seção anterior – até a edição de bandos que regulamentassem a
atividade de Capitães do Mato, como o de 1733, editado nos anos iniciais de estabelecimento
luso-paulista nas minas do Cuiabá e que definia generosas recompensas e obrigações. Essas
fugas que ocorriam para todas as direções – inclusive às sociedades indígenas (como o caso
do cativo que se assimilou aos Bakairis) –, foram capazes até de arrancar um suposto
tratamento “benevolente” das autoridades com aqueles que retornassem por livre e espontânea
vontade. Mas o que poderia significar o retorno daquele que havia se evadido do cativeiro?
Apesar das diferentes circunstâncias de retorno, nos é possível apontar duas significações:
uma vida ao menos possível, embora todas as vicissitudes do cativeiro e trabalho pesado
(principalmente, o que se fazia nas minas); ou a dor e o sofrimento de uma vida marcada por
castigos e até o medo de ser punido com a morte.
De todo modo, o estigma do perigo de novas fugas estaria reservado ao cativo que
algum dia havia ousado a se evadir da sociedade escravista. Logo, sobre ele, aplicar-se-ia
maior vigilância e, analogamente, maior rigor ou cuidado. Exemplo foi a aplicação de castigo
em 1773 a dois cativos, descritos como negros desertores, que já tinham no histórico a fuga
para os domínios espanhóis com devolução. As autoridades portuguesas, ao suspeitarem das
intenções de novas fugas, ordenaram a prisão dos mesmos e ainda sugeriram aos seus
respectivos donos que os vendessem à Capitania do Grão-Pará ou para qualquer outro lugar
com distância semelhante e, enquanto tal situação não fosse concretizada, que fossem
mantidos na cadeia o tempo que fosse preciso.
625
O estigma em questão era a alcunha de
desertor, ou seja, aquele que abandonara injustamente o seu posto de escravo. Paralelamente,
era preciso se livrar de novos problemas, portanto, que os fujões, tal como as autoridades os
concebiam, fossem enviados para longe da fronteira.
A busca por uma vida minimamente possível ou menos-sofrível é o que podemos
observar na fuga dos 7 cativos de origem mina das mãos de Antonio de França, que,
endividado e para evitar a penhora dos seus bens, havia se decidido pela fuga da própria
América portuguesa em 1756.626 Entre a submissão a Antonio de França e uma nova jornada
– não se sabe em quais condições e se tinham consciência do destino pretendido pelo
português endividado –, os 7 escravos mina se decidiram pelo retorno e cativeiro na Vila do
Cuiabá. Isso ocorreria por que na Vila já teriam estabelecido vínculos, que permitiam uma
vida suportável, ou por que viam menor número de possibilidades de sobrevivência com
625
626
APMT, Estante 1, C-07, 30 de abril de 1773.
Caso visto na seção anterior.
242
Antonio de França e, pragmaticamente, foram obrigados à escolha pelo menos trágico? Essas
são questões que permanecem em aberto, pois até o presente momento não localizamos mais
registros desse grupo de africanos mina, que, mesmo diante de numerosas possibilidades
(formação de quilombos, tentativa de adesão a sociedades indígenas, travessia para o território
espanhol, entre outras), decidiram-se pela volta ao cativeiro.
Em 1812, os Anais do Senado da Câmara de Cuiabá nos dão conta de um caso
extremamente dramático de retorno. Narra que no dia 1º de abril daquele ano um casal de
escravos havia retornado à vila – um negro, cujo antigo proprietário não era informado, e uma
mulata de propriedade de João Ferreira Mendes –, depois de 22 anos de evasão,
acompanhados de vários filhos, todos gerados no exílio. No total de doze, os Anais
registravam que os últimos dois partos haviam apresentado sérios riscos e levaram o cativo a
uma atitude desesperada para salvar a companheira:
(...) animado pela necessidade de salvar a vida da sua companheira, o
mencionado negro em um tirou do ventre em pedaços a criança que n’elle
estava morta, introduzindo como pôde a mão até o lugar em que fez uma
arriscada operação (...). 627
Vencido pelo risco iminente da morte da esposa e da vida perigosa no “bosque” com
os seus filhos, informa os Anais, o cativo decidiu pelo retorno; o que significava abrir mão da
sua e da liberdade dos seus entes, depois de duas décadas, para ver salva a sua companheira.
A descrição não consegue esconder a contradição entre duas décadas de uma vida autosuficiente fora da sociedade escravista pelo casal e o argumento do temor da vida isolada no
bosque, exposta a diferentes perigos. De qualquer maneira, essa história de amor acabava
com um final dramático em que os nossos personagens se viram obrigados à escolha entre a
volta à escravidão ou a morte do ente querido. Escolheram o primeiro caminho, que era a vida
da esposa-mãe.
Ainda que seja curta a narrativa – que não informa ao leitor qual foi o destino do casal
com os seus filhos –, é possível apontar a grande dificuldade de se entregar à sociedade
escravista, ante o futuro incerto, uma vez que poderiam ser punidos, separados, vendidos ou
até mortos. A recusa da captura com a resistência armada – constantemente apontada nos
regimentos que regulamentavam a ação dos Capitães do Mato – em parte não estaria motivada
pela recusa a todas essas possibilidades após o retorno, além do próprio cativeiro? Em todo
caso, vale salientar que a morte parecia sempre acompanhar de perto o escravo fugido, a
627
SUZUKI , Op. Cit., p. 201.
243
espreitá-lo de todos os lados: ou deveria fugir da morte, livrando-se da vida que levava fora da
sociedade escravista, dos constantes riscos na floresta com feras ou ataques de nações
indígenas; ou deveria encarar a possibilidade de punição com a morte, ao retornar à sociedade
escravista.
Em 1761, por exemplo, a troca de correspondências entre Rolim de Moura e padres
missionários dos domínios espanhóis deixava notório o medo que escravos sentiam ante a
ideia de devolução a portugueses: após Rolim de Moura solicitar os cativos que se abrigavam
em missões espanholas, padres que negavam o pedido alegavam que os escravos fugidos em
questão imploravam pelo não-retorno, com o argumento de que seriam castigados com pena
de morte. O então Capitão-General protestava aos padres, argumentando que o máximo que
poderia acontecer à escravaria fugida era o recebimento de castigos particulares dos seus
senhores. Dizia que não existia, naquela altura, nem lei antiga ou moderna que tratasse a
questão naqueles termos. 628
O conjunto de bandos publicados por dois capitães-generais do Mato Grosso, entre o
final do século XVIII e início do XIX, igualmente nos remete à imagem das terríveis
consequências que poderiam significar o retorno à sociedade escravista. Nos referimos às
promessas dos capitães-generais João de Albuquerque e General Carlos Augusto
D’Oyenhausen, de 1794 e 1808, respectivamente. No preâmbulo da primeira, nos chama
atenção a apresentação da justificativa humanitária do bando, editado pelo Capitão-General
João de Albuquerque:
(...) Faço saber a todas as Pessoas desta Capitania, que sendo-me presente, e
geralmente constante os graves danos e fadigas que experimentam todos os
Escravos fugidos que vivem expostos às Calamidades, e continuados riscos
que se experimentam nos matos, abandonados à barbaridade, como
selvagens,sem auxílio nem mesmo para alma, nem para o corpo:
compadecendo-me da miserável vida que levam esses infelizes Homens,
vassalos de Sua Majestade e tendo por outra parte também em vista o
irreparável prejuízo que tem seus senhores com suas fugas praticadas talvez
muitas vezes inconscientemente, e sem reflexão das quais naturalmente
estarão muitos deles arrependidos, temerosos de voltarem para as casas ou
poder dos mesmos senhores, temendo o justo castigo que merecem [grifos
nosso].629
Vários aspectos podem ser destacados somente neste pequeno trecho; a começar pela
suposta preocupação da sociedade escravista e, especialmente, do benevolente CapitãoGeneral com a fadiga experimentada por cativos ao se decidirem por uma vida longe da
628
629
APMT, Estante 1, C-05, 1761, p. 118.
RAPMT, Vol. 1, n. 3, março-setembro de 1987,p.43.
244
sociedade escravista, em que ficavam expostos às calamidades e riscos da vida nas matas, na
visão dos bons homens civilizados. João de Albuquerque, inclusive, apontava preocupação
com o abandono à vida selvagem e falta de “auxílio da alma”. Era uma responsabilidade para
as autoridades políticas do mundo lusitano manter a população escravizada no caminho, ou
seja, dentro do sistema.
Na sequência, chama atenção também o tratamento dos cativos como “homens” e
“vassalos” do rei, uma vez que tais definições se confrontariam com a própria lógica
escravista, baseada na ideia da desumanidade ou inferioridade humana do não-europeu.
Convém lembrar a própria base do colonialismo e escravidão desenvolvida por vários séculos,
teorizada principalmente ao longo dos séculos XVIII e XIX por um extenso conjunto de
autores, que investiam principalmente na divisão da humanidade por raças, em que o homem
europeu acabava por aparecer sempre no topo da pirâmide da evolução. A taxonomia
desenvolvida por Carlos Lineu (século XVIII) exemplifica tal divisão da humanidade de
acordo com critérios raciais (uma difusão de posição geográfica com pigmentação da pele).
Para o autor, a humanidade poderia ser compreendida em 4 principais raças: (1) Africanus,
que não conseguia escapar da preguiça e lassidão; (2) Asiaticus, que apresentava dificuldade
de concentração; (3) Americanus, teimoso e irritadiço; (4) o “Europeanus”, o mais inteligente
e inventivo.
630
Em linhas gerais, todo esse arcabouço teórico que se criou nesse contexto
incumbia o homem branco europeu de uma “missão civilizadora”, frente, sobretudo, a
africanos e ameríndios, que eram incapazes de dirigir uma sociedade civil. Em outras
palavras, o homem branco carregava o “pesado fardo” de encaminhar africanos ou indígenas
ao progresso civilizacional e, para tanto, se valeria da escravidão ou colonialismo. 631
João Albuquerque vai além e não somente considerava cativos como seres humanos,
mesmo que possivelmente em escalas hierárquicas inferiores, mas como iguais, no
qualificativo de vassalo. Valeria de tudo, até mesmo positivar aquilo que a própria estrutura
colonial negativava, a fim de viabilizar a atuação lusitana. Contudo, não deixava de frisar os
prejuízos causados pelas fugas.
630
MAGNOLI, Demétro. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009, p.
24.
631
Sobre a evolução das teorias raciais, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Uma história de ‘diferenças e
desigualdades’: as doutrinas raciais no século XIX”. In: O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e
Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Acerca da percepção do africano
à luz das teorias raciais e “missão civilizadora”, ver COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a
História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre, V. 15, N. 27, pp. 21-73, Jul. 2008.
245
O ponto alto da sua argumentação é quando o Capitão-General, para justificar o
“esquecimento” da fuga e não-aplicação de castigos, afirma que elas se davam com a
inconsciência do escravo fugitivo e, possivelmente, muitos estariam arrependidos, pois
temiam o justo castigo a que poderiam ser submetidos caso se entregassem voluntariamente
aos seus senhores. Observa-se que, na tentativa de convencer àqueles que haviam se apartado
da sociedade escravista, valeria até mesmo isentá-los de culpa por terem tomado as rédeas dos
próprios caminhos. Paradoxalmente, a igualdade afirmada no início do texto – cativos eram
vassalos do rei – esbarrava na negação do livre-arbítrio poucas linhas adiante. De qualquer
forma, vale registrar o anúncio da anistia:
Hei por bem que todos os ditos Escravos que se acharem fugidos, e aqui
lembrados a qualquer distância de Vila Bela e dos seus Arraiais, Distritos,
que recolherem até o último dia do mês de Setembro do presente ano, sejam
recebidos por seus Senhores, com todo o amor, e agasalho como se nunca
tivessem fugido, e ainda que a sua ausência seja de poços, ou muitos anos , o
que assim farei cumprir o combinado; debaixo de cuja certeza podem
seguramente voltar sem receio algum, garantidos do meu patrocínio e
segurança, dentro do referido tempo de dois meses.De agosto e setembro
referidos [grifos nossos].632
O perdão pelo “crime” cometido pelo cativo estava garantido, com a palavra da maior
autoridade da Capitania, mas com prazo anunciado de validade: por apenas dois meses, até o
final de setembro. Afirmava que poderiam retornar, mesmo se estivessem evadidos por
muitos anos, sem receio algum. Aqueles que se entregassem seriam recebidos com pleno
esquecimento. Ademais, chamamos atenção para o recebimento carinhoso e benevolente
recomendado (ou ordenado) aos senhores: com amor e agasalho. Tal aspecto revela uma
manifesta necessidade de se fazer amado por todos os cativos fugitivos, caso contrário,
mesmo se capturados, poderiam voltar a repetir a evasão, como já vimos em várias ocasiões
acima.
Outrossim, não estranha a adoção de tal estratégia no período, se levarmos em
consideração que, no decorrer do século XVIII, como afirma Michel Foucault em curso
ministrado no Collège de France em 1978, estava em curso no ocidente uma grande
reformulação no escopo das técnicas de poder e que intensificava a racionalização do poder
político. Dito de outro modo, a modernidade era palco de uma transição fundamental de um
tipo de “Estado administrativo” para o “Estado de governo”. O primeiro era fundamentado
nas ideias de territorialidade fronteiriça, soberania e disciplina, sintetizado principalmente
pela clássica obra intitulada “O Príncipe”, de Maquiavel; nela, o autor tecia considerações ao
632
RAPMT, Vol. 1, n. 3, março-setembro de 1987,p.43.
246
príncipe Médice, que havia recebido o principado por herança, sobre como manter, reforçar e
proteger o seu território. O objetivo final, portanto, do exercício do poder seria o de assegurar
a permanência do príncipe, balizando os perigos e manipulando as forças. 633
Ao analisar os séculos seguintes à publicação da obra, Michel Foucault observaria a
construção de toda uma literatura anti-Maquiavel, que se colocava em um campo contrário,
baseada principalmente no preceito de que existiriam múltiplas formas de governar; de modo
que, se em Maquiavel só haveria um único governante – o Príncipe –, na literatura antiMaquiavel assumiriam essa posição diversos personagens: o “pai de família” (governo da
casa), pedagogo, o professor, o superior do convento, entre outros. Para La Perrière, expoente
dessa última corrente de autores, no interior do governo de Estado existiriam vários outros
governos. Parafraseando esse último autor, Foucault salientava:
(...) É no interior do Estado que o pai de família vai governar sua família,
que o superior do convento vai governar seu convento. Portanto, há, ao
mesmo tempo, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de
governo em relação a Estado, multiplicidade e imanência dessas atividades
que se opõem radicalmente à singularidade transcedente do Príncipe de
Maquiavel.634
Em outras palavras, seriam observadas duas continuidades, a saber: ascendente e
descendente. A primeira partia do pressuposto de que aquele que desejasse governar um
Estado deveria saber governar a si próprio, subsequentemente a família, administrando os
seus bens e domínios, para finalmente chegar ao governo do Estado. A segunda,
inversamente, se fundamentaria na ideia de que o governante do Estado poderia ser um
espelho para todos os níveis abaixo; assim, com um bom governo, os pais saberiam
administrar as riquezas da família e os indivíduos a si próprios. 635
Na literatura anti-Maquiavel, teríamos, então, um esboço de uma arte de governo ou
“governamentalidade” que emergiria no século XVIII, no momento de grande expansão
demográfica no ocidente e abundância monetária; e que fez ascender o elemento “população,
o último destino de um governo – aumentar a riqueza da população, sua duração, saúde, entre
outros fatores.
633
636
Nesse bojo, de acordo com a necessidade de se produzir saberes acerca da
FOUCAULT, Michel. “A Governamentalidade” (1978). In: Ditos e Escritos, IV: Estratégia, poder-saber.
Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
634
Idem Ibidem, pp. 286-287.
635
Idem Ibidem, p. 288.
636
Michel Foucault define “governamentalidade” como “(...) conjunto constituído pelas instituições,
procediments, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma específica, bem complexa,
de poder, eu tem como alvo principal a população, com forma mais importante de saber, a economia política,
como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança”. Idem Ibidem, p.303.
247
população, as estatísticas ganhariam notoriedade, uma vez que demonstrariam as
regularidades das populações. Analogamente, essa arte de governo não somente deveria se
aplicar sobre a população tomada em seu corpo geral, mas sobre a consciência, interesse e
aspirações de cada um dos indivíduos que formavam essa população. O governo, nesse
contexto, agiria por campanhas e estímulos às pessoas.
Em 1981, o filósofo voltaria a se reportar sobre tal questão por outro ângulo, ao
investigar o uso da “razão na política”. Identificaria, no escopo das preocupações com os
indivíduos, o que denominou de “poder pastoral”, aquele poder individualizador, perceptível
na atenção individual que o pastor de um rebanho dispensa a cada ovelha. Segundo o autor,
para compreender essa técnica política, é necessário recuar a processos bem anteriores ao
século das luzes, precisamente à história dos hebreus, que desenvolvem e ampliam o tema
pastoral. 637 Naquele contexto, o pastor é aquele que abandona o próprio rebanho para ir atrás
de uma única ovelha, provê diariamente e pessoalmente o seu rebanho, sempre com grande
benevolência. O pastor vela por aqueles que dormem. De acordo com Foucault:
Em primeiro lugar, ele age, trabalha e contrai despesas para aqueles
que ele alimenta e estão dormindo. Em segundo lugar, ele vela por
eles. Ele presta atenção em todos, sem perder de vista nenhum deles.
Ele é levado a conhecer seu rebanho no conjunto, e em detalhe. Ele
deve conhecer não somente a localização das boas pastagens, as leis
das estações e a ordem das coisas, mas também as necessidades de
cada um em particular. Uma vez mais, um comentário rabínico sobre
o Êxodo descreve nos seguintes termos as qualidades pastorais de
Moisés: ele enviava para pastar cada ovelha por sua vez – primeiro as
mais jovens, para dar-lhes de comer a erva mais tenra; depois as mais
velhas e enfim as mais antigas, capazes de triturar a erva mais
coriácea. O poder pastoral supõe uma atenção individual a cada
membro do rebanho.638
Em termos gerais, ao analisar a literatura cristã dos primeiros séculos e o uso desse
poder pastoral como tecnologia de poder, o autor apontaria quatro características
fundamentais: a) o poder pastoral é caracterizado por responsabilidade, em que o pastor provê
pelo rebanho em sua totalidade e por cada ovelha em particular; b) cada ovelha deve
obediência ao pastor, ou seja, deve se submeter à lei do pastor, que é a lei de deus; c) o pastor
deve ser informado sobre cada ovelha em particular, das suas necessidades materiais, pecados
637
Foucault ressalta que apesar de se identificar o “poder pastoral” noutras sociedades do Oriente Médio – Egito,
antiga Assíria e Judéia -, até mesmo na Grécia, nas considerações tecidas por Platão na obra “A política”, é no
contexto hebraico que a temática se desenvolve e se amplia. Ver FOUCAULT, Michel. “Omnes ET singulatim”:
uma crítica da razão política. In: Idem Ibidem. Ditos e Escritos, vol.IV. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro.
2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
638
Idem Ibidem, p. 360.
248
públicos e até secretos; d) a ovelha do rebanho deve renunciar a este mundo e a si mesma –
mortificação por uma vida que se dá em outro mundo.639
Aqui, após termos esboçado o que acontecia em termos de modificação de técnicas e
exercício de poder no Ocidente no período, podemos retornar à promessa de asilo do CapitãoGeneral João de Albuquerque aos cativos que se achavam fugidos. Em primeiro lugar, é
compreensível que o mesmo se coloque na posição de pastor das ovelhas desgarradas e de
mediador entre elas e os seus proprietários, quando promete o esquecimento do crime
cometido. O Capitão-General assumia explicitamente a posição de pastor, ao especular a fuga
inconsciente ou arrependimento. A sociedade escravista, na palavra do pastor, estaria de
braços abertos àqueles que se desgarraram do cativeiro.
Em segundo lugar, um dos motivos alegados por João de Albuquerque, que o fazia
prometer o asilo e esquecimento da fuga e mediar a não-aplicação de castigos, era a
preocupação com o “auxílio da alma” dos escravos fugidos. Então, movido por essa
benevolência paternalista, convidava-os para o retorno ao cativeiro. Ou seja, à escolha entre a
vida fora da sociedade escravista-cristã, onde poderiam ficar expostos às “barbaridades” e,
portanto, às punições divinas no pós-vida, e a vida com auxílios para alma e garantia de uma
vida melhor em outro mundo. O governador, em suma, fazia um convite à mortificação
(renúncia da própria liberdade), em nome da vida no além.
E o que estava reservado àqueles que recusassem a bondade do Capitão-General? A
sequência da carta indicava a outra face do pastor benevolente:
(...) Outrossim sou servido declarar que todos aqueles que dentro do dito
tempo não aproveitarem desta pia intenção, e indulgência serão depois
tratados com todo rigor das Leis por via das eficazes diligências a que
mandarei logo proceder; passando as Ordens necessárias para serem
perseguidos, maltratados e apreendidos sem então merecerem piedade
alguma, como Homens não só inimigos de si próprios, mas prejudiciais à
República, desobedientes às minhas Ordens, e de Sua Majestade [grifos
nossos].640
As ovelhas desgarradas só seriam aceitas no caso de se entregarem voluntariamente
no prazo estipulado, se obedecessem ao pastor. Do contrário, seriam submetidas a punições
rigorosas. O governante benevolente se transformava no pai rígido ante a desobediência e
aqueles que outrora haviam sido abordados como iguais (vassalos) voltavam a ocupar
escalões inferiores da civilidade. A carta de João de Albuquerque revelava, para além desses
639
640
Idem Ibidem, p. 368-370.
RAPMT, Vol. 1, n. 3, março-setembro de 1987, p. 43.
249
aspectos, um contínuo jogo entre o se fazer amado ou temido, que nos remete a um clássico
trecho do próprio “Príncipe” de Maquiavel:
(...) deve-se ser tanto amado quanto temido, mas como é difícil que as duas
coisas andem juntas, é muito mais seguro ser temido que ser amado, se uma
das duas coisas tem de ser preferida. Pois pode ser dito dos homens em geral
que... enquanto você os beneficia, eles são inteiramente seus [Mas] os
homens têm menos escrúpulos em ofender a quem se faz amado que a quem
se faz temido; pois o amor é mantido por uma cadeia de obrigações que,
sendo os homens egoístas, é quebrada toda vez que isso interessa a seus
propósitos; mas o medo é mantido pelo receio da punição que nunca falha.
Mais ainda, um príncipe deve se fazer temido de uma forma tal que, se não
ganha amor, de toda forma evita o ódio: pois o medo e a ausência de ódio
podem bem andar juntos... Eu concluo, portanto, quanto ao fato de ser
amado ou temido, que os homens amam segundo sua própria livre vontade,
mas temem segundo a vontade do príncipe, e que um príncipe sábio deve se
sustentar sobre aquilo que está em seu poder e não naquilo que está no poder
de outros. 641
O capitão-general, ao mesmo tempo que isentava de culpa aqueles que haviam se
apartado da sociedade escravista e considerava os possíveis sofrimentos no desterro, a ponto
de prometer o perdão, desejava o retorno do escravo; e, possivelmente, a construção de uma
outra relação para evitar futuras fugas, pautada na afetuosidade, já que aplicação de castigos
estava vedada.
João de Albuquerque percebera que para manter sob controle a população escrava no
oeste do Brasil, localidade com vários pontos para evasão, dependia do afeto, da benevolência
e amor. Todavia, se tudo isso não bastasse, então deveria se valer do temor, terror da
perseguição, captura e futuras punições. Se não poderia ser amado, então que fosse temido.
Assim, para todos os efeitos, esperava-se o retorno voluntário.
Infelizmente, pela ausência de informações documentais, não sabemos se a promessa
de asilo surtiu efeito, se de fato houve retorno e se a mesma chegou ao conhecimento de todos
que viviam nas matas. Sobre este ponto, tudo indica que não. Se chegou, considerando as
relações comerciais tecidas entre fugitivos e moradores das vilas, arraiais e distritos, não foi
de imediato. De qualquer maneira, a consulta aos arquivos do período demonstra uma imensa
desproporção entre informes de fugas e entregas voluntárias. Quando observamos os Anais de
Vila Bela, os Anais do Senado da Câmara do Cuiabá ou as correspondências trocadas entre
autoridades da Capitania, notamos que casos como aquele dos sete africanos mina que
641
MAQUIAVEL, Nicolau. Apud CHATTERJEE, Partha. Colonialismo, Modernidade e Política. Tradução de
Fábio Baqueiro. Salvador: EDUFBA, 2004, p. 27.
250
retornaram à Vila do Cuiabá, fugidos de Antonio de França, são raros. No geral, o retorno à
sociedade escravista se dava com grande resistência e aplicação de força. O cativo do
sertão642 estava preparado para tudo, a fim de não retornar à sociedade escravista: resistir até
a morte ou se evadir para terras mais distantes. O amor ofertado pela sociedade escravista,
portanto, não era correspondido. O temor que as autoridades tentavam incutir naqueles que
fugiam, por sua vez, era desafiado quando conscientemente optavam por permanecer fora da
sociedade escravista na região.
Após alguns anos, apareceria uma carta que guardava grandes semelhanças com a
escrita por João de Albuquerque, de autoria do então governador Carlos Augusto
D’Oyenhausen. Escrita no dia 18 de setembro daquele ano, apontava um prazo maior para que
todos os cativos que estivessem nas matas se entregassem voluntariamente: até o último dia
de 1808. Assim como João de Albuquerque, justificava o esquecimento da fuga por uma
questão de “beneficância” e necessidade de promover o bem geral dos habitantes da
Capitania. E, igualmente, considerava a possibilidade de que muitos dos que se achassem nas
matas estivessem arrependidos e desejosos pelo retorno à sociedade escravista. Contudo,
aqueles que não se aproveitassem da benevolência do bom pastor deveriam se atentar às
conseqüências: “uma vez que não se aproveite dele no prazo taxado farei proceder nas mais
exatas buscas e darei os mais severos castigos aos que abusarem desta graça.” 643
Nas entrelinhas, podemos dizer que todo aquele cativo fugido que não obedecesse a
tais pedidos ignorava ou desafiava a “missão civilizatória”, a vida eterna cristã sempre
prometida e a capacidade punitiva. O retorno poderia significar uma dupla morte, a possível
pena capital (alegada anteriormente) e a própria morte do sujeito; renunciando ao próprio
livre-arbítrio, anulava-se a favor de uma vida no cativeiro e em benefício de outra prometida
para o além.
Finalmente, negando-se ao retorno, apesar dos riscos permanentes que isso implicava
(de serem massacrados por nações indígenas, capturados e vendidos como escravos à América
espanhola, entre outras possibilidades), afirmavam a necessidade de um outro horizonte ou
caminho a se seguir. E, especialmente no caso do africano extraído e comercializado viaAtlântico sul, poderia significar o espaço de liberdade de que necessitava para, quem sabe,
professar livremente as suas crenças ou se organizar social e politicamente da maneira que lhe
642
Clássica designação ao escravo que habitava no oeste do império luso-brasileiro, pela historiadora matogrossense Luiz Volpato.
643
Idem Ibidem, p. 46.
251
aprouvesse. E é justamente essa organização específica que podemos observar no famoso
Quilombo do Grande, que analisaremos no capítulo seguinte. Após o cruzamento da fronteira
escravista, era preciso se reconstituir, principalmente em termos de identidade. “O que agora
nós somos distante da terra natal, que está além do mar?”, talvez se perguntassem aqueles que
aqui chegavam e rompiam com os grilhões.
252
Mapa 13 – o vale do rio Paraguai
SILVA, Jovam Vilela. Mistura de cores: política de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso
(século XVIII) Cuiabá: EdUFMT, 1995, p.22.
Mapa 14 - o vale do rio Guaporé
Fonte: Idem Ibidem.
253
Mapa 15 – Os Bororos no Mato Grosso
Fonte: ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados,
MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Graduação em História, 2005, p.35.
254
Mapa 16 - localização das terras indígenas Bakairi 1
Fonte: BARROS, Edir Pina de. Os filhos do sol: história e cosmologia na organização social de um povo Karib:
Os Kurâ-Bakairi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p.21.
255
Mapa 17: Localização das terras indígenas Bakairi 2
Fonte: Idem Ibidem, p.45.
256
Mapa 18 – Migrações Xavante do Goiás para Mato Grosso
Fonte: GOMIDE, Maria Lucia Cereda. Território no mundo A’uwe Xavante. Disponível em
<http://confins.revues.org/6888?lang=pt#ftn1>. Acessado n dia 13 de setembro de 2014
257
Mapa 19 – a repartição de Mato Grosso
Fonte: ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk
Maria de (orgs.). A terra da conquista: a história do Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003, p.64.
258
Mapa 20 – repartição de Mato Grosso e Cuiabá e a fronteira com as missões jesuítas
espanholas no século XVIII
Fonte: FERNANDES, Suelme Evangelista. O forte do Príncipe da Beira e a fronteira Noroeste da América
Portuguesa (1776-1796). Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em
História, 2003 (dissertação), p.83.
259
Mapa 21 - fluxo de fugas da Capitania de Mato Grosso para as Missões dos Mojos e
Chiquitos e Paraguai
Fonte: LORDELO, Monique Cristina de Souza. Escravos Negros na fronteira oeste da Capitania de Mato
Grosso: Fugas, capturas e formação de quilombos (1748-1796). Universidade Federal de Mato Grosso –
Programa de Pós-Graduação em História, 2010 (dissertação).
260
Gráfico 2 – Estimativa de importação de escravos provenientes da África Central
Atlântica e da Costa da Mina pelo Brasil, 1700-1810.
Fonte: CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969, p.
207.
261
CAPÍTULO 5 – O que atravessou o Atlântico: o Quilombo Grande entre
começos e re-começos (1730-1795)
(...) Quando foi presa esta Amazona parecia Pestesilea furens, mediisque in
milibus ardet. E foi tal a paixão que tomou em se ver conduzir para esta
Villa, que morreu enfurecida. Imitou no animo a grande Cleopatra, que antes
quiz a morte do que entrar no triumpho em Roma. Presou mais a vida
Zenobia, rainha dos Palmyros, que entrou n’aquella cidade em cadeas de
ouro (...).644
Comparável a personagens mitológicos e a antigas rainhas, assim apareceu Teresa de
Benguela nas memórias coloniais elaboradas pelo provedor da Fazenda Real, Filipe José
Nogueira Coelho. Baseado nas crônicas de José Barbosa de Sá e no exame direto nos arquivos
da provedoria e intendência,645 o provedor equiparava Teresa a Pestesilea, filha de Ares e
Othera, guerreira e rainha das amazonas. Igualmente, lembraria Cleópatra – a “rainha dos
reis”, estrategista e detentora de uma beleza contagiante que fora capaz de seduzir dois dos
homens mais poderosos do mundo antigo, a saber, Júlio César e Marco Antônio – por ter
preferido a morte ao triunfo do inimigo, ao se deixar ser picada por uma serpente após ser
informada da derrota do marido, para que não fosse exibida nas ruas de Roma como
prisioneira. A rainha quilombola, ao olhar do provedor, também seria como Zenobia, rainha
da cidade de Palmira que no século III, após a morte do esposo, assumira o reinado, que
compreendia vasta região que abrangia parte do Egito, Síria e Ásia Menor. Desse modo, a
paixão e fúria de Teresa, mulher de pedra, que estava à frente do Quilombo Grande, era
descrita com estranha admiração ou respeito.
O Quilombo Grande, objeto por excelência do capítulo que se segue, enquanto existiu,
ao longo de décadas, causou, para além do incomum reconhecimento da capacidade
organizativa e valores morais, grandes incômodos. Formado na década de 1730, até o final do
século XVIII era um convite aberto para realização de novas fugas, um desafio à capacidade
militar da Capitania. O seu abatimento, portanto, seria necessário por questões econômicas –
todo cativo fugitivo representava prejuízos financeiros – e por fatores de ordem militar ou
política, uma vez que a Capitania se encontrava em região fronteiriça com a América
espanhola, caracterizada por constantes instabilidades. O abatimento do quilombo, em última
644
COELHO, Filipe José Nogueira. Memórias Chronológicas da Capitania de Mato Grosso. Rio de Janeiro:
Revista Trimestral de História e Geografia/Jornal do IHGB, 2º semestre de 1850, p. 182.
645
Coelho afirma que realizou o exame direto nos arquivos, afirmando serem autênticas e de “incontestável fé”
as memórias consultadas. Idem Ibidem, p. 138
262
instância, representava a elevação dos ânimos dos habitantes que tentavam a sorte nas minas
do Cuiabá e Mato Grosso.
Embora tivesse se formado nos idos da década de 1730, somente foi organizada a
primeira bandeira para derrubá-lo em 1770. Naquela altura, após cerca de 40 anos de
existência, já havia uma considerável hierarquia política, organização econômica, social e
militar. Parafraseando Flávio dos Santos Gomes, igualmente já havia se formado um “pântano
negro”, em vista das complexas relações estabelecidas entre quilombolas e a sociedade
externa.646 A expedição, como veremos adiante, o atacou de surpresa e foi relativamente bemsucedida, tendo em conta que conseguiu desarticular toda organização encontrada, capturar
Teresa, a principal autoridade, e uma quantidade considerável de aquilombados – além de
destruir todas as hortas e queimar casas encontradas. Entretanto, outras dezenas conseguiram
se evadir. Posteriormente, retornaram à região e re-construíram outro quilombo, conhecido
por autoridades portuguesas como “Quilombo do Piolho”, em alusão ao rio Piolho ou a José
Piolho, o mesmo que presidia o Parlamento do Quilombo Grande.
647
Assim como outros
quilombos na América portuguesa-Brasil e a “hidra de lerna”, que a cada cabeça decepada
nasciam-lhe outras duas, o Quilombo Grande (ou do “Piolho”, como era conhecido em 1795)
havia se reconstruído das cinzas dos primeiros ataques, revelando um complexo quadro
político formado em torno da área ocupada pelos aquilombados, que dificultava a sua
completa destruição.648
Destarte, fracionamos nossa reflexão em três momentos. No primeiro, apresentamos
considerações gerais sobre a organização de quilombos na América Portuguesa e Brasil e,
posteriormente, as minúcias da agência cativa nesses espaços na Capitania do Mato Grosso e
Província, caracterizada pela constante necessidade de se estabelecerem contatos clandestinos
com povoamentos luso-brasileiros e pela exploração mineira realizada por quilombolas. Na
646
Na obra “A Hidra e o pântanos”, o historiador Flávio dos Santos Gomes afirma que as teias formadas por
quilombolas com membros externos ao quilombo, propiciavam intercâmbios entre fugitivos, grupos indígenas,
vendeiros, negociantes, pequenos proprietários, geralmente de maneira clandestina, e acabavam por se
caracterizar como imensos pântanos nos quais as autoridades lusitanas se “atolavam”, pelo fato de estarem
inviabilizadas ao abatimento por completo destes espaços. Ver GOMES, Op.Cit., p. 35.
647
Essa bandeira de 1795 é a mesma que analisamos no capítulo 3 da presente tese, a partir da diligência
elaborada por Francisco de Mello. No capítulo que se segue, realizaremos constantemente um diálogo com a
mesma, uma vez que o quilombo do Piolho era formado por remanescentes do Quilombo Grande, atacado em
1770.
648
Flávio dos Santos Gomes utiliza o termo “hidra” como uma metáfora para os quilombos no Brasil, para
enfatizar as constantes formações de quilombos no Brasil, que nasciam dos escombros de outros. O que se passa
no Quilombo Grande entre os ataques de 1770 e 1795 segue basicamente o mesmo roteiro de outras partes do
território luso-brasileiro. Ver GOMES, Op. Cit., p. 35.
263
segunda seção do capítulo, teceremos uma reflexão sobre o possível processo de
“aruaquização” vivenciado pelo Quilombo Grande, no contato com indígenas Pareci-Cabixis,
que viviam na região onde o espaço fora edificado. Assim, investigaremos especificamente a
prática do “rapto de mulheres”, uma vez que grande parte das mulheres indígenas que
estavam no Quilombo Grande foram raptadas por quilombolas, de acordo com a
documentação consultada. Igualmente e à luz do antropólogo Max Schmidt, realizaremos uma
reflexão acerca da possível assimilação das técnicas de cultivo do milho e mandioca no
interior do quilombo.
Por fim, na última seção, apresentamos, em primeiro lugar, uma reflexão sobre a
procedência africana na região, para adiante conjecturarmos o caráter da organização política
do Quilombo Grande e autoridade de Teresa, à luz das tradições políticas e militares dos
povos Imbangalas e Ovimbundos – povos que habitavam o planalto de Benguela. Nessa
seção, tecemos um exame a respeito da obediência, disciplina, hierarquia e flexibilidade de
adesão ao quilombo por agentes externos às estruturas de linhagem.
5.1. O significado da agência cativa: notas gerais sobre os quilombos na América
Portuguesa e Capitania do Mato Grosso
Estudos recentes sobre os quilombos no Novo Mundo, que combinam diferentes fontes
documentais e metodologias, à luz da antropologia e arqueologia, têm desvelado novos
aspectos da experiência e agência cativa. Pesquisas como as realizadas por Richard Price e
Pedro Paulo de Abreu Funari são exemplares nesse sentido. Price, ao trabalhar com os
“Saramakas” do Suriname durante 30 anos e a partir das observações etnológicas coletadas
nesse período, constata diferenças quanto às fontes que os descreviam, sobretudo aquelas que
se referiam à organização militar e política. Segundo o autor, se o pesquisador se atém apenas
às fontes escritas, teria diante de si uma visão “pálida” dos Saramakas.649
649
PRICE, Richard. “Palmares como poderia ter sido”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos
(Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
264
A pesquisa de Funari, por sua vez, está centrada na utilização de vestígios
arqueológicos localizados no antigo Palmares, na “Serra da Barriga”. Entre os anos de 1992 e
1993, o trabalho capitaneado pelo autor conseguiu reunir 2.448 artefatos em 14 sítios
diferentes, contendo peças de cerâmica comum, porcelana, lítico, vidro, metal, entre outros. A
partir desse material coletado, Funari tem constatado intensa mescla cultural com grande
presença indígena, além de evidenciação de relações dos quilombolas com forças externas,
atestada pela presença de cerâmicas européias. 650
Destarte, a análise da transformação da instituição “kilombo” em “quilombo” no Novo
Mundo é mais uma maneira de perceber o papel ativo na construção da própria história desses
homens e mulheres trazidos à América como escravos, além de delinear quais foram as
permanências, adaptações, contingências ou empréstimos culturais.
Como vimos anteriormente, o “kilombo” em território africano, especialmente entre os
Imbangala-Jagas, constituía uma instituição transcultural, local de cruzamento de diferentes
culturas que estiveram entre os atuais Angola e República Democrática do Congo. De acordo
com relatos do período, os “kilombos” na África seriam acampamentos de iniciação militar,
cuja principal característica seria a não-pertença a linhagens e na qual membros estariam
submetidos a numerosos rituais que acabavam por afastá-los do “seio protector do seu grupo
de filiação natal”.
651
Iniciados, tornavam-se guerreiros invulneráveis às armas dos inimigos.
652
A instituição nas Américas, por outro lado, assumiu conotação radicalmente diferente.
Se com os Imbangalas designava acampamento de iniciação militar, no Novo Mundo, passou
a remeter a campos de refugiados do sistema escravista; sociedades pequenas ou em larga
escala, diferenciadas em termos de organização econômica a depender da região onde
estivessem instaladas.
653
De acordo com Silvia Hunold Lara, apesar das definições de
“quilombos” serem parecidas, assentam-se sobre bases diferentes: ora consideram a distância
650
FUNARI, Pedro Paulo de Abreu. “A arqueologia de Palmares – sua contribuição para o conhecimento da
história da cultura afroamericana”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por
um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
651
MILLER, 1995.,pp. 159-160.
652
Idem Ibidem.
653
Na Capitania de Mato Grosso, por exemplo, quilombolas eram referenciados também como “mineiros” e
parte dos minérios que extraíam comercializavam ilegalmente com portugueses. Ver LORDELO, Op. Cit.
265
do lugar onde se estabeleceram, ora dão primazia à disposição para resistência à captura ou
mesmo quanto à ênfase na capacidade de sobreviver por longa duração nas matas. 654
Vale ressaltar que essa formação de grupos de escravos fugidos recebeu diferentes
designações por toda a América: palenques, cumbes ou cimarrón na América espanhola;
Maroons na América inglesa; grand marronage nos territórios franceses; e na América
portuguesa, além do “quilombo”, também o termo “mocambo” – habitantes desses espaços
poderiam ser chamados de quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. 655
Em todo caso, tais comunidades, como afirma Richard Price, representavam a antítese
de tudo o que a escravidão representava, ou mesmo a existência de uma consciência escrava
que se recusava a ser limitada ou manipulada. 656 Ou, como aventa Carlos Magno Guimarães,
os “quilombos” eram a contradição básica da realidade escravista, na medida em que
representavam retirada do escravo do processo produtivo, impossibilidade de reposição do
capital investido na aquisição do cativo, gastos exigidos para montagem da repressão
(bandeiras de captura), prejuízos materiais em decorrência das atividades desenvolvidas por
quilombolas (assaltos, incêndios, sedução para novas fugas), entre outros. 657
De maneira geral, como salientam João José Reis e Flávio dos Santos Gomes:
(...) Os quilombolas brasileiros ocuparam sertões e florestas, cercaram e
penetraram em cidades, vilas, garimpos, engenhos e fazendas; foram
atacados e usados por grupos escravistas, aos quais também atacaram e
usaram em causa própria.; fugiram da escravidão e se comprometeram com a
escravidão; combateram e se aliaram com outros negros, índios e brancos
pobres; criaram economias próprias e muitas vezes prósperas; formaram
grupos pequenos, ágeis, móveis e temporários, ou grupos maiores,
sedentários, com gerações que se sucediam, politicamente estruturados;
envolveram-se com movimentos políticos de outros setores sociais,
desenvolveram seus próprios movimentos, alguns abolicionistas;
aproveitaram-se de conjunturas políticas conflitivas nacionais, regionais, até
internacionais, para crescer, ampliar alianças, fazer avançar seus interesses
imediatos e projetos de liberdade mais ambiciosos.658
654
LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães do Mato e o governo dos escravos”. In:
REIS; GOMES, Op. Cit., p. 97.
655
Em vista da presença portuguesa ao longo do território angolano, alto volume comercial de escravos, contatos
diretos com Imbangalas e Ovimbundo, certamente o “quilombo” utilizado nas documentações portuguesas
certamente se trata de um aportuguesamento do “kilombo” fala no idioma umbundu dos povos Ovimbundus
Mundombe, que habitavam região próxima à Benguela. Ver MILLER, 1995, p.165.
656
PRICE, Op. Cit. , p. 52.
657
GUIMARÃES, Carlos Magno. “Mineração, quilombos e Palmares – minas gerais no século XVIII”. In:
REIS; GOMES. Op. Cit, pp.139-154.
658
REIS; GOMES, Op. Cit., p. 23.
266
Tal quadro, em que o cativo aparece como agente ativo e móvel, protagonista da sua
própria trajetória, lançando mão de diferentes estratégias para o alcance da liberdade,
igualmente se faz perceptível no Mato Grosso e Cuiabá do século XVIII. O quadro/tabela
apresentado pelo Capitão General Luís Pinto de Sousa Coutinho em 1771, discutido
anteriormente, nos apresenta um universo da agência cativa que explorava numerosas
possibilidades, entre as quais a formação de quilombos (ver tabela 5).
Igualmente, o levantamento realizado por Monique Lordelo dos quilombos registrados
nas correspondências trocadas entre as autoridades da Capitania de Mato Grosso para segunda
metade do século XVIII dimensiona tal evasão: entre as repartições do Mato Grosso, Cuiabá e
Mojos (América Espanhola), foram localizadas notícias de 20 quilombos de variadas
proporções. Nesse bojo, destacaram-se os quilombos do Sepotuba (1769), do Porrudos
(1769), Baures (1778), Piolho (1795), Pindaituba (1795) e principalmente o Quariterê,
também conhecido como “Quilombo Grande” (1770). 659
Se quatro deles recebem tal denominação pela proximidade com rios (Porrudos,
Pindaituba, Sepotuba e Baures), esse não parece ser o caso do Piolho, já mencionado na
presente tese.
660
O quilombo abatido em 1795, formado por remanescentes de quilombolas
do Quilombo Grande de 1770, mulheres indígenas e caburés, poderia assim ser denominado
em homenagem a José Piolho, a quem se atribuía a primeira chefia do já extinto Quariterê;661
ou, ao maior conselheiro de Teresa de Benguela, descrito nos Anais de Vila Bela como maior
autoridade entre os parlamentares que assistiam a rainha, escravo de Antônio Pacheco de
Morais.662 A despeito da referência, o quilombola aparentemente emprestou nome ao
quilombo e, subsequentemente, à própria designação do rio.663
De maneira geral, os locais escolhidos para formação do quilombo se apresentavam
como abundantes para caça e pesca, propícios para prática de agricultura e, no caso do Mato
Grosso ou Cuiabá, para extração de ouro ou diamantes. É o que podemos observar em
659
Sobre a citada pesquisa, ver LORDELO, Op. Cit., pp. 81-82.
Especialmente no capítulo 3, no relato da diligência para captura de quilombolas em 1795.
661
Ver SIQUEIRA, Elizabeth Madureira; COSTA, Lourença Alves da; CARVALHO, Cathia Maria Coelho. O
processo histórico de Mato Grosso. 3ª ed. Cuiabá: Editora Guaicurus, 1990. pp.134-135.
662
Ver AMADO; ANZAI, Op. Cit., p.140.
663
Posteriormente o rio aparecerá referenciado como rio São João. Acerca do quilombo do Sepotuba, vale
salientar que nos Anais de Vila Bela o mesmo aparecerá referenciado como próximo a um sítio chamado
“Sepotuba”, na repartição de Mato Grosso. O mesmo foi destruído pelo sargento-mor Bento Dias Botelho, a
pedido do Capitão General Luís Pinto. Ver Idem Ibidem, p. 131.
660
267
documento de 1779, em que é expedida a ordem de examinar, prender e destruir negros que se
achassem aquilombados em terras minerais na bacia do Paraguai. Releva-se ainda a prisão de
4 cativos – João Mina, Caetano Mina, Miguel Mina e Mariana –, que estavam em posse de
certa quantia de ouro.
664
Com os mesmos, foram também apreendidos armas de fogo,
machados, foices velhas, alavancas e panos de algodão.
Correspondências trocadas entre autoridades durante a segunda metade do século
XVIII, que expressavam preocupação em manter o monopólio da exploração mineira, também
manifestavam incômodo com a atuação de quilombolas. Em 1781, por exemplo, o mestre de
campo Antônio José Pinto de Figueiredo, em carta ao Capitão-General da Capitania de Mato
Grosso, solicitou mais guarda e punição aos quilombolas em região de exploração mineira:
(...) se forneça com mais força a guarda do diamantino ribeirão Paraguai, (...)
e também é importantíssima procedência que Vossa Excelência fez aplicar
sem perdas de tempo para dissipar, queimar e destruir inteiramente aquele
quilombo de fugidos que se achavam extraindo ouro e diamantes no proibido
ribeirão de Santa Ana o que tudo se executou à risca. 665
Em 1784, o mesmo mestre de campo voltaria a se referir à atuação dos quilombolas na
região, afirmando que o quilombo seria grande e com ranchos espalhados por toda região. 666
Tais casos, em última instância, sugerem contatos diretos de quilombolas com comerciantes
locais, não somente porque deveriam comercializar clandestinamente o que extraíam das
atividades mineradoras, mas também pelo fato de estarem em posse de instrumentos e até
armas de fogo, como o caso relatado de 1779.
Contatos de quilombolas com habitantes de povoados locais também são referenciados
na bandeira que derrubou os quilombos que se localizavam próximos ao rio Pindaituba, em
1795. Segundo o relato da diligência que devassou os arranchamentos liderados por Antonio
Brandão e Joaquim Felix, os quilombolas se dirigiam aos povoados para convidar novos
cativos à fuga e também para comprarem mantimentos. 667
664
No documento consta que guardavam consigo 20 oitavas e 3 quartos de ouro em pó, além de duas pedras de
diamante. Ver APMT, QM, TM, RO 0998, Cx.15; LORDELO, Op. Cit.
665
APMT, QM. TM. CA.1053, Cx. 16. LORDELO, Ibidem., p. 76.
666
O mestre de campo alega que a localização espalhada era estratégia para rápida evacuação, caso fossem
atacados por forças externas. Ver APMT, QM, TM, CA.1231, Cx. 19.
667
ROQUETTE-Pinto, Op.Cit., p. 16.
268
Luiza Volpato, ao discorrer sobre quilombos na Capitania e Províncias de Mato
Grosso, entre os séculos XVIII e XIX, igualmente constata a grande importância dos contatos
para além dos domínios dos territórios quilombolas:
(...) a sobrevivência de um quilombo dependia, em grande parte, da
habilidade de seus habitantes em estabelecer teia de relacionamentos que
permitisse, além do fornecimento de alguns produtos específicos,
informações sobre as ações dos seus perseguidores.668
No caso dos quilombos do Pindaituba, é importante lembrar que antes de serem
abatidos pela bandeira de 1795, de acordo com o diário da Diligência escrito por Francisco
Pedro de Mello, receberam a notícia da chegada da bandeira, que os obrigou a evacuar o
arranchamento e montar outro a distância de 6 léguas, junto ao córrego do rio Mutuca. E,
posteriormente, já em novo solo, recebem a notícia da continuidade da bandeira e assim
desfizeram novamente o quilombo e seguiram para novo sítio.669
Os quilombolas que habitavam as matas nos entornos das minas do Mato Grosso e
Cuiabá se viam diante de uma dupla situação: se, por um lado, existia a necessidade de se
manter afastados ao máximo que pudessem dos povoamentos escravistas para se preservar a
liberdade, por outro lado, também necessitavam de ferramentas, sementes para o cultivo
agrícola e outros produtos de indispensável sobrevivência. Assim, o contato com núcleos de
povoamento luso-brasileiros se dava majoritariamente de duas maneiras: ou via comércio
clandestino ou por meio de ataques a sítios e fazendas.
670
Em outras palavras, se os
documentos referentes aos quilombos na região, ao longo do século XVIII, nos apresentam
tais lugares como a “antítese de tudo que a escravidão representava”, como diria Richard
Price, por outro lado, também é verdade que não estavam isolados e que, por uma questão
668
VOLPATO, 1996, p. 227.
ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 17.
670
SILVA, Op. Cit., p. 244; Segundo Flávio dos Santos Gomes, quilombolas na América portuguesa-Brasil, se
viam constantemente diante de uma situação paradoxal, uma vez que tentavam manter a autonomia ao mesmo
tempo em que buscavam conduzir suas relações com a sociedade externa. Em palavras do autor: “(...) Tentavam
manter a todo custo sua autonomia e ao mesmo tempo agenciavam estratégias – permeadas de contradição e
conflitos – de resistência junto a piratas, indígenas, comerciantes, fazendeiros, lavradores, até autoridades
coloniais e especialmente junto àqueles que permaneciam escavos.” GOMES, Op. Cit., p. 25.
669
269
pragmática de sobrevivência, estavam em contato permanente com núcleos luso-brasileiros e
até mesmo indígenas. 671
No que tange aos contatos com luso-brasileiros, constituíam, em última instância, uma
delicada relação: ao mesmo tempo em que se exigia a urgência de recapturar e destruir
quilombos, porque representavam evasão de capital e enfraquecimento da produção
(sobretudo nas lavras), o fato de existirem também estimulava novas fugas e atestava a
impotência do governo local em garantir a segurança e manutenção da propriedade privada. É
preciso lembrar que a bandeira de 1795, ao retornar vitoriosa após ter abatido quilombos e
aprisionado cativos fugitivos, acabou por levantar os ânimos da população local, fustigada
pelas dificuldades e custos de ações militares na fronteira.672
Tais relações entre quilombolas e habitantes de povoamentos locais podem também
ser observadas no decorrer do século XIX, momento em que tiveram existência vários
quilombos, como o de “Jangada”, “Serra Dourada”, Rio Roncador” e “Quilombo do Rio
Manso”. Este último formou-se em meados do século, segundo o Chefe de Polícia Ernesto
Júlio Bandeira de Melo, separado por 30 léguas de Cuiabá e 14 da freguesia de Chapada dos
Guimarães. Além de abrigar cativos fugidos, era composto por criminosos e desertores.
673
Internamente estava subdividido em várias funções:
(...) A função de ‘guardião’, executada por escravos que vigiavam os
arredores do quilombo e zelavam pela segurança da população quilombola; a
função de ‘permutador’, realizada por escravos que conheciam a cidade de
Cuiabá. Pois eram encarregados de fazer compras dos gêneros alimentícios e
armamentos necessários ao quilombo; a função de ‘mineiro’, encarregados
de trabalhar nas minas próximas ao quilombo, principalmente, no rio
Roncador, retirando o ouro que era trocado por sal e chumbo. Por último, a
função de ‘lavrador’, executada pelos escravos que trabalhavam nas
lavouras existentes no quilombo. 674
671
Lembramos ao leitor dois fatos já trabalhados nesta tese: em primeiro lugar, o perfil da população quilombola
capturada na bandeira de 1795, com grande parcela de origem indígena; em segundo lugar, as notícias de ataques
a quilombos por indígenas xavantes, trabalhadas no capítulo 4.
672
VOLPATO afirma que o retorno triunfante da bandeira de 1795 significava, além da elevação do ânimo da
população local, uma vitória do Capitão-General perante autoridades locais. Ver VOLPATO, 1996, p. 225.
673
APMT, Relatório de Ernesto Júlio Bandeira Melo ao Conselheiro de estado Francisco de Paula de Negreiro
Sagão Lobato. Cuiabá, Lata 1871C, 29 de fevereiro de 1872.
674
DELAMÔNICA, Op. Cit., p. 130.
270
Essas funções dão clareza quanto às relações estabelecidas para além dos limites
territoriais dos quilombos: o guardião, para proteger possíveis incursões de forças externas, o
permutador para trocar o que se produzia no quilombo pelo mineiro ou lavrador. Todavia, no
caso específico do Quilombo do Manso, o contato com os povoados vizinhos se daria a partir
de dois tipos de relação, de acordo com Delamônica: “inter-relações ativas” (roubos,
depredações, rapto de mulheres, entre outros) e “inter-relações passivas” (permuta,
arrendamento de trabalho para ser realizado em minas, entre outros). 675
Vale ressaltar que no século XIX documentos como os Relatórios de Presidentes de
Província informam com grande freqüência a realização de bandeiras contra quilombolas, os
constantes inconvenientes causados pelos mesmos e força militar mobilizada. A bandeira que
partiu em 1859 da Vila Maria (atual município de Cáceres) para o quilombo que se localizava
entre os rios Sepotuba e Cabaçal, a mesma região do quilombo abatido em 1769, exemplifica
tal fato: na destruição do quilombo, foram apreendidas 33 pessoas. Destas, 12 eram livres e 21
foram identificados como escravos. Ao chegarem na cidade, tais cativos foram entregues
entre os seus senhores.
676
Todavia, chama a atenção a quantidade de “livres” aquilombados
com cativos fugidos, que sugere a continuidade de laços afetivos e até mesmo a escolha pela
vida longe da sociedade escravocrata.
A existência de quilombos, além de representar prejuízos, convite constante à fuga de
cativos e danos financeiros, ainda causava constante medo nos povoamentos locais. A mesma
bandeira que abateu quilombos no Manso, na segunda metade do século XIX, supracitada, ao
retornar parcialmente vitoriosa, causou um certo alívio e ânimo nos habitantes de Cuiabá,
segundo o Presidente da Província de Mato Grosso Francisco José Cardoso Júnior:
(...)Se a diligencia de que trato não teve um resultado esperado completo,
todavia, banio para sempre a supposição de que era impossível penetrar nos
esconderijos dos calhambolas, incutindo o receio no animo dos que
escaparão, e previnindo as continuadas depredações que já não são, como
d’antes, tão amiudadas e communs [grifo nosso]. 677
675
Idem Ibidem, p. 131.
Relatório de Antonio Pedro de Alencastro de 3 de maio de 1861. Disponível em <
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/437/000004.html >. Acessado no dia 27 de maio de 2013.
677
Relatório de Francisco José Cardoso Júnior, de 4 de outubro de 1873. Disponível em
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/437/000004.html >. Acessado no dia 27 de maio de 2013.
676
271
No discurso do Presidente da Província, nota-se uma possível crença existente na
região sobre a facilidade de fuga de quilombolas ao serem surpreendidos nas ações de captura.
De fato, é o que podemos observar na quase-totalidade dos relatos que dispõem sobre as
devassas aos quilombos.
Ademais, a formação de quilombos no Mato Grosso e Cuiabá, assim como no restante
do território luso-brasileiro, foi um fator presente e recorrente. Causador de prejuízos de
ordem financeira, o quilombo desafiava a ordem escravocrata. Era uma verdadeira hidra, que
formava em torno de si um pântano, conectado de diferentes maneiras com as sociedades
externas ao mesmo. A sua existência, em outras palavras, não se tratava de um mero apartarse ou distanciar-se, pois, como vimos acima, seria preciso tecer relações e contatos que
ultrapassavam as suas territorialidades ; relações expressas nas trocas comerciais, presença de
informantes e na convivência com negros livres e indígenas, que podemos observar com
grande clareza durante a longa existência do “Quilombo Grande”, que analisaremos na
sequência.
5.2. O Quilombo Grande: duração e “aruaquização”
Com longevidade de cerca de seis décadas, o “Quilombo Grande”, também
denominado “Quariterê” – referência ao rio “Quariteré”678 –, até o presente momento é
conhecido por ser o mais organizado e duradouro quilombo de que se tem notícia na Capitania
do Mato Grosso. Atacado em 1770 pela bandeira comandada pelo sargento-mor João Leme
do Prado, sendo depois reconstruído por aqueles que escaparam, ao contrário dos demais,
recebeu numerosas menções nos documentos históricos que buscaram discorrer sobre a
história da Capitania, como Filipe José Nogueira Coelho,679 Augusto Leverger,680 João
678
O rio Quariteré também era conhecido como rio “Piolho” e após as incursões contra quilombolas, foi renomeado de rio São João.
679
COELHO, Op. Cit.
680
LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato Grosso. Cuiabá: Instituto Histórico
e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001 (publicações avulsas, originalmente publicada em 1949).
272
Severiano da Fonseca, 681Taunay;682 além do relato detalhado sobre a organização da bandeira
que o destruiu, disposto nos Anais de Vila Bela, considerado o mais completo.683
A sua formação, de acordo com as memórias de Filipe José Nogueira Coelho,
provedor da Fazenda Real e Intendência do Ouro, é datada na década de 1730, momento em
que se descobrem as minas do Mato Grosso. Localizado no vale do Guaporé junto ao rio
Galera, quando foi surpreendido em 1770, era governado por Teresa de Benguela, que havia
herdado o comando do quilombo após a morte do seu marido. 684
Os detalhes sobre a organização da bandeira estão minuciosamente dispostos nos
Anais de Vila Bela:
(...) O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General, sendo informados das
muitas e continuadas fugas que atualmente faziam os escravos dos
moradores desta terra, para os matos, muito principalmente para o quilombo
chamado Grande, e desejoso de evitar tão grande dano, o melhor e mais
acertado meio que pôde descobrir foi o criar de novo uma companhia de
soldados ligeiros para o sertão e mato, com oficiais competentes, sendo
sargento-mor dela Inácio Leme da Silva, a quem deu jurisdição ampla para o
castigo dos soldados respectivos à mesma companhia.685
O então Capitão-General da Capitania de Mato Grosso, Luís Pinto de Sousa Coutinho,
naquele mesmo dia ordenou ao nomeado sargento-mor que aprontasse a sua companhia e
partisse o quanto antes. Para tanto, mandou preparar a pólvora e bala, retiradas do armazém
real, destacou um grupo de militares para auxiliar a companhia, como o cabo-de-esquadra
João de Almeida com seis pedestres escolhidos, e rogou que o sargento-mor procurasse
manter um inviolável segredo: a bandeira deveria partir discretamente sem que ninguém
soubesse da sua existência, a fim de que os negros aquilombados fossem surpreendidos.
Apesar de não estarem discriminadas objetivamente quais eram essas ligações entre
quilombolas e habitantes de Vila Bela que poderiam prejudicar o êxito da bandeira, nos é
possível conjecturar que as mesmas seriam ativas e constantes. Para que possíveis “laços
681
FONSECA, João Severiano da Fonseca. Viagem ao redor do Brasil (1875-1878). Vol.2. Rio de Janeiro:
Typografia de Pinheiro, 1881.
682
TAUNAY, Visconde de. A cidade do ouro e das ruínas (1891), 2º ed, São Paulo: Melhoramentos, 1923.
AMADO, ANZAI. Op. Cit., pp. 138-141.
684
SIQUEIRA; COSTA; Carvalho. Op. Cit.
683
685
AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 138.
273
afetivos” dos aquilombados não soubessem, ou possivelmente “contatos comerciais”, era
preciso manter a completa discrição da organização e saída da expedição.
Findados os preparativos e divididas as despesas entre a Câmara de Vila Bela e
moradores proprietários de cativos fugidos,
686
no dia 27 de junho, a companhia formada de
30 homens municiados saiu de Vila Bela, para chegar ao Quilombo Grande cerca de um mês
depois. O trajeto percorrido seguiu o curso dos rios Galerinha, Galera, Taquaral, Piolho e rio
da Pedra, rompendo, pelo que dispõe os Anais de Vila Bela, “os sertões e veredas mais
agrestes”.687
O primeiro ataque se deu na noite do dia 22 de julho:
(...) Por estarem as casas do quilombo divididas e dispersas umas das outras,
em diferentes partes, abalroaram a primeira que toparam, onde
surpreenderam muito pouca gente. E as mais, ouvindo alguns tiros e gritaria,
se pôs em fuga, de forma que se viu precisado o sargento-mor a se aquartelar
naquele sítio por largo tempo.688
Como vários haviam fugido na primeira incursão, a companhia permaneceu
aquartelada no espaço, realizando escoltas nas vizinhanças periodicamente, a partir dos rastros
e trilhas deixadas por fugitivos. Após semanas, entre confrontos que levaram à morte 9
quilombolas, a bandeira conseguiu reunir 41 indivíduos entre homens e mulheres.
A população total que havia no Quilombo Grande, de acordo com a documentação
consultada, variava de 100 a 110 indivíduos: se nos Anais de Vila Bela afirma-se que haviam
69 negros de ambos os sexos, o relato de provedor da Fazenda Real Filipe J. Nogueira Coelho
e Augusto Leverger apontam 79.689 A despeito da variação, com eles também haviam
indígenas, que, segundo os Anais de Vila Bela, eram “índias, que os tais negros tinham
apanhado no sertão, onde matavam os machos e traziam as fêmeas para delas usar como de
mulheres próprias”.690
686
SIQUEIRA, Op. Cit. , p. 133.
AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 139.
688
Idem Ibidem.
689
COELHO, Op. Cit., p. 182; LEVERGER, Op. Cit., p. 69.
690
Idem Ibidem.
687
274
Nos documentos que narram a queda do Quilombo Grande, não existem referências
sobre as possíveis origens étnicas das indígenas assimiladas. Contudo, na bandeira de 1795,
que voltou para eliminar com o novo quilombo formado por remanescentes fugitivos de 1770,
encontramos algumas pistas:
(...) O Quilombo do Piolho que deu este nome ao rio em que está situado, foi
atacado e destruído haverá 25 anos, pelo Sargento-mor João Leme do Prado,
onde apreendeu numerosa escravatura, ficando naquelle lugar, ainda muitos
escravos escondidos pelos mattos, que pela auzencia d’aquella bandeira se
tornaram a estabelecer nas vizinhanças do antigo lugar.
Destes escravos novamente aquilombados morreram muitos, huns de velhice
e outros ás mãos dos gentio Cabixés, com quem tinha continuada guerra,
afim de lhe furtarem as mulheres, das quaes houveram os filhos Caborés,
691
que mostra a relação [grifo nosso].
Alguns apontamentos podem ser realizados a partir desse trecho. Em primeiro lugar,
os “Cabixés”, como vimos em outra ocasião,692 era uma denominação atribuída aos “PareciKabisis” (grupo Cozárini) ou aos Guainguacuré Aruaquisados, proveniente dos Nambiquaras
da região ocidental da Serra dos Parecis. A designação, de acordo com Maria de Fátima
Roberto Machado, estava associada a ‘elementos de nível inferior’ ou subalternos. 693 Em
todo caso, parece-nos ao menos plausível considerar que a presença indígena no Quilombo
Grande seja proveniente desses grupos.
Em segundo lugar, se em 1770 é mencionado nos Anais de Vila Bela apenas a
presença de “índias” junto aos quilombolas, em 1795, além delas, também são mencionados
“índios” e “caburés”; o que sugere alianças com grupos indígenas e hibridizações, uma vez
que caburé é resultado do concubinato entre negros e indígenas. As mulheres indígenas
presentes no Quilombo Grande em 1770 foram raptadas em situações conflituosas, como os
próprios Anais de Vila Bela sugerem e, depois, o diário de Francisco Pedro de Mello.
Posteriormente, com o desmantelamento do Quilombo Grande, aparentemente foram
reformuladas as relações entre os quilombolas e indígenas, que acabaram por resultar na
convivência de ambos, ao passo que alguns se esvaeciam na morte por velhice. Em outras
691
ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 14.
Especificamente no capítulo 3 desta tese.
693
MACHADO, Op. Cit., pp. 16-23.
692
275
palavras, de acordo com a necessidade de sobrevivência, estratégias podem ter se alterado.
Assim, para se manter fora da sociedade escravista, o quilombola precisava tecer relações
tanto com povoamentos luso-brasileiros escravistas, como também com indígenas que
habitavam territorialidades vizinhas.
Acerca da presença Cabixi junto aos quilombolas, vale mencionar as observações
etnológicas realizadas pelo alemão Max Schmidt no início do século XX, a fim de se ampliar
a visibilidade dos contatos e possíveis intercâmbios culturais vivenciados no Quilombo
Grande. Schmidt, a partir de 3 expedições realizadas à América do Sul no início do século XX
e, especialmente, após o estudo sobre os “Pareci-Kabisí”, apresenta em 1917 a sua segunda
tese de doutorado, intitulada originalmente “Die Aruaken. Ein Beitrag zum problem der
Kultuverbreitung”;694 o objetivo principal consistia em uma análise comparativa dos povos
associados à matriz lingüística Aruaque (ou Arowaken), com fim de verificar a expansão,
difusão e “aculturação” desses povos.
Em uma interlocução direta com numerosos autores – Karl Von Den Steinen, Paul
Ehrenreich, Theodor Koch-Grünberg, Everhard Im Thurn, entre outros –, lançando mão de
uma análise interdisciplinar e empírica, o autor identificou o que denominou de
“aruaquização”; seria a expansão da dita cultura junto a uma vasta área, que se estendia da
região amazônica, das fronteiras com as Guianas, à região do Chaco, já em solo boliviano. Tal
processo, conforme verificou o autor, operava tanto pela força, como sutilmente, por meio de
influências culturais. 695 Como Aruaques eram caracterizados principalmente por serem povos
agricultores, constantemente se criava a necessidade da ampliação da força de trabalho, o que
acabava provocando a adoção de diferentes estratégias; entre elas, o “direito maternal” e o
rapto de crianças e mulheres de povoações vizinhas.
O “direito maternal” nas sociedades Aruaques, segundo Schmidt, resultaria da
realização de um casamento, quando o homem passava a se integrar à família da noiva. Assim
sendo, o chefe da família não seria o esposo, mas a figura do sogro, e os filhos pertenceriam à
família da esposa. Se porventura o esposo viesse a falecer, quem assumiria a família seria o
pai da esposa. Destarte, o matrimônio, além de ser meio de confecção de alianças com povos
694
“Os aruaques: uma contribuição ao estudo do problema da difusão cultural”. A tradução para o português é de
autoria desconhecida e encontra-se atualmente disponível em dois sítios: na biblioteca do PPGAS, do Museu
Nacional/UFRJ, e na Biblioteca Digital Curt Nimuendajú. Esta última, que é a versão que ora analisaremos,
agrega grande material relacionado a estudos etnológicos sobre populações indígenas da América do Sul. ver
SCHMIDT, Op.Cit.
695
Ver a reflexão de Peter Schröder (UFPE), disponível em < http://www.etnolinguistica.org/doc:16 >. Acessado
no dia 6 de dezembro de 2014.
276
externos, transformar-se-ia em um centro difusor de transmissão de cultura Aruaque, maneira
de introdução mútua de elementos culturais estranhos.696 O autor, no seu estudo, para ilustrar
o fato, cita uma pequena celeuma envolvendo os “Parecis-Kabisí”:
(...) entre os Parecís-Kabisí havia um filho de cacique com onze nos
aproximadamente, cujo pai tinha suas plantações e sua morada junto ao
Juruena, a quem fora designada uma menina em Uasirimi, no Jauru, como
futura esposa. Esse noivado era tomado tão a sério que o jovem noivo se
engalfinhou em luta violenta com outro rapaz da mesma idade, por constar
que esse teria se metido com a menina . O jovem filho do cacique exigiu
indenização e assestou em seu adversário, que não podia dar satisfações, um
profundo golpe de faca, no pé. Também aqui se reconhecia nitidamente que
a finalidade propriamente dita desse noivado prematuro, era prender o filho
do cacique com sua família na taba do Jauru”.697
No momento em que a mulher engravidava, Schmidt notava outra prática generalizada
entre os Aruaques, que reforçava o direito maternal, a chamada “Couvade”, também comum a
povos Tupi, Caraiba e Jê. A mulher, estando gestante, deveria se mudar para a casa do pai
juntamente com o esposo, consolidando assim o pentercimento à família materna Aruaque.
Desse modo, o filho, ao nascer, estaria submisso não ao poder doméstico do pai, mas ao
poderio dos parentes da esposa. Portanto, era o que o autor denominava de “valiosos fatores”,
uma vez que representavam o aumento de braços para o trabalho.
O rapto de crianças e mulheres também seria um traço generalizado entre os povos
falantes do Aruaque. Segundo o autor:
(...) Assim ouvimos dos Bacairi "aruaquizados", no Paranatinga, que
levavam a cabo ataques contra tribos vizinhas com a finalidade de
raptar mulheres. Entre eles encontravam-se por ocasião de minha
expedição ao Kulisehu as duas mulheres roubadas aos Pareci e
696
Vale salientar que a presente observação sobre os costumes dos povos Pareci-Kabisis, de cunho etnográfico,
foi elaborada no início do século XX. Todavia, ao longo da obra o autor, com o fim de pensar a “expansão da
cultura aruaque” de maneira comparativa em diferentes regiões da bacia amazônica, se valeu não somente do que
observara diretamente, mas também do que havia registrado da “memória coletiva” destes povos, via tradição
oral. Desta maneira, além de apresentar uma análise desse processo histórico disposta em longa duração, o
interpreta a partir de um ponto de vista “dinamista”, uma vez que está a considerar os diferentes contatos e
empréstimos culturais com outros povos, que acabavam por resultar em mudanças em ambos os lados. De outro
modo, assim como Joseph Miller, que ao investigar os povos “Imbangalas” na África Centro Ocidental se valeu
conjuntamente de dados etnográficos, memória oral e registros escritos (e apresentou uma visão não-estática
daqueles povos que estavam em contínua mutação), também entendemos que as diferentes fontes se
complementam e nos permitem indagar diferentes aspectos e pontos-de-vista acerca do contato entre indígenas e
aquilombados no vale do Guaporé. Sobre a reflexão de Miller ante às diferentes fontes, ver MILLER, 1995, pp.
15-16.
697
SCHMIDT, Op. Cit., p. 22.
277
Kajabís vizinhos, que já K. Von den Steinen ali tinha encontrado.
Acerca dos Baré, uma tribo aruaque, cuja pátria provavelmente deve
ser procurada originalmente no Cassiquiare, de onde se teriam
difundido ao longo do Rio Negro, rio abaixo, muito ao oriente, diz
Martius, que empreendiam expedições contra as tribos situadas ao
longo das fronteiras do Brasil e além delas, para fazerem comércio de
fornecimento de neófitos para as missões e trabalhadores para os
colonos. Também Alexander v. Humbolt menciona as caçadas
humanas empreendidas pelas tribos indígenas do alto Orinoco e Rio
Negro, na sua maioria pertencentes ao grupo aruaque. Também os
índios nas missões no alto Orinoco tomavam com grande prazer parte
em "expedições para a conquista de almas", carregando crianças de
oito a dez anos, distribuindo-as como escravos ou "poitos" aos índios
nas missões” (...).698
Especialmente, entre os “Parecis-Kabisí”, tal hábito era comum, praticado
principalmente contra os Guaiguacuré, que também poderia surpreendê-los com seqüestros e
assaltos, o que gerava um sentimento constante de vingança. Já no seio das sociedades
raptoras, observa Schmidt, crianças e mulheres recebiam bom tratamento, apesar das
diferenciações. As crianças eram tomadas como escravas, cabendo a cada uma a servidão a
um determinado senhor, cujo direito de posse se baseia diretamente no rapto. Quanto às
mulheres, são desposadas ou entregues a outro casamento caso o raptor seja casado.
699
No
caso específico dos “Kabisí”, o autor afirma não ter notado diferenciação em termos de
tratamento das mulheres raptadas e as mulheres nascidas entre os indígenas; o que era
explicável pelas funções vitais que cabiam às mulheres, na forma como entendiam esse grupo
indígena: administração econômica, encarregadas da economia doméstica e produção de
alimentos vegetais.
Ademais, em face da presença indígena considerável no Quilombo Grande, apontada
em 1770 e 1795, é possível conjecturar que o mesmo, para além de ser um reduto antiescravista, estaria vivenciando uma sutil “aruaquização” no contato com os Cabixi. Como
vimos anteriormente, a prática de rapto de mulheres e crianças era comum na região. Assim,
antigos cativos, ao se territorializarem no vale do Guaporé, poderiam ter assimilado o referido
hábito.
698
699
Idem Ibidem, p. 20.
Segundo Max Schmidt, os “Parecis-Kabisí” são tradicionalmente monogâmicos. Idem Ibidem, p.25.
278
Importante ressaltar que, no diário da diligência de 1795 que abateu o quilombo reformado por antigos remanescentes de 1770, após a captura dos 54 que estavam
aquilombados – a grande maioria formada por indígenas e caburés, como vimos no capítulo 3
desta tese –, subsequentemente ao batismo, foram re-encaminhados ao antigo espaço onde
viviam; recondução feita em várias canoas e em posse de mantimentos, grãos, sementes,
animais para criação e ferramentas para fundação da “Aldeia Carlota”, cujo objetivo seria o
fornecimento de todo ouro que encontrassem exclusivamente aos portugueses. Também
haviam prometido não-contactarem os seus vizinhos, os povos Cabixi. 700
Dessa forma, é presumível que as 30 mulheres indígenas que estavam contabilizadas
entre quilombolas em 1770 pudessem ser de origem Cabixi. Assim sendo, para entender sua
possível ocupação no interior do Quilombo Grande e consequentemente a penetração de
práticas aruaques, é importante notar a posição que poderiam ocupar na povoação de origem:
(...) Cabe-lhe [a mulher] carregar durante a marcha as maiores cargas, é ela
que sai à cata de frutos, que planta e colhe mandioca e que carrega o produto
da colheita para a taba. Ela prepara os alimentos e as bebidas, colhe o
algodão e o fia fabricando fios com os quais tece as redes ou fabrica os
tecidos para peças de vestuário. Mas os trabalhos mais pesados, como o
preparo da mata para o plantio, a construção das casas e o carregamento da
lenha são trabalhos para os homens, sendo executados na sua maior parte
pela população dependente [grifo nosso].701
No Quilombo Grande, as indígenas raptadas estariam responsáveis pelo fiar de
algodão e preparo dos alimentos? Não sabemos a que ponto. Contudo, a documentação sobre
a campanha que derrubou o quilombo em 1770 informa com grande surpresa a fartura das
roças encontradas. Em 1770, nos Anais de Vila Bela, constava:
Estavam esses negros notavelmente fortes de mantimentos, porque cada um
tinha sua roça muito bem fabricada de milho, feijão, carás, batatas,
amendoim e muito algodão, que fiavam e teciam para se vestir e cobrir, para
o que tinha teares à moda de suas terras (...) [grifo nosso]. 702
Em 1795, novamente a fartura da agricultura praticada pelos quilombolas voltaria a ser
mencionada:
700
ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 14.
SCHMIDT, Op. Cit., p. 25.
702
AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 141.
701
279
(...) situado em hum belíssimo terreno muito superior, tanto na qualidade das
terras, como nas altas e frondosas mattarias, as excelentes e, actualmente
cultivadas margens dos rios Galéra, Sararé e Guaporé: abundante de caça, e
o rio de muito peixe, cujo rio é da mesma grandeza do Rio Branco.
A bandeira achou no Quilombo grandes plantações de milho, feijão, favas,
mandiocas, manduin, batatas, caraz, e outras raízes, assim como muitas
bananas, ananazes, aboboras, fumo, gallinhas e algodão de que faziam panos
grossos e fortíssimos com os que se cobriam” [grifo nosso].703
Aqui, chamamos atenção para o cultivo do milho e mandioca e nos valemos
novamente das observações de Max Schmidt sobre a agricultura entre os povos Aruaques, que
o autor considera como o denominador comum entre todos os povos falantes do idioma.
Observa-se diferenciações entre a ênfase em uma planta ou outra, de modo que se, por um
lado, na região amazônica, existe uma predominância da mandioca, na medida que se avança
em direção ao sudoeste, o cultivo de milho passa a crescer. No caso dos Parecis que habitam
as cabeceiras dos rios Juruena e Guaporé, região onde vivem os povos Cabixi, predomina o
cultivo do milho. 704
A despeito das diferenciações, o preparo do solo de maneira geral segue o mesmo
procedimento:
O próprio preparo depende de uma certa estação do ano, por terem as
árvores derrubadas que secar durante o período das secas, de modo a poder o
fogo, ateado mais tarde, queimar os galhos e os ramos. As cinzas da
queimada são o único adubo da futura plantação. Os troncos principais não
são devorados pelo fogo, que lhes passa por cima, e são simplesmente
deixados, deitados no lugar em que tombaram. Elas beneficiam de algum
modo a plantação, pois os pés de milho que entre elas germinam ou as ramas
de mandioca que entre elas brotam são protegidos durante o primeiro tempo
de seu crescimento, contra os raios solares, extremamente violentos (...).705
As mulheres indígenas Cabixi, raptadas por quilombolas, teriam sido o vetor de
introdução das técnicas de cultivo do milho e mandioca junto às dependências do Quilombo
Grande? Em vista da anterior função que ocupavam na divisão do trabalho entre os Cabixi,
aparentemente a resposta é positiva. O Quilombo Grande, por uma questão de sobrevivência,
703
ROQUETTE-PINTO, Op, cit. ,p. 14.
SCHMIDT, Op. Cit., p. 14.
705
Idem Ibidem, p. 14.
704
280
teria então se aberto a um processo de “aruaquização”, ao assimilar mulheres indígenas que
traziam consigo práticas agrícolas.
Igualmente, é preciso problematizar o próprio perfil dos habitantes do quilombo que
havia se formado na região com remanescentes do Quilombo Grande, abatido depois de 25
anos: “6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caborés e 11 caborés fêmeas”,
706
totalizando 54
capturados. Em primeiro lugar, a presença de indígenas do sexo masculino pode significar
duas ordens de fatos: ou foram capturados ainda quando crianças e cresceram com
quilombolas, ou se agregaram devido a alianças.707
Em segundo lugar, no que diz respeito às mulheres indígenas, cabe-nos perguntar se
foram adquiridas somente via-rapto ou se algumas das encontradas se somaram devido a
acordos mútuos, possivelmente semelhantes aos que vimos acima. O grande número de
Caburés sugere um intenso intercâmbio cultural, pelo fato de que mulheres indígenas
aruaques traziam consigo práticas agrícolas e também porque poderiam representar a
introdução do quilombola em laços parentais maternais, no caso do ajuntamento de negros ter
se dado por possíveis alianças.
706
ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 15.
Alianças, quiçá, com perfil militar. Lembramos ao leitor das hostilidades entre os Cabixi e os Guaiguacuré
(Nambiquara). Caso indígenas fossem Guaiguacuré, possivelmente buscavam algum tipo de proteção junto aos
quilombolas.
707
283
Fig. 11 - O Quilombo do Quariterê, encontro de mundos. Por Thalita Pinheiro
Rodrigues (2015).
283
Em outras palavras, entre as duas bandeiras que atacaram os quilombolas que
habitavam a região do vale do Guaporé, em 1770 e 1795 respectivamente, o Quilombo
Grande, no caso dos acordos matrimoniais terem acontecido ou pela simples presença de
mulheres “Parecis-Kabisí” raptadas, poderia estar passando por um sutil processo de
“aruaquização”, especialmente na divisão do trabalho e cultivo de determinadas culturas.
O inverso dessa “aruaquização” também poderia ter lugar. Em 1770, por exemplo, na
descrição daqueles que serviam Teresa de Benguela, denominada a rainha do Quilombo
Grande, são mencionadas negras e índias. 708 Indagamo-nos a que ponto tais indígenas haviam
assumido a hierarquia política que se apresentava no quilombo: assimilados, teriam se
africanizado ou apenas estariam procedendo conforme padrões de hierarquia anteriores que
traziam dos Cabixi, visto que a captura de mulheres na região era recorrente, assim como o
posterior casamento e servidão?
Entre os Pareci-Cabixis, Schmidt relata um fato interessante, ao discorrer sobre a
expansão da cultura Aruaque. Afirma que, na região das cabeceiras dos rios Jauru e Juruena,
havia um cacique chamado Chiquinho, conhecido e influente em toda a região por praticar
“bruxarias” e manipular demônios, que provocavam doenças e até mortes. A sua técnica se
caracterizava principalmente pela mistura de extratos culturais diversos, especialmente
ensinamentos “mandingas”. Embora seja um fato contemporâneo da expedição de Schmidt, é
possível presumir o estranhamento que poderia causar a presença africana na região.
De todo modo, lembramos que também em 1795, na descrição dos quilombolas
capturados na mesma região, Francisco Pedro de Mello mencionava o fato de que os
indígenas capturados conheciam alguns rudimentos da doutrina cristã e até falavam um pouco
do idioma português, e, por essa facilidade, todos foram batizados. Poderiam ter se
africanizado ao se submeterem à hierarquia política que se apresentava – caso a mesma
correspondesse a alguma noção africana, que veremos adiante –, e, possivelmente, por meio
de quilombolas que igualmente estavam em processo formativo, teriam se aberto ao mundo
Atlântico europeu.
Essa tolerância com o mundo europeu entre os Aruaques também foi notada por Max
Schmidt. De acordo com o mesmo, estaria ligada aos próprios motivos de expansão da cultura
Aruaque: para manutenção e fundação da posição predominante perante outros povos
considerados por eles como “inferiores”, estabeleciam-se relações amigáveis com povos tidos
708
AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 139.
284
como “mais elevados”. Especificamente os Cabixi, faziam um jogo duplo, segundo o autor:
ao mesmo tempo que se apresentavam aos europeus como povos “pacíficos” e, por vezes,
atuavam como “intermediários” para o contato com povos considerados “bravos”, realizavam
assaltos com arco e flecha e atribuíam a autoria aos seus inimigos, os Guaiguacuré. A
tolerância para com europeus, de maneira geral, entre os aruaques, seria parte de uma
estratégia de auto-preservação:
(...)a cultura aruaque por meio de sua própria tendência de expandir
seus direitos senhoriais, se atira aos braços da cultura européia
naturalmente com a consequência inevitável de ser inexorávelmente
por ela esmagada.709
Dessa forma, a incorporação de indígenas à hierarquia política no Quilombo Grande e
à estrutura produtiva pode ser explicável não somente pela força, mas também pela noção que
mulheres indígenas já traziam dos territórios aruaques. Cabe-nos, portanto, a tarefa de precisar
a própria organização política do Quilombo Grande.
5.3. O que atravessou o Atlântico: das “Áfricas” na organização e resistência políticomilitar do Quilombo Grande
Se é verdade que não nos é possível sustentar que a constituição de “quilombos” nas
Américas, na maioria das vezes, não se tratou de uma reconstituição de estruturas políticas
africanas, por outro lado, também devemos considerar que aqueles homens e mulheres, que
tentaram começos e re-começos em torno dos respectivos espaços, traziam consigo
“bagagens” culturais e políticas, vivências ou experiências, que ao longo de toda travessia
atlântica estavam em contínua reformação. Assim, partindo desse pressuposto, nas seções que
se seguem, em primeiro lugar, apresentamos algumas notas sobre a presença “bantu” no vale
do Guaporé; em um segundo momento, pensamos o possível agenciamento dessas bagagens
na organização e resistência do Quilombo Grande.
709
SCHMIDT, Op. Cit., p. 42.
285
5.3.1. A África-bantu para além da documentação oficial: congada, organização,
familiar e traços lingüísticos no vale do Guaporé
Antes de enveredarmos a reflexão para os mecanismos organizativos que
possivelmente pudessem remeter a experiências anteriores ao cativeiro na África, é necessário
o ensaio sobre a procedência da população escrava da Capitania do Mato Grosso, a fim de
delinearmos qual o significado atribuído às instituições criadas por africanos aquilombados.
Logo, pois, embora a documentação oficial possa limitar a análise sobre as noções culturais,
políticas e sociais trazidas por africanos, posto que se resume a mencionar junto ao nome
cristão apenas a procedência comercial – Sebastião Benguela, Antonio Mina, entre outros –, o
exame baseado em outras fontes tem desvelado novas facetas da agência desses homens e
mulheres. Nesse sentido, trabalhos concentrados nas manifestações culturais e religiosas
tradicionais, no formato e lógica de organizações familiares ou na reconfiguração e
reformulações lingüísticas, decorrentes dos contatos interculturais, são de grande valia para
pensarmos o perfil destes sujeitos no Vale do Guaporé; e, por conseguinte, o que traziam
consigo, visto que, além de lançarem novas luzes para compreensão dos espaços constituídos
por africanos na região, complementam as informações dispostas nos documentos escritos.
É o caso do trabalho realizado por José Leonildo Lima, que reuniu importante
material documental na pesquisa de campo realizada diretamente na atual Vila Bela da
Santíssima Trindade, a fim de problematizar a memória coletiva e suas transformações. O
autor, centrado na coleta de aspectos lingüísticos (proveniente do contato com habitantes da
cidade) e na análise dos cantos que circulavam durante o período da Festança, constatou a
presença de várias marcas lingüísticas e manifestações culturais de origem africana, com
predominância bantu. 710
A Festança, ponto alto do trabalho investigativo do autor, refere-se a um ciclo de
festas realizado em Vila Bela da Santíssima Trindade, que marca o início do calendário
agrícola (preparação para semeadura), realizadas atualmente na segunda quinzena de julho.
Entre os eventos que a compõem, destacam-se a Festa do Divino Espírito Santo, Santíssima
710
Lima realizou sua pesquisa de campo em 1999 e permaneceu em Vila Bela por 20 dias, durante a realização
das “Festanças”, no mês de julho. De acordo com o autor, foi elaborado um questionário com 30 perguntas e
selecionados 10 informantes de ambos os sexos, 5 dos quais não participavam do conjunto de eventos. Assim,
conseguiu reunir vocabulários e os cantos que os festeiros entoavam durante a festividade. Ver LIMA, José
Leonildo. Vila Bela da Santíssima Trindade – MT: sua fala, seus cantos. Campinas: Universidade de
Campinas – Instituto de Estudos de Linguagens, 2000 (dissertação), p. 17.
286
Trindade, Nossa Senhora do Rosário, Mãe de Deus, a Festa de São Benedito, a dança do
chorado e a do Congo.
Preparada por “festeiros”, tais festividades envolvem massivamente a comunidade e
englobam rituais preparatórios, rezas, peregrinações, encenações, confraternizações com
bebidas tradicionais (como o “aluá” e “kanjinjin”) e apresentações de corais. Especialmente
na Festa de São Benedito, dança do chorado e Congo, podem se observar traços que remetem
às experiências escravistas no vale no Guaporé. A primeira é organizada pelos festeiros
denominados “Rei, Rainha, Juiz, Juíza e ramalhetes”. Com exceção do Rei e Rainha, cargos
destinados às pessoas mais velhas da comunidade (veneração às gerações mais velhas), os
demais são escolhidos por sorteio.711 Ao longo dos dias que antecedem a festa, são realizados
vários rituais preparatórios, com queima de fogos, repicar de sinos e rezas, que exaltam São
Benedito e o sofrimento do povo. Para a realização da missa, um dos momentos mais
importantes da Festa, os organizadores caminham por toda a cidade para reunirem todos os
festeiros, ao ritmo de vários cantos, em que são notáveis vestígios da memória cativa na
região:
Sai, sai, o ingome sai
Saia do caminho
Sai engomerê
Chegou, chegou, chegou enganaiá
Chegou, chegou, chegou enganaiá
Para fazer a nossa festa de São Benedito
Para fazer a nossa festa de São Benedito [grifo nosso].712
Ingome designa uma espécie de atabaque, palavra originária do bantu “ngome”.
Engorê provém do bantu “ngomile” e significa “festeiro”. Enganaiá vem da ideia de
brincadeira. 713
711
O Rei e Rainha exercem cargos “honoríficos”, ao passo que a organização propriamente da Festa de São
Benedito, se dá ao Juiz e Juíza. Quanto aos ramalhetes, cabe a estes carregarem rosas durante o desfile pelas ruas
da cidade ao longo dos dias da festa. Ver LIMA, Ibidem, p. 60.
712
Idem Ibidem, p. 59.
713
Ver Anexo 1 da supracitada dissertação. Ibidem, pp. 172-173.
287
A dança do Chorado, por sua vez, acontece após o findar da missa, representada por
12 dançarinas em trajes multicoloridos, ao ritmo de tambores e forte bater de mãos. Em Vila
Bela afirma-se que a dança teve os seus objetivos metamorfoseados com o passar dos anos,
em função das mudanças contextuais. Inicialmente, era realizada quando mulheres cativas
dançavam aos seus senhores, com o objetivo de livrarem os filhos de castigos ou penas de
morte, no caso de estarem condenados. A dança em si era caracterizada por movimentos
sensuais, e cativas utilizavam um lenço amarrado no pescoço e equilibravam objetos na
cabeça (pedra, lata de água ou pedaços de madeira). Com a abolição da escravatura, o
Chorado passou a enfatizar as circunstâncias históricas vivenciadas pelos habitantes da região.
Contudo, as marcas do período escravista ainda estão presentes em versos cantados, que
abordam dificuldades alimentares, autoridades, entre outras situações. 714
Após a dança do Chorado, inicia-se a “dança do congo”. Comum em várias regiões do
Brasil, com variações locais quanto às canções recitadas, enredo ou bailado, em Vila Bela é
parte das festanças de homenagem a São Benedito. Como representação dramática, a Dança
do Congo, assim como as demais, é organizada por festeiros que possuem cargos e
responsabilidades: Rei do Congo, Secretário, Príncipe, Embaixador e 12 pares de soldados.
Desses, apenas o Rei e o Secretário possuem cargos vitalícios. Os demais são constantemente
substituídos como forma de manter viva a memória histórica e cultural da cidade.
Juntos, todos esses personagens encenam o seguinte roteiro: com o rei e príncipe
sentados, entram soldados com embaixador à frente, que entrega uma carta ao Rei do Congo,
por ordem do Rei de Bamba, que exigia o casamento com sua filha, sob ameaça de guerra.
Sentindo-se ultrajado, o Rei do Congo manda prender o Embaixador e pede que o seu
Secretário declare guerra ao Rei de Bamba, com a benção de São Benedito. Assim que este
último é derrotado, os seus exércitos passam a fazer parte das fileiras do Rei do Congo, que
concede ao Secretário a sua filha em casamento, Ana Maria de Gouveia, em honra a sua
bravura.715
Tal enredo engloba numerosas referências, a começar pelo fato do Rei do Congo pedir
benção e proteção a São Benedito, um santo cristão. Registros de chefes (chamados “mani”)
congoleses convertidos ao cristianismo e aliados à coroa portuguesa são fatos recorrentes na
714
De acordo com Lima, nos versos “Meu patrão brigou comigo/ Mas não foi por coisa à toa,/Foi porque eu fui
buli,/No tinteiro da patroa./Oi guirro, guirro, guirro lá (bis)”, está perceptível uma relação outrora comum no
cotidiano escravista: senhores envolvidos com cativas. Ver LIMA, Ibidem, p. 99.
715
Ver seção 2.3.10. em que Lima descreve todas as falas da Dança do Congo de Vila Bela.Ibidem, pp. 70-78.
288
história do Congo. O catolicismo, de maneira geral, operou na região como instrumento de
contato entre portugueses e congoleses. Marina de Mello e Souza, por exemplo, afirma que já
na expansão das atividades portuguesas junto ao mundo Atlântico a coroa portuguesa havia
assumido o compromisso de conversão de todos os povos que fizessem contato, com aval de
Roma. A conversão seria, assim, argumento decisivo para o próprio reconhecimento do
direito de soberania dos exploradores portugueses para com outros povos.716
Vale ressaltar que o “reino do Congo”, tal como aparece descrito nos registros
históricos que deram conta dos primeiros contatos entre portugueses e congoleses,717
configurou-se a partir de uma construção gradual dos congoleses de acordo com padrões
europeus, de modo que o mani Congo, Kzinga Kuwu, somente foi denominado “Rei” após se
converter ao cristianismo em 1491.718 De qualquer maneira, quando portugueses chegaram ao
Congo e estabeleceram os primeiros contatos, defrontaram-se com toda uma estrutura de
poder centralizada no mani Congo, que habitava a cidade Mbanza Congo (posteriormente
nomeada São Salvador); contava com numerosas territorialidades subordinadas, as quais
portugueses posteriormente denominaram de províncias – Soyo, Mbamba, Sundi, Pango, Bata
(ou Mbata) e Pemba.719
Após a conversão do mani Congo, re-nomeado de D. João I, foi construída a primeira
igreja, que pouco depois fora palco do batismo do seu primogênito, cujo nome também foi
alterado – passava a se chamar D. Afonso, tal como o filho do rei de Portugal. Em 1491,
também se realizou a primeira missa na região e batismos, que marcariam a adesão ao
cristianismo e aliança com a coroa portuguesa dos chefes locais, mencionadas constantemente
nos séculos seguintes. 720
Todavia, além da compreensão da conversão de africanos ao cristianismo dentro da
história política congolensa e, por conseguinte, bantu, precisamos deslindar o possível
716
Ver SOUZA, Marina de Mello e.Evangelização e poder na região do Congo e Angola: a incorporação dos
crucifixos por alguns chefes centro-africanos, séculos XVI e XVII. In: Actas do Congresso Internacional
Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, 2005.
717
Principalmente nas obras do capitão Rui de Souza, presente na terceira expedição que chegou ao rio Congo,
intituladas “Crônicas d’El Rei D. João II” e “Relação do Reino do Congo”, de 1502 e 1492 respectivamente.
718
O mesmo se passou com os chefes (os mani) locais, que após conversão passaram a se denominar “fidalgos”.
Ver GONÇALVES, Rosana Andréa. África indômita: Missionários capuchinhos no Reino do Congo (século
XVIII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas –
Departamento de História, 2008 (dissertação), p. 19.
719
Idem Ibidem, p. 20.
Sobre as alianças de portugueses e congoloses de a partir do século XVI, ver HILTON, Anne. The Kingdom
of Kong. Oxford, Oxford University Press, 1985.
720
289
significado desse processo para os africanos. Autores como Wyatt MacGaffey,
Kimbwandande Kia Busenki Fu-Kiau e Maria de Mello e Souza, fornecem algumas reflexões
que podem ser úteis para esse propósito. Para os autores, a adoção do cristianismo por parte
dos congoleses constituiu, antes de mais nada, uma maneira de reforçar o poder local frente
aos inimigos. Quando os povos congo adotam a cruz, por exemplo, possivelmente não
significaria para eles a pura conversão ao cristianismo, em vista da simbologia local que se
atribuía ao signo. Entre os Bagongo, a cruz estaria relacionada ao ciclo do sol, indicaria o
ciclo básico da vida, a partir dos quatro pontos/movimento circular que o sol realiza no céu: o
nascimento, quando surge no horizonte; maturidade quando alcança o centro do céu; a morte
quando se põe; e, por fim, o mundo dos mortos, quando está no pólo oposto da terra. Desse
modo, o catolicismo com sua simbologia havia sido assimilado em lógicas africanas, com fim
de se aumentar o poder frente aos inimigos locais. O que ocorrera seria uma re-adaptação que
combinava crenças e símbolos recém-descobertos com preceitos já existentes. 721
Essa relação amistosa se estenderia por séculos, como no próprio episódio em que
portugueses socorreram o rei do Congo das invasões Jagas em 1573.722 Portanto, não é de se
causar estranheza que o rei do Congo, descrito na congada de Vila Bela, antes de partir à
guerra, invoque a proteção do santo católico São Benedito. Certamente, as alianças firmadas
entre congoleses e povos brancos foram transmitidas oralmente dentro das próprias migrações
internas que se deram na África Central.723
Vale salientar que, no caso da dança do Congo, mesmo com as imprecisões e possíveis
influências que puderam ter se agregado ao longo dos anos no que diz respeito à composição
do enredo – afinal a sua realização atravessa uma considerável temporalidade724 –, o registro
721
Ver SOUZA, Op. Cit, pp. 2-7; ver também MACGAFFEY. Wyatt. Religion and Society in Central África.
The BaKongo of Lower Zaire. Chicago, The University of Chicago Press, 1986; Idem, Kongo Political
Culture. The conceptual challenge of the particular. Bloomington, Indiana University Press, 2000; Idem,
“The west in Congolese experience”, Africa & the West, organizado por Philip D. CURTIN, Madison,
University of Wisconsin Press, 1972, pp. 49-74; FU- KIAU, Kimbwandande Kia Busenki. Tying the Spiritual
Knot. African Cosmology of the Bântu-Kôngo. Principles of Life & Living, Canada, Athelia Henrietta Press,
2001.
722
Abordados anteriormente no primeiro capitulo desta tese, em torno do debate historiográfico entre os
historiadores John Thornton e Joseph Miller, acerca da existência real dos Jaga e posteriores migrações.
723
Certamente com prováveis alterações no significado para os que assistiam, em função dos diferentes
contextos sócio-políticos desde o século XVI.
724
Segundo Bandeira, com a mudança da capital da Província de Mato Grosso de Vila Bela para Cuiabá em
1835, houve a intensificação do deslocamento da população branca e das atividades econômicas à Cuiabá. Nesse
contexto, as irmandades negras, como a de São Benedito, passaram a se expandir e as festas organizadas pela
mesmas passaram a ser espaço de “resistência étnica”. Em palavras da autora: “(...) a festa religiosa foi sendo
transformada pelos negros num espaço de resistência étnica, na medida em que possibilitava a celebração
pública de práticas culturais dos pretos. As festas do Divino, da Padroeira, dos santos, originalmente formas
brancas de culto religioso, passaram a veicular conteúdos culturais negros. Pelo seu caráter altamente associativo
290
dos cantos revelam mais conexões com a história política africana, como a referência ao rei de
“Bamba” (ou Mbamba), que estava localizado ao sul de Nbanza Congo (São Salvador).
A presença bantu no vale do Guaporé também tem sido desnudada em trabalhos que
investigam a organização familiar em Vila Bela; como a pesquisa de Maria Lourdes de
Bandeira, que tem como ponto de partida a evasão da população branca da cidade,
progressivamente, após o encerramento das atividades da Companhia Grão Pará e Maranhão.
De acordo com a autora, nesse processo que remetia ao final do século XVIII, as relações de
escravidão entre os brancos que abandonavam a cidade e os escravos que ficaram se
dissolveram. E, mesmo aos brancos que permaneceram e mantiveram a população escrava, as
relações foram adaptadas ao estreitamento do convívio e interação, de modo que negros
passaram a ocupar gradualmente cargos de importância econômica, militar e religiosa. A
descrição de Castelnau ilustra essa coexistência e inserção negra na antiga estrutura
burocrática branca, em meados do século XIX, ao notar a estranha ascensão de um homem
africano a um posto de comando militar:
(...) Às quatro horas da tarde fomos à procura do comandante-chefe, onde
tinha sido preparado um jantar de gala. Uns após outros vinha chegando os
convidados ao salão do palácio; quase todos estavam de uniforme e
variavam na cor entre negro retinto ao chocolate claro. Nossa atenção foi
atraída particularmente por um negro já velho e de movimentos inteiramente
parecidos com os de um macaco; seus olhos sanguíneos faziam tenebroso
contraste com a cor da pele; alguns raros dentes, de enorme tamanho,
acentuavam-lhe ainda mais a proeminência dos lábios; nas maçãs do rosto
viam-se-lhe os restos da tatuagem que trouxera da terra natal nas mãos
enormes notava-se aquela contracção particular que se encontra muitas vezes
nas dos babuínos. Este curioso personagem trazia o uniforme de capitão; era
de resto um homem bastante devotado, e que em várias circunstâncias tinha
dado provas notáveis de bravura. Isso lhe valera o comando da cidade
fronteiriça de Casalvasco (...) [grifo nosso].725
Pela descrição do autor, quase todos “uniformizados” e negros, presentes no jantar de
“gala” oferecido pelo Comandante-chefe no Palácio dos Capitães-Generais, o espaço mais
e integrador, foram apropriadas pelos negros primeiramente como meio de atualização de sua etnicidade e
posteriormente como rituais de celebração, atualização e reprodução da sua comunidade”. Ver BANDEIRA, Op.
Cit., p. 130.
725
CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. 2 Vols. São Paulo: Editora
Nacional. 1949. Apud Idem Ibidem, p. 134-135.
291
nobre da cidade naquela altura.726 Não escapou também ao olhar do expedicionário francês a
estranha coletividade observada durante o jantar de gala:
(...) Estávamos bastante impacientes pelo momento de sermos apresentados
às senhoras, quando o dono da casa, tomando-me pelo braço, disse-me que o
jantar estava na mesa. Levou-nos então para uma grande sala de refeições,
onde em cima de uma comprida mesa estavam todos os produtos da zona.
Num dos lados da mesa estavam agrupadas umas doze mulheres muito bem
vestidas, quase todas mulatas e com a aparência de grande acanhamento em
face dos estrangeiros. Os convidados tomaram seus lugares, depois de ter
mudado de roupa; mas não havia proporção entre o número deles e o das
cadeiras e pratos, de modo que muitos tiveram de ficar em é, enquanto
outros se sentavam dois ao mesmo assento. A parte feminina da assembléia
era neste particular a mais desprotegida; às vezes três mulheres sentavam-se
numa mesma cadeira, ao passo que outras se utilizavam dos joelhos de suas
companheiras. Três e até mesmo quatro comiam do mesmo prato, ao mesmo
tempo que os mesmos copos tinham de fazer a volta e servir as várias
pessoas. No que se refere aos garfos, os que não logravam possuí-los sabiam
arranjar-se muito bem com os próprios dedos [grifos nossos].727
Sentavam-se no mesmo assento, comiam no mesmo prato, bebiam no mesmo copo, de
acordo com o viajante, espantado com tal coletividade observada. De todo modo, a análise de
Bandeira, para além de apresentar o contexto em que a população negra se re-adaptou e se
valeu das estruturas burocráticas luso-brasileiras em finais do século XVIII e início do XIX,
apresenta uma reflexão acerca das formas de famílias observadas em Vila Bela da Santíssima
Trindade; o objetivo não é identificar “sobrevivências”, mas perceber como as referências
anteriores à escravidão, em solo africano, foram re-adaptadas e operantes de acordo com as
necessidades concretas da comunidade. Assim, notou quatro principais tipos de família na
cidade: (1) família nuclear, formada por homem, mulher e filhos; (2) matrifocal, composta por
homem (não necessariamente), mulher, filhos e filhos das filhas, filhos da irmã e mãe da
mulher; (3) família poligâmica, na qual o homem é casado com várias mulheres; (4) família
maternal simples, com mãe e filhos. Segundo a autora, os quatro tipos de organização familiar
726
Francis Castelnau foi chefe da expedição científica enviada ao Brasil pelo governo francês em meados do
século XIX, de 1843 a 1847. Durante a sua estadia no país, juntamente com outros membros, percorreu as
Províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso, além de passar pelo Paraguai, Bolívia e Peru.
727
CASTELNAU, Ibidem, pp.365-367 Apud BANDEIRA, Ibidem, p. 135.
292
ainda podem ser observados em Vila Bela, embora a família poligâmica ocorra com menos
freqüência em função das pressões econômicas. 728
A família poligâmica seria aquela que remeteria a modelos africanos, na qual cada
mulher teria uma “choça particular”, vindo o homem regularmente comer e dormir com as
mesmas.
729
Bandeira, na sua pesquisa de campo, registrou um caso notável, em que um
homem era casado com 4 mulheres e possuía 36 filhos. Ele pertencia ao estrato mais alto da
comunidade, com liderança política, gozando de prestígio e consideração social. Além de
fazendeiro, era comerciante e hoteleiro. Os seus 36 filhos trabalhavam nos seus mais diversos
empreendimentos, incluindo a casa da “esposa legítima”, uma vez que havia uma
diferenciação entre a “mulher principal” e as “esposas secundárias”.
A análise dos traços lingüísticos de quilombolas do Vale do Guaporé, por Geralda de
Lima Angenot e Cezanildo Alves Soares, igualmente aponta para a presença africana bantu na
região. Ambos os pesquisadores, vinculados ao Centro de Pesquisa de Linguística da
Amazônia (CEPLA), da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), a partir do trabalho de
campo realizado junto aos quilombos “Pedras Negras” e “Santo Antonio do Guaporé”,
reuniram um considerável “corpus lingüístico” por meio de 5 informantes remanescentes.
Tais comunidades, por meio dos intensos contatos culturais entre africanos, grupos indígenas,
portugueses e espanhóis, constituíram um léxico particular e singular, em constante mutação,
desvelando a “língua” como fenômeno vivo. Em palavras dos autores:
(...) É notório que as comunidades descendentes de escravos negros que se
aquilombaram no Vale do Guaporé preservaram alguns traços lingüísticos de
origem africana; também, por viverem numa região isolada, conservaram
alguns arcaísmos característicos do português; e, finalmente, pelo contato
com outros falares da região, com as línguas indígenas, com o espanhol e
outras variedades do português trazidas por imigrantes mais recentes,
assimilaram traços culturais e lingüísticos desses últimos.730
De maneira geral, os autores constataram numerosos vocábulos que sofreram alteração
ao longo dos anos e ocorrências morfológicas, comuns aos idiomas africanos bantus. Como
exemplos, temos a “elisão”, em que o “de onde” transforma-se “donde” ou “de antes” em
728
A obra de Bandeira foi publicada em 1988 e é resultado do trabalho de campo realizado na década de 1980,
junto ao projeto de estudo das comunidades negras em situação rural, pelo Departamento de Ciências Sociais da
Universidade de São Paulo.
729
Tal modelo corresponderia ao “compound”, verificado por Roger Bastide. Ver BASTIDE, R. As Américas
Negras. As Civilizações Africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difel, 1974, p. 42.
730
ANGENOT, Geralda de Lima; SOARES, Cezanildo Alves. “Aspectos morfológicos do falar afroguaporeano”. In: Revista Eletrônica Língua Viva. Vol. 1, No.1, 2011, p. 3.
293
“danti”; ou a “Aférese”, caracterizada pela supressão de fonemas – “amor” em “mô”, “José”
por “Zé” ou “Antonio” por “Tõe”.731 Essa última ocorrência é comum no mundo africano com
o qual os portugueses estabeleceram contatos ao longo da empresa escravista. Destarte, no
corpus lingüístico falado pelos remanescentes quilombolas do vale do Guaporé e
reconfigurado ao longo de séculos de contatos interculturais – denominado pelos autores de
“afro-guaporeano” –, podemos constatar a forte presença bantu na região, já apontada
genericamente nos documentos oficiais.
Em suma, os mais diferentes caminhos, para além das fontes escritas, nos levam a
considerar que os africanos aquilombados e liderados por Teresa de Benguela, em 1770,
pudessem ser majoritariamente de origem bantu,
732
com possível predominância daqueles
oriundos dos reinos de Angola e Benguela. Ademais, pelo exposto, podemos ensaiar adiante
uma interpretação da organização política do Quilombo Grande à luz das tradições políticas e
militares dos povos africanos dessa região, especialmente dos Imbangalas e Ovimbundus.
5.3.2. Fúria e paixão: a organização política e militar do Quilombo Grande à luz dos
Imbangala-Ovimbundus
A bandeira que derrubou o Quilombo Grande em 1770 não se deparou com um
simples ajuntamento de cativos, mas com um território estruturado e hierarquizado. Segundo
o Provedor da Fazenda Real, Filipe José Nogueira Coelho, o quilombo era governado por uma
rainha viúva chamada Teresa. Havia ainda uma espécie de “parlamento”, que auxiliava a
governança do quilombo, cuja maior autoridade era José Piolho.733
As minúcias do cotidiano da governança do Quilombo Grande são narradas nos Anais
de Vila Bela:
(...) Governava-se esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o
conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as
semanas, entravam os deputados, sendo o de maior autoridade, tido por
731
As outras ocorrências verificadas foram a metátese/elisão (encolhimento de vocábulo, como “para” a “pra”),
metátese e fusão (de “para os” a “prus”), nasalização das vogais (de “com os” a “cus” ou de “como é?” a
“Kumé?”), aférese (supressão de fonemas. Por exemplo: “estão” a “tão”), monotongação do ditongo (supressão
da semi-vogal. Ex.: “roupa” a “ropa”), entre outras. Segundo os autores, tais processos são decorrentes dos
contatos interculturais. Idem Ibidem,pp.5-13.
732
Embora também a presença de africanos provenientes da costa da mina possa ser considerada, em vista da
rota terrestre e volume trazido pelo norte, pela Companhia Grão-Pará e Maranhão.
733
COELHO, Op. Citi, p. 182.
294
conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de
Morais. Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que
presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executavam à risca,
sem apelação nem agravo. 734
São poucos os rastros que temos disponíveis para entender essa organização política
do Quilombo Grande e, principalmente, as suas lideranças. A partir do sobrenome de Teresa,
indicado pela documentação oficial, temos apenas o indicativo de que havia saído da África
pelo porto de Benguela. Quanto a José Piolho, pelo que dispõe os Anais de Vila Bela, que
tivera passado pelo Rio de Janeiro antes de parar no Quilombo Grande.
O próprio José Piolho, segundo Augusto Leverger, havia inspirado a re-nomeação do
rio Quariteré para “rio Piolho”, que ficava próximo ao Quilombo Grande.735 Nos Anais de
Vila Bela ganhava o seguinte destaque:
(...) Tinha por maior oráculo o tal Piolho, por ter sido, em outro tempo, rei
em um quilombo que se dissolveu nos matos da cidade do Rio de Janeiro.
Este, fiado nas mandingas com que o diabo o trouxe sempre enganado, foi
um dos que resistiu, isso depois de algumas ciladas que fez aos soldados. Por
isso, acabou a vida diabolicamente: a violência de um tiro que lhe
empregaram no corpo.736
Não era por causalidade que José Piolho havia se transformado no Conselheiro de
Teresa. Descrito como o “maior oráculo”, já havia sido “rei” em outro quilombo, nas matas
do Rio de Janeiro. Provavelmente capturado, foi comercializado para as minas de Cuiabá ou
Mato Grosso, como parte da punição. Contudo, se assim se deu a história do nosso
personagem, ele não cessou de buscar a sua liberdade, em outra circunstância, fugiu e se
aquilombou novamente.
No que diz respeito à organização política, vale frisar que a descrição da governança
por um rei ou rainha a partir do ponto de vista do agente da coroa portuguesa e escravista não
é uma particularidade ou singularidade do Quilombo Grande. Carlos Magno Guimarães, ao
analisar as menções de quilombos em Minas Gerais ao longo do século XVIII, menciona
734
AMADO; ANZAI , Op. Cit., p.140.
LEVERGER, Op. Cit., p. 69.
736
AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 140.
735
295
numerosas situações em que comunidades quilombolas eram descritas como governadas por
chefias, que subordinavam os seus membros. Na pesquisa realizada pelo autor, são citados
casos em que a população de quilombolas elege um rei, outros em que o rei se auto-proclama,
como o caso do Bateeiro, rei do quilombo dos “matos do Forquim” – ao ser preso, declarara
que estava fugido por dez anos e que anteriormente era “capataz” e depois passou a ser rei.737
Já no Quilombo do Ambrósio, conhecido como o maior quilombo de Minas Gerais
durante o século XVIII, o rei havia sido eleito. Em carta endereçada ao rei, as ações dos
quilombolas e escolha da chefia são detalhadas por Gomes Freire:
(...) Destacavam continuamente partidas de vinte e trinta negros que
executavam roubos e crudelíssimas mortes; algumas partidas se apanharam e
posto se lhe fez justiça, não foi bastante remédio, antes se aumentou o
número de negros aquilombados e chegou a tanto que, segundo os melhores
cálculos, passavam já de mil negros, e grande número de negras e crias:
unido este poder elegeram rei e formaram um palanque assaz forte e
determinando-se a aparecer o fazem com a insolência de queimar as
vivendas, matarem os senhores delas, forçarem as famílias e levarem os
escravos que entendem próprios reclutas.738
À esteira das considerações do autor, parece-nos plausível considerar não somente os
vários caminhos percorridos para que um quilombola fosse escolhido o “rei”, mas
principalmente o possível significado da autoridade política para aqueles que estivessem
aquilombados. Primeiramente, temos uma circunstância generalizada e comum a todos os
quilombos que se formaram nas Américas: a presença de vários indivíduos, das mais diversas
origens. No caso específico do Quilombo Grande, a população escrava é descrita como
“Gentio de Guiné”. Sobre este etnônimo, Maria Inês Cortês de Oliveira sustenta que ele
designou, durante séculos e de maneira genérica, todos aqueles africanos que eram
embarcados ao Novo Mundo na costa ocidental da África. Conforme o comércio de escravos
crescera, o termo se ampliara. De acordo com a autora:
(...)No início, para os portugueses a Guiné teria se restringido ao litoral da
costa ocidental africana, que tinha como centro comercial a feitoria de
Cachéu, subordinada is ilhas de Cabo Verde. Esta era a área descrita nos
737
738
GUIMARÃES, Op. Cit., p. 149.
Idem Ibidem, p. 148.
296
contratos de arrendamento do século XV. Entretanto. à medida em que a
expansão do comércio português avançou para o sul, o termo passou a ser
também utilizado para designar as partes do litoral então conhecidas como
Costa da Pimenta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos.
Assim, toda a África Ocidental ao norte do Equador, do Rio Senegal ao
Gabão, era conhecida então como a Guiné.
Por essa razão, o “gentio de Guiné” passou a ser utilizado gradualmente para aqueles
que eram embarcados na África Subequatorial, de maneira genérica. Viana Filho, na obra
“Denuncias na Bahia (1591-1593)”, exemplifica tal fato ao citar o caso de um africano preso e
acusado por sodomia, identificado como “negro de Guiné, gentio da Angola”. Dois outros
mapas no século XVIII atestariam a recorrência da utilização da expressão para a costa da
África Central, região identificada como “Baixa Guiné”: Guillaume de Lisle (1700) e E.
Bowen (1766). Congo e Angola aparecem em ambos como parte da “Low Guinea”. 739
Se, por um lado, afirma Oliveira, notava-se o interesse constante dos portugueses pelas
múltiplas singularidades e diferenças africanas nos séculos XV e XVI, por outro lado, a partir
do momento em que o comércio de escravos se ampliava e que as descrições passavam a
depender diretamente dos comerciantes, haveria uma confinação das diferenças a categorias
como “gentio de Guiné”.
Paradoxalmente, no mesmo momento em que o comércio de escravos incorporava
novas áreas da África, produziam-se novos conhecimentos ou possibilidades de conhecer as
novas culturas. Contudo, as imprecisões permaneciam. No Brasil, assinala Oliveira, o termo
havia se firmado e designava toda a costa da África de onde provinham os escravos. Em
outras palavras, para a autora, a utilização da expressão “gentio de Guiné” seria explicável
não pela falta de conhecimento, mas pela pouca importância que se atribuía às especificidades
culturais dos africanos para o exercício dos trabalhos a que seriam destinados. 740
Sobre essa última questão, é importante frisar que, em meados do século XVIII, as
fontes documentais elaboradas por autoridades portuguesas na África também demonstram o
inverso. Em 1761, por exemplo, o então governador do Reino de Angola, Francisco Inocêncio
de Sousa Coutinho, em carta endereçada ao Rei, na defesa dos cativos adquiridos em
739
OLIVEIRA, Maria Inê Cortês de. Quem eram os “Negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia.
Afro-Ásia, 19/20, 1997, pp. 37-73.
740
Idem Ibidem, pp. 40-41.
297
Benguela, dá a entender a existência de uma preocupação quanto às diferenciações de
procedência:
Bem sei que dirão os moradores do Brazil que os negros daquela parte são
mais fortes e capazes de minerar [Costa da Mina], porém creya V. Exª que
os de Benguela são igualmente robustos e capazes deste serviço e que
estando nós senhores abfotulos de Cabinda, Loango, atravessamos por terra
e por mar todo comercio da Costa, e por conseqüência toda a qualidade de
negros proporcionada aos diferentes serviços a que os destinao no Brazil,
engrofsando consideravelmente a Fazendo de S. Mag. E em poucos annos
seria mais útil de todos os feus vastos Domínios [grifo nosso].741
Segundo o Capitão-General, era recorrente a fama dos africanos da Costa da Mina
serem mais adequados ao trabalho e mineração; todavia, aqueles que eram capturados em
Benguela também estavam habilitados. Ou seja, mesmo se posteriormente no Novo Mundo
fossem utilizadas expressões genéricas, era também importante o conhecimento acerca da
região onde africanos haviam se transformado em escravos.
Os apontamentos tecidos por João José Reis na obra “A morte é uma festa” também
são de grande valia para se pensar as diferenciações intra-africanas no Mundo Atlântico. O
autor realiza uma reflexão sobre as atitudes perante a morte, ritos fúnebres e revoltas
populares no século XIX. Ao investigar a procedência das irmandades religiosas no Brasil,
especialmente na Bahia, ele nos apresenta a divisão de africanos em irmandades – desejada
tanto do ponto de vista do colonizador, como do próprio africano em questão –, de modo que
haveriam irmandades angolanas, jejês e nagôs. Nas palavras do autor:
(....) Imaginadas como veículo de acomodação e domesticação do espírito
africano, elas na verdade funcionaram como meios de afirmação cultural. Do
ponto de vista das classes dirigentes, isso foi interessante no sentido de
manter as rivalidades étnicas entre os negros, prevenindo alianças perigosas.
Ao mesmo tempo, do ponto de vista dos negros, impediu-lhes a
uniformização ideológica, que poderia levar a um controle social mais
rígido. Com o passar do tempo as irmandades serviriam até como espaço de
741
ANTT, Carta de D. Francisco de Inocêncio para sua Majestade pelo Conselho Ultramarino. Fundo: Conde de
Linhares, liv. 99 I, p. 19v, de 25 de julho de 1761.
298
alianças interétnicas, ou pelo menos como canal de ‘administração’ das
diferenças étnicas na comunidade negra.742
Igualmente, é preciso lembrar a constatação de Crivelente em relação aos casamentos
realizados entre cativos de origem africana na primeira metade do século XIX em Serra
Acima (Chapada dos Guimarães), a partir do estudo dos registros paroquiais: dos 290
casamentos realizados entre escravos, 108 se deram entre africanos e desta soma cerca de
30% apresentou propensão a tendências endogâmicas, ou seja, casamento entre africanos
identificados como parte da mesma nação (Benguela, Minas, Congos, Nagô, entre outros),
com destaque aos Benguela; o que sugere que as diferenciações internas pudessem ser
importantes, ao menos para africanos que viam na proximidade novas possibilidades de
recomeçar a vida no além-mar.
Mesmo quando são referenciadas nações junto aos nomes, as imprecisões quanto à
procedência étnica, idioma falado, valores culturais e organização política permanecem.
“Teresa de Benguela”, por exemplo, nos fornece apenas uma indicação do local onde fora
comercializada ou batizada. Como vimos no segundo capítulo desta tese, existia uma ampla
rede comercial de mão-de-obra escrava que atravessava os reinos de Angola e Benguela,
formada por cidades portuárias e plataformas (presídios ou fortalezas). Estas últimas, por sua
vez, enviavam progressivamente diferentes agentes – sertanejos e/ou pombeiros –a regiões
desconhecidas, a fim de que obtivessem escravos. Quando a obtenção de cativos não se dava
por acordos comerciais com “sobas” locais, se passava por “guerras justas”. Destarte, ao
serem metamorfoseados em cativos, seguiam às cidades portuárias e destas eram
transportados ao Novo Mundo, após serem renomeados com nomes europeus743 e batizados.
Assim, alguém referenciado pelo sobrenome “Benguela” pode ter sido locomovido de
longínquas regiões na própria África Centro-Ocidental. Muito provavelmente, dos planaltos
ovimbundus, repletos de diferentes povos falantes do idioma umbundu; ou mesmo pode ter
sido comercializado por povos Ovimbundus, que poderiam tê-lo comprado em regiões mais
interioranas, haja visto que as caravanas comerciais destes povos atravessavam toda a atual
Angola.
742
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 55.
743
Vale lembrar que a própria rainha Nzinga, ao ser batizada passou a se chamar Dona Maria. ver CAVAZZI,
Op. Cit.
299
Em todo caso, ao retornarmos a nossa atenção para o Quilombo Grande e a despeito
das múltiplas possibilidades de procedência étnica do “gentio de Guiné”, em decorrência do
fluxo comercial de cativos e predominância das rotas via-sul, possivelmente a maior parte dos
habitantes do quilombo seria originária da África Centro-Ocidental (ou “baixa Guiné”),
sobretudo, de Angola. Contudo, pelo caráter genérico da descrição e lacunas documentais
(como o nome dos cativos capturados ou mortos, proprietários, entre outros), também não
podemos desconsiderar a presença de africanos de outras regiões da África.
Partindo do pressuposto da variedade de nações africanas no interior do Quilombo
Grande, como explicar o fato do mesmo ser liderado por uma africana procedente de
Benguela? Como vimos anteriormente, Teresa era viúva, havia assumido a chefia do
Quilombo Grande após a morte do antigo rei, cuja nacionalidade não é informada na
documentação disponível. Por que a população africana haveria aceitado a autoridade de
Teresa, que governava com mãos de ferro o quilombo? Tanto nos relatos de Filipe José
Nogueira Coelho, como nos Anais de Vila Bela, a rigidez de Teresa recebe grande destaque.
No primeiro, assim é descrita: “(...) mandava enforcar, quebrar as pernas, e sobretudo enterrar
vivos os que pretendiam vir para seus senhores”.744 Nos Anais, por sua vez, o cotidiano da
governança rígida é detalhado:
(...) não só chegou a mandar enforcar, mas também quebrar pernas e braços e
enterrar vivos aqueles que, arrependidos da fuga, queriam tornar para a casa
de seus senhores, sem que para semelhantes e outros castigos fosse preciso
legal prova. Bastavam leves indícios para serem punidos quaisquer réus de
semelhantes delitos. Isso, além de outro, que mandava fazer muito ao seu
paladar. Chamavam esta muito intitulada rainha Teresa. Era assistida e
servida de todas as mais negras e índias, ainda melhor de que se fossem suas
cativas, a quem diariamente castigava, rigorosamente, por qualquer coisa.
Tanto era temida que nem machos, nem fêmeas era ousados a levantar os
olhos diante dela [grifo nosso]. 745
Não nos deixa de chamar atenção as semelhantes descrições da rigidez e força de
Teresa com a imponente presença da rainha Nzinga junto aos relatos de missionários ou
militares europeus que estiveram na região de Angola, no século XVII. Vimos no militar
Cadornega anteriormente a equiparação de Nzinga com a “Cleópatra”, descrita como cruel e
744
745
COELHO, Op. Cit., p.182.
AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 140.
300
sanguinária, parecendo-lhe “imortal” pelo reinado e guerra continuada que fez aos
portugueses em Angola no transcorrer de quatro décadas. Teresa de Benguela, assim como
Nzinga, era temida até por homens, respeitada e rigorosa na sua governança.
Sobre as descrições de Teresa, é preciso ponderar que tal rigidez possivelmente não
correspondesse ao que de fato se passava no cotidiano do Quilombo Grande e que fosse uma
maneira de negativar a autoridade da rainha, a fim de que novas fugas não se fizessem.
Embora nos Anais esteja afirmado que as informações tivessem sido obtidas com os “negros”
(provavelmente os capturados pela bandeira), não nos parece verossímil que semelhante rigor
pudesse manter aprisionado cativos que já haviam fugido do sistema escravista ou que tão
pouco pudesse fazê-los assumir uma hierarquia política e social a ponto de chamarem Teresa
de rainha. Acrescenta-se a esses fatores a própria luta travada para evitar a queda do
Quilombo Grande: se a vida no quilombo fosse como o suplício descrito na documentação,
então por qual razão quilombolas teriam resistido e protegido o espaço? Retornemos à
bandeira de 1770.
Na noite de 22 de julho daquele ano, foi realizado o primeiro ataque, que, como
vimos, se prolongou por várias semanas e teve como desfecho a captura de 41 quilombolas,
entre homens e mulheres, além da morte de outros 9 comprovadas pela apresentação de 18
orelhas que haviam sido retiradas dos cadáveres.
746
Tão logo percebeu o ataque, a rainha
Teresa ordenou a resistência:
(...) A maldita rainha de quem temos tratado, na ocasião em que se abalroou
o quilombo, mandou os seus que pegassem em armas e tudo matassem.
Alguns de seus súditos assim o fizeram acudindo à voz e pegando em armas;
mas não puderam usar delas pela força que viram contra si. Tomaram por
melhor acordo retirarem-se fugitivos ao mato. Nessa retirada, foi também a
rainha, conduzida por José Cavalo, escravo do sargento-mor Inácio Leme.
Era esse negro capitão-mor do quilombo e, entre os mais, tido por mais
valoroso.
Na apressada fuga em que foram, no saltar de um riacho se estrepou aquela
desaventurada rainha em um pé, isso a tempo que já os soldados iam sobre
ela, por a terem visto. Com facilidade a prenderam e trouxeram ao
aquartelamento, onde estava o sargento-mor (...) [grifos nossos].747
746
747
AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 139.
Idem Ibidem, p. 140.
301
Como podemos notar, aqueles que tiveram tempo hábil pegaram em armas para se
protegerem da invasão e outros que viram a impossibilidade de resistir fugiram para as matas.
Entre estes últimos, estava Teresa de Benguela, conduzida por José Cavalo, considerado
“capitão-mor” do quilombo e escravo reivindicado pelo próprio comandante da bandeira. Em
outras palavras, as descrições da governança pretensamente rígida se contradizem sutilmente
quando passam a abordar a própria reação desesperada dos quilombolas para não retornarem à
sociedade escravista.
Tal contradição também pode ser notada quando é narrada a captura de Teresa e sua
morte. Nos Anais de Vila Bela, afirma-se que Teresa, ao ser capturada, foi encaminhada para
o acampamento já firmado dentro do antigo quilombo, à frente dos seus antigos súditos. Ao
receber insultos deles, fez-se “muda” ou amuada e, diante dessa situação, após alguns dias
“expirou de pasmo”. Morta, cortaram-lhe a cabeça e a puseram no centro do quilombo em um
alto poste, um exemplo visível para todos os outros que ousassem se levantar contra a coroa
portuguesa. 748
Chama atenção a descrição da morte de Teresa por “pasmo”. Tal palavra, na língua
portuguesa se traduz diretamente como aquilo que causa assombro, espanto.749 No caso da
utilização da palavra para interpretação da morte de cativos, ao longo dos séculos XVIII e
XIX, passou a estar associada ao verbo “banzar”, que se significava “pasmar com pena”, de
modo que o “banzeiro” era aquele que se encontrava em estado de inquietude, duvidosa
tensão, um “mar banzeiro”, em tormento (no latim, “Dubium maré”).750
O fenômeno mereceu atenção de numerosos personagens no decorrer dos séculos
XVIII e XIX, entre eles Luís Antonio Oliveira Mendes (1793). Ao observar a constante
mortandade de africanos na travessia do Atlântico à América portuguesa, classificou essa
inquietude de “paixão da alma”; uma moléstia provocada pela saudade dos entes queridos,
traduzida na mortal nostalgia, espécie de vesânia (doença mental) no período, localizada na
748
Idem Ibidem, p. 140.
FERREIRA, Op. Cit.,p. 612.
750
O verbo “banzo” em idiomas banto assumia significados diversos. No ovimbundu, por exemplo, designava
“aldeia” ou “terra natal”; no quicongo significava “pensamento”. Ver ODA, Op. Cit., pp. 3-6. Vale ressaltar que
o substantivo “banzo” com esta acepção provavelmente foi incorporado à língua portuguesa somente no século
XIX. Assim aparecerá nos dicionários de Eduardo Faria (1859) e Frei Domingos Vieira (1871), além de também
ser referenciado no primeiro dicionário da língua portuguesa intitulado ““Vocabulario portuguez & Latino,
áulico, anatômico, architectonico bellico, botanico,etc”, de autoria do Padre Rafael Blutenau. Sobre a
historicidade da palavra Ver RODRIGUES, Bruno Pinheiro. Paixão da alma: o suicídio de cativos em Cuiabá
(1854-1888). Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2010
(dissertação), pp.27-28.
749
302
parte do cérebro onde pensamentos e desejos se fixavam na ideia do possível regresso à terra
natal. 751
A interpretação de Oliveira Mendes no final do século XVIII do banzo ou pasmo de
africanos escravizados, à luz das categorias nosológicas (estudo sobre doenças) da medicina
europeia no período – principalmente no que diz respeito a categoria “nostalgia” –, naquela
altura havia sido inédita. Todavia, desde a publicação da monografia “De nostalgia” do
médico suíço Johanes Hofer, em 1678, com a sua posterior repercussão, a utilização das
categorias médicas europeias para compreensão da morte por inanição passara a ser menos
“helvética”, sobretudo quando se constatavam a reação de jovens soldados europeus que
haviam sido recrutados à força, tomados por saudades da terra natal.
752
A interpretação de
Oliveira Mendes seria reflexo desse processo e, como já foi ressaltado anteriormente, da
preocupação com os negócios escravistas, uma vez que a morte de cativos causava danos
constantes à economia.753
Além disso, o “pasmo” que levou Teresa de Benguela, se assim procedem as
descrições dos Anais de Vila Bela, deve ser compreendido como morte por “inanição”, o
perecer lento causado por melancolia, profunda tristeza e inquietude, recusa de alimentos e
líquidos, contrariando a vontade senhorial de vê-la novamente em cativeiro. Se assim procede,
Teresa, mulher de pedra, preferiu a morte em vez do retorno à escravidão. Sua história é
semelhante ao de tantos outros cativos que optaram pelo profundo silêncio.
751
Oliveira Mendes descreve numerosas situações em que africanos se viam em “nostalgia”, especialmente no
capítulo VI. A fim de evitar a alta taxa de mortalidade dos homens de ferro, recomendava aos comerciantes a
adoção de diversos procedimentos: “(...) Deviam ter como primeira regra, que os pretos perdendo a sua
liberdade, ficam desde logo apaixonados, e entregues a um indizível ressentimento, que é justo, e inseparável, e
extensivo ao mesmo bárbaro, que também tem alma, e que também sente. Deviam por isso mesmo desde logo
começar a tratá-los com toda a brandura, e agrados, para fazer o cativeiro menos sensível, desimaginá-los, e
desvanecer pouco a pouco o banzo, que os não desacompanha. Porém pelo contrário sucede, que desde logo
contra eles se arma a mão visível da tirania, e do mal trato, tratando-os com a maior crueldade que se pode
considerar, e explicar”. OLIVEIRA MENDES, Op. Cit., p. 50.
752
Em termos gerais, Hofer sustentava que a nostalgia era uma enfermidade na qual os suíços estavam
predispostos. A nostalgia, palavra derivada dos radicais gregos “nóstos” (regresso) e “álgos” (dor física ou
moral), que tem como sede o cérebro, se manifestava no desequilíbrio do sistema disgestivo e a composição do
sangue, levando o indivíduo a inanição. Era causada pelo excesso de imaginação e paixão, exatamente nos locais
onde habitam as imagens de pessoas e paragens queridas. O autor, no intento de confirmar suas teses, mencionou
diversos casos de pessoas afastadas de sua terra natal, cujos pensamentos e desejos se fixavam no desejo de
regresso à sua terra natal, os tornando sombrios e indiferentes ao restante do mundo. Ver ODA, Op. Cit. , p. 9.
753
Oliveira Mendes também teceu veementes críticas aos comerciantes de Angola, que pelo mal preparo do
cativero, favoreciam a recorrência de mortes de escravos. Ver OLIVEIRA MENDES, Op. Cit., pp.50-58.
304
Fig. 12 – Mulher de pedra: a rainha Teresa de Benguela e o seu “parlamento”,
por Thalita Pinheiro Rodrigues (2015).
304
Em Filipe José Nogueira Coelho, diferentemente do que dispõe os Anais, a morte de
Teresa assume outra circunstância: ao se ver presa, a paixão foi tamanha que morreu
“enfurecida”, ao ser conduzida à Vila Bela. Destarte, pelo relato do Provedor da Fazenda,
Teresa não foi posta à frente dos seus súditos, mas faleceu no caminho tomada por frustração
e fúria.
A despeito da verossimilhança dos relatos e mesmo dos possíveis objetivos de
amedrontar a população cativa da região a fim de que não se evadissem, como o decepar da
cabeça da rainha Teresa e posterior exposição, as constantes queixas das autoridades no
período demonstram o contrário: cativos continuaram a fugir e se aquilombar. Deve-se levar
em consideração que 37 conseguiram escapar das incursões da bandeira e permaneceram na
região. Se estivessem tão vitimizados como as descrições sugerem, por que não teriam se
entregado pacificamente à expedição?
Em todo caso, na documentação que se refere ao Quilombo Grande, temos uma
estrutura política descrita com grande rigidez, chefiada por Teresa, procedente de Benguela,
que governava implacavelmente e, ao se ver derrotada, morreu por si mesma. Aqui, podemos
levantar um novo questionamento quanto a essa rigidez, se assim foi procedente: refugiados
no quilombo teriam se submetido à autoridade de Teresa devido a alguma noção hierárquica
africana?
Devemos lembrar que, se grande parte dos cativos africanos procedessem de
Benguela, uma quantidade significativa havia sido extraída do hinterland, região habitada
principalmente por povos Ovimbundus, além dos povos Imbangalas que, segundo Miller,
mantiveram numerosas hostilidades com portugueses, dificultando o controle da região.754
Tais africanos, além de trazerem ao Novo Mundo noções religiosas, culturais, também
carregavam consigo concepções de organização social e política.
Para compreensão desse pano de fundo, valeremos-nos aqui de alguns apontamentos
realizados por Joseph Miller na obra “Poder político e parentesco. Os antigos estados Mbundu
em Angola”.755 Na referida, o autor se propõe a uma análise do poder político entre os
754
Segundo Miller, os Imbangalas desde a chegada dos portugueses no território Angolano, mantiveram distintas
posições. Se ao norte a relação com os portugueses era de “quase simbiose”, caracterizada por alianças que
resultavam na captura de cativos, ao sul do rio Kwanza havia um “Record de hostilidades”, de modo a instalação
portuguesa ao sul acabou de dando de maneira mais dificultosa. ver MILLER, 1995, p. 207.
755
Originalmente publicada em 1976 com o título “Kings and Kinsmen. Early Mbundu states in Angola”.
305
Mbundu,756 à luz das histórias políticas de migrações por volta do século XVI no interior do
atual território angolano, cruzamento de instituições entre diferentes povos, disputas políticas,
a partir do cruzamento de diferentes fontes, como genealogias, tradição oral e registros
escritos por missionários e cronistas sobre os povos Imbangalas. Assim, pelo cruzamento de
fontes, o autor constatou a insuficiência interpretativa dos registros escritos para se interpretar
as instituições políticas e transformações na região. Enquanto os documentos escritos
focalizavam indivíduos, protagonistas individuais, as tradições orais e reconstituição das
genealogias (“Musendo” entre Imbangalas) apontavam para o caráter coletivo dos nomes, de
modo que no lugar de reis, deveria ler-se “dinastia”, de dignatário ler “função” e de detentor
de autoridade interpretar “insígnia de autoridade”. 757
Procedendo dessa maneira, Miller se pôs a investigar os “Kilombos”, instituições
transversais e multiculturais, que ilustravam tal história de cruzamentos e migrações internas.
Resultado do encontro de instituições Ovimbundus, Cokwes e Lundas, no momento em que
portugueses passaram a se instalar ao sul do rio Kwanza, entre o final do século XVI e início
do XVII, e a expandirem-se ao hinterland de Benguela, o Kilombo se constituía como a
principal instituição organizativa dos povos presentes na região. Naquele momento, como já
vimos em outra ocasião, essa instituição consistia em um campo de iniciação e formação
militar, adotada ao longo da história migratória dos Lundas a oeste de Angola pela
necessidade de se resolver o problema da “desunião”, causado por disputas de linhagens.
Especificamente, no momento em que Kinguri (Lunda) migrara ao oeste de Angola entre o
final do século XVI e início do XVII, a associação guerreira ovimbundu com sua
transversalidade oferecia as seguintes soluções que faltavam ao líder/título:
(...)O kilombo oferecia duas coisas que tinham faltado ao bando original do
Kinguri: uma estrutura firme, capaz de unir um grande número de estranhos
que, como era evidente, nunca tinham substituído as perdidas linhagens por
instituições sociais ou políticas viáveis que se lhes comparasse; e uma
disciplina militar capaz de derrotar os grandes reinos que bloqueavam o seu
movimento para o norte, além Luhando, e para oeste do Kwanza [grifo
nosso].758
756
Embora as fronteiras entre os diferentes povos estivessem pouco definida em Angola por volta do século
XVI, de maneira panorâmica assim estavam localizados: ao sul estavam os Ovimbundo, ao leste os Cokwes e
Lundas e ao norte os Kongo e Mbundu, estes últimos falantes do idioma Quimbundo. Ver reflexão de Miller à
luz do esquema etnográfico classificatório de Malcolm Guthrie, Idem Ibidem, p. 38.
757
Idem Ibidem, p. 12.
758
Idem Ibidem, p. 159.
306
Os Kilombos, segundo Miller, possuíam a capacidade de disseminar novas posições,
além de fornecerem legitimidade a guerreiros que pudessem reunir seguidores e se libertarem
de “autoridades linhageiras” que existiam no planalto de Benguela.
759
No processo de
migração dos Lundas e estabelecimento na região desses povos, foram fundamentais para
destituição do líder/título Kinguri, ao fornecer aos “Makotas” (rivais de Kinguri) base para a
crescente adesão de membros, uma vez que não dependiam de “linhagens”, e disciplina –
combinados, foram responsáveis pela expansão imbangala a norte e a sul do rio Kwanza, a
partir do século XVII.
760
Para o autor, esse crescimento imbangala, caracterizado pela adoção da instituição
Kilombo, ocorreu de maneira diferente de acordo com a região: se ao norte as linhagens
Mbundu lhes eram indiferentes e empurravam os Imbangalas para os portugueses, ao sul
encontrou maior receptividade, o que acabou criando condições para que os Imbangalas
meridionais se mantivessem independentes. Dessa forma, registraram-se as várias tentativas
fracassadas de se estabelecer alianças com Imbangalas que habitavam os entornos de
Benguela. A própria instalação do presídio de Caconda exemplifica tal indisposição para com
portugueses, que só conseguiram construir um forte na região após repetidas campanhas
militares no último quartel do século XVII.761
Ao redirecionarmos nosso olhar para os espaços denominados por portugueses como
“quilombos” no Brasil,762 referência ao conhecimento que detinham dessas instituições em
solo africano, chamamos atenção para ao seguinte fato: a que ponto é cabível considerar a
aceitação da adesão indiscriminada de indivíduos aos quilombos, como parte da própria
cultura de organização social e política que africanos traziam consigo, especialmente aqueles
originários do hinterland de Benguela? Estudos diversos, alguns dos quais citados neste
trabalho, mencionam a presença de indígenas, africanos de diversas etnias e até desertores ou
criminosos no interior dos quilombos nas Américas.
759
Ibidem, p. 165.
Segundo Miller, a adesão dos Lundas (por meio dos Makotas) aos Kilombos, permitiu a fragmentação de
antigas autoridades e posteriormente resultou no surgimento dos reinados Ovimbundo nos séculos XVIII e XIX.
Ibidem, p. 167.
761
De acordo com o autor, portugueses esperavam que Imbangalas do sul, processem como os do norte e
pudessem abrir o caminho para o interior. Menciona, por exemplo, a tentativa de aliança fracassada entre
Cerveira Pereira (aquele que fundou Benguela), com um chefe Imbangala que habitava as margens do rio
Murombo. Na ocasião o português propôs ao Imbangala que o mesmo atacasse as populações vizinhas para
obtenção de cativos. O chefe concordou inicialmente e depois surpreendeu o grupo causado-lhe um roubo à
noite. Ibidem, p. 208.
762
Pelas lacunas documentais é dificultoso ter clareza sobre até que ponto também não seria uma “autodenominação” de alguns quilombos, ou noção sobre qual definição quilombolas atribuíam ao acampamento que
formavam, em vista da multiplicidade étnica.
760
307
No caso do Quilombo Grande, apesar da possível predominância de africanos
provenientes dos reinos de Angola e Benguela, deveriam haver também aqueles que se
originavam da Costa da Mina e, quiçá, de outras regiões. Igualmente, haviam indígenas que
correspondiam a cerca de 30% em 1770. Perguntamo-nos se no Quilombo Grande a
flexibilização da adesão para além das noções de “linhagem” pode ter permitido a
incorporação de indígenas, registrados na bandeira de 1795. Se, por um lado, haveria uma
“aruaquização” sutil dos quilombolas observável, como vimos acima, na prática do rapto de
mulheres ou adoção de técnicas agrícolas, por outro lado, também pode ter havido a
bantuização do território, reproduzida no que diz respeito a alguns traços da organização
política. Dessa maneira, o Quilombo Grande teria se transformado em um lugar de encontro
de diferentes agentes e culturas, para além de ser um mero espaço de refúgio daqueles que se
evadiam do sistema escravista.
Distantes da sociedade escravista, esses homens e mulheres, que não eram “tabulas
rasas” e ao mesmo tempo estavam em intenso contato com outros mundos diversos desde o
momento em que foram transformados em escravos no solo africano, organizaram-se
politicamente com base nas referências que traziam consigo e das constantes adaptações às
circunstâncias em que estavam inseridos. Como afirma Carlos Guimarães, a documentação
referente aos quilombos no território luso-brasileiro não nos fornece base para compreender a
maneira como quilombolas se viam. O fato de elegerem um rei pode ser apenas reflexo do que
haviam assimilado do mundo português, ou mesmo um efeito do olhar do agente colonizador
que concebia a organização política do africano à luz das suas referências.763 Todavia, ao
vislumbrarmos esse africano organizado politicamente antes da transformação em cativo, não
podemos deixar de considerar as tentativas adaptadas às contingências de se organizar
conforme os modelos que já conheciam na África, no caso analisado, no hinterland de
Benguela.
Se a flexibilização na adesão que dispensava a pertença de linhagens pode ter
contribuído na organização do quilombo, é bem sabido que ele não se organizou à imagem e
semelhança do kilombo tal como era entre os Imbangalas. Não temos referências, por
exemplo, de alguma prática similar ao ritual de “maji a samba”, em que pais sacrificavam os
seus filhos recém nascidos, transformando-os em “ungüento” de preparo para futuras vitórias
763
GUIMARÃES, Op. Cit., p. 150.
308
militares. A este propósito, segundo Miller, o “maji a samba” detinha significado fundamental
para dispensa da necessidade de pertença de linhagem. De acordo com o autor:
(...) Num sentido metafórico, a preparação do maji a samba pelo chefe,
através do assassínio ritual do seu filho (a), era um símbolo corrente do
excessivo poder de um governante sobre o seu povo. Os ‘filhos, na narrativa,
representam os súbditos de um chefe político, em contraste com os seus
parentes que são sempre descritos como ‘sobrinhos e sobrinhas’. A
cerimônia de matar o filho simbolizava o poder absoluto do governante
sobre os seus súbditos, tal como a imagem do Kinguri, assassinando
escravos de cada vez que se erguia ou se sentava, mostrava o temor
superticioso que o seu povo lhe dedicava. Num sentido mais literal, porém, a
matança dos filhos, quando praticada por toda uma população, tornava-se
um meio de abolir as linhagens, uma vez que o assassinato dos filhos (ou a
negação do significado social de um nascimento fiísico) tinha sobre os
grupos de filiação o mesmo efeito estrutural que a proibição do seu
nascimento [grifo nosso].764
No Quilombo Grande, não só se observa uma prática análoga a essa, mas o contrário:
quando outra bandeira é organizada na Capitania de Mato Grosso para captura dos
remanescentes do antigo Quilombo Grande, são encontrados vários caburés, ou seja, filhos de
negros com indígenas, que muito provavelmente haviam nascido dentro do quilombo. Entre
os Imbangalas, como vimos em Cavazzi, o nascimento de uma criança dentro de um kilombo
era proibido.
Nos Anais de Vila Bela e demais documentos, ainda merecem destaque a disciplina a
que estavam submetidos os quilombolas e a grande obediência e temor a sua rainha, Teresa de
Benguela – “(...) nem machos nem fêmeas eram ousados a levantar os olhos diante dela”.
Novamente, é importante observar o proceder em território africano. Lembramos o leitor da
descrição do luso-brasileiro Elias Corrêa em 1792: os Jagas eram gente “beliciosa” que
admitiam várias nações, elegiam os governantes (mais antigo militar) e juravam defender o
seu povo e morrer por ele.765 No Quilombo Grande, notamos a admissão de indivíduos de
nações diversas e a defesa do quilombo na medida do que era possível; mediante o ataque
surpresa, quando Teresa percebe o ataque inimigo e ordena a defesa, aqueles que podem
764
MILLER, Op. Cit., p. 163.
Não existe uma clareza acerca da distinção entre Jagas e Imbangalas nos diferentes autores que nos valemos,
de modo que a maioria os trata como povos únicos. Sobre a citação de Elias Corrêa, ver capítulo 1, seção 1.2.1.
desta tese.
765
309
pegam em armas. Mais importante: Teresa havia chegado à chefia do Quilombo Grande após
a morte do antigo rei. Como havia sido escolhido o antigo rei? Essa escolha teria sido baseada
no critério acima descrito por Corrêa, do guerreiro mais antigo?
A disciplina e respeito pela figura do líder também são mencionadas nos relatos de
Cavazzi, especialmente quando o missionário se refere à adoção das antigas “quijilas” (leis ou
proibições) dos Jagas-Imbangalas pela rainha Nzinga; entre elas, a proibição de se criar
crianças no interior dos kilombos, aceita disciplinadamente. Nos relatos do capuchinho, como
vimos, mães entregavam voluntariamente os seus filhos recém-nascidos para rituais de
sacrifício. A despeito da verossimilhança dos fatos, tais narrativas nos dão dimensão do grau
de obediência ao líder e à hierarquia entre os Imbangalas, povos que também habitavam os
entornos de Benguela e, por vezes, foram tomados como cativos.766
Em Augusto Bastos, que intentou uma descrição etnográfica dos povos Ovimbundus
que habitavam o hinterland de Benguela e que estavam organizados em pequenos potentados,
o respeito à hierarquia e autoridade do chefe era notável. Observou o autor:
O systema de governo é a monarchia absoluta e hereditária na organisação
política por estadso, e electiva em algumas tribus pequenas de forma
patriarchal; nas grandes tribus, como entre os Ganguellas, é hereditária.
A auctoridade dos sobas é absoluta; não obstante ouvirem sempre o parecer
do conselho porque são assistidos, resolvem em ultima instancia a seu bel
prazer, decretam leis, e nenhuma vontade se póde oppôr à sua. Salvo,
quando há descontentamentos contra elle, por incúria, iniqüidades e
despotismo excessivo; n’estes casos, tramam-se as conspirações,deixam de
acatar a sua vontade despótica, até que a depõem (...). 767
O soba era absoluto em sua autoridade, mas não governava sozinho, era assistido por
um conselho do qual precisava ouvir o parecer, mesmo que a sua vontade fosse contrariada. A
autoridade dos conselheiros, notou Bastos, era respeitada não somente pelo soba, mas pelo
próprio povo. A importância de tal conselho ficava evidente nas cerimônias de nomeação dos
766
Citamos anteriormente o caso do chefe Imbangala que enganou Cerveira Pereira, roubando-o após ter
prometido aliança. Logo após o fato o conquistador português se decidiu por atacar o soba e vencida a batalha,
decapitou o chefe e transformou os demais em escravos. Ver MILLER, Op. Cit., p. 208.
767
BASTOS, Op. Cit., p. 21. No capítulo 1 desta tese, na seção 1.1.1. também tecemos comentários a respeito da
obra de Bastos.
310
sobas, que eram presididas pelo chefe ou presidente do Conselho.768 Teresa de Benguela,
igualmente, é descrita com autoridade inquestionável dentro do Quilombo Grande, e assistida
pelo que luso-brasileiros intitularam “parlamento”, cuja maior liderança era José Piolho, tido
respeitosamente como o maior “oráculo”.769
Finalmente, podemos pensar a chegada de Teresa à chefia do Quilombo. Tanto em
Filipe José Nogueira Coelho, como nos Anais, a mesma se transforma em rainha após a morte
do rei. Embora o “kilombo” em solo africano seja uma estrutura delineada pela flexibilidade
da não pertença a linhagens, sobretudo na utilização dada por Imbangalas à instituição, os
apontamentos de Augusto Bastos acerca do sistema de sucessão política entre os povos que
observou – esquemas que, segundo o autor, se “repetiam de século para século” 770 – nos são
úteis para pensar a possível referência a que africanos escravizados no hinterland de Benguela
poderiam recorrer no momento de atribuir nova liderança.
De acordo com Bastos, a eleição dos chefes no planalto de Benguela se dava por
herança nos grandes estados e por eleição nas pequenas “tribos”, nas quais não haviam
herdeiros – casos, segundo o autor, “raríssimos.” A ordem de sucessão sempre deveria seguir
a proximidade do parentesco, de modo que a sequência se daria com o filho, irmão ou
qualquer outro parente. Buscava-se dar primazia à primogenitura com preferência sempre
pelos filhos da rainha. Caso houvesse falta de filhos, então eram nomeados netos, irmãos,
sobrinhos ou filhos. 771
Quando nos voltamos à documentação que trata do Quilombo Grande, deparamos com
o seguinte fato: não existe menção sobre a existência de um filho entre Teresa e o antigo rei.
Desse modo, se o critério para sucessão adotado entre os quilombolas fosse a proximidade
parental, com alguma referência às estruturas africanas acima elencadas, naturalmente, Teresa
deveria ser nomeada rainha.
Finalmente, a reflexão do Quilombo Grande necessita não somente uma releitura dos
documentos históricos relacionados ao contexto em que esteve inserido, mas igualmente a
consideração da agência indígena no vale do Guaporé – especialmente o fenômeno da
“aruaquização” –, analogamente à investigação dos próprios africanos, antes de serem
768
Idem Ibidem, p. 23.
AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 140.
770
BASTOS, Op. Cit., p. 18.
771
Idem Ibidem, pp. 22-26.
769
311
transformados em cativos no contexto africano. Dessa maneira, o Quilombo Grande passa a
significar o espaço de resistência à escravidão e também o local de encontro de culturas e
processos históricos. Outrossim, passa a significar o espaço em que homens de ferro e
mulheres de pedra, mediante limitações e pressões externas, tentaram não perder a esperança
de recomeçar, de olhar para a frente, mesmo após longos e penosos deslocamentos, perigos e
impossibilidade de retorno.
301
313
CAPÍTULO 6 – “Fogo da libedade”: das fugas à conjuração do agosto de
1809 em Santa Cruz de La Sierra
El fuego de la libertad, que de poco tiempo a esta parte ha empezado a
abrazar los corazones de los habitantes de la América, parece que empieza a
centellear hasta en los rincones más escondidos de los Andes. Acabamos de
saber la fatal ruina de españoles que por un acaso se ha evitado en Santa
Cruz.
Todos los negros de aquella capital unidos con los indios iban a sorprenderla
el veinte del pasado a las tres de la mañana; tenían ánimo de no dejar un
habitante blanco y apoderados de la gran sala de armas que allí tienen,
defender su libertad hasta el último trance. Un muchacho descubrió la
conjuración. Han preso a varios de los principales; muchos se han escapado
y venido a esta ciudad con designio de incorporarse en la compañía del
Terror, que así se llama la de los negros y mulatos. No sabemos si con esto
se aquietará la rebelión general de esta desgraciada raza de hombres.772
Quando o cura José Antonio Medina, considerado o cérebro e coração dos primeiros
atos que reivindicavam a emancipação política no Alto Peru,773 foi capturado pelas forças
monarquistas, uma grande soma de correspondências e livros foi apreendida consigo. Em
meio ao vasto material que se encontrava em sua posse, havia uma carta escrita aparentemente
por Manuel Victoriano García Lanza, um dos rebeldes encarregados por insuflar a insurreição
em outras cidades.
774
Lanza relatava com grande euforia que a centelha lançada em
Chuquisaca e La Paz no ano de 1809 finalmente começava a abraçar os “corações” de todos
os habitantes das Américas, até mesmo dos rincões mais escondidos, como assim era
considerada Santa Cruz de la Sierra – pequena cidade que, em agosto de 1809, fora palco de
uma conspiração arquitetada pelos extratos mais modestos, a saber, a população escrava,
negros livres e indígenas.
No período, em meio às invasões napoleônicas enfrentadas pela coroa espanhola na
Europa e à crise de legitimidade do poder monárquico nas Américas, notícias circulavam por
772
VÁZQUEZ MACHICADO, Humberto. VÁZQUEZ MACHICADO, Humberto. “La efervescência
Libertaria en el Alto Perú de 1809 y la Insurrección de Esclavos en Santa Cruz de La Sierra”. Disponível
em <http://www.soysantacruz.com.bo/Generales/GenWeb-HistoriaHnosVM/Htm/H-06.htm >. Acessado no dia
24/12/2014.
773
O território que atualmente é denominado Bolívia, ao longo da história recebeu outras designações, como
Charcas e Alto Peru. No presente capítulo optamos pelo último termo para referência ao período colonial,
sobretudo, a partir do século XVIII, pois “Charcas”, como sugere Alberto Crespo Rodas, remete apenas a um
grupo autóctone da região, não representando a sua totalidade. Sobre tal questão ver RODAS, Alberto Crespo.
Esclavos negros em Bolivia. La Paz: Academia Nacional de Ciencias de Bolivia, 1977, p. 5.
774
MORENO, Alcides Parejas. “Los movimientos independentistas en la gobernación de Santa Cruz de la
Sierra”. In: SANTA CRUZ e sus 200 años de Independencia: historia, procesos y desafios. Santa Cruz de la
Sierra: Jatupeando; Investigacruz, 2012, p. 17.
314
todo o Alto Peru e provocavam diferentes reações. Nesse contexto, forças começavam a se
agrupar ou buscar alianças em meio ao cenário que se montava para as turbulentas guerras de
independências que iriam assolar o cotidiano dos habitantes americanos até meados da década
de 1820. Homens como Medina e Lanza eram a expressão clara desse processo.775 Assim, não
se sabe de que maneira chegara a Santa Cruz de la Sierra a falsa notícia de que o rei havia
prometido a alforria definitiva aos negros mantidos em cativeiro e a isenção ao pagamento de
tributos aos indígenas, mas que autoridades locais haviam omitido.
Indignados e esperançosos, aqueles homens de ferro, grande parte emigrados de onde
os portugueses consideravam os seus domínios portugueses, vislumbraram finalmente
aparecer o momento ideal para se darem a liberdade ou a consolidarem. A liberdade só seria
uma condição concreta se a tomassem pela força, assim possivelmente conjecturaram os
conjurados. Então, aliados com indígenas da região, que possuíam as suas angustias e anseios
– como os povos Chiriguanaes que, desde a chegada dos espanhóis na região, se recusavam à
submissão e mantinham constante hostilidade –, decidiram que no dia 20 de agosto de 1809
todos os habitantes brancos, principalmente autoridades, seriam degolados. Contudo, o plano
foi descoberto e violentamente sufocado.
Em resumo, o capítulo que se segue trata de uma análise pormenorizada não somente
da conspiração, mas igualmente da participação ativa de escravos e negros fugidos dos
domínios lusitanos nos acontecimentos políticos do período, de modo que o estruturamos da
seguinte maneira: na primeira seção, a apresentação de Santa Cruz de la Sierra e o lugar
conferido à mão-de-obra escrava; na segunda, uma reflexão sobre os eventos de agosto de
1809 e as possíveis relações com os movimentos de independência que começavam a
alvorecer na América espanhola; segue-se a esta seção algumas notas sobre o malogro e
destino dos conjurados em meio à situação política turbulenta vivenciada na região; por fim,
na última seção, uma análise sobre a agência de negros, escravos ou “livres”, no Alto Peru,
tanto em contendas judiciais como no enfrentamento direto ao sistema escravista.
775
A descrição de Humberto Vázquez Machicado, sobre o cura Medina, nos fornece uma dimensão do papel e
importância do personagem no período: “(...) El cura Medina fue cerebro y acción en los primeros movimientos
de libertad en el Alto Perú. Ideólogo apasionado, estaba empapado de la filosofía de los revolucionarios de
Francia y sus enemigos le acusaban de ser lector de «libros prohibidos», y en muchos de sus aspectos tiene
puntas y ribetes de jacobinismo, incluso hasta en esas vaguedades y exageraciones de que nos habla Hipólito
Taine. Medina fue el autor de la famosa proclama de la Junta Tuitiva de La Paz, que definió por sí sola el credo
emancipador de estas colonias, y además del plan de gobierno que debía ponerse en práctica, en la nueva patria y
por último Goyeneche lo acusa de ser el autor de cuantas proclamas de sedición se han esparcido por la
América.” Ver VÁZQUEZ MACHICADO, Op. Cit.
315
6.1. O cenário: Santa Cruz de la Sierra e o lugar da mão-de-obra escrava
O africano, ingresso no mundo Atlântico como escravo, na medida em que é
distanciado da terra natal, aparecerá junto aos documentos oficiais crescentemente mais
europeizado. Ainda no porto de embarque no continente africano, ao ser batizado na fé cristã,
recebia um nome europeu e sobrenome, geralmente, indicando o local no qual seria
comercializado. Um Sebastião de Benguela, por exemplo, poderia ser originário tanto dos
entornos de Benguela, como das regiões mais interioranas, junto aos povos Ovimbundus,
Imbangalas-Jagas ou de povos que estavam mais ao leste de Benguela, trazido em caravanas
comerciais ou adquirido em ações militares. Após atravessar o Atlântico, em uma viagem que
poderia durar cerca de 3 meses, e, posteriormente, ao cruzar a América portuguesa em um
espaço de tempo entre 6 a 9 meses, a depender da rota e de numerosos fatores, 776 finalmente
chegaria ao Mato Grosso e Cuiabá, extremo-oeste das possessões portuguesas. Contudo,
contrariando as expectativas e investimentos econômicos, poderia perpetrar uma nova
viagem, dessa vez seguindo as suas próprias determinações; e, entre os vários destinos
possíveis, a América espanhola, no outro lado da fronteira, poderia se mostrar um lugar
possível aos olhos do africano escravizado para se viver em liberdade. Santa Cruz de la Sierra
foi um destino constante. O tempo gasto até a mesma é incerto, pois certamente a grande
maioria dos fugitivos não seguiu diretamente, mas realizou diversas paradas – necessidade de
alimentação, busca de abrigo, entre outros fatores. Essa nova viagem poderia ter a duração de
meses ou até anos, em vista da longa distância (ver mapa 22 e 23). 777
Em Santa Cruz de La Sierra, africanos, aos olhos das autoridades espanholas,
passariam a ser identificados não mais pelos portos em que foram embarcados na África, mas
pelo local de evasão, ou seja, de origem “portuguesa”. Desse modo, para o europeu, quanto
mais distante da terra natal, mais europeizado o africano se tornaria. Por conseguinte, se para
as autoridades européias a diversidade africana se fundia e dissolvia cada vez mais ao mundo
europeu nos seus registros documentais, implicando aceitação, por outro lado,
involuntariamente, os próprios relatos da agência escrava aventavam a busca incessante pela
liberdade do sistema escravista, sugerindo negação.
776
Desde hostilidades com povos indígenas existentes no caminho até às condições climáticas – estado chuvoso,
seca, entre outros.
777
Em linha reta a distância entre Cuiabá e Santa Cruz de la Sierra totaliza 778 quilômetros, ao passo que de Vila
Bela de Santísisma Trindade soma 456 Km².
316
O cenário em que analisaremos o nosso objeto – a tentativa de um levante de negros
aliados com indígenas no ano de 1809 – é marcado por forte instabilidade e turbulências. Em
primeiro lugar, é necessário delinear o espaço, contexto social e econômico e político. A
cidade, no início do século XIX, era a capital de uma das províncias que formavam o
território referente à Real Audiência de Charcas, que por sua vez estava vinculada ao ViceReino del Rio de la Plata, criado em 1776. Estava localizada na região conhecida como Alto
Perú, juntamente com as províncias de Chuquisaca, La Paz, Potosí e Cochabamba, que
posteriormente dariam origem à futura República da Bolívia, em 1825. Até este ano, a
Província de Santa Cruz estava dividida nas seguintes partes: Moxos, Chiquitos, Cordillera,
Vallegrande e Santa Cruz. 778
Entender o lugar de Santa Cruz e, por conseguinte, o funcionamento da sua economia
e emprego da mão-de-obra escrava, requer a consideração simultânea de fatores de numerosas
ordens. Em primeiro lugar, a cidade, fundada em 1571 e posteriormente deslocada para as
margens do rio Piraí em 1592, assim como os demais povoamentos espanhóis, inseria-se
dentro de toda uma estrutura administrativa, que englobava instituições na Europa como nas
Américas. De maneira geral, havia uma estrutura metropolitana, encarregada de assegurar as
posses do rei, e outra estrutura composta de funcionários, responsáveis pela administração
cotidiana nas Américas. No âmbito metropolitano, as principais instituições até o início do
século XIX seriam as Secretarias de Estado e o Conselho das Índias; este, segundo Carlos
Malamud, era o órgão supremo estabelecido na Península, criado em 1524, responsável pelo
governo do Império Ultramarino, e, além de legislar, atuava como tribunal de justiça. Tratavase de um tribunal de última instância de juízos civis e criminais, originados de consulados,
Casa de Contratação e questões comerciais diversas. Outrossim, tinha funções consultivas em
matérias legislativas, eclesiásticas e de governo. Controlava a administração colonial e
legislava na criação de leis. 779
No que tange à estrutura administrativa nas Américas, entre o final do século XVIII e
início do XIX, estava arranjada com os seguintes elementos: vice-reino, vice-rei, Audiências e
Cabildos. Destes, o primeiro era a principal instituição administrativa das Américas,
concebida após se reconhecer a magnitude dos territórios recém-conquistados.780 Sob
gestação de vice-reis, “alter egos del Rey”, até o século XVIII, haveriam somente dois vice778
779
780
HASBÚN, Paula Peña. La guerra de Independencia en Santa Cruz, 2014, p. 1.
MALAMUD, Carlos. Historia de America. Madrid: Alianza Editorial, 2005, pp. 155-156.
Idem Ibidem, p.156.
317
reinados nas Américas, o Vice-reinado da Nova Espanha (criado em 1535) e o Vice-reinado
do Peru (desde 1543) – este último responsável pela América do Sul, com exceção da
Venezuela e Panamá. Com a chegada dos Bourbon ao trono da Espanha no século XVIII,
dentro do conjunto de medidas adotadas para modernização da monarquia e ante a
constatação da ingovernabilidade do território, foram criados dois vice-reinos: Nova Granada
(1739), com capital em Bogotá e abrangência às Audiências do Panamá e Quito; e “Río del
Plata” (1776), que abrangia, além de Buenos Aires, Córdoba del Tucumán e Paraguai, as
províncias de Potosi e Santa Cruz de la Sierra. 781
As chamadas “reformas Bourbônicas” não somente provocaram a criação de novos
Vice-reinados, mas compreenderam também medidas que afetaram os campos religiosos,
militares e administrativos. Organizadas por Carlos III, de acordo com Peña Hasbun,
determinaram também a expulsão dos Jesuítas da América espanhola em 1767 e a criação de
Intendências que objetivavam tornar mais eficiente a administração dos territórios,
circunscritas aos territórios eclesiásticos. No caso de Santa Cruz, a mudança se fez nítida:
com a criação de uma Intendência sob o seu território (1782), a capital do novo órgão foi
transferida no ano seguinte para Cochabamba, levando consigo outras instituições como a
Tesouraria Real e Casas Reais. As transferências foram fortemente sentidas entre Cruceños:
(...)El traslado de la capital, significó un golpe muy duro para los cruceños,
quines desde la fundación de la ciudad, en 1561, habían gozado de las
prerrogativas de capital de Gobernación. Con esta nueva estructura, se
instala en Santa Cruz de la Sierra un Subdelegado, dependiente del
Gobernador Intendente radicado en Cochabamba [grifo nosso].782
Quanto à expulsão dos Jesuítas, foi necessário substituir a governança das missões por
autoridades nomeadas que, em numerosas ocasiões, provocaram hostilidades entre indígenas
missionados, principalmente nos Mojos, uma vez que a mesma estrutura administrativa e
produtiva fora mantida, embora sem o mesmo nível produtivo.
783
A região em si, com a
criação da Intendência na região de Santa Cruz, converteu-se em um governo com
características militares – em vista da localização fronteiriça com a América portuguesa –,
subordinada ao vice-reinado del Río de la Plata.
781
MALAMUD, Op. Cit, p. 156.
PEÑA HASBUN, Op. Cit., p. 5.
783
Tais hostilidades certamente estão associadas às alianças firmadas entre cativos e indígenas para a tentativa de
rebelião de 1809, que veremos mais adiante.
782
318
Em 1801, por exemplo, as hostilidades entre mojeños missionados e novos
governantes se elevaram a tal ponto que resultaram na destituição do governante responsável
pela região, Miguel Zamora. Este havia chegado na região em 1792 e mantido um governo
caracterizado por abusos contra indígenas, em alguns casos, resultando em mortes. No ano da
sua destituição, o cacique Maraza o obrigou a sair dos Mojos e as autoridades administrativas
superiores foram obrigadas a nomear um novo governante, uma vez que os povos mojeños
somente reconheciam a autoridade do cacique. Tal situação se resolveu somente em 1805,
com a chegada do novo governante, Pedro Pablo Urquijo. 784
As reformas bourbônicas também impuseram mudanças na política tributária, visto
que a monarquia necessitava de recursos para executar a pretendida modernização e manter as
constantes guerras com a Inglaterra e a França no período. Assim, em 1787, estabeleceu-se a
obrigação de pagamento de tributos entre indígenas, da qual estavam dispensados em vista da
condição de fronteira militar na defesa do Império. Vale notar que tal pressão fiscal, após
1800, foi fundamental para o amadurecimento das alianças firmadas nas guerras de
independência entre indígenas e rebeldes contra a Espanha, como veremos adiante. 785
Ademais, aquele que deveria gerir o vice-reinado, a maior instituição política nas
Américas, seria o vice-rei, que possuía atribuições de ordem política, militar e judicial. Era, ao
mesmo tempo, o presidente da Audiência, capitão-general, chefe das forças armadas e ainda
possuía poderes em questões eclesiásticas. Auxiliado por um conselho consultivo (“Real
Acuerdo”) e ouvidores, dadas as altas responsabilidades, somente indivíduos provenientes da
alta nobreza espanhola estavam habilitados a ocupar o cargo.786
As Audiências também eram instituições de grande importância na América
Espanhola. Em termos gerais, consistiam no que se considerava “máximo tribunal nas
colônias”. Acima dela em importância, havia somente o Conselho das Índias. Tal instituição
estava estruturada da seguinte maneira: presidente, ouvidores, um ou dois fiscais e um oficial
de justiça que executava ordens do tribunal.
787
De acordo com Malamud, haviam 3 tipos de
Audiência na América espanhola: as “pretoriais”, que tinham à frente um presidente que
estava diretamente subordinado ao Conselho das Índias; as “vice-reinais”, que eram
784
HASBUN, Ibidem, p. 8.
Idem Ibidem, p. 5.
786
MALAMUD, Op. Cit., p. 156-157.
787
Vale notar que o presidente e ouvidores também integravam o “Real Acuerdo”, que auxiliava o vice-rei. Idem
Ibidem, p. 157.
785
319
presididas por um vice-rei; e as “subordinadas”, como a Real Audiência de Charcas, dirigidas
por um presidente com escassas funções executivas e submissas aos mandos do vice-rei. 788
Por fim, os “Cabildos” se constituíam em instituições fundamentais para a
administração colonial na região. Eram originários do antigo conselho castelhano e
acompanhavam a fundação de novos núcleos urbanos, estruturados por um ou dois alcaldes
ordinários e regidores (de 4 a 12, a depender do espaço administrado). Considerados a
“melhor ferramenta” administrativa das cidades e para o apoio das reivindicações frente ao
monarca, possuía numerosas atribuições: concessão de terras, eleição, deposição de
autoridades, recrutamento de forças militares e administração da justiça em nome do rei. O
seu respectivo poder administrativo não se restringia somente ao espaço urbano, mas abrangia
igualmente as áreas rurais. 789
De forma geral, portanto, a Santa Cruz de la Sierra que vivenciou a tentativa de
levante de negros e indígenas, em 1809, estava inserida dentro de toda uma estrutura
administrativa colonial: possuía um Cabildo, estava subordinada à Intendência que tinha
como capital Cochabamba – cidade localizada a seu Oeste –, submissa juridicamente à Real
Audiência de Charcas e politicamente ao vice-reinado do Río de la Plata. Além dos constantes
conflitos com indígenas nos mais diferentes pontos do seu território,
790
por ser fronteira com
a América portuguesa, recebia constantemente escravos fugidos dos domínios vizinhos; esses
escravos, ao adentrarem no território espanhol, passavam à condição de “negros livres”, até
que fossem presos e, em alguns casos, devolvidos à América portuguesa.
É preciso notar que, apesar das insistências de autoridades portuguesas para devolução
dos cativos evadidos do Mato Grosso e Cuiabá, além de instituições superiores, eles
coexistiram com habitantes de Santa Cruz e detiveram notável importância econômica,
política e militar.
A cidade em si, no período, era um pequeno núcleo urbano que comportava uma
população de cerca de 10.000 habitantes, incluindo povoações vizinhas e estâncias. No final
do século XVIII, de acordo com Governante-Intendente Francisco de Viedma, estava dividida
788
Ibidem, pp.157-158.
Ibidem, p. 159.
790
Não somente mojeños, como vimos, mas também indígenas Chiriguanaes, como veremos adiante.
789
320
da seguinte maneira: 4303 espanhóis, 1376 mestiços, 2638 cholos, 2111 indígenas e 150
negros, entre escravos e livres. 791
Apesar do relativo “isolamento”, propiciado pelo fato de ser a Província/Intendência
mais distante dos grandes centros urbanos, com poucos e dificultosos caminhos, uma
economia de subsistência e limitadas possibilidades de expansão ou integração,
792
a cidade-
capital possuía uma economia diversificada. De acordo com Rivero, produzia-se arroz, café,
milho, yuca, bananas, além de se criar gados, cavalos e vacas, dos quais se obtinham leite,
carne e couro. Entretanto, a principal atividade econômica da região estava relacionada à
produção do “açúcar”, considerado o principal produto de exportação, que funcionou como
“moeda de troca” em algumas ocasiões. Embora houvesse dificuldades para se transportar
produtos de Santa Cruz de la Sierra, a produção do açúcar na cidade estava vinculada às
economias de Potosi e Chuquisaca (atual Sucre), sobretudo no considerado auge da produção
de prata na região. 793
Tais ligações com as economias mineiras de Chuquisaca e Potosi, assim como o
caráter agrícola da economia na região, com destaque da produção de açúcar, estruturariam a
economia da região ainda até metade do século XIX, como sugere a descrição do viajante
D’Orbigny, que viajou à região entre 1830 e 1833:
La industria propiamente dicha está muy atrasada en Santa Cruz. Con
excepción de algunos ofícios-zapatería, herrería, carpinteria, etc. – es
exclusivamente agrícola. No existe ninguna fábrica de tejidos, ningún
taller de cualquier espécie que sea. Se cultiva en especial la caña de
azúcar, de la que se extrae a la vez azúcar y melaza, para expedirlas a
lãs ciudades del interior, la melaza en odres y el azúcar en valijitas de
cuero sin curtir, llamadas petacas. Este comercio es tanto más
considerable porque lãs ciudades de Chuquisaca, Potosí y
Cochabamba se aprovisionan únicamente en Santa Cruz (...). También
se cosecha arroz y exporta en grande, cultivándose asimismo urucu y
todos los granos y legumbres de primera necesidad, como maíz,
791
Ver VIEDMA, Francisco de. Descripcion Geografica y estadística de la Provincia de Santa Cruz de la
Sierra. 1ª ed. Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836; Francisco de Viedma foi o primeiro governanteIntendente da Intendência de Santa Cruz, desde 1785. Para criação da Intendência, percorreu todo o território e
elaborou um informe completo com ênfase em observações geográficas e econômicas, que destacavam a
produtividade das regiões. Ver HASBÚN, Paula Peña. La Permanente construcción de lo cruceño: un estúdio
sobre la identidad en Santa Cruz de la Sierra. La Paz: FUNDACIÓN PIEB, 2003, p. 19.
792
Segundo Marco Antonio Del Río Rivera, o “isolamento” desde a sua fundação foi uma característica
fundamental de Santa Cruz de la Sierra. Por esta razão se desenvolveram “práticas” que não coincidiam com o
restante do Império, como o hábito de elegerem as próprias autoridades e o não-pagamento de tributos até final
do século XVIII. Ver RIVERA, Marco Antonio del Río. “La economia cruceña (1810-2010”. In: SANTA
CRUZ e sus 200 años de Independencia: historia, procesos y desafios. Santa Cruz de la Sierra: Jatupeando;
Investigacruz, 2012, p. 81.
793
Idem Ibidem, p. 83.
321
batatas, porotos, cacahuates de tierra o maní, mandioca ou yuca,
calabazas, melones, bananas, ananás, etc.” [grifo nosso].794
Especialmente, na produção de açúcar se encontrava empregada a mão-de-obra
escrava, que era a que mais abrigava aqueles que haviam fugido dos domínios portugueses.
Viedma, ao descrever os imensos campos dos arredores da cidade de Santa Cruz de la Sierra,
com a fertilidade e abundância de animais e numerosos canaviais, menciona a constante
fertilidade da produção de cana, contrastante a outras regiões que enfrentavam problemas para
manutenção do cultivo. O sucesso da atividade, o governador-intendente atribuía à presença
de negros desertores dos domínios portugueses:
De pocos años a esta parte se ha experimentado, que los terrenos más fértiles
y ventajosos para los plantios de cara son donde se cria el monte, o bosque
más espeso; de tal suerte, que aun después de trece años de corte, sigue el
cañaveral con más fertilidad y sazón: lo que no acaece en la campaña, que a
los três o cuatro años tienen que volver a hacerlos de nuevo, y la caña no
crece, nin aun la mitad, que en los otros parajes. Este descubrimiento se le
debe a unos negros que desertaron de los domínios de los portugueses, y
desde entonces han dejado los chacos de la campaña y se han ido al monte,
donde fomentan el cultivo de la caña (...) [grifo nosso].795
Logo após as guerras de independência na América espanhola, em 1825, cruceños que
possuíssem escravos foram orientados pelas novas autoridades a declararem-nos. Entre os
cativos declarados, chama a atenção que os únicos que tiveram ofício especificado foram os
lavradores, naturais de Santa Cruz de la Sierra. Quanto aos demais, apenas constavam os seus
respectivos nomes, idades, se eram casados e identificação dos proprietários.796
Possivelmente, em vista dos constantes pedidos de devolução de cativos prófugos dos
domínios portugueses, tal dado fosse omitido.
No entanto, a declaração do presbítero Juan Francisco Peres fugia à regra: dos cativos
declarados junto às autoridades cruceñas, constava um casal comprado de um português:
Maria, de 30 anos e solteira; e Francisco, de 23 anos e casado com uma negra livre, com quem
naquela altura tivera um filho. Segundo o presbítero, a compra havia sido feita com a
anuência tanto do governador do Cuiabá como do de Santa Cruz. Portanto, asseverava sua
794
D’Orbigny Apud RIVERA, Ibidem, pp.84-85.
VIEDMA, Op. Cit., p. 66.
796
Museu de Historia Y Archivo Regional de Santa Cruz de La Sierra. Fondo Melgar y Montaño. “Declaración
de posesión de esclavos (edad, sexo, estado civil) por sus amos vecinos de esta ciudad”. Caja 3, Carpeta 5, leg.
12, doc. 1, 1825.
795
322
legalidade, apesar de incomum. 797 A declaração não especificou o período em que se efetuou
tal transação; porém, ilustra que a população negra existente em Santa Cruz tanto poderia ser
originária das fugas, como resultado de negociações extra-oficiais facilitadas pela localização
fronteiriça, ou mesmo em decorrência de rotas comerciais escravistas que atendiam à
demanda da região.
Sobre tais rotas, Alberto Crespo Rodas
798
sustenta que, inicialmente, a demanda de
cativos ao Alto Peru era atendida por portos localizados nas Antilhas, Santo Domingo e
Panamá. O trajeto para um cativo chegar ao Alto Peru poderia se estender em até 9 meses, em
decorrência da necessidade de se atravessar o Canal do Panamá. Em palavras de Rodas:
Por lo que toca a los esclavos destinados al Perú, éstos llegaban o eran
entregados en Nombre de Dios, puerto situado a orillas del golfo de México.
De allí debían atravesar el istmo para llegar a Panamá, sobre el océano
Pacífico. De Panamá una nueva travesía hacia el puerto del Callao, que era el
gran punto de distribución en el Perú. 799
Com o início da colonização de Tucumán (atual Argentina) e fundação de Buenos
Aires, o quadro de fornecimento foi alterado significativamente, tornando-se atraente porque
implicava uma redução de milhares de quilômetros e, consequentemente, da baixa entre
cativos que pereciam no transporte até a região.800 Apesar da resistência do grupo comercial
escravista de Lima, que nos idos do final do século XVI se encontrava em posição sólida,
Buenos Aires passou a hegemonizar, progressivamente, a distribuição de cativos ao sul da
América, com o argumento de que a condução de cativos via-Panamá causava a morte dos
cativos transportados. 801
797
Lembramos ao leitor as constantes hostilidades entre autoridades espanholas e portuguesas em torno da
devolução de cativos fugidos, trabalhadas no capítulo 4 desta tese. Destarte, uma compra e venda de cativos sob
a conivência das autoridades locais, em vista desse contexto, era incomum.
798
RODAS, Op. Cit., p. 24.
799
Segundo Alberto Crespo Rodas, outro porto que atendia a demanda de cativos de todo vice-reinado do Perú
era o porto de “Arico”. Idem Ibidem, p. 24.
800
De acordo com Rodas, “(...)La disminución hasta la llegada al Callao representa miles de kilómetros. Al
acortarse la travesía, se reducía no sólo el tiempo empleado en el viaje, sino también -como consecuencia natural
de ese hecho- el porcentaje de bajas entre los esclavos, ya que está probado por varios lados, además de la lógica,
que la duración de la travesía estaba directamente relacionada con el volumen de la carga que llegaba en buenas
condiciones a los puertos de destino.” Ibidem,p.24.
801
No final do século XVI o bispo de Tucumán, ao pleitear autorização para o comércio com portos brasileiros
via região do Prata, alegava que apenas metade dos cativos transportados via-Panamá chegava viva na cidade.
Assim, obteve autorização para a introdução de 150 cativos. Todavia, no transporte até a cidade, o comboio que
os levava foi assaltado por um “pirata” inglês e perdeu 22 cativos. Ibidem, p. 25.
323
Vale ressaltar que grande parte dos cativos introduzidos pela nova rota não eram
adquiridos diretamente junto aos portos africanos, mas em portos brasileiros, com destaque ao
Rio de Janeiro. Ao chegarem em Buenos Aires, eram distribuídos aos mais diferentes pontos.
Em 1601, por exemplo, de um grupo de 600 cativos negociados por Gomez Reynel, 50 foram
encaminhados às minas de Potosi, no Alto Perú. 802
Havia também outra rota de introdução de cativos no Alto Peru, ou “segundo
triângulo”, formado pelo conluio de contrabandistas, autoridades e traficantes portugueses que
transportavam mercadorias de Buenos Aires a Charcas, motivados principalmente pela maior
possibilidade de lucro. Entre os séculos XVI e XVII, por exemplo, um cativo, ao passo que
era vendido em Buenos Aires por 300 pesos e em Charcas por 500 pesos, por meio do
contrabando custava 170 pesos. Frequentemente, quando um cativo era confiscado por
autoridades, davam-lhe por morto e o vendiam posteriormente.
803
Segundo Rodas, o
comércio ilegal no Alto Peru tinha como ponto de partida as minas de Potosi.
Em todo caso, fosse por vias consideradas legais, ilegais ou mesmo por fugas dos
domínios portugueses, o Alto Peru não chegou a ter uma população cativa em proporções
elevadas. Se na América Espanhola, por exemplo, foram contabilizados em 1650 a quantia de
857.000 negros, no mesmo período, o Alto Perú somava apenas 30.000 negros, de um total de
850.000 pessoas.804 Situação contrária se vivenciava na Colômbia, Equador e Peru, que, no
mesmo período (século XVII), possuíam uma população negra duas vezes maior que a região.
Com o início das guerras de independência, no alvorecer do século XIX, a população cativa
que proporcionalmente era baixa apresentou novas reduções. Potosi é exemplar nesse sentido:
se no século XVII chegou a ter uma população cativa que correspondia a 6 mil indivíduos, por
volta de 1830, após as guerras de Independência, registrava uma população de apenas 1.142
cativos. 805
Redução da população cativa similar pode se verificar em outras partes da América
espanhola, após as guerras de independência. Em 1817, de 2 a 3 mil negros recrutados em
Buenos Aires e entornos que cruzaram os Andes para combater no Chile, apenas 150
retornaram. A redução da população cativa também pôde ser sentida na análise da proporção
802
Deste total morreram no caminho 6% do montante, baixa considerada “positiva”, em vista do total de mortes
por outra vida. Ibidem, p. 25.
803
Ibidem, p. 26.
804
A população branca era de 50.000, mestiços de 15.000, mulatos de 5.000 e indígenas de 750.000. Ibidem,
p.12.
805
Ibidem, p. 12.
324
entre homens e mulheres: se antes das guerras de independência a proporção era de 108
homens para 100 mulheres, após, passou a ser de 59 homens para 100 mulheres.806
Finalmente, a tentativa de levante em Santa Cruz de la Sierra do início do século XIX
deve ser compreendida a partir de todo o quadro acima exposto, a fim de lançarmos luz nas
possíveis intenções ou expectativas dos nossos agentes. Cabe-nos, portanto, o exame
minucioso do agosto de 1809.
6.2. “El fuego de la liberdad”: a conspiração do agosto de 1809
Os acontecimentos do mês de agosto de 1809 em Santa Cruz de la Sierra seguramente
podem ser considerados um dos principais eventos que levaram o Alto Peru às guerras de
independências. Duas são as versões sobre os fatos: uma publicada por Ádrian Justiniano no
periódico El Correo del Plata, em 15 e 16 de agosto de 1899; e a outra encontrada nos autos
dos processos instaurados para apurar a rebelião, pelo Cabildo de Santa Cruz de la Sierra e
Real Audiência de Charcas, além de correspondências trocadas entre autoridades. Tais
versões, apesar de contrastarem em diversos pontos, são concordantes em duas questões
principais: em primeiro lugar, o protagonismo da tentativa de rebelião se deu em decorrência
das alianças firmadas entre escravos, negros livres provenientes dos domínios portugueses e
indígenas; e, em segundo lugar, o evento evidenciava que cativos e indígenas estavam atentos
ao que se passava não somente no Alto Peru, mas na instabilidade vivenciada pela coroa
espanhola ante as invasões napoleônicas, que fragilizavam o controle na região.
A primeira versão, publicada 90 anos após o evento, apresenta a conjura planejada
para a noite do dia 15 de agosto, durante a realização da festa de “Nuestra Señora de
Asunción”, a padroeira da cidade. Atentos e comovidos pelos “ecos da liberdade” que
ressoavam por todo o Alto Peru desde os acontecimentos de 25 de maio em Chuquisaca e 16
de Junho em La Paz e indignados com a imposição de impostos, os escravos e negros livres
da cidade resolvem tramar uma “formidável conspiração” a fim de se vingarem e
“alforriarem-se a si próprios”.807
806
ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina, 1800-2000. Tradução de Magna Lopes. São Carlos:
EdUFSCAR, 2007, p. 92.
807
JUSTINIANO, Adrian. Uma Conjuracion de mulatos. In: El Correo del Plata, Ano I, N.2015, 15 de agosto
de 1899, p.3.
325
O plano era surpreender aqueles que se encontravam na festa e matá-los, com exceção
das mulheres. A desvantagem das armas de fogo no confronto seria compensada pela
superioridade numérica, contabilizada por Justiniano como cerca de 800 indivíduos. A festa,
desde o final do século XVIII, era a mais popular da cidade e reunia as principais autoridades
de Santa Cruz. Passara a fazer parte do calendário, segundo Justiniano, desde o final do século
XVIII, quando o subdelegado da cidade, Antonio Seoane de los Santos, encomendara a
imagem da “Virgem de Assunção” de Napolis. Durante a pomposa cerimônia de entrega,
sucederam estranhos fatos que acabaram interpretados como milagres. Em palavras do autor:
Noticioso de la próxima llegada de la imagen, D. Antonio, invitó al
vecindario para ir procesionalmente al encuentro de aquélla. Por su puesto,
no tuvo que rogar para que todo el mundo se apresurase a satisfacer tan
plausible deseo, con tanta más razón cuanto que, desde in illo tempore,
somos esencialmente decididos por las procesiones.
¡Al Pari todo fiel cristiano!
Nunca se había visto tanta gente por esas calles de Dios, ni jamas se había
escuchado vocerío igual en la de ordinario pacifica y tranquila ciudad de
Santa Cruz de la Sierra, ó más propia é históricamente llamada San Lorenzo
de la Frontera (…).808
Não obstante, com todo o povoado reunido, a mula que carregava a imagem, assustada
ou participando da alegria geral, inesperadamente se agitou e desapareceu em carreira para a
decepção de todos os presentes, que julgaram destruída a imagem carregada. No entanto,
quando retornaram à cidade na profunda tristeza, a surpresa:
(...)Cabizbajos y silenciosos, muchos vecinos acompañaban á su casa al Sr.
Seoane; llegan y.....!Si! parece mentira, allí estaba la mula, quietecita delante
de la puerta de calle, mosqueándose filosóficamente como si tal cosa, y con
su carga intacta.
¡Aquello, si, fue motivo para una verdadera conmoción popular!809
Desde então, passou-se a realizar a festa do “velório de Nuestra Señora de Asunción”
na casa do Subdelegado, com grande esplendor e pompa, missa solene cantada na Catedral da
cidade e procissão até a casa de Seoane. Quanto a santa, esta foi eleita padroeira da cidade.
A noite que presenciou a conjura de negros livres, escravos e indígenas, no dia 15 de
agosto de 1809, de acordo com a narrativa de Justiniano, presenciava mais um suntuoso
“velório” à santa, com toda a alta sociedade cruceña presente, que ocupava os salões da
808
809
Idem Ibidem, p. 1.
Idem Ibidem.
326
residência elegantemente vestida e esbaldava-se em doces, biscoitos e fartas jarras de
chocolate, ao passo que na parte externa da casa de Seoane, na praça, a população se
aglomerava recreando-se com a audição da orquestra que tocava no interior. Seguindo a
tradição, o recinto montado para a festa era comparável a uma mansão “celestial”, de acordo
com o autor:
(…)La selecta y numerosísima concurrencia al velorio, ajena á lo que en
contra ella se fraguaba, departía en los amplios salones iluminados con
profusión, en el principal, se alzaba lujoso altar de la Virgen, que radiante en
luz parecía elevarse al cielo remontándose sobre vaporosas nubes artísticas
formadas con riquísimas telas de blancura inmaculada. Y el coro de ángeles
que le entonaba himnos de alabanza, lo constituían preciosas niñas que
congregadas alrededor de María transformaban el recinto en verdadera
mansión celestial.810
Contudo, na parte externa, entre a população que se encontrava na praça, havia um
considerável grupo de negros escravos e livres, que aguardavam um sinal para adentrar o
recinto: “(...) Afuera la tormenta rugía sordamente, y la plaza iba llenándose de multitud de
individuos de aspecto siniestro y sombrío, como el oscuro color de sus torvos semblantes.”811
A senha para entrada seria dada por Julico, um violinista que animava a festa, que tocaria uma
sequência de notas já conhecida pelos insurgentes. Julito, de acordo com Justiniano, era a
grande liderança do levante.
Até então, tudo indica que a noite seguia de acordo com o planejado, quando entra em
cena Juan José Duran, que trazia consigo uma carta escrita por Don Juan M. Rojas delatando
o movimento. Don Juan havia sido informado momentos antes por uma escrava, que, por seu
turno, argumentava ter se informado por seu marido acerca da conjura. Discreto e frio, o
subdelegado, após ler a carta, emitiu ordens para apreensão de alguns mulatos, dispersão de
outros e regressou “serenamente” ao salão da festa, sem que os presentes se dessem conta do
perigo iminente. Julico, ao perceber o malogro, abandonou o velório. Na praça, com as saídas
cercadas por guardas, alguns conjurados foram presos, outros fugiram aos bosques; e assim
foi sufocada a rebelião, na narrativa de Justiniano. Após alguns dias, Julico foi capturado nas
matas. Levado para a cidade, teve a sua cabeça decepada e cravada numa madeira pontiaguda
no caminho que conduzia à Cotoca, povoado vizinho onde se descobriu o plano. A sua
punição deveria servir de exemplo para todos aqueles que ambicionassem a liberdade.
810
811
Ibidem, p. 3.
Ibidem, p. 4.
327
A segunda versão para os eventos do agosto de 1809, por outro lado, apresenta-se mais
“moderada” e recatada, todavia, não menos impressionante. Começa por contrastar já na data
planejada para o levante: 20 de agosto. De acordo com Humberto Vázquez Machicado, que
consultou os documentos dispostos no Archivo General de la Nación, de Buenos Aires, dias
antes foi realizada uma investigação e o plano do levante foi anunciado no 18 de agosto.
Assim como a versão narrada por Ádrian Justiniano, o objetivo era passar a “degüello toda
persona de cara blanca”.812 Entretanto, para assim o executarem, planejavam tomar pontos
estratégicos da cidade, a fim de se munirem com armamento, a saber: o “Armazém da
Pólvora” (na sala das armas), a Administração dos Tabacos e Casa Real.813
Descoberta a conjura através da delação, foram ordenadas as prisões das lideranças,
que se encontravam a meia légua da cidade. A notícia das prisões se espalhou rapidamente e
assim vários conjurados conseguiram se evadir. Diferentemente da narrativa de Justiniano, o
inquérito instaurado pelo Cabildo de Santa Cruz para apurar os fatos apontou duas principais
lideranças e a não-menção do músico Julico:
(...) y activas diligencias de o copio de gente , y armamento, há resultado y
de la sumaria que um mulato esclavo de Don Josef Salvatierra, llamado
Franco, era el jefe y comandante desta sedicion asociado a el negro Anselmo,
capitão de los negros libres portugueses, y que recolhidos negros, mulatos e
(sic) en casa de lo Anselmo destas en media media legua de esta ciudad
dabun el asalto contra esta Republica el dia hoy, del gobernante Reniel ta
igualmente que la determinacion era degolar toda persona de cara branca,
después deles jueves y los niños [grifo nosso].814
Franco era o líder dos escravos e Anselmo o capitão dos “negros livres”, provenientes
de Portugal. Consta no inquérito que o capitão haveria ordenado aos seus companheiros que
produzissem flechas, que juntamente com armas de fogo dariam os primeiros passos da
rebelião. Com a delação e realização de prisões, Anselmo, Franco e outros cativos
conseguiram fugir. Contudo, não tiveram a mesma sorte outros 11 conjurados, considerados
lideranças. Além destes, as autoridades cruceñas relatavam nos autos do processo que
estavam aliados aos conjurados indígenas das missões próximas à Santa Cruz de la Sierra.
Assim, após o sufocamento da rebelião, realizaram interrogatórios com os 11
conjurados aprisionados durante um mês inteiro, além de tentativas de captura dos demais que
haviam fugido. O inquérito, de maneira geral, foi concluído no dia 27 de agosto e enviado à
812
VÁZQUEZ MACHICADO, Op.Cit.
813
MORENO, Op. Cit., p. 14.
ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809.
814
328
Intendência de Santa Cruz (em Cochabamba), para que se enviasse posteriormente à Real
Audiência de Charcas, que estava localizada em Chuquisaca. Uma das primeiras constatações
era quanto à procedência dos negros livres “conjurados”, oriundos de Portugal:
(...) Por estos fundados deseos y para que los mulatos negros que han
transmigado a este Reyno desde Portugal y reciden en nesta ciudad, con el
abrigo descontinuay desordenes, y los esclavos prófugos, con otras
criminalidades próprias por sus Genios orgulhoso y que son unos hombres
llenos de los vícios y sin subordinacion alguna, hemeditado proceder a
limpiar a esta Republica de semejante Polilla (...) [grifos nossos].815
Reconhecidos como “escravos prófugos”, de gênio orgulhoso e sem “subordinação
alguma”, tais negros livres, após atentarem contra a monarquia espanhola, passavam a
representar grandes incômodos. O autor do inquérito clamava por limpeza, comparando os
conjurados, nossos homens de ferro, a traças.
816
Essa “higienização”, de fato, é o que poderá
se observar ao longo dos interrogatórios.
Concluía-se também no Inquérito a relação dos conjurados com os movimentos de
Independências cujas notícias chegavam dos grandes centros urbanos do Alto Peru. Alegavase que os escravos e negros livres haviam arquitetado tal plano após se informarem de uma
suposta “cédula real” que os alforriava e havia sido omitida pelas autoridades da cidade.
Ademais, a mesma cédula igualmente isentava aos indígenas do pagamento de tributos, que,
como vimos, lhes era imposto desde 1787.
A notícia, apesar de ser falsa, fazia parte da estratégia revolucionária para
desestabilizar o domínio espanhol no Alto Peru. De acordo com Vázquez Machicado, detinha
clara origem “doctoral”, ou seja, provinha do “Grêmio doctoral”, formado por advogados de
Chuquisaca que defendiam a independência do Alto Peru e estiveram à frente dos levantes de
25 de maio de 1809 na cidade. Em palavras do autor:
(...) Estos astutos togados querían producir la mayor cantidad posible de
levantamiento, por más temerarios y criminales que fueran en sus
consecuencias. Lo urgente era producir el caos y la desorganización en la
colonia, para de tal caos y de tal desorganización sacar provecho la «patria»
en la cual soñaban.817
De acordo com o autor, não se sabe quem levou a falsa notícia ou se cativos de Santa
Cruz de la Sierra mantinham contatos com os principais centros urbanos. O mais provável é
815
Idem Ibidem, fl. 4v.
Traças são larvas oriundas de mariposas noturnas (polillas), que podem corroer lã e outros tecidos, além de
pele, de acordo com o dicionário Michaelis.
817
VÁZQUEZ MACHICADO, Op. Cit.
816
329
que pudessem ter feito interpretações errôneas das conversas que escutavam nas casas
senhoriais:
(...) através de sus comentarios y disquisiciones acerca de la caducidad del
poder real y de la independencia de las colonias, deben haberse deslizado
conceptos como los de «libertad», y alguna que otra queja sobre los
«tributos», y tales frases fueron escuchadas al vuelo por los negros y así
interpretaron a su modo tales noticias que en esa rara forma llegaban a sus
oídos.818
De qualquer maneira, a organização da conjura pela aliança entre cativos, negros livres
e indígenas estava completamente inserida nos acontecimentos políticos que se passavam no
Alto Peru, conectados com alterações de ordens mais gerais. A região, em si, vivenciava um
período turbulento desde 25 de maio em Chuquisaca, sede da Real Audiência de Charcas e
Universidade de San Francisco Xavier, um dos principais centros urbanos do mundo
castelhano nas Américas e maiores reservatórios de prata do mundo, proveniente de Potosi.
Naquela tarde, após a detenção de Jaime Zudañez, ordenada pelo presidente da Real
Audiência, Don Ramón García de León y Pizarro, a população saiu às ruas, rumou à casa
presidencial e enfrentou as tropas militares da cidade. Estanislao Just Lleo descreve as
minúcias do evento:
(...) Al atardecer del jueves 25 de mayo de 1809, el pueblo de la Plata, la
capital del distrito de la Audiencia de Charcas, era presa de una conmoción.
A los gritos de viva el Rey, traicíón, o mueran los traidores, una inmensa
cantidad de gente se agolpó en la Plaza Mayor, frente al palácio presidencial.
Alli, entre los ruídos de los tiros, gritos y sones de campanas, se llevó a cabo
la revolucion. Cuando la asonada pareció decrecer, a lãs primeras horas de la
madrugada del dia seguinte. Chuquisaca presenteaba otro aspecto. El
presidente Garcia Pizarro había entregado el mando en la Audiencia, el
arzobispo Moxó habia huido por miedo a lãs turbas, y un nuevo ejército,
formado por lãs gentes del pueblo, estaba en viaas de formación, a título de
defensa de los derechos del rey y de la Patria [grifo nosso].819
Apesar de não ser claramente um movimento independentista, uma vez que o evento
era formado por várias forças políticas, somaram-se a ele partidos que almejavam a
independência. É preciso ressaltar que desde 1808 a Espanha havia sido ocupada por forças
napoleônicas. Com o rei deposto, José Bonaparte assumiu o trono. Todavia, não se reconhecia
a legitimidade do novo rei. Criaram-se então Juntas nas mais diferentes cidades do Império
espanhol que reafirmavam a fidelidade a Fernando VII, o rei deposto. De acordo com Maria
Luisa Soux, no Alto Peru, ao passo que as informações chegavam da metrópole, que davam
818
Ibidem.
JUST LLEO, Estanislao. La revolución del 25 de mayo de 1809 en Chiquisaca. Sucre: Universidad San
Francisco Xavier, junio-julio de 2007, p.6.
819
330
conta das invasões napoleônicas e abdicação, diferentes corpos, vizinhos, autoridades se
apuravam para prestar juramento de fidelidade a Fernando VII, reafirmando-se assim o
chamado “pacto monárquico”. 820
Segundo Soux, havia uma situação de “vazio de poder” e cataclismo, em que se
cruzavam diferentes teses: se, por um lado, as “Juntas” reafirmavam a soberania monárquica e
domínio colonial, por outro lado, haviam aqueles que reivindicavam maior autonomia.
Analogamente, em meio à crise, surgira uma terceira proposta: conferir legitimidade à
princesa Carlota Joaquina, única irmã do rei, Bourbon, que se encontrava em liberdade, no
Brasil. Em torno dessas teses, é possível entender o significado do 25 de maio em Chuquisaca
e os gritos de “traidor”: existia rumores de que o presidente Pizarro houvesse concordado com
as pretensões de Carlota Joaquina, embora em carta negasse com veemência as suas
pretensões e reafirmasse a lealdade ao rei Fernando VII. 821
A mesma complexidade poderia ser verificada em 16 de junho de 1809, em La Paz.
Aproveitando-se da realização da festa da Virgem del Carmen, em defesa ao rei e contra
autoridades locais, insurgentes realizaram um “cabildo aberto”, aprisionaram o governador
intendente e o bispo da cidade. Após o levante, foi publicado um documento intitulado
“Proclama de la Junta Tuitiva”. O mesmo aparecerá em diferentes versões, expressando o
conflito entre forças monarquistas e autonomistas no interior dos movimentos. Segundo Soux,
apesar de serem escritos comprovadamente em 1809, contrastam radicalmente no conteúdo.
822
820
Na primeira versão, observamos uma declaração de fidelidade ao rei deposto:
SOUX, Maria Luisa. “El tema de la soberanía en el discurso de los movimientos juntistas de La Plata y
La Paz en 1809”. In: Revista Número 22-23, Agosto de 2009 (Universidad Católica Boliviana). Disponível em
<http://www.revistasbolivianas.org.bo/pdf/rcc/n22-23/v10n23a01.pdf >. Acessado no dia 5 de janeiro de 2015.
821
Em dezembro de 1808 chegou a La Plata uma infantaria enviada por Carlota Joaquina, com a proposta de
reconhecimento legal da regência de Carlota Joaquina. Pizarro foi claro na sua lealdade ao rei espanhol Fernando
VII: (...)ni el Terror, ni la Sorpresa, ni el aspecto de la muerte misma, son capases de inmutar, o hacer vacilar, ni
por un instante, nuestra característica fortaleza dispuesta a llenar em todas ocasiones los deberes de vasallaje. Yo
por mi parte aseguro a V. A. R. que soy Español, soy noble, soy Jefe de una Provincia, soy General, y por todos
estos multiplicados Títulos, me reconozco con otros tantos motivos de hacer toda clase de sacrificios en defensa
de los derechos de nuestro Soberano el Señor Don Fernando Séptimo de toda la Familia Real y de la Patria
enormemente atropellada, por el ambicioso Emperador de los Franceses. Esta es mi resolución: esta es la de la
Provincia que gobierno: esta es la de toda la Nación Española, y esta es la que llenará de satisfacción el grande y
Real animo de V.A (...)”. Ibidem, p. 13.
822
As versões da “Proclama” foram publicadas em temporalidades diferentes. A primeira se deu em 1909,
publicada por Manuel María Pinto. A segunda se encontra alocada no Archivo General de la Nación. Por fim, a
terceira e última versão, se encontra na seção de manuscritos da Biblioteca Central da Universidad Mayor de San
Andrés. Vale ressaltar que a analise das diferentes versões também foi realizada pelo historiador José Luís Roca,
que observa não a busca por independência em ambos os eventos – 25 de maio e 16 de junho -, mas por maior
autonomia. Ver ROCA, José Luis. 1809. La Revolución de la Audiencia de Charcas en Chuquisaca y en La
Paz. La Paz: Ed. Plural, 1998.
331
Ya es tiempo pues de elevar hasta los pies del trono del mejor de los
monarcas, el desgraciado Fernando VII, nuestros clamores, y poner a la vista
del mundo entero,los desgraciados procedimientos de unas autoridades
libertinas.
Ya es tiempo de organizar un nuevo sistema de gobierno fundado en los
intereses del rey, de la patria y de la religión, altamente deprimidos por la
bastarda política de Madrid. 823
A segunda versão da “Proclama”, por sua vez, demonstra uma visão de autonomia e
independência:
Ya es tiempo pues de sacudir yugo tan funesto a nuestra felicidad como
favorable al orgullo nacional del español.
Ya es tiempo de organizar un nuevo sistema de gobierno fundado en los
intereses de nuestra patria, altamente deprimida por la política bastarda de
Madrid. Ya es tiempo, en fin, de levantar el estandarte de la libertad en estas
desgraciadas colônias adquiridas sin el menor título y conservadas con la
mayor injusticia y tiranía.824
Em outras palavras, podemos observar um confronto entre aqueles favoráveis a
Fernando VII e aqueles que reivindicavam maior autonomia. Eram movimentos similares que
se propalavam pelo Alto Peru. Humberto Vázquez Machicado, por exemplo, afirma que após
o 25 de maio em Chuquisaca, foi enviado um emissário para La Paz, o doutor Mariano
Michel, a fim de preparar e ativar a sublevação. Este chegou em La Paz no dia 8 de junho e,
segundo as memórias do espanhol Tomás Cotera, não havia cessado de participar de reuniões
e instruir os passos da insurreição. 825
De todo modo, ao retornarmos às motivações que estimularam a tentativa de rebelião
em Santa Cruz de la Sierra, não é de se surpreender que os insurgentes cativos pudessem
vislumbrar a ideia de uma possível “alforria”. Andrews Reid, ao analisar os diferentes
processos de guerras de independência na América espanhola, menciona numerosas situações
em que cativos não somente estavam atentos aos acontecimentos políticos do continente, mas
negociavam com os dois lados do conflito a fim de garantirem as melhores possibilidades
para liberdade.826 Conscientes da importância militar que detinham ao longo das guerras,
poderiam ser decisivos para a vitória de um lado ou outro com a oferta de apoio.
823
SOUX, Op. Cit., p. 17.
Idem Ibidem, p. 17.
825
VÁZQUEZ MACHICADO, Op. Cit.
826
Andrews Reid constata que enquanto alguns se uniam aos exércitos rebeldes sob a promessa de liberdade,
outros se uniam aos senhores para evitar o recrutamento. Ao longo das guerras, por exemplo, Simon Bolívar
824
332
Como as guerras de independência se prolongaram mais do que o esperado, ambos os
lados do conflito foram obrigados a recorrer aos contingentes de cativos. Reid dá uma
dimensão da importância da participação cativa na América espanhola, de maneira geral:
(...) Os governos rebeldes da Argentina e da Venezuela começaram a
recrutar escravos em 1813; um ano mais tarde, o Chile os seguiu. A Espanha
a princípio não recorreu ao recrutamento, mas ofereceu liberdade àqueles
escravos que se oferecessem como voluntários para servir no exército.827
Embora não houvessem propostas claras quanto à emancipação, o irromper das
guerras de independência e instabilidade ofereciam aos cativos três vantagens, que foram
largamente aproveitadas: em primeiro lugar, a redução de controle, que propiciou o aumento
das possibilidades de fuga; em segundo lugar, a possibilidade dos escravos do sexo masculino
obterem liberdade via-alistamento militar; por último, após a participação nas guerras, a
aprovação da emancipação gradual por toda a América.828 Com o poder de “barganha”
elevado, em função dessa instabilidade, a participação escrava nos conflitos quebrou a
espinha dorsal da escravidão colonial.
De qualquer maneira, tanto no caso dos conjurados de Santa Cruz terem interpretado
erroneamente as notícias que circulavam pela América espanhola, como aventa Vázquez
Machicado, ou como no de que pudessem ter sido manipulados por notícias falsas enviadas de
Chuquisaca ou La Paz, cativos que se encontravam na cidade estavam dispostos a lutar por
essa liberdade. No caso dos negros libertos, provenientes dos domínios portugueses,
possivelmente compreendiam que aquele poderia ser o momento de assegurar a condição
livre, inconstante e incerta, uma vez que frequentemente as autoridades do Mato Grosso e
Cuiabá requeriam a captura e devolução para o outro lado da fronteira. Ou mesmo, podemos
aventar que a aliança entre negros livres e escravos pudesse representar de alguma maneira
um gesto solidário ou vingança contra o homem branco. Acerca dessa última hipótese,
lembramos que, no inquérito realizado pelo Cabildo de Santa Cruz, a proposta principal do
levante seria degolar todos aqueles de “cara branca”, indistintamente.
O sufocar da insurreição aparece em ambas versões, no texto de Ádrian Justiniano e
nos documentos relacionados ao inquérito que apurou os fatos. Contudo, o primeiro se
restringiu a mencionar a punição de Julico, considerado a liderança da conjura, ao passo que
decretou recrutamento de cativos na Colômbia, Venezuela e Peru, que não foi recebido de maneira agradável
entre senhores, em vista da alta possibilidade de morte e futuras alforrias. Ver Reid, Op, Cit., p. 92.
827
REID, Ibidem., p. 91.
828
Ibidem, p.88.
333
na segunda versão constava a prisão de 11 cativos. Nesta última, após a apuração dos fatos e
interrogatórios capitaneados pelo Cabildo de Santa Cruz, os prisioneiros foram enviados à
Real Audiência de Charcas.
Infelizmente, não localizamos dados acerca de Ádrian Justiniano, a fim de termos
melhor clareza sobre a sua base documental. Todavia, quando a comparamos com as outras
fontes – inquérito e correspondências diversas –, parece-nos que a imprecisão em alguns
pontos ou exagero em outros possa ser proveniente da memória coletiva do evento, que ainda
permeava a população cruceña mesmo após 90 anos do ocorrido. Sobre essa hipótese, vale
frisar: muito mais “cativante”, dotada com tons diversos de cores, embora o final tenha sido
dramático como na outra versão, com o malogro e punição violenta das lideranças. Ao
vislumbrarmos a descrição e participação de Julico, apontado como a grande liderança do
movimento, é possível imaginá-lo entoando a melodia que daria início à insurreição, caso não
fosse traída.
Tanto em uma versão como em outra, a tentativa fracassou pela delação de pessoas
próximas aos conjurados. Por um detalhe de dias, caso o plano fosse bem-sucedido,
estaríamos diante de um evento com grandes semelhanças à exitosa Revolução haitiana;
revolução que, entre 1791 e 1804, levou o Haiti da condição de colônia a um território
independente, governado por negros, tendo levado a morte ou ao exílio forçado a população
branca escravocrata e colonizadora.829 A carta escrita e publicada em 1º de janeiro de 1804,
pelo general Dessalines, proclamado governador-geral da Ilha, revela um provável sentimento
análogo ao sentido pelos conjurados de 1809:
Não fora suficiente expulsar de vosso país os bárbaros que ensangüentavam
esta terra por dois séculos; não fora suficiente ter restringido as facções
sempre recorrentes que estavam brincando de afastar a sombra da liberdade
que a França expôs aos vossos olhos; é necessário, por último ato de
autoridade nacional, assegurar perpetuamente o império da liberdade no país
que nos viu nascer; é necessário constranger o governo inumano que leva há
tempos o torpor mais humilhante aos nossos espíritos, todos esperam nos
subjugar novamente; é preciso, enfim, viver independente ou morrer.830
829
As semelhanças dos episódios de Santa Cruz de la Sierra e a Independência haitiana são notáveis, a começar
pela proposta de ataques a população branca e da auto-alforria por meio do levante. Acerca da Independência
haitiana, existe uma extensa bibliografia. Ver Cordova-Bello, Eleazar. La independência de Haiti y su
influencia en Hispanoamérica. Caracas: Instituto Panamericano de Geografia e Historia, 1967; MOTT, Luis R.
B. “A revolução dos negros do Haiti e o Brasil”, in Questões & Debates, ano 3, n.4 (junho de 1982), pp. 55-63;
JAMES, Cyril Lionel Robert. The Black jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution.
New York: the Dial Press, 1938.
830
A
declaração
de
independência
encontra-se
disponível
no
<
http://www.nationalarchives.gov.uk/dol/images/examples/haiti/0003.pdf >. Acesso no dia 7 de janeiro de 2015.
334
Pelas lacunas documentais, não sabemos se os conjurados do agosto de 1809 estavam
ou não inspirados na independência haitiana, se carregavam consigo o sentimento de viver
independente ou morrer, proclamado pelo haitiano Dessalines. Contudo, a história de luta
para se verem livres da escravidão ainda teria continuidade, com as prisões e futuros
julgamentos. Portanto, ainda nos é possível delinear mais alguns passos da história desses
homens de ferro.
6.3. Do malogro: as consequências, punições e novos caminhos aos homens de ferro
As prisões ocorreram logo após o anúncio da conjura, no dia 18 de novembro de 1809.
Pelo que consta na investigação realizada pelo Cabildo de Santa Cruz, grande parte dos
conjurados, ao se informarem das prisões, fugiram da cidade e vilarejos vizinhos para as
matas, deixando para trás armas e flechas, que foram encontradas na casa de Anselmo, líder
dos negros livres de “Portugal”. Nos meses que se seguiriam ao sufocamento da rebelião,
além do envio dos 11 conjurados considerados líderes do movimento, outras prisões
ocorreriam.
Bismark
Cuéllar
Chávez,
que
tem
realizado
uma
investigação
junto
às
correspondências trocadas entre o subdelegado Antonio Seoane de los Santos, a Intendência
de Cochabamba e Real Audiência de Charcas, menciona a continuidade das prisões e a
permanência do iminente sentimento de novas alianças seguidas com revoltas de indígenas e
negros na região. No dia 7 de novembro de 1809, no relato de uma fuga perpetrada por negros
considerados “réus”, que se encontravam na carcerária da cidade, subentende-se que, mesmo
após a captura das lideranças, as prisões tiveram continuidade. O documento transcrito havia
sido produzido diretamente pelo próprio Antonio Seoane de los Santos, o subdelegado da
cidade:
(...)Don Antonio Seoane de los Santos, coronel de Reales Ejércitos,
Comandante del Batallón de Milicias Provinciales de Santa Cruz de la Sierra
y Juez Real Subdelegado de este Partido, etc., etc.- Por cuanto en esta hora
que son las cuatro de la mañana del presente día, se me notició la fuga de los
Reos criminales comprometidos en el alzamiento acordado contra de la
inocente ciudad que se hallaban en la cárcel pública y conviene averiguar el
modo y forma como consiguieron libertarse de las seguras prisiones en que
estaban y reparar con oportunidad las fatales consecuencias que de ello
pueden resultar. Debía de mandar y mando, se proceda por mí a reconocer y
averiguar cómo han logrado los dichos reos su intento: fue descuido que
335
hubo en la guardia que los custodiaban para aplicar el condigno castigo al
individuo que resulte culpado (...) [grifo nosso].831
Na sequência, Seoane informa o despachar de cartas para todas as partes,
especialmente aos curas responsáveis pelas missões vizinhas, para que tivessem atenção com
os negros fugitivos, pois temia que pudessem introduzir uma “cizaña” ou que espalhassem
má-influência. Para tanto, também ordenou atenção a comandantes militares dos diferentes
pontos em volta de Santa Cruz, para que velassem pela seguridade da cidade de dia e noite.
Havia medo não somente da associação entre negros livres e escravos, mas da perigosa
aliança com indígenas, que, entre final do século XVIII e início do XIX, perfaziam cerca de
2.111 indivíduos, como vimos anteriormente em Viedma. Na própria conclusão das
investigações que aprisionaram os 11 conjurados em agosto daquele ano, era mencionada a
aliança entre negros e indígenas das quatro missões vizinhas, que uniam forças em torno de
diferentes objetivos: cativos queriam a liberdade e indígenas desejavam a isenção dos tributos.
Portanto, era importante bloquear o mais rápido possível a indignação e possibilidades de
novos ataques, especialmente entre a “gente do Piray”, próximo às cordilheiras.
O Piray configurava-se como a principal missão fundada entre as cordilheiras e rio
Parapití, a oeste de Santa Cruz de la Sierra, junto às terras de indígenas Chiriguanaes. Sua
fundação remete ao ano de 1680, segundo Viedma, quando o padre jesuíta Juan de Torres
tentara edificar um povoado. Como os Chiriguanaes não aceitavam a prática de comércio com
habitantes de Santa Cruz, tentaram matar o padre, que acabou por fugir. Queimada e
completamente destruída, a missão só voltaria a ser re-estabelecida em 1768, quando, após
sucessivas derrotas, os indígenas acabaram por ser submetidos e, sob o comando do presbítero
Lorenzo de Ortiz, edificou-se o povoado intitulado Nuestra Señora de la Asumpcion del
Piray.832
Situado entre os rios Parabanó e Piray, distante a uma légua pelo norte da Cordilheira,
vinte e seis de Santa Cruz, o povoado era um dos 8 de 19 que haviam aceitado à submissão à
fé católica. A grande maioria entre os 1.686 que haviam no povoado era formada por
indígenas Chiriguanaes, conhecidos pelo temperamento “ardente” e “variado”. 833
831
CUÉLLAR CHÁVEZ, Bismark. La rebelión de los negros y mulatos em Santa Cruz de La Sierra, 15 de
agosto de 1809. Santa Cruz: Bismark A. História, turismo & cultura, 2009.
832
VIEDMA, Op. Cit., p.169.
833
Idem Ibidem, p. 170.
336
Tal temperamento era verificável na constante hostilidade que os Chiriguanaes
mantinham com os espanhóis, que, de acordo com Paula Peña Hásbun, se tratava de uma
verdadeira “dor de cabeça” desde o século XVI. Conflito herdado dos Incas, provocou
insucesso quase completo nas políticas de evangelização, povoamento e submissão. Do
último quartel do século XVIII até meados do XIX, agravou-se com a não-aceitação da
presença das missões na região, provocando constantes conflitos que levaram até mesmo o
subdelegado de Santa Cruz, Antonio Seoane, a organizar campanhas militares contra
indígenas em 1800. Na ocasião, juntamente com o governador-intendente de Cochabamba,
organizou um batalhão formado por 1149 homens para arrasar os Chiriguanaes que atacavam
as missões. Estes últimos, ante o poder do adversário, acabaram por fugir. No entanto, novos
levantes e ataques voltaram a se repetir em 1804 e 1807.834
Em outras palavras, no que diz respeito à possível aliança entre negros e indígenas nos
eventos do agosto de 1809, os cruceños tinham grandes razões para temer o diálogo entre
negros que almejavam liberdade e indígenas que eram hostis à presença espanhola na região,
como os Chiriguanaes que habitavam os entornos do Piray e já mantinham uma guerra que se
arrastava por séculos.
Retornando à fuga dos conjurados de 7 de novembro de 1809, chama atenção os
esforços movidos para se tentar apurar as circunstâncias da fuga, provavelmente motivados
pelo temor ou pressão da sociedade cruceña. Buscava-se um culpado, aliado ou facilitador.
Foi chamado o capitão da guarda Manuel José Rodriguez. No interrogatório mencionado por
Cuéllar Chávez, o capitão afirmou que os escravos haviam escapado por meio de um buraco
feito em torno da cela e que os guardas não viram, já que não estavam autorizados a examinar
a cela e, assim, não poderiam saber se existiam ferramentas no interior. Mesmo negando o
descuido, o capitão mandou prender o guarda responsável na noite da fuga, Andrés Méndez,
suspeito de ter feito vista grossa à fuga.
835
Aparentemente, era preciso encontrar um culpado
para se acalmar os ânimos.
834
HASBUN, Op. Cit., p. 7. Ver também GUARDIA, que aponta que a compreensão para as alianças firmadas
por indígenas Chiriguanaes e rebeldes durante a guerra de independência, deve ser considerada à luz da
constante hostilidade entre tais indígenas e espanhóis na região. GUARDIA, Nino Gandarilla. Desenredando
La Independencia de Santa Cruz y SUS Provincias (1809-1831). Santa Cruz de La Sierra: Centro de Estudis
Nacionales, 2008, p. 14.
835
CUÉLLAR-CHAVEZ, Ibidem,p.10.
337
A partir do dia 8 de novembro, começaram as buscas pelos evadidos. Um dos
capturados foi Melchor Florián, que, mesmo encontrado sozinho nas matas, resistiu à prisão e
acabou por perecer. Jose Manuel Rodriguez relatou ao subdelegado Seoane a sua luta e morte:
Doy parte a Usía como en esta hora acaba de llegar el cabo segundo de mi
compañía Ramón Baca con la escolta que le acompañó esta madrugada en
solicitud de los reos fugitivos de la cárcel que mediante las estrechas
eficaces providencias de Usía se están persiguiendo, trayendo la cabeza de
uno de los principales caudillos del precitado alzamiento contra esta ciudad,
llamado Melchor Florián, que resistiendo en el monte a la tropa que lo iba a
aprisionar y prendiéndose con imponderable odio de un soldado y del fusil
que llevaba, conociendo los demás el empeño con que aspiraba a ser
disparos de él y dejarlo en el sitio, se vieron en el estrecho de dispararle un
balazo dejándolo en el sitio. Cuerpo de Guarda de esta Plaza y Noviembre
nueve de mil ochocientos nueve.836
Em outro documento transcrito por Cuéllar Chávez, pode-se observar com grande
clareza a determinação de Melchor Florián em resistir até a morte:
(...)habiendo la escolta rastreado por los inmediatos montes y dado con él,
reconvenido por un soldado que se diese preso le respondió diciendo que de
ningún modo lo haría y abalanzándose al propio tiempo del saldado le
agarró el fusil y lo acosó contra una isla en donde estuvieron forcejeando
hasta que, consiguiendo el soldado quitarle el fusil, le puso los puntos y
como no diese fuego causa estar lloviendo en aquella hora, dispuso al punto
el mulato avanzando con imponderable furia, sin embargo, de estar con la
dicha platina (grilletes) en los pies y retirándose el soldado del peligro que le
amenazaba se acercó otro que era su hermano y le disparó un tiro al mulato
el que quedo en el sitio (...) [grifo nosso].837
Para satisfação do povo que pedia castigo aos envolvidos na conjura, segundo Seoane,
a cabeça de Melchor Florián foi cortada e posta no meio da praça. A punição deveria servir de
exemplo a todos que ousassem atentar contra a cidade. Ao todo, a operação de captura
conseguiu reunir, até o dia 11 de novembro, 9 evadidos, que voltaram ao cárcere da cidade
com maior vigilância.
Quanto ao destino dos 11 negros capturados ainda em agosto e enviados para
Chuquisaca/La Plata, a conjunção de fatores políticos mais amplos, relacionada aos embates
políticos que antecediam o eclodir das guerras de independência, reservaria aos mesmos um
caminho distinto, contudo, não menos tormentoso. No dia 11 de setembro, pelos autos do
processo, é providenciada uma guarda que estaria encarregada de levar o grupo a Chuquisaca
para julgamento, atendendo às determinações legais para causas criminais antes de se executar
836
837
Ibidem, p.11.
Ibidem, p. 12.
338
a pena recomendada pela primeira instância, o Cabildo.
838
Juntamente com o grupo, foi
enviada a sumária realizada pelo Cabildo de Santa Cruz, concluída no dia 27 de agosto, que
detalhava os fatos e aguardava o aval para proceder à “limpeza”.
Porém, em Chuquisaca, o julgamento não saiu como o esperado. A primeira baixa foi
a declaração da nulidade da sumária enviada pelo Cabildo, sob a justificativa de que não
competia à instituição e sua jurisdição a realização de uma investigação criminal. Cuéllar
Chávez menciona uma correspondência trocada entre o vice-rei do Río de la Plata e o
intendente de Cochabamba, em 27 de novembro, que confirmava a anulação da primeira
sumária realizada:
En vista del oficio de V.S. de 16 de octubre último y del testimonio con que
instruyó de haber anulado la Real Audiencia del distrito lo actuado por el
subdelegado y comandante de armas de Santa Cruz y por el alcalde
ordinario en esta causa de alzamiento de negros indios tributarios, prevengo
a Ud, que ahora que guarde y cumpla la resoluciones expedida en el mismo
asunto anteriormente por esta superioridad que proverá en adelante con
mayor conocimiento en cuanto a los demás particulares contenidos en el
citado oficio con el fin de cortar ulteriores controvérsias [grifo nosso]. 839
O cabildo secular cruceño, por sua vez, acatava a decisão, mas pedia que não se
enviassem os negros novamente a Santa Cruz, pois havia a suspeita de que pudessem se aliar
com os conjurados fugidos e indígenas das quatro missões vizinhas. Em todo caso, a
continuidade do processo revelaria novas surpresas: ao contrário do que se esperava, no que
diz respeito ao rigor da aplicação de penas, os tribunais da Real Audiência de Charcas, com a
intervenção direta do jovem advogado Antonio Vicente Seoane y Robledo, decidiu por enviar
parte dos prisioneiros para o trabalho em uma panederia próxima à cidade. 840
Em vista do histórico de aplicações penais rigoroso, afirma Humberto Vázquez
Machicado, o trabalho na “panedería” como parte da punição poderia ser considerado
incomum. Ou seja, a pena aplicada era branda,841 uma vez que, por atentados contra a coroa,
frequentemente mandavam os réus para forca ou lâmina.
842
A atuação do advogado Antonio
Vicente certamente havia sido decisiva para o que Machicado chamou de “benignidade”. É
838
ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl. 3.
CUÉLLAR CHÁVEZ, Op. Cit., p. 6.
840
A “padaria” em que os prisioneiros foram encaminhados, estava próximo a sítio chamado “Purificacción”,
nos arredores de Chuquisaca, de acordo com os autos do processo. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de
Santa Cruz”, 1809, fl. 10.
841
MACHICADO, Op. Cit.
842
CUÉLLAR CHÁVEZ, Op. Cit., p. 17.
839
339
possível que o mesmo tenha feito valer a sua influência nos pareceres, na medida em que o
grupo do advogado dominava o grupo de “ouvidores” da Real Audiência. O advogado,
segundo Machicado, estava completamente “entregue à revolução” e era simpático à causa
dos rebeldes aprisionados.843
Vale ressaltar que Antonio Vicente era o próprio filho do subdelegado que autuou e
comandou a derrota da insurreição, Antonio Seoane de los Santos. Havia se educado e
formado em direito em Charcas, no ano de 1808, e, ao contrário do seu pai que era conhecido
pela extrema lealdade ao rei, tivera participado desde o irromper dos primeiros levantes que
levariam o Alto Peru à guerra de Independência, como no 25 de maio de 1809 em
Chuquisaca.844 Em 1810, quando se deram os primeiros levantes da guerra de independência
em Santa Cruz de la Sierra, Antonio Vicente era uma das lideranças.
Segundo Vázquez Machicado, a relação entre o pai e filho estava degradada desde que
Seoane de los Santos se informara por cartas das ideias e envolvimentos subversivos do filho,
que se encontrava em Chuquisaca. Considerava a falta de lealdade ao rei um sacrilégio. O
desconforto e decepção do pai se expressara até mesmo nas vésperas da sua morte, em
presença do filho, que havia regressado a Santa Cruz:
(...)El viejo Coronel hallábase enfermo cuando su hijo regresó de La Plata
con su flamante título latino y una porción de ideas nuevas en la cabeza.
Postrado en cama hallábase el Coronel, en su última enfermedad; abrazó a su
hijo allí, estrechándolo emocionado, apenas pudo decirle entre sollozos:
«Hijo, ya se que vienes a darme la muerte». El vasallaje leal a su Rey
conservábalo hasta las mismas puertas del sepulcro. La Parca fue piadosa
con él, pues cerró sus ojos para siempre, antes de ver a sus dos hijos: don
Antonio Vicente y don Manuel José, alzarse los primeros en rebelión contra
la soberanía peninsular, el 24 de septiembre de 1810.845
De qualquer maneira, direta ou indiretamente, todo esse ambiente de instabilidade
política no Alto Peru, iniciado principalmente a partir de 25 de maio de 1809, contribuiu para
que os negros conjurados não fossem executados. Ao contrário do que as autoridades
cruceñas reivindicavam, tomaram caminhos diversos. Nino Gandarilla Guardia afirma que
aqueles que não emigraram novamente foram incorporados posteriormente nas forças que
guerrearam na independência, como o grupo de negros que passou a compor o chamado
843
MACHICADO, Op. Cit.
Idem Ibidem.
845
Ibidem.
844
340
“Batalhão dos pardos” em Santa Cruz, criado pelo comandante Ignácio Warnes.
846
O mesmo
era formado por mulatos e fazia parte da infantaria. O regimento que o criara previa a
concessão da liberdade a todo negro escravo que se alistasse.847
A carta escrita, provavelmente, por Manuel Victoriano García Lanza ao cura Medina
também dava conta de um possível destino dos insurgentes, em meio a instabilidade política:
poderiam ter se incorporado à chamada “Compañia del Terror”, formada por negros e
mulatos, associadas aos rebeldes que, a partir de 1810, lutaram diretamente por
independência.848 Sobre a alcunha da “Compañia”, Guardia afirma que, possivelmente,
recebeu tal nome não por estar associada diretamente às forças que reivindicavam mais
autonomia, em meio ao emaranhado de forças políticas que se entrecruzavam no período, mas
pela “fobia” que se tinha da associação de negros ou escravos.
No entanto, os autos do processo informam claramente o destino de alguns
prisioneiros, encaminhados à “panedería” que estava sob administração de Don Mariano
Gallo: Antonio Gomes, Manuel Francisco Martin Claro, Mateo Apósteles, Joaquim Cardoso e
Francisco Ruiz. Mesmo sendo considerada uma pena mais “branda”, se comparada à
aplicação das penas capitais, o trabalho na panedería de Don Mariano Gallo era considerado
pesado pelos negros aprisionados.
Os conjurados, ao requererem liberdade via-processo à Real Audiência, denunciaram
em representações separadas os maus-tratos recebidos. Antonio Gomes foi o primeiro.
Afirmava que o tratamento recebido na panedería de Mariano Gallo era intolerável e cruel.
Constantemente recebia açoites, assim como os demais prisioneiros. Declarava ter
“emigrado” do reino de Portugal e desde então vivia na região na condição de livre, servindo
ao rei da Espanha como soldado. Antonio dizia ser um “absurdo” ameaçarem-no de
devolução a Portugal, uma vez que já até havia combatido Portugal em ações militares. Em
suas palavras:
(...) es intolerable La hostilidad y crueldad con que ami y ami conpaneros
nos trata el indicado panadero contipundonas com asotes como a
846
Quando Warnes chegou a Santa Cruz de la Sierra, tinha 43 anos. Foi um dos 3 comandantes que comandaram
a frente dos patriotas (aqueles que lutavam pela emancipação da Espanha) em Santa Cruz, juntamente com
Antonio Suárez e José Manuel Mercado. Sob o seu comando, o exército dos rebeldes lutou nas batalhas de
Flórida (25 de maio de 1814), Santa Bárbara (7 de outubro de 1815) e El Pari (21 de novembro de 1816). Nesta
última veio a falecer. Segundo Guardia, a batalha na qual pereceu Warnes, é considerada uma das mais
sangrentas das guerras em Santa Cruz. GUARDIA, Op. Cit.
847
Idem Ibidem, pp.52-53.
848
HÁSBUN, Op. Cit., p. 10.
341
presidiários. Y senor, vine a buscar La protecion e (sic) para que en Sta Crus
imputando tumulto, huivimos noticia que nos aphicienron remitir al Brasi, e
donde emigramos al Servicio y amparo del nosostro monarca El Rey de La
España, aquien siempre hemos servido de soldados contra los bárbaros, y
aun contra nuestra mesma nacion (....).849
É interessante observar em Antonio Gomes não somente a ausência de qualquer apego
às estruturas políticas do reino de Portugal, mas também o fato de até já tê-lo combatido.
Certamente, em solos dominados por portugueses, não conseguira vislumbrar possibilidades
de uma vida com auto-determinação. Continua a sua representação re-afirmando a sua
lealdade ao rei da Espanha e suplica que fosse posto em liberdade, pois havia deixado em
Santa Cruz de la Sierra sua mulher e filhos. Colocava-se à disposição e, para se ver livre da
prisão, se fosse preciso até o pagamento de fiança, que “daria como muita satisfação”.
A segunda representação, escrita por Manuel Francisco Martin Claro, guarda
semelhanças com a carta de Antonio Gomes: Manuel, também “emigrado” do reino de
Portugal, dizia ignorar as razões da sua prisão e afirmava que já tivera servido ao rei da
Espanha como soldado, portanto, era um “fiel vassalo”. Suplicava clemência e a sua soltura.
Na carta, argumentava que, se não demonstrasse “bom comportamento”, o colocassem em
prisão novamente.850
Por fim, a terceira e última súplica que consta nos autos do processo sobre o
julgamento dos conjurados de Santa Cruz, foi escrita por Mateo Apósteles, também fugido do
reino de Portugal. O mesmo afirmava desconhecer a razão pela qual fora posto em prisão e
reclamava veementemente do trabalho na panedería:
(...) me son intorelables los padecimentos que sufro en la indicada panederia,
em que con el continuo trabajo nocturno, me estoy extenuado, hasta ponerme
en uno estado de enfermidad, que puede costarme la vida, como a sucedido a
uno de mio companero, que a muerte y algunos se hallan bien enfermos.851
Dando prosseguimento ao seu relato, Mateo afirmava se considerar, junto com os seus
companheiros, alvo de calúnia dos moradores de Santa Cruz de la Sierra, invejosos tanto da
liberdade que gozavam como do trabalho de cultivo que desenvolviam nas suas terras, vistas
como mais produtivas. Assim como Antonio Gomes, mencionava os filhos e mulheres, que
poderiam estar perecendo ou sofrendo hostilidades. 852
849
ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.5.
ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.7.
851
Ibidem, fl. 8.
852
Ibidem, fl.8.
850
342
Acerca desse último depoimento, vale registrar que ele corrobora a posição mais
flexível de que gozavam os negros fugidos e habitantes dos arredores de Santa Cruz;
possivelmente, decorrente da importância econômica que representavam no cultivo,
sobretudo, da cana-de-açúcar, que, como vimos anteriormente, entre o final do século XVIII e
início do XIX, era o principal produto que movia a economia da região. 853
Ademais, as denúncias perpetradas pelos réus chegaram a surtir efeitos. Nos autos do
processo, constam vários pedidos do fiscal da Real Audiência para que se apurassem os maustratos e se procurasse garantir a integridade física dos prisioneiros. Consta ainda uma carta
escrita por Pedro e José Reys, em nome dos prisioneiros, reafirmando os maus-tratos –
descritos como “calamidades” –, as acusações infundadas e caluniosas de que os réus eram
objeto, movidas por inveja, e a reafirmação da lealdade ao rei; razão pela qual tornava
inverossímil um atentado contra a monarquia, pois sentiam gratidão com o “benefício” da
concessão da liberdade em solos castelhanos. 854
Não localizamos informações sobre tais mediadores, mas possivelmente estavam
vinculados ao grupo de defensores dos conjurados, ou simpatizantes. Antes ainda do resultado
do litígio, um fato notável se daria: os 3 negros denunciantes, na madrugada do dia 21 de
outubro, conseguem se evadir das dependências da panedería, após escalarem as paredes. O
fato obrigou ao panedero Don Mariano Gallo a comparecer à Real Audiência. No registro,
além de relatar as minúcias da fuga, mencionou a morte de um dos prisioneiros na panedería
sem entrar em detalhes – o que vinha corroborar as denúncias dos prisioneiros – e o rigor no
tratamento.855
No que se refere aos argumentos utilizados nas representações entregues à Real
Audiência, de que desconheciam as razões pelas quais haviam sido postos em prisão, é
preciso considerar a possível perspicácia aplicada pela defesa: ao se colocarem em uma
posição de ignorância dos fatos, paralelamente à afirmação de que acumulavam serviços
militares prestados ao rei espanhol, ganhavam força em argumento para que as autoridades
maiores considerassem-nos ‘injustiçados’ dentro de toda a contenda.
853
Segundo Guardia, no final do século XVIII existe um aumento da população escrava em Santa Cruz de la
Sierra, que provoca uma importante intervenção na economia da região, sobretudo, pelos conhecimentos que
traziam acerca do cultivo da cana-de-açúcar. O aumento de escravos na região coincide, por sua vez, com a
elevação da produção, que atingiu o seu auge entre 1780 a 1790. Ver GUARDIA, Op. Cit., p. 18.
854
ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.12.
855
O panedero alegava que apenas cumpria ordens, ao tentar garantir as “respectivas seguridades”, ou seja, o
rigor na manutenção da prisão. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.10.
343
A despeito da simpatia aos conjurados, o andar do processo resultou em mais um
ganho: após meses de prisão, finalmente foram absolvidos e autorizados a retornarem a Santa
Cruz de la Sierra, desde que prestassem um juramento, se apresentassem ao Alcalde ordinário
e pagassem uma fiança à Camara Actuario. A forma em que a fiança deveria ser paga, se em
prata ou trabalhos, não foi especificada no processo. De todo modo, ao menos parte dos
conjurados aprisionados em agosto de 1809 em Santa Cruz de la Sierra foi exitosa no âmbito
da justiça, dentro de toda conjuntura política que se alterava nas Américas em que diferentes
tendências se debatiam.
6.4. Re-começos e novas partidas: a agência escrava no Alto Peru e a vida possível aos
“corações corrompidos”
No atual estado das investigações sobre os eventos de agosto de 1809 em Santa Cruz
de la Sierra, é difícil precisar em que medida os conjurados mantiveram relações com os
levantes políticos que movimentavam a vida política do Alto Peru em Chuquisaca e La Paz.
856
Não obstante, demonstram a participação crítica em meio a um quadro complexo marcado
por um conjunto de aspirações e alianças. Se, de maneira geral, havia no Alto Peru uma crise
de disputa de poder, que começava a questionar a legitimidade da coroa espanhola, por outro
lado, na pequena Santa Cruz, existiam indígenas insatisfeitos com as obrigações tributárias,
cativos com a escravidão e negros livres fugidos dos domínios portugueses, que
possivelmente aspirassem à garantia definitiva da manutenção da liberdade. O agosto de
1809, em suma, é o resultado da soma de todas as aspirações e, em última instância, de uma
certa ideia de liberdade que no período irrompia por todos os lados na região.
No que diz respeito à participação dos negros, considerados livres em solo espanhol, e
cativos, mais uma vez estamos diante da posição ativa dos mesmos. Em nenhuma etapa da
empresa escravista, desde a África, mantiveram-se indiferentes ao próprio destino ou à
possibilidade de uma vida melhor, fosse pelo confronto direto nas guerras e fugas ou por
negociações que buscassem tornar menos penoso o cotidiano. Igualmente, a conjura de 1809
856
Fernando Cajías de la Veja, em artigo recente, menciona a dúvida sobre as possíveis ligações entre os
conjurados e os rebeldes de Chuquisaca e La Paz, a partir de documento transcrito do Archivo Historico de la
Prefectura de Cochabamba: ou o levante de Santa Cruz seria resultado de “negociações ocultas” ou teria se
inspirado no que chamou de “escandaloso exemplo” dado por La Plata e La Paz. Ver VEJA, Fernando Cajías de
la. La Rebelión afro-indígena en Santa Cruz. Agosto de 2009. Disponível em <
rcci.net/globalizacion/2009/fg898.htm >. Acessado no dia 9 de janeiro de 2015.
344
vem reforçar a tese de que a possível imagem do Alto Peru e Bolívia (pós-Independência),
como terra livre e desprovida de escravidão, tratava-se de uma miragem propagada nas terras
lusitanas. Esta última, mesmo que tenha existido em proporção menor quando comparada à
América portuguesa, existiu e detinha importância fundamental para o funcionamento da
economia, principalmente nas minas de Potosi e nos canaviais de Santa Cruz – e poderia ser
tão pesada quanto a lusitana.
Por outro lado, é bem verdade que o grau de exploração escravocrata no Alto Peru
poderia ser variável, a depender da região, tornando mais insuportável o cativeiro. Dito de
outro modo, a escravidão na região das minas de Potosi e cidades vizinhas, no Oeste da atual
Bolívia, poderia ser mais intolerável do que para aqueles que viviam aos arredores de Santa
Cruz, empregados no trabalho na lavoura. Para Alberto Crespo Rodas, a depender da região, a
população escrava assumia diferentes ofícios: era cultivador de coca nas ladeiras úmidas dos
trópicos, peão nas fazendas de Tarija ou Chuquisaca, servente doméstico nas cidades, mineiro
ou cunhador de moeda em Potosí, entre outros. De acordo com o autor, as condições do
trabalho e vida se agravavam conforme a proximidade com os “fornos” ou minas. 857
A ser mais penosa ou não, não devemos ignorar em nossa reflexão os pedidos
desesperados para a não-devolução ao reino de Portugal, suplicados, por exemplo, pelos
conjurados nos autos do processo. Antonio Gomes, um dos presos, achava um absurdo ser
ameaçado com tal punição. No seu pedido de clemência, dava a entender um certo “orgulho”
por já ter combatido o rei de Portugal em outras ocasiões. Assim, nos fica a indagação: a
escravidão na América espanhola poderia ser considerada menos tormentosa que a lusitana?
Maria Verónica Secreto, em suas pesquisas sobre a recorrência e concessão das
“manumissões” na América espanhola, sugere alguns caminhos investigativos para
compreensão da conhecida “benignidade” da escravidão no mundo hispânico.
De acordo com a autora, tal visão remete inicialmente às crônicas do viajante Félix de
Azara; no século XVIII, afirmou que, para cada 100 negros, haviam 170 livres no Paraguai.
Amplamente aceita e divulgada, a visão de Azara se estabeleceu na chamada historiografia
platina. Esse contraste também apareceria nas teses de A. Von Humboldt, que alegava maior
benignidade no mundo hispânico, quando comparado à escravidão inglesa. Afirmava o
viajante alemão:
857
RODAS, Op. Cit., p. 10.
345
(...) Que contraste entre a humanidade das mais antigas leis espanholas
relativas à escravidão e as demonstrações de bárbarie que se encontram a
cada página do Código Negro e em algumas leis provinciais das Antilhas
Inglesas!858
Na década de 1970, com a utilização de fontes notariais e judiciais, passaram-se a dar
maior atenção aos casos de manumissão e à tentativa de se compreender as constantes
concessões das alforrias ou a tese da benignidade. Um dos caminhos apontados eram as
estruturas religiosas ou jurídicas. Nestas últimas, Secreto menciona um conjunto de leis
recompiladas do século XIII por Afonso X, intituladas “Siete Partidas”, que, ao longo do
século XVIII, foram base fundamental para concessão do direito de manumissão. A estratégia
mais recorrente para se reivindicar a alforria era associar o “escravo” à figura do “servo” ou
“peça” das Siete Partidas. No documento, ainda estava prevista a possibilidade do “servo”
requerer o seu senhor, caso o mesmo não cumprisse o seu dever, ou seja, garantir alimentação,
vestimenta, educação e assistência médica. 859
De modo geral, frisa a autora, todo o conjunto de legislações proporcionava aos
escravos quatro “consolações”: eleição de um servo menos severo, a faculdade de casar-se
seguindo a própria escolha, a possibilidade de comprar a liberdade e o direito de possuir
alguma coisa. 860
De qualquer forma, negros prófugos e cativos da América portuguesa, no Alto Peru,
se viam frequentemente em posição frágil. Se os primeiros constantemente eram ameaçados
de devolução ao Mato Grosso e Cuiabá, como pudemos verificar nos autos do processo de
1809, os segundos estavam vinculados a uma rede de obrigações e jornadas de trabalho que
impediam a própria auto-determinação. O estudo da agência escrava, nesse contexto,
especialmente no território de Santa Cruz de la Sierra, com as suas diferentes jurisdições,
ainda está por se realizar. Todavia, alguns casos já podem ser mencionados, como a luta da
negra Maria Francisca na justiça para garantir a sua alforria a partir de 1796.
Maria vivia em Cochabamba, capital da Intendência que estava associada a Santa
Cruz, e havia recebido a concessão da alforria por meio do testamento escrito em 1796 por
Don Juan de las Esas y Guarillas, em retribuição aos “muitos serviços prestados”. Após a
morte do seu antigo amo e todas as solenidades do velório, a cativa resolveu escrever
858
SECRETO, Maria Verónica. “Soltando-se das mãos: liberdades dos escravos na América espanhola”. In:
AZEVEDO, Cecília; RAMINELLI, Ronald. História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2011, p. 137.
859
Idem Ibidem, p. 151.
860
Ibidem, p. 148.
346
diretamente ao Governador da Intendência, requerendo o cumprimento das cláusulas do
testamento. No entanto, o filho de Juan, Don José Gandarillas, protestou e não autorizou a sua
alforria, alegando a falta de fundamento e a interpretação equivocada da cláusula:
argumentava que no testamento o seu pai expressava que a prioridade era o pagamento de
“dívidas” e que a escrava seria a única maneira de saldá-la.
O caso se arrastou por vários anos, com muitas idas e vindas nas mais diferentes
instâncias. Se, por um lado, a defesa de José Gandarillas alegava a necessidade de saldar
dívidas, por outro lado, os advogados de Maria Francisca, além de investirem no testamento,
argumentavam sobre a necessária condição de “liberdade” de que deveriam gozar todos os
seres naturais. Em uma das páginas do extenso processo, constava:
(...) como por ser em fator de La liberdad que por seo natural
correspondente a todo vivente racional, debe no ser molestada por El
referido Don Josep quien bien inteligenciado seb deo a esta miserable La há
dejado desde La muerte de su amo em quieta y pasifica pocecion de La
calidade de libre; sindo por esto may notable q despues de mas los quatro na
a esta rececion pretende inquietarle com Ella [grifo nosso]. 861
Esta carta foi assinada pelos procuradores de Maria Francisca em 29 de janeiro de
1800. A situação se encontrava indefinida ainda em 1809 e, infelizmente, não se sabe até
então se a cativa conseguiu êxito nos tribunais. O processo se finda com um pedido emitido
diretamente de Chuquisaca, pela Real Audiência, ao governador Intendente, determinando
que o mesmo procedesse a um levantamento de todos os bens do falecido, possivelmente,
para ainda constatar a veracidade ou não dos argumentos contrários à alforria de Maria
Francisca. 862
A formação de acampamentos militares semelhantes aos “quilombos” da América
portuguesa, na região do “Vallegrande” e “Chilon”, também aventa o incômodo com o
cativeiro na região e a posição ativa dos escravos, que não cessavam de buscar liberdade. A
região, que estava localizada entre Santa Cruz e Cochabamba, era conhecida por abrigar todos
os escravos fugidos da localidade. Uma carta escrita em 1786 dava conta da situação e
conclamava as autoridades do Alto Peru a tomarem providências. Argumentava que os cativos
fugidos que se encontravam na área já haviam construído fortes, praticavam desordens nas
fazendas e chácaras vizinhas, além de seduzirem escravos dos povoamentos vizinhos para a
fuga: “(...) ellos no solo lhe huyen, sino que seducienlo a otros esclavos y esclvas y roband lãs
861
862
ABNB, EC1809-74, “Autos seguidos por El procurador sobre La libertad de uma esclava”, 1809.
Idem Ibidem, fl. 45v.
347
atajas mais floridas de suas amos, reconducen para aquelles lugares, em donde hallan La
acolhida y amparo que esta visto”.863
A carta ainda alertava que, se não fossem tomadas providências imediatas, dia após
dia, o ajuntamento de escravos fugidos aumentaria. Era preciso não somente desfazer a
reunião e capturá-los, mas punir todos os “vizinhos protetores” que amparavam e prestavam
solidariedades aos negros fugidos. A liderança das fugas cabia a “negros portugueses”:
(...) em orden ala exterminacion de baxios negros portugueses que son los
que aun biniendo a esta ciuidad los condusen y los llevan quellos donde
existen ya formado su poblacion. Segun noticias pocitibas que Sean tomado
se baxias perzonas, desuerse que para fomentarse y mantenerse saquean y
roban las sementeras y panados e las haciendas cabenzias, prejudicando de
este modo a tanto a Republica que lamentan este estrago (...) [grifo nosso].864
Fugidos dos domínios portugueses, agora negros – crioulos ou africanos –, estavam à
frente da formação de ajuntamentos, que no território português eram denominamos
“quilombos”. Curiosamente, a estratégia de manutenção de tais espaços mencionada nas
cartas guardava estreitas semelhanças com os espaços formados em território luso-brasileiro:
incursões às vizinhanças, sedução de negros que ainda se mantinham em cativeiro e,
principalmente, alianças externas com outros moradores – aqueles que prestavam
“solidariedade” aos negros. Sobre estas últimas, as cartas não informam em que medida se
davam as alianças, mas certamente deveriam envolver produtos agrícolas, em vista da
conhecida alcunha de bons agricultores que possuíam negros provenientes das terras lusitanas.
A bandeira então foi autorizada por autoridades de La Plata e finalmente foram
enviados soldados à região. Entre os capturados, vários apareceram identificados como
“emigrados de Portugal”, como os irmãos Lorenzo Chavez e Ignacio. Ao procederem o
interrogatório, constataram que eles, africanos da costa da Mina, haviam fugido das minas do
Cuiabá e que eram escravos de Manuel Diablo. Adentraram os domínios da Espanha pelos
Chiquitos e, posteriormente, passaram ao Vallegrande. Ignacio declarou que exerciam o ofício
de peões nas fazendas da região. Na descrição dos irmãos, apontava-se que aparentavam uma
idade em torno de 25 anos, com características físicas “robustas” e que Ignácio provavelmente
estava enfermo, pois apresentava febre.
863
ABNB, MyCh 195-10, 11, 11v. – sobre escravos minas na Bolívia, 1786.
864
Idem Ibidem.
348
Segundo consta no inquérito, vários apreendidos se declararam “livres”. Assim, para
procederem à soltura de quem fosse legalmente livre, as autoridades começaram por escrever
cartas à Capitania de Mato Grosso, a fim de identificarem os fugitivos, que seriam devolvidos
à América portuguesa. Outras medidas também foram tomadas, conforme a carta escrita em
19 de agosto de 1786:
(...)Respecto de acreditan este expediente que em los lugares de Santa Cruz,
Vallegrande y otros de La freguesia relacionada de Cochabamba, se refugian
los negros prófugos del Reino de Portugal y de esta ciudade com grande
prejuicio de sus duenos, de (sic) oficio a los gobiernntes intendentes de La
Provincia para que tome las providencias mas serias y condusentes a que em
su distrito no se permita vagar libremente ningun negro y los que assi de
encontraren sean asegurrados y remetidos sus duenos castigando a los
desertores com las penas q Le chise hu restituto y zelo, y sean conformes
[grifo nosso].865
Após a expedição de captura, não estava permitida nem a circulação livre de negros na
região, pois, conforme observamos acima, se fossem pegos, seriam aprisionados e levados aos
seus proprietários para que estes os castigassem.
Alberto Crespo Rodas, por sua vez, ao investigar a instituição escravista em todo o
Alto Peru, especialmente no eixo Potosi-Cuzco, apresenta numerosos exemplos de escravos
ativos e participantes dos acontecimentos políticos na região, desde o comércio ilegal da prata
nas minas de Potosi, até a tomada de partido nos conflitos armados na região desde o final do
século XVIII. Em Potosi, por exemplo, afirma o autor que a população escrava, empregada
nas minas ou como cunhadores e fundidores de prata, era acusada de furtar metais. Como
viviam presos na “Casa da moeda”, adotaram a seguinte estratégia: no momento em que
cativas ingressavam na casa para abastecê-la de água, estas recebiam prata e trocavam na
cidade. Em 1657, Rodas cita um episódio em que cativos furtaram e depois fugiram. Ao
serem capturados, foram submetidos a torturas até confessarem os detalhes do episódio.866
Em 1780, quando irrompeu em Cuzco o levante liderado por Tupac Amaru contra o
poder colonial, vários cativos tomaram partido no conflito, em ambos os lados. Para Rodas,
foi a primeira ocasião em que se havia apresentado de maneira “tangível e concreta” uma
oportunidade de oferecer-lhes liberdade, em troca do alistamento. Em palavras de Tupac: “(...)
para que se sumen a su empresa y convoca a los esclavos para que abandonen a sus amos con
865
866
Idem Ibidem, fl. 11v.
RODAS, Op. Cit., pp.9-10.
349
aditamento de que quedarán libres de la servidumbre y esclavitud en que estaban.” 867 Depois
de sufocada a rebelião, entre os fuzileiros identificados que combateram ao lado das forças
rebeldes, estavam mencionados “negros” que haviam fugido da cidade de La Paz.
Em 1814, um novo episódio causaria grande tormenta na mesma cidade, já em meio às
guerras de independência. Relata Rodas que eclodiu em agosto daquele ano uma “guerra
total” ou de “morte” contra os espanhóis, liderada por crioulos, que contavam com indígenas
e negros como aliados, ocasionando uma sequência de execuções e roubos na cidade. 868
A história do mulato Francisco Rios, também conhecido pelas autoridades
chuquisaqueñas pela alcunha de “El Quitacapas”, exemplifica com grande clareza a
participação ativa de negros livres ou cativos na vida política e contendas no Alto Peru e
América espanhola, sobretudo daqueles que se ‘originaram’ das terras luso-brasileiras. El
Quitacapas era identificado nos documentos oficiais como originário do Rio de Janeiro. Em
meio a efervescência que provocava o levante na tarde do 25 de maio de 1809 em
Chuquisaca, El Quitacapas apareceria identificado como aquele que havia liderado a histórica
rebelião contra o governador da Audiência, Pizarro, no bombardeio à casa de governança e
saques das lojas de pólvora para manter o ataque. Naquela altura, todavia, já era conhecido
pela “obscura fama”, acusado de comandar bandos de assaltos e roubos na região.
Em todo caso, a participação na noite de 25 de maio e a fama que carregava voltaria a
causar tormentos às autoridades no dia 21 de julho de 1809, quando foi preso na cidade de
Oruru, entre Chuquisaca e La Paz. A justificativa era a de que se encontrava na localidade
para reunir novos comparsas e realizar outros “desrespeitáveis procedimentos” que lhe
inspirava o coração corrompido, conforme consta na “Causa Criminal” de Francisco Rios. 869
Em sua defesa, El Quitapacas alegava que estava na cidade apenas de passagem e que se
dirigia a La Paz para se encontrar com sua mulher, Maria Antonio, e posteriormente os
867
Bando de la libertad de Tupac Amaru Don Joseph Gabriel Thupa Amaro Indio de la sangre real de los Ingas y
tronco principal. Bando del 16 de noviembre de 1780 para el Cuzco para que desamparen los chapetones
ofreciendo libertad a los esclavos. En Valcárce, Tupac Amaru, pág.321 apud RODAS, Ibidem, p. 86.
868
O seguinte furor em Cuzco havia sido motivado pela coluna de La Paz, liderada por Juan Manuel Pinelo, que
se apoderou daquela cidade e promoveu a morte do governador-intendente junto a 52 espanhóis. Ibidem, p. 95.
869
No Archivo y Biblioteca Nacional de Bolivia consta um extenso processo criminal contra Francisco Rios, que
cobre as várias prisões e contendas em que o mulato se envolveu durante as guerras de Independência no Alto
Peru. Ver ABNB, ALP, Fondo de Emacipación de la Audiencia de la Plata (1807-1824), Em4, “Causa Criminal
contra Francisco Rios, conhecido como El Quita Capay”, 1809.
350
conduziria a Chuquisaca. Prometia, ao retornar a esta última, se comportar como um “homem
de bem”, sem envolver-se em novos motins. 870
As promessas de Rios não surtiram efeito, pois era considerado uma ameaça constante,
identificado por autoridades como o “principal caudilho” que liderou o levante de
Chuquisaca. Em carta escrita por Don Diogo Antonio del Portilho, defendia-se a manutenção
da prisão de Francisco Rios por uma questão de prevenção, pois acreditava-se que solto em
breve retornaria ao “vício do roubo”. 871
Assim, por prevenção e medo, El Quitacapas permaneceu preso em Oruru até 1810,
quando foi transferido a Chuquisaca. Segundo Rodas, após a derrota dos exércitos espanhóis
para os rebeldes, um dos primeiros atos foi a saída do povo às ruas clamando a soltura de
Francisco Rios, que era considerado um herói da independência na cidade. Solto, novamente
El Quitacapas é acusado de envolvimentos com assaltos e roubos e retorna à prisão. Contudo,
em 1811, seria posto em liberdade mais uma vez, agora com a condição de se agregar à
“Companhia dos Pardos”, que combateria as forças monarquistas em Buenos Aires.872
Em suma, Maria Francisca, Lorenzo Chavez, Ignácio, os escravos fuzileiros fugidos
de La Paz, Francisco Rios, Anselmo, Franco, Melchor Florian, Julico, Antonio Gomes, Mateo
Apósteles, os demais conjurados de Santa Cruz de la Sierra que não apareceram nos
documentos oficiais, mas que por longa data assombraram a consciência cruceña, e outros
tantos, revelam a caminhada contínua por uma vida ao menos possível, especialmente aqueles
que cruzaram as Américas e estavam cada vez mais distantes da terra natal. Revelam, como
na metáfora de mulheres de pedra e homens de ferro, uma disposição instigante para sempre
recomeçar, frequentemente levantar acampamento, seguir novos destinos ou caminhos em
empreitadas extremamente difíceis e imagináveis para quem é feito de carne e osso. O que
pensavam, acreditavam ou esperavam, não sabemos, todavia, pela lente do colonizador,
involuntariamente, a chama que lhes fazia seguir em frente nos é perceptível, historicizável,
apesar das lacunas ou silêncios.
870
Idem Ibidem, fl.3.
Em palavras de Don Diogo Antonio del Portillo: ““(...) Fue igualmente se hallaba aprensiva La mayor parte
de La gente honrada con el hecho de La noche del veinte y cinco de mayo última verificado em La ciudade de La
Plata done expresò pulicamente El mismo haver sido el principal caudillo del movimento popular de ella. [grifo
nosso]”. Idem Ibidem, fl.10v.
872
RODAS, Op. Cit., p. 90.
871
351
Mapa 22 – O trajeto entre o Cuiabá-Vila Bela (Mato Grosso) e Santa Cruz de la Sierra
(1789).
Fonte: Autor desconhecido. “Extension y situacion de los gobiernos de Sta Cruz de la Sierra, Matogrosso,
Cuyaba y pueblos de los yndios llamados los Chiqutos. Ano de 1789. Disponível em <
http://bndigital.bn.br/acervo-digital>. Acessado no dia 15 de janeiro de 2015.
Mapa 23 – Cuiabá, os povos Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra (1778)
352
Fonte: Autor desconhecido. “Mappa de Cuiaba, Matogrosso y pueblos delos indios Chiquitos y Santa Cruz”
(1778). Disponíel em < http://bndigital.bn.br/acervo-digital>. Acessado no dia 15 de janeiro de 2015.
353
7. Considerações finais
Certamente, nem todos puderam vislumbrar um horizonte livre dos grilhões, contudo,
os casos trabalhados no itinerário escolhido por este estudo – do hinterland de Benguela ao
Alto Peru – apresentam homens e mulheres dispostos a arriscarem a própria vida para se
verem longe do cativeiro. Em todos os espaços analisados, é perceptível a movimentação de
esforços nesse sentido, ora no confronto violento direto, ora pelas instâncias judiciais;
especialmente nas disputas movidas nos tribunais pela garantia da condição livre em função
do status de “vassalo” – como o caso de Leonor, que transformada em escrava conseguiu a
alforria alegando ser “vassala” da coroa portuguesa – ou nos pedidos de “manumissão”
comuns à América espanhola, fundamentados nas “Siete partidas”.
Na África, vimos casos que demonstravam as constantes alianças firmadas entre
chefes locais para fazer frente à coroa lusitana; como o enfrentamento perpetrado por cerca de
duas décadas pelo soba Quiombella (1720-1730), confederado com outros chefes, que
habitava os entornos do presídio de Caconda (ponto fundamental na rota escravista); ou
episódios que ilustravam atitudes possíveis para o embarque ao Novo Mundo, tal como o
episódio em que africanos assaltaram o navio negreiro e desviaram a rota ao chefe Dembo,
conhecido por conceder asilo a escravos fugidos. Igualmente, na América portuguesa, nos
deparamos com numerosas situações que evidenciavam o papel ativo na confecção do próprio
destino. Esse foi o caso de Sebastião de Benguela (1733), que sendo transportado para as
minas do Cuiabá, mediante o ataque dos indígenas Payaguás, pegou em armas e partiu para
defesa da própria vida. Corresponde também à história do cativo que fugiu e foi aceito entre
os indígenas Bakairis (1798). Ou mesmo à história de Félix (1773), que fugiu para América
espanhola e se casou, foi re-escravizado e trazido à América portuguesa, mas posteriormente
voltou à Fazenda onde vivia para re-encontrar a esposa. A história desses homens e mulheres
se passava em constantes re-começos.
O mundo Atlântico havia conseguido integrar os mais diferentes pontos do globo,
desde os mais diferentes hinterlands do continente africano às lonjuras do continente
americano, em torno da empresa escrava; todavia, não conseguira eliminar a agência desses
milhões de sujeitos que não cessavam de buscar, se não a liberdade total dos grilhões, ao
menos condições suportáveis de vida. Para tanto, dentro de todo o itinerário, deveriam se
mostrar abertos às novas presenças e relações. É o que observamos no “Quilombo Grande”,
354
liderado por Teresa de Benguela. Além das necessárias relações externas com povoados lusobrasileiros ou “asenzalados” que ainda permaneciam em cativeiro, os aquilombados também
mantiveram relações com os povos indígenas locais. Sobretudo, com os Pareci-cabixis, que,
pelo rapto de mulheres e posterior incorporação à estrutura produtiva dos quilombos,
acabaram por favorecer um possível processo de “aruaquização”, que vinha ao encontro das
noções de organização política que traziam consigo da África e dos rudimentos de doutrina
cristã que haviam adquirido na experiência no cativeiro. Em outras palavras, com base em
estudos etnográficos (especialmente Max Schmidt) e história política dos africanos de origem
bantu, o Quilombo Grande poderia ter se beneficiado concomitantemente de elementos
provenientes de culturas aruaques (sobretudo na organização da produção de alimentos) e
Ovimbundu-Imbangala, principalmente no que diz respeito à lógica e organização política.
Nossos homens e mulheres de ferro demonstravam uma imensa força para novos recomeços e disposição para se agregarem ou serem agregados a outras estruturas, em nome da
manutenção da liberdade. Atentos às diferentes conjunturas políticas, tomaram partido e
foram decisivos nos embates de interesses europeus no Novo Mundo. O recrutamento de
escravos nas guerras de Independência na América espanhola ou mesmo os depoimentos dos
conjurados de Santa Cruz de la Sierra de 1809, que afirmavam ter lutado contra a coroa
portuguesa em nome da espanhola em outras ocasiões, atestam a referida consciência. Embora
a empresa escrava não cessasse de lhes perseguir, mesmo que estivessem evadidos ao outro
lado da fronteira, não deixavam de lutar por uma vida para além do cativeiro. A conspiração
tramada no agosto de 1809 entre negros livres, escravos e indígenas, exemplifica essa
determinação: detinham consciência que somente eles mesmos e, quiçá, inspirados pelas
histórias que circulavam acerca da revolução haitiana, poderiam se dar a liberdade, uma vez
que a América espanhola, ao contrário do que pensavam quando estavam em solo português,
ainda não era uma terra sem cativeiro, ao menos até a nova conjuntura que se abriu mediante
o irromper das guerras de independência.
A despeito das terríveis condições do cativeiro que levaram à mortalidade de milhares,
o fogo da liberdade não deixou de crepitar em alguns corações. Inseridos em uma jornada que
poderia remeter às áreas mais interioranas do continente africano e se estender ao extremo
oeste da América do Sul, não cessaram de tomar partido e serem protagonistas do próprio
destino que lhes estava à frente.
355
Ademais, vale ressaltar que o itinerário investigado neste estudo foi um possível entre
outros tantos, visto que um indivíduo africano que conseguira fugir à América espanhola
poderia ser originário de outras localidades da África, ou mesmo ter passado por outras
experiências de cativeiro na própria América portuguesa. Afinal, nem todos que eram trazidos
para as minas do Cuiabá e Mato Grosso eram importados diretamente da África. Em todo
caso, tais questões merecem tratamento em futuras pesquisas, sobretudo, aquelas pertinentes
aos contatos interculturais entre africanos aquilombados e indígenas; ou mesmo entre cativos
prófugos nos domínios espanhóis e os movimentos de independência na América espanhola
no alvorecer do século XIX, bem como as alianças firmadas com indígenas hostis às relações
com castelhanos – como os Chiriguanaes.
A investigação do percurso desses homens ferro e mulheres de pedra é um verdadeiro
horizonte aberto, que certamente tem muito a dizer sobre o que pode ter sido a experiência de
cativeiro para indivíduos, por exemplo, como Francisco Rios, que, proveniente do Rio de
Janeiro, construiu uma nefasta reputação no Alto Peru e chegou a participar do primeiro
levante que levou a região às futuras guerras de Independência, apontado como o “principal
caudilho”. Aclamado como um dos “heróis” do levante de 25 de maio de 1809 em
Chuquisaca, certamente “El quitacapas” teria percorrido um longo caminho até se livrar da
condição escrava.
Em última instância, investigá-los em situação ou lugar de ruptura, enfrentamento, nos
faz adentrar a própria “morada viva” da história, como assim concebe Arlette Farge. Lugar
privilegiado que, no desequilíbrio do “Eu”com as demais “comunidades sociais”, faz aparecer
as “descontinuidades” e, por conseguinte, a agência humana. E o que seriam as fugas
desesperadas à floresta, a resistência na proteção dos quilombos ou as conspirações tramadas
contra ibéricos, se não “descontinuidades” à regra ou comportamento esperado por agentes
escravistas? Ao pulsarem em paixão e fúria, nossos homens e mulheres de ferro e pedra
frustravam os agentes escravistas e, consequentemente, escreviam a própria jornada.
356
8. Referências
8.1.Referências documentais
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b) Códice
AHU, Cód. 554, fls. 47-50
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