- Programa de Pós Graduação em História
Transcrição
- Programa de Pós Graduação em História
0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA HISTÓRIA, TERRITÓRIOS e FRONTEIRAS BRUNO PINHEIRO RODRIGUES “HOMENS DE FERRO, MULHERES DE PEDRA”: Resistências e Readaptações identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de Benguela aos vales dos rios Paraguai-Guaporé e América espanhola – fugas, quilombos e conspirações urbanas (1720-1809) CUIABÁ-MT Junho/2015 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA HISTÓRIA, TERRITÓRIOS e FRONTEIRAS BRUNO PINHEIRO RODRIGUES “HOMENS DE FERRO, MULHERES DE PEDRA”: Resistências e Readaptações identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de Benguela aos vales dos rios Paraguai-Guaporé e América espanhola – fugas, quilombos e conspirações urbanas (1720-1809) Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), como requisito parcial para aprovação final. Orientador: Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena. CUIABÁ-MT Junho/2015 2 2 BRUNO PINHEIRO RODRIGUES “HOMENS DE FERRO, MULHERES DE PEDRA”: Resistências e Readaptações identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de Benguela aos vales dos rios ParaguaiGuaporé e América espanhola – fugas, quilombos e conspirações urbanas (1720-1809). Tese de doutoramento apresentada como requisito para aprovação final, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. Tese defendida e aprovada em __/__/____, pela Banca Examinadora: _____________________________________________________ Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena (Presidente da Banca) (Universidade Federal de Mato Grosso) ________________________________________________ Prof. Dr. Anderson Ribeiro Oliva (Titular Externo) (Universidade de Brasília) __________________________________________________ Prof. Dr. João Antonio Botelho Lucidio (Titular Interno) (Universidade Federal de Mato Grosso) __________________________________________________ Prof. Dr. Rafael da Cunha Scheffer (Titular Externo) (Universidade do Estado de Mato Grosso) ________________________________________________ Profª. Drª. Alexandra Lima da Silva (Titular Interno) (Universidade Federal de Mato Grosso) _______________________________________________ Profª. Dr.ª Neuma Brihante Rodrigues (Suplente Externo) (Universidade de Brasília) ________________________________________________ Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho (Suplente Interno) (Universidade Federal de Mato Grosso) 3 Dedico este trabalho a todos aqueles que acreditam que outro mundo é possível. 4 Agradecimentos Não poderia iniciar sem agradecer a principal apoiadora deste estudo, a base que me permitiu subir montanhas e sempre olhar à frente: Elzimar Muniz Pinheiro, a minha mãe. Faltariam palavras para expressar o tamanho da gratidão por cada palavra de conforto, preocupação e ligação ao longo de todos esses anos. O seu exemplo de vida, mãe solteira que fez todo o possível para não deixar os filhos abandonarem a vida acadêmica, é o maior legado e inspiração da minha trajetória. Igualmente, não poderia deixar de agradecer a todo o companheirismo e contribuição de Ernesto Cerveira de Sena, que desde a graduação tem participado diretamente do meu crescimento como ser humano e historiador. Sou imensamente grato pelos tantos conselhos, paciência e amizade. Não tenho dúvidas de que sem a sua participação não teria chegado a esta etapa acadêmica. Tenho imenso orgulho por tê-lo em minha jornada durante tantos anos. Agradeço também ao Governo Federal, especialmente à Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES), que durante todo o percurso deu-me suporte financeiro com bolsas e auxílios diversos para que vivenciasse numerosas experiências de pesquisa, ao ter oportunidade de residir e estudar em outras cidades e no estrangeiro, que enriqueceram e ampliaram consideravelmente o horizonte da pesquisa. Desejo profundamente que outros tantos possam usufruir das mesmas oportunidades. Agradeço ao conjunto de professores que estiveram à frente do PPGHIS/UFMT nos últimos anos, especialmente ao Professor Leandro Rüst, que sempre se mostraram solícitos e atentos aos nossos pedidos, auxiliando no que fosse necessário. Outrossim, sou muito grato a toda cobertura proporcionada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PROPG) da UFMT, especialmente à solicitude da Professora e Pró-Reitora Leny Caselli Anzai e Élida Furtado da Silva Andrade, fundamental para concretização do doutoramento sanduíche e manutenção das bolsas. Durante a minha estadia em Lisboa, Portugal, a presença constante da minha coorientadora, Isabel Castro Henriques, foi fundamental para realização da pesquisa e amadurecimento intelectual. Sou grato por toda contribuição e carinho dispensado. Na mesma circunstância, também agradeço as valiosas sugestões das professoras Aida Freudenthal, Ana Paula Ribeiro Tavares e José da Silva Horta, que me proporcionaram numerosos insights e inspirações; além da amizade do meu amigo angolano Gime Luís Ibn e dos brasileiros 5 Francisco Aimara, Diego Bortoncello, Ricardo Miotto e Raquel Longhi. Certamente os dias no “Velho Mundo” não teriam sido tão intensos e inspiradores sem a presença de todos eles. Sou muito grato ao conjunto de pesquisadores que muito cordialmente auxiliaram-me para que pudesse desenvolver a investigação junto aos arquivos bolivianos, especialmente a Bismark Cuéllar-Chavez, Paula Peña Hásbun, J. Judith Terán R. (sub-diretora do ABNB) e a Luis Enrrique Rivero Coimbra. A orientação e zeloso acompanhamento de todos foram de suma importância para o melhor aproveitamento do tempo e realização da pesquisa. Na ocasião em que estive residindo no Rio de Janeiro, numerosas pessoas foram de fundamental importância para o andamento das atividades acadêmicas; especialmente a Professora Maria Paula de Araújo, que me proporcionou gentilmente a possibilidade de acompanhar um seminário como “aluno externo” e realizar o estágio docência; Priscilla Gomes e Agata Gravante, pelo companheirismo e amizade. Sou grato também a Monique Lordelo, sempre solicita no compartilhamento de conhecimento; a Suellen Alves e Patrícia Acs que, respectivamente, foram as responsáveis pelo primeiro mapa da tese e revisão ortográfica e gramatical. Thalita Pinheiro Rodrigues, minha querida irmã, concedeu-nos gentilmente a honra de receber um produto do seu singular talento: dois belos desenhos, um sobre o “Quilombo Grande” e outro sobre a rainha “Teresa de Benguela”. Quero registrar a minha gratidão aos professores João Antônio Botelho Lucídio e Alexandra Lima, que durante a Banca de Qualificação foram determinantes para o repensar da nossa abordagem, organização textual e maior cuidado na indagação das fontes. Por fim, agradeço aos meus grandes amigos Christian Luiz Gomes e sua família, Luiz Rodrigues, Antonio Fernandes, Max Rodrigues, Carol Weiss, Reinaldo Marchesi, Julio Mangini, que durante todo esse percurso sempre me acolheram com alegria e atenção, nos bons e maus momentos. 6 “Os esquecidos fazem-se lembrar pelo sangue” (Mia Couto) 7 Abreviaturas APMT – Arquivo Público do Estado de Mato Grosso RAPMT – Revista do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional AHU – Arquivo Histórico Ultramarino ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo BNP – Biblioteca Nacional de Portugal ABNB – Biblioteca y Archivo Nacionales de Bolivia 8 Lista de Tabelas Tabela 1 - exportação de cativos na África Central (1676-1832)........................ 150 Tabela 2 - Exportações Legais de Escravos de Benguela, 1730-1828................ 150 Tabela 3 - População de Caconda (1797-1850)................................................... 152 Tabela 4 - População de Benguela entre 1795 a 1850........................................ Tabela 5 – População da Província de Mato Grosso – 1849............................. 153 190 Tabela 6 - mapa geral dos Escravos que tem enviado nas Capitanias de Cuiabá e Mato Grosso desde que se descobriram suas Minas conforme as memórias e registros existentes 1720-1772............................................................................ 191 Tabela 7 - Classificação da População escrava quanto a descendência e/ou origem. Freguesia de Brotas (1838)..................................................................... 192 Lista de Gráficos Gráfico 1 - População escrava de Caconda por gênero (1795-1850).............. Gráfico 2 - Estimativa de importação de escravos provenientes da África Central Atlântica e da Costa da Mina pelo Brasil, 1700-1810......................... 154 260 9 Índice de Ilustrações Fig.1 – Tsibinda Ilunga....................................................................................... Fig. 2 – Os “temíveis Jagas”................................................................................ Fig. 3 – As missões capuchinhas na África Central Ocidental............................. Fig. 4 – O ungüento “maji-a-samba”..................................................................... Fig. 5 – Os rituais de chuva entre os Jagas............................................................ Fig. 6 – O quilombo, segundo Cavazzi................................................................. Fig. 7 – O kilombo, por Capello e Ivens (1881)................................................... Fig. 8 – Escravos carregadores de autoridades..................................................... Fig. 9 – Travessia de caravanas, por Capello e Ivens (1881)................................ Fig. 10 – Paragem de carregadores....................................................................... Fig. 11 – O Quilombo Grande.............................................................................. Fig. 12 – Mulher de Pedra: a rainha Teresa de Benguela e o seu Parlamento...... 62 65 66 66 67 80 81 84 108 108 281 303 Lista de Mapas Mapa 1 – Entre o hinterland de Benguela ao Alto Peru: a resistência dos Homens de Ferro e Mulheres de Pedra ............................................................................ Mapa 2- Delineação geográfica dos reinos do Congo e Angola por volta de 1656. Mapa 3 – Os reinos do Congo, Angola e Benguela (1747) Mapa 4 – Mapa de identidades políticas e étnicas na África Centro-Ocidental (século XVIII).................................................................................................... Mapa 5 - Expansão das fronteiras escravistas, por Miller............................... Mapa 6 – Geomorfologia e bacias de Angola ................................................ Mapa 7 - A Feira de Cassange ............................................................................ Mapa 8 – Rotas comerciais no Planalto Central de Benguela.............................. Mapa 9 - Benguela e o seu interior...................................................................... Mapa 10 - Benguela e o seu hinterland............................................................... Mapa 11 – De Vila Bela ao Quilombo do Piolho: os rios Guaporé, Branco, Sararé, Galera e afluentes...................................................................................... Mapa 12 – De Porto Feliz e Goiás a Cuiabá (caminho fluvial e terrestre) .......... Mapa 13 – o vale do rio Paraguai ....................................................................... Mapa 14 - o vale do rio Guaporé ....................................................................... Mapa 15 – Os Bororos no Mato Grosso.............................................................. Mapa 16 - localização das terras indígenas Bakairi 1 ......................................... Mapa 17: Localização das terras indígenas Bakairi 2 ....................................... Mapa 18 – Migrações Xavante do Goiás para Mato Grosso................................ Mapa 19 – a repartição de Mato Grosso............................................................... Mapa 20 – repartição de Mato Grosso e Cuiabá e a fronteira com as missões jesuítas espanholas no século XVIII..................................................................... Mapa 21 - fluxo de fugas da Capitania de Mato Grosso para as Missões dos Mojos e Chiquitos e Paraguai................................................................................ Mapa 22 – O trajeto entre o Cuiabá-Vila Bela (Mato Grosso) e Santa Cruz de la Sierra (1789)..................................................................................................... Mapa 23 – Cuiabá, os povos Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra (1778).......... 39 87 88 89 90 91 146 147 148 149 188 189 252 252 253 254 255 256 257 258 259 351 352 10 Resumo Este estudo investiga o percurso e trocas culturais efetuadas por africanos escravizados entre os anos de 1720 a 1809, desde o hinterland do porto de Benguela à fuga e re-começo da vida nos quilombos formados no vale do Guaporé ou nas cidades castelhanas da América Espanhola. Para tanto, inicialmente analisamos os arranjos políticos e comerciais, bem como a atuação dos diferentes agentes históricos, que possibilitaram a realização do comércio escravo na região. Nesse contexto não somente alianças foram firmadas entre chefes locais e agentes da coroa lusitana, como ocorreram situações de enfrentamento direto, tomada de navios negreiros ou confrontos nas instâncias judiciais. Se por um lado o comércio escravo avançou paulatinamente às áreas interioranas, sobretudo, por meios militares, por outro lado, o mesmo só chegou a ser viável dentro das estruturas comerciais africanas, como as caravanas. Após a longa travessia do Atlântico e comercialização nas cidades litorâneas da América portuguesa, homens e mulheres de ferro seriam submetidos a uma nova e tortuosa viagem rumo ao derradeiro destino, às minas do Cuiabá e Mato Grosso. Por meio de uma rota que intercalava caminhos fluviais e terrestres, expostos a numerosos perigos, eram embarcados aos confins da América portuguesa, onde seriam empregados na mineração intercalada com atividades agrícolas e domésticas. Contudo, contrariando as expectativas senhoriais, parcela considerável se evadiu e tentou um re-começo para além dos grilhões, que nas fronteiras entre as coroas ibéricas poderia se dar na formação de quilombos, adesão a sociedades indígenas ou nas cidades espanholas fronteiriças. Destacadamente investigamos a composição e longevidade do chamado “Quilombo Grande”, liderado pela africana Teresa de Benguela. Tal como uma “hidra”, o seguinte espaço renasceu após incursões e se configurou em um local de trocas e reelaborações culturais, principalmente entre indígenas e africanos. Do outro lado da fronteira, onde encerramos nosso itinerário, analisamos a tentativa de uma rebelião protagonizada pela aliança entre negros fugidos da América portuguesa, escravos da América espanhola e indígenas contra as autoridades políticas de Santa Cruz de La Sierra, em meio ao alvorecer das guerras de independência. Em suma, em todos os pontos do itinerário estamos diante de casos em que indivíduos para manterem acesas as esperanças por uma vida possível além do cativeiro, resistiram, se adaptaram identitariamente, pegaram em armas, fugiram e conspiraram. Palavras-chave: África; escravidão; quilombo; resistência; Cuiabá; Mato Grosso; trocas culturais; América espanhola. 11 Abstract This research investigates the route and identity formation of enslaved Africans between the years 1720 to 1809, from the hinterland of the port of Benguela to escape and re-start life in the quilombos formed in Guaporé valley or the Spanish American cities. Thus, initially we analyze the political and commercial arrangements, as well as the performance of different historical agents, which enabled the realization of slave trade in the region. In this context not only alliances were settled between local chiefs and of the Portuguese crown agents, as occurred direct confrontation situations, kidnapping of slave ships or clashes in the courts. If on one hand the slave trade gradually advanced to inland areas, particularly by military means, on the other hand, It became feasible only within African commercial structures, such as caravans. After the long crossing of the Atlantic and marketing in the coastal cities of Portuguese America, our iron men and women would be subjected to a new and tortuous journey to the ultimate destination, the mines of Cuiabá and Mato Grosso. Through a route that interspersed river and land paths, exposed to numerous dangers, they were shipped to the confines of the Portuguese America, where they would be employed in mining interspersed with agricultural and domestic activities. However, contrary to the manor expectations, a considerable portion escaped and tried to re-start beyond the shackles, that in the borders between the Iberian crowns could be achieved in the formation of quilombos, adherence to indigenous societies or border Spanish cities. Notably We investigated the composition and longevity of the "Quilombo Grande", led by African Teresa de Benguela. Such as a "hydra", the space reborn after raids and set up in a place of cultural exchanges especially among indigenous and African. Across the border, where we closed our itinerary, we analyze the attempt at a rebellion carried by the alliance between runaway slaves from Portuguese America, slaves from Spanish America and indigenous against Santa Cruz de La Sierra political authorities at the time It began the wars of independence. In short, at all points of the route We are faced with cases where individuals in order to keep their hopes on for a possible life beyond the captivity, resisted, have adapted their identities, took up arms, fled and conspired. Key-words: Africa; slavery; quilombo; resistance; Cuiabá; Mato Grosso; cultural exchanges; spanish America. 12 SUMÁRIO Dedicatória.................................................................................................................................. 3 Agradecimentos .......................................................................................................................... 4 Abreviaturas................................................................................................................................ 7 Lista de Tabelas .......................................................................................................................... 8 Lista de Gráficos ......................................................................................................................... 8 Índice de Ilustrações ................................................................................................................... 9 Lista de Mapas ............................................................................................................................ 9 Resumo ..................................................................................................................................... 10 Abstract ..................................................................................................................................... 11 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14 “Homens de ferro, mulheres de pedra”: do objeto de estudo, percepção do outro, espaço e temporalidades ...................................................................................................................... 14 Das fontes, do olhar e métodos ............................................................................................. 20 Das historiografias ................................................................................................................ 25 CAPÍTULO 1 - A chegada do mundo Atlântico e os povos do hinterland de Benguela (século XVII-1720)................................................................................................................... 40 1.1. O cenário: condições geográficas, climáticas e diversidade etnoliguística desde o século XVI ............................................................................................................................ 41 1.1.1.A “produção de cativos” frente ao universo “Ovimbundu” (1620-1720) ................ 45 1.2. A percepção ocidental dos Jagas-Imbangalas: da chegada dos “ávidos devoradores de carne humana” às guerras justas ........................................................................................... 55 1.2.1. A chegada: relatos orais e produção historiográfica ............................................... 56 1.2.2. A Rainha Nzinga e os Imbangalas sob o olhar do colonizador ............................... 67 1.2.3. Kilombos: intercâmbios culturais entre Ovimbundu-Imbangalas e notas sobre a organização militar ............................................................................................................ 74 CAPÍTULO 2 – Do hinterland à costa: o espaço e os “protagonistas” na produção de escravos em Benguela (1730-1828). ........................................................................................ 92 2.1.Benguela-América portuguesa: estimativas de comércio ............................................... 93 2.2.A Organização do comércio no hinterland de Benguela ................................................ 97 a) Caravanas comerciais: do comércio escravista à sua decadência ................................. 97 b) Redes comerciais entre os reinos de Angola e Benguela ............................................ 109 c) Sertanejos, Pombeiros e Financiadores ....................................................................... 113 d) As instalações portuguesas: as “cidades costeiras” e as “cidades plataformas” ......... 122 2.3. Entre “guerras justas” e “injustas”: jogos de interesses no hinterland de Benguela .. 131 13 CAPÍTULO 3 – “Uma Devassa no sertão”: panorama da instituição escravista na fronteira do território luso-brasileiro (1720-1795) ..................................................................................... 155 3.1.A Instituição escravista em Região de fronteira ........................................................... 158 3.2.Da chegada de cativos: monções .................................................................................. 173 3.3. Da procedência étnica .................................................................................................. 180 CAPÍTULO 4 - A vida para além sociedade escravista: o trânsito entre indígenas, espanhóis e o retorno forçado .................................................................................................................. 193 4.1. As permanentes e inevitáveis relações entre cativos e indígenas: entre as guerras e assimilações ........................................................................................................................ 201 4.2. Fugas e tentativas de recomeço do lado espanhol: da miragem e busca incessante pela liberdade.............................................................................................................................. 219 4.3. O retorno é a morte: a volta de cativos fugidos à sociedade escravocrata ................... 240 CAPÍTULO 5 – O que atravessou o Atlântico: o Quilombo Grande entre começos e recomeços (1730-1795) ............................................................................................................. 261 5.1. O significado da agência cativa: notas gerais sobre os quilombos na América Portuguesa e Capitania do Mato Grosso ............................................................................. 263 5.2. O Quilombo Grande: duração e “aruaquização” ......................................................... 271 5.3. O que atravessou o Atlântico: das “Áfricas” na organização e resistência políticomilitar do Quilombo Grande ............................................................................................... 284 5.3.1. A África-bantu para além da documentação oficial: congada, organização, familiar e traços lingüísticos no vale do Guaporé ......................................................................... 285 5.3.2. Fúria e paixão: a organização política e militar do Quilombo Grande à luz dos Imbangala-Ovimbundus .................................................................................................. 293 CAPÍTULO 6 – “Fogo da libedade”: das fugas à conjuração do agosto de 1809 em Santa Cruz de La Sierra .................................................................................................................... 313 6.1. O cenário: Santa Cruz de la Sierra e o lugar da mão-de-obra escrava ......................... 315 6.2. “El fuego de la liberdad”: a conspiração do agosto de 1809 ....................................... 324 6.4. Re-começos e novas partidas: a agência escrava no Alto Peru e a vida possível aos “corações corrompidos” ...................................................................................................... 343 7. Considerações finais ......................................................................................................... 353 8. Referências ......................................................................................................................... 356 14 INTRODUÇÃO “Homens de ferro, mulheres de pedra”: do objeto de estudo, percepção do outro, espaço e temporalidades “(...) Um homem que conduzia seis ou sete escravos recém-chegados da África, meio nus e coberto ainda da sarna que esses desgraçados apanham na viagem marítima, foi surpreendido por um desses nevoeiros no seguir estrada que ele não conhecia bem. Perdeu-se e achou-se no meio dos campos, sem ver nada diante de si e sem saber onde estava. Os negros passaram a noite tolhidos de frio e no dia seguinte estavam tão inanimados e tesos, que o negociante, supondo-os mortos e não podendo mais consigo, montou o cavalo e começou a vagar ao acaso. Andou todo o dia, indo e voltando sobre seus passos. À tarde o tempo clareou e foi o que o salvou, porque viu um sítio e lá chegou mais morto do que vivo e já sem fala. Desceram-no do cavalo, aqueceram-lhe os membros gelados, deram-lhe um caldo de galinha, e pouco a pouco foi voltando a si. Havia dia e meio que nada comera. Foram à procura dos negros e os encontraram sem vida no lugar onde o negociante os deixara”.1 “Militando pois todo este tropel de infortúnios, e de desgraças armadas contra o infeliz escravo, a tudo isto ele resiste, vive, e falta, em países americanos. Os escravos que ali aportão vem a ser mais um resto de escravatura, do que de homens. É uma leva de enfermos, que de um hospital se muda para outro, e por isto com uma razão disse, que os escravos eram por natureza fortes, robustos e sadios; e os que escapavam de todas estas calamidades com muita razão se podião chamar de homens de ferro, ou de pedra”.2 Era preciso ter natureza de ferro ou pedra para suportar a longa travessia Atlântica e continental a fim de se chegar ao derradeiro destino. Ao narrar a morte de escravos africanos que chegavam a Serra Acima, um dos distritos de Cuiabá no final da década de 1820, Hercules Florence, que acompanhava a “Expedição Langsdorff”,3 dava dimensão das numerosas dificuldades e infortúnios a que estavam submetidos homens e mulheres que haviam sido transformados em escravos ainda na África. 1 A resistência às condições FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Tradução de Visconde de Taunay. São Paulo: Editora Cultrix; Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, pp. 166-167. 2 MENDES, Luis Antonio de Oliveira. Memorias econômicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Tomo IV. Lisboa: Tipografia da Academia, 1812, p.61 3 A expedição Langsdorff se deu entre 1825 a 1829 e percorreu uma longa extensão do território brasileiro, passando pelo interior de São Paulo, Mato Grosso e Amazonas, intercalando trechos fluviais e terrestres. Hercules Florence, artista nascido em Nice em 1804, havia se ligado à expedição logo após a mesma ter chegado ao Brasil. Com o término da mesma presentou a família Taunay com o diário da expedição, que permaneceu esquecido até o Visconde de Taunay o publicá-lo em 1875, junto ao tomo 38 do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver tese defendida por Rodrigo Luvizotto, sobre os diários de Langsdorff, trajeto percorrido (p.48) e observações da natureza: LUVIZOTTO, Rodrigo. Os diários de Langsdorff: prelúdios paisagísticos. São Paulo: Universdade de São Paulo – Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2012 (tese). 15 agravantes da travessia, ao mesmo tempo que suscitava preocupação, arrancava certa “admiração”. É o que observamos no relato de Oliveira Mendes; luso-brasileiro que no final do século XVIII elaborou uma obra cuja finalidade seria a “preservação da vida” dos africanos transformados em escravos, motivada pela necessidade de proteção do patrimônio de senhores e Estado e garantia do “bom funcionamento” da agricultura. 4 Aqueles homens e mulheres precisariam estar muito além das condições normais humanas para resistirem à morte que estava à espreita, visível nas tentativas desesperadas de fuga, desidratação, frio, doenças tropicais, nostalgia, inanição e maus-tratos. Muitos caminhos levavam à mesma, desde a África até os confins das Américas, mas os sujeitos que trataremos na presente tese optaram pela vida ou por ela lutaram quando assim foi possível escolher. Assim, apresentamos no estudo que se segue uma reflexão sobre o papel ativo de africanos escravizados numa das rotas do comércio de escravos, bem como as constantes readaptações identitárias e trocas culturais vivenciadas em diferentes pontos do itinerário. Entre o presídio de Caconda, importante entreposto comercial do hinterland de Benguela, 5 e Santa Cruz de la Sierra, maior cidade da região leste do Alto Peru, 6na América espanhola, o cativo poderia ter percorrido uma distância aproximada de 9.620 quilômetros, 7 vivenciando numerosas situações que exprimiam, em última instância, a busca constante por uma vida para além do cativeiro (ver mapa 1). 4 De acordo com o autor, a alta mortalidade dos negreiros prejudicava diretamente a economia e patrimôno do Estado. Vale ressaltar que Luís Antonio Oliveira Mendes, além de ser formado em direito pela Universidade de Coimbra, havia estudado filosofia, artes e letras. Embora tenha escrito sua obra no final do século XVIII, somente foi publicada no início do século XIX, em 1812. Ver análise da obra e autor em ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. O banzo e outros males: o páthos dos negros escravos na Memória de Oliveira Mendes. Rev. Lattinoam. Psicopat. Fund. X, 2, pp. 346-361. 5 No dicionário Windsor, “Hinterland” significa “hinterlândia” ou “interior; no dicionário Michaelis, por sua vez, “hinterland” designa interior ou região distante. Utilizamos a expressão durante nosso trabalho para fazer referência às áreas conectadas com o circuito comercial criado a partir da costa do Continente africano na direção oeste-leste, a despeito das suas limitações (possivelmente traduza com maior veemência o ponto de vista do “mundo Atlântico”). Embora o emprego do termo se justifique apenas por necessidade didática de “localização geográfica” dos espaços analisados, fazemos questão de frisar que o processo de expansão comercial escravista não se deu apenas por um impulso de agentes da coroa portuguesa, mas contou com a participação direta ou indireta de agentes africanos, que por sua vez, possuíam interesses distintos que abordaremos ao longo da presente tese. Ver COSTA, Heitor Ferreira da. Windsor Dictionary – Inglês e Português. São Paulo: Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas. Ver também <http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php?lingua=ingles-portugues&palavra=hinterland>. Acessado no dia 30/07/2014. 6 Alto Peru designa o atual território do Estado Boliviano. Sobre as diferentes denominações do território, ver capítulo 6 deste tese. 7 Distância calculada em linha reta,com base em dados coletados junto ao GoogleMaps, seguinte a trajetória Caconda-Benguela-Rio de Janeiro-Santos-Araritaguaba (atual Porto Feliz)-Camapuã-Cuiabá-Santa Cruz de la Sierra. Contudo, entre os desvios que observaremos nos mapas ao longo da tese, que intercalavam trechos percorridos via-terrestre e fluvial, tal distância poderia se alargar. Além disso, é preciso notar que nem todos os navios que saíam do porto de Benguela, rumavam diretamente ao Rio de Janeiro. Até finais da década de 1720, deveriam realizar escala no porto de Luanda. 16 Dessa maneira, estaremos defronte a casos de assaltos a navios negreiros, fugas em todos os pontos da rota, formação de ajuntamentos-quilombos e alianças clandestinas com comerciantes da sociedade luso-brasileira, estabelecimento de relações com povos indígenas – conflituosas ou amigáveis –, ou mesmo com tentativas de insurreição em espaço urbano. Apesar da constante vigilância, medo e repressão, em nenhum momento e em qualquer etapa deste percurso, deixaram de aparecer casos em que cativos abandonassem a busca de possibilidades de uma vida melhor fora da sociedade escravista normatizada. Todavia, é preciso frisar que toda essa agência cativa verificada ao longo do itinerário escolhido se deu em diferentes contextos e temporalidades; a começar por Benguela e o seu hinterland, que vivenciava um novo contexto em termos de inserção na economia Atlântica a partir de 1716, com a liberação gradativa do comércio direto com o Rio de Janeiro sem a necessidade das embarcações passarem em Luanda para o pagamento de “direitos”. Com a transferência progressiva de comerciantes do Rio de Janeiro para a Baía das Vacas (como também era conhecida Benguela), atraídos pela alta oferta e potencial de mão-de-obra cativa, motivados pela demanda crescente por escravos das minas de ouro no Brasil, o porto de Benguela em poucas décadas se transformou num grande centro de comercialização de escravos. Como podemos observar na Tabela 2, a quantidade de exportação de cativos aumentaria ao longo das décadas do século XVIII, até chegar ao pico em 1795 – quando, a partir deste ano, passaria a sofrer declínios, chegando ao encerramento em meados do século XIX, ante as pressões inglesas e re-organização da economia na região. 8 Do outro lado do Atlântico, com as descobertas das novas minas na América portuguesa e aumento da demanda de mão-de-obra escrava africana, já nas primeiras décadas do século XVIII, o Rio de Janeiro passaria a se consolidar como o principal fornecedor de cativos; sobretudo, com a abertura da “nova rota” que ligava a cidade às Minas Gerais, ao mesmo tempo em que o volume de exportações de africanos escravizados na chamada África Ocidental diminuía e se aumentava o volume comercial dos exportados pelos portos congoangolanos (ver Gráfico 2). As minas de Cuiabá e Mato Grosso, descobertas nas primeiras décadas do século XVIII, se inseriam nesse contexto. Destarte, por uma rota hegemonizada pela Capitania de São Paulo até finais da década de 1740, que adquiria grande parte da mão-de-obra cativa do 8 No lugar do comércio já considerado ilegal no pós-década de 1830, era preciso organizar aquela economia intrinsecamente fundamentada na escravidão, a partir da comercialização de produtos como marfim, cera, borracha, entre outros. Ver reflexão acerca da estrutura comercial em Benguela no Capítulo 2 desta tese. 17 Rio de Janeiro, passou-se a transferir milhares de cativos por longos caminhos fluviais ou terrestres à região que se encontrava no extremo-oeste das possessões portuguesas, a fim de serem empregados na mineração intercalada com atividades agrícolas e domésticas. Contudo, contrariando às expectativas senhoriais, uma quantidade considerável destes homens e mulheres se evadiu do cativeiro para os mais diferentes destinos, desde a integração à sociedade indígena, formação de quilombos, até mesmo para missões jesuítas ou cidades localizadas na América espanhola. Entre essas cidades, destacava-se Santa Cruz de la Sierra, que abrigou significativa quantidade de cativos fugidos de Mato Grosso e Cuiabá, cuja economia se concentrava principalmente no plantio e cultivo da cana-de-açúcar - local ocupado preferencialmente pelos “negros prófugos” da América portuguesa, que detinham melhores conhecimentos sobre a cultura agrícola. Apesar dos constantes acordos entre as duas coroas para devolução de escravos fugidos para América espanhola, como Santa Cruz de la Sierra se encontrava distante dos grandes centros urbanos do Alto Peru, era freqüente o nãocumprimento de determinações provenientes de instâncias maiores para devolução de negros à Portugal. Essa prática possibilitava margens para uma vida possível para além do cativeiro no interior da cidade, mesmo que essa liberdade estivesse constantemente ameaçada. Ademais, vale salientar que essa trajetória analisada se deu no interior do seguinte recorte temporal: 1720 a 1809. A primeira data é referente ao mapa geral de importação de cativos às minas do Cuiabá e Mato Grosso, apresentado em 1773 durante o governo do Capitão-General Luiz de Albuquerque. Embora o trânsito e presença de escravos já fosse uma realidade nas primeiras expedições junto às minas que levaram à fundação do Arraial de Cuiabá, adotamos o ano de 1720 como marco inicial pela necessidade de se atenuar a imprecisão da ausência de registros. O mapa, de maneira geral, contempla a entrada de cativos entre os anos de 1720 a 1772, dividindo esse período em quatro momentos históricos e apontando o primeiro (1720-1750) como aquele em que mais entrou cativos na região – ao todo, 10.775.9 Vale frisar que entendemos a passagem por Mato Grosso e Cuiabá como ponto articulador entre os dois lados da economia Atlântica e, principalmente, como um ponto esclarecedor da agência cativa, uma vez que, ao fugir, formar quilombo ou atravessar as fronteiras políticas convencionadas entre as coroas, acabava por romper com toda uma lógica que o deslocara por milhares de quilômetros. A chegada e partida das minas do Mato Grosso e 9 Ver Tabela 6, no capítulo 3 desta tese. 18 Cuiabá é fundamental para se compreender a monumental estrutura comercial interligada aos diferentes pontos do Império ultramarino lusitano, mas, acima de tudo, para se ter clareza da recepção, ruptura e o vislumbrar de novos horizontes além do cativeiro. No que diz respeito ao período compreendido entre 1720 e 1809, momento da inserção do extremo oeste das possessões luso-brasileiras no quadro político-econômico atlântico, devemos salientar a existência de três diferentes circunstâncias: 1720-1748, 1749-1778 e 1779-1809. A primeira está relacionada ao momento em que Cuiabá e, progressivamente, o chamado Mato Grosso são edificados e permanecem sob jurisdição da Capitania de São Paulo. Nesse contexto, africanos foram trazidos para a região por meio de monções que partiam do sudeste (porto de Araritaguaba, atual Porto Feliz) ou aleatoriamente por sertanistas. É um momento de constantes confrontos com diferentes nações indígenas, sobretudo com os Payaguás, que atuavam especificamente no caminho fluvial entre a Capitania de São Paulo e as minas do Cuiabá. A segunda circunstância vivida na região é simultânea aos esforços de criação da Capitania do Mato Grosso, em 1748, fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade, que viria a ser a capital da nova Capitania (1752), e criação da Companhia Grão-Pará e Maranhão (1755), que permitiu o fluxo de cativos via-norte, pela Capitania do Grão-Pará. Com a sua extinção, em 1778, o comércio de escravos para a região voltou a ser realizado hegemonicamente pelas rotas sul. 10 Já na terceira circunstância, entre os anos de 1779 a 1809, com predominância da rota-sul em atividade e com o trânsito esparso via-Goiás, por meio de uma estrada terrestre, o fluxo se fez com menos intensidade, verificando-se em alguns momentos a baixa disponibilidade de mão-de-obra para tocar as atividades econômicas na região. Este também é o momento em que se observa o crescimento da atividade açucareira no final do século XVIII. No período, somente “Serra Acima” (atual Chapada dos Guimarães), por exemplo, já possuía 22 engenhos, 6 monjolos e uma população escrava entre africanos e crioulos de 738 indivíduos.11 10 Vale observar que mesmo durante à existência da Companhia Grão-Pará e Maranhão, as rotas comerciais que traziam escravos via-sul nunca deixaram de predominar em termos de volume. Além disso, é preciso salientar que apesar das dificuldades de travessia de territórios indígenas (principalmente Kayapós e Xavantes), a rota terrestre via-Goiás,possivelmente também foi utilizada, como poderemos observar nalguns dados esparsos que apontam o trânsito de cativos de Salvador para Cuiabá. 11 Sobre a presença e emprego de mão-de-obra escrava de origem africana em “Serra Acima”, ver CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Casamentos de escravos africanos em Mato Grosso: um estudo sobre Chapada dos Guimarães (1798-1830). Cuiabá-MT: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2001, p. 11. Acerca do contexto econômico maior que vivenciava a Capitania de 19 O segundo marco temporal, o ano de 1809, é quando findamos nosso itinerário, junto à tentativa de uma insurreição conspirada por negros fugidos do Mato Grosso e Cuiabá, escravos e indígenas contra as autoridades espanholas da cidade de Santa Cruz de la Sierra. A região, naquela altura, enfrentava forte crise política, sobretudo, a partir das invasões napoleônicas e destituição do rei em território espanhol. Assim, formava-se uma crise de legitimidade que abria espaço para germinação de ideias de independência. Cativos e “negros livres” 12 que se encontravam na cidade estavam atentos aos acontecimentos e conscientes de que a liberdade só seria assegurada pela própria ação; decidiram-se por tentar a tomada da cidade entre os dias 15 e 20 de agosto de 1809. A análise deste episódio demonstra não apenas a constante busca por liberdade, mas também a participação determinante nos acontecimentos políticos que se passavam no mundo ibérico. A despeito de todas as especificidades espaciais e temporais que acima discriminamos, devemos ressaltar aquilo que une as duas pontas, ou os dois “sertões”, 13 de Benguela e o do oeste luso-brasileiro: a economia atlântica e a atuação de agentes da coroa portuguesa. A primeira é composta por numerosos agentes, desde funcionários da coroa portuguesa, comerciantes europeus ou americanos, militares, chefes políticos africanos (os “sobas”) 14, até indígenas – como os Payaguás que, nas suas incursões, ao capturarem africanos, procuravam Mato Grosso no período, ver LENHARO, Alcir. Crise e mudança na frente oeste de colonização. In: Cadernos do NDIHR UFMT- Ensaios, n° 1, Cuiabá: Imprensa Universitária - PROEDI, 1982. 12 Assim eram designados todos os negros fugidos dos domínios portugueses, de acordo com a documentação colonial do período. 13 Empregamos a categoria “sertão” na presente pesquisa pela própria limitação que as fontes impõem – quase todas produzidas por agentes coloniais. Contudo, frisamos que este “sertão”, enquanto categoria conceitual para compreender o que está dissociada da sociedade colonial, esvazia em sentido quando passamos a vislumbrar o possível ponto de vista acerca da própria territorialidade ocupada, de diferentes nações africanas ou indígenas, como os “Parecis”, que habitavam o noroeste de Vila Bela da Santíssima Trindade - o mais puro sertão do ponto de vista luso-sertanista – e concebiam de maneira sagrada a terra que ocupavam (haviam surgido da própria terra, de acordo com Arruzzo, passim). Janaína Amado, ao reconstituir historicamente o emprego e diferentes acepções ao longo da história, afirma que “sertão” em torno do século XII como referência à arcas situadas longe de Lisboa, dentro de Portugal. A partir do século XV, passa a designar espaços recém-conquistados sob os quais pouco ou nada se sabiam. E, no século XVI passou a ser largamente utilizada por viajantes que atravessam as Américas, África e Ásia, e por autoridades que se faziam príncipes de regiões recém-conquistadas.Ver AMADO, Janaína. Ponto de vista: Região, sertão, nação. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 8, n. 15, 1995, pp. 145-151. 14 Segundo Flávia Maria de Carvalho, que investigou as relações entre as elites políticas do Ndongo (atual norte da Angola) e governadores portugueses, especialmente Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, “sobas” seriam governantes do reino do Ndongo que teciam relações de “avassalagem” com a coroa portuguesa. Possuíam séquitos, entre os quais os tandalas (conselheiros principais), os macotas (conselheiros) e os mancuzes (embaixadores). Para a autora, tais personagens foram de fundamental importância para a “interiorização” portuguesa nos sertões, em função das políticas de aliança para o fornecimento de escravos. Ver CARVALHO, Flávia Maria de. Os homens do rei em Angola: sobas, governadores e capitães mores, séculos XVII e XVIII. Universidade Federal Fluminense – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Programa de Pós-Graduação em História, 2013 (tese); é preciso ressaltar que o uso da expressão também se deu para chefes políticos que se recusaram a tecer alianças com os agentes da coroa portuguesa, como observaremos na seção 2.3. da presente tese. 20 vendê-los a comerciantes de Assunção, na América espanhola. Por vários pontos, por um imenso trajeto, essa economia atlântica englobou diferentes personagens, que possuíam os mais variados objetivos, que poderiam diferir entre a acumulação de riquezas, poder ou a própria sobrevivência. A atuação dos agentes da coroa portuguesa, tanto na América dos povos indígenas como nas territorialidades africanas, obedecia à mesma lógica: acumulação de riquezas para coroa, alianças com chefes locais e “guerra justas” para àqueles que não se submetessem ou evitassem o contato com o mundo atlântico que chegava. Para africanos, de acordo com teorias raciais que se desenvolviam, estava reservado o cativeiro; aos indígenas, “negros da terra”, o cativeiro, o “aldeamento” (conforme a edição do “Diretório” em 1757) ou a morte. Em suma, investigar o percurso dos Homens de Ferro e Mulheres de pedra, aqueles que resistiram às penosas condições da travessia Atlântica e cativeiro, ao longo de todo esse circuito que conectava diferentes sujeitos, interesses e processos históricos, é elucidar a própria agência humana, o papel ativo de africanos escravizados que acabava por forçar a alteração de estratégias e, em última instância, frustrava as expectativas coloniais. Em ambos os lados do Atlântico, esperava-se a assimilação pacífica e resignada, o que não aconteceu. As fugas, confrontos, readaptações identitárias e levantes demonstram insistentemente a direção contrária do escravismo. Das fontes, do olhar e métodos Na construção da presente pesquisa, a fim de traçarmos a rota dos africanos escravizados e enviados ao extremo oeste das possessões luso-brasileiras na América, consultamos diferentes acervos. 15 A começar pelas correspondências trocadas entre autoridades ao longo do século XVIII e início do XIX, junto ao Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT), especialmente nas caixas dispostas na Estante 1, que comportam livros e registros manuscritos enviados principalmente por Capitães-Generais que estiveram à frente da estrutura política luso-brasileira na região. Nas mesmas, encontramos dados acerca dos constantes confrontos entre cativos e indígenas no estabelecimento das povoações nas minas do Cuiabá e Mato Grosso, numerosas informações de fugas para América hispânica, notícias de formação e combate de quilombos, regimentos e bandos (como aqueles que 15 No que tange aos arquivos consultados no Brasil, vale frisar que a pesquisa se deu entre os anos de 2013 a 2014, analogamente ao levantamento bibliográfico. 21 regulamentavam a atividade dos capitães do mato) e requerimentos enviados às autoridades espanholas, solicitando a devolução de cativos evadidos aos diferentes pontos de Castela – Santa Cruz de La Sierra, Assunção, Buenos Aires, Tucumán, Córdoba, entre outras. Na sequência, no mesmo Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, consultamos os exemplares ainda disponíveis da Revista do Arquivo Público de Mato Grosso (RAPMT). Nos mesmos, encontramos uma gama de informações sobre a instituição escravista na Capitania/Província de Mato Grosso e cotidiano dos cativos: dados sobre escravização de indígenas, regimentos de Capitães do Mato, instruções para abordagem aos quilombos, conflitos diplomáticos acerca da devolução de cativos evadidos para os domínios espanhóis e bandos que prometiam o “esquecimento” e não-aplicação de punição aos cativos que retornassem da fuga por livre e espontânea vontade. No acervo do NDIHR (Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional), que está localizado junto à Universidade Federal de Mato Grosso, ao longo das pesquisas realizadas no doutoramento, tivemos a oportunidade de consultar a documentação microfilmada referente a Mato Grosso, dos anos de 1720 a 1827, organizada em 34 rolos de microfilme. 16 Nela, localizamos informações sobre o fluxo de entrada de cativos na Capitania/Província de Mato Grosso via rotas que partiam do sudeste da América Portuguesa ou norte, pela Capitania do Grão-Pará, além de numerosas cartas que denunciavam a constante fuga de cativos para América Espanhola e posteriores pedidos de restituição. 16 No total foram micro-filmados 2.221 documentos referentes ao Mato Grosso, distribuídos em micro-filmes e também em CD-Roms. A iniciativa de catalogação e microfilmagem foi fruto do trabalho realizado na cooperação de numerosas instituições, a saber, a Universidade Federal de Mato Grosso, Casa da Memória Arnaldo Estevão de Figueiredo, contribuições do professor Edvaldo de Assis, com apoio da direção do AHU, especialmente da diretora Dra. Maria Luísa Abrantes, além do Projeto Resgate (iniciativa bilateral entre autoridades brasileiras e portuguesas para preservação documental de ambos os países). De maneira geral, de acordo Bertoletti (Fundação Biblioteca Nacional), Bellotto (Universidade de São Paulo) e Erika Dias (Universidade Nova de Lisboa), ainda entre as décadas de 1970-1980, já haviam propostas para catalogação e microfilmagem de documentos ibéricos, contudo, demasiadamente pontuais e sem continuidade. Então, a partir da segunda metade da década de 1980 foi levado a cabo um projeto de catalogação e microfilmagem dos arquivos referentes a Minas Gerais, dispostos no AHU-Lisboa. Tal exemplo serviu de base para o estabelecimento do Projeto Resgate, que se institucionalizou em 1992. Assim, deu-se início a um minucioso processo: “(...) foram elaborados catálogos constituídos de resumos unitários, os verbetes, introduções temáticas, metodológicas e técnicas, além de índices temáticos, onomásticos e topográficos. Além disso – e essa é a grande característica distintiva do projeto em relação a outros semelhantes – foi feita microfilmagem total dos documentos, sendo que no topo de cada fotograma inicial de cada documento consta a reprodução do respectivo verbete, sendo os microfilmes passados a CD-Roms. Assim para cada conjunto documental básico há um catálogo, rolos de microfilmes e CD-Roms de acordo com a extensão do material respectivo”. Ver BERTOLETTI, Esther Caldas; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; CARLOS DIAS, Erika Simone de Almeida. O Projeto Resgate de documentação histórica Barão do Rio Branco: acesso às fontes da história do Brasil existentes no exterior. In: Clio – Revista de Pesquisa Histórica, N. 29.1, 2011, pp. 3-4. 22 Igualmente, no acervo, aparecem dados sobre a ação de contrabandos e informações gerais que dão conta do cotidiano de cativos na região de fronteira entre as duas coroas ibéricas. Consultamos ainda, no bojo da documentação organizada por pesquisadores brasileiros, os Anais de Vila Bela e os Anais do Senado da Câmara de Cuiabá. Acerca do primeiro, compreende os anos de 1734 a 1789. Até poucos anos atrás, era tido como extraviado ou perdido. Encontrado e transcrito pelas professoras Janaína Amado e Leny Caselli Anzai, junto ao acervo da Newberry Library, apresenta uma fartura no que diz respeito à presença de cativos na Capitania do Mato Grosso. Além das constantes informações sobre fugas e devoluções de cativos à América espanhola, contém a descrição mais detalhada da campanha movida contra o famoso “Quilombo Grande” (ou “Quariterê”), que, liderado pela africana Teresa de Benguela, caiu em 1770.17 Nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, que foram produzidos por vereadores da Câmara do Cuiabá a partir do ano de 1786, encontramos informações referentes ao contato conflituoso de cativos com indígenas – Payaguás, Guaykurus, Bororos, Kayapós, entre outros -, fugas, emprego da mão-de-obra cativa em Cuiabá (até mesmo enquanto soldados); informações sobre quilombos inteiros destruídos por indígenas e dados sobre entrada de cativos na região por diferentes meios. 18 Em Portugal, a pesquisa se concentrou em 3 principais instituições: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e Arquivo 17 Os Anais de Vila Bela devem ser compreendidos em dois momentos distintos: de 1734 a 1754 e entre 1754 a 1789. A primeira parte, foi redigida por Francisco Caetano Borges, após ser designado para tal tarefa. Após Francisco, anualmente até 1789 os anais passaram a ser elaborados anualmente pelo “segundo vereador” da Câmara. Tudo indica, afirmam Anzai e Amado, que teriam sido levados pelo Capitão-General Luiz de Alquerque a Portugal em 1790 e, em Portugal, assim permaneceu por 200 anos, na “Casa Ínsua”, solar da família Albuquerque, a 30 Km da cidade de Viseu, quando foi vendido em 1995 à Newberry Livrary, biblioteca situada em Chicago nos Estados Unidos. Então, no ano de 2000, enquanto desenvolvia uma pesquisa junto à biblioteca, a pesquisadora Janaína Amado o descobriu e, para constantar de que se tratava de uma fonte valiosa sobre a América Portuguesa, contactou a historiadora Leny Caselli Anzai e, assim concluíram que se tratava de uma fonte inédita e de grande importância para história do Brasil no século XVIII. Ver AMADO, Janaina; ANZAI, Leny Caselli. Anais de Vila Bela (1734-1789). Cuiabá: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006. 18 Segundo o historiador Carlos Alberto Rosa, os Anais do Senado da Câmara de Cuiabá resultam da combinação de 4 fatores: dos Estatutos ou Posturas de Vila Bela, do trabalho individual do advogado José Barbosa de Sá, da “carta proposta” do provedor Real da Fazenda José Nogueira Coelho e de uma Ordem Régia de Dona Maria Primeira. Segundo o historiador, os Anais de Cuiabá, que abarcam o período histórico de 1719 a 1830, pode ser descrito em 3 principais momentos: 1719-1786, narrativa baseada principalmente nos escritos de Barbosa de Sá; 1787-1817, narrativa realizada pelos “segundos vereadores”; e finalmente, acerca dos anos de 1821, 1827 e 1830, em contexto imperial. Ver Annaes do Sennado da Camara do Cuyabá (1719-1830). Transcrição e organização Yumiko Takamoto Suzuki Cuiabá:Entrelinhas/Arquivo Público de Mato Grosso, 2007. 23 Histórico Ultramarino/Angola (AHU).19 Na primeira, que comporta um acervo vasto em termos de documentos e bibliografia abrangendo cerca de dez séculos, encontramos importantes obras sobre as atividades escravistas na região de Angola, expansão portuguesa e comércio de escravos com o Brasil, com destaque às seguintes obras: “História geral das guerras Angolanas” (1681) de Antonio de Oliveira de Cadornega; “Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola” (1687) de Giovanni Antonio Cavazzi; “O jagado de Cassange” (1898) de Henrique de Carvalho; “Apontamentos sobre a colonização dos planaltos do litoral sul de Angola” (1940) de Felner; “Traços Gerais sobre a etnographia do Distrito de Benguella” (1909) de Augusto Bastos; além das dissertações, teses e microfilmes, como a “Memória da expedição a Cassange” (1850) do militar Antonio Antonio Rodrigues Neves. A pesquisa no ANTT, por sua vez, se concentrou em dois principais fundos: Feitos Findos e Condes de Linhares. No primeiro, localizamos informações sobre a atuação de comerciantes do Rio de Janeiro em Benguela, ao longo do século XVIII. No segundo, por meio das cartas escritas pelo governante Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, encontramos dados de grande importância sobre o fluxo comercial entre os reinos de Benguela e Angola, saída de navios negreiros, conflitos com chefes políticos locais que abrigavam africanos escravizados fugidos e informações sobre o constante assédio de outras potências coloniais européias junto ao litoral de Angola, principalmente comerciantes ingleses e franceses. No Arquivo Histórico Ultramarino, na seção referente a Angola, realizamos uma pesquisa que se estendeu da década de 1720 ao final do século XVIII. Pelo fato da documentação até o presente momento não ter sido catalogada ou microfilmada, foi necessária a consulta direta e paciente junto a dezenas de caixas, cada qual comportando dezenas de documentos manuscritos. Nas mesmas, foi possível localizar com grande fartura notícias referentes a conflitos entre autoridades portuguesas e chefes políticos locais nos entornos de Benguela e seu hinterland (as chamadas “guerras justas”), assim como tabelas que davam conta do volume de atividades comerciais e, principalmente, acerca da exportação de cativos dos portos de Benguela e Luanda. O rico acervo apresenta um universo formado 19 A pesquisa realizada em Portugal se deu no primeiro semestre de 2014, momento em que realizei um “doutoramento sanduíche” sob a orientação da Professora Isabel Castro Henriques, junto a Universidade de Lisboa. 24 por diferentes agentes em torno da empresa escravista, que rendia alta lucratividade à coroa portuguesa (arrecadação de impostos) e a comerciantes. Na Bolívia, por sua vez, tivemos a oportunidade de consultar os acervos coloniais dos principais arquivos, a saber, o “Museu de Historia y Archivo Regional de Santa Cruz de la Sierra” e o “Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia” (ABNB). No primeiro, pesquisamos os documentos dispostos no fundo “Melgar y Montaño”, localizando, principalmente, dados a respeito da ocupação de cativos na cidade no início do século XIX.20 Já no ABNB, a pesquisa se distribuiu em três principais fundos: “Catalogo de Mojos y Chiquitos”, “Catalogo Expedientes coloniais adicionales” e fundo de “Emancipación de la Audiencia de La Plata” (1807-1824). Ao todo, levantamos 268 documentos referentes às mais diferentes movimentações que envolveram cativos fugidos da América portuguesa para a espanhola, principalmente, a “Sumária” que apurou a conjuração de 1809 em Santa Cruz de la Sierra, com depoimentos dos “negros livres” aprisionados e ofícios de autoridade anexas. Tais documentos localizados junto aos referidos fundos nos dão dimensão das diferentes atividades que envolviam cativos no Alto Peru, como fugas e formação de “quilombos” e disputas na justiça pela concessão de alforrias. Assim como na América portuguesa, nesta parte da América espanhola, negros escravizados igualmente se valiam de diferentes estratégias para o alcance de uma vida livre dos grilhões. Mediante todo esse panorama documental produzido em sua grande parte pela figura do colonizador, vale perguntar: como fazer emergir dizeres ou gritos ocultados do africano escravizado e diasporizado? Aqui, nos valemos das considerações valiosas do historiador italiano Carlo Ginzburg, que, assim como Marc Bloch, aventava a possibilidade de fazer aparecer “testemunhos involuntários” nos testemunhos voluntários. Em palavras do autor, “(...) escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas”[grifo nosso]. 21 Em outras palavras, ao transcrevermos e incorporarmos, por exemplo, o relato de uma “guerra justa” travada contra chefes africanos (sobas) no interior de Angola, os pormenores da campanha, dificuldades enfrentadas por portugueses, alianças formadas frente às forças lusitanas, estamos contribuindo para emersão de vozes antes sufocadas, silenciadas. Da 20 O fundo “Melgar y Montaño”, que corresponde ao período colonial, ou seja, anterior à independência da Bolivia em 1825, é formado ao todo por 6 caixas. Tivemos a oportunidade de consultar todas as caixas. 21 Ver GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Tradução de Rosa Freire d’Aguiare Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 10-11. 25 mesma maneira, quando nos colocamos a descrever as freqüentes fugas de cativos para os mais diferentes pontos, a resistência ao retorno à sociedade escravista, estamos a permitir às testemunhas involuntárias da trama, contra a intenção daqueles que produziram a documentação oficial, o lugar da enunciação, o direito à palavra. Essas vozes incontroladas que emergem são vozes de “homens infames”, parafraseando Foucault. O que as arrancou da escuridão e as fez chegar ao presente foi o encontro com o poder, que lançou um feixe de luz sobre as suas vidas, suscitou as poucas palavras que restam. Não têm existência a não ser no abrigo precário das palavras. De acordo com o autor: Essa pura existência verbal que faz desses infelizes ou desses facínoras seres quase fictícios, eles a devem ao seu desaparecimento quase exaustivo e a essa chance ou a esse azar que fez sobreviver, ao acaso dos documentos encontrados, algumas raras palavras que falam deles ou que eles próprios pronunciaram [grifos nossos].22 Foi o acaso, segundo Foucault, que fez com que essas pessoas sem glória nos chegasse ao presente, mas ainda continuam gesticulando, manifestando raiva ou aflição. Portanto, se tornam passíveis e descritíveis na medida em que foram atravessadas pelos mecanismos de poder. 23 Das historiografias A fim de consolidarmos a reflexão do percurso de reconstituição identitária dos africanos escravizados à região fronteiriça das possessões portuguesas na América, nos valemos de um amplo conjunto de obras, que podem ser sub-dividas da seguinte maneira: historiografia da escravidão; historiografia da África Central-Ocidental; historiografia regional; e historiografia hispânica. 24 22 FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In: Ditos e escritos: estratégia, poder-saber (v.4). Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2° Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 209. 23 Ibidem, pp. 209-216. 24 É preciso salientar que grande parte desse conjunto de obras consultadas se deu entre os anos de 2011 a 2014, momento em que cursei créditos optativos e obrigatórios no PPGHIS-UFMT e nos programas de pós-graduação em história da UFRJ e UFF. No PPGHIS/UFMT, por meio dos seminários oferecidos pelos professores doutores Fernando Tadeu de Miranda Borges, João Carlos Barrozo e Oswaldo Machado, reuni bibliografia sobre temáticas referentes a cultura, formações identitárias, fronteiras e problematização do outro. Na UFRJ e UFF junto à professora doutora Maria Paula de Araújo e Marcelo Bittencourt, tive oportunidade do contato, 26 No que concerne à primeira, é preciso salientar que se trata de uma historiografia recente, grande parte elaborada a partir do último quartel do século XX, momento em que vários campos da chamada “resistência escrava” se abrem para reflexão – como os embates jurídicos, atuação das confrarias negras, festivais populares, família escrava, entre outros, especialmente no final da década de 1980.25 É, igualmente, um momento de inclusão das minorias, aproximação com outras disciplinas (antropologia, sociologia, arqueologia, lingüística, entre outras) e aumento simultâneo de cursos de Pós-graduação no Brasil e linhas investigativas com circunscrições regionais – estas últimas, que acabam por redimensionar o que se considera “nacional ou transnacional”. 26 Em todo caso, é nesse contexto de aproximação com outras disciplinas e incorporação de novas perspectivas que surge a obra “Negociação e Conflito” dos historiadores brasileiros João José Reis e Eduardo Silva, em 1989.27 A mesma, de valor capital para esta tese, apresenta o escravo como sujeito ativo e se opõe à clássica visão do cativo como vítima ou herói. Por meio de 6 capítulos (os 3 primeiros escritos por Silva e o restante por João José Reis) e análise de diversas fontes primárias – ofícios de governos, documentos policiais, atas, respectivamente, com uma bibliografia pertinente ao debate sobre “memória e produção de conhecimento” e produção historiográfica acerca do continente africano, colonialismos e pós-colonialismos. Ademais, a realização da “bolsa sanduíche” sob a orientação da professora Isabel Castro Henriques, da Universidade de Lisboa, no primeiro semestre de 2014, permitiu-me o contato direto com uma produção historiográfica atualizada acerca da África Centro-Ocidental, que foi de grande valia especialmente para elaboração da primeira parte da tese que ora apresentamos.A historiografia hispânica, por sua vez, foi a última a ser consultada. Sobre esta, sou muito grato às contribuições diretas de Ernesto Cerveira de Sena. 25 Segundo o historiador Matthias Rörig Assunção, tal desbloqueio se deu em função da crise da teleologia marxista em finais da década de 1990, que anteriormente identificava hegemonicamente como campos da agência escrava apenas as insurreições, fugas, quilombos e rebeliões, em detrimento de outros aspectos da vida cativa, que não necessariamente perpassam pelo recurso às táticas de resistência violentas. Ver ASSUNÇÃO, Matthias Rörig. “A resistência escrava nas Américas: algumas considerações comparativas”. In: FURTADO, Junia Ferreira; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. P. 325-341. 26 Sobre o contexto acadêmico brasileiro no período imbuído de um espírito “multidisciplnar”, ver SAMARA, Eni de Mesquita. “A historiografia recente e a pesquisa multidisciplinar”. In: História & documento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, pp. 43-65; acerca do redimensionamento do nacional ou transnacional, pelo “regional”, vale mencionar o trabalho desenvolvido por Ernesto Cerveira de Sena, que ao refletir a área fronteiriça entre Brasil e Bolívia, na primeira metade do século XIX, apresenta um universo dotado de diferentes personagens – povos indígenas, colonizadores, ribeirinhos, escravos fugidos, entre outros -, onde nem todos compartilhavam do projeto nacionalista de ambos os lados da fronteira. Se é verdade que tal área recebia influência das autoridades centrais dos seus respectivos países, igualmente os seus habitantes apresentavam respostas próprias ao lugar em que viviam, o que acaba por mobilizar os primeiros à adequarem as pretensões nacionalistas, a partir dos interesses locais – como o episódio em que autoridades da Província de Mato Grosso tentam convencer indígenas que haviam fugido da “Castela” a permanecerem em Vila Maria (Cáceres), pois eram úteis para o propósito de povoamento da região e agricultura. Cf. CERVEIRA, Ernesto de. Representantes de governo, povos indígenas e outros atores na zona fronteiriça de Bolívia e Brasil – 1825-1879. In: Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.15, jul/dez 2013, pp. 5-36. 27 REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989. 27 cartas de senhores, entre outras –, enfatiza o escravo como personagem principal de sua própria trajetória, na busca incessante, por parte do cativo, em criar condições favoráveis para si, fosse no conflito direto ou mesmo na negociação. Uma dessas circunstâncias, apresentada pela obra, se dava na chamada “fuga reivindicatória”, intensificada durante o Tráfico Interprovincial e motivada por razões diversas: após o recebimento de punição avaliada injusta; reação a maus tratos físicos e morais; ou mesmo na forma de protesto contra transação comercial e troca de senhor, mediante a incerteza de margem de negociação com o novo senhor. 28 Nesse sentido, é importante frisar que, no mesmo contexto em que aparecia Negociação e Conflito, durante a década de 1980, chegava ao Brasil um grande debate relacionado à “História social”, que acabou por se refletir em 3 principais correntes de pesquisa histórica: 1) a história social da família; (2) a história social do trabalho; (3) e história social do Brasil Colonial. 29 A primeira se desenvolveu a partir da década de 1980, influenciada diretamente pela demografia histórica e pela exploração de temas da sociologia e antropologia, traduzindo-se diretamente no estudo das “famílias escravas”.30 A segunda perspectiva, de maneira similar à primeira, é adotada a partir da década de 1980, quando temas como história social do trabalho, urbanização, identidades sociais, controle social e cidadania, constituem pano de fundo comum – estes se concentram na Primeira República e cidade do Rio de Janeiro. 31Na terceira perspectiva, por sua vez, constata-se um diálogo com a 28 Especificamente, João José Reis, do final da década de 1980 à atualidade, tem desenvolvido uma obra de extrema importância, com destaque aos livros “A morte é uma festa” (1991) - considerada uma das principais referências da historiografia brasileira -, “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia no século XIX” (2008) e, mais recentemente “O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro” (2010), em parceria com os historiadores Marcus de Carvalho e Flávio dos Santos Gomes. 29 Cf. CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaio de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 56. 30 Neste contexto, vale destacar um estudo de grande importância na historiografia contemporânea, que é o Memórias do Cativeiro, onde as historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Lugão, investigam a memória coletiva do ser escravo, por meio das lembranças de seus descendentes, por relatos orais: MATTOS, Hebe; LUGÃO, Ana Maria. Memórias de cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; outro exemplo de estudo sobre família escrava, por meio de registros de batismos é o trabalho de Tarcísio R. Botelho, publicado na coletânea de artigos organizada por Douglas C. Libby e Junia Ferreira Furtado: BOTELHO, Tarcísio R. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica”. In: FURTADO, Junia Ferreira; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 195-216. 31 Nesta sub-área do conhecimento histórico atualmente é referencia obrigatória o precioso estudo de Chalhoub sobre a história dos cortiços e epidemias na cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 28 historiografia internacional sobre Afro-América, redução de escala de abordagem e valorização da experiência e cultura – que, de certa maneira, é o caso da obra de Reis e Silva. Universidades como USP, UFBA, UNICAMP e UFF são considerados os principais centros irradiadores deste último tópico de pesquisa.32 Outras obras de grande relevância, publicadas entre a década de 1980 até a atualidade, que compreendem o cativo como agente e inspiram a presente tese em termos de perspectiva e metodologia, podem ser mencionadas: Visões de Liberdade, de Sidney Chalhoub; Das cores do silêncio, de Hebe Mattos; e Na Senzala uma Flor, de Robert Slenes. 33 A primeira obra, resultado direto da tese defendida pelo autor em 1989 e de uma ampla pesquisa em diferentes acervos documentais (processos criminais, civis, ações civis de liberdade, processos comerciais, revistas da época, entre outros), 34apresenta a proposta de buscar compreensão do significado da liberdade, conferido por cativos e forjado durante a experiência do cativeiro; de maneira que o autor se propõe a abordar a percepção de escravos diante de situações de transferência de propriedade, assim como a ideia de “cativeiro justo”, proveniente de uma visão escrava, que influenciava diretamente as transações comerciais e as transformava em situações muito mais complexas que simples trocas de mercado.35 Hebe Mattos, por sua vez, no cruzamento de diferentes escalas de observação e utilização, assim como Chalhoub, de diferentes núcleos documentais – processos criminais, civis, inventários e jornais da segunda metade do século XIX –, busca demarcar os termos sobre os quais foram redefinidos os padrões de dominação nos últimos anos da escravidão – contexto de acelerada perda de legitimidade do escravismo e de maior mobilidade escrava, que forçou, por exemplo, o desaparecimento da menção cor branca para designar o livre e negro para identificar o cativeiro. Sua análise é centrada no conceito de liberdade e dos diferentes significados que lhes são atribuídos, tanto por escravos, como por recém-escravos. 32 CASTRO, Op. Cit., pp. 56-59. Aqui lembramos novamente da obra “O alufá Rufino”, publicada na parceira entre o supracitado historiador João José Reis, juntamente com os historiadores Marcus J. M. de Carvalho e Flávio dos Santos Gomes,. Rufino, escravo liberto de origem nagô, mulçumano e preso em Recife no ano de 1853, onde vivia como adivinho e curandeiro, sob acusação de estar participando de conspirações escravas. A obra acompanha com grande desenvoltura toda trajetória de Rufino, desde o momento que é retirado da África, do Reino Oyó, desembarca ao Brasil, inicialmente em Salvador, depois em Porto Alegre e, finalmente, no Rio de Janeiro, onde consegue comprar a própria alforria, para alguns anos depois, escolher viver em Recife. REIS, João José Reis; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 33 34 Vale ressaltar que o autor conserva, inclusive, o mesmo título de sua Tese de Doutorado, defendida em 1989 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 35 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 29 A autora, portanto, ao tratar da re-elaboração das condições de dominação no final do período escravista, considerando a participação cativa na atribuição de significados sobre termos como liberdade, rompe com a supracitada visão do escravo como coisa e/ou vítima.36 A terceira obra, de autoria de Robert Slenes, investiga a agência escrava com ênfase no âmbito familiar. Slenes dedica grande parte da obra para a crítica da literatura historiográfica acerca do tratamento da questão da família – até então, a idéia da nãoexistência de família escrava era consensual. Tendo como principal base empírica o município de Campinas, em São Paulo, o autor conclui que a família exercia enorme influência na vida dos cativos. Todavia, o fulcro da análise do autor se encontra na tese da existência de herança cultural africana na estruturação do viver familiar no cativeiro, especialmente de “grupos bantus”. O autor, com grande perspicácia, se concentra em vários detalhes, tidos como insignificantes, como a ausência de janelas nas casas de cativos, expressa em detalhes desenhados em gravuras de viajantes – com a finalidade de tecer comparações entre senzalas e aldeias africanas.37 Vale mencionar ainda a contribuição de Flávio dos Santos Gomes, que, na obra “A hidra e os pântanos”, 38 nos apresenta uma reflexão acerca da atuação de “quilombolas” no Brasil. Segundo o autor, esses quilombolas estavam interligados não somente à sociedade luso-brasileira, mas também a cativos que ainda permaneciam “assenzalados”; o que acabava por criar um complexo contexto sócio-econômico (“pântano”), dificultando a eliminação do quilombo, que renascia constantemente após ataques – tal como a “hidra” da mitologia, que a cada cabeça decepada, nasciam-lhe duas. Noutra instância, Gomes também trabalha com a perspectiva do escravo como “sujeito da história”, ativo e participante das disputas políticas contemporâneas; atento às possibilidades que se colocavam frente aos diferentes eventos, como a abolição da escravatura na Guiana Francesa, guerra civil norte-americana, Guerra do Paraguai, entre outros. Essa reflexão foi de grande valia para se pensar a agência cativa em Santa Cruz de la Sierra, ante o irromper das lutas de independência na América espanhola no alvorecer do século XIX, tema trabalhado do sexto capítulo da presente tese. 36 MATTOS, Hebe. Das cores do Silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, século XIX. 2º Ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 37 SLENES, Robert. Na Senzala uma flor: Esperanças e Recordações da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 38 GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII- XIX). São Paulo: Ed.UNESP; Ed. Polis, 2005. 30 No que tange ao segundo grupo historiográfico consultado, relacionado ao que chamamos de “historiografia da África Central-Ocidental”, 39 destacamos os seguintes autores: Jan Vansina, Joseph Miller, John Thornton, Roquinaldo Ferreira, José Curto, Mariana Cândido, Isabel Castro Henriques, Beatrix Heintze, e Maria Emília Madeira Santos. Assim como o grupo anterior, trata-se de uma produção historiográfica desenvolvida do último quartel do século passado até a atualidade, formada por numerosas obras e intensos debates. Caracteriza-se, principalmente, pela interdisciplinaridade e uso simultâneo de diferentes fontes, desde os tradicionais documentos oficiais, como também relatos de viajantes, levantamentos etnográficos e lingüísticos, pesquisas arqueológicas e tradição oral. De maneira ampla, o conjunto de autores trabalha com a perspectiva do africano integrado ao mercado atlântico, não apenas como vítima, mas também como agente ativo. O primeiro historiador da lista realizou ao longo da carreira a construção de uma obra extremamente sólida, fundamentada em torno da etno-história, uso das fontes orais e arqueológicas. Assim, Vansina torna obrigatório aos estudiosos da África Central a leitura de várias obras, como “Kingdoms of the Savanna” (pré-história dos estados do Congo, Luba, Lunda, entre outros), “Paths in the Rainforest” (considerado um dos melhores estudos sobre os povos que habitam a África Equatorial) e “How societes are Born”, que utilizamos diretamente na presente tese. Acerca desta última, ao tecer uma análise de longa-duração para compreensão sobre como se formaram as sociedades que existiam na África Central Ocidental por volta de 1600 d.C., o autor recuou em dois milênios, a fim de identificar o fluxo migratório das diferentes sociedades para a região. Como em períodos anteriores a 1500 d.C., as fontes escritas são escassas ou inexistentes, muniu-se então de evidências arqueológicas, lingüísticas e técnicas da biologia, para rastrear o passado.40 De Joseph Miller, considerado um dos mais importantes historiadores da África Central, nos valemos das obras “Way of Death” e “Poder político e parentesco”, publicadas respectivamente em 1988 e 1995. Na primeira, o autor discorre sobre temas complexos como demografia, ecologia, economia política, sistemas de parentesco, entre outros. Sustentado em um vasto conjunto documental coletado em arquivos brasileiros, portugueses e angolanos, Miller intenta reconstituir o ponto de vista do escravo na historiografia do tráfico negreiro (de 1730 a 1830, nas rotas terrestres angolanas e oceânicas), ao demonstrar sensibilidade na 39 A África Central-Ocidental compreende principalmente os atuais países Congo e Angola. VANSINA, Jan. How Societies are Born: governance in West central Africa before 1600. Virginia: University of Virgina Press, 2004. 40 31 reconstituição vivida por africanos transformados em escravos em Angola. A obra ainda se faz de grande importância, uma vez que traz à cena diferentes aspectos das dinâmicas internas de poder, como as estratégias de troca e acumulação adotadas por grupos dominantes das sociedades africanas, alternativas possíveis de negociação comercial em vista das formações políticas africanas, entre outras.41 Na segunda obra, a partir do cruzamento de relatos etnográficos, documentos oficiais e tradições orais dos povos Mbundu (norte da Angola), Miller apresenta uma densa reflexão a respeito da organização do poder político na região, sobretudo, a partir das migrações dos povos Lundas, encontro com os Ovimbundus e advento dos chamados “Imbangalas”. Ao propor a substituição interpretativa do foco nos indivíduos para os “títulos” (por exemplo, no lugar de “rei”, ler-se dinastia), Miller demonstrava o ponto de vista histórico dos homens locais sobre os conflitos políticos na atual Angola e presença européia. Entre os objetos que despertam grande atenção do autor, destaca-se a instituição “Kilombo”, resultado do intercruzamento de numerosas noções políticas junto a diferentes processos migratórios. De John Thornton, autor de importantes obras que tratam da África Central – com destaque a “The kingdom of Kongo” (1983), “Africa and Africans in the formation of the Atlantic world, 1400-1680” (1998) e “Walfare in Atlantic Africa, 1500-1800” –, utilizamos principalmente o clássico artigo escrito em defesa da existência dos povos “Jagas”, do norte da atual Angola, intitulado “A ressurection for the Jaga” (1978). Nele, o autor apresenta um conjunto de obras extraídas das mais diferentes fontes, que buscavam reconstituir a trajetória dos povos, fundamentais para entendermos na presente tese a formação multicultural dos quilombos. A leitura das teses de Roquinaldo Amaral Ferreira e Mariana Pinho Cândido foi de grande valia para este trabalho. A primeira, intitulada “Transforming Atlantic Slaving: Trade, warface and territorial control in Angola, 1650-1800” (2003), fundamentada em pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e Benguela, nos introduz à consideração de um grande fluxo comercial de cativos na região, além da atuação direta de comerciantes nascidos na América portuguesa. Na tese de Mariana Cândido, “Enslaving frontiers: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-1850”, defendida em 2006, ao analisar o universo populacional em Benguela e Caconda, a autora constata a emergência de “sociedades crioulas” em função da empresa 41 MILLER, Joseph C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave trade (1730-1830). MadisonWisconsin: The University of Wisconsin Press, 1988. 32 escrava, fazendo com que comerciantes do além-mar e diferentes sociedades do hinterland de Benguela dividissem o mesmo espaço. A obra de José Curto, por sua vez, foi substancial não somente pelo fornecimento de tabelas e dados atualizados acerca do volume de cativos exportados de Benguela para o Brasil, mas também pela contextualização histórica de longa duração sobre a expansão das atividades portuguesas junto aos Ovimbundus, que habitavam o hinterland de Benguela, e sobre o envolvimento de diferentes personagens africanos no comércio Atlântico; em um panorama que atravessa quatro séculos. Por fim, as obras de Beatrix Heintze, Maria Emília Madeira Santos e Isabel Castro Henriques contribuíram diretamente para compreensão da organização dos circuitos comerciais que cortavam os reinos de Angola e Benguela, no período estudado. Em Heintze, encontramos informações detalhadas referentes à organização das chamadas caravanas comerciais; em Santos, dados sobre as condições daqueles que participavam das Caravanas, sobretudo, carregadores e sertanejos como o brasileiro Silva Porto, conhecido por organizar grandes caravanas na região. Em Isabel Castro Henriques, sobremaneira, na obra “Percursos da modernidade em Angola”, baseada na tese de doutorado defendida em 1992, pudemos localizar um vasto conjunto de informações a respeito da organização comercial no território angolano, na qual as diferentes sociedades africanas aparecem com papel fundamental para realização de quaisquer atividades de cunho econômico. Na tese, encontramos numerosas referências às caravanas comerciais, aos seus diferentes personagens (sertanistas, pombeiros, comerciantesfinanciadores), às diferentes rotas comerciais que cortavam o território angolano e instalações portuguesas – cidades litorâneas, presídios, fortes, entre outras. No que tange à produção historiográfica regional, embora seja muito recente e em menor número se comparada aos estados do sudeste e nordeste brasileiro – pouco mais de duas décadas –, podemos elencar várias obras de grande qualidade que contribuíram direta ou indiretamente para a tessitura desta tese que se segue. A primeira e maior referência da historiografia regional da escravidão é de autoria da historiadora Luiza Volpato, intitulada “Cativos do Sertão”, cuja principal proposta foi realizar uma análise sobre o cotidiano dos cativos na segunda metade do século XIX em Cuiabá, capital da então Província de Mato Grosso. Assim como os outros autores, no cruzamento de diferentes fontes, a autora partiu do pressuposto de que a vida de um escravo, no período, era dinâmica e não se resumia ao 33 simples “cumprir ordens”. O cativo, segundo Volpato, deveria ser interpretado como ser humano, dotado de subjetividade e interventor do seu destino. Sobre tal perspectiva, Volpato afirma: (...) o presente trabalho procura pensar o cativo como ser humano no espaço do seu dia-a-dia, considerando que mesmo aquele que não fugia, não se suicidava, não participava de rebeliões, também lutava para ser uma pessoa. Esta luta podia se dar no espaço da transgressão, quando o escravo roubava, quando atuava como receptador e vendedor de objetos roubados; podia se dar no espaço da justiça, quando ele denunciava e movia processo contra seu senhor; podia se dar ainda de uma forma imensamente variada, quando ele transitava pelo terreno fluido que se colocava entre aquilo que o senhor considerava certo e o que considerava errado, quando, sem infringir seu código disciplinar – mas atuando no seu limiar – tomava atitudes próprias do indivíduo e lutava contra a sua coisificação [grifo nosso].42 Como podemos observar acima, a influência do Negociação e Conflito do João José Reis e Eduardo Silva se faz notória na iniciativa de considerar o cativo atuante em todas as dimensões da sua vida, protagonista da sua própria história. O espaço da agência escrava analisado pela autora não somente se dava no confrontamento direto com o sistema escravista, contudo, também nas mais diferentes transgressões e lugares (justiça, sabotagem, entre outros elementos). Ainda na mesma década de 1990, podemos destacar outra obra de grande importância, da autoria do historiador Jovam Vilela da Silva, intitulada “Mistura de Cores”. Na mesma, pela análise de variados censos na segunda metade do século XVIII, o autor apresenta a população da Capitania do Mato Grosso composta majoritariamente por mestiços, na miscigenação entre brancos, negros e incorporação de indígenas. A fim de elucidar tal resultado, o autor direciona a sua investigação tanto às diferentes maneiras em que indígenas, sobretudo Bororos e Parecis, foram assimilados como cativos, quanto às estratégias aplicadas por autoridades portuguesas para povoamento da região, em vista da disputa da fronteira pelas coroas ibéricas – casamento entre indígenas e escravos, aldeamentos, entre outras. Podemos citar, ainda, como contribuição direta para este trabalho, três dissertações recentes: a de Otávio Ribeiro Chaves (2000), de Maria Amélia Assis Alves Crivelente (2001) e de Monique Lordelo (2010). A primeira, intitulada “Escravidão, Fronteira e Liberdade”, defendida na UFBA, nos forneceu numerosas direções para se pensar o fluxo de entrada de 42 VOLPATO, Luiza. Cativos do Sertão. São Paulo: Editora Marco Zero; Cuiabá, MT: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1993, p. 11. 34 cativos na Capitania/Província de Mato Grosso, assim como as possíveis procedências étnicas africanas e atuação ativa dos cativos no cotidiano da região. A segunda autora, pela análise dos casamentos realizados entre africanos em Chapada dos Guimarães, na primeira metade do século XIX, apresenta um universo escravista composto majoritariamente por africanos bantu, sobretudo por aqueles identificados como “Benguelas”. Lordelo, por sua vez, a partir da análise da documentação referente ao século XVIII – incluindo documentos alocados no Arquivo e Biblioteca Nacional da Bolívia (ABNB) de Sucre –, nos possibilita um quadro amplo da agência escrava na região, marcado por fugas para as possessões espanholas e formação constante de quilombos. Igualmente, os recentes apontamentos da antropóloga Maria Fátima Roberto Machado são de grande importância para esta tese. A mesma, no artigo apresentado em 2006, intitulado “Quilombos, cabixis e caburés”, analisa a recorrência dos contatos interétnicos na região do Vale do Guaporé, entre africanos fugidos e indígenas, principalmente nos quilombos. Para tanto, parte do quilombo devassado em 1795, em que foi capturada uma população composta majoritariamente por caburés, mestiços entre negros e indígenas. Por fim, embora não discorram especificamente sobre a temática da escravidão, vale notar que os historiadores Otávio Canavarros, João Antônio Botelho Lucídio e Carlos Alberto Rosa foram fundamentais para a compreensão do espaço e temporalidade analisados no decorrer da tese. O primeiro, com a obra “O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752)”, nos propiciou ampla base para se pensar o estabelecimento lusitano na região, ante o contexto de disputa fronteiriça com a coroa espanhola. O segundo autor, por meio da tese de doutoramento defendida ainda em 2013, intitulada “‘A Ocidente do imenso Brasil’: as conquistas dos rios Paraguai e Guaporé (1680-1750)”, nos permitiu vislumbrar um espaço territorial repleto de numerosos personagens, acima de tudo indígenas, por meio da análise de uma ampla documentação disposta em diferentes arquivos da América do Sul (Brasil, Bolívia, Paraguai, entre outros) e Europa. O terceiro autor, historiador mato-grossense de importantes obras, contribuiu substancialmente para compreensão de características gerais da vida cotidiana na região, sobremodo, pela tese intitulada “A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá: vida urbana em Mato Grosso no século XVIII (1722-1808), defendida junto ao PPGHIS da USP em 1996. Finalmente, valem algumas considerações sobre o que denominamos “historiografia hispânica”, que foi de fundamental importância para se pensar o contexto histórico e social 35 em que atuaram cativos fugidos da América portuguesa no Alto Peru, entre o final do século XVIII e início do XIX. Consultamos, principalmente, os autores Carlos Malamud, Alberto Crespo Rodas, Paula Peña Hásbun, Humberto Vázquez Machicado, Bismark Cuéllar Chávez, Georges Reid Andrews e Maria Verónica Secreto. Em Malamud, na obra “Historia de America”, levantamos informações acerca da estrutura política no mundo colonial espanhol, bem como sua organização na América espanhola nas suas diferentes instituições – Vice-reino, Reais Audiências, Cabildos, entre outros. Já em Alberto Crespo Rodas, no livro “Esclavos negros em Bolivia”, pudemos vislumbrar o funcionamento da instituição escravista no Alto Peru, desde o período colonial até a Independência da Bolívia. Na mesma, estão dispostas informações sobre as rotas comerciais, procedências étnicas, emprego e diferentes ofícios ocupados por cativos, e a análise da participação de negros junto às guerras de independência que envolveram o Alto Peru a partir de 1810. A consulta de Paula Peña Hásbun foi, igualmente, de grande valia para entender o lugar da mão-de-obra cativa em Santa Cruz, assim como o próprio contexto social e político em que a cidade estava imersa nos momentos anteriores ao eclodir das guerras de independência. Especificamente, tivemos contatos com dois textos, a saber: “La Guerra de Independencia en Santa Cruz de la Sierra” e “La permanente construción de lo cruceño: un estúdio sobre la identidad en Santa Cruz de la Sierra”. Em Humberto V. Machicado e Cuéllar Chávez, localizamos reflexões diretas sobre a conspiração do agosto de 1809. O primeiro autor, cuja obra se intitula “La efervescência libertaria en el Alto Peru de 1809 y la Insurrección de Esclavos en Santa Cruz de La Sierra”, apresenta uma reflexão baseada em cartas trocadas entre “patriotas” envolvidos com rebeliões no Alto Peru, no ano de 1809, que exprimiam conscientemente os eventos ocorridos em Santa Cruz e cujos protagonistas foram negros livres, cativos e aliados. Cuéllar Chávez, por sua feita, tece sua reflexão com base em cartas trocadas entre o subdelegado de Santa Cruz, o Intendente de Cochabamba e autoridades do Vice-Reino de La Plata e Real Audiência, apresentando um ambiente de intensa preocupação com as ações cativas e principalmente com as possíveis alianças entre escravos e indígenas da região. Por fim, a leitura de Georges R. Andrews e Secreto foram de suma importância para vislumbrarmos as possibilidades que se colocavam aos cativos que se encontravam na América espanhola para uma vida além do cativeiro. No primeiro autor, na obra “América 36 afro-latina (1800-2000)”, encontramos uma análise comparativa nos mais diferentes países da América acerca das alianças firmadas por cativos e diferentes forças em meio às guerras de independência. Para o autor, a população escrava das Américas estava atenta às possibilidades lançadas para a concessão da liberdade e ao complexo embate de forças e, conscientemente, escolhiam o lado que pudesse assegurar a alforria no pós-conflito. Já em Maria Verónica Secreto, consultamos uma reflexão sobre a pretensa “benignidade” da escravidão na América espanhola e a constante concessão de “manumissões”. A autora, partindo da reflexão das tradições jurídicas no mundo hispânico, apresenta o cativo como sujeito atento às brechas legais para concessão da alforria e relacionados ao restante da sociedade, a fim de que pudessem obter ganho de causa. Na pesquisa documental realizada nos arquivos bolivianos, encontramos casos de cativos atentos às movimentações políticas nos centros urbanos hispânicos, como também outros em que tentavam a concessão da alforria no interior de contendas judiciais. *** A trajetória que nos propormos a acompanhar na presente tese está dividida em 6 capítulos: os dois primeiros referentes ao continente africano; os três seguintes à chegada, emprego e ruptura com a sociedade escravista na América portuguesa; e o último pertinente à fuga e vida na América espanhola. Assim, no primeiro capítulo, intitulado “A chegada do mundo Atlântico e os povos do hinterland de Benguela:entre os Ovimbundus e Imbangalas (século XVII-1720)”, apresentamos uma abordagem geral da chegada lusitana em Benguela, ao sul de Angola, e sua expansão crescente ao leste do território. O capítulo está sub-dividido em duas seções, sendo a primeira responsável por apresentar o espaço e os povos que o habitavam (os chamados Ovimbundus e Imbangalas), de acordo com a documentação analisada. Na mesma, são arroladas informações sobre a organização política, o caráter militarista e expansão portuguesa crescente. A segunda seção, por sua vez, trata da percepção acerca dos jagas-Imbangalas, povos militarizados que migraram para a região analisada e se miscigenaram com os Ovimbundus. Entre as principais características que serão destacadas nesse processo de hibridização, destaca-se a recorrência da instituição denominada “kilombo”, que na região significava “campo de iniciação militar”. No segundo capítulo – “Do hinterland à costa: o espaço e os protagonistas na produção de escravos em Benguela (1730-1828)” –, tratamos principalmente dos mecanismos comerciais que permitiram a realização do comércio de escravos do porto de Benguela para o 37 território luso-brasileiro. O capítulo também está subdividido em três seções: a primeira trata das estimativas de comércio de escravos à luz das recentes produções historiográficas; a segunda discorre sobre a organização do comércio, a partir das Caravanas comerciais, variadas redes comerciais, personagens e instalações portuguesas; e a última traz uma reflexão sobre as “guerras justas” junto à produção de escravos no hinterland de Benguela, a partir do complexo quadro de alianças e perspectivas de vários sujeitos envolvidos em conflitos que se deram entre as décadas de 1720 a 1730 nos arredores do presídio de Caconda, importante entreposto comercial de escravos. A partir do capítulo 3, passamos a acompanhar a trajetória de africanos escravizados nas Américas. Desse modo, o terceiro capítulo, intitulado “Devassa no sertão: um panorama da instituição escravista na fronteira do território luso-brasileiro (1720-1809)”, parte de uma expedição organizada em 1795 para destruição de um quilombo e, por meio desta, assume a proposta de se pensar a instituição escravista de maneira geral na região – desde a chegada dos primeiros cativos, das rotas percorridas, até as assimilações culturais, acima de tudo, entre indígenas e cativos africanos bantus. No quarto capítulo, cujo título é “A vida para além da sociedade escravocrata: o trânsito entre indígenas, espanhóis e o retorno forçado”, apresentamos o percurso daqueles que se dissociaram da escravidão por meio das fugas, que se deram com grande freqüência pelos mais diferentes caminhos. O capítulo, de maneira geral, está dividido em 3 seções, que tratam, respectivamente, do inevitável contato com indígenas que habitavam a região, da fuga para as possessões espanholas e do retorno à sociedade escravista, sob circunstâncias forçosas. No quinto capítulo, intitulado “O que atravessou o Atlântico: vida e morte do Quilombo Grande (1730-1795)”, apresentamos uma reflexão em torno do maior e mais famoso quilombo do Mato Grosso e Cuiabá, chamado “Quariterê” ou “Quilombo Grande”. A partir de relatos etnográficos realizados pelo antropólogo Max Schmidt sobre a cultura aruaque e os Pareci-Cabixis, junto a documentos históricos que buscaram descrever a organização econômica e política do quilombo, observamos intensos intercâmbios entre aquilombados e indígenas que habitavam a região do vale do Guaporé; assim como a aplicação de possíveis noções políticas Ovimbundu-Imbangalas no que tange à organização, principalmente no que diz respeito à flexibilização para a adesão de novos integrantes. 38 Finalmente, no sexto e último capítulo da tese, apresentamos a “conspiração” tramada na aliança entre negros livres, cativos e indígenas na cidade de Santa Cruz de la Sierra no agosto de 1809. O capítulo em si está dividido em quatro seções, sendo a primeira dedicada a apresentar o lugar da mão-de-obra escrava em Santa Cruz de la Sierra e Alto Peru; a segunda, concentrada na conspiração negro-indígena; a terceira, referente ao “malogro” da rebelião, possíveis alianças com setores que começavam a amadurecer a ideia de independência no Alto Peru e o destino dos conjurados aprisionados; e, por fim, a última, dedicada a pensar as diferentes estratégias lançadas por cativos na região para uma vida além do cativeiro, desde formação de quilombos a disputas na justiça. 2 40 CAPÍTULO 1 - A chegada do mundo Atlântico e os povos do hinterland de Benguela (século XVII-1720) (...) Nossos pais viviam numa grande planície junto ao mar... Tinham animais e culturas. Tinha salinas e bananeiras... De repente viram sobre o mar surgir um grande barco... Este barco tinha asas muito brancas, brilhantes como facas... Os homens brancos saíram da água e ficaram imóveis na praia... Os nossos antepassados tiveram medo. Disseram que eram os ‘vumbis’, os espíritos que regressam... Repeliram-nos para o mar com frechadas... Mas os ‘vumbis’ vomitaram fogo com um barulho de trovão... Muitos homens foram mortos. Muitos fugiram. Outros ficaram junto do grande mar... Então os homens brancos desembarcaram de novo. Pediram galinhas e ovos. Davam tecidos e missangas... Pediram ouro, marfim, escravos!43 A compreensão do Outro possivelmente seja o elemento mais relevante para se entender o comércio atlântico de escravos e o papel desempenhado por diferentes sujeitos. Entender o ponto-de-vista do comerciante de escravos é tão importante quanto perceber o possível significado atribuído à atividade pelo chefe africano – que se opôs ou negociou com europeus –, o pombeiro ou ao próprio africano escravizado. Assim, partindo dessa necessidade, nas últimas décadas têm se realizado investigações não somente centradas em fontes oficiais – estas que em larga medida apresentam a leitura dos processos históricos a partir de concepções não-africanas –, mas em relatos orais, descrições etnológicas e de outras memórias, como aquelas produzidas por religiosos ou militares. Contudo, trechos que demonstram as impressões africanas durante os primeiros contatos com o homem europeu, como o que está acima transcrito, ainda são raros e escassos. Adaptado de uma tradição oral dos povos Bapende, que habitavam o atual território do Congo, foi transcrito e publicado por José Mena Abrantes na obra “Ana, Zé e os escravos”. 44 43 Aborda o exato momento de chegada das frotas portuguesas na costa africana durante o Texto adaptado da tradição oral dos povos Bapende orientais, por ABRANTES, José Mena. Ana, Zé e os escravos – in Teatro I. Coimbra: Cena Lusófona, 1999. 44 José Mena Abrantes é atualmente considerado um dos principais escritores e dramaturgos angolanos. A transcrição e publicação, em si, remete a 1980. Na mesma destacam-se como personagens principais duas figuras conhecidas da história angolana, que marcam o final da escravatura na região: Ana e Zé. A primeira era uma famosa comerciante de escravos nas primeiras décadas do século XIX. O segundo, Zé Telhado, se tratava 41 século XV. Embora esteja relacionado a um contexto específico, de maneira geral, nos remete às primeiras impressões africanas acerca do homem europeu que chegava em grandes barcos: pensavam que eram espíritos, e por isso deveriam ser repelidos (versos 7 e 8). Após os primeiros ataques dos Bapende, motivados por uma certa confusão ao que era completamente desconhecido, veio a reação portuguesa, que culminou em mortes, exploração dos recursos naturais e, finalmente, em escravidão. O capítulo que se segue, portanto, constitui uma apresentação do mundo existente no atual sul da Angola, no momento da chegada e expansão lusitana, assim como os diferentes lugares ocupados por africanos, para, mais adiante, refletirmos a possível percepção africana de todo esse processo. Grosso modo, primeiramente, apresentamos o território angolano, destacando as suas características geográficas, desde a localização até as taxas de pluviosidade e concentrações demográficas ao longo do território, em função do clima e temperatura; em um segundo momento, dispomos sobre a localização etnoliguística ao longo do espaço físico e, especialmente, tecemos algumas reflexões acerca do avanço português junto aos domínios Ovimbundus. Na sequência, com o fim de entender a principal instituição que organizava aqueles que viviam na região dos Ovimbundus no século XVIII, a saber, o “kilombo”, desenvolveremos uma reflexão sobre os “temíveis” Jagas-Imbangalas, a apropriação destes pelo reinado de Nzinga e, por fim, algumas notas sobre o próprio “kilombo” – de sua gênese a detalhes pertinentes para o seu formato ao longo das sociedades Ovimbundus ou Imbangalas. 1.1.O cenário: condições geográficas, climáticas e diversidade etnoliguística desde o século XVI A atual Angola, cujo nome se deriva de “Ngola” – dinastia dos povos Ambundo que estavam fixados no Médio-Kwanza45 –, possui um território disposto entre os paralelos 4º 22’ e 18º 02’ e os meridianos 4º 05’ e 11º 41’ a leste de Greenwich, no Hemisfério Sul, na parte ocidental da chamada África Austral, ocupando uma área de 1.246.700 Km². A mesma é limitada ao norte pela República do Congo, a leste pela República da Zâmbia e República de um degredado português, conhecido por dividir com os necessitados tudo aquilo roubava. A peça, de maneira geral, levante um debate profundo sobre a história, cultura e identidade nacional angolana. Sobre uma análise acerca da obra dramática de José Mena Abrantes e, especialmente, o texto em questão, ver ÉBOLI, Luciana Morteo. A Literatura dramática em África de língua portuguesa: história e cultura. In: Língua Portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Universidade de Évora, 2010. 45 Ver SANTOS, Eduardo. Religiões de Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1969, p. 19. 42 Democrática do Congo, ao sul pelo Namíbia e a oeste pelo Oceano Atlântico – possui uma costa marítima de 1.650 Km. 46 No século XVI, momento em que se estabeleceram os primeiros contatos entre portugueses e africanos da região, o espaço estava subdividido e ocupado por numerosos povos, que possuíam singulares organizações políticas e trajetórias históricas distintas (ver mapa 1, 2 e 3). O estabelecimento e conquista desse território pela coroa portuguesa foi progressivo e lento, cadenciado pela atitude resistente de pequenos ou grandes potentados, política de alianças e vassalagem (ver mapa 4); além das disposições geomorfológicas e condições ambientais, que impuseram barreiras naturais aos avanços lusitanos, como a dificuldade de trafegabilidade junto aos rios que cortavam o território. De modo geral, o território em que se encontraram portugueses e diferentes povos africanos era caracterizado por uma gama de microambientes, modificações climáticas, diferentes altitudes, taxas de pluviosidade, que acabavam por favorecer o desenvolvimento (ou não) de específicas atividades produtivas e, por conseguinte, indicar qual poderia ser o perfil do africano incluído no comércio transatlântico de escravos – agricultor, guerreiro, comerciante, entre outras atribuições. Em primeiro lugar, vale chamar atenção para a estabilidade climática da região. Segundo Vansina, pode-se dizer que: de 500 a.C. a 900 d.C., o clima no território angolano foi marcado por maiores estações chuvosas; de 1000 a 1200 d.C., a existência de estação de seca mais prolongada; e, partir de 1200 d.C. até cerca de 1950, o clima se estabilizou tal como se conhece atualmente. 47 Dessa forma, a Angola que se inseriu no comércio transtlântico de escravos, paulatinamente a partir do século XVI, durante o ano, era demarcada por duas estações climáticas, a de chuvas e a de estiagem; a primeira, úmida e quente, entre setembro e abril, ao passo que a segunda se estenderia do mês de maio a setembro – esta sendo seca e fria. Ao longo de todo o território, existia uma variação climática considerável. Se ao norte, região de Cabinda, a precipitação poderia atingir por vezes 800 mm, no litoral sul estava em torno de 50 mm, uma vez que a primeira região seria considerada “tropical” e a segunda se encontraria localizada em uma região desértica. A temperatura também sofreria variações ao longo do território angolano: no litoral sul, atingia a média de 23º C; ao norte, se elevava (juntamente com as taxas de pluviosidade); na região dos planaltos, em função da altitude, 46 Sobre dados gerais acerca das características fisiográficas de Angola, ver DINIZ, Alberto Castanheira. Características Mesológicas de Angola. Nova Lisboa: Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, 1973. 47 VANSINA, Op. Cit. 43 somava uma temperatura média de 19º; o Sudeste seguia a característica climática dos planaltos; o sudoeste apresentava temperaturas baixas durante a estação seca e noite; e, finalmente, o leste dispunha de um clima tropical moderado. Conforme aumentava-se a distância da Linha do Equador, a estação de seca era mais prolongada e, inversamente, a pluviosidade diminuía. Essa variação climática se devia à localização do território junto ao globo terrestre – acima do trópico de capricórnio, ao sul da linha do Equador e por fazer fronteira com o Oceano Atlântico –, que provocava a sucessão de climas. A esses fatores, deve-se acrescentar a altura em relação ao nível do mar, que acabava determinando a própria pluviosidade. De maneira geral, o território Angolano possuía dois altos cumes, que correspondiam a uma altura acima de 1500 metros: um se encontrava na região do planalto central, e separava a costa do interior – marcado por escarpas íngremes –, ao passo que o outro separava a bacia do Congo em direção à Baia do Okavango.48 No interior dessa configuração, igualmente havia uma complexa disposição dos fluxos dos rios, que corriam para a costa ou para áreas do interior, fosse do Sul para o Norte (do norte do Kasai e seus afluentes); ou na direção contrária, do Norte para o Sul do Cunene, Okavango e Zambezi, interrompido apenas por cachoeiras;49 formava-se um vasto sistema hidrográfico. Na região norte, os rios corriam para a chamada Bacia do Zaire, onde se confluem os rios Kassai e Kwango. Cortando grande parte do território angolano, com uma extensão de 960 Km, sendo 258 Km navegáveis (desde a sua foz, no Bié até do Dondo, na província Kwanza-Norte), estava o rio Cuanza (ou Kwanza), que seguia do Sul (planalto do Bié) a norte e, posteriormente, se dirigia ao oeste em direção ao Atlântico (ao sul de Luanda). Ao Sul, por sua vez, estavam os rios que seguiam a bacia do Zambeze, que possuía uma extensão de 1.390.000 Km², abrangendo os países de Angola, Namíbia, Botswana, Zimbabwe, Malawi, Tanzânia e Moçambique. 50 Além destes mencionados, destacavam-se os rios Zaire (ao norte), o Cunene (do Planalto ao sul), o Kubango (em direção à atual República da Namíbia, ao sul), e o Keve, sentido leste-oeste (ver mapas 5). A estrutura geomorfológica de Angola, partindo da costa para o interior, poderia ser descrita da seguinte maneira: faixa litoral, zona de transição, cadeia marginal de montanhas, planalto antigo, bacia do Zaire, Bacia do Zamzebe e bacia do Lubango; território caracterizado, em sua grande parte, por planaltos e pelo talude atlântico, ou seja, por degraus 48 Sobre características geográficas e movimentação humana no território angolano em longa duração, ver VANSINA, Op. Cit., pp. 15-22. 49 Ibidem, p. 16. 50 Somente em Angola a bacia hidrográfica do rio Zambeze atinge a área de 150.800 Km². 44 que descem até o oceano. Vale destacar ainda que as bacias se situavam nos planaltos (cerca de 60% do território está caracterizado por planaltos) e que aproximadamente 65% de Angola está situada numa altitude de 1000 a 1600 metros. A vegetação que se formava nesse território seria resultado da combinação de numerosos microambientes e a própria latitude, de modo que se dispõem de norte a sul do país diferentes savanas, florestas, pastagens e estepes.51 Por exemplo, quando se pensa a área de costa da Angola, deve-se considerar a combinação das correntes frias que partem do sul do Atlântico, especialmente na região de Benguela, com a redução de pluviosidade e a existência do deserto da Namíbia, que está na fronteira sudoeste da Angola. Ademais, frente a todo esse quadro apresentado, é necessário entender a ocupação humana deste espaço, diretamente influenciada pelas mudanças climáticas e instaladas, sobretudo, em regiões onde se verificavam maiores possibilidades de desenvolvimento da agricultura; de forma que, historicamente, os limites mais importantes, principalmente quando se pensa em “termos demográficos”, estiveram localizados em torno das latitudes 11º e 12º e 16º e 17º, região onde se cultivou inicialmente a palmeira e inhame. Segundo Joseph Miller, é provável que, na altura do século XVI, grande parte da população da região se dedicasse à agricultura e estivesse fixada nas áreas mais baixas e úmidas, nas margens dos rios, onde havia terra disponível para a atividade. Além da agricultura, indícios apontam que tanto os povos do Norte como aqueles que habitavam o sul praticassem a caça, pesca e criação de animais. 52 De maneira geral, na altura do século XVI, a população africana, que habitava a atual Angola, estava distribuída da seguinte maneira: ao norte, estavam os Mbundus e os Kongos, que falavam o Kimbundu e Kikongo, respectivamente; ao leste, os Cokwes e Lundas, cujo idioma era o Kocokwe; e, finalmente, ao sul estavam os Ovimbundu, falantes do Umbundu.53 As fronteiras entre estes povos modificavam-se constantemente em função dos fluxos migratórios e, a partir da chegada dos portugueses, em decorrência das guerras ou alianças comerciais. 51 54 Ibidem, p. 19. MILLER, 1995, p. 36. 53 Idem Ibidem, p. 38. 54 Autores como Cavazzi, Cadornega, Silva Porto, Rodrigues Graça, Magyar, Felner, Augusto Bastos, entre outros, citados ao longo deste texto, mencionam grande diversidade entre os povos que habitavam a região, de modo que entre os séculos XVII ao XIX, no interior das suas respectivas obras, haveriam os Ovimbundus, que estavam subdivididos em Cacondas, Quiacas, Huambos, Biénos, entre outros; os Lundas, Bakongos e, principalmente, os povos Mbundu, que foram àqueles que habitaram os entornos de Luanda e, consequentemente, foram os que mais estabeleceram contatos com portugueses. Sobre estes últimos, ao longo das descrições dos autores supracitados, são mencionados os Dembos, Gingas, Quissamas, Bangalas (ou Imbangalas), Songos, Mussemedes, entre outros; Sobre mapa etnoliguístico contemporâneo em Angola, ver 52 45 Em linhas gerais, tais povos se originaram principalmente dos chamados “bantu”, designação atribuída a quase todas as populações fixadas ao sul da linha do Equador, na África. Segundo Rosa Cruz e Silva, estes migraram da região dos Camarões e adentraram progressivamente na África Central, Oriental e Austral, por volta de 1.000 d.C., introduzindo na África Meridional a metalurgia, cerâmica e agricultura; provocaram, por conseguinte, uma mudança substancial nas antigas sociedades e deram origem, paulatinamente, a novas formações étnicas. Especificamente, segundo a autora, tal migração seguiu três direções: a primeira, pelo Norte, descendo rios e costas e atravessando o Baixo Zaire; a segunda, através do oriente e nordeste, ao longo do Zamzebe; e, por fim, a terceira pelo Sul, do norte do Calahari até o sudoeste de Angola. 55 Especialmente o quadro político que estava em formação no momento em que o mundo transtlântico chegara ao território angolano era resultado, sobretudo, das migrações originárias do Leste, dos povos Lundas, que, na adoção de instituições como o “kilombo” dos Ovimbundus, passaram a ser conhecidos como Imbangalas.56 Assim, poderiam coexistir no hinterland de Benguela – espaço por excelência da reflexão que se segue –, povos Ovimbundus que reivindicavam ou não a descendência Imbangalas, cujo grau de centralização entre os mesmos variava. O mundo encontrado por portugueses, em suma, estava em contínua formação e re-formação e portava elementos culturais de diferentes povos da África Central, que estavam em constante movimento. 1.1.1.A “produção de cativos” frente ao universo “Ovimbundu” (1620-1720) Para uma primeira abordagem sobre os povos do Sul e, principalmente, dos Ovimbundus, chamamos a atenção para o trabalho de Augusto Bastos. Tal estudioso intentou a realização de uma etnografia dos povos que habitavam a região de Benguela, sob a justificativa de contribuir para o aproveitamento das “benesses da conquista” com a MARTINS, José Vicente. Crenças, Advinhação e Medicina Tradicionais dos Tutchokwe do nordeste de Angola. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1993. 55 Ver SILVA, ROSA CRUZ. Angola e seu Potencial. Luanda: Ministério da Cultura, 1997, p. 103. Ver também OBENGA, Theophile. Les Bantu. Dakar: Présence Africane, 1980. 56 Na seção1.2.1. segue uma análise dos fluxos migratórios Lundas e adoção do “Kilombo”. 46 pacificação e conservação das boas relações com os povos locais. Segundo suas pesquisas, habitavam na região no início do século XX os seguintes grupos: Bihenos, Bailundos, Andulos, Quimbandes, Cachingues, Luimbes, Luelas, Luenas, Capocos, Quiocos, Luchasses, Lobales, Bundas, Canhocas (sendo estes últimos doze designados genericamente por Ganguellas), Dondes, Momas, Sambos, Huambos, Quipeios, Quibandas, Quibullas, Soques, Galangues, Gaandas, Ecumbiras, Lendes, Quiacas, Quimdumbos, Galiatenas, Quissanges, Selles, Caialas, Hanhas (de Catumbella), Hanhas (de Benguella), Gandas, Quingolos, Chicumas, Quequetes, Goas, Caluquembes, Cacondas, Luceques, Fendes, Nhembas, Dongos, Chicungos, Chicarapiras, Mussidos, Catocos, Mundombes, Mucuandos, Bacuisses, Quillengues, etc.57 Estes povos, segundo o autor, se originavam do cruzamento de três raças, a saber, os Bantu, Congolezes e Hottentotes, prevalecendo a primeira.58 Contudo, as mesmas estavam distribuídas por todo o território de Angola: ao norte prevaleciam os “congolezes” (distritos de Congo e Loanda), ao sul e sudeste os Bantu (a partir de Benguela e Mossâmedes) e no centro, uma mistura das três raças. 59 No decorrer da sua descrição, Bastos, a partir de concepções eurocêntricas, dividia povos entre aqueles de “primitiva” ou “boa índole”. Entre os que eram considerados de pior índole, segundo o autor, estavam os Selles, Gangalas, Caialas, Quissanges, Quibulas, Quibandas, Quiacas e Ganguellas. A estes, o autor atribuía a alcunha de “traidores, traiçoeiros e assassinos”. Aqueles considerados de “boa índole” seriam os Biénos, Cacondas e os povos vizinhos a estes últimos, que eram os Uilengues, Mundombes e Mucuandos. 60 Certamente, o critério utilizado pelo autor, para medir essas diferentes populações, era a intensidade das relações comerciais desenvolvidas. Interessante é observar a descrição dos “Quicos” por Bastos, que tece numerosos elogios aos mesmos, destacando a capacidade organizativa e a transformação causada pela adoção de vida “sedentária”, que lhes tirou da vida de roubo: 57 BASTOS, Augusto. Traços Gerais sobre a Ethnographia do Districto de Benguella. Lisboa: Composição e Impressão na Typographia Universal, 1909, pp. 12-13. 58 A utilização do termo “raça” na obra do autor deve ser compreendia à luz da temporalidade na qual estava inserida, entre final do século XIX e início do XX. Augusto Bastos, embora tenha nascido em Benguela, estudou em Lisboa, local em que passou a se familiarizar com categorias analíticas recorrentes do período. Após a morte do seu pai, retornou à cidade e exerceu várias atividades, entre elas o cargo de escrivão da Admnistração do Conselho de Catumbela e a presidência da Câmara municipal da cidade, além de ser membro da “liga angolana”, associação formada por africanos para ajuda mútua, que mantinha boas relações com a administração colonial. Acerca da biobrafia de Augusto Bastos, ver LEMOS, Alberto de. “Augusto Bastos”, Nótulas históricas, Luanda, 1969. Para uma leitura das associações africanas em Angola, ver OLIVEIRA, Marcelo Santana. Liga Angolana e Grêmio africano em perspectiva comparativa. Revista Eletrônica Boletim do Tempo, Ano 4, Nº 35, 2009. 59 BASTOS, Op.. Cit., p. 13. 60 Ibidem, p. 15. 47 Os Quiocos, cujo nome indígena é Chivokue, representam uma raça particular dos Ganguellas que se tem ramificado e assentado núcleos nos districtos de Loanda, Benguela e Mossamedes. Este povo primitivamente nómada, é audaz, aventureiro, intelligente e laborioso. Tem o gênio de conquista e do predomínio, e aonde chega, cria núcleos, não se deixando mais arrancar d’alli. Apodera-se do território, trabalha, impõe as suas eis, usos e costumes, e assimila os outros povos não se curvando a nenhum outro. É guerreiro, emprehendedor e altivo; e physica e intellectualmente é a melhor e mais forte raça do districto. A sua organisação política, nõa é tão perfeita como as do gentio do Nano e outros; têm, porém, um soba importante a quem obedecem. Não consentem que elle faça injustiças exorbitando do poder de que está investido. Quando nómadas exerciam o roubo. Hoje trabalham e bastante; a mais pequena cousa, porém, que se lhes faça, é pretexto para represálias.61 A descrição de Bastos, embora seja datada no início do século XX, 62 nos fornece numerosos detalhes da organização política entre os diferentes povos que habitavam a região de Benguela. O autor descreve a organização política a partir da hierarquia de “Estados” e “Sub-estados”,63 sobas e sobetas, existente há séculos: A organisação política de todos estes povos é por estados e sub-estados ou estados subordinados, sendo os primeiros governados pelo sobas e os segundos pelos sobetas. Estes são subordinados àqueles; e, por sua morte, quando não há herdeiro ao throno, o novo sobeta sahe do grande sobado, nomeado pelo soba entre os grandes do seu estado. Nas resoluções das grandes questões entre diversos estados, os sobetas têm de ouvir o parecer do soba ao qual estão subordinados, e que quase sempre seguem. Assim os estados de Quissange, Quindumbo, etc., são subordinados ao de Quiaca. Em caso de desacordo entre os pareceres dos sobas e dos sobetas, estes, quando se sentem fortes, desrespeitam o parecer d’aqueles e revoltam-se do que resulta a guerra. Se os sobetas vencem, deixa de existir a subordinaão, tornando-se independentes. Estes casos tém-se repetido de século para século, desligando-se cada vez mais os estados uns dos outros, desmebrando-se tal organisacao política a ponto de se encontrar hoje apenas em poucas regiões, sendo na maior parte independentes uns dos outros.64 Bastos segue a sua descrição com uma análise do processo de sucessão e nomeação de sobas na região, preferencialmente via hereditária, de modo que a sucessão do soba seguia a 61 Ibidem, p. 16. E por conseguinte reflita a sua própria posição social, uma vez que este ao longo da vida ocupou cargos próximos à administração colonial. 63 Vale chamar a atenção sobre o ponto de vista ocidental de Bastos, principalmente no que diz respeito ao modelo ideal de organização política - o “Estado” -, que acabava por ser determinante para interpretação dos povos africanos que havia entrado em contato, de modo que na medida que se distanciassem do padrão conhecido pelo autor, seria progressivamente “sub-estado”. 64 Ibidem, p. 18. 62 48 seguinte ordem: filho, sobrinho, irmão ou outro parente. De acordo com o autor, os habitantes do sertão de Benguela (ou Distrito) nunca buscariam um chefe estranho à família do soba deposto ou morto, exceto em casos de pequenas tribos em que não havia hereditariedade. Em caso de insubordinação de um “sobeta”, o soba, para substituir-lhe, cortava a sua hereditariedade. 65 Dentro desse quadro descrito pelo autor, a autoridade do soba era absoluta, apesar da existência de um “Conselho”. Decretavam leis ao seu bel prazer, sem aqueles que pudessem lhe opor vontade. O autor, por exemplo, descreve um caso de uma punição rigorosa aplicada por um soba a um súdito que cometera adultério a uma concubina real, em Catumbela: Vimos uma occasião na Catumbella, já há annos, um exemplo vivo d’um castigo mandado applicar por um soba a um súbdito que tivera o atrevimento de commetter o crime de adultério com uma das concubinas reaes. O soba mandou amputar ao criminoso, não só o penis, como as mãos, os pés, as orelhas e o nariz, e procedeu ao curativo d’essas horríveis mutilações. O criminoso ficou curado, mas ficou representando um exemplo terrível. 66 Segundo o autor, os sobas possuíam direito de vida ou de morte sobre os seus súditos, sendo o crime punido ou com a morte, se assim sentenciasse o Chefe, ou com a escravidão: “(...) Pagava com a vida ou com a liberdade quem cahisse no desagrado do chefe”. 67 Ainda sobre a organização política dos povos que habitavam a região de Benguela, de acordo com a descrição de Bastos, vale mencionar que tanto os sobas como os sobetas eram assistidos por um “Conselho de Estado” (óchidúri) e por “Dignatários da corte” (Vákuerobe). Os primeiros, eram membros vitalícios e imóveis. Caso cometessem algum delito, poderiam ser punidos, mas nunca perderiam o seu lugar, que era transmito de pais para filhos. Os segundos, ao contrário, eram provisórios, nomeados e passíveis de demissão pelo soba ou sobeta. Estes últimos eram escolhidos entre pessoas livres e formavam um gabinete com ministros e um presidente. 68 Em todo caso, vale ressaltar que tanto os Conselheiros, quanto os Dignatários, seriam autoridades respeitadas pelo povo e o próprio soba, que na maior parte das vezes, salienta Bastos, seguia o parecer dos mesmos. A despeito das transformações constantes que resultaram nessa complexa estrutura política e hierárquica verificada por Bastos no início do século XX nos povos que habitavam a região de Benguela, vale ressaltar que a mesma pode ter se originado a partir do encontro de 65 Ibidem, p. 22. Ibidem, p. 24. 67 Ibidem. 68 Segundo Bastos, havendo mudança de Soba, havia simultaneamente mudança de Dignatários. Ibidem, p. 23. 66 49 Imbangalas e habitantes do planalto angolano; o que remonta às migrações Lundas do século XVI, lideradas por Kinguri, e, posteriormente, às migrações dos Imbangalas do norte para o sul do rio Cuanza, provocadas pelas instalações sucessivas de portugueses e conquista do Ndongo, a fim de garantir o suprimento de escravos demandados pelo Novo Mundo. 69 Após misturarem-se com as antigas populações dos planaltos, dariam origem a pequenos reinos independentes, contabilizados entre doze a cerca de vinte, sendo os mais representativos os potentados do Andulo, Bailundo, Bié, Chiyaka, Galangue e Huambo. 70 Nesse contexto, as pilhagens e assaltos às populações agrícolas e pastoris se constituíram como as características marcantes que se sobressaíram neste momento de chegada dos Imbangalas no planalto angolano. De acordo com Curto: Casando com linhagens locais importantes, integrando pessoas deslocadas pela guerra, seca e fome como escravos e clientes e garantindo segurança aos agricultores em relação a outros raziadores em troca de um tributo, os Imbangala, a pouco e pouco, reorganizaram o mapa político do planalto numa constelação de cerca de vinte e dois estados autônomos, que ficaram conhecidos como os reinos Ovimbundu (...).71 Essa reorganização do mapa político na região do planalto ainda assumira um caráter militarista, uma vez que os primeiros reis Imbangalas que chegaram na região impuseram uma direção militarista aos povos subjugados, com treino e disciplinas militares rígidas, o que provocou o surgimento de grandes unidades de guerreiros. Tal caráter militarista foi base para realização de saques periódicos nas sociedades do planalto e simultaneamente permitiu a adição de escravos e aumento do potencial de tributos. 72 De qualquer maneira, vale pontuar que entre os séculos XVI e XVIII, que era precisamente o momento de chegada e estabelecimento dos portugueses no sul de Angola, 73 a região passava por um profundo rearranjo político com a migração e estabelecimento dos povos Imbangalas no planalto.74 A chegada dos portugueses e penetração no interior 69 Sobre a migração dos Lundas liderados por Kinguri e posteriores sedições, ver MILLER, 1995, p. 152-157. Na seção 1.2.1 da presente tese, algumas notas sobre o tema. 70 LUANSI, Lukonde. Angola: Movimentos migratórios e estados precoloniais – identidade nacional e autonomia regional. In: International Symposium Angola on the move: transport routes, communication and history, Berlin, 24-26 September 2003. Disponível em < http://www.zmo.de/angola/papers/Luansi_(29-0304).pdf> . Acesso no dia 14 de maio de 2014. 71 CURTO, José. Álcool e Escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental. Tradução de Márcia Lameirinhas. Lisboa: Editora Vulgata, 2002, p. 271. 72 De acordo com Curto, as referidas incursões que eram realizadas com o objetivo de aquisição de escravos, tão logo se tornariam características marcantes dos reinos Ovimbundus em vias de criação. Ibidem, p. 271. 73 Dois momentos são significativos para pensarmos tal processo: a fundação da cidade de Benguela, em 1617, e a edificação do Presídio de Caconda, na década de 1680. 74 Ibidem. 50 provocaria não somente novas migrações,75 mas uma nova configuração política no planalto, integrando aqueles povos à economia atlântica, sobretudo, pelo comércio de escravos. Esse processo de penetração do território ovimbundu é lento e gradual. Inicialmente, a presença portuguesa se restringe à “Baía das Vacas” e mantém números de exportação de cativos relativamente modestos. 76 Com o recurso às guerras, a quantidade passaria a se alargar entre 1627 e 1629, quando haviam sido capturados cerca de 1000 cativos e 6 a 7 mil cabeças de gado e carneiros. As décadas de 1630 e 1640 presenciam a expansão das operações de captura para os arredores de Benguela, para área dos Ovimbundus Kilengues, junto às margens do rio Kuropolo. Em 1650, os saques lusitanos se voltam para área de Bemba, que estava localizada em volta do rio Katumbela superior; e, nas décadas seguintes, até a altura dos anos 1720, as expansões prosseguiriam progressivamente ao leste, com a invasão de novas terras e ampliação da produção de escravos, que paulatinamente atingia números mais elevados (ver Mapa 4). Em palavras de Curto: (...) na década de 1650, começaram a saquear a área de Bemba em volta do rio Katumbela superior. De forma a levar as incursões ainda mais para leste, foi erigido um forte, no início da década de 1680, a uma distância de quatro a cinco dias de caminho de Benguela, mesmo no centro do corredor Katumbela-Kuporolo, na terra dos Hanya. De Caconda, como era designada esta base, as incursões dos portugueses e luso-africanos, com vista a produzir escravos, alcançaram no final do século XVII Kitata, na sua margem sudoeste, e Huambo, no coração do Planalto e, a partir daí, o rio Kunene superior, a sul da escarpa, em finais da década de 1710 e início da de 1720. 77 A partir da fundação do Presídio de Caconda, acontece uma mudança na estratégia de penetração do território Ovimbundu e na produção de escravos: se antes a maneira essencial de obtenção de cativos era a promoção de “guerras”; a partir de Caconda, as táticas de alianças e atividades comerciais passariam, progressivamente, a substituir as guerras diretas travadas entre portugueses e populações locais.78 Todavia, não se deve perder de vista dois fatores: em função da política de alianças, as guerras para produção de cativos também seriam realizadas por sobas da região e, por conseguinte, o recurso às táticas militares nunca deixou de ser uma possibilidade aos portugueses, principalmente quando estava em jogo a segurança das atividades comerciais. 75 Como observa Mariana Candido (2006), ao refletir sobre o perfil da população que habitou Benguela no final do século XVIII, sendo grande parte refugiada das guerras e incursões que aconteciam nos sertões. 76 Em 1619 a captura de escravos havia atingido a quantia de 350. Ibidem. 77 Ibidem, p. 270. 78 Ibidem, p. 270 51 Embora publicada já na metade do século XIX, a obra intitulada “Quarenta e cinco dias em Angola”, escrita por um autor anônimo, ilustra com grande clareza a recorrência e constância dos conflitos travados por sobas entre os reinos de Angola e Benguela, mesmo em contexto pós-abolicionista do comércio de escravos.79 Apesar da proibição do comércio intercontinental de escravos, naquela altura, sobas locais continuavam em situação de guerra para o apresamento de escravos. Caso não conseguissem compradores para os capturados, relata o autor anônimo, então era ordenado aos súditos por “medida econômica” que se lhes cortassem as cabeças. Em palavras do autor: (...) Ora como nem sempre há compradores, acontece algumas vezes que os vencedores se vêem obrigados a conservar em seu poder, e sustentar os prisioneiros; e não lhes agradando este ônus, se por desgraça a ausência dos compradores se prolonga mais que o costume, o Sóba determina que, como medida econômica, se corte a cabeça aos prisioneiros!80 Não podemos perder de vista que o fato de se declarar a todo o instante como “antiabolicionista” pode ter contribuído para um possível exagero no episódio narrado. Ao longo de todo o livro, o mesmo questiona a liberdade concedida aos negros e a declaração do fim da escravidão, expondo as suas contradições, como podemos observar no trecho a seguir: É nas margens do Zaire que actualmente mais se trafica em escravatura, e muitas das feitorias, par anão dizer todas, de que acima fallei, não são mais do que capas que acobertam, ou dependem d’esse gênero de commercio, que as convenções propostas pela humana Inglaterra, e acceites pelo ingênuo Portugal tiveram a habilidade de tornar o mais lucrativo de toda a costa. Apesar do apparato das estações navaes, e dos nomeados cruzeiros, a escravatura continua, e há de sempre existir, já porque os lucros são enormes e convidam, já porque o vapor empregado no transporte dos negros apresenta um carregamento com menos despeza na Havana, fugindo rapidamente a qualquer navio que por acaso appareça na occasião da sahida (...) 81 O nosso autor ainda continua abordando os pormenores do destino e contradições da continuidade da produção de cativos, comercializados clandestinamente no pós-abolição82: 79 No prefácio do livro o autor justifica o anonimato sob o argumento de que não desejava que os seus argumentos apresentados ao longo da obra pudessem ser desqualificados com a alcunha de “vaidade’, ao revelar sua identidade. 80 Anônimo, “Quarenta e cinco dias em Angola: apontamentos de viagem. Porto: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1862. 81 Ibidem, pp.6-7. 82 Vale salientar que o processo que culminou na abolição da escravatura na década de 1830 nas possessões portuguesas, é cadenciado por numerosos fatores, que reúnem diferentes personagens e conjunturas econômicas e políticas, a começar pela ilegalização do comércio de escravos na Inglaterra em 1807, que acabou por direcionar a Grã-Bretanha à interferência junto a nações estrangeiras, ante à redução da influência dos interesses 52 A fiscalização por parte da estação naval, a maior parte do tempo é feita por um palhabote, commandado por um segundo tenente, ou por um guardamarinha, e tripulado por um patrão de dez a doze marinheiros; percorrem as feitorias, visitam as barcas e navios que saem dos portos suspeitos, e quando descobrem alguns pretos retidos para embarcar, ou que tenta levar para fora escondidos entre lenha e outros gêneros, fazem a apprehensão, e condjuzemos para Loanda, onde são recolhidos no antigo convento ou collegio dos jesuítas, vulgarmente conhecido pelo pomposo titulo de – Obras Publicas (...).83 A reflexão do autor segue recomendando o envio destes cativos presos em Loango para a Ilha de São Tomé e Príncipe, por acreditar que poderiam ser mais úteis nas colheitas de café. Segundo o mesmo, os negros não eram dignos da liberdade que haviam recebido e, igualmente, não era correto o estado português não se valer da mão-de-obra africana, por numerosas razões: (...) Não é certo n’um paiz onde há falta de braços e onde o preto é por natureza o único entre próprio para o trabalho, porque elle só resiste ás fadigas e á influencia de um clima que nos é tão prejudicial, que se lhe deveria ter concedido a liberdade de que não é digno. O abuso que elles fazem d’essa liberdade veio crear não poucos embaraços e difficuldades ao commercio d’aquella Provincia (...). 84 mercantis baseados no açúcar das Antilhas e avanços da Revolução Industrial, que remetiam ao final do século XVIII, analogamente a avanços de campanhas humanitárias contra o tráfico de escravos. Tal ilegalização surtiu os primeiros efeitos junto nos domínios portugueses, quando em 1810 fora assinado um primeiro tratado, bilateral entre a Grã-Bretanha e Portugal, que além de prometer a extinção futura do comércio escravista, restringia a atuação portuguesa à Costa da Mina e demais possessões portuguesas. Adiante, em 1815, Portugal assina a Convenção de Viena que tornava ilegal o comércio de escravos acima da Linha do Equador e, em 1817, ratifica nova convenção que dava direito à marinha inglesa de inspecionar navios portugueses de exportarem africanos de regiões proibidas. Na década de 1820, em face do desmantelamento do Império português e independência brasileira, as pressões inglesas passam a se concentrar junto ao Rio de Janeiro – que naquela altura já exercia a hegemonia do comércio escravista- e culminam na assinatura de um tratado em 1826, que proibia o comércio de escravos no Brasil e entraria em vigor a partir de 1830. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha continuava a pressionar a abolição em possessões portuguesas na África e, finalmente, em 10 de dezembro de 1836, num complexo jogo político que se dava face à pressão britânica e garantia da soberania portuguesa, Sá Bandeira apresentou no dia 10 de dezembro de 1836 um decreto que abolia a escravidão nas possessões portuguesas e projetava uma nova modalidade de colonização, centrada na exploração de recursos naturais e necessidade de industrialização. Portanto, ao mencionarmos o período “pós-abolição” acima, nos referimos à conjuntura subseqüente à promulgação do Decreto de 1836. Sobre a construção da legislação abolicionista portuguesa, ver ALEXANDRE, Valentim. “Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-1851)”. In: Análise Social, Vol. XXXVI (111), 1991 (2º Ed), 293-333; Acerca da abolição da escravatura na Inglaterra, ver ANSTEY, Roger. The Atlantic Slave Trade and Britsh Abolition, 1760-1810. London: Macmillan; Atlantic Highlands, 1975 e ELTIS, David. “The Impact of abolition on the Slave Trade”. In: The Abolition of the atlantic slave trade. Madison: University of the Wisconsin Press, 1981; Sobre a pressão inglesa junto ao Império brasileiro para abolição da escravatura, ver BETHELL, Leslie. The Abolition of the brazilian slave trade: Britain, Brazil and Slave trade question, 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. 83 84 Ibidem, p. 8. Ibidem, p. 9. 53 É preciso salientar que a descrição deste autor anônimo, além de revelar uma profunda frustração do setor relacionado ao comércio no mundo lusitano, demonstrava o mundo português e africano integrado em torno da empresa escravista – o mundo lusitano ainda estava intrinsecamente dependente da mão-de-obra escrava, como sobas, que ainda assumiam a função direta de produção de escravos por meio de incursões militares, ou no envio de “intermediários” para áreas ainda não congregadas ao comércio de cativos. A carta escrita por João Alvares de Mello no final do século XVIII, publicada por Felner, ilustra essa penetração e envio constante de “intermediários” aos sertões em busca de melhores ofertas de cativos, por preços mais razoáveis: “(...) Sabendo eu, que nesta Cidade estava hum homem muito pratico dos sertoens de Benguella chamado Joaquim Jozé da Silva Guimaraens, logo o mandei chamar para o ouvir sobre o que dezejava conhecer. Este homem me disse, que as terras mais distantes em que tinha estado erao as do Souvas Cataco Banze, e HOribamba, que são as ultimas, a onde, para aquellas partes, costumão hir os negociantes portugueses; e segundo a conta, que me deo poderão distar 70 até 80 legoas de Caconda. Aseverou-me mais, que da hy para diante somente podião os nossos negociadores hir mais dous, ou três dias de viagem, a humas terras, que são de huns parentes do dito Horibabe, nas vezinhanças de hum Rio chamado Cutato. Que deste Sitio para o interior do Sertão já não podião passar se não alguns Pretos disfarçados nos tajes da terra, até o Souvado do Potentado Quiseta, hum mez de viagem do dito Sitio de Banze; e que alguns ainda passavão a outras terras, a que dão o nome de Zambuellas grandes, que distão do referido Sitio dous mezes de viagem; aonde os escravos erão muito baratos; mas que as terras erão esteris, porque apenas produzião algum pouco milho, massango, e humas frutas chamadas mabocas, de que se mantinhão os pretos e de alguma carne” 85 Vários fatores chamam a atenção no relato, a começar pela expansão de Caconda, na direção a sudeste, junto ao rio Cutato,86 onde habitavam parentes do soba Horibabe. Deste 85 FELNER, Alfredo de Albuquerque. Angola: apontamentos sobre a colonização dos planaltos e litoral do sul de Angola. Divisão e Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colônias, 1940, p. 240. Acerca da instituição que publicou a obra de Alfredo Felner, a Agência Geral das Colônias, valem algumas notas. Em primeiro lugar, a mesma, criada em 30 de setembro de 1924, assumia como principal meta preencher a falta de informação e divulgação sobre as colônias portuguesas naquela altura. Em segundo lugar, tal instituição, pela sua própria natureza publicitária, assumia importante função comercial, na tarefa de apresentar ao mundo novos “eldorados” junto às possessões ultramarinas portuguesas. Assim, se organizaram brochuras, conferências, congressos, documentários, exposições, feiras e, principalmente, a publicação de livros como o de Felner, que nos documentos publicados em seu interior, ilustravam o potencial de Angola e os pormenores da sua “conquista”. Sobre o papel da Agência Geral da Colônia, para construção do “Outro”, a partir de concepções coloniais ver SOUSA, Sandra I. Ficcções do Outro: Império, raça e subjetividade no Moçambique colonial. Lisboa: CLEPUL, 2014; ver também a tese de doutoramento de GARCIA, José Luís Lima. Ideologia e propaganda colonial no Estado Novo: da Agência Geral das Colônias à Agência Geral do Ultramar (1924-1974). Coimbra: Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2011, pp. 119-120. 86 O rio Cutato está localizado a sudeste de Huambo e Bié, com as seguintes coordenadas: latitude, em graus, minutos e segundos de 14º 38’ 00’’ S; longitude, em graus, minutos e segundos de 16º 30’ 00’’ E. Disponível em < http://www.geographic.org/geographic_names/name.php?uni=-4006300&fid=314&c=angola >. Acesso em 19 de maio de 2014. 54 sítio em diante, a penetração ao interior não poderia se fazer sem a conivência dos sobas locais – o que obrigava aos “intermediários” a utilização de trajes dos povos da região para conseguirem passar desapercebidos. Por fim, vale chamar a atenção para o tempo de viagem – dois longos meses – e a busca de novos cativos, que, segundo Joaquim Jozé, o informante, poderiam ser adquiridos por preços mais razoáveis, já que o resultado da produção agrícola daquelas terras era decadente – o que corrobora com a tese de que os sobas locais poderiam ver a comercialização de cativos como uma possibilidade de garantir a sobrevivência dos seus súditos pela troca de cativos por bens e mantimentos. 87 Em todo caso, a narrativa da penetração portuguesa em terras Ovimbundus, desde o início do século XVII, via militar ou política de alianças, também pode ser encontrada numa carta escrita pelo governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, de 4 de agosto de 1770, na qual menciona o nome dos povos conquistados, tanto em seu tempo (1764 a 1772) como desde o “descobrimento”, referente aos sertões de Benguela e Caconda: Provincias conquistadas, e avassaladas no tempo do governo do Ilmo. Exmo. Snr. D. Francisco Innocencio de Sousa Coutinho, 13, a saber: Capeyo – Caioco – Galangui – Biyé (a maior povoação que há, presentemente se mandou povoar de brancos) – Biris – Cutatu (que presentemente se mandou povoar de brancos_ - Capango – A La Grande – Quipeyo – Galanga grande (que presentemente se mandou povoar de brancos) – Ivangando (que presentemente se mandou povoar de brancos) – Casenge – Gunza Cabolo (...). Provinciais conquistas, e avassaladas desde o tempo do descobrimento e nos governos de vários Exmo. Governadores, 36, a saber: Cambuinda – Cambimbe – Mipua – Quipia Pirua – Socoval – Huyla (...) Quipungo (idem) – Luceue – Mosanjeracata – Fendi – Catala (sitio de muita agricultura d’onde se deve fundar o Presídio de Caconda) – Quitata – Quingolo – Candumbo – Anzamba – Balundo – Quiombela – Tinde – Quibonga – sete sovas que dão filhos para o serviço das obras reaes do Prezo.88 Essa sequência, informada por Francisco Inocêncio, assim como as demais evidências trabalhadas anteriormente, vem a contribuir, com a progressiva expansão ao leste e sul, com o enfrentamento de potentados Ovimbundus, para a subseqüente construção de alianças cujo objetivo seria o fornecimento de cativos; com destaque ao Bié, que, no final do século XVIII, constituiria a maior região fornecedora de cativos. 87 88 Ver seção 2.3. desta tese. Francisco Inocência de Sousa Coutinho, Documento Nº 9. In: Ibidem, p. 187. 55 Em suma, percorremos as minúcias da expansão portuguesa junto às terras Ovimbundus, para produção de cativos ao longo dos séculos XVII e XVIII, abastecedoras dos mercados brasileiros que demandavam cativos em função das descobertas auríferas no período, o que incluía as minas do Cuiabá e Mato Grosso; em seguida, são necessárias algumas notas acerca dos Imbangalas, estes povos que, como vimos anteriormente, migraram para o Planalto central de Angola e provocaram um novo arranjo político no centro e sul da Angola, especialmente, no que ficou conhecido como hinterland de Benguela.89 1.2. A percepção ocidental dos Jagas-Imbangalas: da chegada dos “ávidos devoradores de carne humana” às guerras justas Descritos pela literatura ocidental como antropófagos absolutos, opressores dos africanos, expulsos do espaço concedido aos seres humanos, os Jagas-Imbangalas, ao serem caracterizados como sub-humanos, seriam a própria justificativa para realização das guerras justas e produção de escravos no território angolano, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Relatos como o de Cavazzi, datado do século XVII, permitem visualizar parte desta perspectiva: É uma gente de cuja boca sai continuamente a mentira e a falsidade, sempre dada ao roubo e a qualquer crime. É um povo sempre sedento de sangue e de carnificina, ávido devorador de carne humana, feroz contra as feras, cruel para com os inimigos e até contra os próprios filhos. Numa palavra: parece animado por sentimentos tão maus que o Inferno nunca vomitou e tiranos que possam servir de comparação.90 Cadornega, que também escrevera no século XVII, assim como Cavazzi, discorreu sobre tais povos da mesma perspectiva,91 ao narrar a ajuda militar portuguesa ao rei do Congo, ante à invasão dos Jagas92: Alguns portuguezes que forão por via do porto de Pinda e Condado de Sonho do reino de Congo ajudarão aquelles reys em suas Conquistas e a defendelos de alguns exércitos de Jagas que descerão da Serra Leoa a infestar aquelle em cuja defensa se mostrarão e assinalarão aquelles Portuguezes valerozamente defendendo o dito Rey de tamanhas opressoens alcançando muitas victorias dos ditos Jagas, e mais gentio inimigo daquella 89 Ver nota 26. CAVAZZI, Op. Cit., p. 175. 91 Além de compartilhar a tese de que os Jagas-Imbangalas se originariam de fluxos migratórios da região de Serra Leoa. 92 Dois pontos a se considerar:autor segue a mesma tese de Cavazzi e leia-se “Jagas”, nesse momento, como Imbangala. 90 56 coroa, que alem de serem mais destros soldados e exercitados nas armas serão mais tímidos pello uso qe professavao em comerem carne humana que era o seu mais regalado sustento, de que ainda tem por costume os que dah procedem, de que He composto o quilombo da Raynha Ginga e de Cabucu e o quilombo de Casagi, potentado grande, que tem dominado pello Sertão dentro muitas Provincias e Naçoens de diversas línguas com quem fazem os Portuguezes restate de peças que servem de utilidade ao comercio, e muito mais ao serviço de Deos, e bem daquellas Almas;porque com estes resgates se evitão a não haver tantos açougues de carne humana, e instruídos na fé de nosso Senhor Jesus Christo hindo bautizados e catequizados se embarcão para as partes do Brasil ou para outras que tem uso Catholico tirados da gentilidade e redimindo-lhes as vidas com que se faz serviço a Deos e bem ao Commercio. 93 O relato de Cadornega se faz importante por confirmar e reproduzir o espanto com a antropofagia entre os Jagas-Imbangalas, já observado em Cavazzi. Contudo, além disso, torna-se relevante, também, por expressar a perspectiva do europeu de que, apesar dos ditos costumes que tanto lhe espantavam, por meio do “batismo” na fé cristã, esses indivíduos poderiam ter utilidade, sobretudo, quando se transformavam em escravos – batizar o cativo no cristianismo, pelo que dispõe o relato de Cadornega, era útil até mesmo para o “comércio”. Em todo caso, na seção que se segue, inicialmente, apresentamos um histórico que intenta dar conta da chegada dos Jagas e Imbangalas ao território angolano, baseado em relatos orais; ao passo que, em um segundo momento, expomos o debate acerca da polêmica diferenciação, fusão e expansão de tais povos. Na sequência, algumas notas sobre a atuação Nzinga, por entendermos a sua relevante participação no cenário de expansão portuguesa na África Central à luz da crescente demanda de cativos no Brasil. E, por fim, uma seção dedicada ao kilombo, instituição que fora resultado de intensas trocas de diferentes povos que habitavam o planalto central de Angola, como os que migraram para a região, assimilada pela mesma rainha Nzinga. 1.2.1. A chegada: relatos orais e produção historiográfica A reconstituição histórica dos Jagas e Imbangalas, desde a década de 1960, tem mobilizado numerosos historiadores e tem sido objeto de grandes controvérsias. Se, por um lado, temos aqueles que afirmam que os Jagas teriam existido apenas na imaginação dos portugueses, por outro lado, há um conjunto de publicações que, a partir do entrecruzamento de fontes orais, descrições etnográficas e relatos diversos, têm apresentado origens diferenciadas para ambos os povos, que na altura do século XVII teriam se assimilado. 93 CADORNEGA, Op. Cit., p. 13-14. 57 Entre aqueles que defendem a inexistência dos Jagas e, por conseguinte, a sua abolição do espaço da história africana, destaca-se Joseph Miller. Em seu artigo intitulado “Réquiem for the Jaga”, afirma que tais povos só tiveram existência na imaginação dos missionários e traficantes de escravos, sendo as suas descrições dotadas de estereótipos, confusões geográficas e étnicas. O autor advoga pela consideração da hipótese de que a presença dos Jagas, tidos como antropófagos – principal tom dos relatos de Cavazzi, por exemplo –, fora parte da própria justificativa utilizada para as intervenções portuguesas na região, quer seja pelo recurso à escravatura ou mesmo pela destruição física. 94 Isabel Castro Henriques é uma das autoras que apresenta uma discordância quanto à posição de Miller. Segundo a autora, a sustentação da mesma, a despeito da auto-identificação dos próprios africanos já na altura do século XVII com o termo “Jaga”, é prejudicial para se compreender as relações entre portugueses e africanos. Pelas descrições do período, como a de Cavazzi, é perceptível o papel dos Jagas, como africanos recrutados por portugueses ou, ao contrário, como angolanos que se apresentam a portugueses oferecendo os seus serviços, na condição de Jaga. Mesmo que não dispusessem de unidade étnica e estrutura política homogênea, é inegável o fato de populações angolanas aceitarem ser designadas enquanto tal, como se auto-definirem.95 John Thornton também se opôs à tese da inexistência dos Jagas, defendida por Miller, ao identificar tais povos com os Yaka do Vale do Niari, que teriam invadido o reino do Congo em 1568.96 O autor parte da própria proposta de Miller, de eliminação dos “Jagas” da história do Congo, descrevendo-a pormenorizadamente, e da releitura da narrativa de Filippo Pigafetta.97 Nesta última, os Yaka seriam um grupo de “guerreiros desenraizados”, sem moradia fixa, que teriam invadido o Congo em 1568, pelo Leste, entrando pela Província de Mbata e depois no Mbanza Kongo, saqueando a cidade e forçando a transferência do rei e sua corte para os domínios e proteção portuguesa. Posteriormente, Francisco Gouveia formou um grande contingente de soldados e conseguiu expulsar os invasores, forçando a sua migração, e acabou por restituir o reino do Congo. Em vista da semelhança grafia, possivelmente, estes grupos descritos como “Yaka” seriam os “Jaga”. A tese de Miller ainda seria contestada por esta releitura de Pigafetta. Na medida em que o primeiro afirmara que os invasores teriam se originado do Matamba ou Tyo, 94 Em Miller a designação “Jaga” aparece associada aos povos “Imbangalas”. Ibidem, p. 156. HENRIQUES, Op. Cit., p. 155; 192. 96 THORNTON, John. A ressurection for the Jaga. Cahiers d’etudes africaines, v. 18., n. 69, p. 223-227 97 Ver FIlippo Pigafetta, Relatione del regno di Congo ET delle Circonvince Contrade tratta dalli scritti e ragionamenti di Odarlo Lopez Portoghese (Rome, 1591), pp. 48-55; 58. 95 58 observando a narrativa do segundo, se tivesse vindo do Matamba, como afirma Miller, o grupo teria atravessado o Wandu e Wembo. Todavia, nenhum destes lugares faziam fronteira com o Mbata, a primeira região atingida pelos invasores. 98 Segundo Thornton, existem várias referências que comprovariam a atuação destes grupos ao norte do rio Zaire, na literatura referente ao Congo. Em todas, esses povos apareceriam como “hostis” e perigosos à nação. O autor menciona algumas: (a) a carta de Matheus Cardoso ao prefeito de Luanda, que informava que os Jagas haviam destruído os Vungus e eram originários do norte do rio Zaire; (b) os relatos do frei capuchinho Girolamo da Montesarchio, que trabalhou no Congo entre 1648 a 1688, e dava conta de invasões de povos intitulados “Aiacas” na região – após uma viagem realizada no sul da costa do Zaire o autor afirma ter encontrado populações armadas contra invasões dos Aiacas; 99 (c) a menção, na narrativa do frei Capuchinho Cavazzi, acerca das invasões da província congolesa Nsundi por povos “Yakas”; (d) e o ataque de Pedro III Nzudi a seu rival em 1673, na tentativa de restaurar o trono do Congo durante uma guerra civil que se deu na região, contando com a ajuda dos “ferozes” guerreiros “Majaca”;100 (e) cartas de Merolla, no final do século XVII, que descreveriam invasões na cidade de São Salvador (antiga capital do Reino do Congo), por tropa de Pedro III, que contavam com o auxílio de guerreiros Yakas, que seriam encarregados da venda de “carne humana” nos mercados da cidade – estas que eram compradas por portugueses, que usavam-nas não para alimentação, mas para venda; (f) relato do frei capuchinho em 1691, que vivia no Sonyo, uma província da costa do Congo, onde o rei que governava Mbula era descrito como um “chefe dos Jagas”. 101 Todas essas evidências, além de apontar para a existência real dos povos Jagas, ainda esclareceriam que os mesmos não seriam Imbangalas. Segundo Thornton, também não foram necessariamente hostis ou canibais, mas eram povos desenraizados que vagavam pela região. A designação de “Jaga”, antes de se ater a um grupo étnico em específico, fazia referência a um estilo de vida. Thornton ainda acrescentaria à confusão a respeito da designação Jaga, e confusão entre autores, a prática portuguesa de nomear todos os outros povos que encontravam na região com a designação que se valeram para nomear o primeiro que tiveram contato. Assim, 98 THORTON, Op. Cit., pp. 223-224. Ver Archivio Provinciale dei Cappuccini di Toscana, Girolama da Montesarchio, ‘Viaggio dal Gongho’ (1669), fols. 39-41. Apud THORNTON, Ibidem,p. 225 100 Cadornega também cita os “Majacas”, mas diferenciados dos “Jagas”. Seriam povos “ferozes” como os Jagas. THORNTON, Ibidem, p. 225. 101 Ver Archivio Provinciale dei Cappuccini di Toscana, BERNADI DE FIRENZE, Ragguagli, fol. 620. Apud THORNTON, Ibidem, p. 226. 99 59 povos não-Imbangalas e não-jagas poderiam ter recebido erroneamente tal designação, o que seria a principal fonte dos equívocos entre estudiosos do tema. 102 Anne Hilton, por sua vez, ao desenvolver uma reflexão sobre a história do Congo e os contextos em que os Jagas foram identificados, verificou o uso de quatro sentidos para a palavra, a saber: (1) o uso da palavra em sentido amplo, para designar o outro (aka) como estrangeiro; (2) Designava os povos que viviam ao norte do rio Zaire; 103 (3) identificava os Mbangala (Imbangalas), que eram bandos de militares sem linhagem que atuavam contra os povos mbundo do sul; (4) por fim, a palavra aparecia, segundo a autora, para identificar os povos Majacas, ao leste do Kongo dia Nlaza, conhecidos como ferozes – Cadornega, por exemplo, incluía os Majacas entre os povos Jagas. 104 A confusão entre Jagas e Imbangalas, como a imprecisão sobre a chegada destes povos à Angola, também se faz presente na grande narrativa de Cavazzi, que especulava duas possibilidades: (...) uma província qualquer do Muene-Muji, perto daquela maravilhosa nascente donde brotam os dois grandes rios Nilo e Zaire, como já disse. Esta opinião baseia-se no seu nome, que antigamente era Jacas ou Ngajacas. A segunda opinião supõe que estes povos são um bando de indomáveis salteadores habitantes daquela altíssima cadeia de montanhas situada perto do oceano Atlântico, mais oumenos a 10 graus de latitude ao norte da linha, chamada vulgarmente Serra Leoa. Esta segunda opinião parece mais verossímil, embora a primeira explique melhor as correrias feiras em ambas as Etiópias, oriental e ocidental. De facto, estes povos no passado chamavam-se Aiaca, e depois Nsidos, Njindos, Quibângalas, nomes equivalentes na sua língua. 105 Contudo, apesar da difícil precisão acerca das origens históricas de tais povos, vale mencionar o estudo de Jan Vansina. Ao propor uma investigação centrada, sobretudo, nas tradições orais dos povos Lundas, intercruzadas com relatos escritos entre os séculos XVII e XIX – como as publicações de Henrique de Carvalho, Rodrigues Neves, entre outros – , propõe uma cronologia que explicita os Jagas e Imbangalas como povos diferentes, que se hibridizaram durante o período estudado. Precisamente, no quadro apresentado pelo autor, os Jagas chegariam a Angola em 1569 d.C., após a invasão do Congo, e os Lundas, que depois se 102 Ibidem, p. 224. Sobre tal possibilidade, vale citar o documento publicado por Brásio, de meados do século XVII, que se tratava de uma correspondência entre o padre Girolamo de Montesarchio (o mesmo trabalhado por Thornton) e o padre Boaventura da Sorento, sobre povos ferozes que comiam “carne humana” e eram chamados de “Giacas”. “Padre Girolamo da Montesarchio para padre Boaventura da Sorrento, 23 de março de 1650, Nsevo, Nsundi. In Brasio, Vol. VII, p. 486. 104 HILTON, Anne. “The Jaga reconsidered”. The Journal of African history, Vol. 22, n.2 (1981), pp. 191-202. 105 Ibidem, p. 194. 103 60 metamorfoseariam em Imbangalas, haveriam chegado em 1600 d.C. Enquanto a migração dos povos Jagas se caracterizava de maneira predatória e conquistadora, a realizada pelos Lundas se dividira em numerosas submigrações, algumas lideradas pelo personagem histórico chamado Kinguri – que, alguns anos após ter se instalado em Angola, encontrara-se com portugueses. O militar Rodrigues Neves, já em meados do século XIX, baseado na tradição oral coletada entre os povos Imbangalas, nos permite vislumbrar tal personagem. Segundo Neves, Kinguri vivia numa região chamada “Nyana”, pertecente ao governo de Mwatyavvua, do qual era filho do rei. Por sua pretensão de ocupar mais terras e a oposição de sua irmã, Kinguri se viu obrigado a se mudar, arrastando consigo numerosos macotas. Por brutalizar excessivamente os seus súditos, foi expulso das terras Lundas e passou a se instalar nas nascentes dos rios Pulo e Lacombo, em terras Quiocas. Não satisfeito com suas terras, passa a enviar caçadores à busca de novas terras e durante uma expedição, os mesmos passam a ter conhecimento da chegada de homens brancos a “Cazanga” (Luanda), que possuíam, entre os seus bens, armas e pólvora. Kinguri, então, decide partir ao encontro dos brancos. Após alguns anos, tendo-se estabelecido na região próxima a Kasanje, e pela continuidade do “comportamento cruel”, foi objeto de uma emboscada arquitetada por Sungwe-a-Mboluma com macotas. Diante de sua morte, procedeu-se à eleição para escolha de um novo chefe e foi escolhido o seu sobrinho, Kasanje Ka Kulanshingu. 106 É relevante mencionar que o conflito de Kinguri e a irmã, de acordo com as tradições orais, começara com a sua insatisfação em relação ao casamento dela, Lweji, com o caçador luba Tsibinda Ilunga, que se aventurava pelos territórios controlados pelos Bundos. Baseada nas descrições de Henrique Carvalho, Isabel Castro Henriques descreve tal episódio desde a chegada de Tsibinda Ilunga ao território dos Lundo até a migração de Kinguri para a região do rio Cuanza: (...) um dia, um jovem caçador luba, Tsibinda Ilunga, que pertencia à linhagem real, afastou-se do seu grupo, indo dar ao território então controlado pelos Bungos. Aí encontrou, perto do rio Calaanhi, uma rapariga, Lweji, acompanhada pela sua comitiva. A tradição hesita afirmar qual dos dois se apaixonou primeiro. Podemos economizar efusões, concluídas pelo casamento. Esta união provocou vários resultados: o caçador luba assegura a transição das técnicas líticas para as da metarlugia, tal como introduz as maneiras de corte, que impõem a modernização dos rituais e das relações entre as diferentes autoridades do Estado. Enfim, ao aceitar das mãos de 106 Apud HENRIQUES, Ibidem, pp. 197-198; 191; sobre a designação “Kasanje” a partir de Kasanje Ka Kulanshingu, ver MILLER, 1976, pp. 185-186. 61 Lweji o lukano, pulseira tecida com veias humanas, usada pelo chefe supremo, ele assegura a passagem de um estado matrilinear para a patrilinearidade, que caracterizava já o poder luba. Esta operação provocou a cólera de vários parentes de Lweji – irmãos, tios e tias – o que determinou algumas partidas, que desepenham um papel fundamental na dispersão dos Lundas e dos lundaizados. Kinguri (...) foi o primeiro a partir para o oeste até à região do Kwanza em busca das minas de sal e também, provavelmente, à procura de portugueses, que acabou por encontrar nos princípios do século XVII. A tia de Lweji, Anguina Kambanda, teria partido para sul em companhia de Anduma-ua-Tembue, Andubam e Quiniama (...).107 Precisamente, o momento em que estes povos Lundas, que migravam do Nordeste, se converteram à denominação “Imbangalas” ocorreu quando macotas adotaram a instituição ovimbundu “kilombo”, para deposição do chefe Kinguri.108 Sucedeu, então, o seu próprio neto, chamado “Kasanje de Kulashingu”. Este acabou por dar o próprio nome ao seu potentado, passando a se chamar “Jaga de Kasanje”, o que sugere a miscigenação dos Jagas aos Lundas ao longo desse processo histórico. Jan Vansina apresenta duas hipóteses para se pensar essa hibridação dos Jagas aos Lundas: a primeira, de que possivelmente “Kasanje” já fosse jaga e, portanto, teria se filiado num momento posterior; a segunda, de que no início do século XVII os Jagas e Lundas se sentiam parte da mesma cultura. 109 O aparecimento freqüente das palavras Kasanje, Kuluashingo ou Kinguri na narrativa do próprio Cavazzi, tem apontado para tal difusão entre esses dois povos. 107 Ibidem, p. 157. Na última seção deste capítulo, analisamos o quilombo enquanto instituição transcultural adotada por Lundas. 109 Ver VANSINA, More on the invasions of Kongo and Angola by the Jaga and the Lunda. The Journal of African History, Vol. 7, No. 3 (1966), pp. 421-429; VANSINA, Jan. How Societies are Born: governance in West central Africa before 1600. Virginia: University of Virgina Press, 2004. 108 62 Fig.1 – Tsibinda Ilunga Fonte: Museu Etnográfico da Sociedade de Geografia de Lisboa. A tradição recolhida por Henrique de Carvalho, por sua feita, também aponta esse intercâmbio de diferentes povos, no momento de fundação do estado de Kasanje. Antes, o autor afirma que o título de “Jaga” já havia sido atribuído por portugueses ao lunda Kinguri, no encontro inicial. À medida que conquistavam novos domínios, atribuíam o título, pelo que relata o autor: “(...) por isso que então os príncipes potentados dos povos que fomos encontrando nas terras que íamos conquistando, estes lhe davam taes títulos ou porque 63 realmente lhes pertenciam ou por imitarem o que era d’outros povos”. 110 Somente com a união das famílias Kuluashingo (lunda), Ngonga (libolo) e Calunga (jinga) que se formou o próprio estado de Kasanje. Apontemos, ainda, a existência de outra tese para a designação “Jaga”, proposta por Alfredo Margarido. O autor observa a existência do termo na primeira metade do século XVI, em referências portuguesas na região da Senegâmbia, além de formas derivadas da palavra, como jagarefe ou diaraf. A utilização da expressão no contexto angolano, portanto, poderia ser resultado de um comportamento já identificado e inventariado no Senegâmbia, 111 ou seja, a expressão teria origem portuguesa. O termo “Imbangala” (ou mbangala), assim como a designação “jaga”, se revela problemático, sobretudo, pela escolha explícita do primeiro termo para descrever os mesmos povos (Cavazzi e outros autores se referem a estes povos como “Jagas”). Em todo caso, é consensual que a primeira referência aos “mbangala” remete a uma carta escrita pelo jesuíta que acompanhava Paulo Dias de Novais, no ano de 1563, relatando que os povos de Ngola faziam guerras a reis de “banguela”. Miller, a partir dessa referência, afirma que possivelmente acontecera uma confusão lingüística e que o rei “banguela” que fora referenciado deveria ser um rei “mbangala”, uma vez que, além do termo “mbangala” ou “Imbangalas” ser desconhecido dos jesuítas, os falantes da língua portuguesa costumavam omitir a primeira vogal das palavras do bantu. 112 A descrição de Carvalho, por sua vez, aponta que provavelmente o termo se originou da palavra “bangala”, que eram paus utilizados por autoridades encarregadas pela cobrança de impostos, na região de Ambaca. Era símbolo de autoridade e por esta razão portugueses passaram a chamar os povos por essa alcunha. 113 Devemos observar, portanto, que, por trás das referências homogêneas a respeito dos Imbangalas ou Jagas, existe toda uma história marcada por constantes cisões, processos migratórios e assimilações institucionais; ainda mais quando pensamos o termo “Jaga”, 114 que designa, antes de tudo, nações que possuiriam um conjunto de diferenças entre si e que podem ser encaradas como um grupo posto à serviço da figura do colonizador e/ou organizado por portugueses, como já pudemos observar acima. 110 BNP. Microfilme F. 7183. CARVALHO, Henrique de. O Jagado de Cassange, Lisboa: Typ.de Cristovão Augusto Rodrigues, 1898. 111 HENRIQUES, Op. Cit., p. 192. 112 Ver FONSECA, Mariana Bracks. Op. Cit., p.49. 113 CARVALHO. Op. Cit.,pp. 31-34. 114 Partindo do pressuposto de sua real existência, tal como defendem Thorton, Isabel Castro Henriques e Vansina. 64 As estruturas que são formadas e descritas a partir desses intercâmbios se caracterizam, principalmente, por serem flexíveis. O brasileiro Elias Corrêa observa tal ponto com grande clareza, no final do século XVIII: Os Jagas de que se compõem parte do Exercito, são governadores de gente beliciosa, e ambulante, q admitem variedade de nasçoens; e debaixo do mesmo nome se estendem os Governantes; e os Governados, q formão este Corpo. Aquelles são elleitos por estes: faltando hum elegem o mais antigo militar; mas quando sucede não ter merecimentos escolhem outro q melhor sirva, de mais instrucção, e Liberalidade. Jurão administrar a justissa: defender o seu povo: não dezamparar os brancos: não lhes ser traidor; e morrer com elles, quando o sucesso da guerra seja infausto; apezar de serem desamparados pela mesma sua Tropa. Estes animozos guerreiros tem mais de huma vez dado exemplos da sua Constancia, e da fidelidade ao seu sagrado juramento. Dividem-se os Jagas em companhias commandadas por macotas subordinados a hum Golambole, q equivale a Major. 115 A descrição de Elias Corrêa, além de dar conta da supracitada flexibilidade – que fazia com que fossem assimiladas diferentes nações –, ainda ensaia uma descrição sobre a moralidade daqueles povos (ao falar da sua fidelidade) e de possíveis hierarquias políticomilitares – macotas subordinados a uma figura maior, intitulada “Golambole”. No século seguinte, Rodrigues Neves nos oferece importantes pormenores sobre essa organização política dos Imbangalas, dividida em três espaços: o kilombo, a Mbanza e a senzala. 116 De acordo com o autor, o primeiro espaço estaria reservado ao Jaga, macotas, Maquitas e outras personalidades políticas. A Mbanza poderia ser a sede do soba, ao passo que a Senzala corresponderia às instalações das pessoas comuns. Tal organização espacial refletiria as diferentes hierarquias existentes no interior das sociedades e as diferenças entre os segmentos sociais. Esta organização do espaço (chamada por Henriques de “esquema tartaruga”) comporta a casa do Jaga localizada no centro, seguida por uma segunda camada de casas pertencentes a autoridades principais, de importância política, social ou religiosa – à medida que estavam próximas do kilombo, seriam consideradas mais importantes. A última camada seria ocupada pela Senzala, reservada às pessoas sem estatuto, ocupava as vizinhanças daqueles que moravam na Mbanza. 115 117 CORRÊA, Elias Alexandre da Silva. História de Angola (1792), Lisboa: Editorial Ática, 1937, Vol. II, p. 50. Apud HENRIQUES, Ibidem, p. 193. 116 BNP, Microfilme-Cota F7179. Neves, António Rodrigues NEVES, António Rodrigues. Memória da expedição a Cassange commandada pelo Major graduado Francisco de Salles Ferreira em 1850, Escripta pelo capitão móvel d’Ambriz António Rodrigues Neves, Lisboa, Imprensa Silviana, 1854. . 117 Ver a análise da relação Kilombo, Mbanza e Senzala em HENRIQUES, Op. Cit., pp. 217-223. 65 Ademais, a fim de obter uma maior clareza sobre os Imbangala-Jagas, algumas notas sobre a atuação da rainha Nzinga ao longo do século XVII são relevantes, em função da necessidade de compreendermos em que medida as disputas políticas daquele século, que ocasionaram a migração dos próprios Imbangalas ao planalto central, permaneceram e contribuíram para reorganização política dos Ovimbundus, principalmente, no século XVIII. Fig.2 - Os “temíveis Jagas” Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 174 66 Fig.3 - As missões capuchinhas na África Central Ocidental Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 277 Fig.4 - O ungüento “maji-a-samba” Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 178 67 Fig. 5 - Os rituais de chuva entre os Jagas Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 197 1.2.2. A Rainha Nzinga e os Imbangalas sob o olhar do colonizador Cultuada pelos movimentos nacionalistas no século XX como uma das heroínas angolanas contra presença portuguesa, permeando o imaginário cultural da diáspora africana,118 sendo referenciada, por exemplo, nas chamadas “congadas” realizadas no território brasileiro durante a escravidão, 118 119 a rainha Nzinga liderou por cerca de quarenta O termo “diáspora”, apesar de estar relacionado a “dispersão de um povo segundo preceitos religiosos ou étnicos” (frequentemente associado a dispersão judaica), tem sido empregado por autores que buscam reler a colonização a partir de uma perspectiva transnacional ou transcultural, produzindo uma escrita do colonialismo descentralizada. Nesse escopo, são denominados “diaspóricos” autores como Paul Gilroy, Edward Said, Homi Bhabha, Franz Fanon, Stuart Hall e Gayatri Spivak. Sobre tradução do termo, ver FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. 6ª ed. Curitiba: Editora Positivo, 2004, p. 317; sobre autores diaspóricos e, especialmente, sobre a obra do jamaicano Stuart Hall e sua contribuição para se repensar a história da cultura, ver ARMANI, Carlos Henrique. “Por uma escrita pós-colonial da história: uma introdução ao pensamento de Stuart Hall”. In: Historiae, Rio Grande, 2 (1), 2011, pp. 25-36. 119 A chamada “congada” é um evento que acontece no Brasil desde o período colonial, congregando elementos culturais oriundos de tradições africanas – especificamente de Congo e Angola- com influências cristãs, onde entidades africanas são identificadas em santos do catolicismo. As tradicionais congadas se caracterizam pelo formato de procissão, animadas por danças, cantos e música e no seu percurso acontece a cerimônia de realização da coração do Rei do Congo e da Rainha Ginga da Angola. Sobre as Congadas no Brasil e referências à Ginga e rei do Congo, ver WEBER, Priscila Maria; REMEDI, José Martinho Rodrigues. A literatura de 68 anos, entre o Ngola (Angola) e Matamba, uma resistência à ocupação portuguesa; fez uso da utilização de diversas estratégias, que iam da conversão ao cristianismo até o enfrentamento militar direto e adesão das táticas “Jagas-Imbangalas”, sobretudo no que diz respeito aos kilombos. 120 Nzinga nasceu em Cabassa, provavelmente no ano de 1581. 121 Filha de Kiluanji, rei do Ngola que resistira à ocupação portuguesa até a sua morte, é apresentada ao mundo lusitano em meio a um contexto de disputas e desconfianças com o seu meio-irmão, Ngola Mbandi, que sucedia o seu pai e a enviara para negociar com portugueses. Segundo Cavazzi, por volta da década de 1620, Ngola-Mbandi travava uma guerra com portugueses em função do estabelecimento do Presídio de Ambaca. Ao longo do conflito, as irmãs e esposa de Mbadi são capturadas por portugueses; Mbadi, vendo-se com pouca força, é obrigado a recuar, pedir trégua e a enviar Nzinga a Luanda, como embaixadora para mediar um acordo de paz com portugueses. Cavazzi, que afirma ter conversado pessoalmente com Nzinga, descreve até mesmo os pormenores da viagem que a mesma fez de Cabassa a Luanda: (...) De Cabasso, capital de Matamba, foi ela levada às costas, como é costume do país, por todo aquele espaço de 100 léguas, te Luanda. O magistrado, com um séquito de cidadãos, foi ao seu encontro até à entrada da cidade, onde ela foi cumprimentada por muitas salvas de artilharia, de maneira que, como me confessou a mim em seguida, não só ficou assombrada por tanta pompa, mas até amedrontada com tantas milícias disciplinadas e pelo estrondo de tantas armas, embora estivesse habituada às batalhas.122 Nota-se, no relato do frei capuchinho, a necessidade lusitana de impressionar Nzinga, ao que parece ter causado algum efeito. Contudo, a mesma não se deixou intimidar e, com o que Cavazzi chamou de “desenvoltura” ou “inteligência”, acabou por impressionar a todos os presentes, conseguindo o tratado de paz: (...) Os presentes admiraram, todos pasmados, esta presteza em sair-se bem e a vivacidade da sua inteligência, nunca esperando duma mulher tanta desenvoltura. Usou ela de tal prudência, falando do seu irmão, pedindo paz, oferecendo a aliança e tratando com natural desembaraço todo o negócio viagem e o Império das festas: os coroamentos dos Reis do Congo no Brasil Meridional Oitocentista na visão dos Viajantes. In: Signo, Santa Cruz, v. 34, n. 57, jul/dez de 2009, pp. 239-248. 120 Ver artigo o pequeno artigo de Serrano, que reconstitui Nzinga à luz a trajetória da mesma e tece reflexões sobre a sua influência no imaginário cultural angolano e de cativos no Brasil. SERRANO, Carlos M. H. Ginga, a rainha quilombola de Matamba e Angola. Revista USP, N. 28, Dezembro-fevereiro, 1995-1996, pp. 136-141. 121 Serrano afirma que Nzinga nasceu em 1581, ao passo que Cavazzi aponta o ano de 1582. Ibidem, p. 138; CAVAZZI, Op. Cit., p. 64. 122 Ibidem, p. 67. 69 pela qual se apresentara, que os magistrados e os conselheiros ficaram sem palavra. E quando lhe foi dito que Ngola-Mbandi teria de reconhecer a Coroa de Portugal com ânuo tributo, respondeu que tal condição só se podia exigir duma nação submetida, mas não duma nação que espontâneamente oferecia uma mútua amizade. Portanto os Portugueses não insistiram sobre este ponto e só pretenderam a restituição dos escravos portugueses e a mútua assistência entre as duas nações contra os inimigos duma ou doutra. 123 Cadornega, alguns anos após Cavazzi, iria mais longe, ao descrever as guerras lideradas pela rainha Nzinga contra a coroa portuguesa, ao compará-la até mesmo a Cleópatra: (...) e porque desta nova Raynha, se bem cruel a seu Sangue, se há nesta historia tratar della em muitas partes, pella continuada guerra que nos fez no discurso de tanto tempo que reinou que forão muitos annos, que parecia immortal, de que se poderá fazer grande escritura, a qual se podia comparar ou ainda preferir a Semiramis, a Pantasileja, a Cleopatra, e outras Raynhas de que as historias nos dão noticia, governando a seus Vassalos a nossa opposição com valor e animo varonil; para intelligencia desta historia e do que obrou contra nós esta Raynha se fez aqui menção deste seu principio que He atraz da historia a que himos do Reino de Angola, sendo este seu primeiro fundamento [Grifo nosso].124 O relato de Cavazzi, por sua vez, segue com a curiosa conversão de Nzinga ao cristianismo, tendo sido batizada em uma pomposa cerimônia em 1622, que contou com a benção do próprio governador de Angola e esposa, nomeados padrinhos de Nzinga, que passaria a se chamar Dona Maria de Sousa. 125 Posteriormente, as suas irmãs também se converteriam e, de Cambi e Fungi, passaram a se chamar Dona Bárbara e Dona Garcia, respectivamente.126 A descrição do processo que levou Nzinga a substituir o seu irmão em 1627, por Cavazzi, é igualmente interessante. Segundo o capuchinho, Ngola-Mbandi tivera sido envenenado pela própria Nzinga, que por anos desejava a vingança da morte que o irmão provocara a seu filho, antes de ser enviada a Luanda.127 A ascensão ao trono, segundo o autor, foi marcada por grande derramamento de sangue e extermínio de todos os opositores: 123 Ibidem, p. 68. CADORNEGA, Op. Cit., p. 55. 125 Ibidem, p. 69. 126 SERRANO, Op. Cit.,p. 138. 127 Cavazzi, ao relatar o assassinato do irmão, por Nzinga, chega até mesmo a refletir as mágoas que infligidas a uma mulher, dificilmente se superam: “(...)as afrontas recebidas no coração duma mulher ficam esculpidas indelévelmente como por rijo diamante sobre o mármore, de maneira que não podem ser riscadas senão pelo sangue (...)”. CAVAZZI, Op. Cit., p. 70. 124 70 (...) Jinga, portanto, agitada pela ambição do mando, tomou as insígnias de rainha de Matamba e de Ndongo ou Angola, sob o pretexto de guardá-las para o verdadeiro herdeiro. Depois empunhando as armas, com um grupo de fiéis, matou todos aqueles que pareciam não aceitar a sua autoridade. Desta maneira se assegurou do ceptro de que era verdadeiramente digna, se considerarmos só os dotes da sua extraordinária prudência e coragem.128 Para a sua consolidação definitiva à frente dos reinos do Matamba e Ndongo, de acordo com Cavazzi, Nzinga, por fim, acabou investindo contra o seu sobrinho – para o capuchinho, o legítimo “herdeiro do trono” –, que estava sob a proteção do Jaga Cassa. Segundo o autor, para chegar até a sua vítima, inicialmente, seduzira o Jaga e, quando este estava desatento, jogou o herdeiro perante todos os seus súditos, no rio Cuanza, com a justificativa de que ainda se vingava da morte do seu filho, morto por Ngola-Mbandi. 129 O reinado de Nzinga, pelo olhar de Cavazzi – e, por conseguinte, o olhar do colonizador –, é descrito por uma marcante crueldade e rigidez. Chama a atenção os insistentes destaques das possíveis características negativas de Nzinga e as suas alianças. Na descrição de Cavazzi, Nzinga governava não apenas com crueldade, mas até mesmo pelo recurso à imagem de feiticeira, conforme a narrativa de um episódio: (...) Aconteceu um dia que um escravo da corte audava o meu companheiro Fr. Inácio nos trabalhos da horta do hospício quando ouviu que chegava a rainha. Imediatamente fugiu como um galgo, sem que o religioso conseguisse detê-lo. Depois que a rainha se foi embora voltou ele ao trabalho. Então Fr. Inácio perguntou-lhe porque fugira e se escondera. Ele confessou que tinha feito um furto e que, embora ninguém ainda o soubesse, era certo que a rainha teria descoberto na sua cara os sinais do furto e tê-lo-ia castigado severamente. 130 Ao exemplificar a crueldade e rigidez de Nzinga, Cavazzi cita numerosos casos, como o julgamento de uma donzela que se envolvera com um cortesão. Segundo o autor, quando Nzinga soubera do caso, havia chamado os dois à sua presença e ordenou que se cortasse o peito da donzela no meio e se retirasse o seu coração. Ao rapaz, ordenou que se cortassem as suas duas orelhas. 131 A narrativa de Cavazzi no que se refere à crueldade de Nzinga também apresenta episódios relacionados a crianças e mulheres grávidas, a fim de caracterizá-la como déspota e tirana: 128 Idem Ibidem, p. 70. Ibidem, p. 71. 130 Ibidem, p. 75. 131 Ibidem, p. 75. 129 71 (...) A toda a criança do sexo masculino que conseguia descobrir, por meio dos numerosos espiões, ela mesma arrancava o coração e o comia. Até, por vezes, nem aguardava o nascimento e abria as entranhas das mães, bebia o sangue e lançava as carnes aos mastins ou, fazendo-as assar, distribuía-as pelas vassalos. 132 A despeito da veracidade de tais relatos, é preciso salientar dois pontos: a perigosa interpretação literal das narrativas e a própria utilização da figura do “Jaga”, como entidade que representava crueldade ou algo fora do espaço humano. Miller, por exemplo, ao investigar a origem dos povos “Mbangala” (Imbangala), na década de 1970, no distrito de Malanje, constatou que os nomes que apareciam nas genealogias daqueles povos, como Kiluanji, Lueji ou Kasanje, não eram personagens históricos permanentes, mas títulos. A morte, pelo que constatou o autor, simbolizava a destituição de um título, e não de uma pessoa.133 O autor ainda alertara os perigos da confiança excessiva nos relatos orais, pois estes reteriam apenas o que interessa para a própria legitimação e eventos que afetam o sistema político do qual se é parte, ou seja, não se pode perder de vista que são seletivos. 134 Henriques, ao analisar a atribuição de “antropofagia generalizada” aos Jagas, devoradores das crianças nascidas no quiilombo, se questiona se haveria possibilidade de se construir uma “organização estável”, em vista do mau grado que poderiam causar as adoções. 135 Apesar da controvérsia a respeito da existência ou não dos Jagas, exposta anteriormente, devemos considerar a hipótese de que a presença dos mesmos, vistos como antropófagos, fora parte da própria justificativa utilizada para as intervenções portuguesas na região, quer seja pelo recurso à escravatura ou mesmo pela destruição física. 136 Além de justificar a empresa escrava, a afirmação da presença Jaga realizada por lusitanos poderia ser acrescida e reforçada pelo argumento de que seria melhor a escravidão aos povos Mbundos, que habitavam a região, do que ser alvo de práticas canibais Jagas. 137 Ao retomarmos, portanto, nossas considerações sobre a rainha Nzinga – personagem que ocupou, desde o século XVII, lugar de grande relevância no imaginário cultural na história angolana e, por conseguinte, contribuiu para o desenhar de novas configurações políticas naquela região –, vale compreender sua adesão à tática militar intitulada “kilombo”, 132 Ibidem, p. 75-78. Com esta decifração o autor explicou a morte de “Kinguri” por seus súditos, os Macotas, que seria a sua destituição do cargo de rei. 134 MILLER, Joseph. Poder e Parentesco: os antigos estados Mbundu em Angola. Tradução de Maria Conceição Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional, 1995; MILLER, Joseph. The Imbangala and the cronology of early central African history”. The Journal of African history, Vol. 13, n. 4, 1972, pp. 121-149. 135 HENRIQUES, Op. Cit., p. 193. 136 Ibidem, p. 156. 137 MILLER, 1972, p. 124. 133 72 no momento da miscigenação dos Jaga-Mbangala ao longo da sua resistência à ocupação portuguesa. Essa adesão é descrita pelo próprio Cavazzi, que a justificava como objetivo de Nzinga de se “expandir”: (...) Juntou assim uma grande multidão destes bárbaros, gente que desprezava a própria vida, implacável contra os inimigos, ávida de carne humana mais que de glória militar. Além disso, mandou que fossem rigorosamente cumpridas as quijila ou leis de Temba-Ndumba, que já descrevi no livro segundo desta história.138 Importa esclarecer, pois, que as chamadas “quijilas” seriam as “proibições” ou leis de Temba-Ndumba. 139 Segundo Cavazzi, estas eram antigas leis Jagas, criadas, inicialmente, por um antigo chefe chamado “Zimbo” e, posteriormente, retomadas por Temba-Ndumba, sua filha. O capuchinho, ao longo da sua narrativa, menciona por vários momentos algumas “quijilas” e narra a própria cerimônia organizada por Temba-Ndumba, antes de promulgar as “ímpias leis”, como assim chamara, sacrificando o próprio filho: Não sei que gênio de megera lhe tirou qualquer sentimento materno, inspirando-lhe uma crueldade repugnante às leis da natureza, de Deus e dos homens. Qual o monstro que não sente afecto para com os filhos das suas entranhas? Pois ela negou ao seu filho a piedade natural que até os tigres têm para com as suas crias. Na presença de todo o povo, fez trazer a sua criança e, em vez de a acariciar, lançou-a furiosamente num almofariz e, com toda a força do seu cruel instinto, começou a maltratá-la, batendo-lhe com um pau, sem dó e sem compaixão pelos seus gritos. Reduzindo a carne, o sangue e os miolos a uma massa informe, juntou mais umas raízes, uns pós e umas ervas, e pôs aquela mistura sobre o lume, até ferver e se reduzir à consistência desejada. Depois untou com esta massa todo o corpo e pôs o resto nalguns recipientes. Por esta horrível cerimônia pretendeu que todos a julgassem imortal, invencível e invulnerável.140 138 CAVAZZI, Op. Cit., p. 72. No quimbundo “quijila” significa “proibição”. 140 Ibidem, p. 178; sobre o unguento produzido em tal cerimônia, vale destacar que o seu possível significado. De acordo com Miller, é preciso pensá-lo enquanto substituição da necessidade de “linhagens”. Matando-se o filho, negava-se o significado social de continuidade, e abria-se, inversamente, à adesão de membros externos ao grupo. Em palavras do autor: “(...) Num sentido metafórico, a preparação do maji a samba pelo chefe, através do assassínio ritual do seu filho (a), era um símbolo corrente do excessivo poder de um governante sobre o seu povo. Os ‘filhos, na narrativa, representam os súbditos de um chefe político, em contraste com os seus parentes que são sempre descritos como ‘sobrinhos e sobrinhas’. A cerimônia de matar o filho simbolizava o poder absoluto do governante sobre os seus súbditos, tal como a imagem do Kinguri, assassinando escravos de cada vez que se erguia ou se sentava, mostrava o temor superticioso que o seu povo lhe dedicava. Num sentido mais literal, porém, a matança dos filhos, quando praticada por toda uma população, tornava-se um meio de abolir as linhagens, uma vez que o assassinato dos filhos (ou a negação do significado social de um nascimento fiísico) tinha sobre os grupos de filiação o mesmo efeito estrutural que a proibição do seu nascimento. MILLER, 1995, p. 163. 139 73 Do corpo do próprio filho, relata Cavazzi, produziu-se um ungüento intitulado “majia-samba”, que daquele momento em diante passara a ser utilizado pelos Jagas antes da partida para a guerra, produzido com o corpo dos “filhinhos das personagens julgadas mais nobres e que têm maior autoridade”. 141 Entre as leis de Temba-Ndumba, que foram retomadas por Nzinga posteriormente, Cavazzi as dividiam em domésticas, religiosas e civis. As primeiras prescreviam a abstinência de carne de porco, elefante, serpente e outros animais, além de determinarem como deveriam se dar os preparativos para uma viagem, guerra, o que comer e detalhes antes de se iniciar qualquer operação militar. As chamadas leis religiosas, por sua vez, eram “inventadas” por feiticeiros e tratavam da vida privada dos indivíduos, das contendas, perigos de morte, entre outros assuntos. As “leis civis” eram ditadas pela própria Temba Ndumba e, segundo afirma o autor, eram seguidas com o máximo de escrúpulos, mesmo que isso implicasse sacrifícios. 142 O exemplo que Cavazzi fornece, para pensar as “leis civis” nas sociedades Jagas, referia-se a quijila, que dava conta da proibição da criação de filhos no interior dos kilombos143: (...) Só direi que a primeira destas leis proíbe criar filhos do sexo masculino dentro do quilombo ou da cerca dos povoados, e também ocultá-los para os criar fora da mesma cerca. Por isso, com a ameaça de graves castigos, cada mulher, ao dar à luz um filho varão, deve imediatamente degolá-lo com uma faca ou afogá-lo nas águas ou abandoná-lo à voracidade das feras, e são declarados infames todos os filhos poupados e criados pelas suas mães. Esta incrível crueldade foi cumprida com todo o rigor no decurso de cem anos, como os mesmos Jagas me testemunharam. Como eu interrogasse algumas mulheres convertidas à nossa santa fé, uma delas afirmou ter dado cinco filhos às feras para serem devorados; outra sete, e outra até nove. Confessaram também que, naquela condição de idólatras e sem o conhecimento do verdadeiro Deus, não tinha experimentado remorso nenhum nem o horror que mostravam ao fazerem estas narrações. 144 Conforme o autor reconhece, a sua descrição se baseava em testemunhos orais de mulheres que haviam aceitado a conversão à fé cristã. Conforme observamos, é preciso problematizar tais relatos orais e a própria descrição ocidental desses fatos, à luz dos objetivos de conversão e caracterização negativa do outro, como suporte para a realização das guerras justas e escravização. Em todo caso, é importante ressaltar a menção de Cavazzi aos “kilombos”, adquiridos na hibridização dos costumes dos povos Jagas por Nzinga. Sobre 141 CAVAZZI, Op. Cit. Ibidem, pp. 179-180. 143 Analisaremos pormenorizadamente o significado e adesão dos Jagas aos quilombos, na seção que se segue. 144 Ibidem, p. 180. 142 74 estes, a fim de refletirmos as trocas culturais entre os diferentes povos que habitaram a Angola, valem algumas reflexões mais apuradas. 1.2.3. Kilombos: intercâmbios culturais entre Ovimbundu-Imbangalas e notas sobre a organização militar A palavra kilombo no decorrer da história, tanto angolana quanto brasileira, se vista em longa duração, passou a se caracterizar por um lugar de imensa polissemia. Identificada com as seguintes conotações, de acordo com Isabel Castro Henriques: (...) Serve tanto para nomear os lugares, definir as técnicas de urbanismo, sem esquecer a sua carga ideológica, como também para designar as concentrações militares de caráter permanente e, bem assim, as feiras e mercados de Kasanje, de Pungo Andongo, de Matamba e do Congo A etimologia aparece no significado do substantivo em quimbundo, que salienta a sua capacidade de juntar, de unir. Para Childs, no seu estudo consagrado aos Umbundus, Kilombo é sinônimo de Caconda ou Cilombo, nome de um dos principais grupos ovimbundos. Cilombo teria tido uma origem mítica, pois tratar-se-ia da ‘mulher’ do herói civilizador Caconda, que orignaria este Estado do centro costeiro angolano. Retenhamos ainda que Kilombo foi também uma forma de organização militar, como mostra a tradição ora recolhida por Cavazzi. Uma das figuras míticas do ‘Jaga’, Temba-Ndumba, teria imposto a quijila, ‘proibição’ em quimbundo, para poder organizar as operações militares. O substantivo foi transferido para o Brasil, onde indica, em primeiríssimo lugar, os locais em que são asseguradas as cerimônias religiosas africanas, para mais tarde se transformar no nome dado às instalações dos negros quilhambolas, no mato (...).145 Pensar o próprio histórico da instituição remete-nos a considerá-la como um lugar “transcultural”, onde se cruzaram diferentes populações e culturas que estiveram nos territórios que atualmente denominamos Angola e República Democrática do Congo.146 A busca da compreensão da palavra envolve a própria história da região, marcada por conflitos de poder, diferentes fluxos migratórios, cisões entre grupos e assimilações. 147 De acordo com Miller, a palavra se origina do idioma falado pelos povos Ovimbundus, o umbundo. A começar, destaquemos que no próprio umbundo, falado pelos 145 HENRIQUES, Op. Cit., p. 204. Entre estas, destacam-se os grupos Lundas, Ovimbundus, Mbundus, Kongos e Imbangalas. 147 MUNANGA, Kanbele. Origem e histórico do quilombo na África, Revista USP, São Paulo, No. 28, dezembro-fevereiro, 1995/1996, pp. 56-63. 146 75 povos Mundombe que habitavam nos entornos de Benguela no século XIX, kilombo designava “campo de iniciação”.148 No umbundo moderno, numerosas são as palavras próximas a ela, indicam “circuncisão”: ocilombo, significa “pênis recém-circuncidado” e ulombo designa remédio preparado com sangue e prepúcio149 dos iniciados. Nos outros idiomas, no entanto, especialmente no cokwe ou mbundu, a circuncisão se traduz na palavra mukanda. Se considerarmos que a “circuncisão” fazia parte do conjunto de rituais de iniciação aos meninos que aderiam ao kilombo, tais evidências lingüísticas acabam por sustentar a tese da referida origem etimológica ovimbundu. Dessa forma, a análise da polissemia da palavra e sua utilização histórica compreendem, de partida, o encontro e intercâmbio de diferentes povos, na troca de diferentes táticas militares; adaptações tanto para fazer frente ao colonizador, como para potencializar as conquistas internas e produção de cativos, assim como a designação das transferências e permanências culturais no Novo Mundo, partissem elas dos lusitanos ou dos próprios africanos organizados nas matas. 150 A instituição kilombo, levando-se em conta o seu papel estratégico militar, percorreu diferentes populações e culturas. De início, designava o grupo de guerreiros que seguia Kulembe, 151 esposo de Temba Ndumba – a supracitada criadora das quijilas adotadas por Nzinga anos mais tarde. Após a morte da sua esposa, 152 Kulembe assumiu o comando dos kilombos e, por meio deles, com apoio de generais, expandiu consideravelmente os seus domínios, pelo que relata Cavazzi: Havia naquele tempo entre os Jagas muitas pessoas estimadas pelo seu valor e pela sua ferocidade, como Calanda, Caete, Cassa, Cabuco, Caiomba e outros mais, dos quais provém muitas famílias ainda existentes. Estes, nomeados capitães de numerosos exércitos, correram uma e outra Etiópia, assolando muitas regiões e não deixando nelas mais que sinais da sua bárbara crueldade.153 Na pesquisa realizada por Miller, o autor encontrou correspondência entre os nomes dos capitães, informados por Cavazzi, e as tradições Imbangalas, como “títulos”; de modo que “Calanda” seria “Kalanda Ka Imbe”, “Cabuco” apareceria como “Kabuco Ka Ndonga”, o 148 MILLER, 1995, p. 21. Segundo o Dicionário Michaelis, “prepúcio” significa “dobra de pele que cobre a glande do pênis”. 150 No capítulo X, apresentamos uma análise do papel dos quilombos no Brasil. 151 Culembe, como assim escreve Cavazzi, é pelo mesmo como o esposo da rainha Temba Ndumba. Este, segundo o capunhico, apesar de ser “inferior de nascimento”, era igual em alma e costumes. CAVAZZI, Op. Cit., p. 188. 152 Cavazzi, baseado em relatos orais, afirma que foi por envenenamento preparado pelo próprio “Culembe”. CAVAZZI, Ibidem, p. 189. 153 Ibidem. 149 76 “Cassa” aparentemente pertenceria ao Libolo, onde consta um título chamado “Kasa Ka Hango”, entre outros. 154 O “kilombo” também marcaria a transformação de Lunda a Imbangala, quando estes, especificamente os chamados “macotas”, passam a se valer da instituição para concretizar a deposição de Kinguri. Como vimos anteriormente, Kinguri era um lunda descrito nas tradições dos povos locais como um chefe cruel, que posteriormente foi sucedido pelo Kasanje Ka Kulanshingu.155 Tais lundas, que se transformaram em Imbangalas com a adoção do kilombo, viam na flexibilidade da instituição uma maneira de abolir o antigo título de Kinguri. 156 A rainha Nzinga, ao se associar aos Jagas, no século XVII, igualmente havia notado o potencial da instituição, a fim de acelerar a expansão dos seus exércitos e fazer frente ao avanço português, pelo que relata Cavazzi. Potencial que, obviamente no espaço africano, deve ser destrinchado nas suas diferentes características, a começar pela ruptura das estruturas de linhagem. Ao permitir a incorporação de jovens dos povos vencidos às suas fileiras, independente da linhagem, o kilombo permitia a criação de uma estrutura firme capaz de reunir rapidamente um grande número de estranhos desvinculados das tradicionais linhagens,157 organizados sob uma rigorosa disciplina militar e dramáticos rituais de iniciação, narrados por diferentes personagens; como o próprio Cavazzi, que afirmava ter presenciado cerimônias de “recebimento de meninos no kilombo” e o definia como um “acampamento militar”: A cerimônia de receber os meninos no quilombo pratica-se ainda hoje com solenidade, e eu, que a presenciei muitas vezes, posso descrevê-la exactamente. Quando o chefe do quilombo, que é ordinariamente o comandante militar, quer conceder este privilégio, determina o dia da função. No intervalo de tempo precedente à data, os pais, que são sempre numerosos, suplicam insistentemente a concessão desta graça, persuadidos de que os seus filhinhos, antes da admissão, são aboinados pela autora da lei, e eu só depois de purificados serão benzidos por ela. O dia é de grande festa, com o concurso de muitos homens armados e enfeitados o melhor possível. Aparecem na praça em boa ordem e com muito decoro os cofres em que se conservam os ossos de algumas pessoas principais e que são guardados nas suas casas por pessoas qualificadas. Depois aparecem os cofres com os ossos 154 MILLER, 1995, p. 132. Segundo Mariana Bracks Fonseca, no momento que os Lundas adotam a instituição “quilombo”, transformam-se em guerreiros Mbangalas (Imbangalas). FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola (século XVII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Departamento de História – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2012 (dissertação), p. 48. 156 Ibidem, p. 48. 157 MUNANGA, Kabengele. Op. Cit., p. 60. 155 77 dos antigos chefes do quilombo e dos seus parentes. Todos são colocados sobre uns montões de terra, na presença do povo, rodeados por guardas e por uma multidão de tocadores e de dançarinos, que festejam e honram os ossos daqueles falecidos. Por fim chega o comandante com a sua favorita, chamada tembanza, ou “senhora da casa”, ambos festejados pela música e pela comitiva dos seus familiares. Ambos untam os seus corpos e as suas armas e se sentam, ela à esquerda e ele à direita dos ditos cofres. Então, todos os presentes, divididos em grupos, fingem uma batalha, acometendo-se furiosamente. Acabada a batalha e as danças, que são bastante demoradas, até todos perderem o fôlego, saem de algumas moitas predispostas as mães que nelas estavam escondidas, com os meninos, e, mostrando-se muito preocupadas, com mil getos vão ao encontro dos maridos, indicando-lhes o lugar em que cada menina está escondido. Então eles correm para lá com os arcos fechados e, descobrindo a criatura, tocam levemente nela com a seta, para demonstrar que não a consideram como filho, mas como preso de guerra, e que, portanto, a ei não fica violada. Depois, usando uma perna de galinha (nunca pude descobri a razão disto), untam a criança com aquele ungüento no peito, nos lombos e no braço direito. Desta maneira, os pequenos são julgados purificados e podem ser introduzidos pelas mães no quilombo na noite seguinte. Há mais umas prescrições para as mães, mas, por serem muitíssimo obscenas, não as descrevo.158 Chamamos a atenção para alguns fatos na descrição de Cavazzi: em primeiro lugar, a honra que poderia significar ser incorporado ao kilombo, quando observamos a súplica para “concessão” daquela graça pelos pais; em segundo lugar, o quão era tradicional a festa, com a apresentação dos cofres onde eram guardados os restos mortais das antigas autoridades. A importância da própria cerimônia também se expressava por uma grande festa, com presença do povo e principais lideranças. Por fim, a necessária realização da cerimônia, com fins de purificar a criança e, posteriormente, e somente assim, incluí-la no kilombo. No decorrer do seu relato, o capuchinho destaca o fato de que nem todas as crianças poderiam ser aceitas no kilombo, apesar da flexibilidade de incorporação de indivíduos para além das tradicionais linhagens. Segundo o autor, crianças que tivessem nascido no interior do espaço, se fossem gêmeas, nascessem deformadas ou se fossem demasiadamente pobres, deveriam ser mortas. No primeiro caso, se descoberto que a mulher tivesse dado à luz dentro do kilombo, a mesma seria condenada à pena capital, junto com a criança; e do corpo desta última, seria produzido um “ungüento”, que serviria para banhar o corpo de soldados e assim aumentar as suas confianças. Contudo, havia uma possibilidade de salvar a vida da criança: (...) Se os pais quisessem conservá-lo com vida, devia apresentar outro em seu lugar, para que os oficiais o sacrificassem. Depois, o filho que tinha sido poupado não podia ser introduzido no quilombo antes que lhe aparecessem os dentes. Então os soldados untavam-no fora da cerca com aquele ungüento que ela tinha preparado, na falta do qual se matavam outros rapazes presos 158 CAVAZZI, Op. Cit., p. 182. 78 na guerra ou filhos de pessoas qualificadas. Desta maneira, havia sempre novo unguento para fortificar o corpo e a alma. 159 As crianças gêmeas eram consideradas um presságio ruim, que indicava extermínio dos Jagas, por isso, não poderiam sobreviver. Às crianças que nascessem com alguma deformidade, também estava reservada a morte, uma vez que eram consideradas “abominações”. Entretanto, poderiam escapar das punições se os seus pais fossem ricos, submetendo-a a numerosos rituais. Já a morte às crianças demasiadamente pobres era determinada pela justificativa de que as suas mães não teriam condições de acompanhar com presentes a admissão da mesma no kilombo. 160 No interior do kilombo, vigoravam as quijilas, sobre as quais discorremos anteriormente. Aqui, novamente nos chama a atenção a insistência de Cavazzi no “canibalismo” praticado no interior dos kilombos, nas populações identificadas como Jagas. O autor, ao longo do seu relato, afirma a todo momento que essa era uma prática levada a cabo indiscriminadamente e incentivada pela própria rainha Jaga (provavelmente se refere a Nzinga). Cavazzi chegara a afirmar que a maior razão de qualquer guerra em que aqueles povos pudessem se envolver seria a captura de “escravos robustos e matança dos mais fracos para serem devorados”. 161 De Acordo com o capuchinho, estavam livres do canibalismo apenas as mulheres, que seriam preservadas para serem sacrificadas aos defuntos nos funerais.162 O autor menciona, por exemplo, o episódio em que intervira na execução de uma mulher, acusada de adultério. Segundo Cavazzi, como o soldado não poderia levar a sua esposa para a guerra, ao retornar, levaria consigo o coração ou cérebro do inimigo e entregaria para sua mulher. Se esta comesse sem resistência, seria considerado de imediato a prova de fidelidade da mulher. Todavia, se a mesma se recusasse a comer a carne do inimigo, chegavase à conclusão de que não tivera sido fiel, portanto, seria condenada à morte. Em palavras do autor: Eu mesmo fui testemunha deste execrável abuso quando, um dia, vi alguns soldados, ao voltarem de uma guerra, contenderem ferozmente entre si. Acorri para impedir qualquer desordem e perguntei a causa da contenda. Responderam que um deles, achando que a mulher lhe fora infiel, queria matá-la. Perguntei se havia testemunha desta infidelidade e responderam que 159 Ibidem. Ibidem, pp. 182-183. 161 Ibidem, p. 183. 162 Embora o autor afirme que mesmo com esta proibição geral entre os Jagas, haviam exceções, como o hábito do “Jaga Cassange” de comer mulheres – afirmava, nas palavras de Cavazzi, que eram mais saborosas e, portanto, matava vários por dia. Ibidem, p. 183. 160 79 sim, porque ela não quisera cmer a carne dos inimigos que o marido lhe tinha trazido. 163 Ainda no relato de Cavazzi, o kilombo apareceria como uma habitação tradicional dos jagas, fácil de construir e transportar. 164 À maneira romana, todas teriam a mesma planta e seriam formadas de palhota. No interior do espaço que estava designado ao kilombo, organizar-se-iam da seguinte maneira: (...) dividem-se em sete quarteirões e nomeiam um oficial como chefe de cada um. No centro está construída a morada do príncipe, rodeada por uma cerca de cada um. No centro está construída a morada do príncipe, rodeada por uma cerca quadrada de sebe muito forte, em forma de labirinto. Dentro desta cerca, além das arrecadações dos criados, fica a habitação das pessoas mais importantes, para assistirem ao príncipe em caso de doença ou de invasão dos inimigos. Todas estas pessoas, sob pena de lesa-majestade, têm de morar na respectiva habitação. 165 Assim como observamos nos relatos de Rodrigues Neves, sobre hierarquia sóciopolítica e localização dentro dos espaços, na medida de aproximação do espaço do Jaga, também encontramos tal questão no relato de Cavazzi; este último afirma que, seguindo a hierarquia, no segundo quarteirão, estava o ngolambole, suposto general comandante dos guardas – depois do príncipe, seria a pessoa mais qualificada. O referido personagem sempre estava acompanhado de um xinguila, que seria o responsável pelo exame do sítio escolhido para o estabelecimento do kilombo. O terceiro quarteirão seria ocupado pelo tandala, conhecido como “comandante da retaguarda” e primeiro entre os eleitores do rei. Na ausência deste último, estaria autorizado a presidir o estado. Os súditos lhe venerariam como um príncipe e ele teria autoridade até para sentenciar réus. Ao seu lado, estava o personagem chamado mutunda, encarregado pela manutenção das cercas e trincheiras ao redor do kilombo e habitações do príncipe. O sexto quarteirão (ou lugar, como descreve Cavazzi) estava reservado ao ilunda, que seria dependente do ngolambole. Em tempos de paz, sua função seria guardar o depósito de armas para necessidades em futuras guerras. Por fim, Cavazzi ainda menciona outros personagens, que ocupariam o que denominou de “sétima posição”, espécie de outro ilunda, responsável pelo guarda-roupa do príncipe – para essa função, seriam denominadas pessoas 163 Ibidem, p. 184. Cavazzi também chama essas habitações de “libatas”. 165 Ibidem, p. 191. 164 80 de comprovada fidelidade, quase sempre um membro da família –; e o mani-cúdia, que seria um vivandeiro ou responsável por negociar viveres no acampamento. 166 Fig. 6 – O kilombo, segundo Cavazzi Fonte: CAVAZZI, Op. Cit., p. 191. 166 Ibidem, pp. 191-192. 81 Fig.7 - O Kilombo, por Capello e Ivens (1881) Fonte: HENRIQUES, Ibidem, p. 421 Deve-se destacar, a partir da descrição de Cavazzi, do século XVII, a significativa complexidade no interior dos kilombos. Eles constituiriam, mais do que apenas instituições militares, o próprio fundamento organizativo daquelas sociedades. Em alguns relatos, são descritos com proporções consideráveis, como o comentário tecido pelo militar Cadornega sobre a habitação do Jaga de Cassanje, no final do século XVII: (...) consta todo ele de gentio jaga, que não vive mais que da guerra, tendo muitos macotas com os seus somgos ou trocos de que são senhores absolutos, reconhecendo só Casanji como sua cabeça e senhor, e muitos capitães de valor com gentio de sua jurisdição, com que saem a conquistar fazendo guerra pelo íntimo deste dilatado sertão (...). O seu kilombo e as suas terras cultivadas ocupam um território de mais de 40 léguas, o que permite que aí se encontrem concentrados mais de 300 mil Jagas, todos gente feroz e carniceira, assim como uma grande quantidade de armas de fogo, pólvora, e balas em abundância, com as quais atemoriza muita parte desta Etiópia (...) e há no seu opulento quilombo muito trato de peças e marfim, onde se gastam a maior parte do vinho e fazendas que vêm de mar em fora a este reino de Angola167 É relevante citar, ainda, aquilo que poderia conferir prestígio e destaque no interior desses kilombos: a possessão de escravos. Dentro do kilombo, eles se localizariam próximos às entradas, ao que indica, para servirem de escudo às autoridades. 168 Segundo Cavazzi, os cativos que viviam junto aos Jagas nos kilombos poderiam ser compreendidos em três 167 168 CADORNEGA, Op. Cit.,Vol. III, p. 215. HENRIQUES, Op.Cit.,p. 218. 82 categorias: (1) quisico, filhos de escravos e seriam marcados com sinal pelos seus respectivos donos – ficavam quase sempre livres e dificilmente eram vendidos; (2) os prisioneiros de guerra, que, além de serem marcados, eram vendidos e frequentemente sacrificados e comidos; (3) e os chamados escravos de fogo, que viveriam em perpétuo serviço até a morte do comprador, obedientes e fiéis. 169 O viajante húngaro Magyar, ao analisar as sociedades Ovimbundus do Bié já no século XIX, apontara cinco principais maneiras de se ter sua condição reduzida à escravidão naquelas sociedades; de certo modo, elas complementam a descrição realizada pelo capuchinho Cavazzi no século XVII acerca das sociedades Jagas. Em primeiro lugar, por hereditariedade – se os pais fossem escravos, os filhos continuavam a sê-lo. Em segundo lugar, por dívida. Nesse caso, a escravidão era provisória, uma vez que, paga a dívida, a liberdade poderia ser concedida novamente – na situação contrária, o provisório se tornaria o definitivo. Didaticamente, Magyar explicava tal modalidade: (...) Os chefes de família mais pobres, quando não podem pagar as dívidas aos credores não querem vender, para as pagar, um ou mais membros da família como escravos de maneira definitiva, dirigem-se àquele que possui tecidos europeus, pedindo-lhe, como empréstimo, a quantidade necessária de tecidos e empenhando, entretanto, um ou mais membros de família, dos dois sexos (...) Estas pessoas assim empenhadas tornam-se criadas, sem salário, como se fossem escravos daquele (...) que lhe emprestou as mercadorias necessárias a título de empréstimo; mas nem vendidos pelo proprietário, que os deve libertar imediatamente em caso de resgate que obriga [aquele que pediu emprestado a restituir o dobro das mercadorias emprestadas.170 A terceira modalidade descrita pelo húngaro para produção de escravo seria a compra, em que homens e mulheres seriam vendidos como animais. A quarta, por conseguinte, era a guerra. Frequentemente, após a vitória, velhos e crianças eram massacrados e os demais prisioneiros, capazes de trabalhar, eram amarrados uns aos outros e arrastados. A última modalidade mencionada pelo autor seria a escravidão por “feitiçaria”, considerada por ele como a principal causa da abundância de escravos; por vezes, famílias inteiras eram arrastadas à escravidão em função de uma acusação. Nas palavras do autor: (...) Esta terrível lei tão desumana é a principal causa da abundância de escravos para vender, entre estas populações, porque um homem condenado desta maneira tem, com muita freqüência, 30 ou 40 parentes que são vendidos com ele.171 169 CAVAZZI, Op. Cit., p. 161. MAGYAR, Lázlo Apud HENRIQUES, Op. Cit., p. 227. 171 Idem Ibidem, p. 229. 170 83 No que se refere a esta última modalidade de se reduzir à escravidão, vale mencionar os apontamentos de Joseph Miller referentes ao papel da feitiçaria, ou bruxaria (witchcraft), na produção de cativos na África Central; apontamentos feitos dentro de um fórum realizado no ano de 2003 (e publicado em 2004), que tratava das possibilidades da inserção da história da África na chamada História Mundial.172 Segundo o autor, com o estabelecimento do comércio com o Atlântico, várias mudanças foram provocadas naquelas sociedades, principalmente a alteração do “caráter doméstico e político” das relações econômicas para o anonimato dos estrangeiros – o ganho material ultrapassava o caráter comunal das sociedades africanas. Nesse quadro, ganhos materiais, provenientes das trocas realizadas com europeus, por parte até mesmo de autoridades políticas, passaram a ser alvo de acusações associadas à traição e feitiçaria, causando a necessidade de eliminação dos “párias”, com a sua entrega a mercadores passantes e, por conseguinte, aos europeus instalados nas costas.173 De qualquer maneira, para além das modalidades de produção de cativos no interior dessas sociedades e sua distribuição dentro dos kilombos, vale frisar que possuir escravos, dentro dessa configuração, era um sinal de prestígio e poder. Desse modo, o cativo apareceria como um elemento central na organização dessas sociedades, fato que explicaria, por vezes, o que Henriques chamou de “tratamento benevolente” dado aos cativos. Esse tratamento não se originaria em função de uma atitude humanista, mas por conta do medo de perder escravos, que poderiam se decidir pela fuga, também intitulada “vatira”, “shimbika” ou “tombika”. Dentro de alguns procedimentos, tais fugas consistiriam em mecanismos legais em que o escravo poderia escolher um novo senhor. Magyar fornecera mais uma vez detalhes acerca desta possibilidade: A vatira designa a fuga simples. O escravo aproveita um momento propício, abandona tudo, vai-se embora e procura fugir o mais longe possível (...) Para os proprietários dos escravos a shimbika ou tombika é muito prejudicial e perigosa, porque este tipo de fuga é não só fácil de levar a cabo, mas tornado possível pela lei. O escravo descontente com o seu proprietário pode afastarse facilmente da casa, dizendo que pretende apenas ir visitar alguém nos 172 Participam deste fórum, além de Joseph Miller, Ricardo Duchesne, Patrick Manning, William H. McNeill, David Northrup, John Thorton, entre outros. 173 Ao longo do forum Miller afirma que o caminho para inserir a “África” na história mundial deve ser a adoção de uma perspectiva multi-centrica, que dê primazia à perspectiva do africano enquanto agente, inseridos em multi-camadas, e multi-centros, com atenção tanto às experiências individuais como àquelas em escala intercontinentais. Principalmente, o autor defende a escrita de uma história que não retenha o chamado “caráter triunfal”, de que uma raça se sobressaia sobre a outra, tecnologia sobre a outra, etc. MILLER, Joseph. “Beyond Black, bondage and blame: why a multi-centric wolrd history needs Africa. In: Historically Speaking, November/December, 2004, pp. 3-4. 84 arredores; mas em vez deste passeio, dirige-se à casa de um chefe de família, geralmente abastado e em vez deste passeio, dirige-se à casa de um chefe de família, geralmente abastado influente que já tinha escolhido. Chega, mata diante de testemunhas um cão, uma cabra, uma ovelha ou qualquer outra animal doméstico, o primeiro que encontrar.174 Apesar da descrição de Magyar não se referir especificamente ao kilombo no contexto Jaga, e se ater aos povos Ovimbundus e leste da Angola – embora alguns chefes Ovimbundus também reivindicassem ancestralidade Imbangala –, ela nos remete à complexa situação que era ser escravo nessas sociedades; principalmente, porque apresenta uma condição em que o proprietário de escravo não dispõe de maneira absoluta sobre os seus cativos. Nessas circunstâncias, o proprietário se via obrigado a renunciar ao comportamento de “senhor absoluto” para adotar uma atitude “paternalista” e evitar a “vatira”, que sempre permaneceria como uma possibilidade em aberto. 175 Fig.8 - Escravos carregadores de autoridades Fonte: CAVAZZI, Ibidem, p. 150 174 MAGYAR, Lászlo (Ladislas), “Breve informação sobre os países Moluva ou Moropuu e os estados Lobal”, Boletim da Academia de Ciencias da Hungria, Budapest, n. XI, Année XIX, 1859, pp. 62-921. Tradução portuguesa não publicada, 1992 Apud HENRIQUES, p. 230. 175 HENRIQUES, Ibidem, p. 231. 85 É interessante observar o contraste entre a descrição fornecida por Cavazzi, que menciona a todo momento o direito sobre a vida dos cativos aprisionados em guerra, dentro do kilombo, pela submissão a sacrifícios e canibalismo, e a descrição fornecida por Magyar, viajante que organizara caravanas comerciais em meados do século XIX e vivera entre os Ovimbundus, especificamente no Bié. Podemos acrescentar a esse contraste o destaque de que o primeiro autor está associado diretamente aos “projetos civilizatórios” do mundo ocidental, por fazer parte de uma ordem religiosa; ao passo que o segundo, por sua condição mais livre, que lhe permitiu até mesmo adoção de uma perspectiva africana – uma vez que se casara, enquanto estabelecido no Bié, com uma africana integrante de uma família real africana –, estaria mais propenso a observar outros traços nas sociedade ovimbundu, para além da violência e espanto. Destarte, a reflexão sobre essas instituições organizativas das sociedades africanas nos remete à ideia de uma permanente construção e movimento; especialmente o kilombo que, como pudemos observar ao longo desta seção, se constituiu como um lugar de intercâmbios culturais, onde são cambiados idiomas, estruturas sócio-políticas, em um processo cadenciado por cisões e diferentes assimilações. Se por um lado, na África Central, especificamente na Angola, ele foi um acampamento militar que deu base para expansão dos povos Imbangalas e, por conseguinte, sustentou os impérios Ovimbundus no século XVIII; por outro lado, o kilombo se referia também ao próprio espaço urbano daquelas sociedades, hierarquizado e, como vimos, associado à escravidão. *** Considerar a trajetória e função do kilombo em solo africano à luz do histórico de migrações e formação dos povos Ovimbundus, Imbangalas e Jagas, é de grande utilidade para compreendermos em que medida africanos escravizados embarcados dos portos da atual Angola mantiveram, nas Américas, algumas noções organizacionais – como hierárquicas e políticas de adesão – ; ou, ainda, como as adaptaram às novas circunstâncias, sobretudo, em situação de refugiados do sistema escravista; exemplo disso é o caso dos quilombolas das minas do Cuiabá e Mato Grosso, na fronteira entre as Américas espanhola e portuguesa, que, ao construírem as suas fortificações em territórios indígenas, viram-se obrigados a estabelecer relações com eles, conflituosas e, possivelmente, de tolerância. Apresentado o complexo quadro político existente no território angolano, especialmente na parte sul, assim como as primeiras percepções dos povos existentes na 86 região e das suas instituições organizativas, cabe-nos explicitar como o mercado transtlântico de escravos se inseriu e envolveu todos os sujeitos e espaços acima apresentados. 87 Mapa 2 – “Delineação geográfica dos reinos de Congo e Angola” por volta de 1656 Fonte: CAVAZZI, Giovanni Antonio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução de Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965. 88 Mapa 3 – Os reinos do Congo, Angola e Benguela (1747) Fonte: BELLIN, Jacques Nicolas. Carte des Royaumes de Congo, Angola et Benguela [1747].Disponível em < http://bndigital.bn.br/acervo-digital/ >. Acessado no dia 5 de dezembro de 2014. 89 Mapa 4 – Mapa de identidades políticas e étnicas na África Centro-Ocidental (século XVIII) Fonte: MILLER, 1988, P. 24.176 176 Vale destacar no mapa elaborado por Miller a movimentação dos povos Imbangalas, tanto na direção dos Ovimbundus, como ao norte e oeste. 90 Mapa 5 - Expansão das fronteiras escravistas, por Miller Fonte: MILLER, 1988., p. 148 91 Mapa 6 – Geomorfologia e bacias de Angola Fonte: HENRIQUES, Ibidem, p. 655. 92 CAPÍTULO 2 – Do hinterland à costa: o espaço e os “protagonistas” na produção de escravos em Benguela (1730-1828). A razão que eles alegam é que às vezes encontram pêlos nos odres, e eles julgam serem pêlos de homem esfolados para este fim. Portanto, só pelo terror de serem mandados para a América, agitam-se frenéticamente e, se possível, fogem para as matas. Outros, no momento de embarcar, desafiam as pauladas e matam-se por si mesmos, atirando-se à água (...).177 “O Novo Mundo era a morte”, assim o africano proveniente da África Central Ocidental poderia conceber a ideia de ser embarcado para outro continente.178 A narrativa de Cavazzi ilustra uma possível percepção do africano em relação a todo esse processo: ante a crença de que os seus ossos seriam retirados à pólvora ou que portugueses produziriam azeite à base de miolo e carne, resistiam desesperadamente para evitar tal destino e, se fosse preciso, com a própria vida. Apesar de recentes trabalhos lançarem luz sobre relatos “autobiográficos”, em que africanos narram a própria experiência da captura, cativeiro e, em alguns casos, a alforria, 179 pouco se conhece ainda a respeito do ponto-de-vista, angústia ou perspectiva de vida destes homens e mulheres – que, inseridos no comércio transtlântico de escravos, detinham poucas chances de retorno à terra natal. Por outro lado, mesmo diante da ausência quase generalizada da “voz do escravo” na documentação produzida pelos agentes da coroa portuguesa, é possível ao historiador, parafraseando o italiano Carlo Ginzburg, escavar os “meandros dos textos”, mesmo contra a vontade de quem os produziu e fazer emergir “vozes incontroladas”.180 Dessa maneira, o presente capítulo configura-se como uma análise da estrutura de produção de cativos. Inicialmente, apresenta um panorama sobre o volume de homens e mulheres comercializados de Benguela aos portos da América Portuguesa; subsequentemente, um panorama dos espaços e protagonistas do mundo escravista – luso-brasileiros ou africanos 177 CAVAZZI, Giovanni Antonio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução de Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965. p.160. 178 Joseph Miller, por exemplo, afirma que existia uma crença antiga na África Central Ocidental contada por ansiões, que afirmava que para além das montanhas e deserto existiria uma grande região de água e sua travessia poderia representar a morte. MILLER, 1988, p.4. 179 Entre as auto-biografias que têm sido objetos de análise, destacamos a escrita por Mahommah Gardo Baquaqua, que nascido na atual Serra Leoa, foi escravizado em 1840, sobreviveu a diversos contextos – escravidão no Brasl, EUA, entre outros -, se letrou, conseguiu sua liberdade (1847) e passou a articular o seu retorno à África. Em 1854 em Detroid, Michigan, conseguiu publicar sua auto-biografia de 65 páginas, que incluía um poema no apêndice de James Whitfield. Para uma análise da trajetória de Baquaqua, ver LAW, Robin; LOVEJOY, Paul E (orgs.). The Biography of Mohommah Gardo Baquaqua: his passage from slavery to freedom in Africa and America. Princeton: Markus Wiener Publishers, 2001. Ver também LOVEJOY, Paul E. Identidade e miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Barbo Baquaqua. AfroÁsia, 27 (2002), pp. 9-39 180 Ver GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Tradução de Rosa Freire d’Aguiare Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 10-11. 93 –, assim como as estratégias lançadas para o apresamento “legítimo” de africanos. Observaremos adiante que, enquanto a empresa escrava pudesse representar a morte para grande parte daqueles que foram escravizados, para outros africanos, poderia significar possibilidades comerciais ou prestígio político. 2.1.Benguela-América portuguesa: estimativas de comércio As estimativas gerais sobre a quantidade de escravos exportados da África Central, especialmente do porto de Benguela, nas últimas décadas têm sido constantemente revisadas, pela comparação ou consideração de novos núcleos documentais. Paul Lovejoy, por exemplo, afirma que do Oeste-Central Africano foram exportados cerca de 3 milhões de escravos,181 ao passo que Herbert Klein, na combinação de dados obtidos de portos, apresenta a estimativa de exportação de 2.082.250 escravos. No interior desse quadro, Lovejoy, David Eltis e David Richardson apontam que Benguela, entre os anos de 1676 a 1832, enviou para o Novo Mundo 205.700 escravos (ver tabela 1). A estimativa de exportação de escravos de José Curto, por sua vez, altera significativamente tal quadro ao ampliá-lo. Em um levantamento realizado entre os anos de 1730 a 1828, o autor apresenta a volumosa quantia de 407.166 cativos. Desse total, somente os dados apresentados pelo autor no século XVIII já ultrapassam as estimativas de Lovejoy, Eltis e Richardson, somando 283.071 (ver tabela 2). De acordo com José Curto, existe uma tendência crescente de comércio escravista ao longo do século XVIII, chegando ao seu auge na década de 1790 (especialmente no ano de 1793 quando foram enviados do Porto de Benguela 11.668 cativos) e, posteriormente, conhecendo um declínio gradativo. Em todo caso, a análise e interpretação desses dados deve considerar conjuntamente as relações comerciais estabelecidas no Atlântico e, localmente, as novas configurações político-econômicas que se formaram durante os séculos XVIII e XIX. Assim, o recorte temporal proposto pela pesquisadora Mariana Pinho Candido nos parece de grande valia. A autora apresenta um quadro do comércio na região de Benguela em que aparecem três diferentes etapas: a primeira, referente aos anos de 1617 a 1716, na qual os escravos enviados para o Novo Mundo, obrigatoriamente, deveriam passar por Luanda; a segunda, de 1716 a 1785, em que o comércio começa a ser feito sem a intermediação de 181 LOVEJOY, Paul. Transforming in Slavery. A history of slavery in Africa. 2 ed.. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 94 Luanda, realizado principalmente na rota Benguela-Rio de Janeiro; a terceira é compreendida entre os anos de 1785 e 1850, considerada o auge das atividades comerciais. 182 Para o primeiro período, apesar das dificuldades de precisar a quantidade de cativos exportados (em função da incompletude dos dados) de Benguela, já é possível verificar a presença de atividades comerciais na região. Segundo o pesquisador Roquinaldo Amaral Ferreira, até a década de 1680, Benguela já representava 1/3 dos escravos que saíam de Angola. É o que observa o autor no ano de 1688, em que, de 6.000 cativos exportados de Luanda, 2.000 se originavam de Benguela. 183 De acordo com Ferreira, as atividades comerciais escravistas já haviam se iniciado um pouco depois da fundação de Benguela, em 1617. No entanto, a intensificação do comércio só veio a se dar a partir da década de 1650, em função da expansão global do comércio de escravos em Angola. Essa expansão foi provocada, em larga medida, pelo aumento da demanda de escravos no Brasil à luz das descobertas auríferas, 184 juntamente com a fuga das práticas monopolistas dos governadores, que obrigaram mercadores a buscarem outras regiões da Angola; contribuiu, além disso, a falta de burocracia como a observada em Luanda, que favorecia uma prática de mercado mais livre na região. 185 Ao contrário de Luanda, não existia, no século XVII, uma extensiva rede de postos da administração portuguesa no interior de Benguela. Acrescenta-se a essa razão, a incapacidade de Benguela para conduzir operações militares de larga escala. 186 Tal falta de burocracia tornou a região um lugar atraente para mercadores. Ao mesmo tempo, verificava-se em Luanda a queda na exportação de escravos. Se entre 1654 a 1656 foram exportados 13.945, 187 no final da década de 1680 tal volume caiu para 6.000. Em todo caso, o estabelecimento do comércio direto entre Benguela e Rio de Janeiro, dentro do segundo recorte temporal proposto por Candido, contrariando aos interesses de comerciantes em Luanda, revelava o amadurecimento das relações comerciais na região, que acabou pressionando os chamados formuladores de políticas portuguesas para autorizarem o 182 CANDIDO, .2006, p. 21. AHU, Cód. 554, fls. 47-50.Apud FERREIRA, Op. Cit. 184 Sobre o aumento da demanda de escravos, após o crescimento da mineração na Minas Gerais, ver BOXER, C.R. O Império Marítimo Português. Rio de Janeiro: São Paulo, 2002 [1969], pp. 167-173. 185 Segundo Roquinaldo Ferreira, na metade do século XVII o comércio de escravos em Luanda era diretamente controlado por autoridades coloniais, que cobravam direitos para financiamento de campanhas militares no interior de Luanda. FERREIRA, 2003, pp. 75-76. 186 Para tanto basta pensarmos as dificultosas campanhas nos sertões de Benguela travadas na década de 1720, narradas no final deste capítulo. Acerca das diferenças administrativas de Luanda e Benguela ver FERREIRA, 2003, p. 75. 187 AHU, Angola, Cx. 6, Doc. 128. 183 95 trajeto. 188 Ainda até o final da década de 1720, os navios que saíam de Benguela eram obrigados a passarem por Luanda para pagarem direitos – resultado das pressões exercidas por moradores daquela cidade envolvidos com a empresa escrava. Contudo, com a transferência gradativa de comerciantes do Rio de Janeiro para Baía das Vacas (onde se localizava Benguela), atraídos pela alta oferta de mão-de-obra escrava e motivados pela alta demanda proveniente das minas de ouro no Brasil, no limiar da década de 1730, finalmente estava livre a navegação direta entre o porto de Benguela e Brasil. 189 Deve-se ressaltar que, desde 1716, navios começavam a obter autorizações reais para navegação de Benguela ao Brasil. Entre 1725 a 1728, por exemplo, quatro navios transportaram escravos diretamente ao Brasil sem a prévia-autorização das classes políticas de Luanda. 190 Tais fatores, associados à expansão da atuação de sertanejos e pombeiros nos sertões de Benguela, fizeram subir a taxa anual de exportação de escravos para a média de 1.102 escravos. Com a incorporação de novas localidades para o leste e sul, tais dados de exportação continuaram a subir: na década de 1750 com a média anual de 2.264, na década de 1760 com 4.717, na década de 1770 para 5.301 cativos; e, finalmente, adentrando o terceiro recorte temporal proposto por Candido, o auge da empresa escravista na região, com a média de 6.493 cativos nos anos 1780 e 9.275 na primeira metade dos anos 1790. 191 Então, a partir da segunda metade da década de 1790, a empresa escravista passa a sofrer um declínio gradativo, a ponto de se dar por encerrada em meados do século XIX. A composição do pano de fundo desse último momento das atividades escravistas em Angola e, precisamente, em Benguela, reúne numerosos fatores, destacadamente as pressões externas exercidas pela coroa inglesa;192 assim como a reorganização da economia na região, que, até o início do século XIX, estava intrinsecamente associada à empresa escravista. Essa reorganização se deu na combinação da prática de comércio escravista ilegal (pós-1830) com a migração gradual de pombeiros e sertanejos para o comércio das mercadorias consideradas “legítimas”, tais como o marfim, cera, borracha, entre outras. 193 188 Ferreira afirma que para compreensão do “pano de fundo” do que se passava durante a década de 1720 na região, é preciso considerar conjuntamente 3 fatores: o declínio das atividades comerciais no Loango (ao norte de Luanda), as invasões de competidores europeus de outras regiões e o crescimento das redes de contrabando entre o Brasil e África. FERREIRA, Op. Cit., p. 82. 189 CURTO, 2000, p. 274. 190 FERREIRA, Op. Cit., pp. 79-80. 191 CURTO, Op. Cit.,pp. 274-280. 192 Mediante às pressões inglesas para abolição do tráfico intercontinental, o governo brasileiro comprometeu-se em 23 de Novembro de 1826 a ilegalizar as importações de escravos a partir de 1830. Ver CANDIDO, 2008, p. 63; FLORENTINO, 1997, p. 43. 193 CANDIDO, 2008, p. 69. 96 Para Caconda, presídio estabelecido entre os rios Sucula e Cabala nos finais do século XVII no planalto de Hanya, tal declínio se fez sentir de maneira turbulenta.194 O mesmo, no auge das exportações escravas na região, era considerado o grande entreposto comercial de escravos. Fundado nos anos 1680, inicialmente, sua razão de ser estava correlacionada com o fato de ser passagem para as caravanas que partiam do interior, além de parada obrigatória para aqueles que necessitavam de água, alimentos ou outros suprimentos. Com a expansão gradativa das atividades escravistas para o leste e sul, o presídio, até o final do século XVIII, passou a ser a grande base de pombeiros e sertanejos, que adquiriam cativos no interior, para exportação dos portos de Benguela. A ruína da localidade, ante a proibição do comércio de escravos, se fez sentir na constante reconfiguração da população, que, segundo Candido, aumentou vertiginosamente a partir da década de 1850 (ver tabela 3). 195 Como Caconda era um grande entreposto comercial de escravos, com a abolição do comércio intercontinental, uma grande quantidade de cativos permaneceu no presídio, o que forçou comerciantes a adotarem novas estratégias no pós-1830 para venda desse contingente. Aqueles não comercializados no interior da região foram utilizados como carregadores de mercadorias que circulavam nas redes comerciais, sobretudo, o marfim e cera de abelha, dentro do novo quadro de reorganização comercial. De toda forma, quando finalmente o tráfico de escravos é abolido no Brasil, em 1850, o crescimento considerável da população escrava na região elucida com clareza tal situação: entre 1795 e 1850, de uma população escrava feminina de 1.600 para 10. 100 e masculina de 1. 800 para 10. 300 (ver gráfico 1). Em suma, essa retenção de cativos em Caconda, combinada com as estatísticas levantadas por Curto, que demonstram uma graduação do declínio de exportação até 1830,196 aponta para uma economia no atlântico que articulava não somente a costa com o sertão, mas continentes e numerosos personagens. Tal conjunção de diferentes agentes e contextos políticos, sociais, econômicos, foi o grande pano de fundo que permitiu tornar o porto de Benguela um dos principais da África Central. Ademais, para compreender mais a fundo o 194 O presídio de Caconda inicialmente foi erigido nas terras de Bango. Após ataque do soba Bango, foi completamente destruído. Posteriormente, as forças portuguesas retornam, repelem Bango para o interior e levantam um novo presídio, numa terra mais ao leste do Hanya, numa região conhecida como Catala. Segundo Francisco Inocência, governador de Angola no século XVIII, a nova região escolhida se apresentava mais vantajosa tanto na qualidade do ar e água, ao contrário da primeira escolhida, considerada pelo mesmo de “pior lugar do mundo”. Ver BNP, Cód. 8553, fl.92-92v, 14 de agosto de 1768. 195 Candido analisa numerosos censos entre 1790 a 1850 realizados no Presídio de Caconda (em torno de 22). A autora observa com estranheza a subida vertiginosa da quantidade de habitantes de 1844 a 1850 – de 22.100 para 60.229 -, que poderia ser resultado de constantes imigrações ou de falhas nas contagens dos anos anteriores. Ver capítulo 5 de CANDIDO, Op. Cit., 2003. 196 Entre 1796 a 1799 a média anual de exportação de 6, 421; de 1800 a 1809 a média de 6, 241 cativos; entre 1810 a 1819 a média de 4, 518; e, finalmente, na década de 1820 a média de 4, 192. CURTO, 2003, pp. 283-4. 97 contexto histórico que possibilitou a existência do comércio escravo no Atlântico no século XVIII, é preciso acrescentar a esta reflexão algumas notas; primeiro, sobre como tal comércio se organizou em território angolano e, segundo, a respeito do arranjo da configuração política na região, na medida em que os negócios luso-brasileiros cresceram nessa localidade. 2.2.A Organização do comércio no hinterland de Benguela A rede comercial que se organizou desde a chegada dos europeus à região é composta por diferentes personagens e lugares. No que diz respeito aos principais personagens, é preciso ressaltar, além da presença constante de lusitanos e brasileiros, a atuação direta de africanos, principalmente, chefes, sem os quais não seria possível o desenvolvimento da empresa escrava. Sobre tal participação, Isabel Castro Henriques pontua: (...) Perante as solicitações européias, os Africanos procuraram responder, ao mesmo tempo que se davam os meios para impor as regras africanas. A pressão européia nunca teria sido suficiente para provocar uma mudança das estruturas africanas, a não ser com a participação activa dos produtores e dos responsáveis políticos africanos. 197 Partindo desse pressuposto, devemos considerar o que circulava nos entrepostos – Caravanas e pombeiros –, motivados por interesses tanto de comerciantes da costa, como do além-mar, para finalmente entendermos o estabelecimento e fixação européia em determinados pontos, em presídios e feiras. a) Caravanas comerciais: do comércio escravista à sua decadência Instituições originárias das experiências comerciais africanas de média e longa distância, as caravanas comerciais, até a segunda metade do século XIX, e, portanto, ao longo do comércio atlântico de escravos, dependiam intrinsecamente das estruturas de parentesco e autoridades locais. Sobretudo, na dependência direta dos chamados “carregadores”, personagens fundamentais para sua realização, já que naquela altura não se havia adotado a prática de domesticação de animais na região. 198 197 198 HENRIQUES, Isabel Castro... p. 15. HENRIQUES, Op. Cit., p. 402. 98 Apesar da aparente homogeneidade das caravanas, ao longo do território que atualmente se compreende como Angola, elas foram caracterizadas por uma multiplicidade de cargos e hierarquias, que diferiam de acordo com a região, tempo, dimensão e destino final – fato que aponta uma grande flexibilidade no que tange à estrutura organizativa. 199 Beatrix Heintze, por exemplo, ao investigar as caravanas na região de Benguela e no Bié, já em meados do século XIX, apontou a existência dos seguintes personagens: intérpretes, quissongo, pombeiro, agregados e carregadores. Os intérpretes seriam personagens fundamentais para a realização e contato com as demais populações que apareciam ao longo do trajeto realizado pela caravana. Geralmente, eram nomeados um ou dois intérpretes. De acordo com o viajante húngaro Magyar, na região de Benguela, recebia a denominação de Kalei e, hierarquicamente, estava abaixo do quissongo, 200 que era o chefe de grupos que se formavam no interior das caravanas, de acordo com o local de origem. 201 Hierarquicamente, abaixo do quissongo, estava o “sukulu”, o personagem à frente dos carregadores da própria aldeia. O pombeiro, no interior da caravana, era um africano negociante encarregado de comercializar escravos para portugueses, frequentemente, um escravo de confiança e com autonomia. O termo, em si, possivelmente se originou do topônomio “Mpumbu”, um grande mercado junto ao lago “Malebo” e que posteriormente passou a fazer referência aos grandes mercados do Kongo. 202 No interior da caravana, existiam três maneiras principais de ser um pombeiro: (1) carregadores de famílias livres elegiam alguém para ser pombeiro; (2) carregadores livres tomavam a decisão de se colocarem sob as ordens de algum pombeiro que acompanhava a caravana; (3) ou, o pombeiro se fazia presente chefiando os seus escravos. 203 Os agregados, por sua vez, seriam aqueles que se incorporavam às caravanas aleatoriamente, ao longo do seu trajeto, em busca de maior proteção. Normalmente, esperavam semanas abrigados em aldeias remotas, à espera da passagem da caravana. As suas razões poderiam ser as mais variadas, desde a realização de negócios até a cobrança de 199 HEINTZE, Beatrix. Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história. Tradução de Marina Santos. Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 275. 200 Idem Ibidem, p. 276; Ver também HENRIQUES, que argumenta que possivelmente tal função tenha sido introduzida por europeus. Op. Cit., p. 407. 201 No Mdongo era chamado de “Muleque”, no Kongo de “capata” e na parte setentrional de Angola, recebia a designação de “cabo”. HEINTZE, Op. Cit., p. 272. 202 Na seção que se segue, uma reflexão mais apurada acerca de tais personagens. 203 Idem Ibidem, p. 275. 99 dívidas. A presença, geralmente temporária, era um fator que também contribuía para a constante flutuação e mudança nas dimensões das caravanas. 204 Temos, ainda, os carregadores, personagens centrais para realização de uma caravana, tanto no período referente ao comércio escravista, como após a abolição da escravatura. 205 De maneira geral, existiam os carregadores de “tipóia” e aqueles que levavam mercadorias. A tipóia era um equipamento cuja finalidade consistia no transporte de chefes de caravanas. Tratava-se de uma espécie de rede formada por um pedaço de lona presa a um varão, transportada por dois carregadores – um à frente e outro atrás –, que a cada dez minutos mudavam a carga de ombro. Por ser um trabalho pesado, o carregador só conseguia conduzir a tipóia durante quatro horas e, às vezes, até seis horas. Em trajetos longos, os carregadores de tipóia necessitavam de suplentes, para revezamento. Frequentemente, tais carregadores recebiam a remuneração mais elevada da caravana. Em meados do século XIX, na região de Benguela, ainda se observaria uma certa divisão de cargos entre os carregadores. Em ordem de importância e valor da remuneração, em primeiro lugar haviam os carregadores de têxteis, artigos de porcelana e vidros. Em segundo lugar, encontravam-se aqueles responsabilizados pelo transporte de aguardente, pólvora e armas. E, com menos prestígio e menor salário, haviam os carregadores de sal. Além destes, somavam-se às caravanas, os chamados “peritos”, que estavam encarregados da “proteção” durante a viagem de doenças e até da prevenção a ‘feitiçarias’.206 Vale ressaltar que, além desses personagens, ainda faziam parte do corpo da caravana os ajudantes, parentes, criados, escravos e jovens que se apresentavam voluntariamente. Henriques, que também investigou as rotas comerciais que cortavam o território angolano desde a fase de pré-colonização portuguesa, chamou a atenção para a recorrência de outros personagens que compunham o universo de uma caravana: os Kimbálo e Vakongo. Os Kimbálo eram os possuidores das mercadorias e desejavam transportá-la.207 Para o auxilio deles, era preciso que se reunissem transportadores (os chamados “Gambas”), que geralmente eram conhecidos ou familiares e deveriam consentir com o salário ofertado. Quanto aos 204 Ibidem, p. 279. Levando-se em consideração que uma caravana, durante o comércio escravista, não se realizava exclusivamente com o transporte de cativos, visto que para obtenção e compra de escravos, era necessário o carregamento de manufaturas e artefatos diversos. 206 Como europeus não estavam à parte ou ridicularizavam, não existem relatos mais detalhados sobre tal função. HEINTZE, Ibidem, p. 278. 207 Esta atribuição não poderia caber, por exemplo, a jovens aventureiros, mas sim a indivíduos ricos e possuidores de prestígio dentro da comunidade, haja visto que a sua organização perpassava por todos os níveis da sociedade. 205 100 Vakongo, seriam os caçadores de elefantes, que acompanhavam a caravana até o final do seu destino e tradicionalmente se dividiam em grupos no decorrer desta. Quando obtinham muito marfim, vendiam uma parte aos Kimbalo, em troca de outros produtos. Existia também a presença dos Kikumba e a diferenciação entre os escravos. Os Kikumba desempenhariam o papel dos criados, na maior parte dos casos, escravos comprados para execução de serviços que se relacionavam à função das mulheres, visto que elas não eram permitidas durante a realização das caravanas. 208 A presença dos Kikumba poderia ser compreendida como uma maneira de solucionar a ausência das mulheres. Quanto aos escravos, durante a realização das caravanas, diferenciavam-se em “escravos da aldeia” e “escravos comprados”. Os primeiros poderiam executar a função de carregadores, ao passo que a segunda categoria realizaria, assim como os Kikumba, as atividades associadas ao estatuto das mulheres. Aquele que organizava a caravana precisava levar em consideração que os integrantes do grupo, especialmente os carregadores, eram especializados apenas em rotas específicas e, dificilmente, faziam rotas alternativas ou partiam por caminhos desconhecidos. Logo, tal fato tornava mais interessante a compra de escravos para o trabalho de carregadores, já que os mesmos deveriam se submeter a qualquer percurso e se contentar com a “ração” fornecida pelo proprietário. 209 Além disso, escravos-carregadores também não organizavam greves ou causavam conflitos por aumentos salariais – fatos freqüentes durante a realização de caravanas210 – e, distantes do lugar de origem, se adaptavam mais facilmente aos seus amos: (...) Após a sua adaptação ao meio e face à distância relativamente à sua terra natal das regiões desconhecidas em que se encontrava, onde uma tentativa de fuga só podia significar uma nova escravização, os escravos recém- 208 Vale lembrar que para o viajante húngaro Magyar levar consigo sua esposa junto à caravana que organizou em meados do século XIX, foi preciso requerer autorização do Chefe Bié, que a concedeu – possivelmente porque Magyar havia se casado com uma integrante da corte. Pressupomos que a presença feminina poderia causar algum transtorno ou atraso, pelo argumento do chefe Bié, narrado por Magyar, que autorizou o embarque da sua esposa com a justificativa de que a mesma possuía escravos para transportá-la na tipóia e que, por isso não causaria nenhum atraso: “(...) Quanto a minha mulher, podia levá-la ou deixá-la em casa, a meu bel prazer. Que ele já não tinha nem poder nem direito de dispor da sua filha depois de ela se ter tornado minha esposa. Mas era sua convicção que a mulher devia servir fielmente ao marido em todas as situações, por conseguinte achava em que a minha esposa quisesse acompanhar-me; além disso ela tinha escravos bastantes, os quais a podiam transportar na tipóia, de modo que ela não me iria causar atrasos nem criar obstáculos na viagem. Tmabém não seria exposta a perigos, pois não era provável que os Ganguela ousassem atacar uma caravana chefiada e apoiada por um branco”. Sobre a diferenciação de escravos e a caravana de Magyar ver HENRIQUES, Op. Cit., p. 718. 209 A ração seria o subsídio de alimentação diária, parte da remuneração dos carregadores. Ver HEINTZE, Op. Cit., p. 284. 210 Os carregadores Nzinga, que preferiam rotas rumo ao interior de Angola, no período analisado, tinham fama de promoverem greves para obtenção de rações maiores. Ver Heintze, Ibidem, p. 266. 101 adquiridos ligavam-se, por questões de sobrevivência, mais estreitamente ao seu novo amo do que carregadores livres.211 Carregadores livres também apresentavam vantagens, principalmente no manuseio de armas de fogo – fundamental para garantia da segurança da caravana – e no contato com populações locais durante a viagem – fato que inspirava maior respeito à caravana. Estes, recrutados em sua maioria entre os mais pobres e aqueles que não possuíam relação influente dentro de suas respectivas sociedades,212 igualmente eram vítimas de maus tratos pelo caminho, que por vezes conduziram à morte. 213 A esses elementos, acrescentam-se as péssimas condições de trabalho, em que carregadores transportavam a carga sobre rios de difícil acesso, bosques, subidas, com jornadas que poderiam chegar até 10 horas diárias, com soldo considerado baixo. Em regiões devastadas por guerras, desabitadas ou em mal estado de desenvolvimento agrícola, multiplicavam-se os casos de carregadores enfraquecidos pela fome e moribundos, que acabavam sendo abandonados à beira do caminho, ou para não atrapalhar o andamento da caravana ou para a epidemia não se espalhar. 214 No que diz respeito ao recrutamento de carregadores, a abolição do comércio atlântico de escravos constituiu um fator importante para a compreensão da lógica em que o mesmo se processou. Ainda que os carregadores fossem figuras essenciais para composição de uma caravana comercial, como observamos anteriormente, a proibição do envio de escravos para o Novo Mundo, na década de 1830, forçou o rearranjo da economia no território angolano, investindo-se em outros produtos, como o marfim, a cera e a borracha. Tal rearranjo, por sua vez, provocou um “boom” na demanda de carregadores, visto que o novo motor da economia na região não era uma “carga móvel”, como outrora foram descritos os escravos por sertanejos como Silva Porto. 215 Com a sucessiva proibição do comércio de escravos, criou-se toda uma situação de instabilidade e incerteza na região, de modo que dois desafios se colocavam a todos aqueles que estavam envolvidos com a economia escravista no território angolano: em primeiro lugar, como eliminar a exportação de escravos de Angola e evitar que ingleses, que guarneciam a costa, se aproveitassem da situação e, consequentemente, como manter os mesmos 211 Idem Ibidem, p. 263. Heintze chama atenção que nalgumas caravanas poderia se ver entre pobres e pessoas sem prestígio a presença de carregadores oriundos de famílias nobres, como filhos de sobas e às vezes até chefes de aldeias. Idem Ibidem. 213 Embora tais casos fossem raramente documentados. Ibidem, p. 265. 214 SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos caminhos de África: Serventia e Posse. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, pp. 20-22. 215 Idem Ibidem, p. 292. 212 102 rendimentos alfandegários que se obtinham anteriormente com o comércio escravista. A situação se mostrava mais complexa na medida em que existia toda uma estrutura que envolvia diferentes personagens, elites locais e do além-mar, entre outras. Frente a estas e à eliminação do comércio escravista, o Governo Central esperava que a necessidade forçasse o interior africano a fornecer outros produtos que não fossem escravos e o mesmo, analogamente, se adequasse às manufaturas européias – assim, se manteria o mesmo nível de arrecadação aduaneira. 216 Todavia, apesar da extinção do comércio de escravos para as Américas em 1836, somente em 1845 as casas comerciais de Benguela passaram a pôr restrições ao recebimento de cativos. Como a fiscalização inglesa se intensificara a partir da década de 1830, na costa da África Centro-Ocidental, o comércio de escravos assumia a forma clandestina e, mesmo com as dificuldades para se chegar às Américas, os números se mantiveram estáveis até final da década de 1840; quando finalmente os portos brasileiros se fecharam ao recebimento de escravos africanos, com a lei de 4 de setembro de 1850 . 217 Após o fechamento definitivo do mercado escravista, o comércio de cativos, que atuava desde a década de 1830 na clandestinidade, passaria a desaparecer gradualmente. No entanto, vale destacar que, em regiões no interior, o comércio de escravos perduraria ainda; porém, se antes esses escravos eram a própria razão que motivava a realização das caravanas, nessa nova etapa, precisamente na segunda metade do século XIX, estariam reduzidos à posição de “moeda de troca” para obtenção de marfim. 218 À frente desse rearranjo, estava o marfim. Com a abolição do comércio escravista, passaria a ser o principal produto que movimentaria a economia na região angolana. Apesar de estar longe de equilibrar a balança de pagamentos, o marfim foi o principal produto que contribuiu para que a economia local se libertasse da escravidão, forçando a ampliação das redes de comércio para o interior – em Luanda por intermédio da feira de Kasanje e em Benguela por meio do Bié. 219 216 Ibidem, p. 84. SANTOS, Op. Cit., p. 87. 218 Idem Ibidem, p. 89. 219 Segundo Maria Emília Santos, a história comercial de Angola, do final do século XVIII ao XIX, pode ser demarcada entre a “primeira e segunda Plêiade” de sertanejos. A primeira, estaria situada entre o final do século XVIII e primeiras décadas do XIX, onde o comércio escravista ocuparia posição central e seria a própria razão de ser da realização das caravanas, ao passo que a segunda plêiade, se encontraria num momento de reestruturação da economia, onde o marfim, seguido da cera e borracha, seriam os grandes motores da economia e, o escravo, que antes era a razão de ser, nesta seria apenas um complemento, que desapareceria de cena aos poucos. Ver SANTOS, Ibidem, pp.87-88. 217 103 As caravanas, portanto, a depender do período histórico, teriam diferentes motivações e objetivos. Contudo, o seu formato e procedimento de composição, antes ou após abolição do comércio escravista, a despeito das diferenças micro-regionais, atenderiam aos mesmos padrões. O sertanejo Silva Porto, que organizou numerosas caravanas durante o século XIX, apontava três regras básicas que todos aqueles que pretendessem organizar uma caravana deveriam seguir: as caravanas precisariam ser numerosas, disciplinadas e bem-armadas. 220 As vantagens de uma caravana numerosa eram diversas, a começar pela imposição de respeito aos ladrões que haviam pelo caminho, a esperar oportunidades para atacar. A outra vantagem se dava na possibilidade de substituir rapidamente carregadores que eram acometidos por doenças ou acidentes no decorrer do percurso. 221 Entretanto, se, por um lado, uma grande caravana poderia ser benéfica para proteção externa, por outro lado, trazia complicações no sentido de disciplinar a grande massa, principalmente, quando se levava em conta o caráter heterogêneo das caravanas – carregadores de várias etnias, por vezes até rivais. Como a responsabilidade acerca dos carregadores recaía sobre o sertanejo que organizava a caravana – sobretudo, quando os carregadores eram fornecidos por sobas –, os cuidados com a disciplina mereciam atenção especial. Disciplinar uma caravana, antes de mais nada, estava longe de ser um mero exercício de força. Era preciso que o chefe da caravana observasse minuciosos detalhes: (...) Os chefes das caravanas precisavam organizar internamente a sua gente e paralelamente vigiar tanto quanto possível os contatos com o exterior. Nesse sentido adotaram uma série de medidas de segurança e de soluções para casos pontuais que lhe permitiam preservar a integridade da caravana. Qualquer ordem ou resolução para o dia seguinte era transmitida à noite no quilombo pelo pregoeiro, para que todos os membros da comitiva tomassem conhecimento ao mesmo tempo e não pudessem alegar ignorância.222 Durante o percorrer da caravana, existiam regras básicas de disciplinas, como a imposição de nunca ultrapassar a bandeira ou avançar nas guardas da frente, e, igualmente, não deixar ninguém na retaguarda, a fim de que se prevenisse a possível ação dos ladrões, que segundo Silva Porto 220 Ibidem, p. 18. Deve-se salientar que uma caravana numerosa poderia agregar até mil integrantes e, nalguns casos, chegou a reunir até 3 mil pessoas. Ver SANTOS, Ibidem, p. 18. 222 Idem Ibidem, p. 26. 221 104 (...) vendo e não sendo vistos eles acompanhavam durante grandes percursos a caravana, à espera do momento propício para atacar. Se um desgraçado doente se deixava ficar para trás, aprendiam-no e tratavam-no,adquirindo assim um escravo.223 Até a escolha do lugar onde se armaria o acampamento deveria ser objeto de cautela. Geralmente, era montado em regiões próximas à água, pois lugares ressequidos poderiam deixar o acampamento vulnerável a incêndios. A fim de evitar incêndios, várias precauções eram tomadas: (...) A fim de evitar catástrofes destas os sertanejos passaram a não entrar nos quilombos antigos, nem sequer naqueles que tinham construído na ida. Na torna-viagem fabricavam novo acampamento nas imediações, utilizando a madeira antiga apenas para combustível. Terminado o trabalho do fabrico passava o pregoeiro por todos os grupos de barracas deitando o pregão de: “Fogo! Fogo! Cautela com o fogo!”. Era o aviso para limparem e varrerem circularmente no local das fogueiras, a fim de não se comunicar às barracas ou ao certo.224 Finalmente, além da quantidade de integrantes e disciplina, a caravana deveria estar sempre bem armada. Estima-se, por exemplo, que, nas grandes caravanas realizadas entre o Bié e Benguela no século XIX, metade dos seus integrantes se encontravam armados. Em algumas ocasiões, bastava a apresentação dessas armas ou disparos para intimidar ladrões que as espreitassem. Salienta-se que as caravanas, precedidas pela fama de possuírem armas de fogo, se sentiam mais fortes e seguras. 225 A posse e o uso correto das armas, frente às populações que não sabiam como utilizá-las (ou que as desconheciam), dava vantagem ao sertanejo e à caravana. 226 O recrutamento, de maneira geral, era realizado de bloco ou individualmente. Na primeira modalidade, a negociação se dava diretamente com sobas, ao passo que, na segunda, os próprios carregadores se apresentavam ao organizador da caravana. Precisamente, é a primeira modalidade de recrutamento que prevalece no período investigado (século XVIII e primeiras décadas do XIX)227, e ela se mostra repleta de detalhes e protocolos, conforme observa Heintze: 223 SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, vol. 1º, p. 8, 16 de maio de 1846 Apud SANTOS, Op. Cit.,p. 26. Idem Ibidem, p. 28. 225 HEINTZE, Op. Cit.,p. 296. 226 SANTOS, Op. Cit.,p. 29. 227 Segundo Heintze, a segunda modalidade de recrutamento ultrapassa em importância o recrutamento via-sobas ou chefes de aldeias, somente no final do século XIX, com o boom da produção de borracha. Ver HEINTZE, Op. Cit.,p. 270. 224 105 (...) Um comerciante que, por exemplo, quisesse expedir mercadorias de Malanje, mandava chamar um soba ou um ambaquista das imediações (isto quando não eram estes os próprios empresários) – geralmente corriam rumores acerca do sítio onde talvez ainda se pudesse encontrar carregadores - , dava-lhes as boas vindas com aguardente e tecidos e depois negociava com ele o número necessário de carregadores para uma determinada data, uma determinada rota, um determinado destino e um determinado salário. O soba assumia então a responsabilidade pelo pessoal assim contratado, com toda a sua fortuna como garantia, responsabilidade essa que durante a viagem podia recair parcialmente sobre o chefe, ou seja, o cabo desse grupo de contratados. Caso o próprio soba participasse da viagem, ficavam sempre as suas mulheres, uma parte dos restantes dos bens ou um fiador abastado, nomeado de antemão, a quem mais tarde se podia pedir contas por eventuais prejuízos causados pelos carregadores. Estes acordos eram depois ratificados num protocolo antes da partida, na presença de ambas as partes, frente ao chefe do distrito ou do comando militar. Este zelava também pela comparência dos carregadores mais lentos no momento da partida, para o que os convocava os respectivos sobas e os metia na cadeia sem cerimônias até que estes tivessem honrado os compromissos acordados.228 Quando um soba não possuía carregadores suficientes, acabava por negociar com outro chefe a quantia de que necessitava. Essas situações, se, por um lado, solucionavam a necessidade de braços, por outro lado, criavam novos problemas, pois em alguns casos os carregadores convocados pertenciam a povos rivais. 229 Todavia, mesmo com tal problema de demasiada heterogeneidade, a contratação de bloco ainda se mostrava mais vantajosa, pois facilitava o desfecho e rápida realização da caravana. Apesar de já estar em meados do século XIX, a descrição do viajante húngaro Magyar é de grande valia para se pensar todos os procedimentos que se deviam ser tomados para a organização de uma caravana, no sul do território angolano. Entre os anos de 1840 e 1850, o viajante, que havia se fixado na região do Bié, detalhou os pormenores que antecediam à partida de uma caravana na região. Esteve por um ano no sul da Angola, estudando diferentes idiomas, a fim de se sentir mais seguro para realização dos seus futuros projetos. O seu objetivo era organizar uma caravana do Bié até a região dos Lundas, ao leste de Angola. Essa rota havia sido abandonada há vários anos, relata o viajante, por conta dos freqüentes ataques dos bangalas (ou Imbangalas), que estavam entre a partida e a chegada da rota. Ao descrever o que significavam as caravanas na metade do século XIX, o autor dizia: (...) As caravanas que viajam para os territórios distantes do interior costumam partir no começo da estação seca, e aqueles que querem tomar 228 229 Idem Ibidem, p. 269. Ibidem, p. 270. 106 parte nelas começam alguns meses antes dos preparativos necessários. Logo que acabam os seus preparativos após terem posto em ordem os assuntos domésticos com vista à longa ausência, partem e reúnem-se no dia combinado, no sítio designado, geralmente entre Kokéma e o Koanza. Ali, as pessoas reunidas esperam alguns dias até estarem no local todos os membros da caravana, que vêm de diversas regiões e chegam pouco a pouco. Após o que, sob a orientação de um chefe de caravana já conhecido e de confiança, eles iniciam a viagem. 230 Segundo Magyar, o procedimento para organização de uma Caravana, ainda naquela época, era caracterizado por uma grande mobilização da comunidade; os membros de diferentes famílias, se envolvidos e se dessem o consentimento, estavam obrigados a participar para composição das mesmas, inclusive com responsabilidades para com os mobilizados. O viajante relata que, se o convidado morresse durante a realização da caravana, aquele que convidou era considerado culpado. Nesse caso, teria que pagar uma indenização aos familiares, em espécie ou a “preço de sangue”. 231 A descrição que Magyar faz da convocação e convencimento da população local, para realização da caravana, ilustra o quão poderia ser importante a realização do empreendimento para as comunidades bienas: (...) Quem pretende organizar uma caravana para uma terra qualquer, reúne primeiramente a sua própria gente de maior importância no Jango da sua libáta e informa-a da sua intenção. As pessoas reunidas, entre as quais o kissongo desempenha evidentemente o papel principal, reflectem então no plano que lhes foi proposto, sob todos os aspectos calculam o proveito e o lucro que se pode esperar do empreendimento planejado e ponderam os factores favoráveis e os obstáculos que tornariam o empreendimento ou realizável ou impossível. Posto o que, conforme as circunstâncias, ou dão o seu consentimento, ou recusam tomar parte no empreendimento. No primeiro caso, comprometem-se logo a querer apoiar, com todas as suas forças a realização da caravana; no segundo, abandonam o Jango sem dizer palavra e dão assim a entender ao autor do plano que deve desistir absolutamente desse plano, ou pelo menos que deve modificar bastante.232 Após todos os preparativos e realização de cerimônias, 233 a caravana partia para o seu destino. Embora fosse organizada já dentro de um contexto de inexistência do comércio atlântico de escravos, a caravana de Magyar ilustrava a continuidade do comércio escravo no interior de Angola, após a proibição intercontinental, e também o grau de envolvimento da 230 A referida carta foi publicada no apêndice da tese de doutoramento de Isabel Castro Henriques. Segundo a autora, a tradução das cartas de Lázlo Magyar foram cedidas pela pesquisadora do AHNA (Arquivo Histórico Nacional da Angola) Dr.ª Maria Conceição Neto. HENRIQUES 1996, p. 715. 231 Pressupomos que seria com a própria vida, ou com a vida do considerado responsável. 232 Idem Ibidem, p. 716. 233 Magyar menciona a realização de diversas solenidades com comidas, bebidas e danças, antes da partida da Caravana. Idem Ibidem, p. 718. 107 comunidade com a sua própria realização, sem o qual não seria possível, o que implicava sérios riscos para viabilidade do comércio escravista. É preciso considerar que as caravanas, às quais se referia o viajante húngaro, eram as chamadas “caravanas Ovimbundus", que tradicionalmente tinham como ponto de partida o Bié e, como ponto de chegada, uma imensa rede de relações comerciais direcionadas ao leste, às vezes nas proximidades do Oceano Indico ou costa oriental. Compravam marfim em troca de mercadorias européias, gado e até escravos jovens. 234 Elas não eram organizadas em portos como Luanda ou Benguela, mas sim em localidades do interior, como Mbanza, Kongo, Kasanje, Bailundo, Bié e Caconda. E, fundamentalmente, aqueles que se encarregavam de promovê-las, como observamos nos mesmos relatos de Magyar, seriam numerosos agentes, desde luso-europeus, chefes africanos até comerciantes africanos, embora a sua origem fosse eminentemente africana, segundo Henriques. Organizadas no contexto africano, à medida que o comércio crescia de média a longa distância, essas caravanas formaram-se, inicialmente, com o intuito de defender as redes comerciais dos obstáculos, tais como os perigos da floresta, rios, feras (que era preciso ou matá-las ou permanecer longe) e mesmo dos “outros” que comumente consideravam ameaçadora a presença de outros povos nos seus respectivos territórios. 235 Apesar da tentativa de “laicização” das caravanas, organizando-as estritamente em lógicas comerciais, com a chegada dos europeus, 236 elas permaneceram predominantemente concebidas dentro de lógicas africanas, uma vez que a sua montagem dependia em sua essência das estruturas de parentesco africanas – o próprio Magyar organiza a sua caravana segundo lógicas africanas, aproveitando-se do fato de ter se casado com uma africana da corte. 237 Finalmente, podemos atribuir às caravanas o papel de organizar as rotas de longa distância no interior da África, mesmo antes da chegada dos europeus. 238 Para tanto, é preciso equacionar o tempo e a distância, sob contexto africano, em que nem sempre o “tempo" (ou sua velocidade) será o juiz do sucesso do empreendimento, à luz de todo cerimonioso 234 HENRIQUES, Op. Cit., p. 397. Tal como o temor dos Bienos quanto à ação dos “Bangalas”, descrito por Magyar. 236 As caravanas organizadas pelo brasileiro Silva Porto refletem isso, no século XIX. 237 HENRIQUES, Ibidem, p. 402. 238 Acerca desta tese, Isabel Castro Henriques questiona a chamada “branquização” da história comercial da África, tese que sustenta que o comércio de longa distância só passou a existir com a presença européia. Contrária a tal posição, a autora menciona numerosas rotas de comércio que ligavam os diferentes povos na Angola, que foram utilizadas posteriormente por europeus. 235 108 preparativo de uma caravana comercial na região, tal como observamos na narrativa do viajante Magyar. Fig. 9- Travessia de caravanas, por Capello e Ivens (1881) Fonte: HENRIQUES, Ibidem, p. 423 Fig. 10 - Paragem de carregadores Fonte: CARVALHO (1892) Apud HENRIQUES, Ibidem, p. 421 109 b) Redes comerciais entre os reinos de Angola e Benguela A complementaridade e a interdependência foram as principais características que ligavam as rotas de comércio entre os reinos de Angola e Benguela, e permitiam que as diferentes mercadorias cruzassem as províncias com segurança. Pode-se dizer que, antes da chegada dos europeus, existia uma estrutura interna, formada por diferentes trajetos que conectavam diferentes regiões. A partir do século XVI, o que se observa, principalmente, é uma pressão exercida externamente, tanto pelas mercadorias que chegavam da costa Ocidental como as da Oriental. Todavia, tal pressão: (...) serviu para reforçar o carácter estratégico das zonas comerciais já existentes, pois a maneira mais rápida de assegurar a comercialização residia no recurso aos caminhos que já tinham dado provas de eficácia. O comércio exterior só pode tentar recuperar para si os circuitos que até então tinham assegurado a regularidade das trocas interafricanas. Este comércio exterior exerce, em primeiro lugar, uma pressão constante para suscitar, conservar ou ampliar o comércio de escravos, o que não o impede de aceitar as mercadorias que podem interessar os mercados internacionais europeus, americanos ou até asiáticos.239 Observa-se que, mesmo diante da pressão externa, africanos não renunciaram ao controle das rotas comerciais. Pudemos notar isso na própria reclamação do Governador Paulo Caetano, em 1728, de que havia falta de escravos porque os negros não os levavam mais, após a repressão da ação rebelde dos sobas nos sertões de Benguela.240 Certamente, os casos mais significativos, no que se referem a Angola, e que ilustram o controle africano dessas rotas, estão associados à famosa feira de “Kasanje” e à atuação política e militar da rainha Nzinga, ambos presentes na vida política portuguesa no mundo africano anterior ao século XVIII. A primeira localizava-se em uma região conhecida como Baixa de Kasanje, cujo território estava limitado a leste pela margem esquerda do rio Kwangu, a norte pelo rio Lui e oeste pelas montanhas de Talla-Mugongo (ver mapas 6). Ocupava uma superfície de cerca de 8500 Km², estendendo sua influência para todas as regiões vizinhas. 241 A sua importância se elevou a tal grau nos anos setecentos, que a ideia de 239 Ibidem, p. 359. Na última seção do presente capítulo, uma análise da instabilidade formada no hinterland de Benguela entre sobas (chefes) locais e funcionários da coroa lusitana. 241 Existem 3 autores fundamentais, para se pensar a localização do reino de Cassange e sua hegemonia comercial na região: Rodrigues Neves, Salles Ferreira e Henrique Carvalho. Os dois primeiros foram militares que estiveram no território e coletaram informações junto aos Maquita (filhos de Jaga). Ambos fizeram questão de salientar a imprecisão das fontes. Carvalho, por sua vez, aparenta ter colhido suas informações junto a 240 110 um comércio português para além das fronteiras do território Kasanje, ao leste, principalmente, seria impensável. Assim observara o brasileiro Correia Leitão em meados do século XVIII: (...) este grande Cassange impede todos que em caso nenhum tenham os portugueses trato ou comércio com os poderosos e muitos potentados de além do rio; pena de vida, e de geração vendida aos seus vassalados que mostrarem tal caminho, e a razão da sua teima e ordem e, além de outras particularidades, para que se não ponham os portugueses da outra banda do rio e lhe tiremos o comércio dos escravos de que vivem, e os deixemos avassalados e sujeitos a presídios e nos não façamos senhores dessas muitas gentes que habitam tão dilatadas terras.242 O militar Cadornega, por sua vez, já destacava com detalhes o quão poderoso havia se tornado o potentado de Cassanje, ainda no final do século XVII: [O Chefe] veste mui ricos panos e telas e sedas [governa] com justiça e razão, é o poderosíssimo Jaga Casangi que rei e imperador se pudera intitular pela imensidade dos vassalos que tem de sua conquista e domínio (...) que se avaliam em mais de mil sobas fidalgos, senhores de muitas terras e vassalos, que seu númer se não pode compreender.243 As narrativas em torno da rainha Nzinga, assim como as descrições da poderosa feira de Cassanje, se revelam igualmente numerosas. Nzinga, em uma combinação variada de várias estratégias, que iam da conversão ao cristianismo até às práticas, liderou a resistência ao avanço lusitano no território da atual Angola por cerca de 40 anos – do momento que assume o potentado, por volta de 1627, até sua morte aos 82 anos em 1663.244 Entre os pontos notáveis dessa resistência, no que tange às questões comerciais, destacava-se o fato dos domínios de Nzinga abrigarem escravos fugitivos – elemento que acabava instabilizando as relações comerciais na região, já que elucidava a insegurança das operações e possibilidades de prejuízo. O próprio Cadornega, em 1660, narra um episódio em que tivera sido convocado na qualidade de juiz para tratar de um assunto na corte de Nzinga e menciona a situação de vários escravos fugidos de pombeiros existentes naquele domínio. 245 Quiocos e Lundas, não entre Imbangalas. Ver CARVALHO, Henrique. Ethnografia e História tradicional dos povos da Lunda, 1890; Idem, O Jagado de Cassanje, 1998; FERREIRA, Francisco de Salles. A Campanha de Cassange, Lisboa, 1851; NEVES, António Rodrigues. Memória da expedição a Cassange commandada pelo Major graduado Francisco de Salles Ferreira em 1850, Escripta pelo capitão móvel d’Ambriz António Rodrigues Neves, Lisboa, Imprensa Silviana, 1854. 242 LEITÃO, Manuel Correia, “Viagem que eu, sargento môr dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas partes de Cassagen e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756, 56.ª série, n. os. 1-2, Janeiro-Fevereiro 1938, p.30 243 CADORNEGA, 1972, III,p. 215 Apud Henriques, Op. Cit.,p. 203. 244 Lembramos a reflexão da seção 1.2.2. do capítulo I, desta tese, acerca da resistência e possível impacto no imaginário do povo angolano de Nzinga. . 245 CADORNEGA, 1940-1942, III, p. 74. 111 Nesse quadro, vale citar o estudo de Beatrix Heintze, que, ao investigar as fugas de cativos ocorridas ao longo do século XVII, no território de Angola, aponta o potentado de Nzinga como um dos destinos preferidos dos fugitivos, quando de Luanda, ou no trajeto para Luanda, estavam a fugir para o leste.246 Na análise dos documentos do período, a autora informa que, em alguns casos, aldeias inteiras foram se refugiar nos domínios de Nzinga e, em outros casos, pessoas perderam 150 cativos de uma única vez. Vários desses cativos fugitivos, ao serem aceitos, principalmente aqueles treinados militarmente, se somavam às fileiras da rainha. 247 As constantes queixas de fugas, asilos de cativos e campanhas militares movimentadas contra sobados acusados de abrigar cativos, revelam a necessidade de garantir a estabilidade entre os potentados, para o bom fluir das relações comerciais. É o que se nota no regulamento para o funcionamento das Feiras em 1764, ou seja, cerca de 100 anos após os conflitos com a rainha Nzinga, no território angolano. No mesmo, é notória a preocupação em proteger o comércio dos chamados “atravessadores” e garantir a segurança dos comerciantes de “cabeças” e ceras. 248 O conteúdo dos artigos é ilustrativo nesse sentido: no Artigo 6º, determina-se que os “sobas e potentados vivam na boa fé e sob os princípios da verdade; no Art. 10º., que o escrivão cuidasse para que os brancos não enganassem os negros; o Art. 12, por sua vez, dispõe sobre a necessidade dos Capitães-mores atraírem potentados, para o crescimento do comércio; e, finalmente, o Art. 14, que determina que nenhum capitão deveria intervir nos negócios internos dos potentados, e tratarem apenas de negócios. 249 Ou seja, a fim de que fosse garantido o bom funcionamento das redes comerciais, era preciso assegurar a paz tanto internamente, como nas relações entre agentes lusitanos e africanos. 246 Segundo a autora, tais fugas se davam no interior de um contexto onde nem todos os escravos capturados nas chamadas “Guerras justas” ou relações comerciais diversas, no interior de Angola, foram enviados para o “Além-Mar”. Vários permaneceram na região, o que facilitava a possibilidade de vislumbrarem a fuga, uma vez que conheciam o terreno onde se encontravam e tinha parentes na região, que poderia auxiliar nos planos. Além do potentado de Nzinga, durante o século XVII existiam numerosos destinos que poderia se valer cativos fugitivos: o sertão de Luanda, onde havia uma mata cerrada e impenetrável e o soba Nsaka; o sobado de Quissama, ao sul do Kwanza, que foi destino dos cativos que fugiam dos presídios de Muxima, Massangano e Cabambe; e a região dos Ndembu e Reino do Kongo – este último sítio, passou a ser inseguro, uma vez que foram vários os casos de entrega de cativos fugitivos aos portugueses, após pressões. HEINTZE, Beatrix. Asilo Ameaçado: oportunidades e consequências da fuga de escravos em Angola no século XVII. Tradução de Lotte Pluger. Luanda: Ministério da Cultura, 1995, pp. 14-16. 247 Ver também Idem, “Das Ende des unabhangigen staates Ndongo (Angola). Neue Chrnologie und Reinterpretation (1617-1630)”. Paideuma, 17, pp. 197-273; LOVEJOY, Paul E. “Fugitive slaves: resistance to slavery in the Sokoto Caliphate”. In: Gary Y. Okihiro (Org.). In: Resistance, Studies in African, Caribeean, and Afro-American History. Ambherst, 1986. 248 “Cabeças”, de acordo com as nossas observações nos arquivos de Angola do acerco do Arquivo Histórico Ultramarino, eram como eram denominados os cativos, ao longo das operações. 249 É interessante observar o cuidado, ao menos no regulamento, para a não-intervenção nos negócios internos dos sobados, apesar dos constantes documentos que demonstram intervenção no sentido de proibir manifestações religiosas no interior dos domínios lusitanos. AHU, Angola, Cx. 48, Doc. 35. 112 E quais seriam as principais redes que cortavam o território de Angola e, por conseguinte, transitaram nelas as chamadas “cabeças”? A análise dos numerosos registros de viajantes, sertanejos e dados oficiais, entre os séculos XVIII e XIX, demonstra a existência de diversas estradas que cortam o território de Angola, de norte a sul e leste a oeste, destacadamente as seguintes: “Kasanje-Musumba”, “Jia Dia Panda”, “Bié ao Lovale” e do “Bié-Kasanje”. 250 A primeira ligava a supracitada feira de Kasanje à Musumba, capital dos Lundas, de onde partiam caminhos para o Kazembe, na costa oriental da África. Era considerada a principal fornecedora da feira de Kasanje, “porta dos sertões da Lunda”, por assegurar o fluxo de mercadorias européias, à troca de escravos e marfim. A mesma era controlada por Imbangalas e populações que dependiam de tal circuito. 251 A Jia Dia Panda, também chamada de “o grande caminho”, ligava o território de Kasanje à Musumba, através do território Quioco, ao sul. Esta também fora utilizada por Bienos, que se direcionavam ao Musumba, e buscavam evitar o Kasanje, uma vez que a mesma se dirigia a Musumba pelo Sul (território dos Songos). 252 Além de ligar o Bié ao Musumba, também possuía caminhos que levavam ao Lovale, no sudeste de Angola: (...) Próximo do alto do Tchikapa, a Jia possuía uma conexão com os caminhos que subiam do Sul. Esta característica dava-lhe o estatuto de nó comercial estratégico, dado que assegurava a confluência com um caminho que levava até ao eixo transversal que ligava o Bié aos territórios ganguela e luena (lovale), situados a leste, quando flectia para leste – para lá do Zambeze – e para as regiões do centro-Sul do continente.253 Sobre a Jia, pelo que atesta o viajante Linvingstone,254 havia um intenso fluxo de caravanas, que levavam não apenas produtos como feijão, cera e marfim, mas também escravos. Ela era objeto de intensa disputa entre Imbangalas e Ovimbundus. Segundo Henriques, por um lado, os Imbangalas eram os antigos e dominadores comerciantes; por outro lado, os Ovimbundus que viviam nos reinos Bailundo, Huambo e Bié, até o final do século XVIII, haviam se tornado poderosos comerciantes de escravos, que os concentravam, sobretudo no Bié, para depois remeterem-nos à Benguela. Tais grupos organizavam 250 Ver mapa 18, sobre as rotas comerciais em Angola... HENRIQUES, Op. Cit., pp. 385-388. 252 Possivelmente o viajante Magyar, citado na seção anterior, percorreu o mesmo trajeto, a fim de evitar os Imbangalas. 253 HENRIQUES, Ibidem, p. 392. 254 LIVINGSTONE, David. Explorations dans l’intérieur de l’Afrique australe ET voyages à traver Le continent (...) de 1840 à 1856, 2 vols. Apud HENRIQUES, 1996, p. 393. 251 113 imponentes caravanas que penetravam progressivamente no interior, pondo termo ao monopólio imbangala nas regiões atravessadas pela Jia. 255 A terceira rota, que ligava o Bié ao Lovale, fazia conexão com a Jia e era percorrida, principalmente, pelas caravanas ovimbundo. Atravessava todo o território da África Central, fazendo conexão com a costa ocidental e chegando às proximidades com o Oceano Índico, às vezes até a costa oriental. Tal rota cruzava diferentes territórios, como os reinos de Muropoe Kalovar (lovale), Lubanda, Katanga e Kazembe, e colocava o Bié em contato comercial com os Quiocos (a leste) e os Bundo e Ambuelas (ou Banguelas) a sudeste, além dos Songos, que estavam entre o Bié e o Lovale. Destaca-se que os comerciantes visitavam a região, principalmente, por lá adquirirem escravos a preços reduzidos. 256 A última principal rota comercial na região ligava o Bié à feira de Kasanje, através do território Songo. Ela percorria uma linha reta até o rio Cuanza e de lá haveria um caminho que adentrava o território songo. Deste ponto até a feira de Cassanje, levava-se em média 4 dias. De acordo com comerciantes que estiveram na região do Bié nos anos oitocentos, nela, havia uma intensa circulação de cera, marfim e escravos. 257 c) Sertanejos, Pombeiros e Financiadores No ano de 1796, uma instrução encaminhada pela rainha D. Maria I pusera em relevo a complexa situação comercial em Benguela. Na mesma, a rainha instruía o governador de Benguela, Alexandre José Botelho de Vasconcelos, a prevenir possíveis disputas entre sertanejos, pombeiros e sobas, principalmente, na hora do contrato dos chamados “carregadores”. Era preciso que comerciantes procurassem primeiramente os sobas e, assim, estabelecessem um salário justo. 258 No mesmo período, escrevia Silva Correia, observava-se possíveis complicações para sertanejos conseguirem carregadores. Segundo o autor, eram 255 Progressivamente, do final do século XVIII a meados do XIX tal rota passa a ser dominada por caravanas Ovimbundus. Ibidem, p. 395. 256 Ibidem, p. 397-399. 257 Ibidem, p. 400. Ver também mapa 7, acerca das rotas existentes no “Planalto central de Benguela”, antes e após 1750. 258 AHU, Angola, Cx. 83, Doc. 41, de 13 de abril de 1796. 114 recorrentes os casos de corrupção de Capitães, encarregados de mediar a distribuição de “carregadores’; motivados por “ambição”, usavam suas respectivas atribuições a troco de presentes – caso não recebessem, havia o grande risco dos produtos comercializados não atingirem o destino final. 259 Segundo Cândido, diante desse contexto, era freqüente que Sertanejos e Pombeiros preferissem negociar diretamente com sobas do que se submeterem às corrupções dos agentes da coroa portuguesa; os sobas, além de controlarem diretamente o comércio nas suas áreas, poderiam fornecer os carregadores necessários. 260 Esses personagens, pombeiros e sertanejos, foram nomes fundamentais na realização das redes comerciais e obtenção de cativos, na medida em que a empresa escrava se alargava aos sertões.261 Tal rede articulava diferentes lugares e personagens, a depender das circunstâncias. Se, por um lado, as guerras, desde a instalação portuguesa naqueles territórios, se constituíram como as principais maneiras de obtenção de cativos, 262 por outro lado, os constantes tratados (a exemplo do que vimos acima, quando sertanejos e pombeiros procuravam diretamente os sobas) foram elementos fundamentais na produção de escravos, visto que somente em uma situação estável seria possível o movimento desses comerciantes. 263 Em termos diretos, ambos os personagens seriam a ponte entre comerciantes da costa e em áreas do interior. Sertanejos, propriamente dizendo, seriam agentes comerciais e estariam encarregados de organizar o transporte de bens (cera e marfim, por exemplo) e escravos. 264 Poderiam ter as origens mais diversas, entre condenados, criminosos exilados, desertores ou até mesmo aventureiros. 265 A descrição do explorador Serpa Pinto, já na segunda metade do século XIX, nos fornece uma dimensão do que poderia ser o “sertanejo” no mundo comercial angolano: 259 Silva Correia, História de Angola, 1, p. 37. Apud HENRIQUES, Op. Cit. CÂNDIDO, Op. Cit., p. 126. 261 O seguinte alargamento aos “sertões” em Angola se passa ordenadamente a partir da edificação de Luanda, em 1576 e avança gradualmente ao interior nos séculos seguintes. 262 Segundo Curto, até a instalação do Presídio de Caconda, a prática da guerra foi a principal maneira de obtenção de cativos no sul de Angola. Após tal instalação, passou a ser substituída gradativamente pelo comércio. CURTO, Op. Cit.,p. 270. 263 Vale ressaltar que um indivíduo poderia se tornar escravo não somente por meios violentos, tais como as guerras ou incursões, fartamente documentadas, mas inclusive por meios jurídicos, não-pagamento de dívidas, adultérios, roubos, entre outras razões. Em 1812, por exemplo, chegara ao Rio de Janeiro vários escravos que não somente haviam sido apresados em guerras, mas condenados por adultério, roubos e demais crimes. Ver Cândido, Op. Cit.,p. 48. 264 Ibidem, p. 100. 265 CURTO, Op. Cit., p. 272. 260 115 (...) São condenados, fugidos dos presídios da costa, são homens a quem a sociedade surprimiu as garantias de cidadão, são réprobos a quem a sentença da justiça imprimiu um indelével ferrete de ignomínia; são salteadores e assassinos, a quem a Pátria baniu do seu seio com horror, que pudesse quebrar o grilhão de ferro com que estavam acorrentados ao patíbulo aviltante e fugindo a um mundo onde só os esperava o desprezo da gente civilizada vão longe buscar entre os selvagens a guarida que perderam, e continuar ali a vida de crimes.266 Silva Porto, como sertanejo, apresentava uma visão mais amena do perfil social dos seus pares: (...) escória da sociedade, e infelizmente quantos desta mesma índole não têm aparecido achado benéfica proteccção do Bié? Mas quantas vezes se tratava de homens com que o destino foi cruel que essa sociedade bania de si, mais pelos erros do que pelos crimes que cometeram?267 A despeito da origem social, sertanejos procediam da seguinte maneira: desciam ao litoral para se abastecerem de mercadorias européias (tecidos, pólvora, aguardente, entre outras) e vender produtos africanos (escravos, marfim, cera, etc.). A sua vida, de maneira geral, se passava longe do olhar das autoridades portuguesas, já que viviam tradicionalmente no sertão. Todavia, a liberdade da qual se beneficiavam também encontrava limites: (...) No interior, o sertanejo ficava fora do alcance das autoridades portuguesas. Se era desertor ou foragido beneficiava da imunidade que lhe concediam a extensão e a virgindade do país. Se era apenas aventureiro ambicioso beneficiava de uma grande liberdade em relação às regras da sociedade européia. Havia, porém, uma contrapartida: a sua integração e defesa em relação ao meio africano. Também aí havia leis rígidas e regras a cumprir, para acautelar uma convivência prolongada possível.268 O essencial, no que diz respeito ao estilo de vida do sertanejo, era a sobrevivência. Para tanto, aprendiam a oferecer resistência com o mínimo de desgaste, a se adaptar por vezes até ao nível do nivelamento e fazer valer a superioridade financeira e aptidão para o comércio. Nesse bojo, também se aproveitavam da experiência e organização africana, a ponto de se valerem da instituição casamento, que lhes permitia rápida integração e usufruto das benesses – o casamento com filhas de sobas/chefes africanos colocava de imediato o sertanejo em 266 Apud SANTOS, Op. Cit., p. 8. PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Viagens e Apontamentos de um Portuense em África.Vol.II. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimba, 1986, p. 270. 268 SANTOS, Op. Cit., p. 5. 267 116 posição de vantagem. 269 Todavia, à medida que enfraqueciam os seus laços com a sociedade de origem, aumentavam as obrigações para com a sociedade acolhedora. 270 O soba africano, ao longo do século XVIII e XIX, em linhas gerais, desejava a presença do sertanejo e, para o seu acolhimento, em uma terra ligada à soberania portuguesa por tênues laços administrativos, oferecia-lhes: (...) uma excelente base, geograficamente bem situada, quer em relação ao mercado de venda quer ao mercado de compra; o seu território estava cortado por grandes rotas comerciais e dele irradiavam rios em todas as direções. Punha-lhes à disposição colaboradores qualificados para o comércio de longa distância (...).271 Em contrapartida, o sertanejo oferecia ao soba e à população em geral a circulação do seu crédito até o território onde se instalava e, por conseguinte, a criação de um entreposto comercial. Em alguns casos, chegavam mesmo a dar apoio militar ao soba, como se passou ante a invasão do Bié, na guerra contra o Bailundo em 1823. 272 A experiência sertaneja do brasileiro António Francisco Ferreira da Silva Porto, embora seja datada de meados do século XIX, é emblemática para pensarmos o perfil geral do personagem no território angolano.273 Este, que esteve fixado na região do Bié entre os anos de 1846 a 1890, atuando como sertanejo e organizador de caravanas, escreveu um diário que dava conta das rotas, especificidades comerciais do período, informações sobre sobas locais e dados sobre a fauna e flora, de uma perspectiva de observador participante – ou seja, de alguém que vivenciou entre biénos e adotou os métodos utilizados pelos mesmos, para organizar as suas caravanas. O autor, que desenvolveu suas atividades em um contexto abolicionista e vivenciou a crise comercial na região do Bié – que como observamos, desde o final do século XVIII se estruturava basicamente no comércio escravo –, se identificava como “anti-abolicionista por convicção”. No seu diário, em diversas ocasiões, Silva Porto menciona a circulação de escravos no interior de Angola no pós-1850; além do contato com sobas, que o procuravam, na qualidade de sertanejo e organizador de caravanas, em vista dos benefícios que estas poderiam trazer por onde passassem. É o caso do encontro do sertanejo com o soba biéno Quicuamanga, no dia 20 de maio de 1846: 269 O húngaro Magyar, anteriormente citado, organizou a sua caravana enquanto africano, uma vez que havia se casado com uma integrante da realeza biéna. 270 Por exemplo, nenhum comerciante poderia sair do território de um dado soba sem a sua autorização. Ver SANTOS, Ibidem, p. 9-10. 271 Idem Ibidem, p. 62. 272 Ibidem, p. 62. 273 Assim como Silva Porto, vários brasileiros estiveram na Angola ao longo dos séculos XVIII e XIX enquanto sertanejos. 117 (...) Pelas oito horas da manhã o soba Quicuamanga, seguido de grande comitiva de povo de ambos os sexos, de marimbas e bamtores e uma manada de bois, apresentou-se a curta distância da cerca do quilombo, onde fez alto, e, introduzindo no seu recinto, foi cumprimentado pelas pessoas principais da caravana, ficando assim satisfeito por esta espécie de cortesia que, de fato e de direito lhe pertencia. Terminados os cumprimentos, passou a expor os motivos da sua visita, que disse ter por objecto estreitar relações de amizade com os sertanejos do Bié, visto que com esse intuito todos lucravam: ele, em virtude da passagem continuada das caravanas, para o usufruto dos benefícios provenientes de tal passo, e nós pela segurança dos haveres e brevidade do caminho em direcção a Benguela. Respondemos afirmativamente aos desejos expendidos e concluindo por dizer que faríamos da nossa parte por corresponder. Em seguida deu ordem para a entrega de dois bois castrados, quindas de farinhas de milho e cabeças de capata, que retribuímos segundo o valor o rifão peculiar da tribo Quimbunda e ganguela (...).274 Acerca do segundo personagem, o pombeiro, vale ressaltar que a sua utilização se devia ao fato de existirem restrições para penetração de comerciantes lusitanos (ou mesmo brasileiros) nos sertões africanos. Segundo Marcelo Caetano, pombeiros seriam pretos ou mulatos, assimilados, que serviam os sertanejos antes da penetração no sertão não-ocupado por portugueses. De acordo com o autor, seriam uma “espécie de caixeiros-viajantes ou mensageiros diplomáticos dos aviados brancos”. 275 Cadornega, por sua vez, afirma que o termo “pombeiro” seria resultado do alargamento semântico da expressão originada da palavra “Pumbo” (mercado) – inicialmente “pombeiros” eram aqueles que freqüentavam o Pumbo. Segundo o mesmo: (...) Mais tarde, o sentido do substantivo alargou-se de maneira nítida para designar qualquer espécie de agentes itinerantes que se dirigiam ao interior das terras, à frente de caravanas, para negociar com os ‘indígenas’ por conta dos comerciantes portugueses proprietários de casas de exportação nas cidades portuárias, primeiro em Luanda, seguidamente em Benguela. Muitas vezes tratava-se de escravos destes comerciantes, mas podiam também ser homens forros ou livres 276 Ademais, uma vez que o “pombeiro” era aquele encarregado dos contatos iniciais com terras desconhecidas dos comerciantes lusitanos, a escolha dos mesmos deveria considerar, inclusive, a competência lingüística. Em todo o caso, os pombeiros, assim como sertanejos, foram personagens fundamentais no escopo das relações comerciais na região. Roquinaldo Ferreira, por exemplo, menciona que em 1798, somente em Benguela, existiam 900 274 PORTO, Op. Cit., pp. 241-242. 275 CAETANO Apud HENRIQUES, Op. Cit.,p. 117. CADORNEGA, Op. Cit.,p. 619. 276 118 pombeiros registrados. 277 Estes eram enviados por comerciantes da costa ou sertanejos para penetração cada vez mais progressiva no interior, em busca principalmente de escravos. Além dos “comerciantes-intermediários” (sertanejos e pombeiros), é preciso chamar a atenção para um terceiro personagem, que detinha grande importância no funcionamento da empresa escravista: os comerciantes-financiadores, que habitavam as cidades da costa e, em alguns casos, se originavam do além-mar. A primeira categoria, a dos “comerciantesintermediários”, dependia desta última, pois não possuía capital pessoal para se deslocar nos sertões. O mecanismo que regulava tal relação se estruturava da seguinte maneira: (...) face à possibilidade de desaparição de alguns destes comerciantesintermeditários, que não prestavam contas, os comerciantes-financiadores procuravam eliminar o risco de perder parte ou a totalidade das mercadorias, aumentando os preços como os juros. Os ‘comerciantes-intermediários’, que acabavam por pagar de maneira mais ou menos regular, deviam bastar para compensar as perdas sofridas neste sistema.278 José dos Santos Torres, comerciante nascido no Brasil, Bahia, parece ilustrar com clareza qual seria o perfil destes comerciantes que financiaram a empresa escrava na região. Torres seguramente poderia ser considerado o negociante mais proeminente na região, ao longo do século XVIII. Sua trajetória de vida pessoal, ao passo que demonstra a justaposição entre Angola e Costa da Mina – até o momento em que a primeira passa a ser mais interessante comercialmente que a segunda –, igualmente está inserida no contexto que formalizou o comércio direto entre o porto de Benguela e Rio de Janeiro. 279 Torres, já na década de 1720, atuava em Angola como comerciante de escravos e, portanto, enfrentou grandes dificuldades com a atuação holandesa na região. 280 Além dos riscos de ataques no Atlântico, havia as taxas que deveriam ser pagas aos holandeses. 281 Diante de tais dificuldades, o próprio Torres obteve autorização para construção de um forte na Costa da Mina, no final da década de 1720, para prevenção dos ataques holandeses; e, de 277 Ver capítulo 3 da tese de Roquinaldo Ferreira (2003). HENRIQUES, Op. Cit., p. 116. 279 Roquinaldo Ferreira, analisando numa perspectiva micro-histórica o comércio entre Benguela e Rio de Janeiro, nos século XVIII e XIX, estabelece uma reflexão de grande valia sobre a trajetória de José dos Santos Torres. Vale registrar que grande parte da nossa reflexão é tributária deste artigo específico que segue na referência. FERREIRA, Roquinaldo. Biografia, Mobilidade e Cultura Atlântica: A Micro-Escala do Tráfico de Escravos em Benguela,séculos XVIII-XIX. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n20/03.pdf >. Acesso no dia 11/04/2014. 280 Segundo Ferreira, entre 1715 a 1756, foram apreendidos por holandeses cerca de 12 mil escravos, que viajavam em navios negreiros no Atlântico. Ibidem, p. 40. 281 Ferreira afirma que entre os anos de 1715 a 1756, 500 navios foram obrigados a pagarem 10% de taxas sobre os escravos e produtos que eram transportados em navios aos holandeses. FERREIRA, 2003, p. 91; AHU, São Tomé, Cx. 9, Doc. 83. 278 119 fato, conseguiu capturar entre 1725 e 1727 três navios negreiros holandeses. 282 Nesse bojo, Torres passou a direcionar os seus investimentos, juntamente com outros comerciantes, também para a região de Benguela, que se mostrava um porto comercial mais seguro. De acordo com Ferreira: No final do século XVII, os embarques em Benguela ofereciam um contraponto à erosão do controle luandense do tráfico no norte de Angola (entre Loango e a costa do Congo). Enquanto em Luanda as regras précapitalistas do tráfico favoreciam os governadores de Angola e seus associados, em detrimento de negociantes privados, Benguela proporcionava uma espécie de refúgio para os negociantes privados. Perto de Benguela, recorrentes operações militares eram o meio usado para escravizar comunidades próximas da costa (...).283 Em 1735, Torres radicou-se em Luanda e passou a dirigir as suas operações daquele sítio, fartamente documentadas, em posse de 4 navios. Sem passar por Luanda, entre 1735 e 1739, seus navios velejaram entre Benguela e Rio de Janeiro, ao que constam nas documentações, ao menos quatro vezes.284 O brasileiro continuou a atuar no comércio nas décadas seguintes e só interrompeu suas atividades em 1774, ano da sua morte. 285 Torres, assim como os seus pares, representava o perfil daqueles que financiavam a empresa escrava nas costas de Angola: originários do além-mar, das mais diversas camadas sociais e associados a numerosos fatores, entre os quais, o jogo de interesses entre as nações européias – sobretudo, França, Inglaterra, Holanda e Portugal –, assim como a atuação, motivada pela demanda de mão-de-obra, de comerciantes brasileiros. O juiz José Joaquim Guedes, por exemplo, em um levantamento realizado dentro de um inquérito, no ano de 1778, apontou a existência de 15 ou 16 principais comerciantes em Benguela, originários de diferentes regiões: Branga, Porto, Lisboa, Bahia, Ilha da Madeira e Rio de Janeiro. 286 Esse apontamento vem corroborar os dados identificados no decorrer dos séculos XVIII e XIX, em Benguela, que apresentam, de um lado, uma cidade controlada por um número restrito de grandes comerciantes e, de outro, a atuação de vários pequenos 282 De acordo com Roquinaldo, embora houvessem preocupações com a atuação de ingleses e franceses, não resta dúvida que os holandeses foram os maiores inimigos dos portugueses na costa Oeste da África. Ibidem, p. 91. 283 FERREIRA, Op. Cit., p. 40. 284 Requerimento de Manoel da Silva, em 22 de outubro de 1735, AHU, Rio de Janeiro, cx. 31, doc. 21; Petição de Manoel da Silva em 26 de janeiro de 1736, AHU, Angola, cx. 29, doc. 12; Requerimento de Manoel da Silva, em 15 de abril de 1738, AHU, Rio de Janeiro, cx. 35, doc.3; Petição de José de Torres, em 3 de setembro de 1739, AHU, Angola, cx. 31, doc. 59. Cf. FERREIRA, Ibidem, p. 40. 285 Registro de Óbitos da Paróquia de Remédios, 1748-1779, ABL, fl. 243. Apud Ibidem, p. 41. 286 CANDIDO, Op. Cit., p. 102. 120 comerciantes. 287 A compra efetuada pelo Capitão Costa Pinheiro em 1764 ilustra tal situação: o mesmo comprou 410 escravos naquele ano, de 27 comerciantes diferentes, sendo que 77, 5% da sua carga humana foi fornecida por apenas 7 comerciantes. 288 Vinte anos após o levantamento do juiz José Joaquim Guedes, um novo levantamento aponta a existência de 30 comerciantes em Benguela e vários destes haviam nascido no Brasil – Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Alguns deles, inclusive, até ocupavam funções administrativas. 289 Ou seja, era notório o domínio do comércio nos portos de Benguela por brasileiros, materializado no fluxo comercial de escravos entre Benguela e Rio de Janeiro, principalmente.290 Herbert Klein, por exemplo, defende que 48% de todos os escravos que entraram no Brasil, principalmente via porto do Rio de Janeiro, entre os anos de 1795 e 1811, foram enviados de Benguela. 291 Se, no final do século XVIII, a quantidade de pombeiros em Benguela chegava à casa dos 900 (cifra anteriormente informada), a dos comerciantes (financiadores) girava em torno dos 33 a 50 indivíduos – como vimos no levantamento de 1798 –, sendo a grande parte destes nascidos na América portuguesa-Brasil e com procedências diversas, como “degregados”. A história de José Rodrigues Maia, nesse sentido, é emblemática. Nascido na América portuguesa, chegou a Benguela em meados da década de 1760, empobrecido e na condição de degregado. Nos anos que se seguiram, tornou-se representante da Companhia de comércio criada para suprir escravos para o Grão-Pará e Maranhão, em Benguela, chegando a despachar, entre os anos de 1772 e 1786, 16, 586 escravos. 292 Até meados da década de 1780, havia adquirido tanto prestígio e poder que, em uma expedição para o Cabo Negro, Sul de Angola, Maia se comprometera a fornecer apoio logístico e financeiro ao governador de Angola, em troca dos exclusivos de embarcação de cativos no Cabo Negro. 293 287 Da segunda metade do século XVIII até final do século XIX, cerca de 12 principais comerciantes dominaram as atividades comerciais escravistas na região. Ibidem, p. 101. 288 Segundo Candido, casos como o narrado acima, exemplificam o quanto a atuação de um numero reduzido de comerciantes foi capaz de corresponder as demandas do além-mar. Ibidem, pp. 101-102. 289 AHU, Angola, Cx. 89, Doc. 67. 290 Candido afirma que a partir da década de 1780 operaram em Benguela 3 ou 4 empresas, que mantiveram no período laços estreitos com mercadores do Rio de Janeiro. CANDIDO, Op. Cit., p. 103; Sobre comerciantes que atuavam em Angola, que mantiveram laços com brasileiros: AHU, Angola, cx. 74, doc. 49; ANTT, FF, JU, África, Mç.24, doc. 6, de 7 de março de 1792; ANTT, FF, JU, África, Mç. 2, doc. 3B, de 15 de abril de 1780. 291 KLEIN, Herbert. The atlantic slave trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. 292 Ver Carta da Junta de Administração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 14 de março de 1781, ANTT, AHMF, Livro 291; Carta da Junta de Admnistração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 23 de janeiro de 1792, ANTT, AHMF, livro 291; Carta da Junta de Admnistração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 17 de maio de 1782, ANTT, livro 291; Ibidem, p. 42. 293 Ibidem, p. 43. 121 Contratos como o firmado por Maia foram comuns durante o século XVIII, em que o Conselho Ultramarino fornecia alguma exclusividade ou facilidade ao comerciante. Um deles foi o contrato firmado entre o Conselho Ultramarino e Domingos Dias da Silva, juntamente com os seus sócios Joseph Alvares Bandeira e Gonçalo Ribeiro dos Santos, entre os anos de 1766 e 1772, acerca do comércio de marfim e escravos na região do Congo, Angola, Loango e Benguela. Mediante o pagamento de oito contos e trinta mil réis, de cada um, os comerciantes não seriam obrigados a pagar algum subsídio ou taxa sobre os escravos adquiridos naquelas regiões, desde que os declarassem. 294 O contrato em si fornece numerosas informações que permitem vislumbrar como operava o mundo comercial no período e a própria noção de valores de cativos, a depender da idade e estatuto. Em uma das páginas, o contrato dispõe sobre situações em que cativos embarcados poderiam estar isentos da cobrança de taxas: se as “crias de pé”295 tivessem um tamanho em torno dos 4 palmos, pagariam apenas metade dos direitos, o que equivalia a 4$350 réis: (...) Porém, as crias de pé, que pela prefente condição cicão reguladas na altura de quatro palmos, e dahi para baixo, pagarão cada huma ametade dos ditos direitos, que fão quatro mil e trezentos e fincoenta reis, fem outra alguma avaliação mais, que a evidencia de eftarem comprehendidas na altura dos referidos quatro palmos, e dahi para baixo: Bem entendido, as quaes ferão livres de todo o impofto fazendo com fuás refpectivas Mãis huma Fo cabeça para dellas Fe cobrar o direito de oito mil fetecentos reis, que fica determinado (...).296 Crianças consideradas “crias de peito”297 seriam contabilizadas com a mãe, ou seja, no interior da frieza dos cálculos comerciais, já estariam inclusas nas taxas que se teriam que pagar pela mãe – no caso, 8$300 réis. No transcorrer do restante do documento, nota-se a ênfase posta em cada artigo que tratasse da necessidade de registro de tudo que fosse comercializado na região e de todos os valores pagos em tributos. Em suma, era nesse contexto, marcado pelo constante embate de interesses econômicos e políticos, fossem eles lusitanos, brasileiros ou mesmo daqueles que se embrenhavam nos sertões em busca de melhores oportunidades de acúmulo de riqueza, que 294 Caso não declarassem exatamente a quantidade de cativos adquiridos, os mesmos poderiam ser confiscados sob a acusação de “contrabando”. AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 12, 1768. 295 “Crias de pé” era o nome técnico, atribuído no interior das operações comerciais, que se dava às crianças que já não amamentavam mais. 296 AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 12, p. 7. 297 Crianças que ainda amamentavam. 122 circulavam comerciantes-financiadores e intermediários – pombeiros e sertanejos. Assim, resta-nos entender qual era o cenário onde, de fato, atuavam todos esses personagens. d) As instalações portuguesas: as “cidades costeiras” e as “cidades plataformas” A compreensão das instalações portuguesas no território africano deve partir de dois elementos: as “cidades costeiras” e as chamadas “cidades plataformas”. As primeiras, localizadas no litoral, teriam a função de ser importadoras e exportadoras, além de se caracterizarem como grandes fortalezas, para proteção dos inimigos externos e internos. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, destacaram-se no território angolano, pelo volume comercial e importância política, as cidades de Luanda e Benguela. Luanda foi fundada em 1576, por Paulo Dias de Novais (que é considerado o primeiro governador de angola, do ano que recebeu o título de capitão-donatário, 1575, até 1589), após a guerra travada contra o rei Ngola Kiluange e acordo firmado com as populações Mushiluanda. 298 Antes da fundação de Luanda, os portugueses mantinham suas atividades na região do interior do reino do Kongo (desde 1483) – as populações Ba-Kongo impediam a construção de uma cidade portuguesa naquelas redondezas. A partir dela organizou-se toda uma estrutura administrativa, com a fundação subseqüente de cidades e presídios. 299 Luanda, fundada em região desértica, 300 voltava seu olhar, desde sua fundação em 1576, para duas direções: a América portuguesa, que lhe exigia escravos, e o interior do seu país, que fornecia escravos em troca de mercadorias. Todavia, é preciso ressaltar que, embora o comércio escravista tenha sido aquilo que alimentara o movimento na cidade desde a sua fundação até início da década de 1830, sempre se registrou o comércio de outras mercadorias e mesmo a existência de uma agricultura destinada a alimentar a população local, na medida em que as suas necessidades cresciam. 301 Em mapa que informava o volume de atividades comerciais no porto de Luanda, em 1767, as referidas existências de outros empreendimentos comerciais, para além dos negócios 298 HENRIQUES, Isabel Castro. Percursos da Modernidade em Angola: Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997, p. 110; Ver também HENRIQUES, Isabel Castro; MEDINA, João. A rota dos escravos: Angola e a Rede do Comércio Negreiro. Lisboa: Cegia, 1996, p. 224. 299 Como a fundação do Presídio de Massangano, para fazer frente ao reino de Kiluange, em 1579. Posteriormente o mesmo se transformou numa feira. Ver CRUZ E SILVA, Rosa da. “Rotas do tráfico”. In: HENRIQUES, Ibidem, pp. 224-225. 300 Fato que explicaria a falta de água potável na região, de acordo com o geógrafo Ilídio do Amaral. Ibidem, p. 110. 301 Ibidem, p. 113. 123 escravistas, eram evidentes. O mapa informa a arrecadação de impostos com o marfim exportado, juntamente com outros produtos: 1:854$043 réis. Contudo, a superioridade dos negócios relacionados a escravos se fazia notória e desproporcional: de um total de 8. 928 escravos exportados do porto de Luanda no ano de 1767 (sendo 13 “crias de pé”, 8 “crias do meio” e 67 “crias de peito”), fora arrecadado o montante de 77: 821$500 réis. O documento ainda dava conta da quantidade de cativos exportados de Luanda, no mesmo período, um pouco abaixo daqueles enviados de Luanda (18 embarcações, que levaram 6. 583 cativos de Benguela para portos brasileiros).302 A urbanização de Luanda datava do século XVIII, especificamente do governo de Francisco Inocência de Souza Coutinho (1764-1772), e até meados do século XIX era considerada a terceira cidade colonial da África ao sul do Sahara, atrás da cidade do Cabo e São Luís do Senegal. Naquela altura, aparecia nas descrições, especialmente de José Joaquim Lopes de Lima, como uma cidade “notável, bela e cheia de beleza”, que comportava uma população de 5.605 habitantes, entre brancos, pretos e mestiços. 303 Ocupando um espaço que ia das colinas até o porto e mar, a cidade estava dividida em duas partes, a cidade alta e a baixa. A parte “baixa” correspondia ao coração da cidade, onde se encontravam o centro político, religioso e administrativo e toda estrutura relacionada ao comércio na colônia. Embora a cidade fosse construída basicamente com “alvenaria importada de Portugal”, era cercada por habitações africanas, formadas de madeira cobertas de folhas de palmeiras. De acordo com Henriques, assim poderia ser descrita Luanda entre os séculos XVIII e XIX: Ruas alinhadas e amplas, jardins, praças públicas, igrejas, por vezes imponentes, lindas casas, a Câmara Municipal, o hospital, as instalações militares, as belas residências dos europeus, o palácio do governador, a Casa do Tesouro, os conventos, os mercados, entre os quais a Quitanda Grande (ou mercado principal), o Terreiro Público prolongavam-se para a cidade alta e completavam o quadro da ‘cidade branca’ ou ‘civilizada’. 304 A segunda cidade, Benguela, foi fundada no ano de 1617, entre os rios Catumbela e Karapolo, até transformar-se em um grande porto de exportação de cativos; era parada obrigatória para navios que velejavam entre Lisboa e Luanda – em função dos ventos predominantes e correntes marítimas –, ou mesmo para aqueles navios que saíam do Brasil ou 302 Entre àqueles cativos (as) que foram exportados de Benguela em 1767, o mapa informava que 12 eram crias do meio e 40 eram “crias de peito”. Vale ainda salientar que os principais destinos das embarcações que saíram de Luanda para o Brasil foram Rio de Janeiro (13 embarcações), Bahia (6 embarcações) e Pernambuco (6 embarcações). AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 5. 303 Segundo Lima, em 1846 a cidade era formada por 1601 brancos, 491 mestiços, 780 pretos livres e 2733 escravos. LIMA, 1846, Parte II, pp. 5-13. Apud HENRIQUES, Op. Cit.,p. 111. 304 Ibidem. 124 do Oceano índico. 305 Antes de se transformar em um grande porto transatlântico, Benguela estava encarregada, principalmente, de fornecer água, alimentos e suprimentos diversos àqueles que seguiam para outros destinos. Contudo, a partir de 1650, com a expansão dos negócios escravistas e, posteriormente, com a fundação do Presídio de Caconda, passou a ser plataforma para produção dos escravos que se davam no seu sertão (ver mapa 4). A região onde se edificou a cidade de Benguela, também conhecida como “Baía das vacas”, antes mesmo da sua fundação, era considerada rica em sal, marfim, peles, peixe seco, cobres e com potencial de produção de escravos. Já em 1612, por exemplo, Manuel Cerveira Pereira, ex-governador de Angola, propusera, ao rei Felipe II, a conquista da região que compreendia o rio Kuvo até o rio Kubal e, em direção ao interior, da costa à margem do rio Kwanza (ver mapa 8). Chegando ao sul do rio Katumbela, acompanhado de 130 soldados, Cerveira passou a ser considerado o grande “Conquistador de Benguela”. 306 O comércio na região, se comparado a Luanda e Mpinda (outra cidade com grande importância, ao norte de Luanda), tardou a se desenvolver. Contudo, já nos primeiros anos, os habitantes dos arredores da Baía das Vacas passaram a levar gados e escravos àquela localidade, para troca por produtos euro-asiáticos que não possuíam. 307 Benguela, em si, apesar do elevado movimento de exportação de escravos, foi uma cidade relativamente pequena desde a sua fundação. Entre os anos de 1795 e 1850, por exemplo, contou com uma população que variava de 1.500 a 3.000 pessoas – sem levar em consideração a população escrava que sempre estava em trânsito (ver tabela 4). A cidade, ao longo da existência do comércio escravista, se manteve como um ponto de encontro entre caravanas que vinham do interior e navios que chegavam da América portuguesa e Portugal. Tal ambiente produziu uma sociedade híbrida, com constante interação de indivíduos originários de diferentes povos locais e de países estrangeiros.308 Ao se debruçar qualitativamente sobre a população de Benguela, entre o final do século XVIII e primeira metade do século XIX, a pesquisadora Mariana Candido chamou a atenção para alguns dados: em primeiro lugar, apesar dos diversos idiomas falados em Benguela, pelo fato de haver uma grande circulação de populações de numerosas origens, se sobressaía o idioma “Umbundu”. Em segundo lugar, a superioridade feminina, com exceção da população branca, é evidente em todo o período abrangido pela tabela 4 (no que diz 305 CÂNDIDO, 2006, p. 4. Ver CURTO, Op. Cit.,pp. 266-268. 307 Ibidem, p. 268. 308 Mariana Cândido afirma que Benguela, assim como Caconda e outras cidades do Atlântico, era uma cidade “crioula”, ou seja, marcada por uma forte amalgamação e negociação de diferentes identidades, ou hibridização cultural. Sobre tal debate, ver especialmente a introdução da tese de CANDIDO, 2006, P. v. 306 125 respeito à população mulata e negra).309 Finalmente, essa população escrava que permanecera na cidade estava ocupada de diversas maneiras: vendedores de rua, lavadeiras de roupa e operadores de negócio. 310 As chamadas “cidades-plataformas”, por sua vez, poderiam ser tanto os “presídios” edificados em território inimigo, principalmente no interior, como as próprias feiras. A escolha dos seus lugares deveria atentar, sobretudo, para as redes comerciais, ou seja, para as possibilidades de realização do comércio e escoação para o exterior. 311 À medida que o comércio se expandia e as cidades da costa se fortaleciam, os presídios foram se expandindo em quantidade. A exemplo desse processo, podemos citar o primeiro presídio a ser fundado, após a instalação de Luanda em 1576, que foi o de “Massangano”, na confluência do rio Lucala e Cuanza, em 1585. 312 Ressalta-se que aquilo que movimentava, e era a própria razão de ser de tais espaços, seria os negócios e possibilidades de acumulação de riquezas. Era comum todos os habitantes de presídios, se livres, estarem envolvidos com o “comércio”, principalmente, soldados e oficiais de diferentes hierarquias do exército português. Não são poucos os documentos de soldados que solicitavam aumento dos “soldos”, ou mesmo aqueles em que integrantes da hierarquia militar aparecem entre os principais comerciantes de escravos. Em 1764, uma lista detalhada dos escravos que haviam saído de Benguela para o Brasil no ano anterior, com escala em Luanda, 313 apresenta esse universo; com nomes dos vendedores e preços, assim como dados das perdas (mortes durante o transporte para o Brasil) e gastos com batismos, antes do embarque. Ao todo, foram 368 cativos (identificados como “cabeças”), acompanhados de “crias de pé” (não especifica o número). Entre os compradores, estavam tenentes, sargentos, capitães, coronéis, soldados, entre outros. Nesse bojo, fizeram as maiores vendas o Tenente Coronel Ignacio Reis (15 cativos), 314 o Capitão Manoel Gomes (24 cativos) e o Capitão José Santos Torres (28 cativos). Por fim, a mesma relação dá conta de 34 309 Proporção que sugere maior permanência de escravas na cidade e maior propensão para exportação de homens. 310 Os censos analisados por Mariana Candido foram extraídos das caixas referentes à Angola, alocados no AHU, a saber: Caixas 88, 89, 113, 116, 118, 120, 121, 124, 127, 131, 133, 136, 138, 156. 311 HENRIQUES, 1997; Ver também Idem, 1996. Ibidem, p. 113. 313 O que demonstra que até a década de 1760 ainda localizamos navios que tiveram que realizar escala em Luanda. 314 Na mesma relação, o Tenente Ignacio Reis aparece novamente como o vendedor de outras “17 cabeças”. 312 126 perdas, sendo 12 cativos por epidemias adquiridas ainda no Presídio de Benguela, uma por mar, duas por fugas e o restante em Luanda, por razões não esclarecidas. 315 A supracitada lista, além de elucidar um cenário com numerosos personagens envolvidos no comércio escravista, apresentava a própria razão de ser das instalações portuguesas, intrinsecamente relacionada à empresa escrava. Tal situação, de maneira geral, ao longo dos anos setecentos, seria recorrente e comum. Em 1728, por exemplo, a carta escrita pelo então governador de Angola, Paulo Caetano, ao rei, ilustraria o envolvimento generalizado dos habitantes das chamadas cidades costeiras com a empresa escrava. Na mesma, o governador apresentava as razões que impossibilitavam ao Reino de Angola de contribuir com doações para o casamento real em Portugal, em função da ruína da empresa escrava na região. Entre os numerosos trechos, destacamos o condicionamento da ruína econômica da região à decadência do comércio escravista, que envolvia a grande maioria dos moradores: (...) Toda a substtancia em que sempre consentio a conservação dos moradores deste Reino são os escravos com que se servem e fabricam (sic) fazenndaz, com o aumento das cabeças são os grandes lucros que Fe extrahiam do comercio do resgate dos escravos, e embarque delle para os Portos do Brasil, mas tudo está hoje reduzido ahum tão lastimozo estado que apenas há vestígios do q foi Angola; e pondo de parte os motivos com q se tem afollado os Sertoez e Prezidios q He sua das principaez Ruinas do Comercio (...). 316 Certamente, quando o governador Paulo Caetano alegava a instabilidade nos sertões e presídios, se referia às constantes rebeliões de sobados durante a década de 1720, que serão trabalhadas na seção posterior. De qualquer maneira, prosseguindo suas justificativas ao Rei, ainda chegaria a mencionar uma epidemia de “bexiga” que levou à morte vários cativos e provocou o endividamento dos comerciantes locais: (...) só representamos a S. Ex. que no anno 1725 foi deos servido que houvesse neste reino hum contagio de bexigas tam universal e tam grande e a mortande e tão considerável, a perda q ficaram os moradores estruhidoz, os homez de negocio, e senhorios dos navios aruinados, e os comifsarios perdidos; os moradores que perderam a may (sic) dos escravos ladinos com que se serviam, agenciavam, e fabricavam as fazendas. Os homens de negócios e comiffarioz porque se morrerão todos quantos escravoz embarcarão para o Brasil no decurso de trez annos q durou o contagio, de q resultou excefivo numero de letras protestadas, crescerão as dividas e aumentaram os empenhos em tal forma que esgotados os lemitados fez da 315 Chama a atenção para as 12 perdas no Presídio de Benguela, o que supõe a ausência de cuidados mínimos para com aqueles que chegavam dos sertões, alguns dos quais, já enfraquecidos pelas longas caminhadas. 316 AHU, Angola, Cx. 24, Doc. 96. 127 mayor parte dos moradorez dificultozamente puderam cobrir e sahi fazer o que devem, e ao mesmo tempo q cada hum não sabe os meyos com q há de evitar as execuçoez de tantas dividaz como He possível q se possa dar Cumprimento ao q S. Magestade pede poiz He sua dificuldade q por meyos humanos senão pode vencer porque sem fez não se pagam dividaz, e sem cabedaes não se podem oferecer donativos (...)” [grifo nosso].317 A partir da carta de Paulo Caetano, é evidente a existência de uma ampla rede que envolvia o comércio escravista no território angolano, ainda mais perceptível no endividamento citado – supõe-se que os comerciantes que perderam escravos para a epidemia de “bexiga” fossem financiados por outros comerciantes do “além-mar”, seja do Brasil ou mesmo de Portugal, e, uma vez que perdiam cativos, perdiam as possibilidades de pagamento dos empréstimos e investimentos. Em todo o caso, o trecho final da carta escrita por Paulo Caetano deixa expresso o quanto a economia de Angola dependia do comércio de cativos: (...) o comercio dos escravos único meyo de recuperarmoz parte de tam repetidaz perdaz, experimentamos agora a ruína de que nos portos do Brazil fao tam diminutoz os preços dos escravos que não chegam dar por cada hum a metade do valor principal que a que custam, acrescendo a isto a perda dos q morrem, (sic) tez e direitos e gastos do tempo q com tam em ser” [grifo nosso].318 De modo geral, é preciso salientar que se, por um lado, havia a necessidade de associar a própria existência dos presídios (aqui chamamos de “cidades-plataformas”) às rotas de comércio escravo, por outro, era preciso pensar constantemente na adesão das populações locais, em vista da incapacidade de recrutamento de forças militares européias. 319 Observamos este último ponto com grande clareza, quando o então governador de Angola, Francisco Inocência de Souza Coutinho, relata os pormenores da fundação do Presídio de Novo Redondo (entre os rios Cuvo e Catumbela) em 1769, sob os pretextos de evitar o comércio ilegal de estrangeiros, assim como de iniciar a abertura de uma estrada de chão entre Luanda e Benguela. Francisco Inocência narra que, para a fundação do dito presídio, edificado nas terras do soba Gunza Cabolo, foi necessário um destacamento de 1000 homens de infantaria e uma quantidade não especificada de negros. Entre os pontos que chamam a atenção no documento, sobressai-se a preocupação do governador com a adesão da população local: 317 Ibidem. Ibidem. 319 O que impusera aos portugueses, segundo Henriques, a aposta no recurso de utilização de “poderes africanos” para o controle indireto das regiões circundantes aos presídios e cidades. HENRIQUES, Op. Cit.,p. 113. 318 128 (...) Não sei se os habitantes concordarão as minhas idéas com as suas porque He muito precioza a liberdade, para que ainda estes Brutos desprezem as suas conveniências; e porq aquela povoação hê na verdade hum novo Mundo a que desde os primeiros tempos de Conquista deste reino, passaram muito pouco brancos. 320 Francisco Inocência entendia que a adesão às ideias portuguesas, pelas populações locais, seria uma questão de valorizar ou não a liberdade. Igualmente, podemos notar acima o emprego da expressão “novo mundo” para pensar os contatos escassos com as populações que ali estavam. De fato, a região, em si, com os diferentes sobados existentes no Quissama e nos entornos, ao longo do século XVIII, foi o maior obstáculo para criação de uma estrada que ligasse Benguela à Luanda. Na carta apresentada por Manuel Simões ainda em 1732, é possível verificar a supracitada instabilidade do Quissama; nela, eram descritas todas as suas façanhas desde o final do século XVII, em função da vacância do cargo de Mestre de Campo, anteriormente ocupado por Joseph Carvalho da Costa, que havia saído de licença. Entre as numerosas participações de Manuel, que naquela altura havia participado inclusive da repressão à rebelião do soba Cabuinda nos sertões de Caconda (o mesmo da próxima seção), constava a atuação vitoriosa nas campanhas militares contra os potentados do Quissama em torno do ano de 1722.321 A mesma instabilidade aparece relatada em 18 de outubro de 1769, por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em carta endereçada ao rei.322 Apesar da fertilidade geral da Angola, que o autor compara com a Europa em alguns momentos, a região não conseguia prosperar, em grande parte pela presença indesejada de degredados e desertores, que, segundo Francisco, estavam em procriação com negros da região. Portanto, sob o pretexto de “moralizar” Angola e colocá-la finalmente na rota da prosperidade, Francisco Xavier solicitava ao rei o envio de mulheres européias, pois a existência de “cazais europeus” era um fator indispensável para o projeto civilizacional. Na lista de proposições para a re-colocação da Angola no caminho da prosperidade, estava o que o autor chamou de “necessária comunicação” entre os fortes, que deveria se efetivar com o combate dos roubos entre as instalações portuguesas. Nesse sentido, menciona a atuação dos sobas do Quissama, que, além 320 AHU, Angola, Cx. 53, Doc. 29 (1769). Pelo que consta na carta de apresentação dos feitos de Manuel Simões, a vitória havia sido tão significativa sobre os potentados do Quissama, que os mesmos além de “restituírem gente” (possivelmente soldados escravos perdidos na batalha), ainda enviaram os seus embaixadores para formalizarem pedidos de desculpas às autoridades portuguesas. AHU, Angola, Cx. 26, Doc. 115. 322 Naquela altura Francisco Xavier era secretário da Marinha e Ultramar. No entanto, já havia sido administrador colonial, sendo governador do Grão-Pará (1751). 321 129 dos roubos, ainda abrigavam escravos fugidos que viam naquelas terras um asilo seguro para o que Francisco chamava de “maldade”. 323 Ainda no escopo das descrições e sugestões de Francisco Xavier, desperta atenção a descrição do Presídio de Caconda, na década de 1760, que o autor considerava o “lugar mais infeliz do mundo”, mesmo que fosse a cabeça de todas as províncias da região. 324 Logo, para Francisco Xavier, era uma justa sentença para os degredados passarem por ali, em vista das duras condições de vida e dos roubos seguidos de morte, naquele período. 325 Em todo caso, é preciso pontuar que, durante a presença portuguesa na região, os presídios ocuparam posição central na organização das atividades econômicas e políticas relacionadas ao comércio transatlântico, na medida em que expressavam o avanço das fronteiras e a desagregação de poderes africanos, pelo contato direito ou indireto com portugueses. Nesse sentido, tendo em vista o papel dos presídios no conjunto das instalações portuguesas, é possível compreender a verdadeira articulação e ritmo das relações entre estes e as cidades.326 Ao lado dos presídios, ou mesmo de principais poderes africanos, estavam as feiras, espaços fundamentais para pensarmos o funcionamento comercial na Angola e, principalmente, a circulação de escravos. Estas instituições se constituíam como um nó fundamental de troca entre homens e mercadorias. Segundo Henriques, se a designação “feira”, por um lado, fazia parte do vocabulário e experiências portuguesas, a estrutura da própria instalação – sistemas de troca, controle político e militar – eram indubitavelmente africanas. 327 Tal situação ficava expressa na própria feira de Kasanje, onde comerciantes portugueses só poderiam se instalar sob a autorização e vigilância africana, ao lado da residência do Jaga. 328 323 AHU, Angola, Cx. 53, Doc. 71, de 18 de outubro de 1769. Possivelmente, se refere aos sobados do sul de Angola. 325 A instabilidade em torno do Presídio de Caconda é documentada desde a sua fundação. Todavia, mesmo com a insegurança constante, percebemos o aumento do fluxo de comércio de escravos no final do mesmo século XVIII. 326 Conforme se estabeleciam as cidades, os presídios seriam edificados gradualmente. Até metade do século XIX, por exemplo, Luanda contava e administrava diretamente 7 presídios, a saber: Muxima (1599), Massangano (cerca de 1585), Cambambe (finais do século XVI, instalado perto da importante feira do Dondo), Pedras de Pungo Andongo (1671, sediado no burgo, onde se encontrava a corte do rei de Dongo), Duque de Bragança (1838), Pedras de Encoje ou S. José de Encoge (1759) e Novo Redondo (1769), na costa, entre Luanda e Benguela. 327 HENRIQUES, Op. Cit., p. 366 328 Idem Ibidem, p. 367. 324 130 Apesar das raríssimas descrições sobre a constituição das feiras anteriores a 1850, 329 é possível vislumbrar, minimamente, a divisão entre espaços portugueses e africanos no interior desses espaços. Nesse contexto, a descrição mais importante provém de Jean-Baptiste Douville, referente ao ano de 1828, intitulada “Voyage au Congo et dans l’intérieur de l’Afrique équinoxiale”. 330 Nesta, o autor apresenta a feira como um espaço circular, onde estavam instalados comerciantes lusitanos que negociavam diretamente com o Jaga, que possuía mais de mil escravos, dotada de mil e quinhentas habitações, sendo cada uma com a capacidade de abrigo de quatro pessoas, a incluir crianças e escravos. Segundo o viajante, a população da feira rondaria a casa de 6 mil pessoas. 331 Ao lado da feira, estava a cidade, cercada por uma paliçada construída de estacas e dividida por bairros, havendo o do soberano, que era designado por “banza ou palácio” e defendido por um forte. Ao lado, também estava a casa das mulheres do Jaga e o bairro dos nobres. Em outras palavras, assim como outros viajantes posteriores, Douville salientava a nítida divisão entre portugueses e africanos – os primeiros deveriam ficar nos espaços designados para as feiras. 332 Em suma, o que se percebe, no decorrer do século XVIII e primeiras décadas do XIX, é um processo lento de edificação de cidades, presídios, e, por conseguinte, de adesão às feiras ou espaços de comércio africanos. Foram apresentadas as coordenadas acerca das instalações, rotas e personagens, o universo encontrado por portugueses no atual território angolano, especialmente em Benguela e o seu hinterland ; em resumo, o ponto de partida do itinerário de cativos africanos que foram embarcados ao Novo Mundo. Agora, são necessárias algumas notas sobre os diferentes personagens que habitavam os reinos de Angola e Benguela no escopo do mercado de escravos, assim como as lógicas que permeavam e justificavam as declarações de guerra e a própria produção de escravos. 329 A falta de descrição, de acordo com Henriques, revela o perfil daqueles que eram recrutados para as operações comerciais – grande parte analfabetos e iletrados. Em palavras da autora: “(...) sabem ler e escrever para assegurar a escrituração comercial mínima, mas são incapazes de se lançar numa literatura minimamente descritiva”. Somente as obrigações administrativas forçavam funcionários a fornecerem elementos que permitem reconstituir as relações existentes naqueles espaços. Ibidem, p. 372. 330 Apesar do pouco rigor nas descrições, as descrições fornecidas por Douville contribuem para compreensão da estruturação das feiras, que integravam europeus, obrigando-os simultaneamente a manter em distância. Ibidem, p. 373. 331 Ibidem, p. 373. 332 No século XVII o capuchinho Cavazzi também discorreu sobre a estruturação de uma cidade “Jaga”, com as seguintes palavras: dividem-no em sete quarteirões e nomeiam um oficial como chefe de cada um. No centro está construída a morada do príncipe, rodeada por uma cerca quadrada de sebe muito forte, em forma de labirinto. Dentro desta cerca, além das arrecadações dos criados, fica a habitação das pessoas mais importantes, para assistirem ao príncipe em caso de doença ou de invasão dos inimigos. Todas estas pessoas, sob pena de lesa-majestade, têm de morar na respectiva habitação (...)”. CAVAZZI, Op. Cit., p. 192. 131 2.3. Entre “guerras justas” e “injustas”: jogos de interesses no hinterland de Benguela No dia 7 de Agosto de 1761, Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, o então governador do Reino de Angola, escreveu ao rei a solicitar providências sobre uma delicada situação ocorrida no ano de 1760, quando uma embarcação de cativos que rumava ao Brasil, de propriedade de Manoel da Costa Pinheiro e sócios, foi surpreendida por uma rebelião, resultando na morte da grande parte dos marinheiros e o Capitão Mestre. Aqueles que haviam sobrevivido foram obrigados a desviarem o percurso do navio novamente para a África, rumo aos domínios do soba Dembo Manicembo, que estava localizado ao norte de Luanda, onde foram recebidos e asilados. O desenrolar da história prosseguiria com as tentativas fracassadas de reaver os cativos refugiados junto ao potentado de Dembo – afirmava Francisco Inocêncio que o seu antecessor, Antonio de Vasconcelos, havia encaminhado uma carta ao Chefe africano e o mesmo nem tivera o trabalho de respondê-la. Numerosos fatores preocupavam o então governador, face à morosidade da resposta: (...) a incerteza da paz da Europa, e as pequenas forças com que se achava o referido meu antecesor lhe dificultaram o castigo, que devia dar a este soberbo potentado para conservar a reputaçam do Estado que aqui nos sustenta, e a cautelar semelhantes sucesos que na (sic) deste homem dezanimao, enfraquecem o comercio(...). 333 Em outras palavras, mais do que a necessidade de castigar o potentado, era preciso manter a reputação, pois estava em jogo o próprio sucesso do comércio na região. Na sequência da carta encaminhada ao rei, Francisco ainda fez menção sobre o que deveria fazer no caso dos negros fugirem, antes da aplicação do castigo ao soba Dembo, bem como sobre o desconforto da não-resposta das cartas que o próprio havia encaminhado semanas antes. De fato, no dia 30 de julho daquele ano, o governador Francisco Inocêncio enviara uma carta ao soba Dembo Manicembo, afirmando dar-lhe uma última chance, antes de aplicar um castigo que o levaria à ruína completa: (...)Recebendo o Debmo Manicembo esta carta saberá que o muito alto e poderozo Rey didelisimo de Portugal me mandou governar este Reyno, e que tomando posse dele achei a noticia de que levantando se huma embacassam de escravos se recolhera nos seus Estados, e que escrevendo lhe o meu antecessor para que os entregase logo e não tem feito atté agora como hera obrigado pelo que lhe se achava disposto a castigallo com huma Guerra, 333 ANTT, Condes de Linhares, Liv. 99 I, 7 de Agosto de 1761, pp. 30-31. 132 que o destruise; porem eu suspendi este justisimo castigo atté He fazer concluída esta resolucçam propondo lhe o meyo de satisfazer o nosso agravo, que nos tem feito entregando logo logo sem demora os escravos, o que sendo assim serei sempre muito Amigo do Dembo Manicembo, e o ajudarei e protejerei em tudo quanto a Real grandeza de S. Magestade promete aos seus vassalos, e aos que executam de boa fé as suas ordens, assim como uzarei das armas do mesmo S.m. para o destruir senão entregar os escravos com huma publica satisfassam a este Estado ofendido pelo dito Mao procedimento[grifos nossos]. A Pessoa de Dembo Manicembo... de 30 de julho de 1764 [grifo nosso].334 No mesmo dia, Francisco Inocêncio despacharia mais duas cartas, uma endereçada ao “Príncipe Songo” e outra ao “Marques Moçulo”. Para o primeiro, o governador recomendava que se valesse de toda força possível para persuadir o seu vizinho à entrega dos cativos fugitivos, pois seria de grande dano ter uma guerra na sua vizinhança: (...) participo ao Principe do Songo para que saiba persuadir o seu vizinho e confinante dos prejuízos deste castigo, e de que o deve evitar entregando os ditos escravos logo logo sem demora, pois de outra sorte o castigares como costumam as armas portuguezas, e o Principe de Songo deve empregar toda a sua força na persuaçam pois senao faz convenieencia ter huma guerra na sua vizinhança, o que assim hefasso saber para que o não venha a experimentar (...). 335 Ao segundo, informava que as tropas portuguesas passariam pelo seu território e ele não deveria fazer-lhes nenhum mal, socorrendo em tudo que fosse necessário, pelo que as recomendavam as obrigações enquanto “amigo da coroa de Portugal”. 336 Mais do que revelar a constante instabilidade da região, a contenda aponta relações fundamentais na produção de escravos, comuns a todo o Reino de Angola, a saber: a “guerra justa” e o comércio e, principalmente, a complexa relação entre a aplicação do castigo e o tecer de alianças com Chefes locais. Francisco de Sousa Coutinho, ao justificar a urgência do resgate e castigo ao soba Dembo Manicembo por ter abrigado cativos fugitivos – e vale salientar que a situação se agravava por estes cativos terem assassinado toda uma tripulação –, assumira uma postura que era comum à atuação portuguesa na chamada África Central, movida pela crescente demanda de cativos no Novo Mundo, ainda mais no período de descobertas das minas – séculos XVII e XVIII – na América portuguesa. A guerra sempre seria “justa” na medida em que houvessem 334 AHU, Angola, Cx. 48, Doc. 27. Ibidem. 336 Ibidem. 335 133 obstáculos à instalação portuguesa no território estrangeiro ou mesmo se, após instalados, aparecessem empecilhos ao bom funcionamento do comércio, isto é, à garantia de que as rotas comerciais funcionassem sem assaltos, roubos ou interferências de populações locais –aquelas que não participavam diretamente das negociações com o mundo lusitano. Ademais, além da desobstrução de obstáculos ao funcionamento da economia atlântica, a noção de “guerra justa” estaria circunscrita à ampliação da fé cristã junto a outros povos, de modo que remontaria às expulsões de muçulmanos da Península Ibérica no final do século XIV; especialmente, na bula papal de 1452, que autorizava o rei de Portugal a atacar, conquistar e submeter povos pagãos, “inimigos de cristo”. 337 Em linhas gerais, o termo se aplicava aos povos que não professavam a fé cristã. Entendia-se que a guerra seria capaz de corrigir a hostilidade. Contudo, para ter legitimidade, além da necessidade de propagação da fé cristã frente a possíveis impedimentos, deveria se fundamentar na conjunção de outros fatores, como extorsões contra colonos ou missionários, invasão de aldeias protegidas pela coroa portuguesa ou quebra de pactos celebrados. 338 Dessa forma, o seqüestro do navio e posterior abrigo dos fugitivos, ao mesmo tempo em que causava instabilidade no funcionamento da empresa escrava, representava uma quebra de pacto com a coroa e, portanto, uma afronta, uma vez que o soba Dembo era tratado como “vassalo”, pelo que sugere Francisco Inocêncio. Vale assinalar que contratos de vassalagem eram práticas comuns no controle das possessões ultramarinas portuguesas. No caso do reino de Angola, por exemplo, constituíam estratégias para assegurar o controle do território, ante a impossibilidade de domínio militar. De modo geral, ofereciam vantagens para ambos, chefes locais e coroa lusitana: (...)Se por um lado o estado colonial dependia da cooptação e da colaboração dos sobas, por outro as autoridades locais viam seu poder legitimado e 337 Em palavras de Candido: “(...)a expansão portuguesa pela costa da África deve ser entendida no contexto do conflito religioso na Península Ibérica e no Mediterrâneo, principalmente quando os portugueses encontraram muçulmanos na costa da Senegâmbia e utilizaram a lógica dos conflitos entre cristãos e muçulmanos para legitimar a sua captura e escravização.” CANDIDO, Mariana P. “O limite tênue entre liberdade e escravidão em Benguela durante a Era do comércio Transatlântico”. In: Afro-Ásia, 47 (2013), p. 251. 338 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Para conter a fereza dos contrários: guerras na legislação indiginista colonial. Cadernos Cedes, n. 30, pp.57-64. Sobre o conceito de “Guerra justa” ver também DOMINGUES, Angela. “Os conceitos de guerra justa e resgate e os ameríndios do Norte do Brasil”. In: SILVA, Maria B. N. (org.). Brasil: colonização, escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 134 apoiado pela colônia que fornecia bebidas alcoólicas, tabaco, armas de fogo e fazendas aos sobas avassalados.339 Outrossim, os contratos passaram a ser utilizados como proteção à escravidão, uma vez que súditos estavam legalmente imunes ao cativeiro. O caso da comerciante e mulata dona Leonor ilustra a circunstância. Presa em 1811, quando viajava juntamente com suas filhas ao Bailundu, a leste de Benguela, para cobrar dívidas comerciais deixadas pelo seu falecido marido, foi transformada em escrava pelo soba da região e vendida a Benguela, levada em uma caravana. Em Benguela, foi vendida ao capitão do navio Grão-Penedo que rumava ao Rio de Janeiro. Então, em uma parada em Luanda, a história chegou ao governador de Angola, José de Oliveira Barbosa, que, sob o embasamento de que Leonor fosse vassala, interviu no caso e ordenou a sua imediata soltura e regresso a Benguela. 340 De qualquer forma, décadas antes, no reino de Benguela, o debate sobre o caráter justo ou injusto das guerras movidas contra sobados africanos já aparecia no ponto central de uma grande polêmica. Nessa mesma região, especificamente, no sertão de Benguela e entorno do Presídio de Caconda, em um período de pouco mais de dez anos, podemos presenciar duas situações: a chamada “guerra justa” e, alguns anos depois, um modelo que poderia ser considerado “guerra injusta”. A primeira nos é apresentada em 1719, em uma carta endereçada ao Conselho Ultramarino, por Henrique de Figueiredo, o então governador de Angola. Relatava os pormenores de uma típica campanha no sertão de Benguela, que objetivava sufocar uma grande rebelião e garantir a normalidade do comércio de escravos na região. Segundo o ele, a campanha teria sido impulsionada pelas ações do soba Cambuinda, que há tempos praticava roubos nos pombeiros341 que circulavam na região, levando as mais diversas posses, incluindo escravos, promovendo matanças e incêndios naquele Presídio [Caconda]; o ponto mais elevado das provocações seria a tentativa de assassinato de dois capitães que passavam por suas terras. Como resposta ao pedido de ajuda do Capitão de Caconda, foi enviado o 339 CANDIDO, 2013, p. 256. Mariana Candido argumenta que a história de Leonor, juntamente com outros casos similares encontrados nos arquivos referentes ao reino de Benguela, demonstram um limite “tênue” entre a liberdade e escravidão, de modo que nenhum indivíduo, mesmo que próximo do litoral, pudesse estar totalmente imune à escravidão. Por outro lado, a autora observa a atuação junto às esferas legais de numerosos africanos, que intentavam evitar a escravidão,principalmente sob o argumento de que “vassalos” do rei não pudessem ser reduzidos à condição de cativos. Ver CANDIDO, Ibidem,p.261. 341 Pombeiros na África eram aqueles que atravessavam os diferentes territórios de posse principalmente de escravos. Ver capítulo 2, seção 2.2., item C da parte I da presente tese. 340 135 Sargento-Mor Manoel da Crus Pais, acompanhado de soldados e guerras pretas342. Pelo que consta na carta, a crise na região teria se agravado com a adesão de outros potentados africanos, que, segundo o Governador Henrique de Figueiredo, faltavam com “obediência há muito tempo”. Ao todo, nove sobas reuniram-se à conjuração de Cabuinda, causando mais trabalho que o esperado e forçando o combate simultâneo em três frentes. Após dias intensos de combate, os inimigos africanos foram derrotados: (...) o inimigo foi inteiramente vencido e miseravelmente destruído e esburacado, a perda da nossa parte foram pouco mais de cem negros feridos, e oito, ou des mortos, do inimigo senão sabe com certeza dos mortos, huns dizem que duzentos, outros que menos, e dos feridos grande cantidade (...).343 Além da vitória avassaladora, narrada pelo Governador Henrique de Figueiredo, a campanha militar festejou o êxito de terem capturado 4 sobas e degolado outros 3 macotas,344 acrescendo-se a isso os despojos enviados à Coroa – 400 vacas, cerca de 100 carneiros, entre outros. Na carta, o Governador fazia questão de acentuar que os sobas capturados não seriam dignos de perdão e que deveriam ser enviados ao Brasil como escravos, como exemplo de castigo, pois, caso retornassem àquela localidade, representariam a total ruína do Reino. Não há conhecimento se, de fato, tais sobas foram enviados ao Brasil, como desejava o Governador do reino de Angola, Henrique de Figueiredo, a fim de intimidar futuras rebeliões. Porém, a festejada vitória aparentemente não havia surtido o efeito esperado, uma vez que, alguns anos após tal episódio, novas rebeliões atormentaram o sonhado sossego da empresa escrava na região. Dessa maneira, nos deparamos com uma nova situação conflituosa no Sertão de Benguela, mas, nessa ocasião, relatada curiosamente como “Guerra Injusta”. O novo episódio tem o seu ponto de partida na carta encaminhada ao Rei Dom João VI, pelo Provedor da Fazenda Real do Reino de Angola, Francisco Pereira da Costa, no ano de 1727. 345 O Provedor, além de informar a grande instabilidade na região, denunciava diretamente o Capitão-Mor de Benguela, Francisco de Sousa da Fonseca, por promover uma guerra injusta contra os potentados da região. Sob o pretexto de vingar a morte de oficiais e 342 Guerras Pretas designavam africanos recrutados para o serviço militar. Nalguns casos, forçosamente. Sobre uma reflexão minuciosa das características e atuações deste grupo no sul de Angola, ver capítulo 4 da tese de Roquinaldo Ferreira (2003), intitulado “Soldiers and territorial control”. 343 AHU, Angola, Caixa 20, Doc. 98. 344 Na hierarquia política das diferentes populações africanas, Macotas detinham grande importância, após os Sobas. 345 AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 66, 1727. 136 pombeiros, o Capitão-Mor havia organizado uma expedição punitiva ao soba Quiombella e Ivanjanda. Todavia, movido pela “ambição”, se deslocara às Províncias de Bembe e Luseque, causando grande destruição de mantimentos, apreensão de gados e escravos. A operação havia causado tanta indignação no Provedor, que o mesmo chegou a solicitar ao Rei que considerasse a restituição da liberdade dos negros colocados em cativeiro, pelo fato de serem originários de uma guerra injusta. Na sequência, o Conselho Ultramarino despachou a seguinte decisão: o governador deveria não somente destituir o Capitão-Mor do Presídio de Benguela do seu cargo, como encaminhá-lo a um Presídio e castigá-lo. 346 Manuel Pires, substituindo Francisco de Sousa, foi nomeado o novo Capitão-Mor e, a fim de garantir a paz na região, reforçou com soldados não somente Benguela, como o Presídio de Caconda. A crise havia crescido em tanta intensidade que para assegurar a paz dos moradores do Caconda, que se sentiam ameaçados com a presença de negros junto às muralhas, Manuel Pires foi obrigado a deslocar 60 homens para guarnecê-lo e, posteriormente, mais 50 soldados. 347 No ano seguinte, em carta escrita ao Rei, pelo Governador de Angola, Paulo Caetano informava que o sertão de Benguela finalmente se encontrava “sossegado”, após a aplicação bem-sucedida dos castigos aos “rebeldes”. Entretanto, apesar da paz temporária, admitia na mesma carta a falta de escravos na região, possivelmente porque não estavam sendo levados por negros como antes. 348 O governador ainda voltaria a se referir à crise do sertão de Benguela em duas outras ocasiões: no balanço do seu triênio, como governador de Angola, 349 e na carta enviada ao Rei, ainda sobre a contenção da rebelião. 350 Na primeira, além de informar os detalhes acima narrados, comenta a submissão e obediência de três “grandes Províncias” à coroa portuguesa. A segunda, por sua vez, enfatiza o sucesso da campanha militar na região, afirmando que aqueles sobas que não fugiram foram mortos e que, a partir daquele momento, o comércio estaria desembaraçado. Junto à segunda menção, uma carta escrita pelo Coronel Alvaro de Barros da Silva, que havia sido encarregado de conduzir a expedição militar contra Quiombella. Pelo que consta no documento, nota-se que o caminho que levou à pacificação da região se mostrou largamente dificultoso, com o percorrer de vários potentados, conflitos militares, alianças diversas, 346 AHU, Angola, Caixa 24, Doc.67, 1727. AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 41, 1727. 348 Certamente Paulo Caetano se refere a ação dos pombeiros. AHU, Angola, Cx. 24, doc. 80, 12 de março de 1728. 349 AHU, Angola, Cx. 24, doc. 97, 29 de maio de 1729. 350 AHU, Angola, Cx. 24, doc. 120. 347 137 aprisionamentos e o constante deslocamento de Quiombella e os seus vassalos. Numerosos trechos demonstram o complexo quadro político de alianças na região, a começar pela oferta de aliança “enganosa” após a primeira fuga de Quiombella (segundo o relato do capitão, “fugiu sem que sua gente o visse”), por um soba autônomo: (...)O sova hautonomo seu vezinho e confederado enganozamente me veyo dar obediência offerecendo a sua guerra e guiar para o nofso destacamente aceitando huma couza achei depões que no dia do que havia (sic) Quiombella (sic) pelejando connosco sem embargo de nos ter dado hum cabo com sua partida e gente Sua, e que os guias hiam dedicados a entregarnos e precipitarno (...). 351 O relato da devassa segue com mais ofertas de alianças e obediência: (...) um cepto Sova Gandu e Quimdembe que vieram dar obediência, e me a companharam por algus diaz e nem estes (sic) senhorez do Pay sabiam dar heram do dito Sova, e vafsallosz. Sem embargo das fuas diligenciaz, fui com o Destacamente a libata do soveta donde morreram os fete homez o qual havia mesez que fahio da Provincia comtudo o que Metocava, e mandeya queimar ate o ultimo pão; feitas estas execuções me retirey por Quijange a seguir as ordez de V. Exa (...).352 Acerca de toda a contenda acima apresentada, é preciso ponderar alguns elementos. Em primeiro lugar, não se tratava de um fato inédito na história da região que a guerra movida contra chefes locais fosse taxada de “injusta” ou ilegal. Fatos similares precediam o episódio. Em 1610, por exemplo, padres jesuítas questionavam a legitimidade do comércio escravo em Luanda. Luís Brandão, reitor do Colégio da Companhia de Jesus, questionava se todos os cativos que se encontravam no porto de Luanda haviam sido capturados “legalmente”, ou em conflitos legítimos com as forças portuguesas, ou seja, nas guerras reservadas aos nãovassalos. O religioso alegava que seria impossível averiguar as circunstâncias de cada captura e que restava aos comerciantes locais confiarem na “boa fé” dos intermediários que enviavam aos mercados interiores. 353 Já em 1652, Bento Teixeira, o então ouvidor e provedor de fazenda do reino de Angola, acusou as chamadas “guerras de expansão” de servirem apenas como pretexto para escravizar populações vizinhas. Com argumentos semelhantes ao provedor do reino de Benguela de 1727, Teixeira relatava: “(...) tomam os governadores 351 AHU, Angola, Cx. 24, Doc. 115, 19 de setembro de 1729. Idem Ibidem. 353 CANDIDO, 2013, p. 253. 352 138 honestos pretextos para fazer guerra aos gentios sem a realidade haver outra causa mais que a cobiça de cativá-los e vendê-los, atropelando as leis da natureza” [grifo nosso]. 354 Em segundo lugar, o caráter “justo” ou “injusto” das guerras, presente em casos similares à contenda de Caconda, igualmente deve ser compreendido no escopo da legislação lusitana ultramarina, que desde o século XVII estabelecia procedimentos para se fazer guerras. O conjunto de leis e alvarás editados referentes à legitimidade da escravidão de indígenas obtidos via “guerras justas”, promovidas no Pará e Maranhã, ilustra o tema. Na lei publicada em 9 de abril de 1655, por exemplo, existiriam dois tipos de guerras justas: a defensiva e a ofensiva. As diferenças entre si eram tênues, mas, em linhas gerais, enquanto a primeira deveria ser uma resposta a invasões movidas por indígenas dos domínios portugueses, a segunda seria motivada por preocupação, antecipando-se a iminentes perigos dos povos vizinhos. 355 Essa lei, pelo que consta no seu primeiro parágrafo, era fundamentada em leis editadas em séculos anteriores, como nos de 1570, 1587, 1595, 1652 e 1653, além de conhecimentos jurídicos acumulados por todo o reino. Não somente especificava quais eram os tipos de “guerras justas”, como previa a libertação imediata de indivíduos aprisionados, caso não fosse constatada a condição ou razão do conflito. Tal assertiva assim estava discriminada no corpo da lei: (...) serão os captivos postos em sua liberdade, entendendo por guerra defensiva a que fizer qualquer cabeça ou comunidade, por que tem cabeça e soberania para vir fazer e cometer guerra ao Estado, por que faltando esta qualidade aquem faz guerra, ainda que seja feita com ajuntamento de pessoas, as que se tomarem não serão captivos, antes, segundo o delicto que cometterem serão castigados na forma das Leys ordenações destes Reynos no que havião de ser quaesquer vassalos meus que os ditos crimes cometterem [grifo nosso].356 Na ausência da “qualidade” ou justificativa para a “guerra”, os aprisionados deveriam ser postos em liberdade e julgados como quaisquer outros “vassalos”, o que excluía o cativeiro, assim como do outro lado do Atlântico, no reino de Angola. De todo modo, em 28 354 Idem Ibidem, pp. 254-255. A referida lei determinava que as “guerras defensivas” poderiam ser declaradas por governadores, ao passo que as “ofensivas” somente caberiam ao rei. Em 1688 foi publicado um novo Alvará que aboliu tal distinção e conferiu maior autonomia aos governadores. Para uma análise da legislação que abordou as “guerras justas” contra indígenas do Maranhão, ver SOUZA e MELLO, Marcia Eliane Alves de. A paz e a guerra: as juntas das Missões e a ocupação do território na Amazônia colonial do século XVIII. Comunicação apresentada no 52º Congresso Internacional de Americanistas. Sevilha, 15 a 17 de julho de 2006. 355 356 Anais da Biblioteca do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. V. 66, 1948, p. 26. Também disponível no endereço eletrônico: < http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais_066_1948.pdf >. Acessado no dia 23 de janeiro de 2015. 139 de abril de 1688, circulou no Maranhão outro documento jurídico que modificava algumas disposições da lei de 1655 e estabelecia novos critérios, igualmente baseado nas experiências coloniais acumuladas pelas possessões ultramarinas do reino lusitano. O Alvará foi editado ao mesmo tempo que aumentava a autonomia do governador responsável pela Capitania, obrigava-o a obedecer numerosas condições. Para as chamadas “guerras defensivas”, determinava: (...) a defensiva da invasão dos inimigos se justificará com documentos jurídicos de maior prova de testemunhas, que tirará o Ouvidor Geral, ao mesmo tempo que der logar á mesma guerra, e por certidões juradas dos Missionarios que assistirem nas terras e Aldeas que forem invadidas; e do mesmo modo será justificada, quando o Indios, e inimigos da Fé, impedirem a entrada dos Sertões aos missionários, e a pregação do Santa Evangelho (...). 357 Para as “guerras ofensivas”, o rei exigia o envio de pareceres a si e ao Conselho Ultramarino, para o exame cauteloso a fim de averiguar a devida legalidade do conflito: (...) a offensiva se justificará legalissimamente, primeiro e antes de se fazer a guerra, sendo a primeira prova os pareceres por escripto dos Padres Superiores e Prelados das Missões da Companhia, e da Religião de Santo Antonio, que assitirem nas cidades de S. Luiz do Maranhão, ou de Belém do Pará, onde a tal guerra se ordenar, e outrosim do Ouvidor Geral; sem os quaes em nenhum modo se poderá fazer; e as darão com toda a distincção e individualidade das circunstancias também que ficam apontadas a este fim [grifo nosso]. 358 Podemos observar que, tanto em um caso como em outro, a declaração de uma “guerra justa” deveria passar pelas mãos de numerosos personagens da administração portuguesa. No caso da “defensiva”, além do Ouvidor ser responsável pela reunião de provas coletadas com testemunhas, era preciso que responsáveis religiosos pelo local invadido emitissem certidões comprobatórias. Na “ofensiva”, a decisão para se fazer uma “guerra justa” passaria por várias instâncias, sob risco de punição do governador e Ouvidor da região e libertação imediata dos aprisionados, se assim fosse comprovada a irregularidade. 357 359 Na contenda em torno do O seguinte Alvará se encontra disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, na seção de documentos reservados 2434A. O mesmo também foi digitalizado e está disponível no sítio “Ius Lusitaniae”, que consiste numa base de dados de fontes históricas do Direito Português, capitaneado pelo Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa, pelo Programa Organizacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (POCTI) e Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT): < http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=103&id_obra=63&pagina=1238 >. Acessado no dia 23 de janeiro de 2015. 358 Idem Ibidem. 359 Assim estava discriminado no Alvará: “(...) e não fazendo assim, serão havidos por livres todos os índios que de facto tiverem sido captivos, e me darei por muito mal servido dos ditos Governador e Ouvidor: e desta culpa mando se inquira em suas residencias, e que sendo-lhe posta nellas, se me dê especial conta de como as 140 presídio de Caconda em 1727, nenhum procedimento acima foi obedecido, de acordo com a acusação do provedor Francisco Peireira da Costa. De outro modo, o conflito que observamos em torno da legitimidade ou não da guerra movida contra os sobas do hinterland de Benguela poderia ser resultado de uma complexa trama de interesses, arranjos e rearranjos de alianças; ultrapassariam a simplificada divisão que colocava, de um lado, reinóis e, de outro, as forças locais, no caso, provedor da Fazenda Real e Governador do reino de Benguela. João Antonio Botelho Lucídio, na análise de uma contenda formada nas minas do Cuiabá em 1740,360 observara o referido jogo de interesses. Na ocasião, contrariando as determinações régias, comerciantes locais, membros do Senado da Câmara e o Ouvidor, João Gonçalves Pereira, decidiram-se por realizar comércio com os padres da Companhia de Jesus da missão de San Rafael de los Chiquitos, possessão espanhola, contrariamente à posição do provedor da Fazenda Real. No decorrer do impasse, o provedor, em correspondências às instâncias superiores, afirmava ser acusado pelo Ouvidor, outro funcionário da coroa, de ter chegado às minas do Cuiabá com “El Rey na barriga”, expressão que designava autoritarismo, prepotência, egoísmo ou alguém que não estava disposto a respeitar a opinião alheia. 361 Para além das especificidades locais, uma compreensão das alianças tecidas naquela localidade deve partir de diferentes pressupostos, conforme argumenta Lucídio: (...) Governar naquelas lonjuras era a arte de saber fazer e desfazer alianças com as pessoas e os momentos certos. Não importava se fosse paulista, reinol, do senado da câmara ou oficial régio. As alianças eram circunstanciais e não espeitavam as origens europeia ou brasílica de quem as faziam. Parece-nos também que sua lógica e o seu sentido obedeciam a regras muito peculiares que passavam por interesses econômicos, paixões políticas, lugar de precedência nas conquistas, disputas por mercês e reconhecimento na corte, honras e compromissos de famílias, compadrios, rixas ancestrais, enfim uma gama enorme de possibilidades [grifo nosso].362 O provedor, que contrariava interesses locais, argumenta Lucídio, não havia sido capaz de compreender o espaço político que vivia e, como não conseguiu formar uma rede de relações, acabou por ficar isolado e foi estigmatizado como aquele que possuía “El Rey na incorreram, para mandar ter com elles a demonstração que me parecer conveniente” [grifo nosso]. Idem Ibidem, p.486. 360 As minas do Cuiabá no período estavam circunscritas aos domínios da Capitania de São Paulo, na América portuguesa. Eram consideradas a parte mais ocidental das possessões lusitanas, área fronteiriça com os domínios espanhóis. 361 LUCÍDIO, Op. Cit., p. 247. 362 Idem Ibidem. 141 barriga”. Ao direcionarmos nossa atenção novamente à contenda entre o provedor da Fazenda Real de Benguela e o governador, poderíamos dizer que este último não havia sido capaz de formar relações que pudessem sustentá-lo no seu cargo, uma vez que acabou por ser destituído? O governador do reino de Benguela, assim como o provedor das minas do Cuiabá, não havia sido capaz de entender o espaço político que vivia ao atacar chefes políticos considerados vassalos e aliados da coroa portuguesa? Embora a repressão aos sobas tenha se seguido após a destituição do governador, o caso demonstrava grande preocupação com a manutenção dos arranjos e alianças formadas na região, entre a coroa lusitana e sobas avassalados, que garantiriam o controle da região e regularidade do fornecimento de escravos. Vale destacar, ainda, a atuação do soba Quiombella. Tal soba mantém presença constante nos documentos oficiais, durante as décadas de 1720 e 1730, podendo ser considerado o maior inimigo, ou obstáculo, para o estabelecimento português na região; tanto por enfrentar diretamente o poder português, como por sua capacidade mobilizadora de formar confederações de rebelados. O soba Quiombella, citado em várias passagens ao longo da década de 1720, já aparece, por exemplo, em 1722, como personagem central de uma rebelião, juntamente com outros confederados, contra o Presídio de Caconda; é o que podemos observar na carta de defesa de promoção militar de Felipe de Souza Meira, que serviu, entre 1702 e 1729, como soldado e, posteriormente, como Capitão-Mor do Caconda: (...) Em 722 ser mandado pello Capitão Mor do Reyno de Angolla por cabo de fines Companhya de Infantaria de Sua de Empa(sic) e bastante gente de guerra para acudir ao Prezidio de Caconda que se achava cittiado de inumeráveis perto do Rebellado Sova Quiombella e seos confederados com empenho de invadirem, e no dycurso do tempo q durou a campanha tratou geral a todos com paternal amor (...) [grifo nosso].363 A mesma rebelião informada na carta de promoção de Felipe de Souza também aparece disposta na carta de candidatura de Manuel Simões, que disputava a ocupação do cargo de “Mestre de Campo”, vago com a saída de Joseph Carvalho da Costa, em 1732. Manuel, naquela altura, já havia participado de várias campanhas militares, tendo servido 363 AHU, Angola, Cx. 24, doc. 136. Aqui vale destacar a riqueza de informações que dispõem tais cartas de apresentação de determinados soldados, para promoção na hierarquia militar. As caixas que dão conta do Reino de Angola, durante o século XVIII estão repletas de tais documentos, que informam sobre campanhas militares, alianças e a expansão portuguesa na região. 142 como Capitão-Mor nos Presídios de Cambambe, das Pedras e Benguela. A respeito da sua participação na guerra de 1722 nos sertões de Benguela, assim dispõe o documento: (...) Em 722 rebelando se vários sovas e potentados dos Certoes de Benguella contra a fortaelza do Seu Prezidio e do de Caconda pondo-se em armas cinco Provincias contra os três presídios formando-se um poderozo exercito, foi ordenado ao Supplicante convocafe (convocasse) os vezinhos e com a gente lhe montafem formafe um campo e fosse rebater a fúria dos inimigos. O que executou em tal forma que os fez desalojar do citio que haviam posto a Caconda socorrendo o ditto presdio; e seguindo-os lhe deu batalha que durou por espaço de trey sovas, vencendo o potentado Mulundo com mortandade de muita gente e com despovo; e porque o v. Inimigo tornou de novo a grassar o seu poder foi o u seguimento e Suppe. em seu seguimento e encontradose com elle lhe deu outra batalha, que durou sey horas em que ficou (sic) cm grande mortandade de feridos e despoos e o Reyno de Benguella e Caconda dezasombrados daquella opreçao (opressão) devendo se tudo ao valor e a coragem do millitar do Suppe; em que passou quazi de um anno rendendo e vassalando muitos rebeldes das cinco Provincias com grande credito das armas portuguesas e pouca despeza da fazenda Real.364 Vale destacar que a mesma carta de apresentação dos feitos de Manuel também dá conta da sua participação nas campanhas militares contra o soba Cabuinda em 1719, que autorizou o envio de reforços do Presídio de Benguela a Caconda, culminando na vitória sobre os potentados e prisão de cativos e sobas supracitados no início deste capítulo. Quiombella, que atuou contra a coroa portuguesa entre as décadas de 1720 e 1730, mobilizando outros potentados, uma vez que as suas ações estavam circunscritas aos entornos do Presídio de Caconda, que havia sido fundado na década de 1680, à distância de 4 ou 5 dias de Benguela, no corredor formado entre os rios Katumbela-Kuparolo (ver Mapa 9, acerca do hinterland de Benguela), provavelmente, seria um soba ovimbundu relacionado aos Hanya, visto que o presídio fora fundado em meio a turbulentas relações com os habitantes locais e, desde a sua edificação, estas relações permaneceram, como bem pudemos observar nos documentos citados anteriormente.365 Ademais, pensar a construção da legitimitidade das guerras movidas contra africanos que habitavam o hinterland de Benguela implica considerar a ação dos africanos frente o comércio transatlântico de escravos, que ora estiveram no pólo oposto, como o soba Quiombella, ora mantiveram relações de vassalagem que proporcionavam recíprocas vantagens. Por outro lado, episódios em que africanos escravizados fogem do cativeiro, 364 AHU, Angola, Cx. 26, doc. 114;115. Igualmente, podemos considerar a possível origem imbangala de Quiombella, uma vez que desde o século XVII chefes que atuavam na região do Caconda, reivindicavam tal ancestralidade. Ver MILLER, 1995, p. 209. 365 143 atacam e sequestram navios negreiros, ou aqueles em que lutam na justiça pela garantia da liberdade ilustram que estes indivíduos não permaneceram passivos ante o comércio transatlântico e que reagiram da maneira que lhes era possível. Sobre as guerras, não restam dúvidas de que a promoção e sua realização foi o principal meio de obtenção de cativos na África Central, embora, como assinala Mariana Candido, nos reinos de Angola e Benguela, houvesse outros meios para escravização, como seqüestros e embuste.366 Todavia, a questão não se resolve com a simples afirmativa da primazia do recurso para o apresamento de cativos. É preciso elucidar as diferentes modalidades de guerras, suas peculiaridades. De tal sorte, ao analisarmos a “guerra” como instrumento de produção de mão-de-obra escrava em Angola, temos as seguintes situações: a) a guerra travada diretamente entre a coroa portuguesa e sobados locais, justificada sob diversos fundamentos, fosse “defensiva” ou “ofensiva”; b) As guerras travadas entre a coroa portuguesa e poderes locais, para o estabelecimento e fortalecimento de alianças comerciais ou militares; c) as guerras travadas entre lusitanos e sobados africanos, injustificadas ou ilegítimas; d) e, por fim, as guerras travadas entre sobados locais. Cada modalidade obedece a uma lógica mercadológica cadenciada por circunstâncias intercontinentais, como por rearranjos de poderes locais que podem relativizar a legitimidade ou não do conflito, quando em lados opostos estão forças locais e a coroa portuguesa. De maneira geral, os embates travados em torno do caráter justo ou injusto das guerras perpetradas nos arredores do presídio de Caconda perpassam as três primeiras situações. Sobre a última, vale salientar que, com o mercado transatlântico de escravos e necessidade de produção de cativos, foi presença constante na história não somente do reino de Benguela, mas de toda África Centro-Ocidental; marcou desde o recrutamento de Imbangalas para realização de incursões militares e apresamento de cativos até o próprio estabelecimento dos potentados Ovimbundus entre os séculos XVII e XVIII, no sul da Angola. Devemos lembrar que, no próprio documento que outrora apresentamos, existe uma oferta de aliança de um soba considerado “autônomo” com as forças portuguesas, para captura e luta contra Quiobella. 366 Aqui vale ressaltar que no período ainda não existia a “Angola” enquanto Estado-nação, mas o Reino de Angola e Benguela e os seus respectivos hiterlands (interiores, regiões desconhecidas), do ponto de vista português. Para além dos domínios portugueses, que se edificaram progressivamente a partir do século XVI, existiam no atual território angolano, numerosas nações e potentados. Algumas destas últimas serão objeto do estudo que se segue. 144 Sobre essa questão, vale mencionar a reflexão de Miller, que verificou atentamente o avanço das “fronteiras escravas”, ao longo dos séculos XVII e XVIII em Angola, principalmente em Benguela. Segundo o autor, esse universo de expansão da empresa escrava esteve marcado pela conjunção entre a atuação de sobas, na condição de “senhores da guerra”, juntamente com as crises ecológicas sucessivas que atingiam a região e favoreciam aos primeiros, ao provocarem o aumento de súditos que buscavam proteção da seca e fome, como a conquista dos mais vulneráveis. 367 Analogamente, na medida em que as secas, fome e doenças atingiam as regiões da costa de Angola, reduzindo-as severamente, os portugueses se viam forçados a expandir as suas atividades para o leste. 368 Os antigos chefes Ovimbundus, face os desastres naturais e chegada lusitana, passaram a ver na empresa escravista a possibilidade de importação de bens com a exportação de escravos, criando progressivamente, na região, uma situação de dependência com a economia atlântica, com zonas de toque referenciais, tais como Caconda e, no final do século XVIII, o Bié – implica dizer que o suprimento da demanda de cativos que vinha do outro lado do Atlântico, especificamente das minas brasileiras, foi correspondido principalmente pela atuação de sobas na produção de cativos, que pressupomos, via-recurso de incursões e guerras.369 Em outras palavras, essa expansão do oeste para o leste de Angola, no sul e centro de Angola, combinou a congregação de reis locais e aristocracia com comerciantes, que, além de financiarem incursões militares a populações vizinhas, passaram a contar com a presença de “intermediários”, que se lançavam sucessivamente a vilas mais afastadas.370 Finalmente, acrescentemos a esta reflexão a proposição de José Curto, acerca da utilização da guerra como instrumento para produção de cativos no sertão de Benguela, entre os Ovimbundus. De acordo com o autor, até a fundação do Presídio de Caconda, na década de 1680, a tática fundamental lançada pelo mundo lusitano para obtenção de cativos fora o recurso à guerra. Com a edificação de Caconda, passou paulatinamente a ser substituída pelas alianças comerciais – que garantia o suprimento de cativos e segurança dos agentes 367 MILLER, 1988, pp. 143-146. Miller, para exemplificar a reflexão, menciona a forte crise demográfica que abatera Luanda na década de 1680, quando o potencial de exportação de cativos, foi reduzido em pelo menos 50%. Ibidem, p. 151. 369 Aqui vale chamar a atenção para preocupação constante do autor em circunscrever o ponto de vista do africano, expressa no próprio prefácio da obra e noutros artigos subseqüentes à publicação da mesma. Miller afirma que além dessa inclusão da perspectiva africana, é preciso a realização de um cruzamento de diferentes perspectivas, a fim de que se produza uma teoria do sistema mundial “ecletista” e múltipla. Se questiona a todo momento sobre a possibilidade de se produzir uma história mundial com “tons mais quentes”, à despeito da frieza dos dados quantitativos. Ver “Preface”, Ibidem. 370 Joseph Miller salienta que essa construção de uma nova configuração política no Planalto Central, marcada pela erupção de antigos potentados, com a combinação do colapso ecológico e intervenções estrangeiras, foi irregular ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ibidem, p. 152. 368 145 comerciais no interior das rotas. Contudo, pelos próprios fatos que outrora apresentamos ao longo das décadas de 1720 e 1760, mesmo com tal política de alianças com chefes locais, que visava a produção de cativos, o recurso à guerra nunca deixou de ser uma possibilidade à vista. Principalmente, quando estava em jogo a segurança das atividades comerciais, além da própria necessidade de se manter a reputação, importante para garantir a estabilidade política na região e, consequentemente, econômica. De toda maneira, tanto no confronto direto como no estabelecimento de relações de vassalagens, o comércio transatlântico de escravos só foi possível com a presença africana. É ela que deu contornos específicos e viabilidade à empresa, pela oferta ou recusa de alianças, utilização de antigas rotas e lógicas comerciais, como as caravanas, ou ataques movidos por povos Imbangalas aliados, que garantiam o suprimento de cativos nos mercados africanos. Estes últimos, mesmo quando alcançados pelo mercado transtlântico de escravos, não cessavam de tentar um recomeço, de se ressignificarem. Nos capítulos seguintes, trataremos desses homens de ferro e mulheres de pedra, que atravessaram o Atlântico e, na medida do possível, escreveram as suas histórias com as próprias mãos. 146 Mapa 7 - A Feira de Cassange Fonte: HENRIQUES, Op. Cit., p. 683. 147 Mapa 8 – Rotas comerciais no Planalto Central de Benguela Fonte: MILLER, 1988, p. 221 148 Mapa 9 - Benguela e o seu interior Fonte: CANDIDO, Op. Cit., p. 41. 149 Mapa 10 - Benguela e o seu hinterland Fonte: CURTO, 2002, p. 267. 150 Tabela 1 – exportação de cativos na África Central (1676-1832) Porto Escravos Percentual Cabinda 272.800 25.3 Luanda 213.500 19.8 Benguela 205.700 19.1 Malembo 116.600 10.8 Congo 100.800 9.3 Ambriz 80,500 7.5 Loango 77,900 7.2 Others 11,100 1 Fonte: Eltis, Lovejoy and Richardson. “Slave-trading Ports”, 21. Apud CÂNDIDO, Mariana Pinho. Enslaving frontiers: slavery, trade and identity in Bengela, 1780-1850. York University – Graduate Program in History, Toronto, 2006 (tese). Tabela 2 - Exportações Legais de Escravos de Benguela, 1730-1828 Ano Escravos exportados Ano Escravos Exportados 1730 2,035 1781 6488 1731-1737 n.a. 1782 6437 1738 1793 1783 6436 1739 n.a. 1784 7832 151 1740 898 1785 6192 1741 774 1786 5508 1742 898 1787 7215 1743 n.a. 1788 6211 1744 1311 1789 6157 1745-1746 n.a. 1790 6243 1747 963 1791 6499 1748 328 1792 10867 1749 916 1793 11668 1750 1704 1794 9973 1751 1378 1795 10399 1752 1921 1796 8115 1753 2819 1797 7075 1754 2787 1798 6554 1755 2196 1799 3942 1756 2541 1800 7065 1757 1461 1801 6942 1758 2419 1802 8687 1759 412 1803 5639 1760 2507 1804 7350 1761 3940 1805 5706 1762 4180 1806 5902 1763 3445 1807 4963 1764 3867 1808 4828 1765 6183 1809 5325 1766 5160 1810 5511 1767 6635 1811 4970 1768 5658 1812 5015 1769 5598 1813 4640 152 1770 4733 1814 4504 1771 5293 1815 3776 1772 5021 1816 4868 1773 5367 1817 3480 1774 4328 1818 3547 1775 5739 1819 4867 1776 5983 1820 3360 1777 3967 1821-1824 n.a. 1778 5510 1825 4408 1779 7072 1826-1827 n.a. 1780 6455 1828 4808 Fonte: CURTO, José C. “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 1730-1828: A Quantitative Re-Appraisal”. Africa (São Paulo), Nos, 16-17, 1993, p. 362. Tabela 3 - População de Caconda (1797-1850): Ano Total de População 1797 11, 882 1798 13, 052 1799 13, 138 1803 13, 274 1804 13, 209 1805 13, 206 1806 13, 208 1809 13, 206 1813 13, 226 1815 13, 440 153 1817 13, 592 1818 13, 600 1819 20, 203 1825 21, 362 1826 20, 932 1827 22, 262 1829 22, 113 1831 22, 186 1832 22, 140 1836 23, 604 1844 22, 100 1850 60, 229 Fonte: CANDIDO, 2008, p. 188. Tabela 4 - População de Benguela entre 1795 a 1850 Ano População total 1797 2, 244 1798 3, 023 1800 2, 709 1804 2, 007 1805 2, 042 1806 2, 083 1808 2, 094 1809 2, 096 1811 1, 432 1813 2, 187 154 1815 2, 274 1816 2, 462 1817 2, 441 1819 2, 289 1826 2, 394 1844 2, 438 1850 2, 634 Fonte: CANDIDO, Op. Cit., p. 135. Gráfico 1 - População escrava de Caconda por gênero (1795-1850). Fonte: LIMA, Ensaios sobre a statística, 4; and Almanak Statístico, 9. Apud CANDIDO, Op. Cit. 155 CAPÍTULO 3 – “Uma Devassa no sertão”: panorama da instituição escravista na fronteira do território luso-brasileiro (1720-1795) (...) Considerem-se desde já filhos de Deus. Esqueçam seus países de origem, deixem de comer cães, ratos e cavalos. Sejam contentes. 371 (...) Nossa passagem, porém, pareceu afetá-los pouco. A maior parte desses seres infelizes estava [no convés] quase imóvel, embora não percebêssemos que estavam acorrentados; alguns dirigiram para nós um olhar de aparente indiferença; outros, com seus braços dobrados, pareciam acabrunhados pela tristeza; enquanto muitos, debruçados na amurada, olhavam para as ilhas verdes da baía, as montanhas rochosas e toda a exuberância selvagem da paisagem sorridente.372 A partir do embarque, o africano deveria esquecer para sempre quem havia sido até então. Transmutado em escravo, fosse em áreas interioranas ou próximas à costa, enviado ao Novo Mundo, embarcava em uma viagem com poucas possibilidades de retorno. Medo, abatimento e pavor diante do desconhecido e da coação poderiam ser sentimentos presentes. Reunidos anonimamente em um bando único, distinto por sexo, idade ou, às vezes, “reações imprevistas”, 373 enfrentariam uma penosa travessia, que variava de acordo com o destino: dos portos dos reinos de Angola ou Benguela a Pernambuco, a viagem dar-se-ia em torno de 35 dias; à Bahia, cerca de 40 dias; e ao Rio de Janeiro, a média de 50 dias. Todavia, se as condições de navegabilidade não fossem adequadas, a viagem poderia se estender por até 5 meses, agravando as condições de sobrevivência e segurança.374 As condições no interior dos navios negreiros que faziam a travessia poderiam variar de um navio para o outro. Contudo, apesar das constantes obrigações que capitães eram 371 Fragmento de um discurso proferido por um padre responsável pela catequização de africanos, no momento do embarque aos Navios Negreiros na África. MATTOSO, Ser escravo no Brasil. Tradução de James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003., p. 44. 372 Relato do viajante Ellis, sobre a chegada de africanos na baía de Guanabara, Rio de Janeiro, início do século XIX. KARASH, Op. Cit., p. 73. 373 Segundo Mattoso, os chamados “cabeças quentes” eram postos a ferros. MATTOSO, Op. Cit. 374 Idem Ibidem, p. 47. 156 obrigados a atender para garantir que escravos chegassem ao novo mundo com vida, 375 os mesmos tendiam a burlá-las, em nome de margens de lucro mais generosas. Assim, relatos como o do irmão Carli, transcrito por Mattoso, exemplificam o que poderia ser a rotina dentro de uma embarcação que rumava ao Novo Mundo: (...) Os homens estavam empilhados no porão à cunha, acorrentados por medo de que se revoltem e mate todos os brancos a bordo. Às mulheres reservava-se a segunda meia-ponte, as grávidas ocupavam a cabine da popa. As crianças apinhavam-se na primeira meia-ponte como arenques num barril. Se tinham sono, caíam uns sobre os outros. Havia sentinas para satisfazer as necessidades naturais, mas como muitos temiam perder seus lugares, aliviavam-se onde estavam, em especial os homens, cruelmente comprimidos uns contra os outros. O calor e o mau cheiro tornavam-se insuportáveis.376 Dessa maneira, poucos eram aqueles que saíam imunes à travessia. 377 E aqueles que chegavam, como afirmava Oliveira Mendes, poderiam ser considerados homens de ferro ou pedra. Após percorrerem milhares de quilômetros, finalmente chegavam a um dos destinos, no caso de serem direcionados ao Rio de Janeiro, apáticos ou acabrunhados pela tristeza. Nos dias que se seguiriam, defrontar-se-iam com uma das transições mais decisivas das suas vidas, que determinaria a quem serviriam, trabalho que realizariam ou se viveriam ou morreriam precocemente: a venda no Valongo, maior mercado de escravos da América portuguesa. 378 Magros, com aparência esquelética, pele com tom acinzentado, repleta de feridas, escrofulosa, semivestidos, 379 após o navio ancorar, africanos escravizados eram encaminhados diretamente à alfândega, onde passavam a ser contados por sexo e número de “crias” que eventualmente possuíssem. Pagos os impostos, eram então levados em grupo ao local em que seriam preparados para a futura venda. Os preparativos eram diversos e 375 Como o aprovisionamento de água. Segundo Mattoso, cada navio negreiro ao longo dos séculos XVII e XVIII era obrigado a transportar 25 pipas de água para cada 100 cativos. Frequentemente capitães pechinchavam menor quantidade. Ibidem, p. 46. 376 Idem Ibidem, p. 47. 377 Vários autores trabalham com a taxa de mortalidade nos negreiros. Mattoso (Ibidem, p. 48), por exemplo, afirma que variava entre 15 a 20%. Ver também KLEIN, Herbert. The trade in African Slaves to Rio de Janeiro, 1825-1811: Estimates mortality and Patterns Voyages. Londres, X (4), pp. 33-549, 1969; Florentino, Alexandre Vieira Ribeiro e Daniel Silva afirmam que a taxa de mortandade dependia da região de embarque na África e que os dados acerca das mortes nos negreiros também devem ser compreendidos partindo do fato de que vários embarcados nos negreiros já apresentavam debilidades, o que tornava propício do desenvolvimento da enfermidade no negreiro que levava ao óbito, a exemplo daqueles embarcados de Luanda, que poderiam apresentar doenças como varíola, escorbuto, sarampo, oftalmia e maculo (diarréia). A partir de listas navais, registros de alfândegas e notícias coletadas em jornais baianos, cariocas e pernambucanos, os autores apresentam uma tabela (4), que dispõe detalhadamente o percentual de mortandade no interior dos negreiros. Ver FLORENTINO, Manolo. RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues da. “Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)”. In: Afro-Ásia, 31 (2004), pp. 83-126., 378 KARASH, Op. Cit., p. 67. 379 Essas são definições de viajantes que estiveram no Rio de Janeiro no início do século XIX, como Ellis, Brand, MacDuall, entre outros, analisados por Mary Karash. Ibidem, pp. 67-85. 157 intentava-se, principalmente, esconder os defeitos físicos e causar uma melhor aparência, para facilidade da venda. Nesse intento, eram banhados e tinham o cabelo e barba raspados. Caso demonstrassem aparência demasiadamente magra, comerciantes cuidavam de alimentá-los até atingirem condições razoáveis. Contudo, só estariam definitivamente “preparados” se camuflassem a tristeza ou “tendência depressiva”, elementos determinantes para o sucesso de uma venda no Valongo. Então, eram fornecidos aos cativos estimulantes diversos (como gengibre ou tabaco) e, se não obtivessem sucesso, a ameaça com chicote ou vara. Analogamente, deveriam dançar e cantar músicas da terra natal, de maneira alegre e sob o olhar do feitor, pronto para açoitá-los no caso de expressarem apatia.380 Expostos frequentemente nus, finalmente chegava o momento da venda – motivo de tristeza para uns e “libertação” para outros, em vista da atmosfera “fétida” do Valongo.381 Várias eram as maneiras de se vender no mercado, como a exposição nos próprios pátios das casas comerciais – sentados em bancos ou agachados –, acorrentados pelas ruas e anunciados de porta em porta ou levados à praça popular ou mercado, e exibidos ao lado de animais, verduras e frutas. Ao se concluir o negócio, escravos eram marcados com ferro aquecido e desembarcavam no derradeiro destino, 382 negociado entre compradores e vendedores. As minas do Cuiabá e Mato Grosso, localizadas no extremo oeste das possessões lusitanas, figuravam entre as numerosas possibilidades que estavam reservadas aos africanos recém-embarcados. Assim, iniciariam uma nova viagem, igualmente penosa e repleta de novos perigos, como o enfrentamento de ataques indígenas durante o caminho, o perecimento por doenças tropicais e a extensa jornada, que poderia ter a duração de meses, por qualquer das rotas. Em síntese, o próprio caminho seria mais um obstáculo a ser superado por estes homens e mulheres de ferro e pedra. Em suma, o presente capítulo parte da apresentação e reflexão sobre a organização de uma bandeira no final do século XVIII, na Capitania do Mato Grosso, que se deu pelo período 380 Idem Ibidem, p. 80. Se por um lado o viajante Mansfeldt, afirma que após vendidos escravos deixavam o Valongo num profundo estado de apatia e indiferença, Rugendas afirma que a venda poderia ser motivo de “libertação”, uma vez que se findava o tempo de insegurança e espera do novo destino. Ver relatos em Karash, Ibidem, pp. 84-85. 382 O dramático processo de marcação é narrado por Mansfeldt: “(...) o processo de marcação incluía lambuzar a área com gordura e depois aplicar sobre ela um pedaço de papel mergulhado em óleo. Um pedaç de ‘estanho aquecido cortado na forma da marca’ era então pressionado em cima, fazendo a carne inchar. Uma vez feita, a marca não saía mais. Com o sinal de seu novo dono na carne, muitos africanos deixavam o mercado num estado de indiferença e apatia”. Ibidem, p. 84. 381 158 de cerca de seis meses, provocando uma verdadeira devassa no sertão. Sua análise ainda permitirá apresentar ao leitor uma leitura panorâmica da conjuntura econômica e social da Capitania desde a chegada das primeiras bandeiras paulistas ao Cuiabá em busca de ouro e indígenas, que perpassa o século XVIII, bem como desvelar as minúcias das rotas que trouxeram os cativos, dados quantitativos e informações referentes à procedência étnica africana. Embora a bandeira tenha sido organizada em 1795, adotamos como ponto de partida o ano de 1720, por entendermos que ele fornece base para compreensão da repressão aos quilombolas na região durante o século XVIII. A data indica o marco inicial de um mapa elaborado no governo do Capitão-General Luís de Albuquerque, que além de informar os dados referentes à importação de cativos às minas do Cuiabá entre os anos de 1720 e 1772, fornecera um panorama da entrada de escravos na região por duas rotas (norte e sul), a saber, a chamada rota-sul (Rio de Janeiro-Santos-Porto Feliz-Cuiabá) e a rota norte (via Grão-Pará e Maranhão).383 Em última instância, para além desses apontamentos expostos, no capítulo que se segue, pensamos igualmente as constantes trocas culturais em região de fronteira entre quilombolas – principalmente africanos de origem “bantu” –, indígenas (os Nambiquaras, Parecis e Cabixis) e homens brancos, a fim de vislumbrarmos em que medida e como algumas reformulações culturais ou hibridismos aconteceram nos interstícios. 3.1.A Instituição escravista em Região de fronteira De maio a novembro de 1795, empreendeu-se no Vale do Guaporé, oeste da Capitania do Mato Grosso, uma das maiores operações – se não a maior – de busca de cativos fugitivos e quilombolas. Preparada por cerca de dois meses e financiada por autoridades políticas e contribuições voluntárias de moradores de Villa Bela e arraiais próximos, contou com 45 homens, o comandante Dragão Francisco Pedro de Mello, 384 além de seis pedestres, todos municiados, pelo que reportou o capitão-general João de Albuquerque Pereira de Mello e 383 Adiante, no capítulo 3, seção 3.3., analisaremos o referido mapa. Acerca do “Dragão”, vale salientar que o mesmo era aquele soldado que se deslocava montado em cavalo. Durante o período colonial tal tipo de soldado se configurou com uma das funções de maiores prestígios, encarregados da defesa externa e segurança interna. Nesse intento, na primeira metade do século XVIII, são trazidas companhias de Portugal e, analogamente, são criadas em território brasileiro. 384 159 Cáceres em correspondência ao Conselho Ultramarino.385 Juntamente com tal relato, o capitão-general encaminhou mapas da região do Guaporé, com numerosos detalhes geográficos (principalmente no que se refere à localização dos rios Galera, Sararé, Guaporé e Juruena, conforme mapa 10 e 11), e uma cópia do diário escrito pelo comandante, relatando minuciosamente a diligência. O referido diário, assim como a correspondência, encontra-se sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB), no Códice 246, demarcado pelos anos de 1777 e 1805, no banco identificado como “correspondência entre governadores”. Veio a conhecimento público após ser citado e transcrito por Roquette-Pinto na obra “Rondônia”, em 1917, publicada nos Archivos do Museu Nacional. Considerada referência obrigatória para compreensão da prática social e científica do início do século XX, tal obra, de maneira geral, se originou de observações e descrições realizadas pelo autor acerca dos índios da Serra Norte nos territórios atualmente compreendidos como Rondônia e Mato Grosso, durante cinco meses em 1912; isso na expedição científica perpetrada pela Comissão Rondon, que tinha por objetivo a instalação de linhas telegráficas entre o Mato Grosso e Amazonas e, especialmente, o estudo dos povos Nambiquaras.386 Apresenta tal documento logo na partida de suas reflexões, no momento em que o autor tece as suas considerações sobre as origens históricas das populações que habitaram a “Serra do Norte”, preocupado em discorrer sobre o histórico de contatos entre os povos da região – Nambiquaras, negros fugidos, portugueses, entre outros. O diário em si, apesar de sua pouca exploração na historiografia brasileira, constitui um documento de grande valia para compreensão da instituição escravista na fronteira do território luso-brasileiro. Nele, estão expostas detalhadamente informações acerca das possibilidades de uma vida para além da escravidão, através dos quilombos e estratégias adotadas pelos fugitivos para sobrevivência, no contato com ameríndios, organização política e prática de agricultura, por meio de uma ótica colonizadora e escravista. Essa diligência, pelo que argumenta o capitão-general João de Albuquerque, se justificou por duas razões: (1) em função da decadência das minas do Mato Grosso e (2) os 385 Sobre o Diário de Diligência, ver MELLO, Francisco Pedro. Diário de Diligência. In: ROQUETTE-PINT. Rondônia. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Volume XX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917; 386 KEULLER, Adriana T. A. Martins. Revisitando Rondônia: história, memória e ciência. In: História, ciência, Saúde, V. 14, n. 2, Abril-Junho, 2007, pp. 641-642. 160 constantes danos causados com as fugas de escravos para o Vale do Guaporé, conforme podemos observar abaixo: Ilmo. e Exmo. Sr. – Vendo eu que alem da decadência actual das minas de Matto Grosso, experimentam os mineiros, e mais moradores desta Capitania a perda, e damno da fuga de muitos escravos que tranquilamente existiam aquilombados na escarpada extensa Serra dos Parecís, derramados pelos terrenos de que nascem os rios Piolho (hoje denominado de S. João), Galera, Sararé, Pindantuba e outros segundo huma constante noticia. Para aliviar pois estes damnos e felicitar a utilidade publica, chamei a 24 de março deste anno, ao Juiz Presidente da Camara desta Villa Bella, e ao Vereador mais velho aos quais lembrei, que huma das espessiaes obrigações da Camara, era ocorrer ás necessidades publicas e a actual falta de terras mineraes, e repetidas fugas de muitos escravos, que hiam aquilombar nas vizinhanças do Guaporé e dos arrayaes, contíguos á esta Capital, eram objectos que exigiam o promptissimo remédio da formação de huma bandeira que explorasse aquelles certões , com dois ponderados fins: e que para a sua despeza, convocando a Camara do Povo, se pedisse huma contribuição voluntaria aos moradores de Villa Bella, e dos seus Arrayaes, prometendo eu concorrer por parte da Fazenda Real, como efectivamente pratiquei, com a quinta parte da gente, que se empregasse nesta diligencia armada e moniciada pela mesma Real Fazenda [Grifo nosso].387 Considerar o primeiro aspecto nos impõe a tarefa de pensar a conjuntura econômica local e transatlântica. Deve-se lembrar que o próprio processo de fundação da Capitania do Mato Grosso, edificação de Vila Bela, e, posteriormente, a transferência da capital para Cuiabá, entre o século XVIII e primeira metade do século XIX, é demarcado estritamente pelas descobertas auríferas e sua exploração, além da necessidade de proteção da região de fronteira, que demarcava os limites entre os domínios portugueses e espanhóis. O território da Capitania, objeto de disputas militares entre ameríndios e a ação bandeirante, apesar de ter sido ordenadamente povoado por estes últimos a partir de um projeto de Estado durante o século XVIII, ainda no XVII já havia sido visitado por Pascoal Moreira Cabral Melo, entre 1684 e 1685, quando o mesmo incursionava nos domínios hispânico-jesuíticos preando índios e levando-os a Sorocaba para o trabalho agrícola.388 Em 387 MELLO, Francisco Pedro. Diário de Diligência. In: Rondônia. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Volume XX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. 388 Segundo Carlos Rosa, em carta endereçada a D. João V, Moreira Cabral informa o seu deslocamento ao atual sul do Estado de Mato Grosso do Sul com a intenção de descobrir ouro, prata e pedras preciosas. Todavia, devese considerar que tal justificativa poderia camuflar a verdadeira intenção que seria levar “gentios da terra” para o trabalho em Sorocaba. Cf.ROSA Apud CHAVES, Otavio Ribeiro. Escravidão, Fronteira e Liberdade: resistência escrava em Mato Grosso (1752-1850). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal da Bahia, 2000 (dissertação), p. 14. 161 todo caso, a chegada do homem branco naquilo que seria considerado, a partir de 1748, Capitania do Mato Grosso, tradicionalmente é compreendida em função das descobertas auríferas e defesa da fronteira territorial entre as coroas portuguesa e espanhola, que em 1750 havia sido definida no Tratado de Madri pelo princípio de “uti possidetis e pelas balizas naturais”. 389 As primeiras descobertas auríferas na localidade se deram no início do século XVIII, com achados no Coxipó-Mirim (1718) e lavras do Sutil (1722). O fato provocou um novo episódio na história das ações portuguesas, tanto no que diz respeito ao pretexto para fortalecimento da fronteira que se forjava, quanto no que se refere aos contatos com os povos ameríndios que viviam na região. José Barbosa de Sá, 390 cronista que viveu na região durante o período, expressa a grande euforia provocada por tais descobertas, emblemática para se pensar a importância do episódio: Divulgada a notícia pelos povoados foi tal o movimento que causou nos ânimos que das Minas Gerais, Rio de Janeiro e toda a Capitania de São Paulo se abalaram muitas gentes deixando casa, fazendas, mulheres e filhos botando-se para estes Sertões como se fora a terra da promissão ou o Paraíso encoberto em que Deus pôs nossos primeiros pais.391 O cronista, ao tecer a sua narrativa acerca do caminho que levava aos sertões do Cuiabá, também relata a numerosa presença ameríndia que habitava a região: (...) e entrando pelas grandes baías, foram achando tantas nações de gentes que não cabem nos arquivos da memória e só me lembro das seguintes: Caroyas, Taquasentes, Xixibes, Xanites, Porrudos, Xacorés, Aragoarés, Coxiponés, Pocuris, Arapoconés, Mocos, Goatás, Araviras, Buripoconés, Arapares, Hytaporés, Ianés, Aycurus, Bororos, Payagoas, Xaraés, Penacuícas e outros (...). 392 389 Segundo Lia Osório Machado, Uti Possidetis se trata de um princípio originário do Direito Romano, no qual àqueles que ocupam o território possuem direito sobre o mesmo. Cf. MACHADO, Lia Osório. Mitos e Realidades da Amazônia no contexto geopolítico internacional (1540-1912). Barcelona: Universitat de Barcelona, 1989 (tese). 390 José Barbosa de Sá é considerado o primeiro cronista letrado da região, autodidata e dono da primeira livraria de Cuiabá. Estima-se que tenha chegado na época da elevação de Cuiabá à categoria de vila, em 1727. Durante a sua estadia na região exerceu as funções de sertanista, observador oficial das missões hispânicas limítrofes no rio Guaporé, advogado e procurador do povo em Cuiabá (ROSA, 1996). 391 SÁ, Joseph Barboza de. Relação das povoações do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé o s prezentes tempos (1775). Cuiabá: UFMT/SEC, 1975, p.12. 392 Ibidem, p. 11. 162 Observemos que, com a penetração da região, pelo apresamento de índios e busca de ouro, grande parte desses reinos ameríndios foram devassados.393 É o que podemos observar no plano estratégico de conquista área, pelo Capitão-General da Capitania de São Paulo, Rodrigo César Menezes, que ao chegar às minas do Cuiabá em 1726 relata: (...) Achando-se [as minas de Cuiabá] cercadas de várias nações de gentio, que não nos deixavam alargar pelo centro do sertão, matando e sustentandose de carne humana, procurou reconduzi-los e metê-los de paz S. Exº. [Rodrigo César Menezes], para o que lhes mandou alguns pombeiros, contentando-os e persuadindo-os com mimos (...), mas estes não só recusaram a nossa amizade, mas responderam que eles eram homens e que só a força de armas seriam mortos ou conquistados. Ouvida esta insolente resposta, mando S. Exº. pôr logo pronto um cabo com bastante soldados sertanistas, com ordem positiva que os atacassem em qualquer parte que os achassem: assim se fez e sem embargo de uma vigorosa resistência, mataram os nossos uma grande parte deles e trouxeram prisioneiro o resto, com toda a sua família [grifo nosso].394 Todavia, o tratamento com os nativos se altera substancialmente com a edição do “Diretório” em 1757 e o envio de instruções régias nos anos de 1749, 1758 e 1772, que orientavam a incorporação do nativo como vassalo. No lugar da devassa, a primazia deveria ser dada à educação baseada nos preceitos civilizacionais. Em tese, criava-se um novo entendimento acerca do nativo: se antes poderia ser considerado uma barreira para o avanço do progresso, agora seria elemento útil para se resguardar a fronteira da coroa portuguesa. 395 Nesse sentido, várias medidas foram recomendadas, principalmente aquelas que buscavam 393 GUIMARÃES, Tereza Martha Borges. Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do Sul: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade, 2005, p. 4. 394 Ibidem, p. 7. Duas obras exploram tal perspectiva, do indígena enquanto “muralha” ou “Guardião da Fronteira” da coroa portuguesa: MEIRELES, Denise Maldi. Guardiões da Fronteira – Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis: Vozes, 1989; FARAGE, Nadia. Muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991; Contudo, é preciso atentar para o “perigo” de não se considerar a atuação de indígenas junto a esse processo histórico, sob pena de interpretá-los enquanto “agentes passivos”, restritamente usados pela coroa a partir de uma leitura “eurocêntrica” que não percebe as estratégias levadas a cabo por distintos povos indígenas. Na análise da historiografia hispânica acerca das relações entre as coroas espanhola e portuguesa, no alvorecer do século XVIII, Lucídio menciona o debate sobre o chamado “cordão de isolamento” formado pelas missões jesuítas, entre as autoridades civis das duas coroas. A presença jesuíta pode ter sido estimulada, sobretudo, por morades de Santa Cruz de la Sierra, temerosos de que luso-paulistas que habitavam Cuiabá alcançassem as minas do Potosí, ou pela indisposição de recursos para contenção dos avanços paulistas junto aos domínios espanhóis, que acabou por obrigar a busca por alianças com indígenas Chiquitos, que se encontravam na região. Noutras palavras, para compreensão da edição de regulamentos e conquistas ibéricas na região, é preciso se considerar a presença e importante papel das diferentes sociedades indígenas em meio aos distintos jogos de interesses. Sobre o debate, ver LUCÍDIO, Op. Cit., p. 228. 395 163 estimular o casamento com nativos e a criação de aldeamentos. 396 O governador Rolim de Moura, por exemplo, em correspondência datada de 1756, sugere que o melhor modo de ligálos (indígenas) à sociedade civil seria misturá-los com negros ou brancos, especialmente com os primeiros, que daria origem aos “Caborés”, que eram próprios para “qualquer empreendimento”. 397 A despeito de tais recomendações, vale lembrar que não somente as campanhas militares contra ameríndios não deixaram de existir, como também o próprio indígena não deixou de ser utilizado como escravo. É o que podemos ver nas correspondências enviadas pelo Capitão-General Dom Antonio Rolim de Moura, no período em que governou a Capitania do Mato Grosso (1751-1765). Em 1751, ao tecer comentários sobre a situação dos nativos que estavam sob a “zelosa” administração de moradores do Cuiabá, afirmava: (...) Neste princípio, sempre ela há de ser maior, porque é tal o desamparo, em que estes miseráveis se viam na mão dos seus administradores, que a maior parte andavam quase inteiramente nus, e adoecendo, os deixavam morrer, sem assistência pelo que aos que se tem vindo recolher, foi e é necessário acudir-lhe a muitos com alguma cobertura, e curá-los das queixas que padeciam sem remédio, que principalmente este ano tem sido muito gerais, no que, e no sustento dos missionários se tem feito a despesa de perto de quatrocentas oitavas.398 Rolim de Moura também informava a quantidade de indígenas “administrados” no distrito do Cuiabá em 1751 e o próprio proceder de sertanistas desde a chegada às minas: (...) Todo este distrito de Cuiabá acharam os primeiros sertanistas, coalhando de gentio, de que hoje não há mais do que uns restos, e os que se acham nas mãos dos admnistradores, que me parece não chegarão a seiscentos. Precisamente assim havia de ser desde que estas terras se descobriram, sempre os sertanistas, andaram na busca deles (...).399 Na mesma carta, o Capitão-General chega até a detalhar sobre como se dava o apresamento de indígenas: Chegando a alguma aldeia depois de a renderem a poder de fogo metiam em correntes as mulheres e os homens que podiam ter-lhe serventia, ou para a concupiscência, ou para o serviço das roças, e o que era inútil, passavam a 396 As técnicas de aldeamento, ou agrupamento de diferentes grupos indígenas, foram das mais diversas. No geral, o aldeamento deveria comportar no mínimo 150 pessoas, substituir as “ocas” por casas nos moldes portugueses (a fim de se evitar a promiscuidade), sendo estas bem arejadas com janelas e portas. No espaço ainda deveria haver um pelourinho para aplicação de justiça e deveria se ensinar o idioma português, no lugar de línguas nativas. SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores: políticas de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995, p.277. 397 Idem Ibidem, p. 263. RAPMT, Vol.1, março/Agosto de 1982, p. 47. 399 Idem Ibidem, p.47. 398 164 cutelo ordinariamente como também aos que no caminho mostravam qualquer repugnância (...).400 Em 1761, em correspondência enviada à autoridade do Cuiabá, o mesmo CapitãoGeneral, Rolim de Moura, ordenara a libertação imediata de indígenas Paiaguá e de todas as outras nações, que se achavam na condição de cativos (as), baseado na lei de 8 de maio de 1758, que determinava alforria de nativos. 401 No entanto, na mesma carta, o Capitão-General flexibilizava a sua posição e afirmava que indígenas poderiam eleger sob livre-vontade um administrador, casa, pessoa ou aldeia, que desejassem habitar.402 Em todo caso, tal carta implicava que, mesmo com a recorrência de instruções régias que determinavam a incorporação do nativo como “vassalo” e edição do Diretório, os mesmos ainda continuavam empregados na condição de cativos na região. A formação de uma bandeira movida contra os indígenas Kayapós em 1771, anos mais tarde, também exemplifica a utilização da mão-de-obra escrava indígena. Na ocasião, o então governador e Capitão-General da Capitania do Mato Grosso, Luiz Pinto de Souza Coutinho, apresentava como principal justificativa o chamado “direito natural” de prevenção aos inimigos: (...) O Direito natural que authoriza aos homens a previnir a seos inimigos, ainda quando os não tem hostilizado (sic) tão somente eminente risco, lhes permitte com dobrada força o direito de reprimir os seus insultos por todas as vias de execução e de força, principalmente sendo os ditos inimigos salteadores, assacinos e inhumanos, sem cuja destruição e castigo, seria impossível manter a segurança dos Povos e a firmeza das sociedades (...).403 Ainda chamam a atenção alguns dados sobre a composição da bandeira. O primeiro, referente à impossibilidade do envio de tropas para a formação da expedição militar, apenas 400 Ibidem, p. 48. A alvará de 8 de maio de 1758 com força de lei, fazia parte do bojo de uma nova política de colonização na América Portuguesa, que visava de maneira geral a inserção de indígenas enquanto trabalhadores livres na economia regional. Anteriormente a esta, a liberdade dada a indígenas já havia sido concedida nas leis de 6 e 7 de junho de 1755 no Maranhão. Especificamente, a inovação trazida pela lei de 8 de maio de 1758, se consubstancia na implantação de um novo modelo de conversão e cristianização de povos indígenas, e paralelo fim do sistema de jesuítas. Sobre tal temática ver “O testemunho do tempo, e a prova da experiência” (Capítulo 2), da dissertação de SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia (1750-1800). Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História, 2012 (dissertação). 402 Na carta de 1761 Rolim de Moura determinava quais seriam as obrigações dos “Administradores” que quisessem manter nativos “administrados”: “(...) Enquanto Aos salários que os amos devem dar aos índios, o costume desta capitania é que os ditos amos lhes dão de comer e vestir, lhes pagam as desobrigas despezas de casamento e enterroros, ensinam-lhes a deoutrinha cristã e os governam não só como amos senão como tutores, de que os índios tem grande necessidade, pelo curto alcance do seu juízo: a maior parte deles a não ter quem os domine, dariam em ladrões ou fugiriam para o mato”. RAPMT, Vol.1, n. 1, março/agosto de 1982, p. 50. 403 APMT, Livro de termos Livro de termos de fiança, cartas expedidas e rematações nos Governos de Luiz Pinto de Souza Coutinho e Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Estante 1, C-07 (1751-1775), 1771. 401 165 de munições e pólvora, em vista da atual “conjuntura” em que se encontravam as tropas da Capitania. Caberia aos moradores, a formação da bandeira, após convocação. O segundo fator refere-se à preocupação com os possíveis abusos da campanha: proibia o assassinato frio do inimigo após rendição e a amputação dos corpos mortos. Estava permitido “apenas” o incêndio a todas as casas que encontrassem e a contagem dos corpos.404 A continuidade das guerras e apresamento de indígenas mais uma vez ficariam evidentes nas campanhas organizadas contra os povos Bororos, que habitavam os entornos do rio Porrudos, nos anos de 1779 e 1781. A primeira bandeira, liderada por Francisco Leme de Moraes, após preparativos iniciais, partira a uma paragem conhecida como Cruará para punição de indígenas que atemorizavam os que passavam por aquela localidade. Seguiram inicialmente pelo rio Cuiabá e adentraram o rio Porrudos, local em que encontraram indígenas Bororos. Após combate, a bandeira conseguiu aprisionar indígenas de ambos os sexos, incluindo crianças, e os levaram para Cuiabá, onde foi determinado que deveriam ser encaminhados para Vila Bela, a então capital da Província. No trajeto, para surpresa das autoridades e moradores, os Bororos conseguem “arrebentar os ferros”, lutam contra guardas e conseguem evadir do cativeiro. 405 Após dois anos, uma nova bandeira seria organizada, sob a justificativa de que os Bororos eram “gentio bárbaro” e “capital inimigo”. Assim como a anterior, seguiu o rio Cuiabá, adentrou o rio Porrudos e, após combates, aprisionou cerca de 200 indígenas. Curiosamente, também se repetiu a fuga dos nativos, que se valeram do baixo número de guardas e dispersão dos soldados: Foi o cazo vindo em marcha a nsosa gente com os bugres prezos, fizerão alto para comer; e porque havião suas frutas silvestres, forão-se espalhando os nossos soldados, sem se lembrarem que vinham acompanhados de inimigos, ficando tão só mente humas poucas sintinelas tendo sentido, e vigilância com os Bugres. Assim que estes conhecerão, que os Soldados que estavam espalhados pelos campos, e matos não podião fácil mente dar adjutório as poucas sentinelas, que com elles havião ficado, dando hum horrível urro, imediata mente acometerão de subido, e tumultouzoa mente as ditas sentinelas, que erão hum João Leme Correa, hum João de Pinho e, outros, e os matarão , e fugirão, vindosse a perder por cauza daquella bem indiscreta 404 Vale frisar que o incêndio às habitações indígenas era prática comum no desfecho das bandeiras. É o que se pode observar nos regulamentos editados para formação das expedições militares contra nativos tanto no período que Mato Grosso e Cuiabá estiveram sob jurisdição da Capitania de São Paulo (1719-1748), como da própria Província de Mato Grosso. 405 Annais do Senado de Cuyabá, Op. Cit, p. 118. 166 facilidade não só soldados, como tão bem armas que os Bugres carregarão recolhendosse a Bandeira peior do que foi para o Certam.406 Vários fatos chamam a atenção no que diz respeito às bandeiras organizadas contra os Bororos, mas por ora destacamos o aprisionamento e encaminhamento de indígenas para Vila Bela, onde possivelmente seriam distribuídos entre “administradores” ou incorporados às aldeias. As “guerras justas”, se por um lado garantiam o suprimento extra de mão-de-obra para os empreendimentos coloniais407 – pois estes indígenas, ao que indica, estariam sendo encaminhados para o trabalho na fronteira –, por outro, especificamente na região, garantiam o resguardar da fronteira habitada por cristãos ou indígenas cristianizados e, portanto, vassalos do rei de Portugal. Em suma, para se pensar a penetração lusitana e estabelecimento no território que atualmente compreendemos por Mato Grosso, inevitavelmente precisamos levar em consideração a existência de numerosas nações indígenas e as relações entre não-índios e indígenas. Essas relações oscilaram entre conflitos armados e incorporações que visavam estratégias de povoamento da fronteira408 e, principalmente, a criação de condições para a exploração mineira na região, que provocou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, diferentes fluxos migratórios na Capitania/Província de Mato Grosso. Ao retornarmos às razões que justificaram a realização da bandeira, nos deparamos com um segundo argumento – o das constantes fugas de escravos que causavam prejuízo. Considerá-lo nos coloca na posição privilegiada de refletirmos, quiçá, a característica mais singular da instituição escravista no oeste do território luso-brasileiro, visto que as fugas para além das fronteiras foram elementos recorrentes na história da escravidão negra que aqui vigorou desde o seu primórdio. 409 Em todo caso, é preciso enfatizar que o ponto de partida para qualquer análise acerca da instituição escravista durante os séculos XVIII e XIX na região deve considerar dois elementos históricos, a saber: o povoamento luso-brasileiro da região a partir das descobertas 406 407 SUZUKI , Anais do Senado de Cuiabá, pp. 123-124. Tendo em vista as dificuldades de se importar cativos africanos, notórias nas cartas e diferentes correspondências trocadas entre capitães-generais que governaram a capitania durante o período colonial. 408 Como postula Jovam Vilela da Silva, na sua obra “Mistura de Cores”. Segundo o mesmo, os constantes fluxos migratórios motivados por descobertas auríferas do sudeste, que trouxeram brancos e africanos, juntamente com a incorporação de nativos da região, sobretudo os “Bororos”, aos espaços urbanos recémfundados, imprimiram na população local um caráter estreitamente “mestiço”. Ver especialmente capítulo III, “População nativa incorporada (tapuios)” de SILVA, Op. Cit.,1995. 409 Na seção 4.2. do próximo capítulo, uma analise mais pormenorizada sobre as fugas de cativos na região, assim como os seus impactos na economia local e relações diplomáticas entre as autoridades de ambos os lados da fronteira. 167 auríferas e, similarmente, a condição de fronteira. Essa consideração basea-se no fato de que a mão-de-obra escrava foi deslocada até as minas do Mato grosso e Cuiabá para o trabalho na mineração, 410 e a condição de guardiã dos domínios lusos na fronteira411 constituiu justificativa fundamental para o comércio intensivo de negros escravizados para a região, com o fim de alicerçar o povoamento e viabilizar as atividades mineradoras. Finalmente, no dia 7 de maio, após realização de dispendiosos preparativos, a bandeira partiu em busca de cativos evadidos e novas minas. Durante o tempo de pouco mais de um mês, poucos acontecimentos foram relatados por Francisco Pedro de Mello. Com saída do porto de Vila Bela, seguiram pelo Rio Guaporé e foz do rio Branco até dia 17 daquele mês, quando atracaram as embarcações à esquerda do último e lá permaneceram por três dias, com minuciosas averiguações da região, na expectativa de encontrarem ouro. Em função dos achados irregulares, prosseguiram a diligência até a chegada de uma confluência de dois braços em que o rio se dividia. Por lá, permaneceram até o dia 23 e, por constatarem a impossibilidade de navegar com canoas por ambos os lados, a bandeira decidiu retornar as canoas para Vila Bela e seguir por terra. Os vestígios de quilombolas só viriam a aparecer no dia 16 de junho, quando a bandeira havia se deparado com rastros de gente e fogos, que inicialmente julgaram ser de indígenas. No encalço rigoroso das pistas, a expedição, que naquela altura contava com o comandante e 39 homens armados, conseguiu surpreender um pequeno grupo composto por um negro, três índios e um caburé. Destes, um conseguira escapar e, na sua busca, chegaram inesperadamente ao almejado Quilombo. Apesar das tentativas de fuga dos habitantes, a bandeira capturou inicialmente 3 negros e 32 outras pessoas, entre homens e mulheres, sendo índios e caburés. Segundo Francisco Pedro de Mello, a expedição permaneceu no Quilombo, com o intento de capturar aqueles que haviam fugido com a incursão, entre os dias 20 de junho e 5 de agosto, além de realizar rondas nas matas vizinhas à habitação. Transcorridos 15 dias, haviam reunido 54 quilombolas, sendo 6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caburés e 11 caburés do sexo feminino. Pelo que consta no diário, uma possível origem da composição mista do quilombo se dava nos remanescentes do Quilombo Grande (ou Quariterê), que havia sido destruído em 1770 e que 410 O que não significa que não pudessem estar empregados em atividades agropastoris, uma vez que a mineração não se dava ao longo de todo ano, mas apenas em determinados meses do ano. 411 Ver MEIRELES, Op. Cit. 168 se localizava naquela região, assim como no seqüestro de mulheres indígenas Cabixis, ao longo dos anos.412 Essa composição mista revela uma característica marcante para aqueles que tentam recomeçar a vida para além da fronteira da civilização: o contato interétnico entre negros evadidos e indígenas. Antes de uma análise propriamente dita sobre os contatos interétnicos no interior dos quilombos, vale destacar as considerações de Max Gluckman, antropólogo associado à escola “dinamista”, acerca do conceito em.413 O antropólogo concebe o contato de culturas a partir da noção de comunidade, que é diferente da noção de sociedade (unidade predefinida). Para ele, a comunidade é palco de um conjunto de atores interagindo socialmente em um dado momento, abrangendo sociedades, classes, grupos étnicos ou culturas. No ato de contato, os valores são ressignificados e acabam por refletir e incorporar padrões e símbolos de outras culturas.414 Na sua análise sobre as relações entre zulus e europeus no norte da África do Sul, Gluckman expõe uma situação social marcada por cooperação e oposição, a partir da inauguração de uma ponte no distrito de Mahlabatini em 1938. Se, por um lado, em sua observação, os dois grupos cooperam entre si – na construção da ponte –, por outro, expressam diferenças – diferentes agrupamentos,415 hábitos e até idiomas, conforme observa o autor: (...) O desejo dos zulus por bens materiais dos europeus e a necessidade dos europeus do trabalho zulu, bem como a riqueza obtida por este trabalho, estabelecem interesses fortes e interdependentes entre os dois grupos. É, também, uma fonte latente de seus conflitos. No grupo zulu, os polígamos que precisam de muita terra, homens com grandes rebanhos de gado, homens que desejam ardentemente a riqueza européia, e outros, constituem diferentes grupos de interesse. Por isso, a posse de bens materiais diferentes entre os dois grupos dificulta a diferenciação baseada em critério racial.416 412 Ver capítulo 5 desta tese, que expõe minuciosamente dados referentes à organização, localização e resistência. 413 A escola antropológica dinamista, segundo Jacó César Piccoli, se desenvolve durante as décadas de 1950 e 1960, na crítica e ruptura com a tradição funcionalista (Malinowski) e culturalista. Tem como principais expoentes os antropólogos Gluckman e Balandier, que interpretam as demais tendências enquanto “a-históricas” e reducionistas. Propõem uma antropologia histórica e integrada a fatores sociológicos, psicológicos, econômicos, ideológicos, entre outros, a fim de se chegar a uma visão mais completa das “sociedades em contato”. PICCOLI, Jacó César. Considerações sobre as teorias das relações interétnicas. Disponível em < www.grupos.com.br>. Acesso no dia 24 de janeiro de 2014. 414 MACHADO, Maria de Fátima Roberto. Quilombos, Cabixis e Caburés: índios e negros em Mato Grosso no século XVIII. Goiania: Associação Brasileira de Antropologia – 25º Reunião Brasileira de Antropologia – GT 48: Saberes Coloniais sobre os indígenas em exame: relatos de viagens, mapas, censos e iconografias, junho de 2006, p. 17. 415 Gluckman cita a presença de três agrupamentos tribais no ato de inauguração da ponte: Usuthu, Amateni e Mandlakazi. Cf. GLUCKMAN, Max. “Análise de uma situação social na Zululândia Moderna”. In: BIANCO, Bela Feldman. Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1997, p. 236. 416 Idem Ibidem, p. 251. 169 O contato interétnico, mediado por uma confluência de interesses entre os grupos, seria antes de mais nada um fator constitutivo, na medida em que atuaria como elemento organizador da situação social. Outrossim, ressalta-se que as diferentes oposições (que até certo ponto seriam excludentes e hostis, como frisa o autor) comporiam a própria estrutura social, sendo o “conflito” e a sua superação dois aspectos do mesmo processo social, presentes em todas as relações sociais.417 No caso do quilombo encontrado pela bandeira, é notório o fato do contato “interétnico” atuar como elemento constitutivo, a começar pela possível composição daquele agrupamento, que, como pudemos observar acima, era formado em sua maioria por caburés. É importante observar que, para se chegar a uma predominância de caburés no quilombo encontrado pela bandeira, além da presença de remanescentes do Quilombo Grande, devemos considerar os contatos culturais entre negros fugidos e indígenas que, assim como os primeiros, estavam para além das fronteiras. A região do Alto Guaporé, naquele período, era habitada por numerosos grupos Nambiquaras,418 que tinham como vizinhos os Parecicozárini.419 Todavia, na documentação do período, como a própria diligência, observamos constantes referências à presença dos cabixi, como podemos notar na descrição geográfica da Capitania do Mato Grosso, de Ricardo Franco em 1797: Nas montanhas, serras, matos e campos dos Parecis vivem muitas nações de índios ainda não domados, de que os mais proximos a nós e conhecidos são os seguintes: - Cabixis, nação que transita os campos dos Parecis, vivem nas cabeceiras e matos dos rios Guaporé, Sararé, Galera, Piolho e Branco, entre 417 GLUCKMAN, Op. Cit., p. 267. Segundo Maria Fátima Roberto Machado, nambiquara se trata de uma identidade atribuída no século XVIII. Diferentemente dos Parecis, no caso destes não existe uma autodenominação coletiva. Em função da língua pouco estudada, existe uma dificuldade para identificar os diferentes grupos. Entretanto, a partir de informações coletadas em pesquisa de campo com os próprios indígenas, foi possível identificar os seguintes grupos: Aikutesu, Kwalisatesu, Namkutesu, Erahinkãtesu, Alakutesu, Yotusu, Alantesu, Hahaintesu (Manairisu), Waikutesu, Katithaulu (Sararé), todos no Vale do Guaporé; Sawentê, Yalakaloré, Lacondê (Yalakunté), Sabanê, Hinkatesu, Latundê, Siwaihsu (Manduca), Nagarotê, Mamaindê, todos na Serra do Norte; Wakalitesu, Kithaulu, Halotesu e Sawantesu, conhecidos como os Nambiquaras do cerrado. Cf. MACHADO, Op. Cit. pp. 15-16. 419 De acordo com Roberta Carvalho Arruzzo, os parecis ocupam a Chapada dos Pareci há séculos. Já estiveram divididos em cinco subgrupos: Kaxiniti, Waimaré, Kozárini, Warére e Kawali, com grande variedade de grafias ao longo dos anos. Atualmente restaram apenas três: Kozárini, os Waimaré e Kaxiniti.Cf. ARRUZZO, Op. Cit. João Antônio Botelho Lucídio, por sua vez, em recente tese de doutoramento defendida na Universidade Nova de Lisboa, ao investir o lugar ocupado por ameríndios no processo de conquistas lusitanas entre os rios Paraguai e Guaporé no final do século XVII à metade do XVIII, apresenta, com base em numerosas documentações, o Vale do Guaporé repleto de nações indígenas de ambas as margens. A partir de diferentes narrativas, apresenta um quadro amplo composto por 29 populações que habitavam a “margem oriental” do rio Guaporé no idos da década de 1740, com as suas características (“dóceis”, “ferozes”, entre outras) e respectivas localizações. LUCÍDIO, João Antônio Botelho. ‘A Ocidente do Imenso Brasil’: as conquistas dos rios Paraguai e Guaporé (1680-1750). Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013 (tese), p. 287. 418 170 os quais se ocultam muitos escravos fugidos (...). - Parecis, antiga nação dominante dos campos d’este nome, que habitavam as origens dos seus principais rios que correm para o Tapajoz, e que as incursões, captiveiros, e emigração causadas pelos portuguezes, quasi extinguiu, devendo esta nação a sua ruína ao seu valor e pacifica conducta: o resto que escapou se misturou com os cabixis e mambaras [Waimare] (...) – Mambaré[a]s, com quem se misturam os cabixis n’um braço do Juruena (...).420 A presença dos Cabixi na região ainda será mencionada em 1848 por Joaquim Alves Ferreira, na conhecida “Noticia sobre os índios de Mato Grosso dada em ofício de 2 de dezembro de 1848 ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império”. Nela, o autor informa que viviam na região os pareci (250 índios), maibarés (400 índios), Nambiquaras (600 índios), tapanhunas (800 índios) e, finalmente, os cabixi (500 índios).421 Nesse bojo, Maria Fátima Roberto Machado chama a atenção para duas problemáticas referentes à designação cabixi: a conotação negativa e sua possível origem no quimbundo. Na explicação da primeira, a autora afirma que, apesar do abandono da utilização da expressão desde o século XIX, possivelmente a expressão indicava os Parecis e Nambiquaras, com os quais os negros formavam os seus quilombos no Mato Grosso, no rapto de mulheres e crianças. Não se sabe ao certo a quantos grupos a designação se aplicou, mas, ao menos pelas pesquisas etnológicas realizadas por Max Schmidt no início do século XX, é possível circunscrever que a denominação cabixi foi atribuída aos pareci-kabisi, do grupo cozárini e aos guainguacuré Aruaquisados, que eram provenientes dos Nambiquaras da região ocidental da Serra dos Parecis. Em ambos os casos, a designação estava associada a “elementos étnicos de nível inferior” ou subalternos. Aqueles que faziam parte deste grupo estavam relacionados à servidão, nos seus diferentes sentidos: servos, vassalos, criados, escravos ou súditos.422 A partir dos relatos de Max Schmidt, é possível pressupor que a relação estabelecida entre os povos Parecis e Nambiquaras, desde o século XVIII, era permeada de conflitos, que poderiam ocorrer na demarcação de fronteiras territoriais, no rapto de mulheres e crianças. Este último ponto, que provavelmente pode ter sido assimilado por quilombolas, aparenta ser prática comum nas relações das duas etnias supracitadas, como podemos notar no relato que se segue: Quando atravessei em 1910 a região da Serra dos Parecis e visitei as diferentes aldeias dos Pareci-Kabisi, o alto Juruena formava a divisa da região desses índios com a região dos Guainguacuré, que com eles viviam na 420 Cf. MACHADO, Op. Cit., p. 13. Idem Ibide, p. 13. 422 Ibidem, pp. 16-23. 421 171 mais feroz inimizade. Mas, por certos dados, ainda se pode verificar e provar que a região desses Guainguacuré anteriormente se estendia mais para o ocidente, pelo menos até as cabeceiras do Jauru. Assim me foi assegurado pelo meu informante, um índio meio sangue que vivia entre os PareciKabisi, de nome José Vieira, que no lugar de sua atual morada, em Calugaré, existia, ainda não há muito tempo, uma aldeia Guainguacuré. A mesma foi assaltada pelos Pareci-Kabisi e foi incendiada. Sob a gente de José Vieira existiam dois irmãos que tinham sido carregados durante esse assalto, após ter seu pai sido morto na luta. Outro assalto consta ter sido efetuado pelos Pareci-Kabisi contra uma aldeia Guainguacuré, que teria existido na cabeceira do Juruena, não longe da atual aldeia Pareci-Kabisi Hanauihahirtigo. Consta serem ainda visíveis os vestígios de duas casas destruídas. No ataque foram mortos dois homens e os demais habitantes, mulheres e crianças, foram carregados. Esses assaltos foram levados a cabo, como me asseguraram, principalmente para raptar as mulheres e crianças das tribos vizinhas, inimigas, e o grande número de índios Guainguacuré que moravam como classe trabalhadora entre os Pareci-Kabisi mostra claramente que esses encontros, muitas vezes, devem ter sido muito produtivos. 423 Sobre a segunda problemática, referente a possível origem quimbundo da designação cabixi, vale salientar a observação de Nina Rodrigues. Na sua reflexão sobre a sobrevivência lingüística dos idiomas africanos no Brasil e da influência exercida sobre o português, notou o emprego do prefixo “Ca” (ou “Ká”), que no quimbundo exerce a função de “diminutivo do singular”. O autor exemplifica: “pele” em quimbundo é “kiba”, “pelinha” é “kákiba”; espingarda é uta, “espingardinha” é “ká-uta”; “cobra” é “niok”, “cobrinha” é “ká-niok”.424 A constatação da origem bantu do vocábulo, como a sua incorporação pelas nações indígenas Nambiquaras e Parecis e a sua incorporação por portugueses, sugere um intenso contato cultural entre negros, portugueses e indígenas; notoriamente caracterizado por trocas e incorporações culturais, sobretudo, nas regiões de fronteira. De todo modo, vale registrar prováveis vocábulos originários do quimbundo/umbundo que, assim como o cabixi, indicam contatos interétnicos: caburé e quilombo. O primeiro, praticamente desaparecido de documentos históricos a partir do século XIX, ao passo que o segundo é largamente utilizado, principalmente, por autoridades luso-brasileiras durante grande parte do período escravista. Caburé (ou “caboré” como aparece nos documentos históricos, inclusive, no próprio Diário da diligência) designa o mestiço de “índio” e “negro”. Provavelmente, de acordo com Machado, 423 SCHMIDT, Max. Die Aruaken: um classic da etnologia sul-americanista. Leipzig: Veit & Comp., 1917. Disponível em < http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Aschmidt-1917aruaques/schmidt_1917_aruaques.pdf >. Acessado no dia 06/12/2014. 424 RODRIGUES, Raymundo Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, p. 161. Disponível em <http://www.capoeiravadiacao.org/attachments/382_Os%20africanos%20no%20Brasil%20%20Raymundo%20Nina%20Rodrigues.pdf >. Acesso no dia 15/01/2014 172 o uso do prefixo “Ca” se deve a baixa estatura dos Nambiquaras e Parecis – ambos tinham em média 1, 60m. Quilombo, aportuguesamento de “kilombo”, como já tivemos oportunidade de refletir, origina-se do idioma “umbundo”, dos chamados povos Ovimbundus, que habitavam as regiões que circunscreviam Benguela e parte do seu hinterland. 425 Em outras palavras, ao voltarmos nossa atenção, mais uma vez, para os dados apresentados no Diário da Diligência e para o perfil dos 54 capturados pela bandeira, nos colocamos diante do contato multi-étnico peculiar. Contato expresso não somente no perfil mestiço dos quilombolas – como vimos, uma junção de negros evadidos, com cabixis, que poderiam ser Nambiquaras ou Parecis –, mas também nos próprios termos utilizados na narrativa escrita pelo homem branco – o que sugere troca cultural na integração de vocábulos bantu. Estamos diante de um ponto de encontro de etnias, para além da fronteira, que se revela como um espaço móvel e dinâmico, influenciando, inclusive, a correlação de forças políticas no espaço lusitano. É o que observa Luiza Volpato, após a volta triunfante da bandeira em novembro de 1795. Naquele período, a Capitania, que tinha à sua frente o capitão-general João Albuquerque, enfrentava uma crise econômica agravada, marcada pela busca de novas alternativas econômicas na transferência dos recursos da mineração para a agricultura e pecuária. Ao mesmo tempo em que o governo e comerciantes da capital da Capitania (Vila Bela) eram pressionados por fornecedores do litoral para o recebimento de dívidas, segmentos dominantes do Cuiabá eram estimulados, passando esta última a ser o pólo mais rico e populoso da Capitania. Assim, uma vitória sobre quilombolas naquele contexto ganhava contornos significativos para a elite política da capitania mato-grossense, como nota a autora: (...) a vitória sobre os quilombolas representava trunfo político para o capitão-general tanto no interior da capitania como perante as autoridades metropolitanas. Vencendo quilombos, o governador vencia um inimigo antigo e temido. Além disso, a vitória também levantava os ânimos de uma população extenuada na luta pela sobrevivência em região tão distantes dos núcleos mais dinâmicos da colônia e que arcava, com muita dificuldade, com os custos da guerra de fronteira.426 425 No capítulo 1, seção 1.2.3., desta tese, reflexões acerca da origem etimológica e do caráter multicultural da instituição, ainda em contexto africano. 426 VOLPATO, Luiza. Quilombos em Mato Grosso: Resistência negra em área de fronteira. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 225-226. 173 Destarte, a partir do Diário da Diligência, fazem-se necessárias as seguintes indagações: os cativos evadidos que formaram quilombos, na região do Vale do Guaporé, na segunda metade do século XVIII, se originaram especificamente dos bantus ou havia a presença dos sudaneses de alguma forma? Em segunda instância, em que medida permaneceram traços de organização política e elementos culturais no interior destas sociedades – quilombos – para além das fronteiras internas? A fim de elucidarmos essas questões, teceremos abaixo considerações sobre as rotas comerciais que trouxeram cativos à Capitania de Mato no século XVIII e, posteriormente, alguns apontamentos sobre a procedência étnica dos mesmos. 3.2.Da chegada de cativos: monções A instituição escravista que vigorou oficialmente no território luso-brasileiro da chegada dos europeus até 1888 deve ser compreendida a partir das especificidades de cada região. Diversos fatores imprimem singularidades às diferentes localidades, entre eles a organização sócio-econômica, localização geográfica e proveniência étnica da população escravizada. A estes, devemos acrescentar um fato de grande relevância e pouco explorado pela historiografia: a longa trajetória percorrida até a chegada ao destino final – local de emprego da mão-de-obra escrava – e, consequentemente, o tempo suportado dentro do tumbeiro. A Capitania/Província de Mato Grosso, extremo oeste do território luso-brasileiro, apresenta peculiaridades no que tange a todos os aspectos citados, sobretudo, quando pensamos a sua localização espacial distante dos grandes centros comerciais do Sudeste. O elemento distância, desde a edificação dos primeiros agrupamentos urbanos no século XVIII, percorre de maneira constante a percepção de si, como indivíduo agente de civilização no sertão, e a percepção do outro – do olhar das autoridades políticas, mercadores ou aventureiros para aqueles encarregados de protegerem a fronteira e desbravarem novos horizontes de exploração aurífera. A distância, por vezes, se coloca como barreira para a chegada do progresso. Numerosas lideranças políticas, viajantes e cronistas observam tal paradigma,427 entre eles, destaca-se Joaquim Ferreira Moutinho, que em 1869 afirmou: 427 Sobre tais relatos, ver BOSSI, Bartolomé.Viagem pitoresca por los rios Paraná, San Lorenzo, Cuyabá com La descripcion de La Provincia de Mato-Grosso. Paris Libreria Parisiense Dupray de La Mahérie, 1863; FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial ao Tietê ao Amazonas de 1825 a 1828. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1977; 174 Matto-Grosso é uma das Províncias do Brasil que mais ricamente forão dotadas pela natureza; está, porém, situada tão longe, e tão pouco aquinhoada tem sido pelo Governo na distribuição dos seus favores, que tudo ali é difficil, e tudo existe no seu estado embryonario.428 Se o potencial natural do Mato Grosso era constantemente exaltado – maravilhas da flora, fauna, culturas vegetais como cana-de-açúcar, milho, rios piscosos, ouro, diamante, entre outros –, a distância aliada ao chamado perfil não-empreendedor dos habitantes 429estava no caminho para o desenvolvimento. Em outras palavras, se a distância era elemento fundamental a ser considerado por aqueles que viviam ou se deslocavam para o Mato Grosso em busca de novas oportunidades, para cativos carregados ao oeste brasileiro, ela era fator indispensável a se levar em conta, haja vista a tortuosa viagem até o destino final e a elevada possibilidade de mortalidade. Devemos salientar que entre todos aqueles trazidos a Mato Grosso, principalmente no século XVIII, vários experimentavam o “tumbeiro” pela segunda vez.430 É o que argumenta o historiador norte-americano Richard Graham, que, ao analisar o fluxo de tráfico de escravos interno no Brasil, antes e depois da abolição do tráfico intercontinental em 1850, apresenta um universo de movimento de cativos africanos considerável. Mesmo que o tráfico interno tenha se intensificado após 1850 – gradualmente, com maior presença de crioulos, na medida em que os africanos envelheciam –, Graham menciona numerosos exemplos de africanos transportados por rotas no interior do Brasil; como a que levava cativos através das “monções do norte” à capitania do Mato Grosso – Salvador-Maranhão – Pará - Rio Amazonas/MadeiraMamoré –, ou mesmo a rota que deslocou milhares de cativos para Minas Gerais, após as descobertas de ouro e diamante no século XVIII – em alguns casos os traficantes obrigaram os cativos recém-chegados da África a marcharem por terra até as minas. Nesse último exemplo, afirma o autor, entre os anos de 1695 a 1735, Minas Gerais foi transformada, de uma área quase que habitada por indígenas, para um local povoado por cerca de 96 mil escravos, sendo 90% de origem africana.431 Portanto, para se pensar quais são os africanos que desembarcam no Brasil e, por conseguinte, quais eram os africanos que haviam formado quilombos na região do Guaporé, é 428 VOLPATO, 1993, p.23. A historiadora Luiza Volpato, no seu consagrado “Cativos do Sertão”, apresenta grande fartura documental, relacionada a discursos de habitantes do Mato Grosso, que teciam reflexões sobre o perfil dos habitantes de Mato Grosso, como Bartolomé Bossi, que dizia: “A fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo, que ali devia viver na abundância”. 430 Leia-se, navio negreiro. Faz alusão ao substantivo “tumba”, que designa “pedra sepulcral”, em função da alta taxa de mortalidade nos negreiros. Ver FERREIRA, Op. Cit., p. 796. 431 GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. In: Afro-Ásia, N. 27, 2002, p. 125. 429 175 necessária a concentração nos séculos XVIII e início do XIX, em face do contexto local e internacional. Em função da documentação fragmentária, a tarefa de afirmar com exatidão o volume de importação de cativos para o Mato Grosso apresenta dificuldades. Todavia, como ponto de partida, podemos considerar dois documentos elaborados durante o governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho: um mapa de determinados segmentos populacionais da Capitania de Mato Grosso elaborado no ano de 1771 (ver tabela 5) e um levantamento geral acerca da entrada de escravos na capitania desde 1720 até 1772 (ver tabela 6). No primeiro, para além dos dados referentes à população indígena e à quantidade de cativos restituídos pela coroa espanhola, são apontadas três rotas comerciais fundamentais que transferiam escravos à Capitania: via-Pará, Bahia-Goiás e Rio de Janeiro, com predominância da última, tanto em Vila Bela como no Cuiabá. 432 Quanto ao segundo documento, são informadas duas principais rotas que, divididas em quatro temporalidades, foram responsáveis pelo suprimento da mão-de-obra escrava na Capitania, a saber: (1) as primeiras três décadas, desde os momentos iniciais referentes à fundação do arraial do Cuiabá (1720-1750); o período referente ao governo de D. Antonio Rolim de Moura, entre 1751 e 1764; (3) o governo de João Pedro Camera (1765-1768); e, por fim, (4) o período pertinente à governança de Luís Pinto de Sousa Coutinho. Assim como no documento anterior, é apresentada neste mapa a superioridade numérica da rota via-Rio de Janeiro - enquanto os cativos provenientes via-norte totalizavam 874, a rota via-Sul atingia a cifra de 16.606. De maneira geral, a chegada dos cativos nas minas do Cuiabá e Mato Grosso já havia se iniciado ainda com as primeiras expedições bandeirantes, responsáveis por achados de ouro nas margens do rio Coxipó-Mirim, que traziam consigo escravos. 433 Nos anos seguintes, o fluxo de mão-de-obra escrava se efetivou por duas principais rotas, circunscritas nos levantamentos supracitados: caminho das monções que partiam do Sudeste (rota sul) e a rota fluvial entre os rios “Madeira-Mamoré” (rota norte), ativada pela Companhia Grão-Pará, a partir de 1752. 434 432 Na referida tabela, chama atenção a coluna indicada “mortos por gentio”, totalizando 65 no Cuiabá. Sobre tal tema, ser a reflexão desenvolvida na próxima seção do capítulo que se segue. 433 Segundo Chaves, tal grupo de escravos, no interior das expedições bandeirantes, esteva subdivido em diferentes funções: carregadores, cozinheiros, remadores, garimpeiros, pedreiros, carpinteiros e ferreiros. Cf. CHAVES, Op. Cit., p. 29. 434 Segundo Valderez Antonio da Silva, monção se tratava de uma expedição fluvial com o fim abastecer o interior do Brasil com viveres, principalmente Mato Grosso. As mesmas tiveram existência durante o século XVIII até a década de 1830, quando se abrem os caminhos terrestres que ligavam Mato Grosso ao Goiás. Cf. SILVA, Valderez Antonio da. Os fantasmas do rio: um estudo sobre a memória das monções do Vale Médio do Tiete. Programa de Pós-graduação em História – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, 2004, p.7 (dissertação). 176 As monções que seguiam a primeira rota, após a compra de escravos no Rio de Janeiro e passagem pelo porto de Santos, partiam do Vale do Médio Tietê, do porto paulista de Araritaguaba (atual Porto Feliz), e percorriam cerca de 3.500 quilômetros por diversos rios com numerosos obstáculos – desde pestilências a ataques de indígenas –, até chegarem às minas do Cuiabá, com viveres, manufaturados e escravos. A rota em si, era penosa, visto que obedecia à sequência de numerosos rios – Tietê, Paraná, Pardo, Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, Porrudos e Cuiabá –, distribuídos entre duas grandes bacias hidrográficas, a do Paraná e do Paraguai. A ligação entre estas últimas era feita por um trecho terrestre de 14 quilômetros, em que os monçoeiros arrastavam as embarcações por força de bois ou braços humanos. Ao longo do século XVIII, as constantes mazelas foram descritas repetidamente por viajantes: risco de febres, insalubridade das águas, escassez de viveres, despedaçamento de canoas, naufrágio, entre outros. O cumprimento de tal roteiro variava de acordo com o nível das águas e sucesso da expedição, de modo que poderia se estender de quatro a seis meses (ver mapa 12).435 A segunda rota, entre os rios Madeira-Mamoré, foi efetivamente liberada em 14 de novembro de 1752 por meio de uma provisão régia, publicada oficialmente em 1754, após insistência das autoridades coloniais do Pará e Mato Grosso. Alegavam as mesmas que a abertura da navegação entre os rios Guaporé, Madeira e Amazonas, propiciaria vantagens recíprocas para ambas as capitanias, além de maior rapidez na comunicação. Especificamente, Rolim de Moura, o então governador da Capitania do Mato Grosso, queixava-se constantemente às autoridades reais acerca do elevado custo de gêneros comercializados no Guaporé, originários da rota São Paulo-Cuiabá. Ainda em 1751 aventava de maneira direta os possíveis benefícios que a comunicação entre as capitanias poderia proporcionar: A primeira que do Pará hão de concorrer naturalmente muitas pessoas para aquelas minas. A segunda, que as fazendas e mantimentos do reino vindos por ali hão de ser mais baratos, o que facilitará a subsistência dos seus moradores. A terceira, que por aquela parte fica muita mais breve a comunicação com a corte, donde pode ser socorrida esta capitania com grande brevidade. E quarta fazermo-nos senhores daquelas navegações436 435 Idem Ibidem, p. 24. MESQUITA, Ana & VALADÃO, Nyl-Iza. D. Antônio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja: correspondências. Cuiabá: UFMT/ NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL,Vol. 1, 1982. (Coleção Documentos Ibéricos, série: Capitães-generais), p. 32. 436 177 No ano seguinte, em carta remetida a Diogo Mendonça Corte Real, no dia 28 de maio, Rolim de Moura pleiteia diretamente a abertura do comércio pela rota fluvial: Não haver outro meio para o aumento desta terra mais do que buscar modo por que se elimina a grande carestia dela. O único que me ocorre é franquear Sua majestade o comércio com o Pará, pois só por esta via podem vir às fazendas por preços que façam conta aos seus moradores... A experiência o mostrou já, por que na ocasião em que aqui chegaram as primeiras canoas do Pará se venderam os gêneros todos por preços inferiores, que os de Cuiabá437 (CRAIG apud TEIXEIRA, 1998, p. 3). Vale ressaltar que a seguinte rota, de acordo com o cronista Joaquim Barbosa de Sá, havia sido descoberta em 1742 por Manuel Félix de Lima, negociante falido que, fugindo dos seus credores, juntou-se a alguns aventureiros e, com algumas canoas, navegou pelo rio Guaporé abaixo em busca de populações castelhanas que pudessem passar.438 A rota em si, assim como a percorrida pelas monções que partiam do vale médio do Tietê, em Porto Feliz, apresentava numerosas dificuldades: a enorme distância com constantes obstáculos naturais, como as cachoeiras do Madeira, ataques das nações indígenas Mundurucu, escassez de alimentos, fome; por terra, o perigo dos animais peçonhentos, formigas, onças e plantas venenosas. O próprio nome do rio – “Madeira” – fazia alusão aos inúmeros troncos e árvores atravessados no rio que, por vezes, provocavam naufrágios e mortes. 439 Com a criação da Companhia Grão-Pará e Maranhão, por alvará régio em 7 de junho de 1755, estabeleceu-se pelo Madeira uma intensa atividade comercial, que garantiu à Capitania do Mato Grosso o suprimento de gêneros alimentícios, munições, materiais de garimpo e, principalmente, escravos440 Para além da monumental estrutura da Companhia Grão-Pará e Maranhão, formada por 1164 ações no valor de 400$000 réis cada uma, frotas compostas por naus de guerra, mercantes, lanchas, entre outras, ela possuía feitorias e fortes em Cabo Verde, Bissau, Cacheu e Costa do Guiné, que exportavam, entre outros produtos, escravos à troca de produtos manufaturados.441 Com a sua extinção em 1778, a rota foi gradualmente abandonada e, em 437 CRAIG Apud TEIXEIRA, Marco Antonio Domingues. “O comércio e as rotas fluviais na sociedade guaporeana colonial”. In: Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente – Set – Nº 13, Vol. II, 1998, p. 3. 438 RODRIGUES, Nathália Maria Dorado. “A atuação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão na Capitania de Mato Grosso entre 1755 e 1778”. In: “Usos do Passado – XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ”, 2006, p. 6. 439 Ver TEIXEIRA, Op. Cit., p. 6. TEIXEIRA, Op. Cit., p. 7. 441 Sobre a estrutura da Cia Grão Pará, ver RODRIGUES, Op. Cit., pp. 4-5. 440 178 meados do século XIX, terminou por extinguir-se. O abastecimento da região, com esse fato, passa a ser realizado novamente, e de maneira hegemônica, pela rota fluvial Rio de JaneiroSão Paulo-Cuiabá. Contudo, a preocupação com a rota que fora utilizada por décadas pela Companhia Grão-Pará e Maranhão ainda não deixaria de ocupar as autoridades reais. É o que observamos na carta régia encaminhada pela realeza ao Capitão General do Estado do Pará, D. Francisco de Souza Coutinho, no dia 12 de maio de 1778. 442 Na referida carta, orientava-se que o Capitão-General auxiliasse o Mato Grosso na fundação de povoações, com a criação de aldeias que pudessem desenvolver agricultura para abastecimento com víveres de comerciantes que ainda subiriam e desceriam o rio Madeira, a cada 6 meses. Tais aldeias deveriam primar por uma composição mista, que reunisse brancos, negros e indígenas. Preferencialmente, para o trabalho na lavoura, orientava-se que o Capitão-General do Pará importasse cativos provenientes dos Reinos de Angola e Benguela, ou mesmo de outras Capitanias, a fim de se animar a importação de cativos na região. 443 A carta determinava que os gastos do transporte das monções fossem divididos entre as duas Capitanias (até a primeira cachoeira, partindo da Capitania do Pará, ficaria por conta desta última e, deste ponto em diante, sob responsabilidade da Capitania do Mato Grosso). Além disso, orientava a doação de ferramentas, gêneros alimentícios, instrumentos para trabalho e até mesmo o empréstimo de 6 escravos, de um ou outro sexo, para aqueles que quisessem formar aldeias, durante o primeiro ano de residência. 444 Sobre tal “empréstimo”, a Carta Régia proibia expressamente qualquer atividade de alienação ou comércio dos escravos concedidos antes do pagamento à Fazenda Real. Estabelecia, ainda, que o interessado só poderia usufruir do empréstimo se atendesse a determinados pré-requisitos: (...) Aos escravos não concederei-vos se não aos primeiros doze indivíduos, que se oferecerem, para principiar a formar a povoação, se forem casados e mostrarem que são lavradores e que não têm crimes alguns, porquanto estabelecidos estes, facilmente se atrairão outros sem tanto incoômodo (...) 445 442 “Carta regia encaminhada pela ‘rainha’ ao capitão General do Estado do Pará em 12 de maio de 1778”. In: RAPMT, Vol.1, n.3, março-setembro de 1987, pp. 37-38. 443 A menção à possível importação de cativos dos reinos de Angola e Benguela só vem a corroborar com os apontamentos levantados na primeira parte desta tese, de que o comércio entre portos luso-brasileiros e a África Centro-Ocidental, se fazia de grande intensidade. 444 A carta estabelecia que vencido o primeiro ano de empréstimo, o colono deveria pagar num prazo de 5 anos o valor dos cativos. SUZUKI , Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, p. 38. 445 Idem Ibidem, p.8. 179 Ademais, para além destas duas rotas comerciais acima apresentadas, é preciso considerar a existência e importância da terceira rota de entrada de cativos no Mato Grosso e Cuiabá, especialmente entre o último quartel do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, a saber: a rota terrestre que partia da Bahia, atravessava o Goiás e finalmente chegava à Cuiabá. Somente no ano de 1771, conforme observamos na tabela 5, os “adventícios” via Bahia e Goiás somavam 186, ao passo que aqueles trazidos por via-Pará totalizavam 93 indivíduos. Ou seja, ao menos naquele momento, esse trajeto poderia ser mais significativo que a rota norte. Outrossim, apenas no ano de 1805, por exemplo, os Anais do Senado de Cuiabá registram a chegada 3 baianos: Joaquim da Silva Prado, com 9 cativos; Jozé Pinheiro, com 25 cativos; e Manoel Dias Gonçalves, com 49 escravos. Além destes, os Anais também informam que chegou, no mesmo ano, o particular Joze Roiz de Sá do Rio de Janeiro, acompanhado de 25 escravos. No entanto, sobre este último, não estava especificado se havia tomado a rota sul ou se seguira a rota terrestre por Goiás.446 Em todo caso, não deixa de impressionar que, só para o ano de 1805, entraram juntamente com particulares o total de 123 cativos, número maior do que a entrada de cativos via rota norte, trazidos pela Companhia Grão-Pará, ao longo de todo o governo do Capitão General Rolim de Moura.447 No último quartel do século XVIII, nas instruções de Luiz de Albuquerque para o seu irmão João de Albuquerque de Mello e Pereira e Cáceres, na qual relata pormenorizadamente a situação em que se encontrava a Capitania, tanto internamente como externamente (sobretudo nas relações com as Províncias dos Moxos e Chiquitos, nos domínios castelhanos), o Capitão-General no §30 do documento também já informava a existência de uma boa relação entre a Bahia e a região: “(...) Pelo certão do Cuyabá se liga a mesma Capitania com a de Goyás, e se matem aberto há poucos annos huma boa correspondência com a Praça da Bahia, pelo que toca ao comercio dos escravos” [grifo nosso]. 448 Em resumo, identificadas as rotas de entrada de cativos na Capitania do Mato Grosso, é preciso delinear a procedência étnica desses cativos, a fim de que possamos construir uma visão mais sólida da presença africana na região. 446 447 SUZUKI , Op. Cit., p. 175. Ver tabela 6. APMT, Cópia da instrução de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres a João de Albuquerque Mello Pereira e Cáceres, Estante 1, C-03 (1749-1772). Sobre tal rota, vale salientar que a mesma não é desenvolvida na historiografia local,que aborda a escravidão na Capitania/Província de Mato Grosso. A mesma ainda carece de maior pesquisa, para que se tenha dimensão do perfil daqueles que circulavam, tanto comerciantes, como cativos (procedência étnica, gênero, idade, etc.). 448 180 3.3. Da procedência étnica A procedência étnica dos escravos trazidos no interior das três rotas obedeceu a numerosas variáveis, sobretudo, no que tange à região de compra no território luso-brasileiro. Em dados extraídos de testamentos (1773-1783), o historiador Carlos Alberto Rosa afirma existir uma predominância de “sudaneses” (“minas” e em menor escala “nagôs”), seguidos de “Bantus.449 No entanto, se considerarmos os dados informados pelo levantamento realizado durante o governo de Luíz Pinto de Souza Coutinho (tabela 6), podemos aventar a posição inversa, de modo que o volume de cativos importados via monções do Sul – como vimos acima, comercializado do porto do Rio de Janeiro – se mostrou constante, mesmo diante da atuação da Companhia Grão-Pará, pelo roteiro fluvial Madeira-Mamoré. Mesmo no período (1769-1772) de maior importação via rota do Norte, é possível constatar a superioridade das rotas do Sul (quase o triplo, com 1.246 escravos). Assim sendo, podemos levantar a seguinte questão: se grande parte dos escravos que chegam às minas do Cuiabá e Mato Grosso, no século XVIII, chegaram ao Brasil pelos portos do Rio de Janeiro, quem eram estes escravos africanos? De acordo com Otávio Ribeiro Chaves, os bantus provavelmente chegaram dos portos do Rio de Janeiro, ao passo que os Minas desembarcaram pela Bahia. 450 A afirmação do autor corrobora os dados levantados por Nireu Oliveira Cavalcanti, que, entre os anos de 1731 a 1735, verificou a entrada de 21.506 escravos no Rio de Janeiro, oriundos da África Central – principalmente de Angola, Moçambique e Costa da Mina.451 A seguinte simetria também é verificada por Kátia Mattoso, Mary Karash e Manolo Florentino. A primeira autora, de maneira panorâmica, afirma que, em função das descobertas de ouro que se iniciaram no final do século XVII e se estenderam a meados do século XVIII, a demanda por mão-de-obra escrava triplicou o tráfico intercontinental. Segundo Mattoso, somente nesse contexto, foram trazidos para 1.700.000 cativos, sendo 1.140.00 da Angola e o restante da Costa da Mina. Desse total, estima-se que 2/3 foram distribuídos entre as minas de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A importação massiva de cativos prosseguiria ainda no 449 Contudo o mesmo autor afirma que a predominância de uma etnia africana sobre a outra, na Província de Mato Grosso, variou nos diferentes micro-espaços (freguesias, paróquias, vilas, arraias, entre outros) e tempo. Cf. ROSA, Op. Cit., p. 214. 450 CHAVES, Op. Cit., p. 29. 451 Apud CRIVELENTE, Op. Cit., p. 53. 181 final do século XVIII e início do XIX, com os novos impulsos da produção açucareira e o advento do café no sudeste brasileiro. Nesse contexto, os principais portos de entrada dos africanos no Brasil foram o do Rio de Janeiro (570.000), seguido pelo da Bahia (220.000), Pernambuco (150.000) e Maranhão (40.000).452 Mary Karash, por sua feita, no interior de uma pesquisa volumosa sobre o cotidiano dos cativos na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 1808 a 1850, inventaria registros de saída (de portos africanos), de entrada nos portos brasileiros, além de dados referentes a enterros no Rio de Janeiro, a fim de apresentar a procedência étnica daqueles que chegaram naquela cidade na primeira metade do século XIX. Nos registros de enterro, por exemplo, a autora observa a seguinte proporção: no total de 479 africanos enterrados pela Santa Casa da Misericórdia no ano de 1833, 34 se originavam da “África Ocidental”, 90 do Congo Norte, 91 do norte de Angola, 87 do sul de Angola (sendo dessa quantia 82 identificados como originários de Benguela), entre outras regiões. 453 Nota-se, nesse arrolamento de dados, a predominância clara daqueles originários do Centro-Oeste africano, identificados como Bantus.454 A referida predominância novamente é confirmada na amostra, reunida pela autora, dos grupos étnicos registrados nos arquivos históricos do Itamarati, junto ao Arquivo Nacional, pelo Tribunal de Comissão Mista. 455 Percentualmente, Karash apresenta a seguinte proporção de procedência étnica entre os anos de 1830 a 1852: 79, 7% originária do CentroOeste Africano, 17, 9% da África Oriental, 1,5% da África Ocidental e 0,9 % de regiões desconhecidas.456 O terceiro autor, Manolo Florentino, na sua pesquisa documental e bibliográfica sobre o tráfico escravista e sua lógica, assim como as autoras anteriores, discorre sobre a superioridade dos “bantus” no Rio de Janeiro, entre 1795 a 1830. Todavia, chama a atenção 452 MATTOSO, Kátia. Op. Cit., pp.54-55. 453 Karash subdivide as regiões, da seguinte maneira: Cabo-Verde, Camarões, Calabar, Mina, Nagô, Ussá como parte da África Ocidental; Congo, Cabinda, Monjollo, Munjolo, Ambaca, Angola, Cabundá, Cacajá, Cassagen, Muxicongo, Bangala, Luanda, Camundongo, Benguela e Gangella como parte do Centro-Oeste Africano; além de outras localidades referentes à África Oriental e regiões não-identificadas. Cf. KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 46-47. 454 455 Idem Ibidem, p. 46. O seguinte tribunal foi estabelecido pelo governo brasileiro e britânico, a fim de pressionarem a supressão do tráfico de escravos. Após serem capturados a bordo de navios ilegais (década de 1830), os africanos eram levados ao tribunal, registrados e, posteriormente, colocados sob tutela de influentes senhores do Rio de Janeiro, haja vista a preocupação de que não resistissem a uma viagem de retorno à África Idem Ibidem, p. 48. 456 Idem Ibide, p. 45. 182 para a predominância na Bahia daqueles africanos originários da África Ocidental. Se, por um lado, no Rio de Janeiro, a quantidade de cativos trazidos da África Ocidental é praticamente irrisória (3% entre 1795 e 1811), na Bahia detém maior expressividade. Estima-se que, entre 1650 e 1850, no interior das grandes redes de comércio escravista na África Ocidental, tenham circulado cerca de 5 milhões de cativos, sendo a maior parte enviada para a Costa do Ouro e Baía de Benin.457 O Rio de Janeiro, por sua vez, é abastecido principalmente por rotas que partiam de Angola e Congo, na África Central Atlântica. 458 Segundo Florentino, a partir dos registros de chegada de embarcações, divulgados nos periódicos do período, é possível afirmar que aportaram na cidade 1580 navios negreiros. Desse total, vale ressaltar que 24 são estimativas e um registro não especificou o porto de saída no continente africano. De todo esse fluxo, a hegemonia de exportação da região se faz com grande clareza: a cada dez navios que saiam dos portos africanos, oito se originavam da África Central, sobretudo, dos portos de Luanda e Benguela.459 Destarte, tendo em vista o volume de informações acerca do tráfico transatlântico, é importante destacar, a despeito dos dados fragmentários, que seja perfeitamente cabível reconhecer a predominância de “bantus” sobre “sudaneses” na Capitania/Província de Mato Grosso, uma vez que as rotas provenientes do sudeste brasileiro foram responsáveis por maior parte do abastecimento de cativos na região, em maior ou menor grau. Nesse bojo, importa observar que, com a falência da Companhia Grão-Pará e Maranhão, a posição do Rio de Janeiro, como maior porto fornecedor de escravos para o Mato Grosso, se intensifica através das relações comerciais com paulistas; estes negociavam escravos no Rio de Janeiro, que desde o final do século XVIII havia assumido a posição de principal fornecedor de escravos do território luso-brasileiro.460 457 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 78-79. 458 Além de africanos provenientes da África Central Atlântica, o Rio de Janeiro recebeu, como afirmado anterior, cativos da África Ocidental (em menor proporção) e, igualmente, da África Oriental. Esta última rota se expande no limiar do século XIX, conforme Florentino (apêndice 13), fundamentado em pesquisas realizadas no Arquivo Nacional (Códice 242, Seção de Microfilmes) e nos periódicos: Gazeta do Rio de Janeiro, Espelho, Volantim, Diário do Governo, Diário do Rio e Janeiro, Jornal do Commércio e Diário Fluminense. Cf. Idem Ibidem, p. 218. 459 Idem Ibidem, p. 81;234. 460 O Rio de Janeiro, entre 1790 a 1830 recebeu anualmente 17.023 africanos, chegando a ser considerado o local de maior movimento escravista do mundo. Tal fluxo permitiu ao Rio de Janeiro a distribuição de cativos, via terrestre ou fluvial, para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e,principalmente, Minas Gerais que foi responsável por 40 a 60% dos escravos que saíam do Rio de Janeiro Cf. HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos no Rio de Janeiro, 1758-1831. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Programa de Pós-Graduação em História, 2008, p. 62 (Dissertação). 183 A superioridade numérica de “bantus” sobre outras etnias no Mato Grosso também é tratada em duas pesquisas recentes: a primeira, realizada por Divino Marco Sena, acerca dos “livres pobres e agregados” na Província de Mato Grosso na primeira metade do século XIX; a segunda, de autoria de Maria Amélia Crivelente, sobre os casamentos de escravos africanos na Chapada dos Guimarães, entre 1798 e 1830. O primeiro autor, a partir dos dados levantados no Arquivo Público de Mato Grosso, apresenta uma tabela classificatória de escravos de acordo com a descendência ou origem, na Freguesia de Brotas em 1838.461 Nela, em um universo de cerca de 300 cativos, fica evidenciada a presença de bantus e sudaneses, com predominância dos primeiros: 15 provenientes de Benguela, 8 originários da Nação Congo, 4 de Moçambique, seguidos de 7 da “Nação Mina”, 4 Haussás (ver tabela 7). No levantamento realizado pelo autor, chamamos atenção para predominância de crioulos: ao passo que reflete a diminuição do fluxo de comércio de escravos para a região, elucida as possibilidades de sobrevida no interior do sistema escravista na procriação e, em alguns casos, casamentos realizados à luz das tradições católicas. Sobre este último aspecto, a investigação realizada por Maria Crivelente, na Serra Acima (atual Chapada dos Guimarães), apresenta avanços significativos, apesar da autora não se concentrar especificamente no casamento de “crioulos”, mas sim nas uniões conjugais entre africanos. Crivelente, na análise dos documentos paroquiais entre os anos de 1798 e 1830, dispostos no livro de casamentos entre livres e escravos da Igreja Matriz de Santana do Sacramento de Chapada dos Guimarães, toma o ato de casamento, à luz das tradições cristãs, como parte da estratégia para construção de uma nova identidade no Novo Mundo, assim como mecanismo de composição de alianças para obtenção de possíveis benefícios. Com o fim de desenvolver a sua reflexão, a autora apresenta “Serra Acima” como o grande “Empório da Capital”,462 que, a partir do final do século XVIII, passou a ser a grande abastecedora da capital da Província, com a produção açucareira e de viveres.463 Segundo a autora, no final do século XVIII, somente a Freguesia de Santana de Chapada (Serra Acima) contava com 22 engenhos, 6 monjolos para produção de farinha e uma população de escravos de 738 indivíduos, entre africano e crioulos. Com o fim iminente da escravidão, em função das pressões inglesas, contexto das independências nas Américas e 461 A Freguesia de Nossa Senhora das Brotas pertencente ao termo de Cuiabá, contava com uma economia caracterizada pela criação de animais, lavoura, engenhos de produção de açúcar e aguardente que eram comercializados em Cuiabá, na primeira metade do século XIX. No total, era formada por uma população de livres de 1456 e 298 cativos. SENA, 2010, p. 49. 462 Célebre expressão para referenciar “Serra Acima” (Chapada dos Guimarães) de autoria de José de Mesquita. 463 CRIVELENTE, Op. Cit., p. 10. 184 incremento da produção açucareira, o tráfico de africanos conheceu um novo impulso, do final do século XVIII à década de 1820.464 Tal processo provocou um novo fluxo de cativos africanos para a região, que haviam desembarcado inicialmente no porto do Rio de Janeiro. Nesse contexto, de acordo com Alcir Lenharo, ainda no ano de 1797, chegaram à Capitania do Mato Grosso, entre animais, cargas e camaradas, 200 escravos novos e 40 ladinos.465 Nessa conjuntura, Crivelente aponta que, entre 1798 e 1830, aconteceram 479 casamentos realizados na Igreja Matriz de Chapada dos Guimarães. Deles, 290 eram de escravos (60, 5%) de notória origem bantu, identificada nas atas de registros de casamento, que, ao lado do novo nome cristão, especificavam a procedência africana – como Vicente Congo, Benedito Moçambique, Sebastião Nagô, entre outros. Dentre os 290 casamentos realizados entre escravos, a autora aponta uma tendência endogâmica, na superioridade de casamentos entre africanos e africanos: da soma total, 108 (37,2%) uniões conjugais correspondem a africanos e, especificamente, os Benguela apresentaram maior propensão à endogamia: dos 33 casamentos realizados de africanos da mesma nação, 13 foram de Benguelas, o que correspondia a 39, 5%, seguidos por Minas, com oito casamentos (24, 3%).466 A seguinte tendência, afirma Crivelente, revela uma preocupação comum de estar “entre os seus”, ou seja, entre aqueles que mais se identificavam culturalmente.467 Em outras palavras, a reunião e cruzamento dos diferentes documentos sugerem, para além da predominância de uma e outra etnia, a presença de africanos “bantus” e “sudaneses”. Identificá-los e buscar os rastros que os trouxeram até a Capitania do Mato Grosso significa, antes de qualquer tarefa, pensar a dinâmica interna do tráfico escravista para o oeste lusobrasileiro, para adiante refletirmos a lógica organizacional e política dos quilombos formados na região. *** 464 Vale lembrar os acordos bilaterais firmados entre a coroa portuguesa e inglesa desde o início do século XIX, mencionados anteriormente neste estudo, como o tratado assinado em 1810 que comprometia portugueses à futura extinção do tráfico de escravos e restringia as atividades comerciais à Costa da Mina e demais possessões lusitanas. Sobre tais acordos, rever nota 83, da seção 1.1.1. desta tese. 465 Idem Ibidem, p. 11. 466 Crivelente apresenta duas tabelas, ao longo da dissertação, de grande interesse para compreensão da tendência “endogâmica” entre os cativos: a tabela nº. 7, que expõe de maneira organizada a quantidade de casamentos entre africanos, africanos com crioulos, crioulos com crioulos, entre outros; e a tabela nº. 8, que se propõe a explicitar casamentos de africanos da mesma nação, Cf. CRIVELENTE, 2001, pp. 109-110. 467 Idem Ibidem, pp. 109-110. 185 Para finalizarmos nossa viagem junto à bandeira que percorreu o Vale do Guaporé por cerca de 6 meses no encalço de cativos evadidos e ouro, alguns episódios ainda podem ser destacados. A fartura alimentícia encontrada nos entornos do quilombo certamente é um fato de grande relevância. No Diário de Francisco Pedro de Mello, não somente merecem destaque os elogios à qualidade do terreno escolhido para prática da agricultura – superior às terras cultivadas no Antigo Quilombo Grande, às margens dos rios Galera, Sararé e Guaporé –, como a própria variedade do que era cultivado: “(...)plantações de milho, feijão, favas, mandiocas, manduin, batatas, caraz e outras raízes, assim como bananas, ananazes, aboboras, fumo, gallinhas e algodão de que faziam panos grossos e fortíssimos com que se cobriam”. 468 Como ressalta Volpato, em um período em que Vila Bela e Cuiabá enfrentavam constantes surtos de queda de produção, com a fome se alastrando e penalizando a população, não deixava de impressionar a agricultura bem estruturada e produtiva, que mantinha os habitantes do quilombo abastecidos.469 De todo modo, após permanecerem por dias acampados nos entornos do quilombo, com o intento de capturar todos os cativos evadidos da incursão, finalmente a bandeira partiu. Antes, remete os 54 quilombolas à Vila Bela, que, quando lá chegam, impressionam tanto por todos falarem português, como pelo fato d’alguns conhecerem rudimentos da doutrina cristã. Com isso, a captura dos quilombolas passou a representar maiores possibilidades de povoamento da fronteira, por súditos do Rei e adeptos da fé cristã: houve a organização de uma grande cerimônia de batismo, que contou com as várias autoridades coloniais e a presença do próprio Governador, que se tornou padrinho de alguns ex-quilombolas. Interessante observar a inversão do status de capturados. Como quilombolas, eram inimigos que deveriam ser subjugados, a partir de todas as razões apresentadas ao longo deste capítulo – principalmente porque a vitória daria uma sobrevida de entusiasmo e ânimo às autoridades políticas da Vila Bela e os seus habitantes. Contudo, no momento que “aderem” à fé cristã e, portanto, se submetem à autoridade real portuguesa, passam a ser considerados aliados para defesa dos domínios lusos na fronteira. Assim, após batizados, aqueles exquilombolas, metamorfoseados em “cristãos” e “súditos do Rei”, são autorizados a retornarem à antiga habitação, para fundarem a “Aldeia Carlota”, partindo com numerosas canoas repletas de mantimentos, grãos, sementes, porcos, patos e galinhas para criação. Pelo descrito 468 469 MELLO, Op. Cit. VOLPATO, 1996, p.226. 186 no Diário, a expectativa era de que aqueles novos cidadãos pudessem fundar uma habitação de “futuro próspero e pública utilidade”.470 Outro fator digno de nota disposto no Diário refere-se à continuidade da Bandeira, em busca de novos quilombos e rotas de exploração de ouro. Logo que enviam os 54 capturados, seguem a devassa no sertão, nas proximidades dos rios Galera, Sararé e Pindaituba. No início de outubro, guiados por dois escravos que afirmavam saber onde se localizava um quilombo às margens do Pindaituba, chegam a um novo acampamento. Este formado por dois arranchamentos, divididos entre si por cinqüenta passos. Um, comandado pelo negro Antônio Brandão, com 11 casas, 14 negros e cinco escravos; outro, comandado pelo escravo Joaquim Feliz, com 10 casas, 13 negros e 7 negras. Assim que obtêm notícias da chegada da expedição, abandonam o local para formar um novo quilombo a seis léguas do primeiro local, no chamado “córrego do Mutuca”. Entretanto, serão obrigados a levantar acampamento novamente, com a aproximação da expedição. A busca ainda prosseguiria por todo o outubro, obtendo êxito na captura de negros e cativos evadidos. Na segunda quinzena de novembro, a bandeira retorna a Vila Bela em posse de 18 escravos. Aqueles que não haviam sido capturados, pelo que consta no Diário, se entregaram espontaneamente pela impossibilidade de estabelecer novas habitações após a passagem devastadora da bandeira. Por fim, após penosos seis meses e meio, a expedição se deu por encerrada. O saldo final correspondeu à captura de 30 escravos evadidos, destruição dos maiores quilombos na região, assim como as suas plantações. Contudo, apesar da euforia da vitoriosa campanha contra os quilombolas, essas mesmas sociedades não deixariam de existir no século seguinte até as vésperas da abolição da escravatura. 471 Ademais, para além de ser uma possibilidade de reflexão da instituição escravista nas fronteiras do território luso-brasileiro, o Diário de Francisco Pedro de Mello desvela possibilidades de pensarmos a fluidez da vida para além das próprias fronteiras, caracterizada 470 MELLO, Op. Cit., p. 15. Adiléa Benedita Delamônica, na sua pesquisa sobre os quilombos no Mato Grosso no século XIX, baseada na documentação existente do período, sobretudo, os Relatórios de Presidente de Província, afirma ter existido na região do Manso diversos quilombos – localizados entre 30 léguas da capital Cuiabá e 14 léguas da Freguesia de Chapada dos Guimarães -, divididos em numerosos arranchamentos, como o “Quilombo do Cansansão”, “Quilombo do Bicho”, “Quilombo do Gaia-Gaia” e “Manso”. A documentação pesquisada pela autora informa ainda que os habitantes desses quilombos estavam subdivididos por funções: “guardiões”, que zelavam pela segurança da população; “permutadores”, encarregados da compra e troca de gêneros alimentícios geralmente em Cuiabá; “mineiros”, responsáveis pelo trabalho nas minas de Cuiabá; “lavradores”, que trabalhavam nas lavouras. Cf. DELAMÔNICA, Adiléa Benedita. “A cor do medo e os seus vários significados: os quilombos mato-grossenses do Rio Manso (1850-1888)”. In: BORGES, Fernando Tadeu de Miranda; PERARO, Maria Adenir (Orgs.). Sonhos e Pesadelos na história. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2006, p.130. 471 187 por constantes contatos interétnicos e trocas culturais. Quais seriam as características das relações estabelecidas, longe dos domínios políticos lusitanos e espanhóis, entre cativos africanos, crioulos e indígenas? Em que medida indígenas incorporaram costumes africanos e, inversamente, o que perpassou o Atlântico e orientou a organização da vida social nesses espaços distantes dos centros políticos ocidentais? Essas são questões que serão retomadas no capítulo quinto da presente tese. Por ora, enfatizamos que a análise das heranças culturais, mais do que contribuir para uma visão global da escravidão, permite a possibilidade de compreender a laboriosa trama humana desses homens e mulheres que, ao serem transportados de um continente ao outro, do litoral ao oeste luso-brasileiro, tiveram que se reinventar constantemente, ora na fuga e organização sócio-política, ora nas novas relações estabelecidas em território de nações indígenas. 188 Mapa 11 – De Vila Bela ao Quilombo do Piolho: os rios Guaporé, Branco, Sararé, Galera e afluentes Fonte: “Mappa de parte do rio Guaporé, e dos rios Sararé, Galera, S. João e Branco e seus braços”. Disponível em < http://bndigital.bn.br/acervo-digital >. Acessado no dia 13 de janeiro de 2015. 189 Mapa 12 – De Porto Feliz e Goiás a Cuiabá (caminho fluvial e terrestre) Fonte: ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Graduação em História, 2005 190 Tabela 5 – Mapa dos adventícios e escravos fugidos da Capitania de Mato Grosso (1771) Fonte: Disponível em <www.cmd.unb.br >. Acessado no dia 25/03/2015. Disponível também em LORDELO, Op. Cit., p. 113. 191 Tabela 6 - mapa geral dos Escravos que tem enviado nas Capitanias do Cuiabá e Mato Grosso desde que se descobriram suas Minas conforme as memórias e registros existentes 1720-1772 Diferentes Anos Anos Importados ImportaSomas Ano comum = Períodos comparati- Relatipor via do dos por Via totais 311 vo aos vos Pará Sul diferentes períodos Anos anteriores a fundação do governo própria da Capitania 31 Gov. de Antônio Rolim de Moura Tavares 14 Governo de João Pedro 4 Camera Governo de Luiz Pinto 4 Soma total 53 De 1720 à 1750 5.951 8.424 10.775 De 1751 à 1764 117 2.934 3.501 De 1765 à 1768 292 651 943 De 1769 1772 465 1.246 1.741 53 anos 874 16.606 16.480 Neste período é que se descobrirão as Minas de Cuiabá e Mato Grosso, e nele houve a maior fluência de escravos. Bem entendido que neste n. e em todos os mais sucessivos e compreendem tanto varões como fêmeas assim maiores e menores. O comércio de escravos importados por via do GrãoPará não principiou no período desde Governo, se não no ano de 1756. NB. (...) dos escravos vindos pelos postos do sul entrarão em vila Bela nos Quatro anos descritos. Fonte: NDIHR, Capitania de Mato Grosso, ano 1773: AHU, doc. 1054 microfilme, rolo 15, cx. 17. Anexo: 2º. 192 TABELA 7: Classificação da População escrava quanto a descendência e/ou origem. Freguesia de Brotas (1838) Especificação Benguela Caboré Cabra Camundá Crioulo Hauça Mulato Nação Nação Angola Nação Cavanje Nação Congo Nação Mina Nação Moçambique Nação Monjolo Nação Rebolo Nagô Pardo Tapa Não informado Escravas 0 a 7 8 a 15 16 a anos anos1 50 anos --1 1 1 4 5 3 16 --1 19 12 41 ---1 -1 -----1 ---- Escravos Acima 0 a 7 8 a 15 16 a de 50 anos anos1 50 anos anos 3 --9 --1 2 -5 3 8 --1 4 12 21 45 ---3 --1 ----2 -------1 Acima de 50 anos 2 -2 -2 1 --1 -- ---- ---- 1 1 -- ---- ---- ---- 6 5 4 -- -- -- -- -- -- -----4 --7 -1 --7 -1 ------ --2 --- --4 ---- Total Nº % 15 9 42 2 156 4 4 2 2 1 5 3 14 0,6 53 1,3 1,3 0,6 0,6 0,3 1 1 -- 8 7 4 2,6 2,3 1,3 3 --- 3 1 -3 4 1 4 1 -- 1 3 24 1 10 0,3 1 8 0,3 3,5 --- Fonte: Mapa da População da Freguesia de Nossa Senhora das Brotas, 1838, Lata 1838, APMT (Apud SENA, 2010, p. 52) 193 CAPÍTULO 4 - A vida para além sociedade escravista: o trânsito entre indígenas, espanhóis e o retorno forçado A vida do cativo no Oeste do que veio a ser brasileiro foi indelevelmente marcada pela possibilidade de cruzar fronteiras. Não somente as fronteiras políticas entre as coroas portuguesa e espanhola, mas as ditas “fronteiras civilizacionais” entre aqueles que habitavam povoamentos luso-brasileiros e tudo aquilo que estava fora, reservado aos domínios do que era considerado selvagem. No decorrer de todo o período escravista na região, observaremos constantes idas e vindas, constantes tentativas de se recomeçar a vida para além da sociedade escravista, individuais ou coletivas, frustradas por diferentes circunstâncias, que acabaram por forçar, em alguns casos, o temível retorno ao cativeiro. O capítulo que se segue é uma faceta dessa história, em que ameríndios e africanos trazidos para as minas do Mato Grosso e Cuiabá são personagens ativos e acabam por influenciar autoridades coloniais à adoção de diferentes estratégias para se estabelecerem na região. De maneira geral, a reflexão que aqui apresentamos trata daqueles que cruzaram a fronteira da sociedade escravista. Com o intento de apresentá-los, balizamos a nossa análise em três seções. A primeira é construída a partir da necessidade de considerar a presença indígena no cotidiano do cativo negro que se encontrava no oeste luso-brasileiro, ou que estava a caminho. Na seção seguinte, tecemos uma reflexão sobre as constantes fugas dos domínios espanhóis ao longo do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, que acabavam por forçar a comunicação não somente de autoridades de Capitanias da América portuguesa, mas principalmente entre autoridades dos domínios espanhóis. Por fim, na última seção deste capítulo, trataremos daqueles que retornaram por forças maiores, assim como da promessa de “esquecimento” pelo crime de fuga aos que se entregassem por livre e espontânea vontade. A presente análise atravessa diferentes territorialidades, transversal aos povoamentos luso-brasileiros, hispânicos e, especialmente, alguns dos povos ameríndios que habitavam a região, a saber: Payaguás, Guaykurus, Kayapós, Bororos, Bakairis, Xavantes e Parecis. Para tanto, cumpre-nos o dever de situar o leitor acerca das diferentes espacialidades daqueles que protagonizam a reflexão que ora apresentamos. Em primeiro lugar, uma observação geral sobre a espacialidade na qual se concentra a nossa reflexão histórica: se distribui entre os vales dos rios Paraguai e Guaporé (ver mapas 13 194 e 14), “Extremo Oeste” ou a região mais ocidental das possessões luso-portuguesas. De maneira geral, era caracterizada no período por grande indefinição e vagamente limitada pela disposição dos rios: Era a região limitada pelos rios Madeira, Guaporé, Paraguai e afluentes contravertentes deste e do Rio Grande (Paraná), até o Grande Salto (Sete Quedas). O Rio Paraná era o divisor da nova Capitania com São Paulo, enquanto outro Rio Grande (Araguaia) separaria as Capitanias de Goiás e Mato Grosso, caso fossem confirmadas as circunscrições administrativas, conforme os perímetros dados às comarcas eclesiásticas das Prelazias. Os limites com o Estado do Grão-Pará e Maranhão ficaram, também, indeterminados à época, para posterior estabelecimento.472 No chamado vale do Rio Paraguai, encontrava-se Cuiabá, povoação luso-sertanista, e todo o conjunto dos seus arraiais. Fundada, como vimos no capítulo anterior, em 1719 (inicialmente na qualidade de Arraial) com a descoberta de ouro no Coxipó-Mirim, foi o principal foco populacional de não-indígenas em todo vale do Paraguai. Desde a sua fundação, houve o aparecimento de lavras, arraiais e fortalezas, conforme podemos observar nos registros coletados pelo historiador Jovam Vilela da Silva: 1719 – Forquilha ou Arraial de N. S. da Penha de França. 1722 – Lavras do Sutil (antigo taque do Arnesto), riacho Prainha. 1724 – Arraial de N. Senhora da Conceição (uma légua de Cuiabá). - Arraial do Ribeirão (meia légua de Cuiabá). - Arraial do Jacey (3 a 4 léguas do Coxipó). - Lavra do Motuca (córrego motuca, acima do Jocey). - Porto Geral (meia légua da vila). - Porto do Boralho (Rio Cuiabá) acima). 1725 – Fazenda de Camapoã (varaduro entre os rios Pardo e Taquari – às margens de um ribeirão homônimo). 1728 – Minas do Alto Paraguai (atual Diamantino). 1730 – Arraial dos Cocaes (atual Livramento). 1734 – Lavras do Brumado (ribeirão do mesmo nome – início das Minas do Mato Grosso – Rios Galera, Sararé, afluentes do Guaporé). 1736 – Arraial de São Francisco Xavier (próximo ao rio Sararé). 1731 a 1740 – Arraial de Santa Anna, São Vicente, Nossa Senhora d Pilar. Ouro fino. Lavrinhas (entre os rios Alegre, Sararé e Galera, afluentes do rio Guaporé). 472 CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EdUFMT, 2004, p. 13. 195 1744 – Arraial de Santa Izabel. 1745 – Minas do Rio Arinos. - Minas de Corumbiara 1747 – Arraial de N. S. do Parto (no alto Paraguai). 1750 – Minas do Araés ou Amarante (no rio das Mortes). - Arraial de Santo Antônio (atual Leverger)”.473 Para além da vila do Cuiabá (a partir de 1727) e de todos esses arraiais e lavras, havia no vale do Rio Paraguai numerosos povos indígenas, com destaque aos Payaguás, Guaykurus, Bororos, Kayapós, Xavantes e Bakairis.474 Os primeiros povos viviam ao longo do Rio Paraguai e ocupavam uma extensão navegável de 1000 quilômetros, conquistada na força das armas. 475 Também eram chamados de “corso”, por serem nômades, viverem em canoas e sobreviverem de assaltos e recursos do pantanal. Felix Azara, assim os definia como povos de origem (...) puramente marinera, y dominaba privativamente La navegación del Rio Paraguay... su union com El Paraná... por esta razon llamaban entonces los guaranis à este Rio Paraguay, rio de los Payaguás, cuyo nombre alteraron algo los espagnoles”.476 Os Payaguás estavam divididos em dois grupos: os Siacua ou Agace, localizados ao sul, e os Sariguê, ao Norte. Estes últimos estabeleceram contatos tanto com moradores de Assunção (domínios espanhóis), como com forças luso-paulistas, no confronto direto, principalmente, nos caminhos que levavam às minas do Cuiabá.477 Os Guaykurus também habitavam as margens do rio Paraguai e, na parte ocidental, executavam as suas ações entre os rios Taquari, ao norte, e Jejuí, ao sul. Eram conhecidos principalmente pela domesticação e uso de cavalos. Já os Kayapós, povos do tronco 473 A lista de arraiais, lavras e povoamentos fornecida por Jovam Vilela, a partir da fundação do Arraial de Cuiabá em 1719, foi baseada em numerosas fontes coletadas junto à revistas do IHGB-MT, RAPMT, obras de Virgílio Correa, Joseph Barbosa de Sá e dados dispostos no AHU. Ver SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores: políticas de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995, pp. 45-46. 474 Como veremos adiante, a localização histórica destes dois últimos, Bakairis e Xavantes, estava mais próxima da Bacia do Araguaia, ao leste do atual Mato Grosso. Contudo, por existirem registros da atuação destes povos junto às povoações não-indígenas circunscritas aos limites do Cuiabá, os consideramos como atuantes no vale do Rio Paraguai. 475 Ver LUCÍDIO, João Antonio Botelho. ‘A Ocidente do imenso Brasil’: as conquistas dos rios Paraguai e Guaporé (1680-1750). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013 (tese), p. 93. 476 AZARA, d. Félix de. Descripción y Historia del Paraguay y del Rio de La Plata. Madrid, Imprenta de Sandriz, 1847, 2 v. v.I, p. 215 Apud CANAVARROS, Op. Cit., p. 249. 477 Idem Ibidem, p. 249. 196 lingüístico macro-jê, costumavam a freqüentar áreas entre o médio e alto rio Taquari, além de atuarem junto ao rio Paraná. Assaltavam companhias que vinham por estrada via-Goiás, vale do rio Pardo ou varadouro do Camapuã (ver Mapa 13), como também efetuaram ataques em áreas próximos à vila do Cuiabá, como o Arraial Velho, Carandá, Figueira e vizinhanças. Igualmente, eram conhecidos por serem excelentes marchadores e utilizarem bordunas. 478 Os Bororos ocupavam um vasto território a leste e oeste do Cuiabá (ver mapa 15).479 Apesar da impossibilidade de se projetar de maneira estática o território dos povos Bororos, por conta das constantes migrações anteriores à chegada dos não-indígenas na região, é possível precisar, a partir de registros etnohistóricos e etnográficos, que estiveram em uma área compreendida entre 15º e 20º graus de latitude Sul e 51º e 59º de longitude Oeste de Greenwich. No total, a extensão territorial poderia chegar a cerca de 400.000 Km². Segundo a pesquisadora Lisandra Zago, no interior deste quadro, estavam distribuídos da seguinte maneira: (...) Sua extensão, de mais de 400.000 Km², atingia a Bolívia, a Oeste, até as cabeceiras do Jauru e Cabaçal; pelo Rio Araguaia, de ambos os lados, desde as cabeceiras até as proximidades de Aruanã, onde se iniciava o território dos Karajá, estendendo-se por Mineiros e a antiga capital de Goiás, ao Leste; as cabeceiras dos rios Cuiabá e Paraguai, acompanhando o Rio das Mortes até a atual cidade de Nova Xavantina, ao Norte; as cabeceiras dos rios Miranda, Taquari, Coxim e Aquidauna, ao Sul.480 Estima-se que tais povos tenham habitado toda essa vastidão por cerca de 1000 anos. Associados ao tronco lingüístico Macro-jê, a vida dos povos Bororos era movida por um conjunto de atividades, que compreendia a pesca, caça, coleta, cultivo, artesanato, entre outros. O etnômio, em si, é uma atribuição de colonizadores, 481 e significa “pátio da aldeia”. Bordignon especula que a razão provável para se ter adotado esse etnômio se deve ao possível fato dos primeiros bandeirantes terem observado a contínua repetição da palavra nos cantos e, por isso, acabaram por utilizar a palavra para designá-los. Colbacchini, por sua vez, afirma que tudo indica que houve um mal-entendido na chegada dos bandeirantes: entravam nas 478 Idem Ibidem, pp.270-273. O conjunto de mapas que precisam a localização dos povos Bororos foi extraído da recente dissertação defendida por Lisandra Zago, na UFMS. Na mesma, poderemos notar a toda a localização junto aos rios, antigas e atuais aldeias Bororos. 480 ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Graduação em História, 2005, p. 36. 481 Ao longo da história os Bororos também foram denominados de diversas maneiras: Araés, Aracys,Bóe, Bororo da Campanha, Bororo do Cabaçal, Bororo Oriental ou Ocidental, Coxiponés, Coroados, Porrudos, entre outros. Ver ZAGO, Ibidem, p. 24. 479 197 habitações indígenas e eles apontavam para o pátio, repetindo sucessivamente “bororo”, recomendando que ficassem do lado de fora. 482 A partir dos primeiros contatos com bandeirantes no início do século XVIII, os Bororos passariam a ser divididos em Orientais e Ocidentais, de modo que os primeiros seriam aqueles que estariam localizados em ambas as margens do Rio Cuiabá, rios São Lourenço, Piquiri, Taquari, Alto Rio Araguaia, Rio Garças e Rio Manso ou das Mortes. Os Bororos ocidentais, por sua feita, estavam fixados a Oeste e Leste do Rio Paraguai, do Rio Cabaçal à região das grandes lagoas (razão pela qual os que viviam nessa região passaram a ser conhecidos como Bororo Cabaçal). Segundo Zago: Viviam às margens dos rios Cabaçal e Jauru, afluentes Rio Paraguai, e habitavam as planícies do Alto Paraguai, ao norte da foz do rio Cuiabá, até a altura da atual cidade boliviana de San Mathias, a região das atuais cidades de Cáceres, Poconé e Barra do Bugres.483 Os Bakairis viviam a leste do Cuiabá (ver mapas 16 e 17) e eram falantes da língua Karib. A partir de relatos orais coletados, a antropóloga Edir Pina de Barros identificou constantes migrações e conflitos destes com os povos Mundurukus, Nambikwaras, Tapayunas, Bororos, Suyas, Parecis, Kayapós, “Canoeiros” e Kayabis.484 Estes últimos, os mais temidos, eram classificados por Bakairis como “Otonoli” e “Turi”. Os primeiros viviam na região conhecida como “Sawâpa”485 e os segundos vinham de longe para atacá-los, usando pintura facial preta de traço contínuo que ia da extremidade da boca até as orelhas. Tais conflitos acabaram por causar uma dispersão entre o Alto Xingu e o Paranatinga – apenas uma parte dos que rumaram para o Paranatinga chegou à cabeceira do rio Arinos. Assim, os povos que marcharam para o Alto Xingu passaram a ser conhecidos por “iduodano” (os da “mata”) e “sanadwarê” (os do campo) designavam o segundo grupo. Respectivamente, na classificação de Steinen, seriam os “Bakairis Orientais” e os “Ocidentais”. 482 486 Esse primeiro COLBACCHINI, A. & VENTURELI, C. Os Boróros Orientais: Orarimodogue do Planalto Oriental de Mato Grosso. Campo Grande: MSMT, 1942; BORDIGNON, Mário. Os Bororos na História d Centro Oeste brasileiro (1716-1086). Campo Grande: Missão Salesiana de Mato Grosso/CIMI, 1986; ver também a discussão acerca do etnômio Bororo a partir de estudos etnográficos, em ZAGO, Op. Cit., pp. 24-28. 483 Idem Ibidem, p. 43. 484 BARROS, Edir Pina de. Os filhos do sol: história e cosmologia na organização social de um povo Karib: Os Kurâ-Bakairi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. 485 O “Sawapâ” era um Salto, que segundo Edir Pina de Barros, estava localizada perto da confluência entre o rio Verde com o Paranatinga. Ibidem, p. 52. 486 Adiante observaremos algumas situações de contatos entre populações não-indígenas e Bakairis. Pela própria localização, temos razões para crer que se tratavam dos “Bakairis Ocidentais”. 198 grupo permaneceu desconhecido por não-indígenas até o final do século XIX, quando foram realizadas expedições nos afluentes do Xingu. 487 No presente capítulo, também vislumbraremos a presença de Xavantes na região. Estes, que faziam parte do grupo Akuen,488 viveram por séculos no cerrado do centro-oeste, ocupando uma ampla área que poderia se estender, ao longo de sucessivas migrações, entre os atuais estados de Goiás, Minas Gerais, Tocantins e Mato Grosso. As primeiras notícias que se registrariam sobre tais povos entre brancos datam de meados do século XVIII, e apontavam sua localização entre os rios Araguaia e Tocantins. Em função de epidemias de sarampo que os havia acometido durante o século XIX e da constante violência que vivenciavam nos contatos com brancos junto a tentativas de aldeamento,489 passaram a migrar gradualmente para o atual Mato-Grosso, atravessando o Rio Araguaia. Entre o final do século XVIII e século XIX, a partir da saída da “Aldeia Pedro III” e criações sucessivas de aldeias Xavantes – Duaró, Maratobré, Wededze e Tsõrepré –, tal fluxo migratório se faz perceptível, como podemos observar no Mapa 18. No que diz respeito ao vale do rio Guaporé, do lado português, destacamos os povoamentos luso-sertanistas surgidos em torno de Vila Bela da Santíssima Trindade e o espaço ocupado por indígenas Pareci. Vila Bela, edificada em 1752 (portanto, após a criação da Capitania do Mato Grosso, em 1748), estava localizada numa região conhecida como Mato Grosso, ou Alto Guaporé. Por estar mais próxima das possessões espanholas (missões dos Mojos e Chiquitos e Santa Cruz de La Sierra) e pelas possibilidades de navegação junto aos rios Guaporé, Mamoré e Madeira, foi construída para ser a capital da recém-criada Capitania. 490 A região do Mato Grosso, em si, era identificada como área florestada, com terrenos alagados boa parte do ano. Possivelmente o termo teria se originado durante o processo que levou cada vez mais sertanistas, após terem se estabelecido em Cuiabá, a avançarem terra adentro atrás de ouro e indígena: no momento em que se encontraram com “matos virgens de 487 BARROS, Ibidem, p. 59. O grupo Akuen é formado por indígenas Xavante, Xerente, Xacriabá e Acroá. Ver GOMIDE, Maria Lucia Cereda. Território no mundo A’uwe Xavante. Disponível em <http://confins.revues.org/6888?lang=pt#ftn1>. Acessado n dia 13 de setembro de 2014. 489 Em 1784, na tentativa de pacificá-los, as autoridades portuguesas criaram o Aldeamento Pedro III, cuja maior população era formada por Xavante. 490 PRESOTTI, Thereza Martha. Na trilha das águas: Índios e natureza na conquista colonial do centro da América do Sul – sertões e minas do Cuiabá e Mato Grosso (século XVIII). Brasília: Universidade de Brasília – Departamento de História, 2008 (tese). 488 199 arvoredo muito elevado e corpulento”. Passariam, então, a chamar a região por Mato Grosso e, assim, acabou se designando a margem oriental do rio Guaporé.491 Conforme podemos observar no Mapa 19, a ocupação não-indígena da região já havia se iniciado ainda na década de 1730, com os Arraiais de São Francisco, Ouro Fino e Pilar. Igualmente, após a fundação de Vila Bela, se seguiram a edificação dos Fortes Nossa Senhora da Conceição, Príncipe da Beira e Casalvasco. Os povos Parecis, por sua vez, habitavam, como já tivemos oportunidade de conferir no capítulo anterior, a região noroeste do atual estado de Mato Grosso, portanto, ao lado das consideradas possessões portuguesas, especificamente na Chapada dos Pareci. Entre as características marcantes destes povos, destacava-se a grande importância conferida ao território para o grupo, amparada no próprio mito fundador dos povos Parecis, no qual o homem teria surgido da terra, em uma localidade conhecida como “Ponte de Pedra”, brotando por suas fendas para o rio Sucuri-Winã (Sucuruína, tribuário do rio Arinos). Os subgrupos parecis seriam originários das relações entre os irmãos e irmãs surgidos da terra.492 No vale do rio Guaporé, no chamado oriente boliviano,493 ainda estavam as missões jesuítas dos Chiquitos e Mojos, situadas junto às possessões espanholas (ver mapa 20). As primeiras foram fundadas entre os anos de 1690 e 1767 e chegaram a totalizar 11 missões, situavam-se no altiplano divisor entre as bacias amazônica e platina; as segundas, que entre os anos de 1680 e 1767 chegaram à soma de 25 reduções, postavam-se ao longo do Mamoré e em afluentes dos rios Beni e Guaporé. 494 De maneira geral as missões chiquitanas eram compostas pelos pueblos de San Javier, Concepción, San Miguel, San Rafael, San José, San Juan Bautista, San Ignacio Zambuco, San 491 ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de (orgs.). A terra da conquista: a história do Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003, p. 4042. 492 ARRUZZO, Roberta Carvalho. Construindo e desfazendo territórios: as relações territoriais entre os Paresi e os não-índios na segunda metade do século XX. In: XII Colóquio Internacional de Geocrítica. Disponível em < http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/08-R-Carvalho.pdf>. Acessado no dia 12 de setembro de 2014. 493 Alcides Pareja Moreno, assim define o “Oriente Boliviano”: “(...)Se conoce con el nombre de Oriente Boliviano una amplia zona de la República de Bolivia, que se extiende desde las ultimas estribaciones de la Cordillera de Los Andes, hacia el Este, hasta la región del Mato Grosso en el Brasil; y desde los ríos Madera y Abuná, en el Norte, hasta las llanuras del Chaco Boreal em el Sur. Ocupa los actuales departamentos de Pando, Beni y Santa Cruz y parte do La Paz y Cochabamba más de 50% del territorio nacional”. Apud LUCÍDIO, Op. Cit, p. 28. 494 Ver LUCÍDIO (2013), especialmente o capítulo 4. LUCÍDIO, Op. Cit., p. 15; Para uma visão panorâmica, acerca da localização do oeste brasileiro para com as possessões espanholas, ver o capítulo 1 da dissertação de LORDELO, Op. Cit. 200 Ignacio de Chiquitos, Santiago, Santa Ana e Santo Corazón. No que diz respeito aos Mojos, que estavam divididos em três áreas – rio Mamoré, Pampas e Baure –, existiam as seguintes missões: Nuestra Senhora de Loreto, Trinidad, San Francisco Javier, S. José de Chiquitos, San Miguel 1, San Pedro, Santa Rosa 1, Exaltación, Santa Ana, Patrocinio de Nª Sª, San Ignacio, San José, San Francisco de Borja, San Luis, San Pablo, Reys, Concepción, San Joaquin, San Juan Bautista, San Martin, Magdalena, San Miguel 2, San Nicolás, Santa Rosa 2 e San Simón. 495 Assim como as missões jesuítas dos Chiquitanos e Mojos, ao lado das possessões espanholas, Santa Cruz de La Sierra também teve grande participação no cotidiano dos moradores do oeste brasileiro, uma vez que sempre apareceria como um dos principais destinos dos cativos fugidos das minas mato-grossenses. A cidade, fundada em 1561 pelo espanhol Ñuflo Chávez que havia partido de Assunção, foi subordinada politicamente ao vicereinado do Peru até 1776, quando a partir desta data passou a compor o recém-criado ViceReinado de La Plata. No plano da justiça, esteve vinculada à Audiência de Charcas e, no plano religioso, ao Arcebispado e Província jesuítica do Peru, em lima. Santa Cruz de La Sierra era o ponto mais interior das conquistas hispânicas e ligava o chamado “Alto do Peru” (atual Bolívia) à planície amazônica e pantanal. Em função das dificuldades encontradas no local inicialmente escolhido, após 30 anos, a localização da cidade se modificaria para proximidades do rio Piraí, onde estava facilitado o trânsito para La Plata, Potossí e Lima. 496 Diante das tantas territorialidades dispostas ao longo dos vales dos rios Paraguai e Guaporé, como poderemos observar no presente capítulo, a evasão do sistema escravista poderia significar um imenso horizonte de possibilidades e re-começos, em que principalmente aqueles cativos trazidos da África deveriam lançar mão de todos os meios possíveis para sobrevivência, adaptação e confrontação com o “Outro”. A sua identidade nesse contexto, em vista do constante movimento e em nome de uma vida livre do cativeiro, estaria sempre disponível para ser negociada ou reconstruída. 495 O mapa fornecido por Lucídio, com datas de abertura e fechamento das missões, e dividido por áreas, nos permite ter uma dimensão panorâmica da atuação jesuíta no oriente boliviano junto aos Mojos. LUCÍDIO, Op, Cit,, p. 196. Sobre as missões dos Chiquitos e Mojos, ver também BLOCK, David. La cultura reducionall de los llanos de Mojos. Tradução de Joseph Barnadas. Sucre, Bolivia, 1997; JUSTINIANO, Oscar Tonelli. Reseña histórica social y econômica de La Chiquitania. Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, 2004; MEIRELES, Op. Cit. 496 Sobre a conquista do Oriente Boliviano, via-caráter civil e religioso (atuação jesuítica) ver LUCÍDIO, Op. Cit, pp. 28-35. 201 4.1. As permanentes e inevitáveis relações entre cativos e indígenas: entre as guerras e assimilações O cativeiro, para o escravo negro encaminhado para fronteira do Império Português, poderia significar uma vida exposta aos mais diferentes perigos e infelicidades, desde a comum violência inerente à escravidão até a morte por fome. Se as condições de vida poderiam ser de penúria para o homem branco sertanista que estivera na região desde a descoberta das minas em Cuiabá, sem dúvidas, para o escravo, eram muito mais agravantes497 ; ainda mais se pensarmos a situação vulnerável em que se encontravam quando tinham diante de si, na condição de cativos, homens indígenas em situação conflituosa. Tais contextos o colocavam diante de uma dupla resistência: ao homem branco que o mantinha sob cativeiro e, analogamente, aos indígenas, que indistintamente o tomavam como o inimigo a ser combatido ou, no caso dos Payaguás, como elemento útil para a própria preservação, uma vez que posteriormente comerciavam os bens saqueados498 com outras nações indígenas e hispanocriollos de Assunção. 499 A luta travada pelo cativo Sebastião em 1733, da nação Benguela, contribui para considerarmos a situação desconfortável em que escravos poderiam se ver diante de emboscadas. Este era trazido juntamente com um grupo de escravos por uma monção de 50 canoas liderada por Jozé Cardoso Pimentel. No momento em que a monção passou a navegar pelo Pantanal e chegou a um sítio chamado Carandá, foi surpreendida por um ataque fulminante de indígenas Payaguás. Apesar da prolongada resistência, acabou não resistindo ao 497 Logo nas primeiras páginas dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá é narrada a situação de penúria em que se encontravam os primeiros moradores das minas de Cuiabá, a ponto de sertanistas serem obrigados a trocar cativos por alimento: “(...) Chegaram as gentes de povoado este anno com as fazendas podres, pois não sabiam ainda toldar as canoas; morreram á fome muitos pelo caminho, faltou o milho em toda esta povoação, as gente vivendo d montaria; não faltava quem desse um negro por quatro alqueires de milho para remir as vidas e pelo não ver expirar á fome, que todas as horas se viam ir a enterrar, principalmente dos que de novo chegaram de povoado”. Ver SUZUKI , Op. Cit., p. 51. 498 O que incluía os cativos que conseguissem capturar nas incursões. Sobre este tema, no capítulo que se segue poderemos vislumbrar casos de escravos negros tomados por indígenas Payaguás após ataques, para serem negociados noutras ocasiões com moradores de Assunção, na América Espanhola. Ou seja, poderiam ser percebidos, a depender da nação indígena, como inimigos, ou na qualidade de “moeda de troca”. 499 Aqui chamamos a atenção para as recentes considerações de João Antônio Botelho Lucídio, acerca do possível sentido da guerra para os Payaguás: ao contrário do que convencionalmente é aceito, de que os seus ataques pudessem representar a defesa do território ou expulsão dos inimigos, o autor postula, em vista dos acordos temporários de paz para troca de prisioneiros por mercadorias que subsequentemente trocavam com outras nações indígenas, a guerra pudesse ser uma maneira de incrementar e preservar a própria sobrevivência. Assim, o inimigo poderia ser útil, desejado e necessário. Ver LUCÍDIO, Op. Cit.; É igualmente verdade que nalguns casos escravos negros foram tomados por indígenas, após ataques, para serem negociados noutras ocasiões, ou seja, poderia ser observados por indígenas da região como “moeda de troca” ou unidade monetária. No capítulo que se segue, poderemos observar a atuação de indígenas Payaguás no comércio de cativos capturados na América Portuguesa, junto aos moradores de Assunção, América Espanhola. 202 ataque. Contudo, mesmo diante da queda inevitável, relataram quatro sobreviventes, Sebastião lutava bravamente: (...) Achou se no mesmo conflito hum negro por nome Sebastião de nação Benguella corpulento, e forçozo, peleijou este primeiro de sua canoa com hum varejão com tanta vantagem, que cada bordoada, que com elle dava, era hum inimigo morto e vendo que na canoa não esgremia a seo gosto, saltou para o campo, aonde deo que fazer a turba, que toda cahio sobre elle para o prenderem, e não matar, e querendo-o amarrar sacaram lhe o varejão das mãos, porem elle avanssando abrassos, a hum arancou a lingoa, e a outro torsseo o pescosso, que lhe pós a cara para as costas, thé que a sugeitarão, e levarão vivo com toda a mais companhia, sem que escapassem mais que quatro pessoaz, que por terra trouserão a noticia. 500 O relato da luta travada por Sebastião surpreende em vários pontos, como as estratégias adotadas para manter a peleja – vendo a impossibilidade de lutar junto à canoa, saltou para o campo – e a sua descomunal força, que foi capaz de arrancar a língua de um, torcer o pescoço de outro e avançar somente com o poder dos braços sobre o inimigo. Nota-se que Sebastião não se tratava de um cativo sem prática de luta e, possivelmente, já havia sido “iniciado” na prática militar. Como tantos outros, a documentação não informa o ano de entrada do cativo no Brasil, mas podemos conjecturar, com base no contexto maior que se apresentava, que muito possivelmente Sebastião tenha sido capturado no sertão de Benguela, em terras dos povos Ovimbundus e Imbangalas, local onde haviam os chamados “quilombos”, ou campos de iniciação, como observamos anteriormente. Muito provável que tenha sido posto em cativeiro no final da década de 1720 e trazido, posteriormente, para a América Portuguesa junto ao porto do Rio de Janeiro, encaminhado para São Paulo, que detinha o controle sobre quem entrava ou saía do Cuiabá,501 para finalmente ser enviado às minas recém-descobertas. Como tivemos oportunidade de expor antes, o sertão de Benguela (principalmente, nos entornos do Presídio de Caconda) enfrentava grande instabilidade na década de 1720, com a recorrência não somente de “guerras justas” para produção de cativos, como de guerras 500 501 SUZUKI , Op. Cit., p. 67. O historiador Jovam Vilela da Silva, ao investigar uma série de bandos e regulamentos publicados pela governança da Capitania de São Paulo nos idos das décadas de 1720 e 1730, constatou uma série de tentativas de controle do fluxo de habitantes para as minas de Cuiabá. Segundo o autor, nesse contexto foram criados vários registros que “(...) tinham a incumbência de controlar a migração pendular, mercadorias e ouro. Neles funcionava também um provedor que tinha a responsabilidade de gravar o número de indivíduos e de seus respectivos servos e escravos. As penas fixadas para quem fugisse do recenseamento e ou não declarasse pessoa livre ou forra nas comitivas foram estipuladas, em certo período, com multa de 40 oitavas de ouro. Essas listas censitárias eram anuais e divulgadas em todas as freguesias, nos locais mais públicos, ‘a fim de estimular o zelo dos fiscaes delatores dos indivíduos que omitissem os nomes de seus escravos’, podendo incorrer quem o fizesse a uma multa ‘de uma libra de ouro’ (128 oitavas)”. Ver SILVA, Op. Cit., pp. 36-37. 203 travadas entre sobas da região. 502 Aqueles que eram capturados ao longo dessa campanha, se “corpulentos”, como Sebastião, eram comercializados como escravos e enviados para o Novo Mundo. Não se sabe ao certo qual foi o destino de Sebastião, se foi morto em outra circunstância, comercializado por Payaguás posteriormente ou assimilado de alguma maneira pela sociedade que o capturara, mas certamente a luta que travara era motivada pela própria sobrevivência. Em todo caso, a documentação referente ao século XVIII, nas minas do Cuiabá e Mato Grosso, nos apresenta um universo repleto de situações similares, em que o cativo poderia se ver dentro de uma peleja tanto no caminho ao cativeiro como no próprio. Em 1725, por exemplo, os Annais do Senado de Cuiabá informam um poderoso ataque dos Payaguás, que resultou na ruína da monção capitaneada por Diego de Souza, com a morte de 600 pessoas que se dirigiam a Cuiabá em 20 canoas. Escaparam apenas um branco e um negro: (...) Vindo neste anno gentes de povoado para estas minas, capitaneando Diogo de Souza um troço de canoas, em conserva, em que trouxe bastantes suas, com muita fazenda e escravatura; foi acommettido do gentio Payaguá, junto a barra do Xanés, onde acabaram todos os que vinham na conserva, escapando um só branco e negro, que foram tomados por outras canoas que vinham atraz. O numero de canoas havia de ser vinte com o melhor de 600 pessoas (...).503 Pelo que dispõe a descrição, com exceção do negro que conseguiu escapar, toda a escravatura pereceu. Em 1731, os Annais do Senado de Cuiabá voltariam a informar a captura e morte de cativos junto aos ataques dos Payaguás. A primeira situação se passou em um ataque a um sítio chamado de “Arrayal Velho”, descrito como um local onde se achava muita gente fazendo pescaria. Na ofensiva, além das várias mortes, foram capturados tanto cativos como até mesmo homens brancos, como um certo Antonio Furtado, natural do Rio de Janeiro. 504 No mesmo ano, outro episódio ganharia as linhas dos Annais: um camarada, cujo nome não é informado, havia induzido cativos de Miguel Antonio de Soaveral e João Lopes Zedas à fuga, por meio de canoas. No caminho da evasão, fugitivos e aqueles que os perseguiam 502 Lembramos que no capítulo 2 desta tese, apresentamos uma situação de grande instabilidade na década de 1720 no sertão de Benguela, onde são aprisionados africanos e até mesmo os seus chefes políticos, para posterior comercialização com mercadores escravistas do Rio de Janeiro. Sobre a expansão da produção de cativos no reino de Angola e Benguela, ver Mapa 4. 503 SUZUKI , Op. Cit., p. 52. 504 Idem Ibidem, p. 65 [1731]. 204 foram surpreendidos por um ataque Payaguá e todos pereceram. Miguel Antonio perdeu 10 cativos e João Lopes Zedas tomou o prejuízo de 5. 505 Os ataques prosseguiriam ao longo do século XVIII e, em todas as situações, entre as vítimas, estariam contabilizados cativos negros que possivelmente estivessem mais vulneráveis, primeiro por estarem presos a ferros e, em segundo lugar, por ser proibida a posse de armas. Em 1743, por exemplo, observamos um bando publicado por Dom Luiz de Mascarenhas, governador da Capitania de São Paulo, que proibia a posse de armas para escravos sob a justificativa de que acabavam por causar desassossego, transtornos e desaforos aos moradores da Capitania, com pena de prisão. As armas em questão seriam as baetas, espingardas, facas, porretes, espadas, entre outras. É interessante registrar que a posse estava proibida não somente aos negros, mas se estendia a carijós, 506 bastardos e mulatos. Estes últimos, embora pudessem ser contabilizados no bojo da população escrava, 507 também poderiam aparecer como parte da população livre, como fica evidente no registro de um confronto travado entre um mulato que vinha da Capitania de São Paulo, juntamente com a sua mulher, e indígenas em 1736: Manoel Rodrigues do Prado mulato fusco natural da Villa de Pindaminhangaba da Capitania de S. Paulo a quem chamavão nesta Villa Manduasú, vinha este por pilloto de huma canoa com sua mulher tam bem mulata junto a si; cercou-os o Gentio entrou aos tiros com elles, carregando lhe a mulher as armas, e elle a fazer pontarias, que não errava com tanto exforço, valor e presteza, dando rizadas, e asenando aos infiéis que guegarem, que os atemorizou e fés a retirar, e postos elles em fuga, ainda mandou remar a canoa, e deo sobre elles matando a muitos. Era o mulato fusco corpulento, estremado em forças, e vallor,foi nestas Minas Capitam do Mato muitoz annos, e ultima mente morto por hum vil soldado, que nada valia508 Além de vir à Capitania na condição de livre e acompanhado da sua esposa, que durante a peleja carregou as armas, ainda se tornou Capitão do Mato e acabou por ser morto 505 Ibidem, p.65 [1731]. Carijó foram populações indígenas que habitaram a Capitania de São Paulo e outras localidades do sudeste, como a Comarca de Vila Rica, em Minas Gerais. Produtores de cerâmica, são associados à matriz lingüística macro-jê. A expressão também foi largamente utilizada para designar a miscigenação entre indígenas, negros e brancos, assumindo uma conotação aproximada ao “Caboclo”. Ver BARBOSA, Waldemar. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Itatiaia: Belo Horizonte, 1995; LOURES OLIVEIRA, A. P. P. Arqueologia e história indígena de Minas Gerais: os Carijós de Vila Rica. In: LOURES OLIVEIRA, A. P.P.; MONTEIRO OLIVEIRA, L. (org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais: Ouro Preto, Juiz de Fora: Ed. UFJF, pp. 155-164. 507 Ver Tabela 7 do capítulo anterior, são contabilizados 4 escravos mulatos na população cativa da Freguesia de Brotas em 1838. 508 SUZUKI , Op. Cit., p. 70 [1736]. 506 205 por um soldado. De qualquer maneira, provavelmente, se tal mulato estivesse numa condição análoga àquela que cativos eram trazidos desarmados, a sua história poderia ter outro final. Cativos, no escopo das relações conflituosas com indígenas, poderiam ocupar uma posição menos vulnerável, caso fossem recrutados para punição de indígenas junto às bandeiras. Em 1731, uma expedição militar foi organizada para atacar indígenas Payaguás. A campanha contou com imensa frota de guerra e entre os recrutados estavam brancos, pardos e pretos. A perseguição não foi exitosa, como se esperava, pois os Payaguás na fuga se aproximaram de aldeias cristãs na Província do Paraguai, e, temendo desrespeitar o regimento enviado pelo governador de respeito às fronteiras com a coroa espanhola, o cabo da armada ponderou e recuou. 509 Contudo, alguns indígenas foram capturados: (...) e tendo as o Brigadeiro Seguroz prendeo huns, que consigo trousse, e a outroz mandou cortar as mãos e orelhas, dizendo lhez, que se fosem mostrar aos seus cassiques, e aos Payogoas seoz amigoz. Feito isto voltarão dando afunção por acabada.510 No ano de 1734, a presença de cativos negros também ganharia lugar em outra bandeira, movida contra os mesmos Payaguás. Esta, mais estruturada que as anteriores, foi iniciada em agosto de 1733 no porto de Araritaguaba; partiu com 400 homens de guerra, chegando em Cuiabá em março de 1734, para dar início aos preparativos finais. É importante pautar no regimento de 1733 511 que, entre as suas principais justificativas, assumia a tarefa de desobstruir o caminho que ligava São Paulo às minas do Cuiabá. Alegava que os Payaguás atrapalhavam o trânsito das monções, causavam insegurança no Vale do Paraguai, roubavam, matavam e capturavam sertanistas e cativos, além de causarem o despovoamento da região. Nos parágrafos que detalhavam a organização da bandeira, vários pontos chamam a atenção, a começar pelo §8 que afirmava que todos aqueles encontrados ao longo do caminho da bandeira deveriam ser aprisionados e transformados em cativos por quem participasse da expedição, com a destruição subseqüente das suas aldeias. O §11, por sua vez, menciona o nome de outros personagens que obstruíam o caminho das monções e causavam problemas, apesar da primazia que deveria se dar à destruição dos Payaguás: O Gentio que se deve dar guerra He todo os que infesta os caminhos e minas do Cuyaba, pois em todo elle extinçao as suas estençao e roubos, sendo os primeyos os Cayapos, que tem as suas aldeyas de outra parte do Rio grande 509 LUCÍDIO, Op. Cit., p. 107. SUZUKI , Op. Cit., p. 65. 511 APMT, Manuscrito, Estante 1, C-02, 30 de agosto de 1733. 510 206 defronte da Barra que faz o Rio Tiete e por ser de(sic) este gentio chega a Camapua e outras partes e por não demorar a viagem da tropa e monção se deve reservar a guerra q se (sic) fazer para afim castigando-fe em primeyro lugar os Payaguases e todos os feus confederados, que senhorio o Rio Paraguay, passagem principal das nossas tropas e destridos (sic) inteiramente se deve continuar a guerra entre os mais gentios que infestam as minas do Cuyaba e seu caminho a que chamao Bororos dos morros pelas mortes que tem feito aos moradores das dittas minas (...) [grifo nosso]512 Pelo que consta nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, a bandeira partiu com 28 canoas de guerra, 80 de bagagem, 3 balsas-casas e 842 homens, entre brancos, pardos e negros, divididos em 3 regimentos.513 O saldo final foi avassalador: 266 indígenas capturados e repartidos enquanto cativos e 600 mortes. Além da possibilidade de serem utilizados em bandeiras contra indígenas, cativos também poderiam ser recrutados para engrossarem as fileiras militares para proteção da fronteira, contra possíveis ameaças espanholas. A constante solicitude do morador Jozé Paes Falcão demonstra tal situação. Ele chegou a armar os seus escravos em duas ocasiões, para socorrer a fronteira da coroa portuguesa. Na primeira, em 1763, armou 30 homens, sendo 20 cativos considerados os melhores, conforme registra os Anais do Senado de Cuiabá: (...) armou de todas as armas, e aprontou de tudo o necessário a trinta homens, entre os quaes se compreehendião vinte escravos dos melhores, mais alentados, e rezolutos, e debaixo da direcção de hum cabo todo o tempo que durasse a guerra, mas todo o mais que bem lhe parecesse, o que cm effeito se efectuou chegando todos a salvamento da dita Fortaleza, de onde agradecço o mesmo General em seo nome, e de sSua Magestade por carta de 3 de outubro de 1763.514 No ano de 1766, o mesmo morador voltaria a socorrer a Capitania, dessa vez, com 40 soldados, sendo 24 pretos. Nos Anais, afirma-se que chegou à Vila Bela no dia 4 de maio daquele ano, para socorrer a cidade dos possíveis ataques espanhóis. 515 Jozé Paes Falcão vivia nas lavras dos Cocaes, que estavam a 5 léguas além do rio Cuiabá. Decerto, a sua capacidade de mobilização de cativos para proteção da fronteira estava atrelada à sua fama de conseguir extrair grandes “cabedaes de ouro” das suas minas. Ao retornarmos as nossas atenções às incursões Payaguás, ao contrário do que se defendia após a bandeira de 1734, que afirmam que haviam sido extintos, em 1736, voltam a 512 Idem Ibidem, §11. Na narrativa dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, afirma-se que até padres se somaram à bandeira, para rezarem missas dentro das balsas. SUZUKI , Op. Cit.,, p. 68. 514 Idem Ibidem, pp.93-94 [1763]. 515 Idem Ibidem. 513 207 aparecer com novos ataques e, nas décadas subsequentes, realizam novas ações que também levariam à morte de cativos. Os Kayapós, mencionados no regimento para o ataque aos Payaguás na bandeira de 1734, de forma semelhante, ganhariam cada vez mais espaço no escopo das preocupações de sertanistas. No Regimento Geral dos Governadores, escrito em janeiro de 1749 e encaminhado a Dom Rolim de Moura, além de mencionar os contínuos problemas que os Payaguás continuavam a causar (no §16), os Kayapós eram descritos como inimigos odiosos ao longo do §17: Em toda o vasto Pais que medeia entre o Paraguai e o Paraná, ou Rio Grande se acha vivendo o Gentio Caiapó que He o mais bárbaro e alheio de toda a cultura e civilidade que ate agora se descobrio no Brazil. As continuas ostiliddes com que infesta os caminhos de S. Paulo para Goias, e para a Cuiabá, e até a mesma povoações do Goias, me obrigarão a mandar ultimamente se deliberasse em huma junta de Missoes no Rio de Janeiro se devia fazer lhe guerra e dispor os meios com que se haveria de executar o caso que se julgasse indispensável.516 No mesmo regimento, apareceria ainda uma menção aos Parecis, que, ao contrário dos Payaguás, Kayapós e demais povos que atacavam às monções que rumavam ao extremo-oeste do Império Lusitano, eram descritos como povos úteis à coroa, principalmente no que diz respeito ao povoamento da fronteira. O documento apresentava uma crítica ao proceder dos sertanistas para com estes povos: (...) Nas terras que medeiao entre o Cuiabá e o Mato Grosso se encontrão há alguns annos a nação dos Indios Parecis mui próprios para domesticarse, e com muitos princípios de Civilidade e outras naçoens de que poderiao teser formado aldeãs numerozas e uteis, e com muito desprazer soube que os sertanejos do Cuiabá não só lhes destruirão as povoações, mas quase totalmente tem dissipado os mesmos Indios com tratamentos indignos de se praticarem por homens Christaos. Por serviço de Deos e meu, e pela obrigação da irmandade, deveis por o maior cuidado em que não se tornem a cometer semelhantes desordens, castigando severamente os autores delas, e encarregando aos Ministros que pela sua parte e mande, reprimao vigorosamente tudo o que neste particular se houver feito, ou ao diante se fizer contra as repetidas ordens que tem manado neste matéria. 517 Ou seja, a depender dos objetivos e disposição das populações indígenas que se encontravam na região para com a movimentação luso-paulista (sobretudo, comercial), haviam dois caminhos: a espada ou a domesticação. No caso dos Parecis, por uma 516 517 APMT, Manuscritos, Estante 1, C-03, 1749, Idem Ibidem, §18. 208 necessidade de proteção da fronteira, estava reservado o aldeamento.518 Por essa razão, o documento apresentava críticas à escravidão de tais povos, que desde a década de 1730 eram comercializados às “escâncaras” na praça do Cuiabá. 519 Os Bororos também figurariam entre aqueles que obstacularizavam o estabelecimento luso-paulista na região, apesar da oscilação de estratégias para com estes povos. 520 Foram atacados tanto pela necessidade de mão-de-obra como pelos assaltos praticados. Assim como os Parecis, também foram comercializados como escravos. É o que afirma Virgílio Noya Pinto: (...) a preação de índios (...) existiu paralela à mineração. O trabalho nas lavras cuiabanas diferiu, na paisagem humana, de suas congêneres das Gerais e dos Goiases, pela presença índia. A ‘Relação’ de J. Barbosa de Sá fornece informações sobre a existência de escravidão índia naquelas minas... Em 1727 diz que elementos do Cuiabá ‘botaram-se para o sertão do gentio Bororo, outros para os Parecis, que então se descobriram de onde traziam indivíduos de uma e de outra nação que vendiam como escravos (...).521 Entretanto, apesar das bandeiras organizadas contra Bororos, apresamento e comercialização, em 1737, já haveria polêmicas acerca das ações movidas contra estes povos, conforme observamos na carta do Ouvidor da Comarca do Cuiabá, João Gonçalves Pereira, que admitia a escravidão de Payaguás e Kayapós, mas condenava o apresamento dos Bororos: (...) Consta-me que no decurso da referida viagem aprisionou o dito capitão Antonio de Pinho Azevedo e seus camaradas bastante gentio Bororo, e que por justificação que fizeram nos Goiases de ser o dito gentio guerreiro e confederado Caiapó se julgaram cativos todos os que aprisionaram e com efeito vi um bando do Conde de Sarzedas governador desta capitania em que se declara o dito gentio cativo mas os fundamentos dele são, tão leves; como é falsa toda e qualquer justificação que fizessem de ser o dito gentio Bororo, ou outro qualquer confederado com o Caiapó, e na dita comitiva foram vários paulistas que todo o seu empenho é aprisionar e cativar gentio, e julgariam como interessados e atendendo a que tudo isto foi uma malsinada falsidade e tão prejudicial como tirar a liberdade natural de Deus deu a este índios e aqui nestes sertões, não há gentio que mereça cativeiro mais que os Paiaguá e Caiapó que por tal está declarada uma e outra nação conforme as 518 É preciso também considerar o ponto de vista Pareci no interior dos jogos de interesses, assim como as distintas estratégias aplicadas de acordo com os seus respectivos interesses. Para uma leitura crítica da agência indígena entre os vales do Paraguai e Guaporé, ver a crítica de Lucídio a Uacury Bastos, que intentou a compreensão da presença portuguesa e espanhola e, principalmente, a atuação indígena no vale do Paraguai, que acabou por bloquear a expansão da colonização na região. Segundo Lucídio, o autor ao atribuir o sucesso da presença portuguesa na região, em função da “habilidade de cooptação”, teria esvaziado o sentido e diferentes estratégias indígenas durante o processo. LUCÍDIO, Op. Cit., p.238 e ss. 519 Sobre o tom diferenciado para com os Parecis, ver CANAVARROS, Op. Cit., p. 269. 520 Lembramos ao leitor acerca das incursões contra indígenas Bororos nos anos de 1779 e 1781 no Rio Porrudos, descritos aqui nesta tese como “capital inimigo”, no capítulo 3, seção 3.1. 521 PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1979, p. 72. 209 ordens de Vossa Majestade resolvi atalhar pelo modo possível o pestífero e antigo costume do cativeiro do gentio mandando fazer um edital que modere o dito bando porque com a publicação dele porá este cativeiro no maior auge (...) [grifo nosso]522 A posição para com os Bororos, durante o século XVIII, continuaria a se modificar, de acordo com numerosas variáveis. Entre elas, a falta de fileiras militares para submissão violenta de todos os povos que se colocavam no caminho da comunicação entre as minas do Cuiabá e Mato Grosso (a partir de 1748); a necessidade de suprir mão-de-obra em função das dificuldades de se levar escravos negros à região; ou mesmo pela disposição dos Bororos, que ora se colocavam como inimigos, ora ofereciam alianças. Em 12 de outubro de 1742, por exemplo, nota-se o estabelecimento de “alianças militares” com Bororos, quando o Coronel Antônio Pires de Campos obrigava ao Capitão-General de São Paulo, D. Luiz Mascarenhas, a lançar todos os meses os “seus Bororos” contra os Kayapós que habitavam os sertões de Goiás. 523 Em 1742, outra aliança militar, agora para o combate contra os indígenas Acroá, Xacri e outros que fustigavam mineiros ao norte de Goiás. 524 Já no ano de 1748, os Bororos acertam nova participação em campanhas contra Kayapós, com o coronel Antônio Pires de Campos, e ainda acertavam o próprio aldeamento. 525 A despeito dessa aproximação, até o final do século XVIII, ainda haveria notícia de ataques de Bororos aos sertanistas e aos seus cativos, juntamente com Payaguás e Kayapós. Somente no ano de 1771, os Anais do Senado de Cuiabá informam, no mês de março, a recorrência de dois ataques, nos dias 10 e 21; este último o mais poderoso, por levar à morte 44 indivíduos. A maioria das vítimas era parte da população cativa: (...) em dia 10 de março se vem não só no Rio Cuyabá abaixo na paragem chamada o Cruará, asaltados os seos habitantes do inimigo Payagoá, de quem tantas vezes temos falado, que prizionarão alguns escravos, e Indios que acharão, e consigo levarão, mas também na tarde do dia vinte e hum do mesmo mês, pouco antes de se por o sol, do Gentio Barbaro Cayapó ou Bororó como querem outros, sobre o eu diremos a seo tempo, na paragem chamada Lavras do Medico, distante desta Villa seis legoas, em cujo conflito forão mortos quarenta e quatro indivíduos a saber três brancos, e cujos 522 RAPMT, Carta do Ouvidor da Comarca de Cuiabá João Gonçalves Pereira, de 1º de setembro de 1737. Vol.1, N.1, março/agosto de 1982, p.45. Sobre a “ausência de justificativa” alegada pelo Ouvidor na citação, lembramos a contenda de 1727 em torno do presídio de Caconda, em que o Provedor da Fazenda Real acusava o governador de Benguela de não ter procedido legalmente no conflito. João Gonçalves Pereira, Ouvidor da comarca do Cuiabá, ao denunciar o apresamento dos Bororos, estaria com “El Rei na barriga”, ao desconsiderar as alianças e necessidades locais? 523 D.I. AESP, São Paulo, v. XIII, 1895, p. 259 Apud CANAVARROS, Op. Cit., p. 266. 524 Nesse caso, os Bororos recuaram na aliança, receiosos de não mais poderem retornar às terras de Cuiabá. Idem Ibidem, p. 266. 525 Segundo Canavarros, ao se comprometerem ao aldeamento, concediam vitória ao “sertanismo cuiabano”. Ibidem, p. 267. 210 nomes sam = Jozé Rodrigues de Almeida = Jozé Luis Francisco = e Francisco de Campos que suposto valerozos, não poderão rezisitir a este inopinado acazo, por ser de subido, e acharem se dezarmados, e 41 escravos, de diferentes donos, sendo delles o mais prejudicado Antonio Luis da Rocha, hoje Capitam mor destas minas, de quem forão oito alem de quatro feridos que escaparam, consta da devassa que se tirou com data de 26 de março de 1771 que se acha no Cartorio do Geral desta Villa.526 No relato, chama atenção a justificativa das mortes dos três brancos: ataque de “subido” e por se acharem “dezarmados”. A partir dessa descrição, podemos imaginar a circunstância vulnerável em que foram surpreendidos os 41 escravos que pereceram. Como não podiam portar armas, sempre estariam mais expostos à morte. Nota-se ainda que escaparam do ataque 4 escravos, mas feridos. Os Anais não informam detalhes das circunstâncias da fuga destes últimos. 527 Logo após o ataque, foi organizada uma expedição punitiva, ainda no dia seguinte. Ela partiu no encalço dos indígenas, contudo, não obteve êxito. Todavia, sucedidos alguns dias, chegara uma notícia sobre os possíveis rastros dos indígenas procurados, um grande cemitério formado por “caveiras”, possivelmente de quilombolas: (...) foi embora praticando todas as mais hostilidades, que costuma, e que matou na retirada muito mais gente porque passados alguns dias depois do sucesso, correo nesta Villa que em certa paragem se acharão muitas caveiras de gente, por onde se collige ser algum quilombo de negros fugidos, que matarão e destruirão.528 Esse episódio nos coloca diante de mais um aspecto dos contatos entre cativos e ameríndios na fronteira dos domínios lusitanos: mesmo para além da fronteira da sociedade escravista, agrupados e, em tese, mais protegidos, cativos poderiam ser atacados coletivamente, tanto por incursões constantes de Capitães do Mato529 como por populações indígenas. A sobrevivência de um quilombo, longe da sociedade escravista, no sertão do 526 527 SUZUKI , Op. Cit., p. 97. Tal vulnerabilidade pela ausência de armas voltará a aparecer em vários trechos da documentação consultada, como em 1776, em que um ataque de indígenas (não especifica a nação), além de dizimar o roceiro Antonio Vieira de Brito, famoso por ser aquele de maior tráfico no Rio Cuiabá, levou à morte 16 escravos. Entre as explicações que procuravam dar conta à tragédia, os Anais destacavam o fato do roceiro feitorava os seus escravos sem a presença de “camaradas armados”. Ver Idem Ibidem. 528 Idem Ibidem, p. 97. 529 Constantes bandos emitidos para regular a atividade dos Capitães do Mato. Mais adiante, na segunda seção deste capítulo, discorremos sobre o assunto. Em todo caso, vale acrescentar que a seguinte constância nos leva a pressupor que estes, os Capitães do Mato, tinha presença ativa nos sertões de Cuiabá e Mato Grosso, em vista da demanda por captura de escravos fugidos. 211 Cuiabá e Mato Grosso, portanto, dependeria da capacidade de defesa ou até mesmo da possível relação com as nações indígenas vizinhas, ou com a própria sociedade escravista. 530 Cerca de 30 anos após esse episódio, no ano de 1798, a história de um cativo capturado que vivia entre ameríndios nos levaria a outro quilombo destruído por indígenas. O cativo, pelo que consta nos Anais, era propriedade de Ignacio de Sam Paio Couto e havia fugido do seu senhor e se abrigado junto às terras dos Bacari. Em certa feita, no Engenho do Sargento Mor Antonio da Silva de Albuquerque, próximo ao Rio da Casca, foram vistos tais ameríndios nos arredores. Por temor de possíveis hostilidades, pressentidas por camaradas e escravos do engenho, de acordo com o documento, o grupo de indígenas foi atacado e, como resultado, conseguiram a prisão de um Bacari e um cativo negro fugido, que acompanhava o grupo. 531 Após dois anos, teríamos novas notícias desse cativo, que ainda se encontrava na prisão. Segundo o mesmo, haveria um grande quilombo no mesmo sertão onde fora preso – notícia confirmada por um índio “Chavante”. Tal notícia ocasionou a formação de uma bandeira, que seria liderada pelo Joze Luis Monteiro Salgado, tendo como guia o próprio cativo delator que, até então, estava na prisão, com a missão de capturar todos os fugitivos. 532 Os Anais não especificam a troco de que o cativo delatou outros que estavam fugidos e também não informa o que aconteceu com o mesmo após o desfecho da expedição, mas podemos supor que possivelmente fosse a própria liberdade. Aqui, podemos aventar questionamentos acerca da delação premiada: não se sentiria mais identificado com outros cativos que haviam fugido do sistema escravista? O contato e aceitação aos indígenas Bacari lhe causaram modificação na própria percepção de si? Ou, apenas desejava a liberdade e, para isso, se fosse preciso, utilizaria de todos os meios possíveis, incluindo a entrega ao cativeiro de outros escravos? A ausência de maiores informações sobre o seu destino nos limita as constatações mais amplas. Entretanto, certamente o contato e aceitação aos “Bacari” provavelmente deve ter impresso marcas na própria percepção de si, se partirmos do pressuposto de que toda formação identitária é um processo de hibridização ou, como diria Stuart Hall, um lugar de 530 No capítulo 5 uma análise dos Quilombos no sertão de Cuiabá e Mato Grosso. Possivelmente o Quilombo Grande perdurou por quase um século por estar localizado próximo aos Parecis, povos menos ofensivos que os Kayapós, Payaguás, etc. 531 Idem Ibidem, 1798, p. 157. 532 Idem Ibidem, 1800, p. 160. 212 constante revisão de referências, normas e valores, onde o antagonismo e ambivalência se fazem presentes em todo processo de tradução cultural (de uma para outra). 533 Tanto no caso deste cativo ser crioulo ou africano, ao transitar de uma sociedade para outra, se via em pleno processo de “tradução cultural” ou hibridação, o que implica dizer que estava em constante “re-significação de si”. Em outra instância, esse caso também demonstra que, a depender do território e nação indígena, o encontro poderia ser diferente, ou seja, a aceitação ou adesão ao outro em lugar do conflito. Vale notar que, no relato de 1800, a mesma nação indígena que aceitou o cativo aparece grafada como “Abacairi”, o que nos leva a aventar que estes eram os povos Bakairis, que ocupavam um território a leste do Cuiabá. Tais povos, apesar de se auto-denominarem “Kura”, que significa “nossa gente”, foram designados por “Bakairis” por não-índios, possivelmente por serem consumidores tradicionais de uma variante de mandioca, que levava a mesma designação. O primeiro registro de que se tem notícia é a menção de Antônio Pires de Campos aos mesmos, no século XVIII. 534 Em todo caso, o desfecho da expedição em busca dos quilombolas nos levaria novamente à notícia de uma nova devassa de indígenas contra cativos fugidos. Ao seguirem os rastros indicados pelo negro informante, depararam-se com um antigo acampamento em ruínas e supuseram que se tratava de mais um quilombo devassado por indígenas, no caso, os “Chavantes”.535 Então, para não retornarem sem ‘nada’, a bandeira se lançou contra os Abaicaris e Chavantes, considerados culpados, e levaram-nos para Cuiabá. Na capital, foram distribuídos entre moradores, para facilitar a “catequização”. 536 Contudo, a adaptação não se fez de maneira fácil aos Abaicaris, que estranharam alimentos e acabaram por desenvolver “dezinterias incuráveis”, o que ocasionou a morte de alguns. Se, principalmente nas décadas de 1720 e 1730, os Payaguás protagonizaram os ataques àqueles que se dirigiam às minas do Cuiabá, assim como a alta mortandade de cativos junto às monções que rumavam para a região, no último quartel do século XVIII, os Kayapós 533 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 52. 534 TUAKANE, Isabel Teresa Cristina. Na trilha das Pekobaym Guerreiras Kura-Bakairi: de mulheres árvores ao associativismo do Instituto Yukamaniru. Universidade de Brasília – Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), 2013 (dissertação), p. 20. 535 Certamente a grafia “chavante” se refere aos povos xavantes, que viviam entre o leste da Capitania de Mato Grosso e o oeste de Goiás. 536 Em vista da necessidade de mão-de-obra, que motivou inicialmente a busca de cativos aquilombados, o apresamento destes indígenas talvez tenha sido uma maneira de compensar os esforços e sanar provisoriamente o problema. 213 e Bororos aparecerão com frequência cada vez maior nos Anais do Senado de Cuiabá. Para se ter uma ideia ampla da mortandade de cativos, somente na década de 1770, pereceram 76 cativos, a maioria em ataques de emboscada, que dificilmente deixavam rastros.537 Se tais números conferem com a realidade que vivenciavam os moradores que habitavam Cuiabá no período, não surpreende o pânico na descrição dos ameríndios no período: “(...) Assim como aos febrecitantes, não há agoa que sacie, pois quanto mais bebem mais apetecem, assim paresse, devemos, considerar os nossos inimigos bárbaros, porque quanto mais matão, mais querem matar, e o preseguem a fazer”.538 Nota-se na descrição, além do pânico, um tom de preocupação. De qualquer maneira, o pesquisador deve se mostrar atento às possíveis “valorizações” dos números de ataques por parte de sertanistas que se encontravam na região, como estratégia para justificar recompensas e direitos a privilégios. Sobre esse ponto, ao analisar a documentação que narra as guerras contra os Payaguás, o historiador João Antônio Botelho Lucídio chama a atenção para as possíveis razões que poderiam justificar a “valoração” dos relatos: (...) Uma primeira hipótese é que defendiam suas vidas e patrimônio. Em segundo plano, entrariam questões de ordem política e projeção social. Basicamente seriam dois os tipos de ‘ganhos’: justificar muitas das medidas adotadas pelas instâncias governativas e administrativas do Cuiabá, às vezes contrárias as determinações de Lisboa; e, com propósitos similares, no plano das disputas internas, visavam legalizar a situação dos seus plantéis cativos de negros da terra. Era também oportunidade de requisitarem honras, patentes, cargos e outras mercês por serviços prestados junto à sua coroa.539 A despeito da verossimilhança dos números apresentados nas narrativas, os ataques prosseguiriam com mortes de cativos e subsequente apresamento de indígenas. Em 1773, um caso que vale menção. Naquele ano, ocorrera um ataque de indígenas que causara grande mortandade aos cativos negros de Antonio Ferreira Velho. Então, formou-se uma bandeira, que seria capitaneada por Pascoal Delgado Lobo e partiria para aplicação de castigo aos Bororos, a quem se atribuía a culpa. Ao desembarcar no Rio Porrudos, surpreenderam-nos e efetuaram uma grande prisão, com cerca de 80 indivíduos, entre homens, mulheres e crianças. Contudo, os Bororos não assumiram a autoria do ataque e acusaram os indígenas Kayapós. 540 537 Lembrar que na tabela elaborada pelo Capitão-General Luís de Sousa Coutinho, somente para 1771 foram mortos 65 cativos nos arredores do Cuiabá. Ver tabela 5. 538 SUZUKI , Anais do Senado da Câmara do Cuiabá, Op. Cit., p. 102. 539 LUCÍDIO, Op. Cit., p. 106. 540 SUZUKI , Op. Cit., p. 102 [1773]. 214 Novas bandeiras ainda seriam realizadas contra indígenas Bororos, como vimos anteriormente (1789 e 1781), e contra os Kayapós, com ataques e mortandade da população escrava; esses ataques estiveram presentes no imaginário e cotidiano da população local até o final do século XVIII. Em 1787, por exemplo, os Anais informam dois ataques. No primeiro, é relatada a morte de 3 cativos na roça de José Roza Cordeiro Leal, e os Kayapós apareciam como as principais suspeitas, em vista da área de atuação: “(...)que dese do sertão do Caminho de Goyases pela serra à planises que ficão entre ellas e o Rio Cuyaba (...)”. 541 O segundo ataque ocorreu no dia seguinte, com a morte de 5 pessoas, sendo 4 crianças entre as vítimas, pelo que dispõe a descrição dos Anais.542 Ainda na década de 1770, teríamos mais um poderoso ataque, que também levaria a população cativa à mortandade, por parte dos Guaykurus. Estes habitavam ambas as margens do Rio Paraguai. À esquerda, no lado ocidental ou espanhol, nos idos do século XVII, estavam à frente da cidade de Assunção, com a qual mantiveram contato, assim como também estabeleceram relações com habitantes da Província de Tucumán.543 Na parte oriental, a sua respectiva área de influência se dava entre os rios Taquari, ao norte, e Jejuí, ao sul.544 Conhecidos por utilizarem cavalos desde o século XVII, 545 eram poderosos inimigos na área em que estavam estabelecidos, e “(...) quando investiam, nada sobrava, principalmente se acompanhada de tropel de boiadas”. 546 Os Guaykurus eram conhecidos da população da região, principalmente pela memória do traumático episódio de 1740. Nessa ocasião, colonos tentaram aproximação, na organização de uma expedição que contou com 140 homens, 12 canoas de guerra e 6 de bagagem, armas, petrechos e fazendas para presentear-lhes, 547 além de um filho de um cacique aprisionado em emboscadas anteriores, para mediar a comunicação.548 A expedição já era objeto de discussões desde o ano de 1736 e fora financiada pelo Senado da Câmara, o 541 Idem Ibidem, p. 135. Ibidem. 543 Lucídio tece uma análise capilar dos primeiros contatos com estes povos, como foram percebidos por hispanocriollos e luso-paulistas, de ambos os lados do rio Paraguai. Ver especialmente capítulo 2 da tese LUCÍDIO, Op. Cit.,pp. 77-92. 544 Otávio Canavarros também discorre sobre a percepção lusitano-paulista dos Guaykurus. Ver CANAVARROS, Op. Cit., pp. 259-262. 545 Segundo Canavarros, em 1661, na migração no lado ocidental do Rio Paraguai, especificamente à frente de Assunção, para o norte, roubaram cavalos e éguas dos colonos que encontraram e assim tornaram-se cavaleiros. Idem Ibidem, p. 259. 546 Ibidem, p. 260. 547 Ibidem, p. 262. 548 LUCÍDIO, Op. Cit.,p. 91. 542 215 ouvidor João Gonçalves Pereira, Antônio de Almeida Lara e alguns comerciantes da vila. O desenrolar dessa história seria inesperado e trágico: Uma vez alcançado o “distrito dos Aicurús”, foi despachado o linguará e dois soldados para declarar as intenções do grupo. Por segurança, os demais membros aportaram numa ilha. O primeiro encontro entre o cabo da bandeira e o cacique Guaykuru foi animador, pois trocaram presentes, acordaram em fazer guerra aos Payaguá e negociar cavalos, e ainda “plantou-se ahy huma crus aclamouce em vozes altas: Viva EL Rey de Portugal”. Ao findar o dia de boa paz, recolheram-se a seus respectivos acampamentos. No dia seguinte, confiados e gananciosos, os membros da bandeira passaram à terra firme com as suas mercadorias e puseram-se a negociar com os Guaykurus, que, por seu lado, haviam urdido uma trama e, seduzindo os soldados com promessas de trazer cavalos, tomaram as armas que se achavam enterradas e “introu a matar nos nossos que andavaó com elles baralhados”. Os homens que ficaram na ilha dispararam a peça de artilharia, o que pôs os Guaykuru em fuga, deixando cinqüenta mortos entre os membros da expedição e, dos índios, cinco. Destroçada, a bandeira retornou a Cuiabá.549 O ataque do último quartel do século XVIII, propriamente dito, ocorreu no ano de 1778, por meio de uma emboscada que surpreendeu soldados que estavam desarmados. Na narrativa do episódio, ainda ficava evidente o trauma com os Guaykurus: (...) Estando assim nestes termos, e tendo a des armas, que havião levados os dês soldados que forão de guarda ao dito Ajudante postadas em terra, e cobertas por ordem do mesmo Ajudante, afim de que se capacitassem aquelles malévolos, que não desconfiavamos delles, e só apetecíamos a sua correspondência, e amizade, ao mesmo tempo, que elles nunca largarão das que uzão que consigo então tazião, neste tempo, em que mais que descuidados nos achavamoz das antigas traiçones daquelles cruéis, barbaroz, e diabólicos inimigos, chegão os lingoas que havião estado no Prezídio com o Commandante e immediatamente que elles aparecerão, como se fossem senhas destinados para o cazo, sem mais outra alguma cauza, repentina mente descarregarão aquelles péssimos, e infames trahidores toda a sua furioza ira contra nossos Soldados, que se achavão dezarmados, e entre elles, e em breves instantes matarão cicoenta e quatro Pessoas (...) [grifo nosso].550 Dos 54 mortos, 10 eram cativos. Após o ataque fulminante, degolaram uns, despiram outros e partiram apressadamente a cavalo, pelo que dispõe a narrativa dos Anais. Alguns anos depois, esse temor e trauma retrocederiam, principalmente com os acordos de paz da 549 550 Idem Ibidem, pp. 91-92. SUZUKI , Op. Cit., pp.111-112. 216 década de 1790. 551 No ano de 1800, por exemplo, consta o relato de uma visita ao Capitão da Vila do Cuiabá, por indígenas Guaykurus. 552 No interior desse quadro amplo que nos é apresentado tanto nos Anais como nas correspondências de Governadores e demais autoridades do período, em que são mencionados numerosos ataques e alta mortandade, de sertanistas e de escravos, a dúvida sobre a exatidão das mortes informadas nos leva a elucidarmos as próprias estratégias coloniais para dominação. E elas estariam alicerçadas na construção do “medo” do Outro. Essa dúvida nos direciona também para a análise da própria tessitura do discurso colonial, fundamentada basicamente na produção de conhecimento sobre o colonizador e colonizado, no reconhecimento e posterior repúdio às diferenças de ordem racial, culturais e históricas. 553 Tal construção do discurso colonial, de acordo com o diaspórico indiano Homi Bhabha, opera principalmente por “fixidez” e “estereotipação”. A fixidez consiste em um signo, que conota ordem imutável de desordem e degeneração ou repetição demoníaca. O estereótipo, por sua vez, como estratégia discursiva, opera pelo estabelecimento de ambivalências (diferenças), na formação de marginalizações para produção de efeitos de verdade acerca do outro. O fato deste último operar por ambivalência garante-lhe a sua repetição em diferentes conjunturas históricas e discursivas mutantes.554 Retomando as descrições dos indígenas, nos Anais e Correspondências de Governadores acima mencionados, que se lançavam contra as monções e povoados recém-estabelecidos, principalmente no século XVIII, observamos justamente um Outro nativo que, caso não se permitisse alianças, submissão ou aldeamentos, poderia ser tomado ou estereotipado fixamente como “bárbaro”, “selvagem” e degenerado. A despeito das especificidades históricas do período analisado, entre o século XVIII e primeiras décadas do XIX, o Outro que não se curvasse deveria ou poderia ser eliminado. As menções aos Payaguás, Kayapós, Bororos, Guaykurus, Bakairis e Xavantes nas décadas de 1730, 1740, 1770.1780 e 1790 se dão nesse sentido. 551 Ver FERREIRA, Alexandre Rodrigues. “Sobre o gentio Guaikuru”. In: Viagem filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Brasília: C.F.C., 1974; CORRÊA FILHO, Virgilio. As raias de Mato Grosso (Fronteira Meridional). São Paulo, 1924, 4vol., v. 1, p. 131; CANAVARROS, Op. Cit.,p. 262. 552 SUZUKI , Op. Cit., p. 166. 553 Aqui nos valemos das reflexões do diaspórico indiano Homi Bhabha, da obra “Locais da Cultura”, especialmente no seu capítulo III, intitulado “A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso”, em que o mesmo tece uma análise da construção do discurso colonial à luz das obras de Franz Fanon. BHABHA, Op. Cit.,pp. 105-127. 554 Idem Ibidem, pp.105-106. 217 Contudo, é preciso elucidar a própria característica paradoxal do discurso colonial: ao mesmo tempo em que se afirma no Outro uma “cisão subversora”, considera-o como passível de recuperação no interior de estratégias de controle social e político. Apesar da degeneração, é possível recuperar esse Outro. Nesses termos, são percebidos, em diferentes contextos, o indígena insubmisso, o próprio negro quilombola ou aquele africano que se recusa às alianças com europeus ainda na África, como pudemos observar no primeiro capítulo desta tese. Bhabha observa esse tratamento paradoxal do negro no discurso colonial: O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encarnação da sexualidade desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico, primitivo, simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipulador de forças sociais.555 Dessa forma, temos à frente um discurso colonial portador de uma cadeia de significação estereotípica essencialmente misturada, dividida e polimorfa, caracterizada por uma constante “permeabilidade” do Outro, apesar do estabelecimento de binaridades – o Outro e o Eu. No que se refere a esse ponto, Pelbart observa que no choque de civilizações existe um constante demarcar-se, sobretudo, por parte do “Império”. Essa insistência na demarcação e defesa da alteridade revela, em primeira instância, que o Outro já rasga o Império por dentro, que se encontra no seu próprio coração e este rumor precisa ser abafado. A polarização binária, portanto, seria uma tentativa de compensar a binaridade, contaminação ou miscigenação que a dilatação das fronteiras do Império provocou. 556 À luz das considerações de Pelbart sobre o estabelecimento de “polarizações binárias” para o abafamento de permeabilidades, lembramos as próprias justificativas apresentadas por sertanistas para a realização de bandeiras contra indígenas. Ao lado dos relatos de assassinatos de súditos da coroa (e depois de 1822, do Império brasileiro), cativos, roubos de mercadorias, entre outras, estava a própria justificativa moral das expedições: o Outro que deveria ser combatido porque era bárbaro, “salteador, assassino e inumano”, como observamos na justificativa da formação de uma bandeira contra os Kayapós, em 1771, na descrição do governador Luis Pinto.557 O governador alegava o tal “direito natural de prevenção dos inimigos”, em vista dos constantes riscos que a proximidade dos mesmos causava. 558 É o que podemos observar também nas expedições movidas contra Bororos nos anos de 1779 1781, 555 Ibidem, p. 126. PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003, p.120. 557 Não podemos deixar de notar a semelhança discursiva para o tratamento de Sobas africanos em Angola, como “Quiumbella”, que se levantaram contra a presença portuguesa na região, analisado no capítulo 2 desta tese. 558 A mesma citada no capítulo 3. 556 218 em que eram descritos como “gentio bárbaros” e que, por essa e outras razões (atemorizavam monçoeiros que passavam nas imediações do Rio Porrudos), deveriam ser combatidos e aprisionados. 559 Curiosamente, esse mesmo estabelecimento de polarizações binárias, se, por um lado, voltava-se contra a figura do Outro bárbaro, poderia se voltar contra o próprio proceder colonizador. Lembramos aqui a crítica veemente aos sertanistas do Cuiabá, disposta no Regimento encaminhado à Capitania de Mato Grosso em 1749; a crítica que se refere aos tratamentos dispensados aos indígenas Parecis, considerados úteis à coroa, mas devassados por colonizadores: “indignos de se praticarem por homens christaos”. Se esse Outro não estivesse no caminho do projeto colonizador, a permeabilização poderia não representar incômodos maiores. Vale chamar a atenção para a preocupação com o limite da devassa que a bandeira promovida contra os Kayapós em 1771 deveria observar: os expedicionários poderiam matar desenfreadamente todos aqueles que resistissem, porém, não estava permitido matar o inimigo depois de se render e amputar corpos dos mortos, “apenas” a sua contagem. Cerca de 40 anos antes, a grande bandeira que se lançara contra os indígenas Payaguás 560 seguiria uma orientação contrária: para que o cacique, que se encontrava em Assunção a comerciar escravos, morresse de “pasmo”, cortaram a cabeça de cinqüenta Payaguás mortos e as enfiaram em espetos de pau ao longo da praia.561 Estes últimos episódios vêm corroborar a tese que ora apresentamos: o colonizador, ao devassar indígenas Parecis, a defender ponderação com a mutilação de corpos de Kayapós (o que pressupõe que tal prática fazia parte do Modus Operandi das expedições) ou ao decepar a cabeça do Payaguá, já estaria permeado por aquilo que o mesmo acusava pertencer ao Outro nativo: a barbaridade, selvageria e condição inumana. Em suma, o Outro, como diria Pelbart, já estaria no próprio coração do Império – o que expõe um discurso colonial fragilizado entre tentativas de binarizações e a inevitável permeabilidade “do” ou “no” Outro. Em todo caso, quando observamos o contexto específico da escravidão nas minas do Cuiabá e Mato Grosso ao longo do século XVIII, precisamos elucidar o fim último do discurso colonial: a manutenção da estrutura colonial, que indelevelmente inclui a 559 E como já vimos no capítulo 3 desta tese, chegaram a ser aprisionados. No entanto, fugiram nas duas ocasiões. 560 A mesma organizada entre 1733-1734, descrita na primeira seca deste capítulo. 561 CANAVARROS, Op. Cit., p. 258. 219 manutenção da escravidão e a necessidade constante de se afirmar o medo do que está fora da sociedade escravista. Perguntamo-nos aqui se todas essas caracterizações do “outro nativo” e números de mortandade de cativos divulgados ao longo do século XVIII (especialmente, na década de 1770), além de funcionarem como pretexto para suprimento de mão-de-obra na região e conseqüente utilização de indígenas como escravos, analogamente, não seria uma maneira de incrustar no imaginário do cativo os riscos a que estaria submetido caso decidisse pela evasão da sociedade escravista. Não sabemos, pela própria limitação das fontes, qual teria sido o efeito da divulgação desses dados junto à população escrava. Todavia, certamente, o material consultado nos coloca diante de uma faceta, que merece ser melhor explorada em pesquisas futuras, acerca da escravidão na região: a constante relação com os variados grupos indígenas, harmônica ou conflituosa, no cotidiano de um cativo que habitava as minas do Cuiabá e Mato Grosso. Por outro lado, vale lembrar que, mesmo com a constante organização de expedições contra populações indígenas que habitavam o caminho da Capitania de São Paulo para Cuiabá e Mato Grosso, as fugas seriam um fator constante na região, tanto para a floresta, populações indígenas (como o caso do cativo que foi aceito entre os Bakairis) ou mesmo para os domínios espanhóis. De igual modo, são constantes as notas sobre formação e subseqüente enfrentamento de quilombos. Logo, se existia ou não uma divulgação por parte do colonizador para a população cativa da região (ou entre os próprios cativos), parece-nos que não tenha atingido os efeitos de controle desejáveis. Ademais, na seção que se segue, trataremos especificamente da constante evasão de cativos. 4.2. Fugas e tentativas de recomeço do lado espanhol: da miragem e busca incessante pela liberdade A consulta da documentação a respeito da escravidão de negros em Cuiabá e Mato Grosso, ao longo do século XVIII e início do XIX, apresenta a fuga de cativos negros como o principal problema da instituição escravista na região, pois não somente poderia originar quilombos – fontes de transtornos onde quer que estivessem instalados –, mas também desfalcava a mão-de-obra já escassa nas minas e lavouras. Apesar das várias estratégias 220 adotadas, como a incorporação de indígenas – como vimos no capítulo anterior –,562 a fuga de cativos, em última instância, significava prejuízo financeiro, considerando o elevado preço de cativos no período.563 A fuga colocava no horizonte do cativo quatro possibilidades: (1) formação de quilombo; (2) busca de incorporação à população indígena; (3) tentar a sorte nos domínios espanhóis; (4) e, por fim, a tentativa de vida nas matas. 564 Nesta seção, especificamente, nos concentraremos na terceira possibilidade, em vista do lugar estratégico em que se posicionaram os povoados de não-indígenas nesta parte da América portuguesa e da fuga de cativos que acabava por articular relações não somente entre as Capitanias da coroa portuguesa, mas também entre as duas coroas ibéricas na América. De partida, chamamos a atenção para a existência de duas fronteiras a serem cruzadas, junto às quatro possibilidades mencionadas acima: a interna e aquela que dividia os domínios portugueses e espanhóis. A primeira, de acordo com Ernesto Cerveira de Sena, 565 no período, era o termo que se utilizava para demarcar até onde a “civilização” havia chegado. Deve ser compreendida à luz da própria característica de povoamento luso do território, que se dava em “arquipélagos” – entre um núcleo de povoamento e outro, existiam vastas áreas sem a presença lusitana. O território do Mato Grosso é emblemático nesse sentido, notadamente no período imperial: possuía uma vasta extensão territorial de limites a serem definidos e considerável área não-ocupada por cidades, vilas e povoados. A fuga de um cativo, certamente, visava o cruzamento e distanciamento de tal fronteira interna. A segunda fronteira, a linha limítrofe que dividia os domínios espanhóis e portugueses, conforme vimos anteriormente, passou a ganhar contornos após o tratado de Madri (1755). Todavia, ainda no século XIX, período de formação dos Estados Nacionais, 562 É preciso entender tal “incorporação” de tal modo que se considere também a agência indígena, que também negociava o aldeamento ou alianças com as coroas ibéricas na região. Lembramos o caso dos Kayapós, que trafegavam entre Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso (seção anterior), ou mesmo o convencimento para que indígenas chiquitanos que haviam migrado dos domínios castelhanos, permanecessem em Vila Maria (Cáceres). De acordo com Seckinger, com as guerras de independência, entraram nos domínios brasileiros, na altura do ano 1835, 603 chiquitanos. Ver SENA, 2013a, p. 9. 563 Em meados do século XVIII, por exemplo, a provedoria da Capitania de Mato Grosso avaliava que cada cativo custava em torno de 130 a 150 oitavas de ouro, ou seja, de 157$000 a 225$000 réis, o que já poderia ser considerado um preço elevado. Ver SILVA, Op. Cit., p. 237. 564 No tocante à primeira possibilidade, lembramos o caso do cativo que se incorporou aos indígenas Bakairis. Acerca da segunda, de maneira específica, no próximo capítulo apresentamos uma análise acerca dos quilombos na região. Finalmente, sobre a última, na seção que segue a esta, alguns apontamentos. 565 SENA, Ernesto Cerveira de. Fugas e reescravizações em região fronteiriça – Bolívia e Brasil nas primeiras décadas dos Estados nacionais. In: Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 39, n.1, p. 82-89, jan/Jun. 2013, p. 85. 221 caracterizava-se por uma imensa área de imprecisões. Segundo Sena, apesar do pretendido consenso entre as autoridades nacionais – Brasil e Bolívia – sobre os limites territoriais, a prática de descendentes portugueses e espanhóis transformava a “região” numa imensa área demarcada por justaposição de várias fronteiras, fluidez e não fixação efetiva.566 No interior dessa imprecisão, de acordo com os documentos do período, havia índios, ribeirinhos, desertores e, principalmente, cativos evadidos dos domínios luso-brasileiros, sobretudo, no que se refere àqueles refugiados do lado castelhano, que faziam sua própria “fronteira”. Além disso, ao consultarmos a documentação brasileira pertinente à fuga de escravos para os domínios espanhóis, desde o estabelecimento das minas do Cuiabá até as primeiras décadas do século XIX, temos os principais destinos: as missões dos Mojos e Chiquitos, as províncias de Santa Cruz de La Sierra, Assunção, Buenos Aires, Cordoba, Tucumán e, em algumas situações, o Peru. De maneira geral, pelo Vale do Guaporé, cativos se evadiam para Mojos e Santa Cruz de La Sierra, e, pelo Vale do Paraguai, para as demais localidades (ver Mapa 14). É importante observar que essas rotas passaram a ser utilizadas de acordo com a chegada e expansão do povoamento não-indígena na região, de modo que as fugas que se deram entre os anos de 1718, ano de descoberta das minas no Coxipó-Mirim (afluente do Rio Cuiabá), até finais da década de 1740, passam de maneira geral pelo Vale do Paraguai. A partir de 1748, com a fundação da Capitania do Mato Grosso, as mesmas também passam a se dar pelo vale do Rio Guaporé. O Regimento criado ainda em 1733, que regulamentava a recompensa que os Capitães do Mato teriam direito ao capturar fugitivos, assim como o próprio proceder, acaba por indicar que essas fugas foram constantes e concomitantes à chegada dos não-indígenas à região. Logo nas primeiras clásulas, afirmava-se que os “negros fugidos” causavam danos e prejuízos aos povos da Capitania,567 que praticavam toda sorte de injúrias, roubos, assassinatos e insultos nas roças, currais e estradas. A recompensa, de modo geral, variava de acordo com a distância em que o cativo fugitivo fosse encontrado. Por exemplo, para aqueles 566 Idem Ibidem, p. 86. No caso, de São Paulo ainda, visto que a região esteva sob jurisdição da mesma até a fundação da Capitania de Mato Grosso em 1748. 567 222 que se encontrassem a uma légua568 de distância da residência onde servia como escravo, determinava o artigo segundo: (...) Pelo negro mulato escravo que os cappitanes Mores e sargentos mores, e capitanes das estradas a que chamam do Matto, prenderem nesta cidade ou nos seus arredores distancia de huma legoa desta cidade ou dos bairros e freguesia onde viverem seus senhores, e constando que andam fugidos e fora dos serviços poderam levar cada hum dos dittos officiaes na sobreditta distancia mil e dusentos reis por cada fogido que prender attendendo a pobreza dos moradores desta Capitania. Com declaração que cada escravo se fugido, que for apanhado ou preso distancia de huma legoa donde morar o Capitao do Matto, recebrá este os mesmos mil e duzentos reis e taes escravos no limitte de hua legoa os de morarem seus senhores (...) [grifo nosso].569 Em até 3 léguas, o capitão poderia receber 4 mil réis. Para cada légua acima das 3, o Capitão do Mato receberia 10 tostões, 570 até completar 1000 réis e deste ponto não poderia passar mais. Ainda estava determinado no Regulamento que a recompensa seria maior para a captura de quilombolas, homicidas e acusados de roubo. 571 Sobre a abordagem junto aos quilombos, é interessante observar a recomendação para um tratamento cauteloso, que denota preocupação com a possível perda da mercadoria: (...) Outras instruções se recomendam aos ditos Officiaes das estradas mayaores ou menores, que nas investidas dos Quilombos de outras quaes que prizoens de fugidos se não hajam com tanta crueldade, que passe o excesso e só em ocasião de Resistencia poderão os dittos capitanes do matto usar de defesa natural porque fazendo o contrário se tomará (sic) desta matéria [grifo nosso].572 Em outras palavras, só usariam a “defesa natural” em caso de resistência, mas poderiam agir com crueldade, desde que não fosse excessiva e não passasse do excesso. O Regulamento, no entanto, não especificava o caráter e o limite desse “excesso”, o que deixa implícito o conhecimento generalizado acerca dos eventuais abusos em missões do gênero. Todavia, se, por um lado, Capitães do Mato teriam a possibilidade de se beneficiar desta padronização de recompensas, por outro lado, deveriam atender a numerosos prérequisitos, começando pela atuação, que deveria estar circunscrita apenas à cidade onde ele 568 De acordo com Iraci del Nero da Costa, uma légua, no sistema de medição utilizado no período colonial, correspondia a 6.660 metros. Ver COSTA, Iraci del Nero da (compilador). Pesos e medidas no período colonial brasileiro: denominações e relações. Boletim de História Demográfica. São Paulo, FEA-USP, 1(1), 1994. 569 APMT, Manuscritos, Estante 1, C-02, 1733. 570 A palavra Tostão se origina do francês teston, e designava uma antiga moeda portuguesa do valor de 100 réis. No Dicionário Aurélio assim está definida: “Moeda brasileira antiga, de níque que valia cem réis”. Ver FERREIRA, Op. Cit. 571 Fato que aponta a existência de formação de quilombos desde os primórdios do povoamento de não-indígenas na região. 572 Idem Ibidem. 223 estivesse cadastrado. Caso o Capitão do Mato prendesse um cativo não-considerado fugitivo para benefício próprio, estavam previstas punições com prisão (artigo 10). Eram obrigados também a encaminhar, a cada 3 meses, uma lista com o nome de todos os cativos capturados e dos seus respectivos donos, e esta deveria ser enviada subsequentemente ao Provedor Geral da Fazenda (Artigo 13º). Além disso, eram obrigados a informar às autoridades locais quais as armas que tinham em posse (Artigo 14º), sendo necessário registrá-las (Artigo 14º). Um destaque sobre este último artigo: enfatizava-se que era necessário possuir armas, uma vez que escravos fugidos também as possuíam, principalmente quilombolas.573 A documentação do período analisado demonstra não somente um cruzamento constante das fronteiras com os domínios castelhanos, por livre e espontânea vontade de cativos que buscavam a fuga do sistema escravista, como até mesmo situações em que eram forçados ao cruzamento dos limites fronteiriços ambicionado pelas coroas e depois pelos Estados nacionais.574 Nesse sentido, chamamos a atenção para uma celeuma entre o português Antonio França Sylva e a Provedoria dos Ausentes, registrada nos arquivos dispostos no Arquivo Histórico Ultramarino, ao longo das décadas de 1750 a 1760.575 Ela envolveu, ao mesmo tempo, portugueses, espanhóis, instituições e autoridades, circulação em territórios diversos e cativos africanos provenientes de diferentes lugares. Consta na documentação que Antonio França Sylva, ex-Provedor dos Ausentes, 576 fugiu às escondidas do Cuiabá em 1756, em companhia dos seus escravos. Por dever 20 mil réis à Provedoria dos Ausentes, acusado de beneficiar a si mesmo enquanto ocupara o cargo de Provedor, tivera os seus bens penhorados,577 incluindo 31 cativos. Embora o caso tivesse se passado em 1756, ele ainda continuaria a ser mencionado em ofícios até 1763 e parecia não ser solucionável, pois Antonio conseguira se evadir aos domínios castelhanos. 573 O que novamente aponta para as relações externas dos quilombos locais com as sociedades de não-indígenas, visto que nem todos conseguiam fugir com posse de armas de fogo. 574 Para uma problematização acerca das tentativas de estabelecimento de limites fronteiriços, no período colonial e pós-independência, ver SENA, 2013. 575 O primeiro registro que localizamos foi uma carta encaminhada pelo então Capitão-General da Capitania de Mato Grosso, Dom Rolim de Moura, aos Capitães-generais do Rio de Janeiro e Minas Gerais discorrendo sobre Antonio de França, que era fugitivo e os seus escravos estavam penhorados à Provedoria dos Ausentes. AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 658, de 17 de novembro de 1761. 576 Vale ressaltar que a Provedoria dos Ausentes, que integrava a administração do mundo lusitano, foi uma instituição criada em 1613, cuja função consistia em arrecadar e administrar bens de ausentes ou defuntos que não deixassem procuradores nomeados em seus testamentos, assim como de pessoas coletivas, tais como conventos, capelas, hospitais, entre outros. Ver HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal (século XVII). Coimbra: Almedina, 1994, pp.206-209. 577 AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 709 (rolo 11), de 15 de setembro de 1763. 224 O caso, em si, era repleto de fatos notáveis, a começar pela própria população escrava que tecnicamente pertencia a Antonio de França, declarada no ofício que pedia a penhora: (...) Francisco de Nação Angola = Sylvestre de nação mina = Manoel de nação mina = André de nação mina = Francisco de nação mina = Amaro de nação Mina= Joaquim de nação Mina = André de nação Mina = Feliz de nação Mina = Thimotio de nação mina = Ponsato de nação Mina = António de nação Angola = João de nação Angola = João de nação Mina = Antonio de nação Benguela = Francisco de nação Mina = Anastacio de nação Mina = Miguel de nação Mina = Domingo de nasçam Mina = Miguel de nasçao Mina = `Pedro de nasçao Mina = Agostinho de nasção Mina = Paschoal de nasçao Mina = Benedito de nação mina = Thimotio de nasçao Mina = Joseph de nasçao Mina = hThomé de nasçao Mina = André de nasção Mina = Apolónia Mulata com duas filhas, huma chamada Rita, e outra chamada Marte (...).578 Chama a atenção acima não somente a predominância masculina sobre as mulheres – 28 homens para 3 mulheres –, mas também o fato da população masculina de Antonio ser totalmente africana e a única mulher, com as suas duas filhas, serem mulatas, certamente todas nascidas no Brasil. Tudo indica que tais cativos foram trazidos para o trabalho nas minas do Cuiabá, que demandava mais força masculina. A predominância mina, nesse momento, pode ser tomada como um fator dissonante, em vista do progressivo avanço da presença de cativos congo-angolanos na região durante o século XVIII e primeiras décadas do século XIX, que podemos observar no Gráfico 2. Precisamente, na década de 1730, observamos a baixa das importações de cativos da Costa da Mina e podemos verificar uma alta nas importações dos portos angolanos, sobretudo de Luanda. A explicação para essa redução drástica do comércio na Costa da Mina acaba por combinar numerosos fatores, a começar pelos constantes conflitos políticos entre os reinos africanos que habitavam ou se relacionavam com a Costa da Mina. 579 A estes fatores, deve-se acrescentar a atuação holandesa na região, com saques e apreensões de embarcações, que 578 579 AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761 (rolo 11). Em primeiro lugar, na década de 1720 a região enfrentava um período turbulento, com disputas políticas entre diversos reinos africanos. Destaca-se nesse contexto a invasão do porto de “Ajudá”, pelo rei do Daomé, Agaja; a intervenção do Reino do Óio, que dominava as rotas de tráfico no interior da Costa da Mina, entre os anos de 1726 a 1730; a tomada do porto de “Jaquim”, pelo rei do Daomé; e, finalmente, a destruição do porto de Jaquim e forte português do Ajudá. Ver FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues. Aspectos comparativos do tráfico de africanos no Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31 (2004), p. 86; Sobre conflitos na África Ocidental e o impacto no fluxo comercial de escravos para o Novo Mundo, ver também Alexandre V. Ribeiro, “O tráfico atlântico entre a Bahia e a Costa da Mina: flutuações e conjunturas (1683-1815)”, Estudos de História, vol. 9, nº 2 (2002). 225 acabou por contribuir para que se esfriassem as atividades.580 Como a Costa da Mina era a principal fornecedora dos traficantes baianos, o fornecimento para região, nesse quadro, ficava comprometido. Analogamente, na América portuguesa, os traficantes do Rio de Janeiro vivenciavam outra situação, como demonstra o gráfico 2, sobretudo após a abertura da “nova rota”, que ligava a região a Minas Gerais entre 10 a 12 dias – fato que diminuía as taxas de mortalidade, fugas, tornava o negócio mais lucrativo e abria vantagem sobre comerciantes de Salvador. 581 Devemos observar que o aumento das taxas de importação de escravos no Rio de Janeiro e crescente alta de exportações dos portos nos Reinos de Angola e Benguela acabam por coincidir no período. Portanto, uma vez que o Rio de Janeiro foi o principal fornecedor de cativos,582 a despeito das outras rotas que levaram escravos para as Minas do Cuiabá e Mato Grosso,583 podemos sustentar a dissonância da superioridade de africanos mina junto a Antonio de França em meados do século XVIII. Em todo caso, logo ao sair do Cuiabá, Antonio de França seria surpreendido por um fator inesperado: dentro da própria fuga que já perpetrava, 7 entre os seus 31 escravos também conseguiram fugir – todos da nação mina – e retornaram à vila. O sertanejo então prosseguiu sua partida e, pelo que nos informa a documentação, Antonio de França pretendia encontrar-se com o espanhol D. Francisco França Sanches, que o esperava em um sítio chamado Corumbati. Em função das inundações dos rios, atracou no Porto de Araritaguaba (Capitania de São Paulo). Na sequência, encontrou uma nova maneira de chegar ao sítio inicialmente combinado; onde conseguiu finalmente efetuar a venda de 21 escravos para o 580 Se antes o tempo de viagem para Costa da Mina poderia equivaler a 6 meses, na década de 1730, chegaria até a 18 meses. Ver FLORENTINO; RIBEIRO; SILVA, Op. Cit. p.86. 581 De acordo com Florentino, Ribeiro e Silva (2004), ate as primeiras décadas do século XVIII, os comerciantes escravistas eram os principais fornecedores de escravos para Minas Gerais. Com a abertura do novo caminho, e dificuldades de abastecimento na Costa da Mina, tal função passou a ser suprida por traficantes do Rio de Janeiro. Vale salientar que a rota que ligava a Bahia a Minas Gerais era de 1.200 quilômetros, ao passo que a nova rota, do Rio de Janeiro as Minas Gerais, percorria apenas 480 quilômetros. Idem Ibidem, p. 87. 582 Aqui lembramos ao leitor novamente do mapa de entradas de cativos encontrado junto aos arquivos do AHU, que abrangia os anos de 1720 a 1772, em que se observa em todos os períodos a superioridade do porto do Rio de Janeiro, enquanto principal fornecedor, analisado no capitulo anterior. 583 Florentino, Silva e Ribeiro (2004) salientam que apesar do declínio do comercio escravista em Salvador, os navios ainda continuaram a aportar na cidade e esta acabou por assumir a função de abastecimento de escravos no interior do Brasil, do fim do século XVIII e inicio do XIX, o que incluía as vilas de Goiás e Mato Grosso. Idem Ibidem, p.91; ver também KARASCH, Mary. "Central Africans in Central Brazil." In: Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora, ed. Linda M. Heywood (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), 117-151. No caso de Mato Grosso, novamente frisamos que apesar de entrarem cativos no ultimo quartel do século XVIII via-Goiás, como observamos no capitulo anterior, ou pela via-rotas do norte, junto a Companhia do Grão-Para e Maranhão, o Rio de Janeiro durante o século XVIII inteiro predominou no fornecimento de cativos as minas de Cuiabá e Mato Grosso. 226 português Francisco Jubas Americano, que, posteriormente, deveria encaminhá-los para o espanhol D. Francisco. 584 Com o negócio concluído, Antonio, juntamente com o espanhol D. Francisco, uma moça com quem se casara e alguns escravos, decidiram rumar em 1760 para os domínios castelhanos; acabaram detidos pelas patrulhas de cavalaria militar da fronteira, junto ao Rio Paraguai, e levados aprisionados. Esperava-se, consta o ofício, que lá fosse comprovado o “contrabando” em que estivera envolvido o espanhol D. Francisco, o que aparentemente não foi, em vista das reclamações de 1763 em que a Provedoria dos Ausentes ainda reclamava o prejuízo e prisão de Antonio de França. Quanto ao destino dos demais, de Antonio de França e dos seus cativos, só é informado o paradeiro da mulata Rita, filha de Apolônia, levada para Córdova, nos domínios castelhanos.585 O caso tem potencial para uma análise em várias dimensões, mas aqui destacamos a presença do espanhol em território brasileiro, que denota uma movimentação castelhana ilegal em “território português”, para transferência de mão-de-obra para o outro lado da fronteira. Tal fato, se compreendido com a comercialização de cativos entre indígenas Payaguás e Assuncenhos, mencionada na seção anterior, nos leva a crer que no período que ora analisamos também existia demanda de mão-de-obra cativa do outro lado da fronteira. Ou seja, o cativo africano que poderia ser transportado por meses, desde a sua terra natal, provavelmente no hinterland das cidades costeiras, 586 para chegar ao Novo Mundo, e, após vendido, enfrentava uma nova viagem que tomava novos meses, poderia ainda ser submetido a novos trajetos a oeste da América, se envolvidos em operações como a de Antonio de França. A presença do contrabandista de escravos D. Francisco ao longo das fronteiras ibéricas estava longe de ser um caso isolado. Em 1776, por exemplo, os Anais de Vila Bela, a então capital da Capitania do Mato Grosso, discorrem sobre a atuação de contrabandistas espanhóis na parte portuguesa, no comércio de cativos para aquele lado: 584 O documento não especifica detalhes desse trâmite, mas aparentemente a estratégia de vender primeiro ao português, para depois o português repassar ao espanhol poderia ser uma estratégia para burlar a fiscalização. AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761 (rolo 11). 585 Cordova está atualmente localizada no território que conhecemos por Argentina. A partir de 1776 passa a compor o Vice-Reinado do Prata, se tratando de uma das maiores cidades da América Espanhola. 586 Como vimos nos capítulos 1 e 2 desta tese, geralmente o cativo que era embarcado, por exemplo, em Benguela, provinha de regiões ao interior daquela cidade e às vezes levava meses para ser transportado para a cidade costeira. 227 Tendo Sua Excelência notícia que os contrabandistas espanhóis que vinham trocar as mulas que haviam introduzido no fim do ano próximo passado por escravos, considerando que eles, nestas colônias, são da primeira necessidade, proibiu que se executassem tão prejudiciais convenções, impondo graves penas aos portugueses que as celebrassem, para o que se afixou e publicou um bando em 13 de março do presente ano [grifo nosso]587 O trânsito forçado de cativos do território português também foi registrado por autoridades dos domínios espanhóis. No conjunto de documentos referentes ao período colonial, dispostos no Arquivo da Biblioteca Nacional da Bolívia (ABNB), em Sucre, entre os vários fatos relacionados à entrada de escravos fugidos nos domínios castelhanos, localizamos a história do pardo Juan da Silva Nogueira, no ano de 1796, que se decidiu fugir com os seus escravos para o lado castelhano. Juan foi preso e durante o seu interrogatório foi obrigado a fornecer numerosas informações, acerca da sua naturalidade, razões da fuga, religião que professava, entre outras. Assim, relatou ser natural do Cuiabá, viver em Casalvasco, 588 casado e com 3 filhos, onde teria uma casa com outras comodidades. Juan era ex-soldado e se encontrava endividado (cerca de 500 pesos), razão pela qual fora ordenado o confisco dos seus bens, incluindo escravos. Como sua esposa não poderia se ausentar, pois estava a cuidar da própria mãe, decidiu partir sem ela e os seus filhos. Sobre a população escrava, ao depor às autoridades castelhanas, afirmava: Os escravos que igualmente se vieram são de África, homens, assim mesmo duas menores da mesma nação, casadas com estes, e todos quatro e mais de cinquenta anos de idade, uma mulatinha de vinte um a vinte e dois anos, casada, mas seu marido se ficou em Casalvasco. Estas cinco peças disseram que eram escravos legítimos [...].589 Nos documentos que se seguem ao depoimento de Juan, encontramos outra versão para a fuga do ex-soldado e, principalmente, dados sobre os africanos que estavam consigo. Na carta escrita por Ricardo Franco de Almeida, Tenente-Coronel de Vila Bela, às autoridades castelhanas, nos é apresentado outro Juan. De acordo com o Tenente-Coronel, o ex-soldado era um desertor e, antes de se evadir de Casalvasco, havia roubado dois cavalos e uma besta da “Real Fazenda”, deixando “desamparada” a sua esposa e filhos. No seu encalço, seguiu uma escolta que não obteve sucesso na sua captura; apenas a testemunha de um indígena que se encontrava na “Estância de Miguel”, local em que atravessou ao domínio 587 AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 204. Casalvasco se tratava de um presídio fundado em 1782 durante o governo de Luiz de Albuquerque, em área próxima a Vila Bela. 589 ABNB, 1796, MyCh GRM vol.8-323, 324, 324v. Monique Lordelo também localizou o caso de Juan e mencionou o caso na sua dissertação, enfatizando a primeira parte do inquérito, referente ao depoimento do exsoldado. O presente trecho originalmente está escrito em espanhol e a tradução que transcrevemos foi realizada por Lordelo. Ver LORDELO, Op. Cit., p. 110. 588 228 espanhol, afirmou ter visto Juan e os escravos. Segundo o informante, antes de atravessarem, Juan permitiu que todos descassem um pouco para a jornada. Ricardo Franco de Almeida exigia imediata restituição de Juan e escravos, em concordância com tratados firmados pelas coroas ibéricas, para que procedesse a punição do desertor. 590 Quanto ao perfil dos escravos africanos que atravessaram juntamente com Juan a fronteira, o Tenente-Coronel detalhava: chamavam-se Sebastian Cabinda, Anna Benguela, Antonio Paratu e Maria, todos casados, sendo o primeiro proveniente do reino de Angola e os três últimos, de Benguela. Além deles, havia uma mulata livre chamada “Sebastiana”, que, de acordo com Ricardo Franco, fora raptada “violentamente” e contra a vontade do marido, que depois se evadiu aos domínios castelhanos em busca da sua esposa, segundo o TenenteCoronel. Apesar de não estarem disponíveis as informações que revelam o final da história de Juan e os cativos que o acompanhavam, ao que consta nas últimas folhas do processo, aparentemente as autoridades espanholas cederam ao pedido de prisão e “restituição” reclamada. Em todo caso, no que diz respeito aos cativos, vale destacar que todos se encontravam casados naquela altura e com cativas da mesma nação (com exceção da mulata Sebastiana); fato que revelava uma preferência endogâmica, tal como Crivelente já obsevara nas uniões conjugais de Serra Acima (atual Chapada dos Guimarães) entre o final do século XVIII e primeiras décadas do XIX – entre 1798 a 1830, Crivelente levantou a realização de 108 casamentos entre africanos e entre aqueles que realizavam casamentos com cativos da mesma nação (33), os originários de Benguela se sobressaíam (correspondiam a 39, 5%) .591 Portanto, se é verdade que os domínios espanhóis pudessem representar uma terra de liberdade para escravos que se encontravam na América portuguesa e, por isso, poderiam movimentar todos os esforços possíveis para cruzar a fronteira, também é verdade que esse trânsito entre fronteiras não fora totalmente voluntário, uma vez que cativos poderiam ser 590 Assim escrevia o Tenente-Coronel às autoridades castelhanas: “No es oculto a La iluminada penetracion conocimientos, y notira providad de V.S. ilustríssimo que todo El Militar, que larga El puesto de que se halla encarregado para desertar a Dominio Estrangero, duplica em esta dos acciones, para crimen desertor, y que quand acumula a este miesmo crimen para de ladron, no solo es indigno de amparo, mas debe ser luego restituído, sin que La immunidad de hllarse em l fierza de S. Magestad Catolica, Le havia de mas protección, que El de no padecer castigo violento (...).” ABNB, MyCh GRM vol.8-323, Op. Cit. 591 Ver capítulo 3 desta tese. 229 comercializados por indígenas, portugueses acusados de crimes (como Antonio de França) ou até trocados, como vimos acima. 592 No tocante às fugas, vale frisar, poderiam tanto ser individuais como planejadas coletivamente. No conjunto da documentação referente ao período colonial, encontramos diversas situações; como a de 1772, junto aos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, em que é narrada a fuga coletiva bem-sucedida de cativos, que, após assassinarem o seu senhor e pegarem uma canoa, cruzaram para os domínios de “Castella”: Logo depois da partida do General sucedeo o horrorozo cazo da morte cruel mente dada ao Thenente de Auxiliares desta Villa Manoel Jozé Pinto no seo Ingenho chamado da Itapeva, sitio a margem do Rio Cuyabá abaixo, por huns seos escravos, que depois de executado o delicto, se retirarão furtiva mente em huma canoa levando consigo, e a força mais alguns escravos da caza, e mantimento necessário, e se passarão a salvo para Castella, pois não tiverão na caza quem lhes fizesse resistência, por que tudo erão lagrimas, confuzões, e sustos da mulher, e filho do disgraçado, defunto que todos herão menores, e sem capacidade, nem forças para se oporem, e prizionarem os facinorozos. Deusse parte do sucesso ao General que ainda estava em distancia de dezaseis legoas desta Villa, mandou, que logo logo se expedice a custa da Real Fazenda huma escolta sobre os asasinos, assim se fés porem sem fruto, por haverem passado dias, e levarem vantagem grande na marcha que fazião de dia, e de noite sem parar593 O episódio, além de sugerir um certo planejamento – afinal, sem este não conseguiriam navegar pelo vale do Paraguai e obter o êxito na fuga para os domínios castelhanos –, apontava justamente para o outro lado da fronteira como uma terra que representava ao menos alguma liberdade para população escrava do Cuiabá e Mato Grosso. E a partir desta imagem é que as cenas de fugas se repetirão constantemente em várias ocasiões, pelo vale do Paraguai ou Guaporé, conforme o povoamento luso-paulista fosse se estabelecendo gradualmente desde 1718 na região. Após quatro anos, em 1778, a prisão de dois negros, Joaquim e Antônio, apontaria para recorrência de fugas individuais influenciadas por quilombolas: Para a cadeia de Vila Bela remeto a ordem de Vossa Excelência dois negros presos, um por nome de Joaquim, escravo de José Francisco Monsores, outro por nome de Antônio, pertence a Luiz Rodrigues de Prado, cujos tem andado um par de anos fugidos no distrito deste arraial [Vila Bela], fazendo vários 592 Sobre o caso de Juan, precisamos também considerar que os cativos que o acompanhavam, assim o fizeram, por consentirem com a sua decisão. Mesmo armado, como conseguiria controlar 5 escravos ao longo de uma fuga que se dava no meio da floresta e incorporava trechos fluviais? 593 SUZUKI , Op. Cit., p. 101. 230 distúrbios, e conduzindo para o seu quilombo várias negras, fazendo roubos conhecidos, e talvez cumprindo-se das mortes que cá tem sucedido. 594 Sobre esse tema, novamente lembramos o leitor da Diligência que se fez no sertão do Mato Grosso em 1795. A bandeira, que havia destruído o quilombo de remanescentes do antigo “Quilombo Grande”, após a captura dos 54 aquilombados, partiu para a captura de novos cativos evadidos, nos entornos do rio Pindaituba, onde havia novos quilombos. Pelo que consta no Diário, era recorrente que os habitantes desses quilombos, além de freqüentarem as vilas e arraiais da região, convidassem os escravos para a fuga. 595 A documentação não informa até que ponto essa “sedução” surtiu efeitos, mas deixa notória a possibilidade de fuga, possivelmente com auxílio de quilombolas. De maneira geral, essas fugas foram reclamadas pelas autoridades da Capitania do Mato Grosso, desde os primeiros anos de sua fundação. Em 1754, por exemplo, em carta escrita a Diego Mendonça, o então Capitão-General da Capitania, Rolim de Moura, expressava preocupação com a fuga de escravos que adentravam os domínios espanhóis pela travessia do vale do Paraguai: “no que é preciso lembrar a Vossa Excelência que por ora quase todos os escravos que forem passar a Assunção é por mão do Paiaguá, a quem a dita cidade os compram por terem ordinariamente pazes com o dito gentio.”596 Destacamos dois aspectos dessa menção: os cativos, aqui, eram atravessados por indígenas Payaguás, ou seja, provavelmente teriam sido seqüestrados nos assaltos às monções de que tratamos anteriormente; em segundo lugar, a demanda de mão-de-obra escrava em Assunção poderia ser suprida com a atividade de contrabandistas ou comércio com Payaguás, também já tratados anteriormente. Em 1765, o segundo Capitão-General Pedro Câmera da Capitania voltaria a demonstrar preocupação com a constância das fugas, em uma carta que buscava dar conta da situação da capital Vila Bela com a fronteira. Relatava que a recorrência de fugas para o lado espanhol (o que chamava de “Nova Espanha”), juntamente com a não-devolução, acabavam por prejudicar as minas. Em determinado trecho, desferia ataques aos padres missionários do 594 1778, BR APMT CVB CA 0091 Caixa nº 001 Apud LORDELO, Op. Cit., p. 104. O Diário não informa se houveram fugas individuais ou em grupo, mas nota-se o grande incomodo que a existência daqueles quilombos causavam aos proprietários de cativos. Por outro lado, apesar do incômodo, não abriam mão de comerciar com quilombolas, o que revela uma certa dependência de ambos os lados. Sobre o Diário da diligência de 1795, ver ROQUETTE-PINTO, Op. Cit.. 596 MOURA, Carlos Francisco. D. Antônio Rolim de Moura, Primeiro Conde de Azambuja – Biografia. Cuiabá: Imprensa Universitária, 1982, p. 128. 595 231 lado espanhol, que, apesar de terem ordens da Real Audiência 597 para aprisionarem cativos, não os devolviam: (...) de tudo athe o que tem feito pouco ou nenhum cazo os ditos padrey, antes pello que obrao mostrao seguir por máxima não entregarem escravos nenhum fugido, para com isso facilitarem mais as fugas, persuadidos que por este meyo dificultam a subsistência de novos estabelecimentos no rio Guaporé. E talves destas Minas, pois seguramente methodo desde que a estou neste Villa [grifo nosso].598 Ou seja, a manutenção de cativos no interior das missões poderia fomentar esperanças de novas fugas nos cativos que se encontravam do lado português, além de dificultar a subsistência de moradores na região, sem a mão-de-obra escrava. A sequência da carta de Pedro Câmara é igualmente interessante: relata que em determinada ocasião havia mandado soldados seguirem escravos fugidos até as Missões, mas, como não tinham nenhuma ordem por escrito que poderia servir de prova para a captura dos cativos, eles não foram devolvidos. Dessa forma, acabava por reclamar da falta de certidões que comprovassem a posse e fuga de escravos, que inviabilizava a captura em território castelhano. Logo no final da carta, uma nota curiosa: no ato de perseguição aos fugitivos, as expedições poderiam aproveitar o ensejo e queimar algumas aldeias, por questão de defesa, mas tudo deveria aparentar que fosse uma ação proveniente da vontade de soldados e não por ordem da “Vossa Excelência”. 599 As fugas individuais ou coletivas se seguiriam, apesar das reclamações do governador Pedro Câmara. Em 1769, uma carta indignada escrita pelo então Capitão-General do Mato Grosso, Luis Pinto, às autoridades de Buenos Aires, apontaria a continuidade das evasões. Nela, o governador contestava uma resposta encaminhada anteriormente sobre o pedido de devolução de escravos que lá estivessem; segundo afirmava, só devolveriam se também fossem entregues indígenas que haviam fugido de missões para o território da Capitania. Luis Pinto, em contrapartida, alegava que as nações indígenas já eram livres: (...) Não deixo porém de surprehenderem de que atendendo V. Ex.a. tão (...) as justas razões de minha súplica, haja de propor me paralelos com a restituição dos ditos Escravos a entrega daqueles Índios que nos Domínios d’EL rei meu Amo tem procurado um natural asilo V. Exa. Sabe melhor que 597 As Reais Audiências eram órgãos instalados nas colônias espanholas responsáveis por questões relacionadas à justiça. No caso território em questão, região do Vale do Guaporé da margem ocidental, este estava submetido a Real Audiência de Charcas. No capítulo 6 da presente tese, analisamos a estrutura política existente no Alto Perú no período colonial. 598 APMT, Manuscritos, Estante 1, C-03, 1765. 599 Idem Ibidem. 232 ninguém que tanto pelas leis de Castela, como de Portugal, há muito tempo que estas nações são declaradas livre (...).600 Acerca desta condição de devolução de cativos por indígenas, Alessandra Blau, em dissertação defendida em 2007, ao analisar a política de povoamento na Capitania do Mato Grosso, afirma serem freqüentes as acusações de sequestros de indígenas por parte de portugueses. E, se era verdade que espanhóis fossem morosos na devolução de escravos evadidos para os seus domínios, portugueses também poderiam não devolver os indígenas solicitados e até utilizados nas estratégias de povoamento da região. A autora lembra que o ato de fundação de Vila Maria do Paraguai (atual município de Cáceres) ocorreu durante o governo de Luiz de Albuquerque e contou com indígenas fugidos das Missões dos Mojos e Chiquitos.601 O governador Luís Pinto trocaria correspondências com o Governador de Santa Cruz sobre o fluxo de evasão de cativos na outra fronteira, no vale do Guaporé, no mesmo ano (1769), bem como sobre a entrada nas Missões Jesuíticas. Luis Pinto rogava ao dito governador que negasse a chegada de novos escravos e que devolvesse aqueles que conseguisse identificar. Lembrava ao governador sobre um acordo firmado com a Real Audiência de Charcas, que comprometia a região à devolução de cativos evadidos do território português. Entre outros compromissos, também dava a sua palavra de que aqueles que fossem devolvidos não seriam submetidos a castigos. 602 Dois aspectos ainda devem ser destacados nesta correspondência. Em primeiro lugar, Luis Pinto requeria aos senhores o envio de dados dos cativos para se concluir a negociação – nomes, naturalidade e senhores –, não sendo necessária a especificação daqueles que eram casados “nessas immediaçoes” – o que indica a existência de matrimônios entre a população cativa.603 Em segundo lugar, presumia, em determinado trecho ao Governador de Santa Cruz, que alguns escravos que se achavam escondidos no que se entendia como América espanhola, ao se informarem da determinação de que deveriam ser devolvidos à América portuguesa, evadir-se-iam cada vez mais para o interior das Províncias do Peru. Assim sendo, a conquista 600 NDIHR, AHU, MF.311, doc. 3621. BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da Capitania de Mato Grosso: 1752-1798. Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2007 (dissertação), pp. 92-93. 602 APMT, Manuscritos, Estante 1, 1769, C-04. 603 Vale ressaltar que até o presente momento, não encontramos dados regulares à respeito de matrimônios de cativos, apenas informações esparsas. 601 233 da liberdade pelo cativo ainda não terminaria no desterro. Era preciso seguir adiante e a terra da liberdade poderia não ser mais que uma miragem. Ainda no governo de Luís Pinto, precisamente no ano de 1771, um fato envolvendo militares e questões diplomáticas ilustraria a continuidade das fugas. Na perseguição a 3 escravos que fugiam para os domínios dos Mojos, o Tenente Figueiredo junto a alguns soldados Dragões atravessou o Rio Guaporé e conseguiu aprisionar os fugitivos. Para manter os tratados firmados entre as Coroas, Luis Pinto ordenou a prisão do Tenente e devolução dos cativos aos Mojos e condenou veementemente a sua ação: Não era preciso ter mais do que o sentido comum para não chegar a cahir em semelhante absurdo. Porem se V. Magestade tivessem o cuidado de ler e consultar as ordens que se achao registradas em os Livros desse Forte, como erao obrigados, não teriao o desacordo de commeter semelhantes irregularidades.604 Era preciso entregar às autoridades castelhanas da região dos Mojos os escravos fugidos e esperar a restituição oficial, a fim de se preservar a “amizade e benevolência” entre as duas Coroas. Não se sabe quais interesses o Capitão-General contrariou para emitir tais ordens, se desagradou proprietários locais que constantemente reclamavam das fugas para o lado espanhol, para facilitar futuros pedidos de devolução, ou se procedeu de tal maneira após pressão espanhola.605 Contudo, o fato é que, a partir de 1772, os Anais de Vila Bela registrariam uma grande entrega de escravos na capital de Mato Grosso: Por efeito de uma [ilegível]... que o ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Luís Pinto havia dado sobre o apoio nas Índias de Espanha ordinariamente fazia aos escravos que desertavam nesta Capitania, se conseguiu um decreto dos reis de Castela para requisição e entrega de todos os escravos que se achassem alienados naquelas Índias. Por virtude desse decreto e de outras admiradas providências, que a respeito foi servido dar o sobredito Senhor Luís Pinto, no dia 29 de dezembro teve o povo grande contentamento de ver entrar, pelas ruas desta Vila, um cordão de 56 escravos, de um e outro sexo, debaixo de guarda e acorrentados, que imediatamente se distribuíram por seus donos, pagando cada um pro rata a despesa que lhe tocou, que ao todo montou de mais de mil oitavas.606 604 APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 1771. Monique Lordelo localizou no Arquivo e Biblioteca Nacional da Bolívia uma carta em que Luís Pinto solicitava a restituição de dois cativos à Capitania de Mato Grosso, que anteriormente haviam sido apresados violentamente em terras espanhola contra “tratados”. Tudo leva a crer que os cativos em questão são os mesmos que estamos a tratar. A pergunta que fica é se Luís Pinto teria ordenado a restituição após receber alguma correspondência de autoridades espanholas. ABNB, 1771, MyCh, 97-2 Apud LORDELO, Op. Cit.,p.107. 606 AMADO; ANZAI, 2006, p. 185. 605 234 Impressiona neste relato a quantidade avultosa de cativos fugitivos devolvidos, sob guarda e acorrentados. Ao que tudo indica, as fugas que se davam para os domínios espanhóis ocorriam em grupos pequenos, de três ou mais cativos. No entanto, pela quantidade mencionada acima, sugere-se que elas foram constantes na região e continuaram, mesmo com episódios semelhantes a esse descrito. Os domínios espanhóis não deixariam de representar liberdade aos escravos sob cativeiro na América espanhola. Em todo caso, durante as décadas de 1770 e 1780, ao longo do governo de Luiz de Albuquerque, observaremos a multiplicação dos esforços para restituição dos cativos fugidos e, igualmente, dos relatos de fugas. O bando emitido em 1773 pelo Capitão General Luiz de Albuquerque é emblemático nesse sentido. Primeiramente, informava a constante devolução de cativos que haviam evadido, remetidos pelas autoridades de Santa Cruz de La Sierra a Vila Bela em segundo lugar, expressava o desejo de que os moradores do Cuiabá lograssem do mesmo benefício, com a devolução daqueles que se encontravam em Assunção, evadidos pelo Vale do Rio Paraguai: (...) Faço saber aos que presente Edital virem que havendo-me proximamente manifestado a experiência que não foram por fim infrutíferas as repetidas instâncias de meus predecessores, praticadas com os Governadores dos Domínios Espanhóis desta Fronteira, a fim de se restituírem os Escravos fugidos, como se vê bastante número deles, que ultimamente foram remetidos a esta Capital; e desejando concorrer com a minha diligência, tentativa para que os habitantes do Distrito de Cuiabá possa talvez lograr o benefício de uma igual restituição, pelo que pertence aos Escravos que aí tenham evadido em direitura à Cidade de Assumpção, pelos rios abaixo; solicitando daquele Governador uma semelhante correspondência à referida (...) [grifo nosso].607 Assim, solicitou aos moradores da cidade, que tivessem escravos fugidos para o Paraguai, que procurassem o Juiz de Fora da Vila, munidos de descrições: (...) pelos expressados motivos me pareceu mandar declarar que todas as pessoas a quem pela sobredita via dos rios tenha fugido alguns Escravos constando principalmente terem encaminhado a sua derrota, não só para a dita Cidade de Assumpção, mas para alguns outros estabelecimentos castelhanos do Paraguai; vão entregar em casa do Doutor Juiz de Fora da mesma vila de Cuiabá, parecendo eles os sinais, idades, nomes e mais confrontações que eles representem conveniente declarar, para indicar legitimações aos sobreditos prófugos, a fim de que podendo eu dirigir em relação a seu número e qualidades, possa juntamente pretender do Senhor Governador um procedimento semelhante aos que acabam de praticar os 607 RAPMT, “Carta de Luiz de Albuquerque – bando de 10 de janeiro de 1773”. Vol. 1, n.3, março/setembro de 1987, p. 40. 235 Comandantes dos outros Governos, que por aqui confinam e fazem vizinhança.608 No mesmo ano, essa preocupação com escravos que haviam fugido e se abrigado no Paraguai continuaria presente nas correspondências enviadas pelo Capitão-General Luiz de Albuquerque, que voltaria a escrever no dia 11 de junho; em uma carta enviada ao CapitãoGeneral de São Paulo, solicitava mediação para negociar a devolução de escravos fugidos para Assunção ou Tucumán. Como na anterior, mencionava a devolução de escravos por Santa Cruz de La Sierra, dos Mojos e Chiquitos, junto ao Vale do Guaporé. Acreditava que finalmente, com a interseção da Capitania de São Paulo, pela prática de ajuda mútua que já estava estabelecida há muitos anos com as Províncias da América Espanhola (principalmente, Buenos Aires), a almejada devolução poderia ser exitosa. 609 O episódio chama atenção por deixar notória a existência de uma rota de fuga pelo Vale do Paraguai para as cidades de Assunção, Tucumán e Buenos Aires (como vimos anteriormente), utilizada por diferentes gerações de escravos que eram trazidos para a região fronteiriça entre as duas Coroas; vale também pela destreza do Capitão-General Luiz de Albuquerque, em se valer de um conjunto de estratégias para conseguir a devolução de cativos que haviam atravessado a fronteira. Na tentativa inicial de comunicação direta com Assunção, alegou que a colaboração e devolução já era realidade em outro ponto da fronteira (Província de Santa Cruz). Não obtendo êxito, acionou outro Capitão-General de São Paulo que, pelo disposto no documento, era conhecido por ter relações mais profícuas na região. A confiança no êxito dessa mediação era tão evidente que o Capitão-General do Mato Grosso chegou a afirmar: “(...) suplico a V. Exca. de designar e interceder sobre esta matéria para que da vossa cidade porque me persuado que elle não deixará de atender a huma semelhante restituição (...)”. 610 A destreza do Capitão-General Luiz de Albuquerque para negociação com autoridades castelhanas e mesmo de outras Capitanias da América Portuguesa também deve ser destacada. De fato, Luiz de Abuquerque informava a verdade, quando se referia aos constantes êxitos na devolução da população cativa que havia atravessado a fronteira na altura do Vale do Guaporé. Contudo, tal sucesso na entrega dos escravos fugidos fora atingido gradualmente, após numerosas idas e vindas e pressão por parte das autoridades da Capitania do Mato 608 Idem Ibidem. APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 11 de junho de 1773, f.149. 610 Idem Ibidem. 609 236 Grosso que buscavam intermediação até em instâncias hierárquicas maiores da coroa espanhola. Por outro lado, se Luiz de Albuquerque havia atingido determinados êxitos nas “restituições”, também é verdade que cativos não permaneceram passivos ante as articulações entre as autoridades de ambos os lados da fronteira para captura e devolução. Em 1773, por exemplo, os Anais de Vila Bela acabariam por confirmar que, naquela altura, talvez o interior do Peru já fosse uma realidade para cativos que fugiam da América Portuguesa. Ao descrever uma operação de cooperação entre as duas coroas na devolução de cativos e pagamento das despesas com a restituição, os Anais de Vila Bela ainda registravam: Não se entregaram todos os escravos, porque alguns se tinham entranhado no Reino do Peru. Outros se achavam casados; enquanto destes se ordenou muito poucos foram lá vendidos, a benefício de seus senhores.611 É relevante observar que o Capitão-General, além de enviar o pagamento diretamente ao vice-rei da cidade de Lima, pelo que consta nos Anais, novamente tomava notícia sobre a insistência de devolução de indígenas que se abrigavam em território português. Os espanhóis tinham a visão de que tais ameríndios estivessem nas mesmas condições que os escravos fugidos, portanto, assim como escravos que estavam sendo reivindicados, indígenas deveriam ser devolvidos. Portugueses, por outro lado, sustentavam a seguinte visão: “pois que, estes fugindo [escravos], cometem furto; e aqueles [indígenas] são livres, e como tais podem residir onde lhes parecer” [grifos nossos]. Em resumo, para além da fuga ser considerada um prejuízo financeiro e fator negativo para o desenvolvimento das atividades econômicas nas minas da Capitania do Mato Grosso, ela era interpretada, ainda, roubo. Ou seja, o cativo, ao se dar a própria liberdade, roubava a propriedade de outrem. Outro documento disposto no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino apresentava o mesmo caso: Ponho na presença de Vossa Excelência que no dia 29 do mês passado chegaram, finalmente, a esta Vila, 51 escravos que se achavam fugidos nos domínios castelhanos, pertencentes a moradores desta Vila e de Cuiabá, havendo ser preciso empregar alguns anos antes que efetivamente se terminasse esta negociação, pela renitência que os governadores das províncias de Moxos e Santa Cruz manifestavam em executar as ordens precisas, que ultimamente lhes tinha dirigido sobre esta matéria, o vice-rei de Lima. E ainda que mandaram entregar geralmente a todos os escravos fugitivos, com muitos deles tinham se internado no reino de Peru, não foi 611 AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 189. 237 possível descobrir e apreender mais que o referido número que exponho a Vossa Excelência [grifo nosso]. 612 Importante notar que, em função da resistência dos Governadores dos Mojos e de Santa Cruz, o Capitão-General do Mato Grosso estava a se dirigir diretamente ao Vice-Rei do Peru, que novamente afirmava a impossibilidade de captura e devolução, por conta de novas fugas para terras mais distantes. Em geral, da década de 1750 a 1780, podemos dizer que o quadro de relações entre as duas coroas oscilou entre cooperação e morosidade. Assim como Luiz de Albuquerque apresentava reclamações em 1773, o general que anteriormente estivera à frente da Capitania, Luís Pinto (1769-1772), também já tecia críticas à Audiência de Charcas sobre a nãodevolução e falta de providências. Mencionava principalmente Santa Cruz e discorria sobre o aumento das fugas, reclamadas desde 1768 por meio de ofícios. 613 No ano de 1773, outro caso notável se passou na fronteira entre as duas coroas, demonstrando a posição “ativa” dos cativos frente às forças escravistas: em correspondência enviada ao governador dos Mojos, as autoridades da Capitania do Mato Grosso pediam a devolução de 3 cativos que habitavam um sítio chamado “Fazenda de Payla”. 614 Posteriormente, em nova correspondência enviada, mais informações são reveladas acerca desses personagens, cujos nomes eram Pedro, Felix e Miguel;615 após o envio da primeira correspondência, haviam sido entregues aos seus respectivos senhores na América Portuguesa. Quando localizados, o documento informava que os mesmos se encontravam casados e, especialmente Felix, apresentava uma situação diferenciada: casara-se com uma cativa que havia raptado na Capitania do Mato Grosso. Felix, após ter sido trazido para Mato Grosso, conseguiu empreender nova fuga. A carta afirmava que provavelmente teria ido ao encontro da cativa com quem era casado. O que motivava a correspondência, portanto, era uma nova captura de Felix e o envio da recompensa pelos gastos realizados com a devolução. Depois desse episódio, não teremos mais notícias de Felix, possivelmente avançara na sua fuga para terras mais distantes. 612 1773, janeiro, 1, Vila Bela. Ofício do [governador e capitão general da capitania de Mato Grosso] Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro sobre a chegada de 51 escravos que andavam fugidos nos domínios castelhanos. CTA: AHU - Mato Grosso, cx. 15, doc. 69.Apud LORDELO, Op. Cit.,pp.100-101. 613 APMT, Manuscritos, Estante 1, 1770, C-04, fl. 19. 614 APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 1773. 615 No documento Felix aparece grafado como “Fely”. 238 A história do escravo Felix e dos seus companheiros demonstra uma perspectiva de vida para além das fronteiras escravistas ou, ao menos, uma tentativa, com o casamento e a continuidade das fugas. Felix se casara com outra cativa e é muito provável que tenha sido obrigado a uma nova fuga, caso quisesse se ver livre do cativeiro. Miguel e Pedro, por outro lado, pelo que consta no documento, aparentemente se encontravam “casados”; infelizmente as duas cartas que tratam sobre o caso não especificam com quem estavam casados, se com indígenas ou com outras escravas. De qualquer maneira, parece-nos que o casamento seria uma tentativa de re-começo de uma vida, ou talvez uma estratégia para proteção de uma possível devolução. Aqui, lembramos, ao leitor, do trecho que anteriormente transcrevemos dos Anais de Vila Bela, 1773; alegava-se que umas das razões apresentadas para nãodevolução total dos cativos fugidos, além das novas fugas para o interior, era o fato de que alguns já estavam “casados”, o que aparentemente impossibilitava devolvê-los ao cativeiro.616 As fugas pelo Vale do Guaporé em direção às terras espanholas prosseguiriam nas décadas de 1770 e 1780 e seriam cada vez mais numerosas, para os mais diferentes destinos, inclusive para as Missões dos Mojos.617 Somente em 1775, informava-se que haviam fugido para os domínios espanhóis a quantia de 60 escravos; 618 no ano de 1782, no ato de chegada do cabo Francisco Pedro de Melo, acompanhado de 27 escravos devolvidos pelo governo de Santa Cruz, afirmava-se que a quantidade era insuficiente porque registrava-se a fuga de mais de 200 escravos naquela altura. 619 Esse tom frustrado acerca da devolução de cativos fugidos também pode ser observado em 1786 nos Anais de Vila Bela, apresentado à Câmara pelo Vereador João Nunes Fernandes, em que é relatado o retorno de Jorge Pompeu, com três escravos, ao território luso: Em 4 de outubro, chegou das missões de Espanha o cabo-de-dragões Jorge Pompeu, com três escravos, dizendo que os padres curas lhe prometeram 616 O casamento na América espanhola enquanto instituição protetora do escravismo na América Portuguesa merece uma reflexão especial, pois no caso de Felix e seus companheiros que já estavam casados, vimos que mesmo assim foram capturados e devolvidos à América Espanhola. Haveria diferenças em termos de proteção social com a instituição de matrimônio, conforme a região da América Espanhola, no caso, entre os entornos de Santa Cruz e o Peru? 617 Denise Maldi Meireles, por exemplo, afirma que em 1770 a missão de Magdalena recebeu 51 escravos; em 1772 a missão de Loreto recebeu 24 cativos; e a missão de Exaltación recebeu 46. Ver MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira: Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989, p. 178. 618 619 APMT CVB CA 0057 Caixa nº 001 Apud LORDELO, Op. Cit., p. 114. AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 233. 239 entregar quantos por ali aparecessem fugidos desta Capitania, o que é bem para duvidar, pelo que temos experimentado [grifo nosso] 620 As constantes fugas para o “território castelhano” não cessaram quando a República da Bolívia começou a se formar, “inaugurada” oficialmente em seu estatuto constitucional de 1825. Como mostra Sena,621 o novo país, com seus símbolos liberais de um Estado nacional tido como “moderno”, não estava livre da escravidão, ainda que fosse previsto seu fim desde a primeira constituição e nas outras seguintes, até meados do século XIX. Mostrar-se para seu vizinho imperial, o Brasil, como “solo livre” era muito mais uma maneira de possuir trunfos em negociações sobre territórios e outros assuntos do que erradicar tal forma de trabalho; era, inclusive, uma forma de reconhecimento como “filantropia” por parte das autoridades de regiões fronteiriças, quando seu senhor disponibilizava seu “objeto” para executar serviços à sociedade. No entanto, a ideia de que o Oeste continuava sendo um bom lugar para fuga do Mato Grosso não desapareceu com os novos regimes do século XIX, mesmo as autoridades matogrossenses procurando reforçar os pontos de evasão. Já durante as guerras de independências, como mostrou Seckinger, ocorreu um boato de que as tropas de Bolívar iriam invadir Mato Grosso, justamente pela propagação do ideário liberal republicano, com a finalidade primeira de libertar os africanos ou seus descendentes em cativeiro. Confirmou-se que a notícia era falsa, mas existia uma senha; a fuga para o oeste, logo tornado Bolívia, continuaria.622 *** Finalmente, a partir de todo esse panorama exposto acima, podemos considerar que a fuga de cativos para os domínios espanhóis foi elemento fundamental no que tange à 620 Idem Ibidem, p. 258. Cf. SENA, 2013b. 622 Segundo Sena, não havia mais espaço para negociar a devolução de escravos quando o Império assina seu primeiro tratado com a Bolívia, em 1867. Ver SENA, Ibidem; Villafañe Gomes Santos, por sua vez, mostra que desde o início o Império tinha como pauta em suas relações internacionais as fugas de escravos, ou procurava defender-se em suas argumentações por ser francamente escravagista. Dessa maneira, parecia ser um “estranho” entre tantas repúblicas, sendo dificultadas várias relações. Ver SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O Brasil entre a América e a Europa – O Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à Conferência de Washington). São Paulo, Unesp, 2003; SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O Império e as repúblicas do pacífico – As relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia (18221889). Curitiba: UFPR, 2002; sobre a pressão que as Américas recebiam, para não mais haver escravidão, ver, por exemplo, o fundamental livro de Eric Fonner “Nada Além da Liberdade”, quando aconteceu a Guerra Civil no início da década de 1860 - FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 621 240 instalação de povoamentos não-indígenas no extremo-oeste da América portuguesa; não somente porque influenciava a adoção de estratégias que visavam diversificar o suprimento de mão-de-obra (como o apresamento e “administração” de indígenas), constantemente desfalcado pelas fugas de escravos, mas porque acabava provocando o próprio relacionamento diplomático entre as autoridades das duas coroas, além das próprias capitanias dos domínios portugueses. As fugas de escravos na região, em última instância, podem ter sido “pivôs” e umas das responsáveis pelo próprio perfil “mestiço” da população da Capitania. Os luso-paulistas, ao se verem diante da necessidade de dar continuidade à exploração do ouro e desfalcados de mão-de-obra, recorreram ao apresamento e incorporações de indígenas, sob numerosas justificativas. Isso contribuiu para que a Capitania fosse composta por uma população majoritariamente mestiça,623 com poucos brancos, escravos africanos, indígenas incorporados; sobretudo, Bororos, cujas mulheres e crianças eram constantemente capturadas e trazidas para Cuiabá, sendo distribuídas entre as famílias e incorporadas como escravas. 624 Em suma, ao vislumbrarmos tais casos, estamos diante não somente de tentativas individuais de re-começar a vida para além do cativeiro, mas até mesmo da própria agência escrava, que possivelmente obrigou a elaboração de estratégias políticas entre as coroas e a adaptação às resistências ao sistema escravista. Resta-nos, portanto, seguir com uma reflexão sobre aqueles que seriam forçados a abrir mão do próprio desterro e liberdade. 4.3. O retorno é a morte: a volta de cativos fugidos à sociedade escravocrata Se é verdade que as fugas foram concomitantes ao instalar de povoamentos nãoindígenas no oeste do Brasil, as estratégias para estancar este grande problema – levadas a cabo pela coroa portuguesa e moradores locais – e, assim, evitar a ocorrência, foram das mais diversas. Elas abarcaram desde o estabelecimento de fortes junto às fronteiras e negociações com autoridades vizinhas – fossem com a coroa espanhola ou capitães-generais de outras 623 Segundo Jovam Vilela, que analisou mapas demográficos ao longo do século XVIII, a população mestiça da Capitania correspondeu cerca de 3/ 4 do total, composta em sua maioria por negros, indígenas incorporados e caburés. SILVA, Op. Cit.,p. 23. 624 Segundo Joaquim Francisco Moutinho, “(...) as mulheres bororos ao chegarem ‘recusavam a princípio toda a sorte de alimentos; depois foram-se acostumando, e hoje estão lindas e bem civilizadas, empregadas como criadas em casas de família”. MOUTINHO, Joaquim Francisco. Notícias sobre a Província de MT. Typographia de Henrique Schroeder, SP, 1869, p. 191; ver também SILVA, Op. Cit. , p. 247. 241 Capitanias, como vimos na seção anterior – até a edição de bandos que regulamentassem a atividade de Capitães do Mato, como o de 1733, editado nos anos iniciais de estabelecimento luso-paulista nas minas do Cuiabá e que definia generosas recompensas e obrigações. Essas fugas que ocorriam para todas as direções – inclusive às sociedades indígenas (como o caso do cativo que se assimilou aos Bakairis) –, foram capazes até de arrancar um suposto tratamento “benevolente” das autoridades com aqueles que retornassem por livre e espontânea vontade. Mas o que poderia significar o retorno daquele que havia se evadido do cativeiro? Apesar das diferentes circunstâncias de retorno, nos é possível apontar duas significações: uma vida ao menos possível, embora todas as vicissitudes do cativeiro e trabalho pesado (principalmente, o que se fazia nas minas); ou a dor e o sofrimento de uma vida marcada por castigos e até o medo de ser punido com a morte. De todo modo, o estigma do perigo de novas fugas estaria reservado ao cativo que algum dia havia ousado a se evadir da sociedade escravista. Logo, sobre ele, aplicar-se-ia maior vigilância e, analogamente, maior rigor ou cuidado. Exemplo foi a aplicação de castigo em 1773 a dois cativos, descritos como negros desertores, que já tinham no histórico a fuga para os domínios espanhóis com devolução. As autoridades portuguesas, ao suspeitarem das intenções de novas fugas, ordenaram a prisão dos mesmos e ainda sugeriram aos seus respectivos donos que os vendessem à Capitania do Grão-Pará ou para qualquer outro lugar com distância semelhante e, enquanto tal situação não fosse concretizada, que fossem mantidos na cadeia o tempo que fosse preciso. 625 O estigma em questão era a alcunha de desertor, ou seja, aquele que abandonara injustamente o seu posto de escravo. Paralelamente, era preciso se livrar de novos problemas, portanto, que os fujões, tal como as autoridades os concebiam, fossem enviados para longe da fronteira. A busca por uma vida minimamente possível ou menos-sofrível é o que podemos observar na fuga dos 7 cativos de origem mina das mãos de Antonio de França, que, endividado e para evitar a penhora dos seus bens, havia se decidido pela fuga da própria América portuguesa em 1756.626 Entre a submissão a Antonio de França e uma nova jornada – não se sabe em quais condições e se tinham consciência do destino pretendido pelo português endividado –, os 7 escravos mina se decidiram pelo retorno e cativeiro na Vila do Cuiabá. Isso ocorreria por que na Vila já teriam estabelecido vínculos, que permitiam uma vida suportável, ou por que viam menor número de possibilidades de sobrevivência com 625 626 APMT, Estante 1, C-07, 30 de abril de 1773. Caso visto na seção anterior. 242 Antonio de França e, pragmaticamente, foram obrigados à escolha pelo menos trágico? Essas são questões que permanecem em aberto, pois até o presente momento não localizamos mais registros desse grupo de africanos mina, que, mesmo diante de numerosas possibilidades (formação de quilombos, tentativa de adesão a sociedades indígenas, travessia para o território espanhol, entre outras), decidiram-se pela volta ao cativeiro. Em 1812, os Anais do Senado da Câmara de Cuiabá nos dão conta de um caso extremamente dramático de retorno. Narra que no dia 1º de abril daquele ano um casal de escravos havia retornado à vila – um negro, cujo antigo proprietário não era informado, e uma mulata de propriedade de João Ferreira Mendes –, depois de 22 anos de evasão, acompanhados de vários filhos, todos gerados no exílio. No total de doze, os Anais registravam que os últimos dois partos haviam apresentado sérios riscos e levaram o cativo a uma atitude desesperada para salvar a companheira: (...) animado pela necessidade de salvar a vida da sua companheira, o mencionado negro em um tirou do ventre em pedaços a criança que n’elle estava morta, introduzindo como pôde a mão até o lugar em que fez uma arriscada operação (...). 627 Vencido pelo risco iminente da morte da esposa e da vida perigosa no “bosque” com os seus filhos, informa os Anais, o cativo decidiu pelo retorno; o que significava abrir mão da sua e da liberdade dos seus entes, depois de duas décadas, para ver salva a sua companheira. A descrição não consegue esconder a contradição entre duas décadas de uma vida autosuficiente fora da sociedade escravista pelo casal e o argumento do temor da vida isolada no bosque, exposta a diferentes perigos. De qualquer maneira, essa história de amor acabava com um final dramático em que os nossos personagens se viram obrigados à escolha entre a volta à escravidão ou a morte do ente querido. Escolheram o primeiro caminho, que era a vida da esposa-mãe. Ainda que seja curta a narrativa – que não informa ao leitor qual foi o destino do casal com os seus filhos –, é possível apontar a grande dificuldade de se entregar à sociedade escravista, ante o futuro incerto, uma vez que poderiam ser punidos, separados, vendidos ou até mortos. A recusa da captura com a resistência armada – constantemente apontada nos regimentos que regulamentavam a ação dos Capitães do Mato – em parte não estaria motivada pela recusa a todas essas possibilidades após o retorno, além do próprio cativeiro? Em todo caso, vale salientar que a morte parecia sempre acompanhar de perto o escravo fugido, a 627 SUZUKI , Op. Cit., p. 201. 243 espreitá-lo de todos os lados: ou deveria fugir da morte, livrando-se da vida que levava fora da sociedade escravista, dos constantes riscos na floresta com feras ou ataques de nações indígenas; ou deveria encarar a possibilidade de punição com a morte, ao retornar à sociedade escravista. Em 1761, por exemplo, a troca de correspondências entre Rolim de Moura e padres missionários dos domínios espanhóis deixava notório o medo que escravos sentiam ante a ideia de devolução a portugueses: após Rolim de Moura solicitar os cativos que se abrigavam em missões espanholas, padres que negavam o pedido alegavam que os escravos fugidos em questão imploravam pelo não-retorno, com o argumento de que seriam castigados com pena de morte. O então Capitão-General protestava aos padres, argumentando que o máximo que poderia acontecer à escravaria fugida era o recebimento de castigos particulares dos seus senhores. Dizia que não existia, naquela altura, nem lei antiga ou moderna que tratasse a questão naqueles termos. 628 O conjunto de bandos publicados por dois capitães-generais do Mato Grosso, entre o final do século XVIII e início do XIX, igualmente nos remete à imagem das terríveis consequências que poderiam significar o retorno à sociedade escravista. Nos referimos às promessas dos capitães-generais João de Albuquerque e General Carlos Augusto D’Oyenhausen, de 1794 e 1808, respectivamente. No preâmbulo da primeira, nos chama atenção a apresentação da justificativa humanitária do bando, editado pelo Capitão-General João de Albuquerque: (...) Faço saber a todas as Pessoas desta Capitania, que sendo-me presente, e geralmente constante os graves danos e fadigas que experimentam todos os Escravos fugidos que vivem expostos às Calamidades, e continuados riscos que se experimentam nos matos, abandonados à barbaridade, como selvagens,sem auxílio nem mesmo para alma, nem para o corpo: compadecendo-me da miserável vida que levam esses infelizes Homens, vassalos de Sua Majestade e tendo por outra parte também em vista o irreparável prejuízo que tem seus senhores com suas fugas praticadas talvez muitas vezes inconscientemente, e sem reflexão das quais naturalmente estarão muitos deles arrependidos, temerosos de voltarem para as casas ou poder dos mesmos senhores, temendo o justo castigo que merecem [grifos nosso].629 Vários aspectos podem ser destacados somente neste pequeno trecho; a começar pela suposta preocupação da sociedade escravista e, especialmente, do benevolente CapitãoGeneral com a fadiga experimentada por cativos ao se decidirem por uma vida longe da 628 629 APMT, Estante 1, C-05, 1761, p. 118. RAPMT, Vol. 1, n. 3, março-setembro de 1987,p.43. 244 sociedade escravista, em que ficavam expostos às calamidades e riscos da vida nas matas, na visão dos bons homens civilizados. João de Albuquerque, inclusive, apontava preocupação com o abandono à vida selvagem e falta de “auxílio da alma”. Era uma responsabilidade para as autoridades políticas do mundo lusitano manter a população escravizada no caminho, ou seja, dentro do sistema. Na sequência, chama atenção também o tratamento dos cativos como “homens” e “vassalos” do rei, uma vez que tais definições se confrontariam com a própria lógica escravista, baseada na ideia da desumanidade ou inferioridade humana do não-europeu. Convém lembrar a própria base do colonialismo e escravidão desenvolvida por vários séculos, teorizada principalmente ao longo dos séculos XVIII e XIX por um extenso conjunto de autores, que investiam principalmente na divisão da humanidade por raças, em que o homem europeu acabava por aparecer sempre no topo da pirâmide da evolução. A taxonomia desenvolvida por Carlos Lineu (século XVIII) exemplifica tal divisão da humanidade de acordo com critérios raciais (uma difusão de posição geográfica com pigmentação da pele). Para o autor, a humanidade poderia ser compreendida em 4 principais raças: (1) Africanus, que não conseguia escapar da preguiça e lassidão; (2) Asiaticus, que apresentava dificuldade de concentração; (3) Americanus, teimoso e irritadiço; (4) o “Europeanus”, o mais inteligente e inventivo. 630 Em linhas gerais, todo esse arcabouço teórico que se criou nesse contexto incumbia o homem branco europeu de uma “missão civilizadora”, frente, sobretudo, a africanos e ameríndios, que eram incapazes de dirigir uma sociedade civil. Em outras palavras, o homem branco carregava o “pesado fardo” de encaminhar africanos ou indígenas ao progresso civilizacional e, para tanto, se valeria da escravidão ou colonialismo. 631 João Albuquerque vai além e não somente considerava cativos como seres humanos, mesmo que possivelmente em escalas hierárquicas inferiores, mas como iguais, no qualificativo de vassalo. Valeria de tudo, até mesmo positivar aquilo que a própria estrutura colonial negativava, a fim de viabilizar a atuação lusitana. Contudo, não deixava de frisar os prejuízos causados pelas fugas. 630 MAGNOLI, Demétro. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009, p. 24. 631 Sobre a evolução das teorias raciais, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Uma história de ‘diferenças e desigualdades’: as doutrinas raciais no século XIX”. In: O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Acerca da percepção do africano à luz das teorias raciais e “missão civilizadora”, ver COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre, V. 15, N. 27, pp. 21-73, Jul. 2008. 245 O ponto alto da sua argumentação é quando o Capitão-General, para justificar o “esquecimento” da fuga e não-aplicação de castigos, afirma que elas se davam com a inconsciência do escravo fugitivo e, possivelmente, muitos estariam arrependidos, pois temiam o justo castigo a que poderiam ser submetidos caso se entregassem voluntariamente aos seus senhores. Observa-se que, na tentativa de convencer àqueles que haviam se apartado da sociedade escravista, valeria até mesmo isentá-los de culpa por terem tomado as rédeas dos próprios caminhos. Paradoxalmente, a igualdade afirmada no início do texto – cativos eram vassalos do rei – esbarrava na negação do livre-arbítrio poucas linhas adiante. De qualquer forma, vale registrar o anúncio da anistia: Hei por bem que todos os ditos Escravos que se acharem fugidos, e aqui lembrados a qualquer distância de Vila Bela e dos seus Arraiais, Distritos, que recolherem até o último dia do mês de Setembro do presente ano, sejam recebidos por seus Senhores, com todo o amor, e agasalho como se nunca tivessem fugido, e ainda que a sua ausência seja de poços, ou muitos anos , o que assim farei cumprir o combinado; debaixo de cuja certeza podem seguramente voltar sem receio algum, garantidos do meu patrocínio e segurança, dentro do referido tempo de dois meses.De agosto e setembro referidos [grifos nossos].632 O perdão pelo “crime” cometido pelo cativo estava garantido, com a palavra da maior autoridade da Capitania, mas com prazo anunciado de validade: por apenas dois meses, até o final de setembro. Afirmava que poderiam retornar, mesmo se estivessem evadidos por muitos anos, sem receio algum. Aqueles que se entregassem seriam recebidos com pleno esquecimento. Ademais, chamamos atenção para o recebimento carinhoso e benevolente recomendado (ou ordenado) aos senhores: com amor e agasalho. Tal aspecto revela uma manifesta necessidade de se fazer amado por todos os cativos fugitivos, caso contrário, mesmo se capturados, poderiam voltar a repetir a evasão, como já vimos em várias ocasiões acima. Outrossim, não estranha a adoção de tal estratégia no período, se levarmos em consideração que, no decorrer do século XVIII, como afirma Michel Foucault em curso ministrado no Collège de France em 1978, estava em curso no ocidente uma grande reformulação no escopo das técnicas de poder e que intensificava a racionalização do poder político. Dito de outro modo, a modernidade era palco de uma transição fundamental de um tipo de “Estado administrativo” para o “Estado de governo”. O primeiro era fundamentado nas ideias de territorialidade fronteiriça, soberania e disciplina, sintetizado principalmente pela clássica obra intitulada “O Príncipe”, de Maquiavel; nela, o autor tecia considerações ao 632 RAPMT, Vol. 1, n. 3, março-setembro de 1987,p.43. 246 príncipe Médice, que havia recebido o principado por herança, sobre como manter, reforçar e proteger o seu território. O objetivo final, portanto, do exercício do poder seria o de assegurar a permanência do príncipe, balizando os perigos e manipulando as forças. 633 Ao analisar os séculos seguintes à publicação da obra, Michel Foucault observaria a construção de toda uma literatura anti-Maquiavel, que se colocava em um campo contrário, baseada principalmente no preceito de que existiriam múltiplas formas de governar; de modo que, se em Maquiavel só haveria um único governante – o Príncipe –, na literatura antiMaquiavel assumiriam essa posição diversos personagens: o “pai de família” (governo da casa), pedagogo, o professor, o superior do convento, entre outros. Para La Perrière, expoente dessa última corrente de autores, no interior do governo de Estado existiriam vários outros governos. Parafraseando esse último autor, Foucault salientava: (...) É no interior do Estado que o pai de família vai governar sua família, que o superior do convento vai governar seu convento. Portanto, há, ao mesmo tempo, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo em relação a Estado, multiplicidade e imanência dessas atividades que se opõem radicalmente à singularidade transcedente do Príncipe de Maquiavel.634 Em outras palavras, seriam observadas duas continuidades, a saber: ascendente e descendente. A primeira partia do pressuposto de que aquele que desejasse governar um Estado deveria saber governar a si próprio, subsequentemente a família, administrando os seus bens e domínios, para finalmente chegar ao governo do Estado. A segunda, inversamente, se fundamentaria na ideia de que o governante do Estado poderia ser um espelho para todos os níveis abaixo; assim, com um bom governo, os pais saberiam administrar as riquezas da família e os indivíduos a si próprios. 635 Na literatura anti-Maquiavel, teríamos, então, um esboço de uma arte de governo ou “governamentalidade” que emergiria no século XVIII, no momento de grande expansão demográfica no ocidente e abundância monetária; e que fez ascender o elemento “população, o último destino de um governo – aumentar a riqueza da população, sua duração, saúde, entre outros fatores. 633 636 Nesse bojo, de acordo com a necessidade de se produzir saberes acerca da FOUCAULT, Michel. “A Governamentalidade” (1978). In: Ditos e Escritos, IV: Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 634 Idem Ibidem, pp. 286-287. 635 Idem Ibidem, p. 288. 636 Michel Foucault define “governamentalidade” como “(...) conjunto constituído pelas instituições, procediments, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma específica, bem complexa, de poder, eu tem como alvo principal a população, com forma mais importante de saber, a economia política, como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança”. Idem Ibidem, p.303. 247 população, as estatísticas ganhariam notoriedade, uma vez que demonstrariam as regularidades das populações. Analogamente, essa arte de governo não somente deveria se aplicar sobre a população tomada em seu corpo geral, mas sobre a consciência, interesse e aspirações de cada um dos indivíduos que formavam essa população. O governo, nesse contexto, agiria por campanhas e estímulos às pessoas. Em 1981, o filósofo voltaria a se reportar sobre tal questão por outro ângulo, ao investigar o uso da “razão na política”. Identificaria, no escopo das preocupações com os indivíduos, o que denominou de “poder pastoral”, aquele poder individualizador, perceptível na atenção individual que o pastor de um rebanho dispensa a cada ovelha. Segundo o autor, para compreender essa técnica política, é necessário recuar a processos bem anteriores ao século das luzes, precisamente à história dos hebreus, que desenvolvem e ampliam o tema pastoral. 637 Naquele contexto, o pastor é aquele que abandona o próprio rebanho para ir atrás de uma única ovelha, provê diariamente e pessoalmente o seu rebanho, sempre com grande benevolência. O pastor vela por aqueles que dormem. De acordo com Foucault: Em primeiro lugar, ele age, trabalha e contrai despesas para aqueles que ele alimenta e estão dormindo. Em segundo lugar, ele vela por eles. Ele presta atenção em todos, sem perder de vista nenhum deles. Ele é levado a conhecer seu rebanho no conjunto, e em detalhe. Ele deve conhecer não somente a localização das boas pastagens, as leis das estações e a ordem das coisas, mas também as necessidades de cada um em particular. Uma vez mais, um comentário rabínico sobre o Êxodo descreve nos seguintes termos as qualidades pastorais de Moisés: ele enviava para pastar cada ovelha por sua vez – primeiro as mais jovens, para dar-lhes de comer a erva mais tenra; depois as mais velhas e enfim as mais antigas, capazes de triturar a erva mais coriácea. O poder pastoral supõe uma atenção individual a cada membro do rebanho.638 Em termos gerais, ao analisar a literatura cristã dos primeiros séculos e o uso desse poder pastoral como tecnologia de poder, o autor apontaria quatro características fundamentais: a) o poder pastoral é caracterizado por responsabilidade, em que o pastor provê pelo rebanho em sua totalidade e por cada ovelha em particular; b) cada ovelha deve obediência ao pastor, ou seja, deve se submeter à lei do pastor, que é a lei de deus; c) o pastor deve ser informado sobre cada ovelha em particular, das suas necessidades materiais, pecados 637 Foucault ressalta que apesar de se identificar o “poder pastoral” noutras sociedades do Oriente Médio – Egito, antiga Assíria e Judéia -, até mesmo na Grécia, nas considerações tecidas por Platão na obra “A política”, é no contexto hebraico que a temática se desenvolve e se amplia. Ver FOUCAULT, Michel. “Omnes ET singulatim”: uma crítica da razão política. In: Idem Ibidem. Ditos e Escritos, vol.IV. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 638 Idem Ibidem, p. 360. 248 públicos e até secretos; d) a ovelha do rebanho deve renunciar a este mundo e a si mesma – mortificação por uma vida que se dá em outro mundo.639 Aqui, após termos esboçado o que acontecia em termos de modificação de técnicas e exercício de poder no Ocidente no período, podemos retornar à promessa de asilo do CapitãoGeneral João de Albuquerque aos cativos que se achavam fugidos. Em primeiro lugar, é compreensível que o mesmo se coloque na posição de pastor das ovelhas desgarradas e de mediador entre elas e os seus proprietários, quando promete o esquecimento do crime cometido. O Capitão-General assumia explicitamente a posição de pastor, ao especular a fuga inconsciente ou arrependimento. A sociedade escravista, na palavra do pastor, estaria de braços abertos àqueles que se desgarraram do cativeiro. Em segundo lugar, um dos motivos alegados por João de Albuquerque, que o fazia prometer o asilo e esquecimento da fuga e mediar a não-aplicação de castigos, era a preocupação com o “auxílio da alma” dos escravos fugidos. Então, movido por essa benevolência paternalista, convidava-os para o retorno ao cativeiro. Ou seja, à escolha entre a vida fora da sociedade escravista-cristã, onde poderiam ficar expostos às “barbaridades” e, portanto, às punições divinas no pós-vida, e a vida com auxílios para alma e garantia de uma vida melhor em outro mundo. O governador, em suma, fazia um convite à mortificação (renúncia da própria liberdade), em nome da vida no além. E o que estava reservado àqueles que recusassem a bondade do Capitão-General? A sequência da carta indicava a outra face do pastor benevolente: (...) Outrossim sou servido declarar que todos aqueles que dentro do dito tempo não aproveitarem desta pia intenção, e indulgência serão depois tratados com todo rigor das Leis por via das eficazes diligências a que mandarei logo proceder; passando as Ordens necessárias para serem perseguidos, maltratados e apreendidos sem então merecerem piedade alguma, como Homens não só inimigos de si próprios, mas prejudiciais à República, desobedientes às minhas Ordens, e de Sua Majestade [grifos nossos].640 As ovelhas desgarradas só seriam aceitas no caso de se entregarem voluntariamente no prazo estipulado, se obedecessem ao pastor. Do contrário, seriam submetidas a punições rigorosas. O governante benevolente se transformava no pai rígido ante a desobediência e aqueles que outrora haviam sido abordados como iguais (vassalos) voltavam a ocupar escalões inferiores da civilidade. A carta de João de Albuquerque revelava, para além desses 639 640 Idem Ibidem, p. 368-370. RAPMT, Vol. 1, n. 3, março-setembro de 1987, p. 43. 249 aspectos, um contínuo jogo entre o se fazer amado ou temido, que nos remete a um clássico trecho do próprio “Príncipe” de Maquiavel: (...) deve-se ser tanto amado quanto temido, mas como é difícil que as duas coisas andem juntas, é muito mais seguro ser temido que ser amado, se uma das duas coisas tem de ser preferida. Pois pode ser dito dos homens em geral que... enquanto você os beneficia, eles são inteiramente seus [Mas] os homens têm menos escrúpulos em ofender a quem se faz amado que a quem se faz temido; pois o amor é mantido por uma cadeia de obrigações que, sendo os homens egoístas, é quebrada toda vez que isso interessa a seus propósitos; mas o medo é mantido pelo receio da punição que nunca falha. Mais ainda, um príncipe deve se fazer temido de uma forma tal que, se não ganha amor, de toda forma evita o ódio: pois o medo e a ausência de ódio podem bem andar juntos... Eu concluo, portanto, quanto ao fato de ser amado ou temido, que os homens amam segundo sua própria livre vontade, mas temem segundo a vontade do príncipe, e que um príncipe sábio deve se sustentar sobre aquilo que está em seu poder e não naquilo que está no poder de outros. 641 O capitão-general, ao mesmo tempo que isentava de culpa aqueles que haviam se apartado da sociedade escravista e considerava os possíveis sofrimentos no desterro, a ponto de prometer o perdão, desejava o retorno do escravo; e, possivelmente, a construção de uma outra relação para evitar futuras fugas, pautada na afetuosidade, já que aplicação de castigos estava vedada. João de Albuquerque percebera que para manter sob controle a população escrava no oeste do Brasil, localidade com vários pontos para evasão, dependia do afeto, da benevolência e amor. Todavia, se tudo isso não bastasse, então deveria se valer do temor, terror da perseguição, captura e futuras punições. Se não poderia ser amado, então que fosse temido. Assim, para todos os efeitos, esperava-se o retorno voluntário. Infelizmente, pela ausência de informações documentais, não sabemos se a promessa de asilo surtiu efeito, se de fato houve retorno e se a mesma chegou ao conhecimento de todos que viviam nas matas. Sobre este ponto, tudo indica que não. Se chegou, considerando as relações comerciais tecidas entre fugitivos e moradores das vilas, arraiais e distritos, não foi de imediato. De qualquer maneira, a consulta aos arquivos do período demonstra uma imensa desproporção entre informes de fugas e entregas voluntárias. Quando observamos os Anais de Vila Bela, os Anais do Senado da Câmara do Cuiabá ou as correspondências trocadas entre autoridades da Capitania, notamos que casos como aquele dos sete africanos mina que 641 MAQUIAVEL, Nicolau. Apud CHATTERJEE, Partha. Colonialismo, Modernidade e Política. Tradução de Fábio Baqueiro. Salvador: EDUFBA, 2004, p. 27. 250 retornaram à Vila do Cuiabá, fugidos de Antonio de França, são raros. No geral, o retorno à sociedade escravista se dava com grande resistência e aplicação de força. O cativo do sertão642 estava preparado para tudo, a fim de não retornar à sociedade escravista: resistir até a morte ou se evadir para terras mais distantes. O amor ofertado pela sociedade escravista, portanto, não era correspondido. O temor que as autoridades tentavam incutir naqueles que fugiam, por sua vez, era desafiado quando conscientemente optavam por permanecer fora da sociedade escravista na região. Após alguns anos, apareceria uma carta que guardava grandes semelhanças com a escrita por João de Albuquerque, de autoria do então governador Carlos Augusto D’Oyenhausen. Escrita no dia 18 de setembro daquele ano, apontava um prazo maior para que todos os cativos que estivessem nas matas se entregassem voluntariamente: até o último dia de 1808. Assim como João de Albuquerque, justificava o esquecimento da fuga por uma questão de “beneficância” e necessidade de promover o bem geral dos habitantes da Capitania. E, igualmente, considerava a possibilidade de que muitos dos que se achassem nas matas estivessem arrependidos e desejosos pelo retorno à sociedade escravista. Contudo, aqueles que não se aproveitassem da benevolência do bom pastor deveriam se atentar às conseqüências: “uma vez que não se aproveite dele no prazo taxado farei proceder nas mais exatas buscas e darei os mais severos castigos aos que abusarem desta graça.” 643 Nas entrelinhas, podemos dizer que todo aquele cativo fugido que não obedecesse a tais pedidos ignorava ou desafiava a “missão civilizatória”, a vida eterna cristã sempre prometida e a capacidade punitiva. O retorno poderia significar uma dupla morte, a possível pena capital (alegada anteriormente) e a própria morte do sujeito; renunciando ao próprio livre-arbítrio, anulava-se a favor de uma vida no cativeiro e em benefício de outra prometida para o além. Finalmente, negando-se ao retorno, apesar dos riscos permanentes que isso implicava (de serem massacrados por nações indígenas, capturados e vendidos como escravos à América espanhola, entre outras possibilidades), afirmavam a necessidade de um outro horizonte ou caminho a se seguir. E, especialmente no caso do africano extraído e comercializado viaAtlântico sul, poderia significar o espaço de liberdade de que necessitava para, quem sabe, professar livremente as suas crenças ou se organizar social e politicamente da maneira que lhe 642 Clássica designação ao escravo que habitava no oeste do império luso-brasileiro, pela historiadora matogrossense Luiz Volpato. 643 Idem Ibidem, p. 46. 251 aprouvesse. E é justamente essa organização específica que podemos observar no famoso Quilombo do Grande, que analisaremos no capítulo seguinte. Após o cruzamento da fronteira escravista, era preciso se reconstituir, principalmente em termos de identidade. “O que agora nós somos distante da terra natal, que está além do mar?”, talvez se perguntassem aqueles que aqui chegavam e rompiam com os grilhões. 252 Mapa 13 – o vale do rio Paraguai SILVA, Jovam Vilela. Mistura de cores: política de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso (século XVIII) Cuiabá: EdUFMT, 1995, p.22. Mapa 14 - o vale do rio Guaporé Fonte: Idem Ibidem. 253 Mapa 15 – Os Bororos no Mato Grosso Fonte: ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Graduação em História, 2005, p.35. 254 Mapa 16 - localização das terras indígenas Bakairi 1 Fonte: BARROS, Edir Pina de. Os filhos do sol: história e cosmologia na organização social de um povo Karib: Os Kurâ-Bakairi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p.21. 255 Mapa 17: Localização das terras indígenas Bakairi 2 Fonte: Idem Ibidem, p.45. 256 Mapa 18 – Migrações Xavante do Goiás para Mato Grosso Fonte: GOMIDE, Maria Lucia Cereda. Território no mundo A’uwe Xavante. Disponível em <http://confins.revues.org/6888?lang=pt#ftn1>. Acessado n dia 13 de setembro de 2014 257 Mapa 19 – a repartição de Mato Grosso Fonte: ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de (orgs.). A terra da conquista: a história do Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003, p.64. 258 Mapa 20 – repartição de Mato Grosso e Cuiabá e a fronteira com as missões jesuítas espanholas no século XVIII Fonte: FERNANDES, Suelme Evangelista. O forte do Príncipe da Beira e a fronteira Noroeste da América Portuguesa (1776-1796). Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2003 (dissertação), p.83. 259 Mapa 21 - fluxo de fugas da Capitania de Mato Grosso para as Missões dos Mojos e Chiquitos e Paraguai Fonte: LORDELO, Monique Cristina de Souza. Escravos Negros na fronteira oeste da Capitania de Mato Grosso: Fugas, capturas e formação de quilombos (1748-1796). Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2010 (dissertação). 260 Gráfico 2 – Estimativa de importação de escravos provenientes da África Central Atlântica e da Costa da Mina pelo Brasil, 1700-1810. Fonte: CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969, p. 207. 261 CAPÍTULO 5 – O que atravessou o Atlântico: o Quilombo Grande entre começos e re-começos (1730-1795) (...) Quando foi presa esta Amazona parecia Pestesilea furens, mediisque in milibus ardet. E foi tal a paixão que tomou em se ver conduzir para esta Villa, que morreu enfurecida. Imitou no animo a grande Cleopatra, que antes quiz a morte do que entrar no triumpho em Roma. Presou mais a vida Zenobia, rainha dos Palmyros, que entrou n’aquella cidade em cadeas de ouro (...).644 Comparável a personagens mitológicos e a antigas rainhas, assim apareceu Teresa de Benguela nas memórias coloniais elaboradas pelo provedor da Fazenda Real, Filipe José Nogueira Coelho. Baseado nas crônicas de José Barbosa de Sá e no exame direto nos arquivos da provedoria e intendência,645 o provedor equiparava Teresa a Pestesilea, filha de Ares e Othera, guerreira e rainha das amazonas. Igualmente, lembraria Cleópatra – a “rainha dos reis”, estrategista e detentora de uma beleza contagiante que fora capaz de seduzir dois dos homens mais poderosos do mundo antigo, a saber, Júlio César e Marco Antônio – por ter preferido a morte ao triunfo do inimigo, ao se deixar ser picada por uma serpente após ser informada da derrota do marido, para que não fosse exibida nas ruas de Roma como prisioneira. A rainha quilombola, ao olhar do provedor, também seria como Zenobia, rainha da cidade de Palmira que no século III, após a morte do esposo, assumira o reinado, que compreendia vasta região que abrangia parte do Egito, Síria e Ásia Menor. Desse modo, a paixão e fúria de Teresa, mulher de pedra, que estava à frente do Quilombo Grande, era descrita com estranha admiração ou respeito. O Quilombo Grande, objeto por excelência do capítulo que se segue, enquanto existiu, ao longo de décadas, causou, para além do incomum reconhecimento da capacidade organizativa e valores morais, grandes incômodos. Formado na década de 1730, até o final do século XVIII era um convite aberto para realização de novas fugas, um desafio à capacidade militar da Capitania. O seu abatimento, portanto, seria necessário por questões econômicas – todo cativo fugitivo representava prejuízos financeiros – e por fatores de ordem militar ou política, uma vez que a Capitania se encontrava em região fronteiriça com a América espanhola, caracterizada por constantes instabilidades. O abatimento do quilombo, em última 644 COELHO, Filipe José Nogueira. Memórias Chronológicas da Capitania de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Revista Trimestral de História e Geografia/Jornal do IHGB, 2º semestre de 1850, p. 182. 645 Coelho afirma que realizou o exame direto nos arquivos, afirmando serem autênticas e de “incontestável fé” as memórias consultadas. Idem Ibidem, p. 138 262 instância, representava a elevação dos ânimos dos habitantes que tentavam a sorte nas minas do Cuiabá e Mato Grosso. Embora tivesse se formado nos idos da década de 1730, somente foi organizada a primeira bandeira para derrubá-lo em 1770. Naquela altura, após cerca de 40 anos de existência, já havia uma considerável hierarquia política, organização econômica, social e militar. Parafraseando Flávio dos Santos Gomes, igualmente já havia se formado um “pântano negro”, em vista das complexas relações estabelecidas entre quilombolas e a sociedade externa.646 A expedição, como veremos adiante, o atacou de surpresa e foi relativamente bemsucedida, tendo em conta que conseguiu desarticular toda organização encontrada, capturar Teresa, a principal autoridade, e uma quantidade considerável de aquilombados – além de destruir todas as hortas e queimar casas encontradas. Entretanto, outras dezenas conseguiram se evadir. Posteriormente, retornaram à região e re-construíram outro quilombo, conhecido por autoridades portuguesas como “Quilombo do Piolho”, em alusão ao rio Piolho ou a José Piolho, o mesmo que presidia o Parlamento do Quilombo Grande. 647 Assim como outros quilombos na América portuguesa-Brasil e a “hidra de lerna”, que a cada cabeça decepada nasciam-lhe outras duas, o Quilombo Grande (ou do “Piolho”, como era conhecido em 1795) havia se reconstruído das cinzas dos primeiros ataques, revelando um complexo quadro político formado em torno da área ocupada pelos aquilombados, que dificultava a sua completa destruição.648 Destarte, fracionamos nossa reflexão em três momentos. No primeiro, apresentamos considerações gerais sobre a organização de quilombos na América Portuguesa e Brasil e, posteriormente, as minúcias da agência cativa nesses espaços na Capitania do Mato Grosso e Província, caracterizada pela constante necessidade de se estabelecerem contatos clandestinos com povoamentos luso-brasileiros e pela exploração mineira realizada por quilombolas. Na 646 Na obra “A Hidra e o pântanos”, o historiador Flávio dos Santos Gomes afirma que as teias formadas por quilombolas com membros externos ao quilombo, propiciavam intercâmbios entre fugitivos, grupos indígenas, vendeiros, negociantes, pequenos proprietários, geralmente de maneira clandestina, e acabavam por se caracterizar como imensos pântanos nos quais as autoridades lusitanas se “atolavam”, pelo fato de estarem inviabilizadas ao abatimento por completo destes espaços. Ver GOMES, Op.Cit., p. 35. 647 Essa bandeira de 1795 é a mesma que analisamos no capítulo 3 da presente tese, a partir da diligência elaborada por Francisco de Mello. No capítulo que se segue, realizaremos constantemente um diálogo com a mesma, uma vez que o quilombo do Piolho era formado por remanescentes do Quilombo Grande, atacado em 1770. 648 Flávio dos Santos Gomes utiliza o termo “hidra” como uma metáfora para os quilombos no Brasil, para enfatizar as constantes formações de quilombos no Brasil, que nasciam dos escombros de outros. O que se passa no Quilombo Grande entre os ataques de 1770 e 1795 segue basicamente o mesmo roteiro de outras partes do território luso-brasileiro. Ver GOMES, Op. Cit., p. 35. 263 segunda seção do capítulo, teceremos uma reflexão sobre o possível processo de “aruaquização” vivenciado pelo Quilombo Grande, no contato com indígenas Pareci-Cabixis, que viviam na região onde o espaço fora edificado. Assim, investigaremos especificamente a prática do “rapto de mulheres”, uma vez que grande parte das mulheres indígenas que estavam no Quilombo Grande foram raptadas por quilombolas, de acordo com a documentação consultada. Igualmente e à luz do antropólogo Max Schmidt, realizaremos uma reflexão acerca da possível assimilação das técnicas de cultivo do milho e mandioca no interior do quilombo. Por fim, na última seção, apresentamos, em primeiro lugar, uma reflexão sobre a procedência africana na região, para adiante conjecturarmos o caráter da organização política do Quilombo Grande e autoridade de Teresa, à luz das tradições políticas e militares dos povos Imbangalas e Ovimbundos – povos que habitavam o planalto de Benguela. Nessa seção, tecemos um exame a respeito da obediência, disciplina, hierarquia e flexibilidade de adesão ao quilombo por agentes externos às estruturas de linhagem. 5.1. O significado da agência cativa: notas gerais sobre os quilombos na América Portuguesa e Capitania do Mato Grosso Estudos recentes sobre os quilombos no Novo Mundo, que combinam diferentes fontes documentais e metodologias, à luz da antropologia e arqueologia, têm desvelado novos aspectos da experiência e agência cativa. Pesquisas como as realizadas por Richard Price e Pedro Paulo de Abreu Funari são exemplares nesse sentido. Price, ao trabalhar com os “Saramakas” do Suriname durante 30 anos e a partir das observações etnológicas coletadas nesse período, constata diferenças quanto às fontes que os descreviam, sobretudo aquelas que se referiam à organização militar e política. Segundo o autor, se o pesquisador se atém apenas às fontes escritas, teria diante de si uma visão “pálida” dos Saramakas.649 649 PRICE, Richard. “Palmares como poderia ter sido”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 264 A pesquisa de Funari, por sua vez, está centrada na utilização de vestígios arqueológicos localizados no antigo Palmares, na “Serra da Barriga”. Entre os anos de 1992 e 1993, o trabalho capitaneado pelo autor conseguiu reunir 2.448 artefatos em 14 sítios diferentes, contendo peças de cerâmica comum, porcelana, lítico, vidro, metal, entre outros. A partir desse material coletado, Funari tem constatado intensa mescla cultural com grande presença indígena, além de evidenciação de relações dos quilombolas com forças externas, atestada pela presença de cerâmicas européias. 650 Destarte, a análise da transformação da instituição “kilombo” em “quilombo” no Novo Mundo é mais uma maneira de perceber o papel ativo na construção da própria história desses homens e mulheres trazidos à América como escravos, além de delinear quais foram as permanências, adaptações, contingências ou empréstimos culturais. Como vimos anteriormente, o “kilombo” em território africano, especialmente entre os Imbangala-Jagas, constituía uma instituição transcultural, local de cruzamento de diferentes culturas que estiveram entre os atuais Angola e República Democrática do Congo. De acordo com relatos do período, os “kilombos” na África seriam acampamentos de iniciação militar, cuja principal característica seria a não-pertença a linhagens e na qual membros estariam submetidos a numerosos rituais que acabavam por afastá-los do “seio protector do seu grupo de filiação natal”. 651 Iniciados, tornavam-se guerreiros invulneráveis às armas dos inimigos. 652 A instituição nas Américas, por outro lado, assumiu conotação radicalmente diferente. Se com os Imbangalas designava acampamento de iniciação militar, no Novo Mundo, passou a remeter a campos de refugiados do sistema escravista; sociedades pequenas ou em larga escala, diferenciadas em termos de organização econômica a depender da região onde estivessem instaladas. 653 De acordo com Silvia Hunold Lara, apesar das definições de “quilombos” serem parecidas, assentam-se sobre bases diferentes: ora consideram a distância 650 FUNARI, Pedro Paulo de Abreu. “A arqueologia de Palmares – sua contribuição para o conhecimento da história da cultura afroamericana”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 651 MILLER, 1995.,pp. 159-160. 652 Idem Ibidem. 653 Na Capitania de Mato Grosso, por exemplo, quilombolas eram referenciados também como “mineiros” e parte dos minérios que extraíam comercializavam ilegalmente com portugueses. Ver LORDELO, Op. Cit. 265 do lugar onde se estabeleceram, ora dão primazia à disposição para resistência à captura ou mesmo quanto à ênfase na capacidade de sobreviver por longa duração nas matas. 654 Vale ressaltar que essa formação de grupos de escravos fugidos recebeu diferentes designações por toda a América: palenques, cumbes ou cimarrón na América espanhola; Maroons na América inglesa; grand marronage nos territórios franceses; e na América portuguesa, além do “quilombo”, também o termo “mocambo” – habitantes desses espaços poderiam ser chamados de quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. 655 Em todo caso, tais comunidades, como afirma Richard Price, representavam a antítese de tudo o que a escravidão representava, ou mesmo a existência de uma consciência escrava que se recusava a ser limitada ou manipulada. 656 Ou, como aventa Carlos Magno Guimarães, os “quilombos” eram a contradição básica da realidade escravista, na medida em que representavam retirada do escravo do processo produtivo, impossibilidade de reposição do capital investido na aquisição do cativo, gastos exigidos para montagem da repressão (bandeiras de captura), prejuízos materiais em decorrência das atividades desenvolvidas por quilombolas (assaltos, incêndios, sedução para novas fugas), entre outros. 657 De maneira geral, como salientam João José Reis e Flávio dos Santos Gomes: (...) Os quilombolas brasileiros ocuparam sertões e florestas, cercaram e penetraram em cidades, vilas, garimpos, engenhos e fazendas; foram atacados e usados por grupos escravistas, aos quais também atacaram e usaram em causa própria.; fugiram da escravidão e se comprometeram com a escravidão; combateram e se aliaram com outros negros, índios e brancos pobres; criaram economias próprias e muitas vezes prósperas; formaram grupos pequenos, ágeis, móveis e temporários, ou grupos maiores, sedentários, com gerações que se sucediam, politicamente estruturados; envolveram-se com movimentos políticos de outros setores sociais, desenvolveram seus próprios movimentos, alguns abolicionistas; aproveitaram-se de conjunturas políticas conflitivas nacionais, regionais, até internacionais, para crescer, ampliar alianças, fazer avançar seus interesses imediatos e projetos de liberdade mais ambiciosos.658 654 LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães do Mato e o governo dos escravos”. In: REIS; GOMES, Op. Cit., p. 97. 655 Em vista da presença portuguesa ao longo do território angolano, alto volume comercial de escravos, contatos diretos com Imbangalas e Ovimbundo, certamente o “quilombo” utilizado nas documentações portuguesas certamente se trata de um aportuguesamento do “kilombo” fala no idioma umbundu dos povos Ovimbundus Mundombe, que habitavam região próxima à Benguela. Ver MILLER, 1995, p.165. 656 PRICE, Op. Cit. , p. 52. 657 GUIMARÃES, Carlos Magno. “Mineração, quilombos e Palmares – minas gerais no século XVIII”. In: REIS; GOMES. Op. Cit, pp.139-154. 658 REIS; GOMES, Op. Cit., p. 23. 266 Tal quadro, em que o cativo aparece como agente ativo e móvel, protagonista da sua própria trajetória, lançando mão de diferentes estratégias para o alcance da liberdade, igualmente se faz perceptível no Mato Grosso e Cuiabá do século XVIII. O quadro/tabela apresentado pelo Capitão General Luís Pinto de Sousa Coutinho em 1771, discutido anteriormente, nos apresenta um universo da agência cativa que explorava numerosas possibilidades, entre as quais a formação de quilombos (ver tabela 5). Igualmente, o levantamento realizado por Monique Lordelo dos quilombos registrados nas correspondências trocadas entre as autoridades da Capitania de Mato Grosso para segunda metade do século XVIII dimensiona tal evasão: entre as repartições do Mato Grosso, Cuiabá e Mojos (América Espanhola), foram localizadas notícias de 20 quilombos de variadas proporções. Nesse bojo, destacaram-se os quilombos do Sepotuba (1769), do Porrudos (1769), Baures (1778), Piolho (1795), Pindaituba (1795) e principalmente o Quariterê, também conhecido como “Quilombo Grande” (1770). 659 Se quatro deles recebem tal denominação pela proximidade com rios (Porrudos, Pindaituba, Sepotuba e Baures), esse não parece ser o caso do Piolho, já mencionado na presente tese. 660 O quilombo abatido em 1795, formado por remanescentes de quilombolas do Quilombo Grande de 1770, mulheres indígenas e caburés, poderia assim ser denominado em homenagem a José Piolho, a quem se atribuía a primeira chefia do já extinto Quariterê;661 ou, ao maior conselheiro de Teresa de Benguela, descrito nos Anais de Vila Bela como maior autoridade entre os parlamentares que assistiam a rainha, escravo de Antônio Pacheco de Morais.662 A despeito da referência, o quilombola aparentemente emprestou nome ao quilombo e, subsequentemente, à própria designação do rio.663 De maneira geral, os locais escolhidos para formação do quilombo se apresentavam como abundantes para caça e pesca, propícios para prática de agricultura e, no caso do Mato Grosso ou Cuiabá, para extração de ouro ou diamantes. É o que podemos observar em 659 Sobre a citada pesquisa, ver LORDELO, Op. Cit., pp. 81-82. Especialmente no capítulo 3, no relato da diligência para captura de quilombolas em 1795. 661 Ver SIQUEIRA, Elizabeth Madureira; COSTA, Lourença Alves da; CARVALHO, Cathia Maria Coelho. O processo histórico de Mato Grosso. 3ª ed. Cuiabá: Editora Guaicurus, 1990. pp.134-135. 662 Ver AMADO; ANZAI, Op. Cit., p.140. 663 Posteriormente o rio aparecerá referenciado como rio São João. Acerca do quilombo do Sepotuba, vale salientar que nos Anais de Vila Bela o mesmo aparecerá referenciado como próximo a um sítio chamado “Sepotuba”, na repartição de Mato Grosso. O mesmo foi destruído pelo sargento-mor Bento Dias Botelho, a pedido do Capitão General Luís Pinto. Ver Idem Ibidem, p. 131. 660 267 documento de 1779, em que é expedida a ordem de examinar, prender e destruir negros que se achassem aquilombados em terras minerais na bacia do Paraguai. Releva-se ainda a prisão de 4 cativos – João Mina, Caetano Mina, Miguel Mina e Mariana –, que estavam em posse de certa quantia de ouro. 664 Com os mesmos, foram também apreendidos armas de fogo, machados, foices velhas, alavancas e panos de algodão. Correspondências trocadas entre autoridades durante a segunda metade do século XVIII, que expressavam preocupação em manter o monopólio da exploração mineira, também manifestavam incômodo com a atuação de quilombolas. Em 1781, por exemplo, o mestre de campo Antônio José Pinto de Figueiredo, em carta ao Capitão-General da Capitania de Mato Grosso, solicitou mais guarda e punição aos quilombolas em região de exploração mineira: (...) se forneça com mais força a guarda do diamantino ribeirão Paraguai, (...) e também é importantíssima procedência que Vossa Excelência fez aplicar sem perdas de tempo para dissipar, queimar e destruir inteiramente aquele quilombo de fugidos que se achavam extraindo ouro e diamantes no proibido ribeirão de Santa Ana o que tudo se executou à risca. 665 Em 1784, o mesmo mestre de campo voltaria a se referir à atuação dos quilombolas na região, afirmando que o quilombo seria grande e com ranchos espalhados por toda região. 666 Tais casos, em última instância, sugerem contatos diretos de quilombolas com comerciantes locais, não somente porque deveriam comercializar clandestinamente o que extraíam das atividades mineradoras, mas também pelo fato de estarem em posse de instrumentos e até armas de fogo, como o caso relatado de 1779. Contatos de quilombolas com habitantes de povoados locais também são referenciados na bandeira que derrubou os quilombos que se localizavam próximos ao rio Pindaituba, em 1795. Segundo o relato da diligência que devassou os arranchamentos liderados por Antonio Brandão e Joaquim Felix, os quilombolas se dirigiam aos povoados para convidar novos cativos à fuga e também para comprarem mantimentos. 667 664 No documento consta que guardavam consigo 20 oitavas e 3 quartos de ouro em pó, além de duas pedras de diamante. Ver APMT, QM, TM, RO 0998, Cx.15; LORDELO, Op. Cit. 665 APMT, QM. TM. CA.1053, Cx. 16. LORDELO, Ibidem., p. 76. 666 O mestre de campo alega que a localização espalhada era estratégia para rápida evacuação, caso fossem atacados por forças externas. Ver APMT, QM, TM, CA.1231, Cx. 19. 667 ROQUETTE-Pinto, Op.Cit., p. 16. 268 Luiza Volpato, ao discorrer sobre quilombos na Capitania e Províncias de Mato Grosso, entre os séculos XVIII e XIX, igualmente constata a grande importância dos contatos para além dos domínios dos territórios quilombolas: (...) a sobrevivência de um quilombo dependia, em grande parte, da habilidade de seus habitantes em estabelecer teia de relacionamentos que permitisse, além do fornecimento de alguns produtos específicos, informações sobre as ações dos seus perseguidores.668 No caso dos quilombos do Pindaituba, é importante lembrar que antes de serem abatidos pela bandeira de 1795, de acordo com o diário da Diligência escrito por Francisco Pedro de Mello, receberam a notícia da chegada da bandeira, que os obrigou a evacuar o arranchamento e montar outro a distância de 6 léguas, junto ao córrego do rio Mutuca. E, posteriormente, já em novo solo, recebem a notícia da continuidade da bandeira e assim desfizeram novamente o quilombo e seguiram para novo sítio.669 Os quilombolas que habitavam as matas nos entornos das minas do Mato Grosso e Cuiabá se viam diante de uma dupla situação: se, por um lado, existia a necessidade de se manter afastados ao máximo que pudessem dos povoamentos escravistas para se preservar a liberdade, por outro lado, também necessitavam de ferramentas, sementes para o cultivo agrícola e outros produtos de indispensável sobrevivência. Assim, o contato com núcleos de povoamento luso-brasileiros se dava majoritariamente de duas maneiras: ou via comércio clandestino ou por meio de ataques a sítios e fazendas. 670 Em outras palavras, se os documentos referentes aos quilombos na região, ao longo do século XVIII, nos apresentam tais lugares como a “antítese de tudo que a escravidão representava”, como diria Richard Price, por outro lado, também é verdade que não estavam isolados e que, por uma questão 668 VOLPATO, 1996, p. 227. ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 17. 670 SILVA, Op. Cit., p. 244; Segundo Flávio dos Santos Gomes, quilombolas na América portuguesa-Brasil, se viam constantemente diante de uma situação paradoxal, uma vez que tentavam manter a autonomia ao mesmo tempo em que buscavam conduzir suas relações com a sociedade externa. Em palavras do autor: “(...) Tentavam manter a todo custo sua autonomia e ao mesmo tempo agenciavam estratégias – permeadas de contradição e conflitos – de resistência junto a piratas, indígenas, comerciantes, fazendeiros, lavradores, até autoridades coloniais e especialmente junto àqueles que permaneciam escavos.” GOMES, Op. Cit., p. 25. 669 269 pragmática de sobrevivência, estavam em contato permanente com núcleos luso-brasileiros e até mesmo indígenas. 671 No que tange aos contatos com luso-brasileiros, constituíam, em última instância, uma delicada relação: ao mesmo tempo em que se exigia a urgência de recapturar e destruir quilombos, porque representavam evasão de capital e enfraquecimento da produção (sobretudo nas lavras), o fato de existirem também estimulava novas fugas e atestava a impotência do governo local em garantir a segurança e manutenção da propriedade privada. É preciso lembrar que a bandeira de 1795, ao retornar vitoriosa após ter abatido quilombos e aprisionado cativos fugitivos, acabou por levantar os ânimos da população local, fustigada pelas dificuldades e custos de ações militares na fronteira.672 Tais relações entre quilombolas e habitantes de povoamentos locais podem também ser observadas no decorrer do século XIX, momento em que tiveram existência vários quilombos, como o de “Jangada”, “Serra Dourada”, Rio Roncador” e “Quilombo do Rio Manso”. Este último formou-se em meados do século, segundo o Chefe de Polícia Ernesto Júlio Bandeira de Melo, separado por 30 léguas de Cuiabá e 14 da freguesia de Chapada dos Guimarães. Além de abrigar cativos fugidos, era composto por criminosos e desertores. 673 Internamente estava subdividido em várias funções: (...) A função de ‘guardião’, executada por escravos que vigiavam os arredores do quilombo e zelavam pela segurança da população quilombola; a função de ‘permutador’, realizada por escravos que conheciam a cidade de Cuiabá. Pois eram encarregados de fazer compras dos gêneros alimentícios e armamentos necessários ao quilombo; a função de ‘mineiro’, encarregados de trabalhar nas minas próximas ao quilombo, principalmente, no rio Roncador, retirando o ouro que era trocado por sal e chumbo. Por último, a função de ‘lavrador’, executada pelos escravos que trabalhavam nas lavouras existentes no quilombo. 674 671 Lembramos ao leitor dois fatos já trabalhados nesta tese: em primeiro lugar, o perfil da população quilombola capturada na bandeira de 1795, com grande parcela de origem indígena; em segundo lugar, as notícias de ataques a quilombos por indígenas xavantes, trabalhadas no capítulo 4. 672 VOLPATO afirma que o retorno triunfante da bandeira de 1795 significava, além da elevação do ânimo da população local, uma vitória do Capitão-General perante autoridades locais. Ver VOLPATO, 1996, p. 225. 673 APMT, Relatório de Ernesto Júlio Bandeira Melo ao Conselheiro de estado Francisco de Paula de Negreiro Sagão Lobato. Cuiabá, Lata 1871C, 29 de fevereiro de 1872. 674 DELAMÔNICA, Op. Cit., p. 130. 270 Essas funções dão clareza quanto às relações estabelecidas para além dos limites territoriais dos quilombos: o guardião, para proteger possíveis incursões de forças externas, o permutador para trocar o que se produzia no quilombo pelo mineiro ou lavrador. Todavia, no caso específico do Quilombo do Manso, o contato com os povoados vizinhos se daria a partir de dois tipos de relação, de acordo com Delamônica: “inter-relações ativas” (roubos, depredações, rapto de mulheres, entre outros) e “inter-relações passivas” (permuta, arrendamento de trabalho para ser realizado em minas, entre outros). 675 Vale ressaltar que no século XIX documentos como os Relatórios de Presidentes de Província informam com grande freqüência a realização de bandeiras contra quilombolas, os constantes inconvenientes causados pelos mesmos e força militar mobilizada. A bandeira que partiu em 1859 da Vila Maria (atual município de Cáceres) para o quilombo que se localizava entre os rios Sepotuba e Cabaçal, a mesma região do quilombo abatido em 1769, exemplifica tal fato: na destruição do quilombo, foram apreendidas 33 pessoas. Destas, 12 eram livres e 21 foram identificados como escravos. Ao chegarem na cidade, tais cativos foram entregues entre os seus senhores. 676 Todavia, chama a atenção a quantidade de “livres” aquilombados com cativos fugidos, que sugere a continuidade de laços afetivos e até mesmo a escolha pela vida longe da sociedade escravocrata. A existência de quilombos, além de representar prejuízos, convite constante à fuga de cativos e danos financeiros, ainda causava constante medo nos povoamentos locais. A mesma bandeira que abateu quilombos no Manso, na segunda metade do século XIX, supracitada, ao retornar parcialmente vitoriosa, causou um certo alívio e ânimo nos habitantes de Cuiabá, segundo o Presidente da Província de Mato Grosso Francisco José Cardoso Júnior: (...)Se a diligencia de que trato não teve um resultado esperado completo, todavia, banio para sempre a supposição de que era impossível penetrar nos esconderijos dos calhambolas, incutindo o receio no animo dos que escaparão, e previnindo as continuadas depredações que já não são, como d’antes, tão amiudadas e communs [grifo nosso]. 677 675 Idem Ibidem, p. 131. Relatório de Antonio Pedro de Alencastro de 3 de maio de 1861. Disponível em < http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/437/000004.html >. Acessado no dia 27 de maio de 2013. 677 Relatório de Francisco José Cardoso Júnior, de 4 de outubro de 1873. Disponível em <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/437/000004.html >. Acessado no dia 27 de maio de 2013. 676 271 No discurso do Presidente da Província, nota-se uma possível crença existente na região sobre a facilidade de fuga de quilombolas ao serem surpreendidos nas ações de captura. De fato, é o que podemos observar na quase-totalidade dos relatos que dispõem sobre as devassas aos quilombos. Ademais, a formação de quilombos no Mato Grosso e Cuiabá, assim como no restante do território luso-brasileiro, foi um fator presente e recorrente. Causador de prejuízos de ordem financeira, o quilombo desafiava a ordem escravocrata. Era uma verdadeira hidra, que formava em torno de si um pântano, conectado de diferentes maneiras com as sociedades externas ao mesmo. A sua existência, em outras palavras, não se tratava de um mero apartarse ou distanciar-se, pois, como vimos acima, seria preciso tecer relações e contatos que ultrapassavam as suas territorialidades ; relações expressas nas trocas comerciais, presença de informantes e na convivência com negros livres e indígenas, que podemos observar com grande clareza durante a longa existência do “Quilombo Grande”, que analisaremos na sequência. 5.2. O Quilombo Grande: duração e “aruaquização” Com longevidade de cerca de seis décadas, o “Quilombo Grande”, também denominado “Quariterê” – referência ao rio “Quariteré”678 –, até o presente momento é conhecido por ser o mais organizado e duradouro quilombo de que se tem notícia na Capitania do Mato Grosso. Atacado em 1770 pela bandeira comandada pelo sargento-mor João Leme do Prado, sendo depois reconstruído por aqueles que escaparam, ao contrário dos demais, recebeu numerosas menções nos documentos históricos que buscaram discorrer sobre a história da Capitania, como Filipe José Nogueira Coelho,679 Augusto Leverger,680 João 678 O rio Quariteré também era conhecido como rio “Piolho” e após as incursões contra quilombolas, foi renomeado de rio São João. 679 COELHO, Op. Cit. 680 LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato Grosso. Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001 (publicações avulsas, originalmente publicada em 1949). 272 Severiano da Fonseca, 681Taunay;682 além do relato detalhado sobre a organização da bandeira que o destruiu, disposto nos Anais de Vila Bela, considerado o mais completo.683 A sua formação, de acordo com as memórias de Filipe José Nogueira Coelho, provedor da Fazenda Real e Intendência do Ouro, é datada na década de 1730, momento em que se descobrem as minas do Mato Grosso. Localizado no vale do Guaporé junto ao rio Galera, quando foi surpreendido em 1770, era governado por Teresa de Benguela, que havia herdado o comando do quilombo após a morte do seu marido. 684 Os detalhes sobre a organização da bandeira estão minuciosamente dispostos nos Anais de Vila Bela: (...) O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General, sendo informados das muitas e continuadas fugas que atualmente faziam os escravos dos moradores desta terra, para os matos, muito principalmente para o quilombo chamado Grande, e desejoso de evitar tão grande dano, o melhor e mais acertado meio que pôde descobrir foi o criar de novo uma companhia de soldados ligeiros para o sertão e mato, com oficiais competentes, sendo sargento-mor dela Inácio Leme da Silva, a quem deu jurisdição ampla para o castigo dos soldados respectivos à mesma companhia.685 O então Capitão-General da Capitania de Mato Grosso, Luís Pinto de Sousa Coutinho, naquele mesmo dia ordenou ao nomeado sargento-mor que aprontasse a sua companhia e partisse o quanto antes. Para tanto, mandou preparar a pólvora e bala, retiradas do armazém real, destacou um grupo de militares para auxiliar a companhia, como o cabo-de-esquadra João de Almeida com seis pedestres escolhidos, e rogou que o sargento-mor procurasse manter um inviolável segredo: a bandeira deveria partir discretamente sem que ninguém soubesse da sua existência, a fim de que os negros aquilombados fossem surpreendidos. Apesar de não estarem discriminadas objetivamente quais eram essas ligações entre quilombolas e habitantes de Vila Bela que poderiam prejudicar o êxito da bandeira, nos é possível conjecturar que as mesmas seriam ativas e constantes. Para que possíveis “laços 681 FONSECA, João Severiano da Fonseca. Viagem ao redor do Brasil (1875-1878). Vol.2. Rio de Janeiro: Typografia de Pinheiro, 1881. 682 TAUNAY, Visconde de. A cidade do ouro e das ruínas (1891), 2º ed, São Paulo: Melhoramentos, 1923. AMADO, ANZAI. Op. Cit., pp. 138-141. 684 SIQUEIRA; COSTA; Carvalho. Op. Cit. 683 685 AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 138. 273 afetivos” dos aquilombados não soubessem, ou possivelmente “contatos comerciais”, era preciso manter a completa discrição da organização e saída da expedição. Findados os preparativos e divididas as despesas entre a Câmara de Vila Bela e moradores proprietários de cativos fugidos, 686 no dia 27 de junho, a companhia formada de 30 homens municiados saiu de Vila Bela, para chegar ao Quilombo Grande cerca de um mês depois. O trajeto percorrido seguiu o curso dos rios Galerinha, Galera, Taquaral, Piolho e rio da Pedra, rompendo, pelo que dispõe os Anais de Vila Bela, “os sertões e veredas mais agrestes”.687 O primeiro ataque se deu na noite do dia 22 de julho: (...) Por estarem as casas do quilombo divididas e dispersas umas das outras, em diferentes partes, abalroaram a primeira que toparam, onde surpreenderam muito pouca gente. E as mais, ouvindo alguns tiros e gritaria, se pôs em fuga, de forma que se viu precisado o sargento-mor a se aquartelar naquele sítio por largo tempo.688 Como vários haviam fugido na primeira incursão, a companhia permaneceu aquartelada no espaço, realizando escoltas nas vizinhanças periodicamente, a partir dos rastros e trilhas deixadas por fugitivos. Após semanas, entre confrontos que levaram à morte 9 quilombolas, a bandeira conseguiu reunir 41 indivíduos entre homens e mulheres. A população total que havia no Quilombo Grande, de acordo com a documentação consultada, variava de 100 a 110 indivíduos: se nos Anais de Vila Bela afirma-se que haviam 69 negros de ambos os sexos, o relato de provedor da Fazenda Real Filipe J. Nogueira Coelho e Augusto Leverger apontam 79.689 A despeito da variação, com eles também haviam indígenas, que, segundo os Anais de Vila Bela, eram “índias, que os tais negros tinham apanhado no sertão, onde matavam os machos e traziam as fêmeas para delas usar como de mulheres próprias”.690 686 SIQUEIRA, Op. Cit. , p. 133. AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 139. 688 Idem Ibidem. 689 COELHO, Op. Cit., p. 182; LEVERGER, Op. Cit., p. 69. 690 Idem Ibidem. 687 274 Nos documentos que narram a queda do Quilombo Grande, não existem referências sobre as possíveis origens étnicas das indígenas assimiladas. Contudo, na bandeira de 1795, que voltou para eliminar com o novo quilombo formado por remanescentes fugitivos de 1770, encontramos algumas pistas: (...) O Quilombo do Piolho que deu este nome ao rio em que está situado, foi atacado e destruído haverá 25 anos, pelo Sargento-mor João Leme do Prado, onde apreendeu numerosa escravatura, ficando naquelle lugar, ainda muitos escravos escondidos pelos mattos, que pela auzencia d’aquella bandeira se tornaram a estabelecer nas vizinhanças do antigo lugar. Destes escravos novamente aquilombados morreram muitos, huns de velhice e outros ás mãos dos gentio Cabixés, com quem tinha continuada guerra, afim de lhe furtarem as mulheres, das quaes houveram os filhos Caborés, 691 que mostra a relação [grifo nosso]. Alguns apontamentos podem ser realizados a partir desse trecho. Em primeiro lugar, os “Cabixés”, como vimos em outra ocasião,692 era uma denominação atribuída aos “PareciKabisis” (grupo Cozárini) ou aos Guainguacuré Aruaquisados, proveniente dos Nambiquaras da região ocidental da Serra dos Parecis. A designação, de acordo com Maria de Fátima Roberto Machado, estava associada a ‘elementos de nível inferior’ ou subalternos. 693 Em todo caso, parece-nos ao menos plausível considerar que a presença indígena no Quilombo Grande seja proveniente desses grupos. Em segundo lugar, se em 1770 é mencionado nos Anais de Vila Bela apenas a presença de “índias” junto aos quilombolas, em 1795, além delas, também são mencionados “índios” e “caburés”; o que sugere alianças com grupos indígenas e hibridizações, uma vez que caburé é resultado do concubinato entre negros e indígenas. As mulheres indígenas presentes no Quilombo Grande em 1770 foram raptadas em situações conflituosas, como os próprios Anais de Vila Bela sugerem e, depois, o diário de Francisco Pedro de Mello. Posteriormente, com o desmantelamento do Quilombo Grande, aparentemente foram reformuladas as relações entre os quilombolas e indígenas, que acabaram por resultar na convivência de ambos, ao passo que alguns se esvaeciam na morte por velhice. Em outras 691 ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 14. Especificamente no capítulo 3 desta tese. 693 MACHADO, Op. Cit., pp. 16-23. 692 275 palavras, de acordo com a necessidade de sobrevivência, estratégias podem ter se alterado. Assim, para se manter fora da sociedade escravista, o quilombola precisava tecer relações tanto com povoamentos luso-brasileiros escravistas, como também com indígenas que habitavam territorialidades vizinhas. Acerca da presença Cabixi junto aos quilombolas, vale mencionar as observações etnológicas realizadas pelo alemão Max Schmidt no início do século XX, a fim de se ampliar a visibilidade dos contatos e possíveis intercâmbios culturais vivenciados no Quilombo Grande. Schmidt, a partir de 3 expedições realizadas à América do Sul no início do século XX e, especialmente, após o estudo sobre os “Pareci-Kabisí”, apresenta em 1917 a sua segunda tese de doutorado, intitulada originalmente “Die Aruaken. Ein Beitrag zum problem der Kultuverbreitung”;694 o objetivo principal consistia em uma análise comparativa dos povos associados à matriz lingüística Aruaque (ou Arowaken), com fim de verificar a expansão, difusão e “aculturação” desses povos. Em uma interlocução direta com numerosos autores – Karl Von Den Steinen, Paul Ehrenreich, Theodor Koch-Grünberg, Everhard Im Thurn, entre outros –, lançando mão de uma análise interdisciplinar e empírica, o autor identificou o que denominou de “aruaquização”; seria a expansão da dita cultura junto a uma vasta área, que se estendia da região amazônica, das fronteiras com as Guianas, à região do Chaco, já em solo boliviano. Tal processo, conforme verificou o autor, operava tanto pela força, como sutilmente, por meio de influências culturais. 695 Como Aruaques eram caracterizados principalmente por serem povos agricultores, constantemente se criava a necessidade da ampliação da força de trabalho, o que acabava provocando a adoção de diferentes estratégias; entre elas, o “direito maternal” e o rapto de crianças e mulheres de povoações vizinhas. O “direito maternal” nas sociedades Aruaques, segundo Schmidt, resultaria da realização de um casamento, quando o homem passava a se integrar à família da noiva. Assim sendo, o chefe da família não seria o esposo, mas a figura do sogro, e os filhos pertenceriam à família da esposa. Se porventura o esposo viesse a falecer, quem assumiria a família seria o pai da esposa. Destarte, o matrimônio, além de ser meio de confecção de alianças com povos 694 “Os aruaques: uma contribuição ao estudo do problema da difusão cultural”. A tradução para o português é de autoria desconhecida e encontra-se atualmente disponível em dois sítios: na biblioteca do PPGAS, do Museu Nacional/UFRJ, e na Biblioteca Digital Curt Nimuendajú. Esta última, que é a versão que ora analisaremos, agrega grande material relacionado a estudos etnológicos sobre populações indígenas da América do Sul. ver SCHMIDT, Op.Cit. 695 Ver a reflexão de Peter Schröder (UFPE), disponível em < http://www.etnolinguistica.org/doc:16 >. Acessado no dia 6 de dezembro de 2014. 276 externos, transformar-se-ia em um centro difusor de transmissão de cultura Aruaque, maneira de introdução mútua de elementos culturais estranhos.696 O autor, no seu estudo, para ilustrar o fato, cita uma pequena celeuma envolvendo os “Parecis-Kabisí”: (...) entre os Parecís-Kabisí havia um filho de cacique com onze nos aproximadamente, cujo pai tinha suas plantações e sua morada junto ao Juruena, a quem fora designada uma menina em Uasirimi, no Jauru, como futura esposa. Esse noivado era tomado tão a sério que o jovem noivo se engalfinhou em luta violenta com outro rapaz da mesma idade, por constar que esse teria se metido com a menina . O jovem filho do cacique exigiu indenização e assestou em seu adversário, que não podia dar satisfações, um profundo golpe de faca, no pé. Também aqui se reconhecia nitidamente que a finalidade propriamente dita desse noivado prematuro, era prender o filho do cacique com sua família na taba do Jauru”.697 No momento em que a mulher engravidava, Schmidt notava outra prática generalizada entre os Aruaques, que reforçava o direito maternal, a chamada “Couvade”, também comum a povos Tupi, Caraiba e Jê. A mulher, estando gestante, deveria se mudar para a casa do pai juntamente com o esposo, consolidando assim o pentercimento à família materna Aruaque. Desse modo, o filho, ao nascer, estaria submisso não ao poder doméstico do pai, mas ao poderio dos parentes da esposa. Portanto, era o que o autor denominava de “valiosos fatores”, uma vez que representavam o aumento de braços para o trabalho. O rapto de crianças e mulheres também seria um traço generalizado entre os povos falantes do Aruaque. Segundo o autor: (...) Assim ouvimos dos Bacairi "aruaquizados", no Paranatinga, que levavam a cabo ataques contra tribos vizinhas com a finalidade de raptar mulheres. Entre eles encontravam-se por ocasião de minha expedição ao Kulisehu as duas mulheres roubadas aos Pareci e 696 Vale salientar que a presente observação sobre os costumes dos povos Pareci-Kabisis, de cunho etnográfico, foi elaborada no início do século XX. Todavia, ao longo da obra o autor, com o fim de pensar a “expansão da cultura aruaque” de maneira comparativa em diferentes regiões da bacia amazônica, se valeu não somente do que observara diretamente, mas também do que havia registrado da “memória coletiva” destes povos, via tradição oral. Desta maneira, além de apresentar uma análise desse processo histórico disposta em longa duração, o interpreta a partir de um ponto de vista “dinamista”, uma vez que está a considerar os diferentes contatos e empréstimos culturais com outros povos, que acabavam por resultar em mudanças em ambos os lados. De outro modo, assim como Joseph Miller, que ao investigar os povos “Imbangalas” na África Centro Ocidental se valeu conjuntamente de dados etnográficos, memória oral e registros escritos (e apresentou uma visão não-estática daqueles povos que estavam em contínua mutação), também entendemos que as diferentes fontes se complementam e nos permitem indagar diferentes aspectos e pontos-de-vista acerca do contato entre indígenas e aquilombados no vale do Guaporé. Sobre a reflexão de Miller ante às diferentes fontes, ver MILLER, 1995, pp. 15-16. 697 SCHMIDT, Op. Cit., p. 22. 277 Kajabís vizinhos, que já K. Von den Steinen ali tinha encontrado. Acerca dos Baré, uma tribo aruaque, cuja pátria provavelmente deve ser procurada originalmente no Cassiquiare, de onde se teriam difundido ao longo do Rio Negro, rio abaixo, muito ao oriente, diz Martius, que empreendiam expedições contra as tribos situadas ao longo das fronteiras do Brasil e além delas, para fazerem comércio de fornecimento de neófitos para as missões e trabalhadores para os colonos. Também Alexander v. Humbolt menciona as caçadas humanas empreendidas pelas tribos indígenas do alto Orinoco e Rio Negro, na sua maioria pertencentes ao grupo aruaque. Também os índios nas missões no alto Orinoco tomavam com grande prazer parte em "expedições para a conquista de almas", carregando crianças de oito a dez anos, distribuindo-as como escravos ou "poitos" aos índios nas missões” (...).698 Especialmente, entre os “Parecis-Kabisí”, tal hábito era comum, praticado principalmente contra os Guaiguacuré, que também poderia surpreendê-los com seqüestros e assaltos, o que gerava um sentimento constante de vingança. Já no seio das sociedades raptoras, observa Schmidt, crianças e mulheres recebiam bom tratamento, apesar das diferenciações. As crianças eram tomadas como escravas, cabendo a cada uma a servidão a um determinado senhor, cujo direito de posse se baseia diretamente no rapto. Quanto às mulheres, são desposadas ou entregues a outro casamento caso o raptor seja casado. 699 No caso específico dos “Kabisí”, o autor afirma não ter notado diferenciação em termos de tratamento das mulheres raptadas e as mulheres nascidas entre os indígenas; o que era explicável pelas funções vitais que cabiam às mulheres, na forma como entendiam esse grupo indígena: administração econômica, encarregadas da economia doméstica e produção de alimentos vegetais. Ademais, em face da presença indígena considerável no Quilombo Grande, apontada em 1770 e 1795, é possível conjecturar que o mesmo, para além de ser um reduto antiescravista, estaria vivenciando uma sutil “aruaquização” no contato com os Cabixi. Como vimos anteriormente, a prática de rapto de mulheres e crianças era comum na região. Assim, antigos cativos, ao se territorializarem no vale do Guaporé, poderiam ter assimilado o referido hábito. 698 699 Idem Ibidem, p. 20. Segundo Max Schmidt, os “Parecis-Kabisí” são tradicionalmente monogâmicos. Idem Ibidem, p.25. 278 Importante ressaltar que, no diário da diligência de 1795 que abateu o quilombo reformado por antigos remanescentes de 1770, após a captura dos 54 que estavam aquilombados – a grande maioria formada por indígenas e caburés, como vimos no capítulo 3 desta tese –, subsequentemente ao batismo, foram re-encaminhados ao antigo espaço onde viviam; recondução feita em várias canoas e em posse de mantimentos, grãos, sementes, animais para criação e ferramentas para fundação da “Aldeia Carlota”, cujo objetivo seria o fornecimento de todo ouro que encontrassem exclusivamente aos portugueses. Também haviam prometido não-contactarem os seus vizinhos, os povos Cabixi. 700 Dessa forma, é presumível que as 30 mulheres indígenas que estavam contabilizadas entre quilombolas em 1770 pudessem ser de origem Cabixi. Assim sendo, para entender sua possível ocupação no interior do Quilombo Grande e consequentemente a penetração de práticas aruaques, é importante notar a posição que poderiam ocupar na povoação de origem: (...) Cabe-lhe [a mulher] carregar durante a marcha as maiores cargas, é ela que sai à cata de frutos, que planta e colhe mandioca e que carrega o produto da colheita para a taba. Ela prepara os alimentos e as bebidas, colhe o algodão e o fia fabricando fios com os quais tece as redes ou fabrica os tecidos para peças de vestuário. Mas os trabalhos mais pesados, como o preparo da mata para o plantio, a construção das casas e o carregamento da lenha são trabalhos para os homens, sendo executados na sua maior parte pela população dependente [grifo nosso].701 No Quilombo Grande, as indígenas raptadas estariam responsáveis pelo fiar de algodão e preparo dos alimentos? Não sabemos a que ponto. Contudo, a documentação sobre a campanha que derrubou o quilombo em 1770 informa com grande surpresa a fartura das roças encontradas. Em 1770, nos Anais de Vila Bela, constava: Estavam esses negros notavelmente fortes de mantimentos, porque cada um tinha sua roça muito bem fabricada de milho, feijão, carás, batatas, amendoim e muito algodão, que fiavam e teciam para se vestir e cobrir, para o que tinha teares à moda de suas terras (...) [grifo nosso]. 702 Em 1795, novamente a fartura da agricultura praticada pelos quilombolas voltaria a ser mencionada: 700 ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 14. SCHMIDT, Op. Cit., p. 25. 702 AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 141. 701 279 (...) situado em hum belíssimo terreno muito superior, tanto na qualidade das terras, como nas altas e frondosas mattarias, as excelentes e, actualmente cultivadas margens dos rios Galéra, Sararé e Guaporé: abundante de caça, e o rio de muito peixe, cujo rio é da mesma grandeza do Rio Branco. A bandeira achou no Quilombo grandes plantações de milho, feijão, favas, mandiocas, manduin, batatas, caraz, e outras raízes, assim como muitas bananas, ananazes, aboboras, fumo, gallinhas e algodão de que faziam panos grossos e fortíssimos com os que se cobriam” [grifo nosso].703 Aqui, chamamos atenção para o cultivo do milho e mandioca e nos valemos novamente das observações de Max Schmidt sobre a agricultura entre os povos Aruaques, que o autor considera como o denominador comum entre todos os povos falantes do idioma. Observa-se diferenciações entre a ênfase em uma planta ou outra, de modo que se, por um lado, na região amazônica, existe uma predominância da mandioca, na medida que se avança em direção ao sudoeste, o cultivo de milho passa a crescer. No caso dos Parecis que habitam as cabeceiras dos rios Juruena e Guaporé, região onde vivem os povos Cabixi, predomina o cultivo do milho. 704 A despeito das diferenciações, o preparo do solo de maneira geral segue o mesmo procedimento: O próprio preparo depende de uma certa estação do ano, por terem as árvores derrubadas que secar durante o período das secas, de modo a poder o fogo, ateado mais tarde, queimar os galhos e os ramos. As cinzas da queimada são o único adubo da futura plantação. Os troncos principais não são devorados pelo fogo, que lhes passa por cima, e são simplesmente deixados, deitados no lugar em que tombaram. Elas beneficiam de algum modo a plantação, pois os pés de milho que entre elas germinam ou as ramas de mandioca que entre elas brotam são protegidos durante o primeiro tempo de seu crescimento, contra os raios solares, extremamente violentos (...).705 As mulheres indígenas Cabixi, raptadas por quilombolas, teriam sido o vetor de introdução das técnicas de cultivo do milho e mandioca junto às dependências do Quilombo Grande? Em vista da anterior função que ocupavam na divisão do trabalho entre os Cabixi, aparentemente a resposta é positiva. O Quilombo Grande, por uma questão de sobrevivência, 703 ROQUETTE-PINTO, Op, cit. ,p. 14. SCHMIDT, Op. Cit., p. 14. 705 Idem Ibidem, p. 14. 704 280 teria então se aberto a um processo de “aruaquização”, ao assimilar mulheres indígenas que traziam consigo práticas agrícolas. Igualmente, é preciso problematizar o próprio perfil dos habitantes do quilombo que havia se formado na região com remanescentes do Quilombo Grande, abatido depois de 25 anos: “6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caborés e 11 caborés fêmeas”, 706 totalizando 54 capturados. Em primeiro lugar, a presença de indígenas do sexo masculino pode significar duas ordens de fatos: ou foram capturados ainda quando crianças e cresceram com quilombolas, ou se agregaram devido a alianças.707 Em segundo lugar, no que diz respeito às mulheres indígenas, cabe-nos perguntar se foram adquiridas somente via-rapto ou se algumas das encontradas se somaram devido a acordos mútuos, possivelmente semelhantes aos que vimos acima. O grande número de Caburés sugere um intenso intercâmbio cultural, pelo fato de que mulheres indígenas aruaques traziam consigo práticas agrícolas e também porque poderiam representar a introdução do quilombola em laços parentais maternais, no caso do ajuntamento de negros ter se dado por possíveis alianças. 706 ROQUETTE-PINTO, Op. Cit., p. 15. Alianças, quiçá, com perfil militar. Lembramos ao leitor das hostilidades entre os Cabixi e os Guaiguacuré (Nambiquara). Caso indígenas fossem Guaiguacuré, possivelmente buscavam algum tipo de proteção junto aos quilombolas. 707 283 Fig. 11 - O Quilombo do Quariterê, encontro de mundos. Por Thalita Pinheiro Rodrigues (2015). 283 Em outras palavras, entre as duas bandeiras que atacaram os quilombolas que habitavam a região do vale do Guaporé, em 1770 e 1795 respectivamente, o Quilombo Grande, no caso dos acordos matrimoniais terem acontecido ou pela simples presença de mulheres “Parecis-Kabisí” raptadas, poderia estar passando por um sutil processo de “aruaquização”, especialmente na divisão do trabalho e cultivo de determinadas culturas. O inverso dessa “aruaquização” também poderia ter lugar. Em 1770, por exemplo, na descrição daqueles que serviam Teresa de Benguela, denominada a rainha do Quilombo Grande, são mencionadas negras e índias. 708 Indagamo-nos a que ponto tais indígenas haviam assumido a hierarquia política que se apresentava no quilombo: assimilados, teriam se africanizado ou apenas estariam procedendo conforme padrões de hierarquia anteriores que traziam dos Cabixi, visto que a captura de mulheres na região era recorrente, assim como o posterior casamento e servidão? Entre os Pareci-Cabixis, Schmidt relata um fato interessante, ao discorrer sobre a expansão da cultura Aruaque. Afirma que, na região das cabeceiras dos rios Jauru e Juruena, havia um cacique chamado Chiquinho, conhecido e influente em toda a região por praticar “bruxarias” e manipular demônios, que provocavam doenças e até mortes. A sua técnica se caracterizava principalmente pela mistura de extratos culturais diversos, especialmente ensinamentos “mandingas”. Embora seja um fato contemporâneo da expedição de Schmidt, é possível presumir o estranhamento que poderia causar a presença africana na região. De todo modo, lembramos que também em 1795, na descrição dos quilombolas capturados na mesma região, Francisco Pedro de Mello mencionava o fato de que os indígenas capturados conheciam alguns rudimentos da doutrina cristã e até falavam um pouco do idioma português, e, por essa facilidade, todos foram batizados. Poderiam ter se africanizado ao se submeterem à hierarquia política que se apresentava – caso a mesma correspondesse a alguma noção africana, que veremos adiante –, e, possivelmente, por meio de quilombolas que igualmente estavam em processo formativo, teriam se aberto ao mundo Atlântico europeu. Essa tolerância com o mundo europeu entre os Aruaques também foi notada por Max Schmidt. De acordo com o mesmo, estaria ligada aos próprios motivos de expansão da cultura Aruaque: para manutenção e fundação da posição predominante perante outros povos considerados por eles como “inferiores”, estabeleciam-se relações amigáveis com povos tidos 708 AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 139. 284 como “mais elevados”. Especificamente os Cabixi, faziam um jogo duplo, segundo o autor: ao mesmo tempo que se apresentavam aos europeus como povos “pacíficos” e, por vezes, atuavam como “intermediários” para o contato com povos considerados “bravos”, realizavam assaltos com arco e flecha e atribuíam a autoria aos seus inimigos, os Guaiguacuré. A tolerância para com europeus, de maneira geral, entre os aruaques, seria parte de uma estratégia de auto-preservação: (...)a cultura aruaque por meio de sua própria tendência de expandir seus direitos senhoriais, se atira aos braços da cultura européia naturalmente com a consequência inevitável de ser inexorávelmente por ela esmagada.709 Dessa forma, a incorporação de indígenas à hierarquia política no Quilombo Grande e à estrutura produtiva pode ser explicável não somente pela força, mas também pela noção que mulheres indígenas já traziam dos territórios aruaques. Cabe-nos, portanto, a tarefa de precisar a própria organização política do Quilombo Grande. 5.3. O que atravessou o Atlântico: das “Áfricas” na organização e resistência políticomilitar do Quilombo Grande Se é verdade que não nos é possível sustentar que a constituição de “quilombos” nas Américas, na maioria das vezes, não se tratou de uma reconstituição de estruturas políticas africanas, por outro lado, também devemos considerar que aqueles homens e mulheres, que tentaram começos e re-começos em torno dos respectivos espaços, traziam consigo “bagagens” culturais e políticas, vivências ou experiências, que ao longo de toda travessia atlântica estavam em contínua reformação. Assim, partindo desse pressuposto, nas seções que se seguem, em primeiro lugar, apresentamos algumas notas sobre a presença “bantu” no vale do Guaporé; em um segundo momento, pensamos o possível agenciamento dessas bagagens na organização e resistência do Quilombo Grande. 709 SCHMIDT, Op. Cit., p. 42. 285 5.3.1. A África-bantu para além da documentação oficial: congada, organização, familiar e traços lingüísticos no vale do Guaporé Antes de enveredarmos a reflexão para os mecanismos organizativos que possivelmente pudessem remeter a experiências anteriores ao cativeiro na África, é necessário o ensaio sobre a procedência da população escrava da Capitania do Mato Grosso, a fim de delinearmos qual o significado atribuído às instituições criadas por africanos aquilombados. Logo, pois, embora a documentação oficial possa limitar a análise sobre as noções culturais, políticas e sociais trazidas por africanos, posto que se resume a mencionar junto ao nome cristão apenas a procedência comercial – Sebastião Benguela, Antonio Mina, entre outros –, o exame baseado em outras fontes tem desvelado novas facetas da agência desses homens e mulheres. Nesse sentido, trabalhos concentrados nas manifestações culturais e religiosas tradicionais, no formato e lógica de organizações familiares ou na reconfiguração e reformulações lingüísticas, decorrentes dos contatos interculturais, são de grande valia para pensarmos o perfil destes sujeitos no Vale do Guaporé; e, por conseguinte, o que traziam consigo, visto que, além de lançarem novas luzes para compreensão dos espaços constituídos por africanos na região, complementam as informações dispostas nos documentos escritos. É o caso do trabalho realizado por José Leonildo Lima, que reuniu importante material documental na pesquisa de campo realizada diretamente na atual Vila Bela da Santíssima Trindade, a fim de problematizar a memória coletiva e suas transformações. O autor, centrado na coleta de aspectos lingüísticos (proveniente do contato com habitantes da cidade) e na análise dos cantos que circulavam durante o período da Festança, constatou a presença de várias marcas lingüísticas e manifestações culturais de origem africana, com predominância bantu. 710 A Festança, ponto alto do trabalho investigativo do autor, refere-se a um ciclo de festas realizado em Vila Bela da Santíssima Trindade, que marca o início do calendário agrícola (preparação para semeadura), realizadas atualmente na segunda quinzena de julho. Entre os eventos que a compõem, destacam-se a Festa do Divino Espírito Santo, Santíssima 710 Lima realizou sua pesquisa de campo em 1999 e permaneceu em Vila Bela por 20 dias, durante a realização das “Festanças”, no mês de julho. De acordo com o autor, foi elaborado um questionário com 30 perguntas e selecionados 10 informantes de ambos os sexos, 5 dos quais não participavam do conjunto de eventos. Assim, conseguiu reunir vocabulários e os cantos que os festeiros entoavam durante a festividade. Ver LIMA, José Leonildo. Vila Bela da Santíssima Trindade – MT: sua fala, seus cantos. Campinas: Universidade de Campinas – Instituto de Estudos de Linguagens, 2000 (dissertação), p. 17. 286 Trindade, Nossa Senhora do Rosário, Mãe de Deus, a Festa de São Benedito, a dança do chorado e a do Congo. Preparada por “festeiros”, tais festividades envolvem massivamente a comunidade e englobam rituais preparatórios, rezas, peregrinações, encenações, confraternizações com bebidas tradicionais (como o “aluá” e “kanjinjin”) e apresentações de corais. Especialmente na Festa de São Benedito, dança do chorado e Congo, podem se observar traços que remetem às experiências escravistas no vale no Guaporé. A primeira é organizada pelos festeiros denominados “Rei, Rainha, Juiz, Juíza e ramalhetes”. Com exceção do Rei e Rainha, cargos destinados às pessoas mais velhas da comunidade (veneração às gerações mais velhas), os demais são escolhidos por sorteio.711 Ao longo dos dias que antecedem a festa, são realizados vários rituais preparatórios, com queima de fogos, repicar de sinos e rezas, que exaltam São Benedito e o sofrimento do povo. Para a realização da missa, um dos momentos mais importantes da Festa, os organizadores caminham por toda a cidade para reunirem todos os festeiros, ao ritmo de vários cantos, em que são notáveis vestígios da memória cativa na região: Sai, sai, o ingome sai Saia do caminho Sai engomerê Chegou, chegou, chegou enganaiá Chegou, chegou, chegou enganaiá Para fazer a nossa festa de São Benedito Para fazer a nossa festa de São Benedito [grifo nosso].712 Ingome designa uma espécie de atabaque, palavra originária do bantu “ngome”. Engorê provém do bantu “ngomile” e significa “festeiro”. Enganaiá vem da ideia de brincadeira. 713 711 O Rei e Rainha exercem cargos “honoríficos”, ao passo que a organização propriamente da Festa de São Benedito, se dá ao Juiz e Juíza. Quanto aos ramalhetes, cabe a estes carregarem rosas durante o desfile pelas ruas da cidade ao longo dos dias da festa. Ver LIMA, Ibidem, p. 60. 712 Idem Ibidem, p. 59. 713 Ver Anexo 1 da supracitada dissertação. Ibidem, pp. 172-173. 287 A dança do Chorado, por sua vez, acontece após o findar da missa, representada por 12 dançarinas em trajes multicoloridos, ao ritmo de tambores e forte bater de mãos. Em Vila Bela afirma-se que a dança teve os seus objetivos metamorfoseados com o passar dos anos, em função das mudanças contextuais. Inicialmente, era realizada quando mulheres cativas dançavam aos seus senhores, com o objetivo de livrarem os filhos de castigos ou penas de morte, no caso de estarem condenados. A dança em si era caracterizada por movimentos sensuais, e cativas utilizavam um lenço amarrado no pescoço e equilibravam objetos na cabeça (pedra, lata de água ou pedaços de madeira). Com a abolição da escravatura, o Chorado passou a enfatizar as circunstâncias históricas vivenciadas pelos habitantes da região. Contudo, as marcas do período escravista ainda estão presentes em versos cantados, que abordam dificuldades alimentares, autoridades, entre outras situações. 714 Após a dança do Chorado, inicia-se a “dança do congo”. Comum em várias regiões do Brasil, com variações locais quanto às canções recitadas, enredo ou bailado, em Vila Bela é parte das festanças de homenagem a São Benedito. Como representação dramática, a Dança do Congo, assim como as demais, é organizada por festeiros que possuem cargos e responsabilidades: Rei do Congo, Secretário, Príncipe, Embaixador e 12 pares de soldados. Desses, apenas o Rei e o Secretário possuem cargos vitalícios. Os demais são constantemente substituídos como forma de manter viva a memória histórica e cultural da cidade. Juntos, todos esses personagens encenam o seguinte roteiro: com o rei e príncipe sentados, entram soldados com embaixador à frente, que entrega uma carta ao Rei do Congo, por ordem do Rei de Bamba, que exigia o casamento com sua filha, sob ameaça de guerra. Sentindo-se ultrajado, o Rei do Congo manda prender o Embaixador e pede que o seu Secretário declare guerra ao Rei de Bamba, com a benção de São Benedito. Assim que este último é derrotado, os seus exércitos passam a fazer parte das fileiras do Rei do Congo, que concede ao Secretário a sua filha em casamento, Ana Maria de Gouveia, em honra a sua bravura.715 Tal enredo engloba numerosas referências, a começar pelo fato do Rei do Congo pedir benção e proteção a São Benedito, um santo cristão. Registros de chefes (chamados “mani”) congoleses convertidos ao cristianismo e aliados à coroa portuguesa são fatos recorrentes na 714 De acordo com Lima, nos versos “Meu patrão brigou comigo/ Mas não foi por coisa à toa,/Foi porque eu fui buli,/No tinteiro da patroa./Oi guirro, guirro, guirro lá (bis)”, está perceptível uma relação outrora comum no cotidiano escravista: senhores envolvidos com cativas. Ver LIMA, Ibidem, p. 99. 715 Ver seção 2.3.10. em que Lima descreve todas as falas da Dança do Congo de Vila Bela.Ibidem, pp. 70-78. 288 história do Congo. O catolicismo, de maneira geral, operou na região como instrumento de contato entre portugueses e congoleses. Marina de Mello e Souza, por exemplo, afirma que já na expansão das atividades portuguesas junto ao mundo Atlântico a coroa portuguesa havia assumido o compromisso de conversão de todos os povos que fizessem contato, com aval de Roma. A conversão seria, assim, argumento decisivo para o próprio reconhecimento do direito de soberania dos exploradores portugueses para com outros povos.716 Vale ressaltar que o “reino do Congo”, tal como aparece descrito nos registros históricos que deram conta dos primeiros contatos entre portugueses e congoleses,717 configurou-se a partir de uma construção gradual dos congoleses de acordo com padrões europeus, de modo que o mani Congo, Kzinga Kuwu, somente foi denominado “Rei” após se converter ao cristianismo em 1491.718 De qualquer maneira, quando portugueses chegaram ao Congo e estabeleceram os primeiros contatos, defrontaram-se com toda uma estrutura de poder centralizada no mani Congo, que habitava a cidade Mbanza Congo (posteriormente nomeada São Salvador); contava com numerosas territorialidades subordinadas, as quais portugueses posteriormente denominaram de províncias – Soyo, Mbamba, Sundi, Pango, Bata (ou Mbata) e Pemba.719 Após a conversão do mani Congo, re-nomeado de D. João I, foi construída a primeira igreja, que pouco depois fora palco do batismo do seu primogênito, cujo nome também foi alterado – passava a se chamar D. Afonso, tal como o filho do rei de Portugal. Em 1491, também se realizou a primeira missa na região e batismos, que marcariam a adesão ao cristianismo e aliança com a coroa portuguesa dos chefes locais, mencionadas constantemente nos séculos seguintes. 720 Todavia, além da compreensão da conversão de africanos ao cristianismo dentro da história política congolensa e, por conseguinte, bantu, precisamos deslindar o possível 716 Ver SOUZA, Marina de Mello e.Evangelização e poder na região do Congo e Angola: a incorporação dos crucifixos por alguns chefes centro-africanos, séculos XVI e XVII. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, 2005. 717 Principalmente nas obras do capitão Rui de Souza, presente na terceira expedição que chegou ao rio Congo, intituladas “Crônicas d’El Rei D. João II” e “Relação do Reino do Congo”, de 1502 e 1492 respectivamente. 718 O mesmo se passou com os chefes (os mani) locais, que após conversão passaram a se denominar “fidalgos”. Ver GONÇALVES, Rosana Andréa. África indômita: Missionários capuchinhos no Reino do Congo (século XVIII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de História, 2008 (dissertação), p. 19. 719 Idem Ibidem, p. 20. Sobre as alianças de portugueses e congoloses de a partir do século XVI, ver HILTON, Anne. The Kingdom of Kong. Oxford, Oxford University Press, 1985. 720 289 significado desse processo para os africanos. Autores como Wyatt MacGaffey, Kimbwandande Kia Busenki Fu-Kiau e Maria de Mello e Souza, fornecem algumas reflexões que podem ser úteis para esse propósito. Para os autores, a adoção do cristianismo por parte dos congoleses constituiu, antes de mais nada, uma maneira de reforçar o poder local frente aos inimigos. Quando os povos congo adotam a cruz, por exemplo, possivelmente não significaria para eles a pura conversão ao cristianismo, em vista da simbologia local que se atribuía ao signo. Entre os Bagongo, a cruz estaria relacionada ao ciclo do sol, indicaria o ciclo básico da vida, a partir dos quatro pontos/movimento circular que o sol realiza no céu: o nascimento, quando surge no horizonte; maturidade quando alcança o centro do céu; a morte quando se põe; e, por fim, o mundo dos mortos, quando está no pólo oposto da terra. Desse modo, o catolicismo com sua simbologia havia sido assimilado em lógicas africanas, com fim de se aumentar o poder frente aos inimigos locais. O que ocorrera seria uma re-adaptação que combinava crenças e símbolos recém-descobertos com preceitos já existentes. 721 Essa relação amistosa se estenderia por séculos, como no próprio episódio em que portugueses socorreram o rei do Congo das invasões Jagas em 1573.722 Portanto, não é de se causar estranheza que o rei do Congo, descrito na congada de Vila Bela, antes de partir à guerra, invoque a proteção do santo católico São Benedito. Certamente, as alianças firmadas entre congoleses e povos brancos foram transmitidas oralmente dentro das próprias migrações internas que se deram na África Central.723 Vale salientar que, no caso da dança do Congo, mesmo com as imprecisões e possíveis influências que puderam ter se agregado ao longo dos anos no que diz respeito à composição do enredo – afinal a sua realização atravessa uma considerável temporalidade724 –, o registro 721 Ver SOUZA, Op. Cit, pp. 2-7; ver também MACGAFFEY. Wyatt. Religion and Society in Central África. The BaKongo of Lower Zaire. Chicago, The University of Chicago Press, 1986; Idem, Kongo Political Culture. The conceptual challenge of the particular. Bloomington, Indiana University Press, 2000; Idem, “The west in Congolese experience”, Africa & the West, organizado por Philip D. CURTIN, Madison, University of Wisconsin Press, 1972, pp. 49-74; FU- KIAU, Kimbwandande Kia Busenki. Tying the Spiritual Knot. African Cosmology of the Bântu-Kôngo. Principles of Life & Living, Canada, Athelia Henrietta Press, 2001. 722 Abordados anteriormente no primeiro capitulo desta tese, em torno do debate historiográfico entre os historiadores John Thornton e Joseph Miller, acerca da existência real dos Jaga e posteriores migrações. 723 Certamente com prováveis alterações no significado para os que assistiam, em função dos diferentes contextos sócio-políticos desde o século XVI. 724 Segundo Bandeira, com a mudança da capital da Província de Mato Grosso de Vila Bela para Cuiabá em 1835, houve a intensificação do deslocamento da população branca e das atividades econômicas à Cuiabá. Nesse contexto, as irmandades negras, como a de São Benedito, passaram a se expandir e as festas organizadas pela mesmas passaram a ser espaço de “resistência étnica”. Em palavras da autora: “(...) a festa religiosa foi sendo transformada pelos negros num espaço de resistência étnica, na medida em que possibilitava a celebração pública de práticas culturais dos pretos. As festas do Divino, da Padroeira, dos santos, originalmente formas brancas de culto religioso, passaram a veicular conteúdos culturais negros. Pelo seu caráter altamente associativo 290 dos cantos revelam mais conexões com a história política africana, como a referência ao rei de “Bamba” (ou Mbamba), que estava localizado ao sul de Nbanza Congo (São Salvador). A presença bantu no vale do Guaporé também tem sido desnudada em trabalhos que investigam a organização familiar em Vila Bela; como a pesquisa de Maria Lourdes de Bandeira, que tem como ponto de partida a evasão da população branca da cidade, progressivamente, após o encerramento das atividades da Companhia Grão Pará e Maranhão. De acordo com a autora, nesse processo que remetia ao final do século XVIII, as relações de escravidão entre os brancos que abandonavam a cidade e os escravos que ficaram se dissolveram. E, mesmo aos brancos que permaneceram e mantiveram a população escrava, as relações foram adaptadas ao estreitamento do convívio e interação, de modo que negros passaram a ocupar gradualmente cargos de importância econômica, militar e religiosa. A descrição de Castelnau ilustra essa coexistência e inserção negra na antiga estrutura burocrática branca, em meados do século XIX, ao notar a estranha ascensão de um homem africano a um posto de comando militar: (...) Às quatro horas da tarde fomos à procura do comandante-chefe, onde tinha sido preparado um jantar de gala. Uns após outros vinha chegando os convidados ao salão do palácio; quase todos estavam de uniforme e variavam na cor entre negro retinto ao chocolate claro. Nossa atenção foi atraída particularmente por um negro já velho e de movimentos inteiramente parecidos com os de um macaco; seus olhos sanguíneos faziam tenebroso contraste com a cor da pele; alguns raros dentes, de enorme tamanho, acentuavam-lhe ainda mais a proeminência dos lábios; nas maçãs do rosto viam-se-lhe os restos da tatuagem que trouxera da terra natal nas mãos enormes notava-se aquela contracção particular que se encontra muitas vezes nas dos babuínos. Este curioso personagem trazia o uniforme de capitão; era de resto um homem bastante devotado, e que em várias circunstâncias tinha dado provas notáveis de bravura. Isso lhe valera o comando da cidade fronteiriça de Casalvasco (...) [grifo nosso].725 Pela descrição do autor, quase todos “uniformizados” e negros, presentes no jantar de “gala” oferecido pelo Comandante-chefe no Palácio dos Capitães-Generais, o espaço mais e integrador, foram apropriadas pelos negros primeiramente como meio de atualização de sua etnicidade e posteriormente como rituais de celebração, atualização e reprodução da sua comunidade”. Ver BANDEIRA, Op. Cit., p. 130. 725 CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. 2 Vols. São Paulo: Editora Nacional. 1949. Apud Idem Ibidem, p. 134-135. 291 nobre da cidade naquela altura.726 Não escapou também ao olhar do expedicionário francês a estranha coletividade observada durante o jantar de gala: (...) Estávamos bastante impacientes pelo momento de sermos apresentados às senhoras, quando o dono da casa, tomando-me pelo braço, disse-me que o jantar estava na mesa. Levou-nos então para uma grande sala de refeições, onde em cima de uma comprida mesa estavam todos os produtos da zona. Num dos lados da mesa estavam agrupadas umas doze mulheres muito bem vestidas, quase todas mulatas e com a aparência de grande acanhamento em face dos estrangeiros. Os convidados tomaram seus lugares, depois de ter mudado de roupa; mas não havia proporção entre o número deles e o das cadeiras e pratos, de modo que muitos tiveram de ficar em é, enquanto outros se sentavam dois ao mesmo assento. A parte feminina da assembléia era neste particular a mais desprotegida; às vezes três mulheres sentavam-se numa mesma cadeira, ao passo que outras se utilizavam dos joelhos de suas companheiras. Três e até mesmo quatro comiam do mesmo prato, ao mesmo tempo que os mesmos copos tinham de fazer a volta e servir as várias pessoas. No que se refere aos garfos, os que não logravam possuí-los sabiam arranjar-se muito bem com os próprios dedos [grifos nossos].727 Sentavam-se no mesmo assento, comiam no mesmo prato, bebiam no mesmo copo, de acordo com o viajante, espantado com tal coletividade observada. De todo modo, a análise de Bandeira, para além de apresentar o contexto em que a população negra se re-adaptou e se valeu das estruturas burocráticas luso-brasileiras em finais do século XVIII e início do XIX, apresenta uma reflexão acerca das formas de famílias observadas em Vila Bela da Santíssima Trindade; o objetivo não é identificar “sobrevivências”, mas perceber como as referências anteriores à escravidão, em solo africano, foram re-adaptadas e operantes de acordo com as necessidades concretas da comunidade. Assim, notou quatro principais tipos de família na cidade: (1) família nuclear, formada por homem, mulher e filhos; (2) matrifocal, composta por homem (não necessariamente), mulher, filhos e filhos das filhas, filhos da irmã e mãe da mulher; (3) família poligâmica, na qual o homem é casado com várias mulheres; (4) família maternal simples, com mãe e filhos. Segundo a autora, os quatro tipos de organização familiar 726 Francis Castelnau foi chefe da expedição científica enviada ao Brasil pelo governo francês em meados do século XIX, de 1843 a 1847. Durante a sua estadia no país, juntamente com outros membros, percorreu as Províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso, além de passar pelo Paraguai, Bolívia e Peru. 727 CASTELNAU, Ibidem, pp.365-367 Apud BANDEIRA, Ibidem, p. 135. 292 ainda podem ser observados em Vila Bela, embora a família poligâmica ocorra com menos freqüência em função das pressões econômicas. 728 A família poligâmica seria aquela que remeteria a modelos africanos, na qual cada mulher teria uma “choça particular”, vindo o homem regularmente comer e dormir com as mesmas. 729 Bandeira, na sua pesquisa de campo, registrou um caso notável, em que um homem era casado com 4 mulheres e possuía 36 filhos. Ele pertencia ao estrato mais alto da comunidade, com liderança política, gozando de prestígio e consideração social. Além de fazendeiro, era comerciante e hoteleiro. Os seus 36 filhos trabalhavam nos seus mais diversos empreendimentos, incluindo a casa da “esposa legítima”, uma vez que havia uma diferenciação entre a “mulher principal” e as “esposas secundárias”. A análise dos traços lingüísticos de quilombolas do Vale do Guaporé, por Geralda de Lima Angenot e Cezanildo Alves Soares, igualmente aponta para a presença africana bantu na região. Ambos os pesquisadores, vinculados ao Centro de Pesquisa de Linguística da Amazônia (CEPLA), da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), a partir do trabalho de campo realizado junto aos quilombos “Pedras Negras” e “Santo Antonio do Guaporé”, reuniram um considerável “corpus lingüístico” por meio de 5 informantes remanescentes. Tais comunidades, por meio dos intensos contatos culturais entre africanos, grupos indígenas, portugueses e espanhóis, constituíram um léxico particular e singular, em constante mutação, desvelando a “língua” como fenômeno vivo. Em palavras dos autores: (...) É notório que as comunidades descendentes de escravos negros que se aquilombaram no Vale do Guaporé preservaram alguns traços lingüísticos de origem africana; também, por viverem numa região isolada, conservaram alguns arcaísmos característicos do português; e, finalmente, pelo contato com outros falares da região, com as línguas indígenas, com o espanhol e outras variedades do português trazidas por imigrantes mais recentes, assimilaram traços culturais e lingüísticos desses últimos.730 De maneira geral, os autores constataram numerosos vocábulos que sofreram alteração ao longo dos anos e ocorrências morfológicas, comuns aos idiomas africanos bantus. Como exemplos, temos a “elisão”, em que o “de onde” transforma-se “donde” ou “de antes” em 728 A obra de Bandeira foi publicada em 1988 e é resultado do trabalho de campo realizado na década de 1980, junto ao projeto de estudo das comunidades negras em situação rural, pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. 729 Tal modelo corresponderia ao “compound”, verificado por Roger Bastide. Ver BASTIDE, R. As Américas Negras. As Civilizações Africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difel, 1974, p. 42. 730 ANGENOT, Geralda de Lima; SOARES, Cezanildo Alves. “Aspectos morfológicos do falar afroguaporeano”. In: Revista Eletrônica Língua Viva. Vol. 1, No.1, 2011, p. 3. 293 “danti”; ou a “Aférese”, caracterizada pela supressão de fonemas – “amor” em “mô”, “José” por “Zé” ou “Antonio” por “Tõe”.731 Essa última ocorrência é comum no mundo africano com o qual os portugueses estabeleceram contatos ao longo da empresa escravista. Destarte, no corpus lingüístico falado pelos remanescentes quilombolas do vale do Guaporé e reconfigurado ao longo de séculos de contatos interculturais – denominado pelos autores de “afro-guaporeano” –, podemos constatar a forte presença bantu na região, já apontada genericamente nos documentos oficiais. Em suma, os mais diferentes caminhos, para além das fontes escritas, nos levam a considerar que os africanos aquilombados e liderados por Teresa de Benguela, em 1770, pudessem ser majoritariamente de origem bantu, 732 com possível predominância daqueles oriundos dos reinos de Angola e Benguela. Ademais, pelo exposto, podemos ensaiar adiante uma interpretação da organização política do Quilombo Grande à luz das tradições políticas e militares dos povos africanos dessa região, especialmente dos Imbangalas e Ovimbundus. 5.3.2. Fúria e paixão: a organização política e militar do Quilombo Grande à luz dos Imbangala-Ovimbundus A bandeira que derrubou o Quilombo Grande em 1770 não se deparou com um simples ajuntamento de cativos, mas com um território estruturado e hierarquizado. Segundo o Provedor da Fazenda Real, Filipe José Nogueira Coelho, o quilombo era governado por uma rainha viúva chamada Teresa. Havia ainda uma espécie de “parlamento”, que auxiliava a governança do quilombo, cuja maior autoridade era José Piolho.733 As minúcias do cotidiano da governança do Quilombo Grande são narradas nos Anais de Vila Bela: (...) Governava-se esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entravam os deputados, sendo o de maior autoridade, tido por 731 As outras ocorrências verificadas foram a metátese/elisão (encolhimento de vocábulo, como “para” a “pra”), metátese e fusão (de “para os” a “prus”), nasalização das vogais (de “com os” a “cus” ou de “como é?” a “Kumé?”), aférese (supressão de fonemas. Por exemplo: “estão” a “tão”), monotongação do ditongo (supressão da semi-vogal. Ex.: “roupa” a “ropa”), entre outras. Segundo os autores, tais processos são decorrentes dos contatos interculturais. Idem Ibidem,pp.5-13. 732 Embora também a presença de africanos provenientes da costa da mina possa ser considerada, em vista da rota terrestre e volume trazido pelo norte, pela Companhia Grão-Pará e Maranhão. 733 COELHO, Op. Citi, p. 182. 294 conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais. Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executavam à risca, sem apelação nem agravo. 734 São poucos os rastros que temos disponíveis para entender essa organização política do Quilombo Grande e, principalmente, as suas lideranças. A partir do sobrenome de Teresa, indicado pela documentação oficial, temos apenas o indicativo de que havia saído da África pelo porto de Benguela. Quanto a José Piolho, pelo que dispõe os Anais de Vila Bela, que tivera passado pelo Rio de Janeiro antes de parar no Quilombo Grande. O próprio José Piolho, segundo Augusto Leverger, havia inspirado a re-nomeação do rio Quariteré para “rio Piolho”, que ficava próximo ao Quilombo Grande.735 Nos Anais de Vila Bela ganhava o seguinte destaque: (...) Tinha por maior oráculo o tal Piolho, por ter sido, em outro tempo, rei em um quilombo que se dissolveu nos matos da cidade do Rio de Janeiro. Este, fiado nas mandingas com que o diabo o trouxe sempre enganado, foi um dos que resistiu, isso depois de algumas ciladas que fez aos soldados. Por isso, acabou a vida diabolicamente: a violência de um tiro que lhe empregaram no corpo.736 Não era por causalidade que José Piolho havia se transformado no Conselheiro de Teresa. Descrito como o “maior oráculo”, já havia sido “rei” em outro quilombo, nas matas do Rio de Janeiro. Provavelmente capturado, foi comercializado para as minas de Cuiabá ou Mato Grosso, como parte da punição. Contudo, se assim se deu a história do nosso personagem, ele não cessou de buscar a sua liberdade, em outra circunstância, fugiu e se aquilombou novamente. No que diz respeito à organização política, vale frisar que a descrição da governança por um rei ou rainha a partir do ponto de vista do agente da coroa portuguesa e escravista não é uma particularidade ou singularidade do Quilombo Grande. Carlos Magno Guimarães, ao analisar as menções de quilombos em Minas Gerais ao longo do século XVIII, menciona 734 AMADO; ANZAI , Op. Cit., p.140. LEVERGER, Op. Cit., p. 69. 736 AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 140. 735 295 numerosas situações em que comunidades quilombolas eram descritas como governadas por chefias, que subordinavam os seus membros. Na pesquisa realizada pelo autor, são citados casos em que a população de quilombolas elege um rei, outros em que o rei se auto-proclama, como o caso do Bateeiro, rei do quilombo dos “matos do Forquim” – ao ser preso, declarara que estava fugido por dez anos e que anteriormente era “capataz” e depois passou a ser rei.737 Já no Quilombo do Ambrósio, conhecido como o maior quilombo de Minas Gerais durante o século XVIII, o rei havia sido eleito. Em carta endereçada ao rei, as ações dos quilombolas e escolha da chefia são detalhadas por Gomes Freire: (...) Destacavam continuamente partidas de vinte e trinta negros que executavam roubos e crudelíssimas mortes; algumas partidas se apanharam e posto se lhe fez justiça, não foi bastante remédio, antes se aumentou o número de negros aquilombados e chegou a tanto que, segundo os melhores cálculos, passavam já de mil negros, e grande número de negras e crias: unido este poder elegeram rei e formaram um palanque assaz forte e determinando-se a aparecer o fazem com a insolência de queimar as vivendas, matarem os senhores delas, forçarem as famílias e levarem os escravos que entendem próprios reclutas.738 À esteira das considerações do autor, parece-nos plausível considerar não somente os vários caminhos percorridos para que um quilombola fosse escolhido o “rei”, mas principalmente o possível significado da autoridade política para aqueles que estivessem aquilombados. Primeiramente, temos uma circunstância generalizada e comum a todos os quilombos que se formaram nas Américas: a presença de vários indivíduos, das mais diversas origens. No caso específico do Quilombo Grande, a população escrava é descrita como “Gentio de Guiné”. Sobre este etnônimo, Maria Inês Cortês de Oliveira sustenta que ele designou, durante séculos e de maneira genérica, todos aqueles africanos que eram embarcados ao Novo Mundo na costa ocidental da África. Conforme o comércio de escravos crescera, o termo se ampliara. De acordo com a autora: (...)No início, para os portugueses a Guiné teria se restringido ao litoral da costa ocidental africana, que tinha como centro comercial a feitoria de Cachéu, subordinada is ilhas de Cabo Verde. Esta era a área descrita nos 737 738 GUIMARÃES, Op. Cit., p. 149. Idem Ibidem, p. 148. 296 contratos de arrendamento do século XV. Entretanto. à medida em que a expansão do comércio português avançou para o sul, o termo passou a ser também utilizado para designar as partes do litoral então conhecidas como Costa da Pimenta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. Assim, toda a África Ocidental ao norte do Equador, do Rio Senegal ao Gabão, era conhecida então como a Guiné. Por essa razão, o “gentio de Guiné” passou a ser utilizado gradualmente para aqueles que eram embarcados na África Subequatorial, de maneira genérica. Viana Filho, na obra “Denuncias na Bahia (1591-1593)”, exemplifica tal fato ao citar o caso de um africano preso e acusado por sodomia, identificado como “negro de Guiné, gentio da Angola”. Dois outros mapas no século XVIII atestariam a recorrência da utilização da expressão para a costa da África Central, região identificada como “Baixa Guiné”: Guillaume de Lisle (1700) e E. Bowen (1766). Congo e Angola aparecem em ambos como parte da “Low Guinea”. 739 Se, por um lado, afirma Oliveira, notava-se o interesse constante dos portugueses pelas múltiplas singularidades e diferenças africanas nos séculos XV e XVI, por outro lado, a partir do momento em que o comércio de escravos se ampliava e que as descrições passavam a depender diretamente dos comerciantes, haveria uma confinação das diferenças a categorias como “gentio de Guiné”. Paradoxalmente, no mesmo momento em que o comércio de escravos incorporava novas áreas da África, produziam-se novos conhecimentos ou possibilidades de conhecer as novas culturas. Contudo, as imprecisões permaneciam. No Brasil, assinala Oliveira, o termo havia se firmado e designava toda a costa da África de onde provinham os escravos. Em outras palavras, para a autora, a utilização da expressão “gentio de Guiné” seria explicável não pela falta de conhecimento, mas pela pouca importância que se atribuía às especificidades culturais dos africanos para o exercício dos trabalhos a que seriam destinados. 740 Sobre essa última questão, é importante frisar que, em meados do século XVIII, as fontes documentais elaboradas por autoridades portuguesas na África também demonstram o inverso. Em 1761, por exemplo, o então governador do Reino de Angola, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, em carta endereçada ao Rei, na defesa dos cativos adquiridos em 739 OLIVEIRA, Maria Inê Cortês de. Quem eram os “Negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, 19/20, 1997, pp. 37-73. 740 Idem Ibidem, pp. 40-41. 297 Benguela, dá a entender a existência de uma preocupação quanto às diferenciações de procedência: Bem sei que dirão os moradores do Brazil que os negros daquela parte são mais fortes e capazes de minerar [Costa da Mina], porém creya V. Exª que os de Benguela são igualmente robustos e capazes deste serviço e que estando nós senhores abfotulos de Cabinda, Loango, atravessamos por terra e por mar todo comercio da Costa, e por conseqüência toda a qualidade de negros proporcionada aos diferentes serviços a que os destinao no Brazil, engrofsando consideravelmente a Fazendo de S. Mag. E em poucos annos seria mais útil de todos os feus vastos Domínios [grifo nosso].741 Segundo o Capitão-General, era recorrente a fama dos africanos da Costa da Mina serem mais adequados ao trabalho e mineração; todavia, aqueles que eram capturados em Benguela também estavam habilitados. Ou seja, mesmo se posteriormente no Novo Mundo fossem utilizadas expressões genéricas, era também importante o conhecimento acerca da região onde africanos haviam se transformado em escravos. Os apontamentos tecidos por João José Reis na obra “A morte é uma festa” também são de grande valia para se pensar as diferenciações intra-africanas no Mundo Atlântico. O autor realiza uma reflexão sobre as atitudes perante a morte, ritos fúnebres e revoltas populares no século XIX. Ao investigar a procedência das irmandades religiosas no Brasil, especialmente na Bahia, ele nos apresenta a divisão de africanos em irmandades – desejada tanto do ponto de vista do colonizador, como do próprio africano em questão –, de modo que haveriam irmandades angolanas, jejês e nagôs. Nas palavras do autor: (....) Imaginadas como veículo de acomodação e domesticação do espírito africano, elas na verdade funcionaram como meios de afirmação cultural. Do ponto de vista das classes dirigentes, isso foi interessante no sentido de manter as rivalidades étnicas entre os negros, prevenindo alianças perigosas. Ao mesmo tempo, do ponto de vista dos negros, impediu-lhes a uniformização ideológica, que poderia levar a um controle social mais rígido. Com o passar do tempo as irmandades serviriam até como espaço de 741 ANTT, Carta de D. Francisco de Inocêncio para sua Majestade pelo Conselho Ultramarino. Fundo: Conde de Linhares, liv. 99 I, p. 19v, de 25 de julho de 1761. 298 alianças interétnicas, ou pelo menos como canal de ‘administração’ das diferenças étnicas na comunidade negra.742 Igualmente, é preciso lembrar a constatação de Crivelente em relação aos casamentos realizados entre cativos de origem africana na primeira metade do século XIX em Serra Acima (Chapada dos Guimarães), a partir do estudo dos registros paroquiais: dos 290 casamentos realizados entre escravos, 108 se deram entre africanos e desta soma cerca de 30% apresentou propensão a tendências endogâmicas, ou seja, casamento entre africanos identificados como parte da mesma nação (Benguela, Minas, Congos, Nagô, entre outros), com destaque aos Benguela; o que sugere que as diferenciações internas pudessem ser importantes, ao menos para africanos que viam na proximidade novas possibilidades de recomeçar a vida no além-mar. Mesmo quando são referenciadas nações junto aos nomes, as imprecisões quanto à procedência étnica, idioma falado, valores culturais e organização política permanecem. “Teresa de Benguela”, por exemplo, nos fornece apenas uma indicação do local onde fora comercializada ou batizada. Como vimos no segundo capítulo desta tese, existia uma ampla rede comercial de mão-de-obra escrava que atravessava os reinos de Angola e Benguela, formada por cidades portuárias e plataformas (presídios ou fortalezas). Estas últimas, por sua vez, enviavam progressivamente diferentes agentes – sertanejos e/ou pombeiros –a regiões desconhecidas, a fim de que obtivessem escravos. Quando a obtenção de cativos não se dava por acordos comerciais com “sobas” locais, se passava por “guerras justas”. Destarte, ao serem metamorfoseados em cativos, seguiam às cidades portuárias e destas eram transportados ao Novo Mundo, após serem renomeados com nomes europeus743 e batizados. Assim, alguém referenciado pelo sobrenome “Benguela” pode ter sido locomovido de longínquas regiões na própria África Centro-Ocidental. Muito provavelmente, dos planaltos ovimbundus, repletos de diferentes povos falantes do idioma umbundu; ou mesmo pode ter sido comercializado por povos Ovimbundus, que poderiam tê-lo comprado em regiões mais interioranas, haja visto que as caravanas comerciais destes povos atravessavam toda a atual Angola. 742 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 55. 743 Vale lembrar que a própria rainha Nzinga, ao ser batizada passou a se chamar Dona Maria. ver CAVAZZI, Op. Cit. 299 Em todo caso, ao retornarmos a nossa atenção para o Quilombo Grande e a despeito das múltiplas possibilidades de procedência étnica do “gentio de Guiné”, em decorrência do fluxo comercial de cativos e predominância das rotas via-sul, possivelmente a maior parte dos habitantes do quilombo seria originária da África Centro-Ocidental (ou “baixa Guiné”), sobretudo, de Angola. Contudo, pelo caráter genérico da descrição e lacunas documentais (como o nome dos cativos capturados ou mortos, proprietários, entre outros), também não podemos desconsiderar a presença de africanos de outras regiões da África. Partindo do pressuposto da variedade de nações africanas no interior do Quilombo Grande, como explicar o fato do mesmo ser liderado por uma africana procedente de Benguela? Como vimos anteriormente, Teresa era viúva, havia assumido a chefia do Quilombo Grande após a morte do antigo rei, cuja nacionalidade não é informada na documentação disponível. Por que a população africana haveria aceitado a autoridade de Teresa, que governava com mãos de ferro o quilombo? Tanto nos relatos de Filipe José Nogueira Coelho, como nos Anais de Vila Bela, a rigidez de Teresa recebe grande destaque. No primeiro, assim é descrita: “(...) mandava enforcar, quebrar as pernas, e sobretudo enterrar vivos os que pretendiam vir para seus senhores”.744 Nos Anais, por sua vez, o cotidiano da governança rígida é detalhado: (...) não só chegou a mandar enforcar, mas também quebrar pernas e braços e enterrar vivos aqueles que, arrependidos da fuga, queriam tornar para a casa de seus senhores, sem que para semelhantes e outros castigos fosse preciso legal prova. Bastavam leves indícios para serem punidos quaisquer réus de semelhantes delitos. Isso, além de outro, que mandava fazer muito ao seu paladar. Chamavam esta muito intitulada rainha Teresa. Era assistida e servida de todas as mais negras e índias, ainda melhor de que se fossem suas cativas, a quem diariamente castigava, rigorosamente, por qualquer coisa. Tanto era temida que nem machos, nem fêmeas era ousados a levantar os olhos diante dela [grifo nosso]. 745 Não nos deixa de chamar atenção as semelhantes descrições da rigidez e força de Teresa com a imponente presença da rainha Nzinga junto aos relatos de missionários ou militares europeus que estiveram na região de Angola, no século XVII. Vimos no militar Cadornega anteriormente a equiparação de Nzinga com a “Cleópatra”, descrita como cruel e 744 745 COELHO, Op. Cit., p.182. AMADO; ANZAI, Op. Cit., p. 140. 300 sanguinária, parecendo-lhe “imortal” pelo reinado e guerra continuada que fez aos portugueses em Angola no transcorrer de quatro décadas. Teresa de Benguela, assim como Nzinga, era temida até por homens, respeitada e rigorosa na sua governança. Sobre as descrições de Teresa, é preciso ponderar que tal rigidez possivelmente não correspondesse ao que de fato se passava no cotidiano do Quilombo Grande e que fosse uma maneira de negativar a autoridade da rainha, a fim de que novas fugas não se fizessem. Embora nos Anais esteja afirmado que as informações tivessem sido obtidas com os “negros” (provavelmente os capturados pela bandeira), não nos parece verossímil que semelhante rigor pudesse manter aprisionado cativos que já haviam fugido do sistema escravista ou que tão pouco pudesse fazê-los assumir uma hierarquia política e social a ponto de chamarem Teresa de rainha. Acrescenta-se a esses fatores a própria luta travada para evitar a queda do Quilombo Grande: se a vida no quilombo fosse como o suplício descrito na documentação, então por qual razão quilombolas teriam resistido e protegido o espaço? Retornemos à bandeira de 1770. Na noite de 22 de julho daquele ano, foi realizado o primeiro ataque, que, como vimos, se prolongou por várias semanas e teve como desfecho a captura de 41 quilombolas, entre homens e mulheres, além da morte de outros 9 comprovadas pela apresentação de 18 orelhas que haviam sido retiradas dos cadáveres. 746 Tão logo percebeu o ataque, a rainha Teresa ordenou a resistência: (...) A maldita rainha de quem temos tratado, na ocasião em que se abalroou o quilombo, mandou os seus que pegassem em armas e tudo matassem. Alguns de seus súditos assim o fizeram acudindo à voz e pegando em armas; mas não puderam usar delas pela força que viram contra si. Tomaram por melhor acordo retirarem-se fugitivos ao mato. Nessa retirada, foi também a rainha, conduzida por José Cavalo, escravo do sargento-mor Inácio Leme. Era esse negro capitão-mor do quilombo e, entre os mais, tido por mais valoroso. Na apressada fuga em que foram, no saltar de um riacho se estrepou aquela desaventurada rainha em um pé, isso a tempo que já os soldados iam sobre ela, por a terem visto. Com facilidade a prenderam e trouxeram ao aquartelamento, onde estava o sargento-mor (...) [grifos nossos].747 746 747 AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 139. Idem Ibidem, p. 140. 301 Como podemos notar, aqueles que tiveram tempo hábil pegaram em armas para se protegerem da invasão e outros que viram a impossibilidade de resistir fugiram para as matas. Entre estes últimos, estava Teresa de Benguela, conduzida por José Cavalo, considerado “capitão-mor” do quilombo e escravo reivindicado pelo próprio comandante da bandeira. Em outras palavras, as descrições da governança pretensamente rígida se contradizem sutilmente quando passam a abordar a própria reação desesperada dos quilombolas para não retornarem à sociedade escravista. Tal contradição também pode ser notada quando é narrada a captura de Teresa e sua morte. Nos Anais de Vila Bela, afirma-se que Teresa, ao ser capturada, foi encaminhada para o acampamento já firmado dentro do antigo quilombo, à frente dos seus antigos súditos. Ao receber insultos deles, fez-se “muda” ou amuada e, diante dessa situação, após alguns dias “expirou de pasmo”. Morta, cortaram-lhe a cabeça e a puseram no centro do quilombo em um alto poste, um exemplo visível para todos os outros que ousassem se levantar contra a coroa portuguesa. 748 Chama atenção a descrição da morte de Teresa por “pasmo”. Tal palavra, na língua portuguesa se traduz diretamente como aquilo que causa assombro, espanto.749 No caso da utilização da palavra para interpretação da morte de cativos, ao longo dos séculos XVIII e XIX, passou a estar associada ao verbo “banzar”, que se significava “pasmar com pena”, de modo que o “banzeiro” era aquele que se encontrava em estado de inquietude, duvidosa tensão, um “mar banzeiro”, em tormento (no latim, “Dubium maré”).750 O fenômeno mereceu atenção de numerosos personagens no decorrer dos séculos XVIII e XIX, entre eles Luís Antonio Oliveira Mendes (1793). Ao observar a constante mortandade de africanos na travessia do Atlântico à América portuguesa, classificou essa inquietude de “paixão da alma”; uma moléstia provocada pela saudade dos entes queridos, traduzida na mortal nostalgia, espécie de vesânia (doença mental) no período, localizada na 748 Idem Ibidem, p. 140. FERREIRA, Op. Cit.,p. 612. 750 O verbo “banzo” em idiomas banto assumia significados diversos. No ovimbundu, por exemplo, designava “aldeia” ou “terra natal”; no quicongo significava “pensamento”. Ver ODA, Op. Cit., pp. 3-6. Vale ressaltar que o substantivo “banzo” com esta acepção provavelmente foi incorporado à língua portuguesa somente no século XIX. Assim aparecerá nos dicionários de Eduardo Faria (1859) e Frei Domingos Vieira (1871), além de também ser referenciado no primeiro dicionário da língua portuguesa intitulado ““Vocabulario portuguez & Latino, áulico, anatômico, architectonico bellico, botanico,etc”, de autoria do Padre Rafael Blutenau. Sobre a historicidade da palavra Ver RODRIGUES, Bruno Pinheiro. Paixão da alma: o suicídio de cativos em Cuiabá (1854-1888). Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2010 (dissertação), pp.27-28. 749 302 parte do cérebro onde pensamentos e desejos se fixavam na ideia do possível regresso à terra natal. 751 A interpretação de Oliveira Mendes no final do século XVIII do banzo ou pasmo de africanos escravizados, à luz das categorias nosológicas (estudo sobre doenças) da medicina europeia no período – principalmente no que diz respeito a categoria “nostalgia” –, naquela altura havia sido inédita. Todavia, desde a publicação da monografia “De nostalgia” do médico suíço Johanes Hofer, em 1678, com a sua posterior repercussão, a utilização das categorias médicas europeias para compreensão da morte por inanição passara a ser menos “helvética”, sobretudo quando se constatavam a reação de jovens soldados europeus que haviam sido recrutados à força, tomados por saudades da terra natal. 752 A interpretação de Oliveira Mendes seria reflexo desse processo e, como já foi ressaltado anteriormente, da preocupação com os negócios escravistas, uma vez que a morte de cativos causava danos constantes à economia.753 Além disso, o “pasmo” que levou Teresa de Benguela, se assim procedem as descrições dos Anais de Vila Bela, deve ser compreendido como morte por “inanição”, o perecer lento causado por melancolia, profunda tristeza e inquietude, recusa de alimentos e líquidos, contrariando a vontade senhorial de vê-la novamente em cativeiro. Se assim procede, Teresa, mulher de pedra, preferiu a morte em vez do retorno à escravidão. Sua história é semelhante ao de tantos outros cativos que optaram pelo profundo silêncio. 751 Oliveira Mendes descreve numerosas situações em que africanos se viam em “nostalgia”, especialmente no capítulo VI. A fim de evitar a alta taxa de mortalidade dos homens de ferro, recomendava aos comerciantes a adoção de diversos procedimentos: “(...) Deviam ter como primeira regra, que os pretos perdendo a sua liberdade, ficam desde logo apaixonados, e entregues a um indizível ressentimento, que é justo, e inseparável, e extensivo ao mesmo bárbaro, que também tem alma, e que também sente. Deviam por isso mesmo desde logo começar a tratá-los com toda a brandura, e agrados, para fazer o cativeiro menos sensível, desimaginá-los, e desvanecer pouco a pouco o banzo, que os não desacompanha. Porém pelo contrário sucede, que desde logo contra eles se arma a mão visível da tirania, e do mal trato, tratando-os com a maior crueldade que se pode considerar, e explicar”. OLIVEIRA MENDES, Op. Cit., p. 50. 752 Em termos gerais, Hofer sustentava que a nostalgia era uma enfermidade na qual os suíços estavam predispostos. A nostalgia, palavra derivada dos radicais gregos “nóstos” (regresso) e “álgos” (dor física ou moral), que tem como sede o cérebro, se manifestava no desequilíbrio do sistema disgestivo e a composição do sangue, levando o indivíduo a inanição. Era causada pelo excesso de imaginação e paixão, exatamente nos locais onde habitam as imagens de pessoas e paragens queridas. O autor, no intento de confirmar suas teses, mencionou diversos casos de pessoas afastadas de sua terra natal, cujos pensamentos e desejos se fixavam no desejo de regresso à sua terra natal, os tornando sombrios e indiferentes ao restante do mundo. Ver ODA, Op. Cit. , p. 9. 753 Oliveira Mendes também teceu veementes críticas aos comerciantes de Angola, que pelo mal preparo do cativero, favoreciam a recorrência de mortes de escravos. Ver OLIVEIRA MENDES, Op. Cit., pp.50-58. 304 Fig. 12 – Mulher de pedra: a rainha Teresa de Benguela e o seu “parlamento”, por Thalita Pinheiro Rodrigues (2015). 304 Em Filipe José Nogueira Coelho, diferentemente do que dispõe os Anais, a morte de Teresa assume outra circunstância: ao se ver presa, a paixão foi tamanha que morreu “enfurecida”, ao ser conduzida à Vila Bela. Destarte, pelo relato do Provedor da Fazenda, Teresa não foi posta à frente dos seus súditos, mas faleceu no caminho tomada por frustração e fúria. A despeito da verossimilhança dos relatos e mesmo dos possíveis objetivos de amedrontar a população cativa da região a fim de que não se evadissem, como o decepar da cabeça da rainha Teresa e posterior exposição, as constantes queixas das autoridades no período demonstram o contrário: cativos continuaram a fugir e se aquilombar. Deve-se levar em consideração que 37 conseguiram escapar das incursões da bandeira e permaneceram na região. Se estivessem tão vitimizados como as descrições sugerem, por que não teriam se entregado pacificamente à expedição? Em todo caso, na documentação que se refere ao Quilombo Grande, temos uma estrutura política descrita com grande rigidez, chefiada por Teresa, procedente de Benguela, que governava implacavelmente e, ao se ver derrotada, morreu por si mesma. Aqui, podemos levantar um novo questionamento quanto a essa rigidez, se assim foi procedente: refugiados no quilombo teriam se submetido à autoridade de Teresa devido a alguma noção hierárquica africana? Devemos lembrar que, se grande parte dos cativos africanos procedessem de Benguela, uma quantidade significativa havia sido extraída do hinterland, região habitada principalmente por povos Ovimbundus, além dos povos Imbangalas que, segundo Miller, mantiveram numerosas hostilidades com portugueses, dificultando o controle da região.754 Tais africanos, além de trazerem ao Novo Mundo noções religiosas, culturais, também carregavam consigo concepções de organização social e política. Para compreensão desse pano de fundo, valeremos-nos aqui de alguns apontamentos realizados por Joseph Miller na obra “Poder político e parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola”.755 Na referida, o autor se propõe a uma análise do poder político entre os 754 Segundo Miller, os Imbangalas desde a chegada dos portugueses no território Angolano, mantiveram distintas posições. Se ao norte a relação com os portugueses era de “quase simbiose”, caracterizada por alianças que resultavam na captura de cativos, ao sul do rio Kwanza havia um “Record de hostilidades”, de modo a instalação portuguesa ao sul acabou de dando de maneira mais dificultosa. ver MILLER, 1995, p. 207. 755 Originalmente publicada em 1976 com o título “Kings and Kinsmen. Early Mbundu states in Angola”. 305 Mbundu,756 à luz das histórias políticas de migrações por volta do século XVI no interior do atual território angolano, cruzamento de instituições entre diferentes povos, disputas políticas, a partir do cruzamento de diferentes fontes, como genealogias, tradição oral e registros escritos por missionários e cronistas sobre os povos Imbangalas. Assim, pelo cruzamento de fontes, o autor constatou a insuficiência interpretativa dos registros escritos para se interpretar as instituições políticas e transformações na região. Enquanto os documentos escritos focalizavam indivíduos, protagonistas individuais, as tradições orais e reconstituição das genealogias (“Musendo” entre Imbangalas) apontavam para o caráter coletivo dos nomes, de modo que no lugar de reis, deveria ler-se “dinastia”, de dignatário ler “função” e de detentor de autoridade interpretar “insígnia de autoridade”. 757 Procedendo dessa maneira, Miller se pôs a investigar os “Kilombos”, instituições transversais e multiculturais, que ilustravam tal história de cruzamentos e migrações internas. Resultado do encontro de instituições Ovimbundus, Cokwes e Lundas, no momento em que portugueses passaram a se instalar ao sul do rio Kwanza, entre o final do século XVI e início do XVII, e a expandirem-se ao hinterland de Benguela, o Kilombo se constituía como a principal instituição organizativa dos povos presentes na região. Naquele momento, como já vimos em outra ocasião, essa instituição consistia em um campo de iniciação e formação militar, adotada ao longo da história migratória dos Lundas a oeste de Angola pela necessidade de se resolver o problema da “desunião”, causado por disputas de linhagens. Especificamente, no momento em que Kinguri (Lunda) migrara ao oeste de Angola entre o final do século XVI e início do XVII, a associação guerreira ovimbundu com sua transversalidade oferecia as seguintes soluções que faltavam ao líder/título: (...)O kilombo oferecia duas coisas que tinham faltado ao bando original do Kinguri: uma estrutura firme, capaz de unir um grande número de estranhos que, como era evidente, nunca tinham substituído as perdidas linhagens por instituições sociais ou políticas viáveis que se lhes comparasse; e uma disciplina militar capaz de derrotar os grandes reinos que bloqueavam o seu movimento para o norte, além Luhando, e para oeste do Kwanza [grifo nosso].758 756 Embora as fronteiras entre os diferentes povos estivessem pouco definida em Angola por volta do século XVI, de maneira panorâmica assim estavam localizados: ao sul estavam os Ovimbundo, ao leste os Cokwes e Lundas e ao norte os Kongo e Mbundu, estes últimos falantes do idioma Quimbundo. Ver reflexão de Miller à luz do esquema etnográfico classificatório de Malcolm Guthrie, Idem Ibidem, p. 38. 757 Idem Ibidem, p. 12. 758 Idem Ibidem, p. 159. 306 Os Kilombos, segundo Miller, possuíam a capacidade de disseminar novas posições, além de fornecerem legitimidade a guerreiros que pudessem reunir seguidores e se libertarem de “autoridades linhageiras” que existiam no planalto de Benguela. 759 No processo de migração dos Lundas e estabelecimento na região desses povos, foram fundamentais para destituição do líder/título Kinguri, ao fornecer aos “Makotas” (rivais de Kinguri) base para a crescente adesão de membros, uma vez que não dependiam de “linhagens”, e disciplina – combinados, foram responsáveis pela expansão imbangala a norte e a sul do rio Kwanza, a partir do século XVII. 760 Para o autor, esse crescimento imbangala, caracterizado pela adoção da instituição Kilombo, ocorreu de maneira diferente de acordo com a região: se ao norte as linhagens Mbundu lhes eram indiferentes e empurravam os Imbangalas para os portugueses, ao sul encontrou maior receptividade, o que acabou criando condições para que os Imbangalas meridionais se mantivessem independentes. Dessa forma, registraram-se as várias tentativas fracassadas de se estabelecer alianças com Imbangalas que habitavam os entornos de Benguela. A própria instalação do presídio de Caconda exemplifica tal indisposição para com portugueses, que só conseguiram construir um forte na região após repetidas campanhas militares no último quartel do século XVII.761 Ao redirecionarmos nosso olhar para os espaços denominados por portugueses como “quilombos” no Brasil,762 referência ao conhecimento que detinham dessas instituições em solo africano, chamamos atenção para ao seguinte fato: a que ponto é cabível considerar a aceitação da adesão indiscriminada de indivíduos aos quilombos, como parte da própria cultura de organização social e política que africanos traziam consigo, especialmente aqueles originários do hinterland de Benguela? Estudos diversos, alguns dos quais citados neste trabalho, mencionam a presença de indígenas, africanos de diversas etnias e até desertores ou criminosos no interior dos quilombos nas Américas. 759 Ibidem, p. 165. Segundo Miller, a adesão dos Lundas (por meio dos Makotas) aos Kilombos, permitiu a fragmentação de antigas autoridades e posteriormente resultou no surgimento dos reinados Ovimbundo nos séculos XVIII e XIX. Ibidem, p. 167. 761 De acordo com o autor, portugueses esperavam que Imbangalas do sul, processem como os do norte e pudessem abrir o caminho para o interior. Menciona, por exemplo, a tentativa de aliança fracassada entre Cerveira Pereira (aquele que fundou Benguela), com um chefe Imbangala que habitava as margens do rio Murombo. Na ocasião o português propôs ao Imbangala que o mesmo atacasse as populações vizinhas para obtenção de cativos. O chefe concordou inicialmente e depois surpreendeu o grupo causado-lhe um roubo à noite. Ibidem, p. 208. 762 Pelas lacunas documentais é dificultoso ter clareza sobre até que ponto também não seria uma “autodenominação” de alguns quilombos, ou noção sobre qual definição quilombolas atribuíam ao acampamento que formavam, em vista da multiplicidade étnica. 760 307 No caso do Quilombo Grande, apesar da possível predominância de africanos provenientes dos reinos de Angola e Benguela, deveriam haver também aqueles que se originavam da Costa da Mina e, quiçá, de outras regiões. Igualmente, haviam indígenas que correspondiam a cerca de 30% em 1770. Perguntamo-nos se no Quilombo Grande a flexibilização da adesão para além das noções de “linhagem” pode ter permitido a incorporação de indígenas, registrados na bandeira de 1795. Se, por um lado, haveria uma “aruaquização” sutil dos quilombolas observável, como vimos acima, na prática do rapto de mulheres ou adoção de técnicas agrícolas, por outro lado, também pode ter havido a bantuização do território, reproduzida no que diz respeito a alguns traços da organização política. Dessa maneira, o Quilombo Grande teria se transformado em um lugar de encontro de diferentes agentes e culturas, para além de ser um mero espaço de refúgio daqueles que se evadiam do sistema escravista. Distantes da sociedade escravista, esses homens e mulheres, que não eram “tabulas rasas” e ao mesmo tempo estavam em intenso contato com outros mundos diversos desde o momento em que foram transformados em escravos no solo africano, organizaram-se politicamente com base nas referências que traziam consigo e das constantes adaptações às circunstâncias em que estavam inseridos. Como afirma Carlos Guimarães, a documentação referente aos quilombos no território luso-brasileiro não nos fornece base para compreender a maneira como quilombolas se viam. O fato de elegerem um rei pode ser apenas reflexo do que haviam assimilado do mundo português, ou mesmo um efeito do olhar do agente colonizador que concebia a organização política do africano à luz das suas referências.763 Todavia, ao vislumbrarmos esse africano organizado politicamente antes da transformação em cativo, não podemos deixar de considerar as tentativas adaptadas às contingências de se organizar conforme os modelos que já conheciam na África, no caso analisado, no hinterland de Benguela. Se a flexibilização na adesão que dispensava a pertença de linhagens pode ter contribuído na organização do quilombo, é bem sabido que ele não se organizou à imagem e semelhança do kilombo tal como era entre os Imbangalas. Não temos referências, por exemplo, de alguma prática similar ao ritual de “maji a samba”, em que pais sacrificavam os seus filhos recém nascidos, transformando-os em “ungüento” de preparo para futuras vitórias 763 GUIMARÃES, Op. Cit., p. 150. 308 militares. A este propósito, segundo Miller, o “maji a samba” detinha significado fundamental para dispensa da necessidade de pertença de linhagem. De acordo com o autor: (...) Num sentido metafórico, a preparação do maji a samba pelo chefe, através do assassínio ritual do seu filho (a), era um símbolo corrente do excessivo poder de um governante sobre o seu povo. Os ‘filhos, na narrativa, representam os súbditos de um chefe político, em contraste com os seus parentes que são sempre descritos como ‘sobrinhos e sobrinhas’. A cerimônia de matar o filho simbolizava o poder absoluto do governante sobre os seus súbditos, tal como a imagem do Kinguri, assassinando escravos de cada vez que se erguia ou se sentava, mostrava o temor superticioso que o seu povo lhe dedicava. Num sentido mais literal, porém, a matança dos filhos, quando praticada por toda uma população, tornava-se um meio de abolir as linhagens, uma vez que o assassinato dos filhos (ou a negação do significado social de um nascimento fiísico) tinha sobre os grupos de filiação o mesmo efeito estrutural que a proibição do seu nascimento [grifo nosso].764 No Quilombo Grande, não só se observa uma prática análoga a essa, mas o contrário: quando outra bandeira é organizada na Capitania de Mato Grosso para captura dos remanescentes do antigo Quilombo Grande, são encontrados vários caburés, ou seja, filhos de negros com indígenas, que muito provavelmente haviam nascido dentro do quilombo. Entre os Imbangalas, como vimos em Cavazzi, o nascimento de uma criança dentro de um kilombo era proibido. Nos Anais de Vila Bela e demais documentos, ainda merecem destaque a disciplina a que estavam submetidos os quilombolas e a grande obediência e temor a sua rainha, Teresa de Benguela – “(...) nem machos nem fêmeas eram ousados a levantar os olhos diante dela”. Novamente, é importante observar o proceder em território africano. Lembramos o leitor da descrição do luso-brasileiro Elias Corrêa em 1792: os Jagas eram gente “beliciosa” que admitiam várias nações, elegiam os governantes (mais antigo militar) e juravam defender o seu povo e morrer por ele.765 No Quilombo Grande, notamos a admissão de indivíduos de nações diversas e a defesa do quilombo na medida do que era possível; mediante o ataque surpresa, quando Teresa percebe o ataque inimigo e ordena a defesa, aqueles que podem 764 MILLER, Op. Cit., p. 163. Não existe uma clareza acerca da distinção entre Jagas e Imbangalas nos diferentes autores que nos valemos, de modo que a maioria os trata como povos únicos. Sobre a citação de Elias Corrêa, ver capítulo 1, seção 1.2.1. desta tese. 765 309 pegam em armas. Mais importante: Teresa havia chegado à chefia do Quilombo Grande após a morte do antigo rei. Como havia sido escolhido o antigo rei? Essa escolha teria sido baseada no critério acima descrito por Corrêa, do guerreiro mais antigo? A disciplina e respeito pela figura do líder também são mencionadas nos relatos de Cavazzi, especialmente quando o missionário se refere à adoção das antigas “quijilas” (leis ou proibições) dos Jagas-Imbangalas pela rainha Nzinga; entre elas, a proibição de se criar crianças no interior dos kilombos, aceita disciplinadamente. Nos relatos do capuchinho, como vimos, mães entregavam voluntariamente os seus filhos recém-nascidos para rituais de sacrifício. A despeito da verossimilhança dos fatos, tais narrativas nos dão dimensão do grau de obediência ao líder e à hierarquia entre os Imbangalas, povos que também habitavam os entornos de Benguela e, por vezes, foram tomados como cativos.766 Em Augusto Bastos, que intentou uma descrição etnográfica dos povos Ovimbundus que habitavam o hinterland de Benguela e que estavam organizados em pequenos potentados, o respeito à hierarquia e autoridade do chefe era notável. Observou o autor: O systema de governo é a monarchia absoluta e hereditária na organisação política por estadso, e electiva em algumas tribus pequenas de forma patriarchal; nas grandes tribus, como entre os Ganguellas, é hereditária. A auctoridade dos sobas é absoluta; não obstante ouvirem sempre o parecer do conselho porque são assistidos, resolvem em ultima instancia a seu bel prazer, decretam leis, e nenhuma vontade se póde oppôr à sua. Salvo, quando há descontentamentos contra elle, por incúria, iniqüidades e despotismo excessivo; n’estes casos, tramam-se as conspirações,deixam de acatar a sua vontade despótica, até que a depõem (...). 767 O soba era absoluto em sua autoridade, mas não governava sozinho, era assistido por um conselho do qual precisava ouvir o parecer, mesmo que a sua vontade fosse contrariada. A autoridade dos conselheiros, notou Bastos, era respeitada não somente pelo soba, mas pelo próprio povo. A importância de tal conselho ficava evidente nas cerimônias de nomeação dos 766 Citamos anteriormente o caso do chefe Imbangala que enganou Cerveira Pereira, roubando-o após ter prometido aliança. Logo após o fato o conquistador português se decidiu por atacar o soba e vencida a batalha, decapitou o chefe e transformou os demais em escravos. Ver MILLER, Op. Cit., p. 208. 767 BASTOS, Op. Cit., p. 21. No capítulo 1 desta tese, na seção 1.1.1. também tecemos comentários a respeito da obra de Bastos. 310 sobas, que eram presididas pelo chefe ou presidente do Conselho.768 Teresa de Benguela, igualmente, é descrita com autoridade inquestionável dentro do Quilombo Grande, e assistida pelo que luso-brasileiros intitularam “parlamento”, cuja maior liderança era José Piolho, tido respeitosamente como o maior “oráculo”.769 Finalmente, podemos pensar a chegada de Teresa à chefia do Quilombo. Tanto em Filipe José Nogueira Coelho, como nos Anais, a mesma se transforma em rainha após a morte do rei. Embora o “kilombo” em solo africano seja uma estrutura delineada pela flexibilidade da não pertença a linhagens, sobretudo na utilização dada por Imbangalas à instituição, os apontamentos de Augusto Bastos acerca do sistema de sucessão política entre os povos que observou – esquemas que, segundo o autor, se “repetiam de século para século” 770 – nos são úteis para pensar a possível referência a que africanos escravizados no hinterland de Benguela poderiam recorrer no momento de atribuir nova liderança. De acordo com Bastos, a eleição dos chefes no planalto de Benguela se dava por herança nos grandes estados e por eleição nas pequenas “tribos”, nas quais não haviam herdeiros – casos, segundo o autor, “raríssimos.” A ordem de sucessão sempre deveria seguir a proximidade do parentesco, de modo que a sequência se daria com o filho, irmão ou qualquer outro parente. Buscava-se dar primazia à primogenitura com preferência sempre pelos filhos da rainha. Caso houvesse falta de filhos, então eram nomeados netos, irmãos, sobrinhos ou filhos. 771 Quando nos voltamos à documentação que trata do Quilombo Grande, deparamos com o seguinte fato: não existe menção sobre a existência de um filho entre Teresa e o antigo rei. Desse modo, se o critério para sucessão adotado entre os quilombolas fosse a proximidade parental, com alguma referência às estruturas africanas acima elencadas, naturalmente, Teresa deveria ser nomeada rainha. Finalmente, a reflexão do Quilombo Grande necessita não somente uma releitura dos documentos históricos relacionados ao contexto em que esteve inserido, mas igualmente a consideração da agência indígena no vale do Guaporé – especialmente o fenômeno da “aruaquização” –, analogamente à investigação dos próprios africanos, antes de serem 768 Idem Ibidem, p. 23. AMADO; ANZAI , Op. Cit., p. 140. 770 BASTOS, Op. Cit., p. 18. 771 Idem Ibidem, pp. 22-26. 769 311 transformados em cativos no contexto africano. Dessa maneira, o Quilombo Grande passa a significar o espaço de resistência à escravidão e também o local de encontro de culturas e processos históricos. Outrossim, passa a significar o espaço em que homens de ferro e mulheres de pedra, mediante limitações e pressões externas, tentaram não perder a esperança de recomeçar, de olhar para a frente, mesmo após longos e penosos deslocamentos, perigos e impossibilidade de retorno. 301 313 CAPÍTULO 6 – “Fogo da libedade”: das fugas à conjuração do agosto de 1809 em Santa Cruz de La Sierra El fuego de la libertad, que de poco tiempo a esta parte ha empezado a abrazar los corazones de los habitantes de la América, parece que empieza a centellear hasta en los rincones más escondidos de los Andes. Acabamos de saber la fatal ruina de españoles que por un acaso se ha evitado en Santa Cruz. Todos los negros de aquella capital unidos con los indios iban a sorprenderla el veinte del pasado a las tres de la mañana; tenían ánimo de no dejar un habitante blanco y apoderados de la gran sala de armas que allí tienen, defender su libertad hasta el último trance. Un muchacho descubrió la conjuración. Han preso a varios de los principales; muchos se han escapado y venido a esta ciudad con designio de incorporarse en la compañía del Terror, que así se llama la de los negros y mulatos. No sabemos si con esto se aquietará la rebelión general de esta desgraciada raza de hombres.772 Quando o cura José Antonio Medina, considerado o cérebro e coração dos primeiros atos que reivindicavam a emancipação política no Alto Peru,773 foi capturado pelas forças monarquistas, uma grande soma de correspondências e livros foi apreendida consigo. Em meio ao vasto material que se encontrava em sua posse, havia uma carta escrita aparentemente por Manuel Victoriano García Lanza, um dos rebeldes encarregados por insuflar a insurreição em outras cidades. 774 Lanza relatava com grande euforia que a centelha lançada em Chuquisaca e La Paz no ano de 1809 finalmente começava a abraçar os “corações” de todos os habitantes das Américas, até mesmo dos rincões mais escondidos, como assim era considerada Santa Cruz de la Sierra – pequena cidade que, em agosto de 1809, fora palco de uma conspiração arquitetada pelos extratos mais modestos, a saber, a população escrava, negros livres e indígenas. No período, em meio às invasões napoleônicas enfrentadas pela coroa espanhola na Europa e à crise de legitimidade do poder monárquico nas Américas, notícias circulavam por 772 VÁZQUEZ MACHICADO, Humberto. VÁZQUEZ MACHICADO, Humberto. “La efervescência Libertaria en el Alto Perú de 1809 y la Insurrección de Esclavos en Santa Cruz de La Sierra”. Disponível em <http://www.soysantacruz.com.bo/Generales/GenWeb-HistoriaHnosVM/Htm/H-06.htm >. Acessado no dia 24/12/2014. 773 O território que atualmente é denominado Bolívia, ao longo da história recebeu outras designações, como Charcas e Alto Peru. No presente capítulo optamos pelo último termo para referência ao período colonial, sobretudo, a partir do século XVIII, pois “Charcas”, como sugere Alberto Crespo Rodas, remete apenas a um grupo autóctone da região, não representando a sua totalidade. Sobre tal questão ver RODAS, Alberto Crespo. Esclavos negros em Bolivia. La Paz: Academia Nacional de Ciencias de Bolivia, 1977, p. 5. 774 MORENO, Alcides Parejas. “Los movimientos independentistas en la gobernación de Santa Cruz de la Sierra”. In: SANTA CRUZ e sus 200 años de Independencia: historia, procesos y desafios. Santa Cruz de la Sierra: Jatupeando; Investigacruz, 2012, p. 17. 314 todo o Alto Peru e provocavam diferentes reações. Nesse contexto, forças começavam a se agrupar ou buscar alianças em meio ao cenário que se montava para as turbulentas guerras de independências que iriam assolar o cotidiano dos habitantes americanos até meados da década de 1820. Homens como Medina e Lanza eram a expressão clara desse processo.775 Assim, não se sabe de que maneira chegara a Santa Cruz de la Sierra a falsa notícia de que o rei havia prometido a alforria definitiva aos negros mantidos em cativeiro e a isenção ao pagamento de tributos aos indígenas, mas que autoridades locais haviam omitido. Indignados e esperançosos, aqueles homens de ferro, grande parte emigrados de onde os portugueses consideravam os seus domínios portugueses, vislumbraram finalmente aparecer o momento ideal para se darem a liberdade ou a consolidarem. A liberdade só seria uma condição concreta se a tomassem pela força, assim possivelmente conjecturaram os conjurados. Então, aliados com indígenas da região, que possuíam as suas angustias e anseios – como os povos Chiriguanaes que, desde a chegada dos espanhóis na região, se recusavam à submissão e mantinham constante hostilidade –, decidiram que no dia 20 de agosto de 1809 todos os habitantes brancos, principalmente autoridades, seriam degolados. Contudo, o plano foi descoberto e violentamente sufocado. Em resumo, o capítulo que se segue trata de uma análise pormenorizada não somente da conspiração, mas igualmente da participação ativa de escravos e negros fugidos dos domínios lusitanos nos acontecimentos políticos do período, de modo que o estruturamos da seguinte maneira: na primeira seção, a apresentação de Santa Cruz de la Sierra e o lugar conferido à mão-de-obra escrava; na segunda, uma reflexão sobre os eventos de agosto de 1809 e as possíveis relações com os movimentos de independência que começavam a alvorecer na América espanhola; segue-se a esta seção algumas notas sobre o malogro e destino dos conjurados em meio à situação política turbulenta vivenciada na região; por fim, na última seção, uma análise sobre a agência de negros, escravos ou “livres”, no Alto Peru, tanto em contendas judiciais como no enfrentamento direto ao sistema escravista. 775 A descrição de Humberto Vázquez Machicado, sobre o cura Medina, nos fornece uma dimensão do papel e importância do personagem no período: “(...) El cura Medina fue cerebro y acción en los primeros movimientos de libertad en el Alto Perú. Ideólogo apasionado, estaba empapado de la filosofía de los revolucionarios de Francia y sus enemigos le acusaban de ser lector de «libros prohibidos», y en muchos de sus aspectos tiene puntas y ribetes de jacobinismo, incluso hasta en esas vaguedades y exageraciones de que nos habla Hipólito Taine. Medina fue el autor de la famosa proclama de la Junta Tuitiva de La Paz, que definió por sí sola el credo emancipador de estas colonias, y además del plan de gobierno que debía ponerse en práctica, en la nueva patria y por último Goyeneche lo acusa de ser el autor de cuantas proclamas de sedición se han esparcido por la América.” Ver VÁZQUEZ MACHICADO, Op. Cit. 315 6.1. O cenário: Santa Cruz de la Sierra e o lugar da mão-de-obra escrava O africano, ingresso no mundo Atlântico como escravo, na medida em que é distanciado da terra natal, aparecerá junto aos documentos oficiais crescentemente mais europeizado. Ainda no porto de embarque no continente africano, ao ser batizado na fé cristã, recebia um nome europeu e sobrenome, geralmente, indicando o local no qual seria comercializado. Um Sebastião de Benguela, por exemplo, poderia ser originário tanto dos entornos de Benguela, como das regiões mais interioranas, junto aos povos Ovimbundus, Imbangalas-Jagas ou de povos que estavam mais ao leste de Benguela, trazido em caravanas comerciais ou adquirido em ações militares. Após atravessar o Atlântico, em uma viagem que poderia durar cerca de 3 meses, e, posteriormente, ao cruzar a América portuguesa em um espaço de tempo entre 6 a 9 meses, a depender da rota e de numerosos fatores, 776 finalmente chegaria ao Mato Grosso e Cuiabá, extremo-oeste das possessões portuguesas. Contudo, contrariando as expectativas e investimentos econômicos, poderia perpetrar uma nova viagem, dessa vez seguindo as suas próprias determinações; e, entre os vários destinos possíveis, a América espanhola, no outro lado da fronteira, poderia se mostrar um lugar possível aos olhos do africano escravizado para se viver em liberdade. Santa Cruz de la Sierra foi um destino constante. O tempo gasto até a mesma é incerto, pois certamente a grande maioria dos fugitivos não seguiu diretamente, mas realizou diversas paradas – necessidade de alimentação, busca de abrigo, entre outros fatores. Essa nova viagem poderia ter a duração de meses ou até anos, em vista da longa distância (ver mapa 22 e 23). 777 Em Santa Cruz de La Sierra, africanos, aos olhos das autoridades espanholas, passariam a ser identificados não mais pelos portos em que foram embarcados na África, mas pelo local de evasão, ou seja, de origem “portuguesa”. Desse modo, para o europeu, quanto mais distante da terra natal, mais europeizado o africano se tornaria. Por conseguinte, se para as autoridades européias a diversidade africana se fundia e dissolvia cada vez mais ao mundo europeu nos seus registros documentais, implicando aceitação, por outro lado, involuntariamente, os próprios relatos da agência escrava aventavam a busca incessante pela liberdade do sistema escravista, sugerindo negação. 776 Desde hostilidades com povos indígenas existentes no caminho até às condições climáticas – estado chuvoso, seca, entre outros. 777 Em linha reta a distância entre Cuiabá e Santa Cruz de la Sierra totaliza 778 quilômetros, ao passo que de Vila Bela de Santísisma Trindade soma 456 Km². 316 O cenário em que analisaremos o nosso objeto – a tentativa de um levante de negros aliados com indígenas no ano de 1809 – é marcado por forte instabilidade e turbulências. Em primeiro lugar, é necessário delinear o espaço, contexto social e econômico e político. A cidade, no início do século XIX, era a capital de uma das províncias que formavam o território referente à Real Audiência de Charcas, que por sua vez estava vinculada ao ViceReino del Rio de la Plata, criado em 1776. Estava localizada na região conhecida como Alto Perú, juntamente com as províncias de Chuquisaca, La Paz, Potosí e Cochabamba, que posteriormente dariam origem à futura República da Bolívia, em 1825. Até este ano, a Província de Santa Cruz estava dividida nas seguintes partes: Moxos, Chiquitos, Cordillera, Vallegrande e Santa Cruz. 778 Entender o lugar de Santa Cruz e, por conseguinte, o funcionamento da sua economia e emprego da mão-de-obra escrava, requer a consideração simultânea de fatores de numerosas ordens. Em primeiro lugar, a cidade, fundada em 1571 e posteriormente deslocada para as margens do rio Piraí em 1592, assim como os demais povoamentos espanhóis, inseria-se dentro de toda uma estrutura administrativa, que englobava instituições na Europa como nas Américas. De maneira geral, havia uma estrutura metropolitana, encarregada de assegurar as posses do rei, e outra estrutura composta de funcionários, responsáveis pela administração cotidiana nas Américas. No âmbito metropolitano, as principais instituições até o início do século XIX seriam as Secretarias de Estado e o Conselho das Índias; este, segundo Carlos Malamud, era o órgão supremo estabelecido na Península, criado em 1524, responsável pelo governo do Império Ultramarino, e, além de legislar, atuava como tribunal de justiça. Tratavase de um tribunal de última instância de juízos civis e criminais, originados de consulados, Casa de Contratação e questões comerciais diversas. Outrossim, tinha funções consultivas em matérias legislativas, eclesiásticas e de governo. Controlava a administração colonial e legislava na criação de leis. 779 No que tange à estrutura administrativa nas Américas, entre o final do século XVIII e início do XIX, estava arranjada com os seguintes elementos: vice-reino, vice-rei, Audiências e Cabildos. Destes, o primeiro era a principal instituição administrativa das Américas, concebida após se reconhecer a magnitude dos territórios recém-conquistados.780 Sob gestação de vice-reis, “alter egos del Rey”, até o século XVIII, haveriam somente dois vice778 779 780 HASBÚN, Paula Peña. La guerra de Independencia en Santa Cruz, 2014, p. 1. MALAMUD, Carlos. Historia de America. Madrid: Alianza Editorial, 2005, pp. 155-156. Idem Ibidem, p.156. 317 reinados nas Américas, o Vice-reinado da Nova Espanha (criado em 1535) e o Vice-reinado do Peru (desde 1543) – este último responsável pela América do Sul, com exceção da Venezuela e Panamá. Com a chegada dos Bourbon ao trono da Espanha no século XVIII, dentro do conjunto de medidas adotadas para modernização da monarquia e ante a constatação da ingovernabilidade do território, foram criados dois vice-reinos: Nova Granada (1739), com capital em Bogotá e abrangência às Audiências do Panamá e Quito; e “Río del Plata” (1776), que abrangia, além de Buenos Aires, Córdoba del Tucumán e Paraguai, as províncias de Potosi e Santa Cruz de la Sierra. 781 As chamadas “reformas Bourbônicas” não somente provocaram a criação de novos Vice-reinados, mas compreenderam também medidas que afetaram os campos religiosos, militares e administrativos. Organizadas por Carlos III, de acordo com Peña Hasbun, determinaram também a expulsão dos Jesuítas da América espanhola em 1767 e a criação de Intendências que objetivavam tornar mais eficiente a administração dos territórios, circunscritas aos territórios eclesiásticos. No caso de Santa Cruz, a mudança se fez nítida: com a criação de uma Intendência sob o seu território (1782), a capital do novo órgão foi transferida no ano seguinte para Cochabamba, levando consigo outras instituições como a Tesouraria Real e Casas Reais. As transferências foram fortemente sentidas entre Cruceños: (...)El traslado de la capital, significó un golpe muy duro para los cruceños, quines desde la fundación de la ciudad, en 1561, habían gozado de las prerrogativas de capital de Gobernación. Con esta nueva estructura, se instala en Santa Cruz de la Sierra un Subdelegado, dependiente del Gobernador Intendente radicado en Cochabamba [grifo nosso].782 Quanto à expulsão dos Jesuítas, foi necessário substituir a governança das missões por autoridades nomeadas que, em numerosas ocasiões, provocaram hostilidades entre indígenas missionados, principalmente nos Mojos, uma vez que a mesma estrutura administrativa e produtiva fora mantida, embora sem o mesmo nível produtivo. 783 A região em si, com a criação da Intendência na região de Santa Cruz, converteu-se em um governo com características militares – em vista da localização fronteiriça com a América portuguesa –, subordinada ao vice-reinado del Río de la Plata. 781 MALAMUD, Op. Cit, p. 156. PEÑA HASBUN, Op. Cit., p. 5. 783 Tais hostilidades certamente estão associadas às alianças firmadas entre cativos e indígenas para a tentativa de rebelião de 1809, que veremos mais adiante. 782 318 Em 1801, por exemplo, as hostilidades entre mojeños missionados e novos governantes se elevaram a tal ponto que resultaram na destituição do governante responsável pela região, Miguel Zamora. Este havia chegado na região em 1792 e mantido um governo caracterizado por abusos contra indígenas, em alguns casos, resultando em mortes. No ano da sua destituição, o cacique Maraza o obrigou a sair dos Mojos e as autoridades administrativas superiores foram obrigadas a nomear um novo governante, uma vez que os povos mojeños somente reconheciam a autoridade do cacique. Tal situação se resolveu somente em 1805, com a chegada do novo governante, Pedro Pablo Urquijo. 784 As reformas bourbônicas também impuseram mudanças na política tributária, visto que a monarquia necessitava de recursos para executar a pretendida modernização e manter as constantes guerras com a Inglaterra e a França no período. Assim, em 1787, estabeleceu-se a obrigação de pagamento de tributos entre indígenas, da qual estavam dispensados em vista da condição de fronteira militar na defesa do Império. Vale notar que tal pressão fiscal, após 1800, foi fundamental para o amadurecimento das alianças firmadas nas guerras de independência entre indígenas e rebeldes contra a Espanha, como veremos adiante. 785 Ademais, aquele que deveria gerir o vice-reinado, a maior instituição política nas Américas, seria o vice-rei, que possuía atribuições de ordem política, militar e judicial. Era, ao mesmo tempo, o presidente da Audiência, capitão-general, chefe das forças armadas e ainda possuía poderes em questões eclesiásticas. Auxiliado por um conselho consultivo (“Real Acuerdo”) e ouvidores, dadas as altas responsabilidades, somente indivíduos provenientes da alta nobreza espanhola estavam habilitados a ocupar o cargo.786 As Audiências também eram instituições de grande importância na América Espanhola. Em termos gerais, consistiam no que se considerava “máximo tribunal nas colônias”. Acima dela em importância, havia somente o Conselho das Índias. Tal instituição estava estruturada da seguinte maneira: presidente, ouvidores, um ou dois fiscais e um oficial de justiça que executava ordens do tribunal. 787 De acordo com Malamud, haviam 3 tipos de Audiência na América espanhola: as “pretoriais”, que tinham à frente um presidente que estava diretamente subordinado ao Conselho das Índias; as “vice-reinais”, que eram 784 HASBUN, Ibidem, p. 8. Idem Ibidem, p. 5. 786 MALAMUD, Op. Cit., p. 156-157. 787 Vale notar que o presidente e ouvidores também integravam o “Real Acuerdo”, que auxiliava o vice-rei. Idem Ibidem, p. 157. 785 319 presididas por um vice-rei; e as “subordinadas”, como a Real Audiência de Charcas, dirigidas por um presidente com escassas funções executivas e submissas aos mandos do vice-rei. 788 Por fim, os “Cabildos” se constituíam em instituições fundamentais para a administração colonial na região. Eram originários do antigo conselho castelhano e acompanhavam a fundação de novos núcleos urbanos, estruturados por um ou dois alcaldes ordinários e regidores (de 4 a 12, a depender do espaço administrado). Considerados a “melhor ferramenta” administrativa das cidades e para o apoio das reivindicações frente ao monarca, possuía numerosas atribuições: concessão de terras, eleição, deposição de autoridades, recrutamento de forças militares e administração da justiça em nome do rei. O seu respectivo poder administrativo não se restringia somente ao espaço urbano, mas abrangia igualmente as áreas rurais. 789 De forma geral, portanto, a Santa Cruz de la Sierra que vivenciou a tentativa de levante de negros e indígenas, em 1809, estava inserida dentro de toda uma estrutura administrativa colonial: possuía um Cabildo, estava subordinada à Intendência que tinha como capital Cochabamba – cidade localizada a seu Oeste –, submissa juridicamente à Real Audiência de Charcas e politicamente ao vice-reinado do Río de la Plata. Além dos constantes conflitos com indígenas nos mais diferentes pontos do seu território, 790 por ser fronteira com a América portuguesa, recebia constantemente escravos fugidos dos domínios vizinhos; esses escravos, ao adentrarem no território espanhol, passavam à condição de “negros livres”, até que fossem presos e, em alguns casos, devolvidos à América portuguesa. É preciso notar que, apesar das insistências de autoridades portuguesas para devolução dos cativos evadidos do Mato Grosso e Cuiabá, além de instituições superiores, eles coexistiram com habitantes de Santa Cruz e detiveram notável importância econômica, política e militar. A cidade em si, no período, era um pequeno núcleo urbano que comportava uma população de cerca de 10.000 habitantes, incluindo povoações vizinhas e estâncias. No final do século XVIII, de acordo com Governante-Intendente Francisco de Viedma, estava dividida 788 Ibidem, pp.157-158. Ibidem, p. 159. 790 Não somente mojeños, como vimos, mas também indígenas Chiriguanaes, como veremos adiante. 789 320 da seguinte maneira: 4303 espanhóis, 1376 mestiços, 2638 cholos, 2111 indígenas e 150 negros, entre escravos e livres. 791 Apesar do relativo “isolamento”, propiciado pelo fato de ser a Província/Intendência mais distante dos grandes centros urbanos, com poucos e dificultosos caminhos, uma economia de subsistência e limitadas possibilidades de expansão ou integração, 792 a cidade- capital possuía uma economia diversificada. De acordo com Rivero, produzia-se arroz, café, milho, yuca, bananas, além de se criar gados, cavalos e vacas, dos quais se obtinham leite, carne e couro. Entretanto, a principal atividade econômica da região estava relacionada à produção do “açúcar”, considerado o principal produto de exportação, que funcionou como “moeda de troca” em algumas ocasiões. Embora houvesse dificuldades para se transportar produtos de Santa Cruz de la Sierra, a produção do açúcar na cidade estava vinculada às economias de Potosi e Chuquisaca (atual Sucre), sobretudo no considerado auge da produção de prata na região. 793 Tais ligações com as economias mineiras de Chuquisaca e Potosi, assim como o caráter agrícola da economia na região, com destaque da produção de açúcar, estruturariam a economia da região ainda até metade do século XIX, como sugere a descrição do viajante D’Orbigny, que viajou à região entre 1830 e 1833: La industria propiamente dicha está muy atrasada en Santa Cruz. Con excepción de algunos ofícios-zapatería, herrería, carpinteria, etc. – es exclusivamente agrícola. No existe ninguna fábrica de tejidos, ningún taller de cualquier espécie que sea. Se cultiva en especial la caña de azúcar, de la que se extrae a la vez azúcar y melaza, para expedirlas a lãs ciudades del interior, la melaza en odres y el azúcar en valijitas de cuero sin curtir, llamadas petacas. Este comercio es tanto más considerable porque lãs ciudades de Chuquisaca, Potosí y Cochabamba se aprovisionan únicamente en Santa Cruz (...). También se cosecha arroz y exporta en grande, cultivándose asimismo urucu y todos los granos y legumbres de primera necesidad, como maíz, 791 Ver VIEDMA, Francisco de. Descripcion Geografica y estadística de la Provincia de Santa Cruz de la Sierra. 1ª ed. Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836; Francisco de Viedma foi o primeiro governanteIntendente da Intendência de Santa Cruz, desde 1785. Para criação da Intendência, percorreu todo o território e elaborou um informe completo com ênfase em observações geográficas e econômicas, que destacavam a produtividade das regiões. Ver HASBÚN, Paula Peña. La Permanente construcción de lo cruceño: un estúdio sobre la identidad en Santa Cruz de la Sierra. La Paz: FUNDACIÓN PIEB, 2003, p. 19. 792 Segundo Marco Antonio Del Río Rivera, o “isolamento” desde a sua fundação foi uma característica fundamental de Santa Cruz de la Sierra. Por esta razão se desenvolveram “práticas” que não coincidiam com o restante do Império, como o hábito de elegerem as próprias autoridades e o não-pagamento de tributos até final do século XVIII. Ver RIVERA, Marco Antonio del Río. “La economia cruceña (1810-2010”. In: SANTA CRUZ e sus 200 años de Independencia: historia, procesos y desafios. Santa Cruz de la Sierra: Jatupeando; Investigacruz, 2012, p. 81. 793 Idem Ibidem, p. 83. 321 batatas, porotos, cacahuates de tierra o maní, mandioca ou yuca, calabazas, melones, bananas, ananás, etc.” [grifo nosso].794 Especialmente, na produção de açúcar se encontrava empregada a mão-de-obra escrava, que era a que mais abrigava aqueles que haviam fugido dos domínios portugueses. Viedma, ao descrever os imensos campos dos arredores da cidade de Santa Cruz de la Sierra, com a fertilidade e abundância de animais e numerosos canaviais, menciona a constante fertilidade da produção de cana, contrastante a outras regiões que enfrentavam problemas para manutenção do cultivo. O sucesso da atividade, o governador-intendente atribuía à presença de negros desertores dos domínios portugueses: De pocos años a esta parte se ha experimentado, que los terrenos más fértiles y ventajosos para los plantios de cara son donde se cria el monte, o bosque más espeso; de tal suerte, que aun después de trece años de corte, sigue el cañaveral con más fertilidad y sazón: lo que no acaece en la campaña, que a los três o cuatro años tienen que volver a hacerlos de nuevo, y la caña no crece, nin aun la mitad, que en los otros parajes. Este descubrimiento se le debe a unos negros que desertaron de los domínios de los portugueses, y desde entonces han dejado los chacos de la campaña y se han ido al monte, donde fomentan el cultivo de la caña (...) [grifo nosso].795 Logo após as guerras de independência na América espanhola, em 1825, cruceños que possuíssem escravos foram orientados pelas novas autoridades a declararem-nos. Entre os cativos declarados, chama a atenção que os únicos que tiveram ofício especificado foram os lavradores, naturais de Santa Cruz de la Sierra. Quanto aos demais, apenas constavam os seus respectivos nomes, idades, se eram casados e identificação dos proprietários.796 Possivelmente, em vista dos constantes pedidos de devolução de cativos prófugos dos domínios portugueses, tal dado fosse omitido. No entanto, a declaração do presbítero Juan Francisco Peres fugia à regra: dos cativos declarados junto às autoridades cruceñas, constava um casal comprado de um português: Maria, de 30 anos e solteira; e Francisco, de 23 anos e casado com uma negra livre, com quem naquela altura tivera um filho. Segundo o presbítero, a compra havia sido feita com a anuência tanto do governador do Cuiabá como do de Santa Cruz. Portanto, asseverava sua 794 D’Orbigny Apud RIVERA, Ibidem, pp.84-85. VIEDMA, Op. Cit., p. 66. 796 Museu de Historia Y Archivo Regional de Santa Cruz de La Sierra. Fondo Melgar y Montaño. “Declaración de posesión de esclavos (edad, sexo, estado civil) por sus amos vecinos de esta ciudad”. Caja 3, Carpeta 5, leg. 12, doc. 1, 1825. 795 322 legalidade, apesar de incomum. 797 A declaração não especificou o período em que se efetuou tal transação; porém, ilustra que a população negra existente em Santa Cruz tanto poderia ser originária das fugas, como resultado de negociações extra-oficiais facilitadas pela localização fronteiriça, ou mesmo em decorrência de rotas comerciais escravistas que atendiam à demanda da região. Sobre tais rotas, Alberto Crespo Rodas 798 sustenta que, inicialmente, a demanda de cativos ao Alto Peru era atendida por portos localizados nas Antilhas, Santo Domingo e Panamá. O trajeto para um cativo chegar ao Alto Peru poderia se estender em até 9 meses, em decorrência da necessidade de se atravessar o Canal do Panamá. Em palavras de Rodas: Por lo que toca a los esclavos destinados al Perú, éstos llegaban o eran entregados en Nombre de Dios, puerto situado a orillas del golfo de México. De allí debían atravesar el istmo para llegar a Panamá, sobre el océano Pacífico. De Panamá una nueva travesía hacia el puerto del Callao, que era el gran punto de distribución en el Perú. 799 Com o início da colonização de Tucumán (atual Argentina) e fundação de Buenos Aires, o quadro de fornecimento foi alterado significativamente, tornando-se atraente porque implicava uma redução de milhares de quilômetros e, consequentemente, da baixa entre cativos que pereciam no transporte até a região.800 Apesar da resistência do grupo comercial escravista de Lima, que nos idos do final do século XVI se encontrava em posição sólida, Buenos Aires passou a hegemonizar, progressivamente, a distribuição de cativos ao sul da América, com o argumento de que a condução de cativos via-Panamá causava a morte dos cativos transportados. 801 797 Lembramos ao leitor as constantes hostilidades entre autoridades espanholas e portuguesas em torno da devolução de cativos fugidos, trabalhadas no capítulo 4 desta tese. Destarte, uma compra e venda de cativos sob a conivência das autoridades locais, em vista desse contexto, era incomum. 798 RODAS, Op. Cit., p. 24. 799 Segundo Alberto Crespo Rodas, outro porto que atendia a demanda de cativos de todo vice-reinado do Perú era o porto de “Arico”. Idem Ibidem, p. 24. 800 De acordo com Rodas, “(...)La disminución hasta la llegada al Callao representa miles de kilómetros. Al acortarse la travesía, se reducía no sólo el tiempo empleado en el viaje, sino también -como consecuencia natural de ese hecho- el porcentaje de bajas entre los esclavos, ya que está probado por varios lados, además de la lógica, que la duración de la travesía estaba directamente relacionada con el volumen de la carga que llegaba en buenas condiciones a los puertos de destino.” Ibidem,p.24. 801 No final do século XVI o bispo de Tucumán, ao pleitear autorização para o comércio com portos brasileiros via região do Prata, alegava que apenas metade dos cativos transportados via-Panamá chegava viva na cidade. Assim, obteve autorização para a introdução de 150 cativos. Todavia, no transporte até a cidade, o comboio que os levava foi assaltado por um “pirata” inglês e perdeu 22 cativos. Ibidem, p. 25. 323 Vale ressaltar que grande parte dos cativos introduzidos pela nova rota não eram adquiridos diretamente junto aos portos africanos, mas em portos brasileiros, com destaque ao Rio de Janeiro. Ao chegarem em Buenos Aires, eram distribuídos aos mais diferentes pontos. Em 1601, por exemplo, de um grupo de 600 cativos negociados por Gomez Reynel, 50 foram encaminhados às minas de Potosi, no Alto Perú. 802 Havia também outra rota de introdução de cativos no Alto Peru, ou “segundo triângulo”, formado pelo conluio de contrabandistas, autoridades e traficantes portugueses que transportavam mercadorias de Buenos Aires a Charcas, motivados principalmente pela maior possibilidade de lucro. Entre os séculos XVI e XVII, por exemplo, um cativo, ao passo que era vendido em Buenos Aires por 300 pesos e em Charcas por 500 pesos, por meio do contrabando custava 170 pesos. Frequentemente, quando um cativo era confiscado por autoridades, davam-lhe por morto e o vendiam posteriormente. 803 Segundo Rodas, o comércio ilegal no Alto Peru tinha como ponto de partida as minas de Potosi. Em todo caso, fosse por vias consideradas legais, ilegais ou mesmo por fugas dos domínios portugueses, o Alto Peru não chegou a ter uma população cativa em proporções elevadas. Se na América Espanhola, por exemplo, foram contabilizados em 1650 a quantia de 857.000 negros, no mesmo período, o Alto Perú somava apenas 30.000 negros, de um total de 850.000 pessoas.804 Situação contrária se vivenciava na Colômbia, Equador e Peru, que, no mesmo período (século XVII), possuíam uma população negra duas vezes maior que a região. Com o início das guerras de independência, no alvorecer do século XIX, a população cativa que proporcionalmente era baixa apresentou novas reduções. Potosi é exemplar nesse sentido: se no século XVII chegou a ter uma população cativa que correspondia a 6 mil indivíduos, por volta de 1830, após as guerras de Independência, registrava uma população de apenas 1.142 cativos. 805 Redução da população cativa similar pode se verificar em outras partes da América espanhola, após as guerras de independência. Em 1817, de 2 a 3 mil negros recrutados em Buenos Aires e entornos que cruzaram os Andes para combater no Chile, apenas 150 retornaram. A redução da população cativa também pôde ser sentida na análise da proporção 802 Deste total morreram no caminho 6% do montante, baixa considerada “positiva”, em vista do total de mortes por outra vida. Ibidem, p. 25. 803 Ibidem, p. 26. 804 A população branca era de 50.000, mestiços de 15.000, mulatos de 5.000 e indígenas de 750.000. Ibidem, p.12. 805 Ibidem, p. 12. 324 entre homens e mulheres: se antes das guerras de independência a proporção era de 108 homens para 100 mulheres, após, passou a ser de 59 homens para 100 mulheres.806 Finalmente, a tentativa de levante em Santa Cruz de la Sierra do início do século XIX deve ser compreendida a partir de todo o quadro acima exposto, a fim de lançarmos luz nas possíveis intenções ou expectativas dos nossos agentes. Cabe-nos, portanto, o exame minucioso do agosto de 1809. 6.2. “El fuego de la liberdad”: a conspiração do agosto de 1809 Os acontecimentos do mês de agosto de 1809 em Santa Cruz de la Sierra seguramente podem ser considerados um dos principais eventos que levaram o Alto Peru às guerras de independências. Duas são as versões sobre os fatos: uma publicada por Ádrian Justiniano no periódico El Correo del Plata, em 15 e 16 de agosto de 1899; e a outra encontrada nos autos dos processos instaurados para apurar a rebelião, pelo Cabildo de Santa Cruz de la Sierra e Real Audiência de Charcas, além de correspondências trocadas entre autoridades. Tais versões, apesar de contrastarem em diversos pontos, são concordantes em duas questões principais: em primeiro lugar, o protagonismo da tentativa de rebelião se deu em decorrência das alianças firmadas entre escravos, negros livres provenientes dos domínios portugueses e indígenas; e, em segundo lugar, o evento evidenciava que cativos e indígenas estavam atentos ao que se passava não somente no Alto Peru, mas na instabilidade vivenciada pela coroa espanhola ante as invasões napoleônicas, que fragilizavam o controle na região. A primeira versão, publicada 90 anos após o evento, apresenta a conjura planejada para a noite do dia 15 de agosto, durante a realização da festa de “Nuestra Señora de Asunción”, a padroeira da cidade. Atentos e comovidos pelos “ecos da liberdade” que ressoavam por todo o Alto Peru desde os acontecimentos de 25 de maio em Chuquisaca e 16 de Junho em La Paz e indignados com a imposição de impostos, os escravos e negros livres da cidade resolvem tramar uma “formidável conspiração” a fim de se vingarem e “alforriarem-se a si próprios”.807 806 ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina, 1800-2000. Tradução de Magna Lopes. São Carlos: EdUFSCAR, 2007, p. 92. 807 JUSTINIANO, Adrian. Uma Conjuracion de mulatos. In: El Correo del Plata, Ano I, N.2015, 15 de agosto de 1899, p.3. 325 O plano era surpreender aqueles que se encontravam na festa e matá-los, com exceção das mulheres. A desvantagem das armas de fogo no confronto seria compensada pela superioridade numérica, contabilizada por Justiniano como cerca de 800 indivíduos. A festa, desde o final do século XVIII, era a mais popular da cidade e reunia as principais autoridades de Santa Cruz. Passara a fazer parte do calendário, segundo Justiniano, desde o final do século XVIII, quando o subdelegado da cidade, Antonio Seoane de los Santos, encomendara a imagem da “Virgem de Assunção” de Napolis. Durante a pomposa cerimônia de entrega, sucederam estranhos fatos que acabaram interpretados como milagres. Em palavras do autor: Noticioso de la próxima llegada de la imagen, D. Antonio, invitó al vecindario para ir procesionalmente al encuentro de aquélla. Por su puesto, no tuvo que rogar para que todo el mundo se apresurase a satisfacer tan plausible deseo, con tanta más razón cuanto que, desde in illo tempore, somos esencialmente decididos por las procesiones. ¡Al Pari todo fiel cristiano! Nunca se había visto tanta gente por esas calles de Dios, ni jamas se había escuchado vocerío igual en la de ordinario pacifica y tranquila ciudad de Santa Cruz de la Sierra, ó más propia é históricamente llamada San Lorenzo de la Frontera (…).808 Não obstante, com todo o povoado reunido, a mula que carregava a imagem, assustada ou participando da alegria geral, inesperadamente se agitou e desapareceu em carreira para a decepção de todos os presentes, que julgaram destruída a imagem carregada. No entanto, quando retornaram à cidade na profunda tristeza, a surpresa: (...)Cabizbajos y silenciosos, muchos vecinos acompañaban á su casa al Sr. Seoane; llegan y.....!Si! parece mentira, allí estaba la mula, quietecita delante de la puerta de calle, mosqueándose filosóficamente como si tal cosa, y con su carga intacta. ¡Aquello, si, fue motivo para una verdadera conmoción popular!809 Desde então, passou-se a realizar a festa do “velório de Nuestra Señora de Asunción” na casa do Subdelegado, com grande esplendor e pompa, missa solene cantada na Catedral da cidade e procissão até a casa de Seoane. Quanto a santa, esta foi eleita padroeira da cidade. A noite que presenciou a conjura de negros livres, escravos e indígenas, no dia 15 de agosto de 1809, de acordo com a narrativa de Justiniano, presenciava mais um suntuoso “velório” à santa, com toda a alta sociedade cruceña presente, que ocupava os salões da 808 809 Idem Ibidem, p. 1. Idem Ibidem. 326 residência elegantemente vestida e esbaldava-se em doces, biscoitos e fartas jarras de chocolate, ao passo que na parte externa da casa de Seoane, na praça, a população se aglomerava recreando-se com a audição da orquestra que tocava no interior. Seguindo a tradição, o recinto montado para a festa era comparável a uma mansão “celestial”, de acordo com o autor: (…)La selecta y numerosísima concurrencia al velorio, ajena á lo que en contra ella se fraguaba, departía en los amplios salones iluminados con profusión, en el principal, se alzaba lujoso altar de la Virgen, que radiante en luz parecía elevarse al cielo remontándose sobre vaporosas nubes artísticas formadas con riquísimas telas de blancura inmaculada. Y el coro de ángeles que le entonaba himnos de alabanza, lo constituían preciosas niñas que congregadas alrededor de María transformaban el recinto en verdadera mansión celestial.810 Contudo, na parte externa, entre a população que se encontrava na praça, havia um considerável grupo de negros escravos e livres, que aguardavam um sinal para adentrar o recinto: “(...) Afuera la tormenta rugía sordamente, y la plaza iba llenándose de multitud de individuos de aspecto siniestro y sombrío, como el oscuro color de sus torvos semblantes.”811 A senha para entrada seria dada por Julico, um violinista que animava a festa, que tocaria uma sequência de notas já conhecida pelos insurgentes. Julito, de acordo com Justiniano, era a grande liderança do levante. Até então, tudo indica que a noite seguia de acordo com o planejado, quando entra em cena Juan José Duran, que trazia consigo uma carta escrita por Don Juan M. Rojas delatando o movimento. Don Juan havia sido informado momentos antes por uma escrava, que, por seu turno, argumentava ter se informado por seu marido acerca da conjura. Discreto e frio, o subdelegado, após ler a carta, emitiu ordens para apreensão de alguns mulatos, dispersão de outros e regressou “serenamente” ao salão da festa, sem que os presentes se dessem conta do perigo iminente. Julico, ao perceber o malogro, abandonou o velório. Na praça, com as saídas cercadas por guardas, alguns conjurados foram presos, outros fugiram aos bosques; e assim foi sufocada a rebelião, na narrativa de Justiniano. Após alguns dias, Julico foi capturado nas matas. Levado para a cidade, teve a sua cabeça decepada e cravada numa madeira pontiaguda no caminho que conduzia à Cotoca, povoado vizinho onde se descobriu o plano. A sua punição deveria servir de exemplo para todos aqueles que ambicionassem a liberdade. 810 811 Ibidem, p. 3. Ibidem, p. 4. 327 A segunda versão para os eventos do agosto de 1809, por outro lado, apresenta-se mais “moderada” e recatada, todavia, não menos impressionante. Começa por contrastar já na data planejada para o levante: 20 de agosto. De acordo com Humberto Vázquez Machicado, que consultou os documentos dispostos no Archivo General de la Nación, de Buenos Aires, dias antes foi realizada uma investigação e o plano do levante foi anunciado no 18 de agosto. Assim como a versão narrada por Ádrian Justiniano, o objetivo era passar a “degüello toda persona de cara blanca”.812 Entretanto, para assim o executarem, planejavam tomar pontos estratégicos da cidade, a fim de se munirem com armamento, a saber: o “Armazém da Pólvora” (na sala das armas), a Administração dos Tabacos e Casa Real.813 Descoberta a conjura através da delação, foram ordenadas as prisões das lideranças, que se encontravam a meia légua da cidade. A notícia das prisões se espalhou rapidamente e assim vários conjurados conseguiram se evadir. Diferentemente da narrativa de Justiniano, o inquérito instaurado pelo Cabildo de Santa Cruz para apurar os fatos apontou duas principais lideranças e a não-menção do músico Julico: (...) y activas diligencias de o copio de gente , y armamento, há resultado y de la sumaria que um mulato esclavo de Don Josef Salvatierra, llamado Franco, era el jefe y comandante desta sedicion asociado a el negro Anselmo, capitão de los negros libres portugueses, y que recolhidos negros, mulatos e (sic) en casa de lo Anselmo destas en media media legua de esta ciudad dabun el asalto contra esta Republica el dia hoy, del gobernante Reniel ta igualmente que la determinacion era degolar toda persona de cara branca, después deles jueves y los niños [grifo nosso].814 Franco era o líder dos escravos e Anselmo o capitão dos “negros livres”, provenientes de Portugal. Consta no inquérito que o capitão haveria ordenado aos seus companheiros que produzissem flechas, que juntamente com armas de fogo dariam os primeiros passos da rebelião. Com a delação e realização de prisões, Anselmo, Franco e outros cativos conseguiram fugir. Contudo, não tiveram a mesma sorte outros 11 conjurados, considerados lideranças. Além destes, as autoridades cruceñas relatavam nos autos do processo que estavam aliados aos conjurados indígenas das missões próximas à Santa Cruz de la Sierra. Assim, após o sufocamento da rebelião, realizaram interrogatórios com os 11 conjurados aprisionados durante um mês inteiro, além de tentativas de captura dos demais que haviam fugido. O inquérito, de maneira geral, foi concluído no dia 27 de agosto e enviado à 812 VÁZQUEZ MACHICADO, Op.Cit. 813 MORENO, Op. Cit., p. 14. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809. 814 328 Intendência de Santa Cruz (em Cochabamba), para que se enviasse posteriormente à Real Audiência de Charcas, que estava localizada em Chuquisaca. Uma das primeiras constatações era quanto à procedência dos negros livres “conjurados”, oriundos de Portugal: (...) Por estos fundados deseos y para que los mulatos negros que han transmigado a este Reyno desde Portugal y reciden en nesta ciudad, con el abrigo descontinuay desordenes, y los esclavos prófugos, con otras criminalidades próprias por sus Genios orgulhoso y que son unos hombres llenos de los vícios y sin subordinacion alguna, hemeditado proceder a limpiar a esta Republica de semejante Polilla (...) [grifos nossos].815 Reconhecidos como “escravos prófugos”, de gênio orgulhoso e sem “subordinação alguma”, tais negros livres, após atentarem contra a monarquia espanhola, passavam a representar grandes incômodos. O autor do inquérito clamava por limpeza, comparando os conjurados, nossos homens de ferro, a traças. 816 Essa “higienização”, de fato, é o que poderá se observar ao longo dos interrogatórios. Concluía-se também no Inquérito a relação dos conjurados com os movimentos de Independências cujas notícias chegavam dos grandes centros urbanos do Alto Peru. Alegavase que os escravos e negros livres haviam arquitetado tal plano após se informarem de uma suposta “cédula real” que os alforriava e havia sido omitida pelas autoridades da cidade. Ademais, a mesma cédula igualmente isentava aos indígenas do pagamento de tributos, que, como vimos, lhes era imposto desde 1787. A notícia, apesar de ser falsa, fazia parte da estratégia revolucionária para desestabilizar o domínio espanhol no Alto Peru. De acordo com Vázquez Machicado, detinha clara origem “doctoral”, ou seja, provinha do “Grêmio doctoral”, formado por advogados de Chuquisaca que defendiam a independência do Alto Peru e estiveram à frente dos levantes de 25 de maio de 1809 na cidade. Em palavras do autor: (...) Estos astutos togados querían producir la mayor cantidad posible de levantamiento, por más temerarios y criminales que fueran en sus consecuencias. Lo urgente era producir el caos y la desorganización en la colonia, para de tal caos y de tal desorganización sacar provecho la «patria» en la cual soñaban.817 De acordo com o autor, não se sabe quem levou a falsa notícia ou se cativos de Santa Cruz de la Sierra mantinham contatos com os principais centros urbanos. O mais provável é 815 Idem Ibidem, fl. 4v. Traças são larvas oriundas de mariposas noturnas (polillas), que podem corroer lã e outros tecidos, além de pele, de acordo com o dicionário Michaelis. 817 VÁZQUEZ MACHICADO, Op. Cit. 816 329 que pudessem ter feito interpretações errôneas das conversas que escutavam nas casas senhoriais: (...) através de sus comentarios y disquisiciones acerca de la caducidad del poder real y de la independencia de las colonias, deben haberse deslizado conceptos como los de «libertad», y alguna que otra queja sobre los «tributos», y tales frases fueron escuchadas al vuelo por los negros y así interpretaron a su modo tales noticias que en esa rara forma llegaban a sus oídos.818 De qualquer maneira, a organização da conjura pela aliança entre cativos, negros livres e indígenas estava completamente inserida nos acontecimentos políticos que se passavam no Alto Peru, conectados com alterações de ordens mais gerais. A região, em si, vivenciava um período turbulento desde 25 de maio em Chuquisaca, sede da Real Audiência de Charcas e Universidade de San Francisco Xavier, um dos principais centros urbanos do mundo castelhano nas Américas e maiores reservatórios de prata do mundo, proveniente de Potosi. Naquela tarde, após a detenção de Jaime Zudañez, ordenada pelo presidente da Real Audiência, Don Ramón García de León y Pizarro, a população saiu às ruas, rumou à casa presidencial e enfrentou as tropas militares da cidade. Estanislao Just Lleo descreve as minúcias do evento: (...) Al atardecer del jueves 25 de mayo de 1809, el pueblo de la Plata, la capital del distrito de la Audiencia de Charcas, era presa de una conmoción. A los gritos de viva el Rey, traicíón, o mueran los traidores, una inmensa cantidad de gente se agolpó en la Plaza Mayor, frente al palácio presidencial. Alli, entre los ruídos de los tiros, gritos y sones de campanas, se llevó a cabo la revolucion. Cuando la asonada pareció decrecer, a lãs primeras horas de la madrugada del dia seguinte. Chuquisaca presenteaba otro aspecto. El presidente Garcia Pizarro había entregado el mando en la Audiencia, el arzobispo Moxó habia huido por miedo a lãs turbas, y un nuevo ejército, formado por lãs gentes del pueblo, estaba en viaas de formación, a título de defensa de los derechos del rey y de la Patria [grifo nosso].819 Apesar de não ser claramente um movimento independentista, uma vez que o evento era formado por várias forças políticas, somaram-se a ele partidos que almejavam a independência. É preciso ressaltar que desde 1808 a Espanha havia sido ocupada por forças napoleônicas. Com o rei deposto, José Bonaparte assumiu o trono. Todavia, não se reconhecia a legitimidade do novo rei. Criaram-se então Juntas nas mais diferentes cidades do Império espanhol que reafirmavam a fidelidade a Fernando VII, o rei deposto. De acordo com Maria Luisa Soux, no Alto Peru, ao passo que as informações chegavam da metrópole, que davam 818 Ibidem. JUST LLEO, Estanislao. La revolución del 25 de mayo de 1809 en Chiquisaca. Sucre: Universidad San Francisco Xavier, junio-julio de 2007, p.6. 819 330 conta das invasões napoleônicas e abdicação, diferentes corpos, vizinhos, autoridades se apuravam para prestar juramento de fidelidade a Fernando VII, reafirmando-se assim o chamado “pacto monárquico”. 820 Segundo Soux, havia uma situação de “vazio de poder” e cataclismo, em que se cruzavam diferentes teses: se, por um lado, as “Juntas” reafirmavam a soberania monárquica e domínio colonial, por outro lado, haviam aqueles que reivindicavam maior autonomia. Analogamente, em meio à crise, surgira uma terceira proposta: conferir legitimidade à princesa Carlota Joaquina, única irmã do rei, Bourbon, que se encontrava em liberdade, no Brasil. Em torno dessas teses, é possível entender o significado do 25 de maio em Chuquisaca e os gritos de “traidor”: existia rumores de que o presidente Pizarro houvesse concordado com as pretensões de Carlota Joaquina, embora em carta negasse com veemência as suas pretensões e reafirmasse a lealdade ao rei Fernando VII. 821 A mesma complexidade poderia ser verificada em 16 de junho de 1809, em La Paz. Aproveitando-se da realização da festa da Virgem del Carmen, em defesa ao rei e contra autoridades locais, insurgentes realizaram um “cabildo aberto”, aprisionaram o governador intendente e o bispo da cidade. Após o levante, foi publicado um documento intitulado “Proclama de la Junta Tuitiva”. O mesmo aparecerá em diferentes versões, expressando o conflito entre forças monarquistas e autonomistas no interior dos movimentos. Segundo Soux, apesar de serem escritos comprovadamente em 1809, contrastam radicalmente no conteúdo. 822 820 Na primeira versão, observamos uma declaração de fidelidade ao rei deposto: SOUX, Maria Luisa. “El tema de la soberanía en el discurso de los movimientos juntistas de La Plata y La Paz en 1809”. In: Revista Número 22-23, Agosto de 2009 (Universidad Católica Boliviana). Disponível em <http://www.revistasbolivianas.org.bo/pdf/rcc/n22-23/v10n23a01.pdf >. Acessado no dia 5 de janeiro de 2015. 821 Em dezembro de 1808 chegou a La Plata uma infantaria enviada por Carlota Joaquina, com a proposta de reconhecimento legal da regência de Carlota Joaquina. Pizarro foi claro na sua lealdade ao rei espanhol Fernando VII: (...)ni el Terror, ni la Sorpresa, ni el aspecto de la muerte misma, son capases de inmutar, o hacer vacilar, ni por un instante, nuestra característica fortaleza dispuesta a llenar em todas ocasiones los deberes de vasallaje. Yo por mi parte aseguro a V. A. R. que soy Español, soy noble, soy Jefe de una Provincia, soy General, y por todos estos multiplicados Títulos, me reconozco con otros tantos motivos de hacer toda clase de sacrificios en defensa de los derechos de nuestro Soberano el Señor Don Fernando Séptimo de toda la Familia Real y de la Patria enormemente atropellada, por el ambicioso Emperador de los Franceses. Esta es mi resolución: esta es la de la Provincia que gobierno: esta es la de toda la Nación Española, y esta es la que llenará de satisfacción el grande y Real animo de V.A (...)”. Ibidem, p. 13. 822 As versões da “Proclama” foram publicadas em temporalidades diferentes. A primeira se deu em 1909, publicada por Manuel María Pinto. A segunda se encontra alocada no Archivo General de la Nación. Por fim, a terceira e última versão, se encontra na seção de manuscritos da Biblioteca Central da Universidad Mayor de San Andrés. Vale ressaltar que a analise das diferentes versões também foi realizada pelo historiador José Luís Roca, que observa não a busca por independência em ambos os eventos – 25 de maio e 16 de junho -, mas por maior autonomia. Ver ROCA, José Luis. 1809. La Revolución de la Audiencia de Charcas en Chuquisaca y en La Paz. La Paz: Ed. Plural, 1998. 331 Ya es tiempo pues de elevar hasta los pies del trono del mejor de los monarcas, el desgraciado Fernando VII, nuestros clamores, y poner a la vista del mundo entero,los desgraciados procedimientos de unas autoridades libertinas. Ya es tiempo de organizar un nuevo sistema de gobierno fundado en los intereses del rey, de la patria y de la religión, altamente deprimidos por la bastarda política de Madrid. 823 A segunda versão da “Proclama”, por sua vez, demonstra uma visão de autonomia e independência: Ya es tiempo pues de sacudir yugo tan funesto a nuestra felicidad como favorable al orgullo nacional del español. Ya es tiempo de organizar un nuevo sistema de gobierno fundado en los intereses de nuestra patria, altamente deprimida por la política bastarda de Madrid. Ya es tiempo, en fin, de levantar el estandarte de la libertad en estas desgraciadas colônias adquiridas sin el menor título y conservadas con la mayor injusticia y tiranía.824 Em outras palavras, podemos observar um confronto entre aqueles favoráveis a Fernando VII e aqueles que reivindicavam maior autonomia. Eram movimentos similares que se propalavam pelo Alto Peru. Humberto Vázquez Machicado, por exemplo, afirma que após o 25 de maio em Chuquisaca, foi enviado um emissário para La Paz, o doutor Mariano Michel, a fim de preparar e ativar a sublevação. Este chegou em La Paz no dia 8 de junho e, segundo as memórias do espanhol Tomás Cotera, não havia cessado de participar de reuniões e instruir os passos da insurreição. 825 De todo modo, ao retornarmos às motivações que estimularam a tentativa de rebelião em Santa Cruz de la Sierra, não é de se surpreender que os insurgentes cativos pudessem vislumbrar a ideia de uma possível “alforria”. Andrews Reid, ao analisar os diferentes processos de guerras de independência na América espanhola, menciona numerosas situações em que cativos não somente estavam atentos aos acontecimentos políticos do continente, mas negociavam com os dois lados do conflito a fim de garantirem as melhores possibilidades para liberdade.826 Conscientes da importância militar que detinham ao longo das guerras, poderiam ser decisivos para a vitória de um lado ou outro com a oferta de apoio. 823 SOUX, Op. Cit., p. 17. Idem Ibidem, p. 17. 825 VÁZQUEZ MACHICADO, Op. Cit. 826 Andrews Reid constata que enquanto alguns se uniam aos exércitos rebeldes sob a promessa de liberdade, outros se uniam aos senhores para evitar o recrutamento. Ao longo das guerras, por exemplo, Simon Bolívar 824 332 Como as guerras de independência se prolongaram mais do que o esperado, ambos os lados do conflito foram obrigados a recorrer aos contingentes de cativos. Reid dá uma dimensão da importância da participação cativa na América espanhola, de maneira geral: (...) Os governos rebeldes da Argentina e da Venezuela começaram a recrutar escravos em 1813; um ano mais tarde, o Chile os seguiu. A Espanha a princípio não recorreu ao recrutamento, mas ofereceu liberdade àqueles escravos que se oferecessem como voluntários para servir no exército.827 Embora não houvessem propostas claras quanto à emancipação, o irromper das guerras de independência e instabilidade ofereciam aos cativos três vantagens, que foram largamente aproveitadas: em primeiro lugar, a redução de controle, que propiciou o aumento das possibilidades de fuga; em segundo lugar, a possibilidade dos escravos do sexo masculino obterem liberdade via-alistamento militar; por último, após a participação nas guerras, a aprovação da emancipação gradual por toda a América.828 Com o poder de “barganha” elevado, em função dessa instabilidade, a participação escrava nos conflitos quebrou a espinha dorsal da escravidão colonial. De qualquer maneira, tanto no caso dos conjurados de Santa Cruz terem interpretado erroneamente as notícias que circulavam pela América espanhola, como aventa Vázquez Machicado, ou como no de que pudessem ter sido manipulados por notícias falsas enviadas de Chuquisaca ou La Paz, cativos que se encontravam na cidade estavam dispostos a lutar por essa liberdade. No caso dos negros libertos, provenientes dos domínios portugueses, possivelmente compreendiam que aquele poderia ser o momento de assegurar a condição livre, inconstante e incerta, uma vez que frequentemente as autoridades do Mato Grosso e Cuiabá requeriam a captura e devolução para o outro lado da fronteira. Ou mesmo, podemos aventar que a aliança entre negros livres e escravos pudesse representar de alguma maneira um gesto solidário ou vingança contra o homem branco. Acerca dessa última hipótese, lembramos que, no inquérito realizado pelo Cabildo de Santa Cruz, a proposta principal do levante seria degolar todos aqueles de “cara branca”, indistintamente. O sufocar da insurreição aparece em ambas versões, no texto de Ádrian Justiniano e nos documentos relacionados ao inquérito que apurou os fatos. Contudo, o primeiro se restringiu a mencionar a punição de Julico, considerado a liderança da conjura, ao passo que decretou recrutamento de cativos na Colômbia, Venezuela e Peru, que não foi recebido de maneira agradável entre senhores, em vista da alta possibilidade de morte e futuras alforrias. Ver Reid, Op, Cit., p. 92. 827 REID, Ibidem., p. 91. 828 Ibidem, p.88. 333 na segunda versão constava a prisão de 11 cativos. Nesta última, após a apuração dos fatos e interrogatórios capitaneados pelo Cabildo de Santa Cruz, os prisioneiros foram enviados à Real Audiência de Charcas. Infelizmente, não localizamos dados acerca de Ádrian Justiniano, a fim de termos melhor clareza sobre a sua base documental. Todavia, quando a comparamos com as outras fontes – inquérito e correspondências diversas –, parece-nos que a imprecisão em alguns pontos ou exagero em outros possa ser proveniente da memória coletiva do evento, que ainda permeava a população cruceña mesmo após 90 anos do ocorrido. Sobre essa hipótese, vale frisar: muito mais “cativante”, dotada com tons diversos de cores, embora o final tenha sido dramático como na outra versão, com o malogro e punição violenta das lideranças. Ao vislumbrarmos a descrição e participação de Julico, apontado como a grande liderança do movimento, é possível imaginá-lo entoando a melodia que daria início à insurreição, caso não fosse traída. Tanto em uma versão como em outra, a tentativa fracassou pela delação de pessoas próximas aos conjurados. Por um detalhe de dias, caso o plano fosse bem-sucedido, estaríamos diante de um evento com grandes semelhanças à exitosa Revolução haitiana; revolução que, entre 1791 e 1804, levou o Haiti da condição de colônia a um território independente, governado por negros, tendo levado a morte ou ao exílio forçado a população branca escravocrata e colonizadora.829 A carta escrita e publicada em 1º de janeiro de 1804, pelo general Dessalines, proclamado governador-geral da Ilha, revela um provável sentimento análogo ao sentido pelos conjurados de 1809: Não fora suficiente expulsar de vosso país os bárbaros que ensangüentavam esta terra por dois séculos; não fora suficiente ter restringido as facções sempre recorrentes que estavam brincando de afastar a sombra da liberdade que a França expôs aos vossos olhos; é necessário, por último ato de autoridade nacional, assegurar perpetuamente o império da liberdade no país que nos viu nascer; é necessário constranger o governo inumano que leva há tempos o torpor mais humilhante aos nossos espíritos, todos esperam nos subjugar novamente; é preciso, enfim, viver independente ou morrer.830 829 As semelhanças dos episódios de Santa Cruz de la Sierra e a Independência haitiana são notáveis, a começar pela proposta de ataques a população branca e da auto-alforria por meio do levante. Acerca da Independência haitiana, existe uma extensa bibliografia. Ver Cordova-Bello, Eleazar. La independência de Haiti y su influencia en Hispanoamérica. Caracas: Instituto Panamericano de Geografia e Historia, 1967; MOTT, Luis R. B. “A revolução dos negros do Haiti e o Brasil”, in Questões & Debates, ano 3, n.4 (junho de 1982), pp. 55-63; JAMES, Cyril Lionel Robert. The Black jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution. New York: the Dial Press, 1938. 830 A declaração de independência encontra-se disponível no < http://www.nationalarchives.gov.uk/dol/images/examples/haiti/0003.pdf >. Acesso no dia 7 de janeiro de 2015. 334 Pelas lacunas documentais, não sabemos se os conjurados do agosto de 1809 estavam ou não inspirados na independência haitiana, se carregavam consigo o sentimento de viver independente ou morrer, proclamado pelo haitiano Dessalines. Contudo, a história de luta para se verem livres da escravidão ainda teria continuidade, com as prisões e futuros julgamentos. Portanto, ainda nos é possível delinear mais alguns passos da história desses homens de ferro. 6.3. Do malogro: as consequências, punições e novos caminhos aos homens de ferro As prisões ocorreram logo após o anúncio da conjura, no dia 18 de novembro de 1809. Pelo que consta na investigação realizada pelo Cabildo de Santa Cruz, grande parte dos conjurados, ao se informarem das prisões, fugiram da cidade e vilarejos vizinhos para as matas, deixando para trás armas e flechas, que foram encontradas na casa de Anselmo, líder dos negros livres de “Portugal”. Nos meses que se seguiriam ao sufocamento da rebelião, além do envio dos 11 conjurados considerados líderes do movimento, outras prisões ocorreriam. Bismark Cuéllar Chávez, que tem realizado uma investigação junto às correspondências trocadas entre o subdelegado Antonio Seoane de los Santos, a Intendência de Cochabamba e Real Audiência de Charcas, menciona a continuidade das prisões e a permanência do iminente sentimento de novas alianças seguidas com revoltas de indígenas e negros na região. No dia 7 de novembro de 1809, no relato de uma fuga perpetrada por negros considerados “réus”, que se encontravam na carcerária da cidade, subentende-se que, mesmo após a captura das lideranças, as prisões tiveram continuidade. O documento transcrito havia sido produzido diretamente pelo próprio Antonio Seoane de los Santos, o subdelegado da cidade: (...)Don Antonio Seoane de los Santos, coronel de Reales Ejércitos, Comandante del Batallón de Milicias Provinciales de Santa Cruz de la Sierra y Juez Real Subdelegado de este Partido, etc., etc.- Por cuanto en esta hora que son las cuatro de la mañana del presente día, se me notició la fuga de los Reos criminales comprometidos en el alzamiento acordado contra de la inocente ciudad que se hallaban en la cárcel pública y conviene averiguar el modo y forma como consiguieron libertarse de las seguras prisiones en que estaban y reparar con oportunidad las fatales consecuencias que de ello pueden resultar. Debía de mandar y mando, se proceda por mí a reconocer y averiguar cómo han logrado los dichos reos su intento: fue descuido que 335 hubo en la guardia que los custodiaban para aplicar el condigno castigo al individuo que resulte culpado (...) [grifo nosso].831 Na sequência, Seoane informa o despachar de cartas para todas as partes, especialmente aos curas responsáveis pelas missões vizinhas, para que tivessem atenção com os negros fugitivos, pois temia que pudessem introduzir uma “cizaña” ou que espalhassem má-influência. Para tanto, também ordenou atenção a comandantes militares dos diferentes pontos em volta de Santa Cruz, para que velassem pela seguridade da cidade de dia e noite. Havia medo não somente da associação entre negros livres e escravos, mas da perigosa aliança com indígenas, que, entre final do século XVIII e início do XIX, perfaziam cerca de 2.111 indivíduos, como vimos anteriormente em Viedma. Na própria conclusão das investigações que aprisionaram os 11 conjurados em agosto daquele ano, era mencionada a aliança entre negros e indígenas das quatro missões vizinhas, que uniam forças em torno de diferentes objetivos: cativos queriam a liberdade e indígenas desejavam a isenção dos tributos. Portanto, era importante bloquear o mais rápido possível a indignação e possibilidades de novos ataques, especialmente entre a “gente do Piray”, próximo às cordilheiras. O Piray configurava-se como a principal missão fundada entre as cordilheiras e rio Parapití, a oeste de Santa Cruz de la Sierra, junto às terras de indígenas Chiriguanaes. Sua fundação remete ao ano de 1680, segundo Viedma, quando o padre jesuíta Juan de Torres tentara edificar um povoado. Como os Chiriguanaes não aceitavam a prática de comércio com habitantes de Santa Cruz, tentaram matar o padre, que acabou por fugir. Queimada e completamente destruída, a missão só voltaria a ser re-estabelecida em 1768, quando, após sucessivas derrotas, os indígenas acabaram por ser submetidos e, sob o comando do presbítero Lorenzo de Ortiz, edificou-se o povoado intitulado Nuestra Señora de la Asumpcion del Piray.832 Situado entre os rios Parabanó e Piray, distante a uma légua pelo norte da Cordilheira, vinte e seis de Santa Cruz, o povoado era um dos 8 de 19 que haviam aceitado à submissão à fé católica. A grande maioria entre os 1.686 que haviam no povoado era formada por indígenas Chiriguanaes, conhecidos pelo temperamento “ardente” e “variado”. 833 831 CUÉLLAR CHÁVEZ, Bismark. La rebelión de los negros y mulatos em Santa Cruz de La Sierra, 15 de agosto de 1809. Santa Cruz: Bismark A. História, turismo & cultura, 2009. 832 VIEDMA, Op. Cit., p.169. 833 Idem Ibidem, p. 170. 336 Tal temperamento era verificável na constante hostilidade que os Chiriguanaes mantinham com os espanhóis, que, de acordo com Paula Peña Hásbun, se tratava de uma verdadeira “dor de cabeça” desde o século XVI. Conflito herdado dos Incas, provocou insucesso quase completo nas políticas de evangelização, povoamento e submissão. Do último quartel do século XVIII até meados do XIX, agravou-se com a não-aceitação da presença das missões na região, provocando constantes conflitos que levaram até mesmo o subdelegado de Santa Cruz, Antonio Seoane, a organizar campanhas militares contra indígenas em 1800. Na ocasião, juntamente com o governador-intendente de Cochabamba, organizou um batalhão formado por 1149 homens para arrasar os Chiriguanaes que atacavam as missões. Estes últimos, ante o poder do adversário, acabaram por fugir. No entanto, novos levantes e ataques voltaram a se repetir em 1804 e 1807.834 Em outras palavras, no que diz respeito à possível aliança entre negros e indígenas nos eventos do agosto de 1809, os cruceños tinham grandes razões para temer o diálogo entre negros que almejavam liberdade e indígenas que eram hostis à presença espanhola na região, como os Chiriguanaes que habitavam os entornos do Piray e já mantinham uma guerra que se arrastava por séculos. Retornando à fuga dos conjurados de 7 de novembro de 1809, chama atenção os esforços movidos para se tentar apurar as circunstâncias da fuga, provavelmente motivados pelo temor ou pressão da sociedade cruceña. Buscava-se um culpado, aliado ou facilitador. Foi chamado o capitão da guarda Manuel José Rodriguez. No interrogatório mencionado por Cuéllar Chávez, o capitão afirmou que os escravos haviam escapado por meio de um buraco feito em torno da cela e que os guardas não viram, já que não estavam autorizados a examinar a cela e, assim, não poderiam saber se existiam ferramentas no interior. Mesmo negando o descuido, o capitão mandou prender o guarda responsável na noite da fuga, Andrés Méndez, suspeito de ter feito vista grossa à fuga. 835 Aparentemente, era preciso encontrar um culpado para se acalmar os ânimos. 834 HASBUN, Op. Cit., p. 7. Ver também GUARDIA, que aponta que a compreensão para as alianças firmadas por indígenas Chiriguanaes e rebeldes durante a guerra de independência, deve ser considerada à luz da constante hostilidade entre tais indígenas e espanhóis na região. GUARDIA, Nino Gandarilla. Desenredando La Independencia de Santa Cruz y SUS Provincias (1809-1831). Santa Cruz de La Sierra: Centro de Estudis Nacionales, 2008, p. 14. 835 CUÉLLAR-CHAVEZ, Ibidem,p.10. 337 A partir do dia 8 de novembro, começaram as buscas pelos evadidos. Um dos capturados foi Melchor Florián, que, mesmo encontrado sozinho nas matas, resistiu à prisão e acabou por perecer. Jose Manuel Rodriguez relatou ao subdelegado Seoane a sua luta e morte: Doy parte a Usía como en esta hora acaba de llegar el cabo segundo de mi compañía Ramón Baca con la escolta que le acompañó esta madrugada en solicitud de los reos fugitivos de la cárcel que mediante las estrechas eficaces providencias de Usía se están persiguiendo, trayendo la cabeza de uno de los principales caudillos del precitado alzamiento contra esta ciudad, llamado Melchor Florián, que resistiendo en el monte a la tropa que lo iba a aprisionar y prendiéndose con imponderable odio de un soldado y del fusil que llevaba, conociendo los demás el empeño con que aspiraba a ser disparos de él y dejarlo en el sitio, se vieron en el estrecho de dispararle un balazo dejándolo en el sitio. Cuerpo de Guarda de esta Plaza y Noviembre nueve de mil ochocientos nueve.836 Em outro documento transcrito por Cuéllar Chávez, pode-se observar com grande clareza a determinação de Melchor Florián em resistir até a morte: (...)habiendo la escolta rastreado por los inmediatos montes y dado con él, reconvenido por un soldado que se diese preso le respondió diciendo que de ningún modo lo haría y abalanzándose al propio tiempo del saldado le agarró el fusil y lo acosó contra una isla en donde estuvieron forcejeando hasta que, consiguiendo el soldado quitarle el fusil, le puso los puntos y como no diese fuego causa estar lloviendo en aquella hora, dispuso al punto el mulato avanzando con imponderable furia, sin embargo, de estar con la dicha platina (grilletes) en los pies y retirándose el soldado del peligro que le amenazaba se acercó otro que era su hermano y le disparó un tiro al mulato el que quedo en el sitio (...) [grifo nosso].837 Para satisfação do povo que pedia castigo aos envolvidos na conjura, segundo Seoane, a cabeça de Melchor Florián foi cortada e posta no meio da praça. A punição deveria servir de exemplo a todos que ousassem atentar contra a cidade. Ao todo, a operação de captura conseguiu reunir, até o dia 11 de novembro, 9 evadidos, que voltaram ao cárcere da cidade com maior vigilância. Quanto ao destino dos 11 negros capturados ainda em agosto e enviados para Chuquisaca/La Plata, a conjunção de fatores políticos mais amplos, relacionada aos embates políticos que antecediam o eclodir das guerras de independência, reservaria aos mesmos um caminho distinto, contudo, não menos tormentoso. No dia 11 de setembro, pelos autos do processo, é providenciada uma guarda que estaria encarregada de levar o grupo a Chuquisaca para julgamento, atendendo às determinações legais para causas criminais antes de se executar 836 837 Ibidem, p.11. Ibidem, p. 12. 338 a pena recomendada pela primeira instância, o Cabildo. 838 Juntamente com o grupo, foi enviada a sumária realizada pelo Cabildo de Santa Cruz, concluída no dia 27 de agosto, que detalhava os fatos e aguardava o aval para proceder à “limpeza”. Porém, em Chuquisaca, o julgamento não saiu como o esperado. A primeira baixa foi a declaração da nulidade da sumária enviada pelo Cabildo, sob a justificativa de que não competia à instituição e sua jurisdição a realização de uma investigação criminal. Cuéllar Chávez menciona uma correspondência trocada entre o vice-rei do Río de la Plata e o intendente de Cochabamba, em 27 de novembro, que confirmava a anulação da primeira sumária realizada: En vista del oficio de V.S. de 16 de octubre último y del testimonio con que instruyó de haber anulado la Real Audiencia del distrito lo actuado por el subdelegado y comandante de armas de Santa Cruz y por el alcalde ordinario en esta causa de alzamiento de negros indios tributarios, prevengo a Ud, que ahora que guarde y cumpla la resoluciones expedida en el mismo asunto anteriormente por esta superioridad que proverá en adelante con mayor conocimiento en cuanto a los demás particulares contenidos en el citado oficio con el fin de cortar ulteriores controvérsias [grifo nosso]. 839 O cabildo secular cruceño, por sua vez, acatava a decisão, mas pedia que não se enviassem os negros novamente a Santa Cruz, pois havia a suspeita de que pudessem se aliar com os conjurados fugidos e indígenas das quatro missões vizinhas. Em todo caso, a continuidade do processo revelaria novas surpresas: ao contrário do que se esperava, no que diz respeito ao rigor da aplicação de penas, os tribunais da Real Audiência de Charcas, com a intervenção direta do jovem advogado Antonio Vicente Seoane y Robledo, decidiu por enviar parte dos prisioneiros para o trabalho em uma panederia próxima à cidade. 840 Em vista do histórico de aplicações penais rigoroso, afirma Humberto Vázquez Machicado, o trabalho na “panedería” como parte da punição poderia ser considerado incomum. Ou seja, a pena aplicada era branda,841 uma vez que, por atentados contra a coroa, frequentemente mandavam os réus para forca ou lâmina. 842 A atuação do advogado Antonio Vicente certamente havia sido decisiva para o que Machicado chamou de “benignidade”. É 838 ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl. 3. CUÉLLAR CHÁVEZ, Op. Cit., p. 6. 840 A “padaria” em que os prisioneiros foram encaminhados, estava próximo a sítio chamado “Purificacción”, nos arredores de Chuquisaca, de acordo com os autos do processo. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl. 10. 841 MACHICADO, Op. Cit. 842 CUÉLLAR CHÁVEZ, Op. Cit., p. 17. 839 339 possível que o mesmo tenha feito valer a sua influência nos pareceres, na medida em que o grupo do advogado dominava o grupo de “ouvidores” da Real Audiência. O advogado, segundo Machicado, estava completamente “entregue à revolução” e era simpático à causa dos rebeldes aprisionados.843 Vale ressaltar que Antonio Vicente era o próprio filho do subdelegado que autuou e comandou a derrota da insurreição, Antonio Seoane de los Santos. Havia se educado e formado em direito em Charcas, no ano de 1808, e, ao contrário do seu pai que era conhecido pela extrema lealdade ao rei, tivera participado desde o irromper dos primeiros levantes que levariam o Alto Peru à guerra de Independência, como no 25 de maio de 1809 em Chuquisaca.844 Em 1810, quando se deram os primeiros levantes da guerra de independência em Santa Cruz de la Sierra, Antonio Vicente era uma das lideranças. Segundo Vázquez Machicado, a relação entre o pai e filho estava degradada desde que Seoane de los Santos se informara por cartas das ideias e envolvimentos subversivos do filho, que se encontrava em Chuquisaca. Considerava a falta de lealdade ao rei um sacrilégio. O desconforto e decepção do pai se expressara até mesmo nas vésperas da sua morte, em presença do filho, que havia regressado a Santa Cruz: (...)El viejo Coronel hallábase enfermo cuando su hijo regresó de La Plata con su flamante título latino y una porción de ideas nuevas en la cabeza. Postrado en cama hallábase el Coronel, en su última enfermedad; abrazó a su hijo allí, estrechándolo emocionado, apenas pudo decirle entre sollozos: «Hijo, ya se que vienes a darme la muerte». El vasallaje leal a su Rey conservábalo hasta las mismas puertas del sepulcro. La Parca fue piadosa con él, pues cerró sus ojos para siempre, antes de ver a sus dos hijos: don Antonio Vicente y don Manuel José, alzarse los primeros en rebelión contra la soberanía peninsular, el 24 de septiembre de 1810.845 De qualquer maneira, direta ou indiretamente, todo esse ambiente de instabilidade política no Alto Peru, iniciado principalmente a partir de 25 de maio de 1809, contribuiu para que os negros conjurados não fossem executados. Ao contrário do que as autoridades cruceñas reivindicavam, tomaram caminhos diversos. Nino Gandarilla Guardia afirma que aqueles que não emigraram novamente foram incorporados posteriormente nas forças que guerrearam na independência, como o grupo de negros que passou a compor o chamado 843 MACHICADO, Op. Cit. Idem Ibidem. 845 Ibidem. 844 340 “Batalhão dos pardos” em Santa Cruz, criado pelo comandante Ignácio Warnes. 846 O mesmo era formado por mulatos e fazia parte da infantaria. O regimento que o criara previa a concessão da liberdade a todo negro escravo que se alistasse.847 A carta escrita, provavelmente, por Manuel Victoriano García Lanza ao cura Medina também dava conta de um possível destino dos insurgentes, em meio a instabilidade política: poderiam ter se incorporado à chamada “Compañia del Terror”, formada por negros e mulatos, associadas aos rebeldes que, a partir de 1810, lutaram diretamente por independência.848 Sobre a alcunha da “Compañia”, Guardia afirma que, possivelmente, recebeu tal nome não por estar associada diretamente às forças que reivindicavam mais autonomia, em meio ao emaranhado de forças políticas que se entrecruzavam no período, mas pela “fobia” que se tinha da associação de negros ou escravos. No entanto, os autos do processo informam claramente o destino de alguns prisioneiros, encaminhados à “panedería” que estava sob administração de Don Mariano Gallo: Antonio Gomes, Manuel Francisco Martin Claro, Mateo Apósteles, Joaquim Cardoso e Francisco Ruiz. Mesmo sendo considerada uma pena mais “branda”, se comparada à aplicação das penas capitais, o trabalho na panedería de Don Mariano Gallo era considerado pesado pelos negros aprisionados. Os conjurados, ao requererem liberdade via-processo à Real Audiência, denunciaram em representações separadas os maus-tratos recebidos. Antonio Gomes foi o primeiro. Afirmava que o tratamento recebido na panedería de Mariano Gallo era intolerável e cruel. Constantemente recebia açoites, assim como os demais prisioneiros. Declarava ter “emigrado” do reino de Portugal e desde então vivia na região na condição de livre, servindo ao rei da Espanha como soldado. Antonio dizia ser um “absurdo” ameaçarem-no de devolução a Portugal, uma vez que já até havia combatido Portugal em ações militares. Em suas palavras: (...) es intolerable La hostilidad y crueldad con que ami y ami conpaneros nos trata el indicado panadero contipundonas com asotes como a 846 Quando Warnes chegou a Santa Cruz de la Sierra, tinha 43 anos. Foi um dos 3 comandantes que comandaram a frente dos patriotas (aqueles que lutavam pela emancipação da Espanha) em Santa Cruz, juntamente com Antonio Suárez e José Manuel Mercado. Sob o seu comando, o exército dos rebeldes lutou nas batalhas de Flórida (25 de maio de 1814), Santa Bárbara (7 de outubro de 1815) e El Pari (21 de novembro de 1816). Nesta última veio a falecer. Segundo Guardia, a batalha na qual pereceu Warnes, é considerada uma das mais sangrentas das guerras em Santa Cruz. GUARDIA, Op. Cit. 847 Idem Ibidem, pp.52-53. 848 HÁSBUN, Op. Cit., p. 10. 341 presidiários. Y senor, vine a buscar La protecion e (sic) para que en Sta Crus imputando tumulto, huivimos noticia que nos aphicienron remitir al Brasi, e donde emigramos al Servicio y amparo del nosostro monarca El Rey de La España, aquien siempre hemos servido de soldados contra los bárbaros, y aun contra nuestra mesma nacion (....).849 É interessante observar em Antonio Gomes não somente a ausência de qualquer apego às estruturas políticas do reino de Portugal, mas também o fato de até já tê-lo combatido. Certamente, em solos dominados por portugueses, não conseguira vislumbrar possibilidades de uma vida com auto-determinação. Continua a sua representação re-afirmando a sua lealdade ao rei da Espanha e suplica que fosse posto em liberdade, pois havia deixado em Santa Cruz de la Sierra sua mulher e filhos. Colocava-se à disposição e, para se ver livre da prisão, se fosse preciso até o pagamento de fiança, que “daria como muita satisfação”. A segunda representação, escrita por Manuel Francisco Martin Claro, guarda semelhanças com a carta de Antonio Gomes: Manuel, também “emigrado” do reino de Portugal, dizia ignorar as razões da sua prisão e afirmava que já tivera servido ao rei da Espanha como soldado, portanto, era um “fiel vassalo”. Suplicava clemência e a sua soltura. Na carta, argumentava que, se não demonstrasse “bom comportamento”, o colocassem em prisão novamente.850 Por fim, a terceira e última súplica que consta nos autos do processo sobre o julgamento dos conjurados de Santa Cruz, foi escrita por Mateo Apósteles, também fugido do reino de Portugal. O mesmo afirmava desconhecer a razão pela qual fora posto em prisão e reclamava veementemente do trabalho na panedería: (...) me son intorelables los padecimentos que sufro en la indicada panederia, em que con el continuo trabajo nocturno, me estoy extenuado, hasta ponerme en uno estado de enfermidad, que puede costarme la vida, como a sucedido a uno de mio companero, que a muerte y algunos se hallan bien enfermos.851 Dando prosseguimento ao seu relato, Mateo afirmava se considerar, junto com os seus companheiros, alvo de calúnia dos moradores de Santa Cruz de la Sierra, invejosos tanto da liberdade que gozavam como do trabalho de cultivo que desenvolviam nas suas terras, vistas como mais produtivas. Assim como Antonio Gomes, mencionava os filhos e mulheres, que poderiam estar perecendo ou sofrendo hostilidades. 852 849 ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.5. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.7. 851 Ibidem, fl. 8. 852 Ibidem, fl.8. 850 342 Acerca desse último depoimento, vale registrar que ele corrobora a posição mais flexível de que gozavam os negros fugidos e habitantes dos arredores de Santa Cruz; possivelmente, decorrente da importância econômica que representavam no cultivo, sobretudo, da cana-de-açúcar, que, como vimos anteriormente, entre o final do século XVIII e início do XIX, era o principal produto que movia a economia da região. 853 Ademais, as denúncias perpetradas pelos réus chegaram a surtir efeitos. Nos autos do processo, constam vários pedidos do fiscal da Real Audiência para que se apurassem os maustratos e se procurasse garantir a integridade física dos prisioneiros. Consta ainda uma carta escrita por Pedro e José Reys, em nome dos prisioneiros, reafirmando os maus-tratos – descritos como “calamidades” –, as acusações infundadas e caluniosas de que os réus eram objeto, movidas por inveja, e a reafirmação da lealdade ao rei; razão pela qual tornava inverossímil um atentado contra a monarquia, pois sentiam gratidão com o “benefício” da concessão da liberdade em solos castelhanos. 854 Não localizamos informações sobre tais mediadores, mas possivelmente estavam vinculados ao grupo de defensores dos conjurados, ou simpatizantes. Antes ainda do resultado do litígio, um fato notável se daria: os 3 negros denunciantes, na madrugada do dia 21 de outubro, conseguem se evadir das dependências da panedería, após escalarem as paredes. O fato obrigou ao panedero Don Mariano Gallo a comparecer à Real Audiência. No registro, além de relatar as minúcias da fuga, mencionou a morte de um dos prisioneiros na panedería sem entrar em detalhes – o que vinha corroborar as denúncias dos prisioneiros – e o rigor no tratamento.855 No que se refere aos argumentos utilizados nas representações entregues à Real Audiência, de que desconheciam as razões pelas quais haviam sido postos em prisão, é preciso considerar a possível perspicácia aplicada pela defesa: ao se colocarem em uma posição de ignorância dos fatos, paralelamente à afirmação de que acumulavam serviços militares prestados ao rei espanhol, ganhavam força em argumento para que as autoridades maiores considerassem-nos ‘injustiçados’ dentro de toda a contenda. 853 Segundo Guardia, no final do século XVIII existe um aumento da população escrava em Santa Cruz de la Sierra, que provoca uma importante intervenção na economia da região, sobretudo, pelos conhecimentos que traziam acerca do cultivo da cana-de-açúcar. O aumento de escravos na região coincide, por sua vez, com a elevação da produção, que atingiu o seu auge entre 1780 a 1790. Ver GUARDIA, Op. Cit., p. 18. 854 ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.12. 855 O panedero alegava que apenas cumpria ordens, ao tentar garantir as “respectivas seguridades”, ou seja, o rigor na manutenção da prisão. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.10. 343 A despeito da simpatia aos conjurados, o andar do processo resultou em mais um ganho: após meses de prisão, finalmente foram absolvidos e autorizados a retornarem a Santa Cruz de la Sierra, desde que prestassem um juramento, se apresentassem ao Alcalde ordinário e pagassem uma fiança à Camara Actuario. A forma em que a fiança deveria ser paga, se em prata ou trabalhos, não foi especificada no processo. De todo modo, ao menos parte dos conjurados aprisionados em agosto de 1809 em Santa Cruz de la Sierra foi exitosa no âmbito da justiça, dentro de toda conjuntura política que se alterava nas Américas em que diferentes tendências se debatiam. 6.4. Re-começos e novas partidas: a agência escrava no Alto Peru e a vida possível aos “corações corrompidos” No atual estado das investigações sobre os eventos de agosto de 1809 em Santa Cruz de la Sierra, é difícil precisar em que medida os conjurados mantiveram relações com os levantes políticos que movimentavam a vida política do Alto Peru em Chuquisaca e La Paz. 856 Não obstante, demonstram a participação crítica em meio a um quadro complexo marcado por um conjunto de aspirações e alianças. Se, de maneira geral, havia no Alto Peru uma crise de disputa de poder, que começava a questionar a legitimidade da coroa espanhola, por outro lado, na pequena Santa Cruz, existiam indígenas insatisfeitos com as obrigações tributárias, cativos com a escravidão e negros livres fugidos dos domínios portugueses, que possivelmente aspirassem à garantia definitiva da manutenção da liberdade. O agosto de 1809, em suma, é o resultado da soma de todas as aspirações e, em última instância, de uma certa ideia de liberdade que no período irrompia por todos os lados na região. No que diz respeito à participação dos negros, considerados livres em solo espanhol, e cativos, mais uma vez estamos diante da posição ativa dos mesmos. Em nenhuma etapa da empresa escravista, desde a África, mantiveram-se indiferentes ao próprio destino ou à possibilidade de uma vida melhor, fosse pelo confronto direto nas guerras e fugas ou por negociações que buscassem tornar menos penoso o cotidiano. Igualmente, a conjura de 1809 856 Fernando Cajías de la Veja, em artigo recente, menciona a dúvida sobre as possíveis ligações entre os conjurados e os rebeldes de Chuquisaca e La Paz, a partir de documento transcrito do Archivo Historico de la Prefectura de Cochabamba: ou o levante de Santa Cruz seria resultado de “negociações ocultas” ou teria se inspirado no que chamou de “escandaloso exemplo” dado por La Plata e La Paz. Ver VEJA, Fernando Cajías de la. La Rebelión afro-indígena en Santa Cruz. Agosto de 2009. Disponível em < rcci.net/globalizacion/2009/fg898.htm >. Acessado no dia 9 de janeiro de 2015. 344 vem reforçar a tese de que a possível imagem do Alto Peru e Bolívia (pós-Independência), como terra livre e desprovida de escravidão, tratava-se de uma miragem propagada nas terras lusitanas. Esta última, mesmo que tenha existido em proporção menor quando comparada à América portuguesa, existiu e detinha importância fundamental para o funcionamento da economia, principalmente nas minas de Potosi e nos canaviais de Santa Cruz – e poderia ser tão pesada quanto a lusitana. Por outro lado, é bem verdade que o grau de exploração escravocrata no Alto Peru poderia ser variável, a depender da região, tornando mais insuportável o cativeiro. Dito de outro modo, a escravidão na região das minas de Potosi e cidades vizinhas, no Oeste da atual Bolívia, poderia ser mais intolerável do que para aqueles que viviam aos arredores de Santa Cruz, empregados no trabalho na lavoura. Para Alberto Crespo Rodas, a depender da região, a população escrava assumia diferentes ofícios: era cultivador de coca nas ladeiras úmidas dos trópicos, peão nas fazendas de Tarija ou Chuquisaca, servente doméstico nas cidades, mineiro ou cunhador de moeda em Potosí, entre outros. De acordo com o autor, as condições do trabalho e vida se agravavam conforme a proximidade com os “fornos” ou minas. 857 A ser mais penosa ou não, não devemos ignorar em nossa reflexão os pedidos desesperados para a não-devolução ao reino de Portugal, suplicados, por exemplo, pelos conjurados nos autos do processo. Antonio Gomes, um dos presos, achava um absurdo ser ameaçado com tal punição. No seu pedido de clemência, dava a entender um certo “orgulho” por já ter combatido o rei de Portugal em outras ocasiões. Assim, nos fica a indagação: a escravidão na América espanhola poderia ser considerada menos tormentosa que a lusitana? Maria Verónica Secreto, em suas pesquisas sobre a recorrência e concessão das “manumissões” na América espanhola, sugere alguns caminhos investigativos para compreensão da conhecida “benignidade” da escravidão no mundo hispânico. De acordo com a autora, tal visão remete inicialmente às crônicas do viajante Félix de Azara; no século XVIII, afirmou que, para cada 100 negros, haviam 170 livres no Paraguai. Amplamente aceita e divulgada, a visão de Azara se estabeleceu na chamada historiografia platina. Esse contraste também apareceria nas teses de A. Von Humboldt, que alegava maior benignidade no mundo hispânico, quando comparado à escravidão inglesa. Afirmava o viajante alemão: 857 RODAS, Op. Cit., p. 10. 345 (...) Que contraste entre a humanidade das mais antigas leis espanholas relativas à escravidão e as demonstrações de bárbarie que se encontram a cada página do Código Negro e em algumas leis provinciais das Antilhas Inglesas!858 Na década de 1970, com a utilização de fontes notariais e judiciais, passaram-se a dar maior atenção aos casos de manumissão e à tentativa de se compreender as constantes concessões das alforrias ou a tese da benignidade. Um dos caminhos apontados eram as estruturas religiosas ou jurídicas. Nestas últimas, Secreto menciona um conjunto de leis recompiladas do século XIII por Afonso X, intituladas “Siete Partidas”, que, ao longo do século XVIII, foram base fundamental para concessão do direito de manumissão. A estratégia mais recorrente para se reivindicar a alforria era associar o “escravo” à figura do “servo” ou “peça” das Siete Partidas. No documento, ainda estava prevista a possibilidade do “servo” requerer o seu senhor, caso o mesmo não cumprisse o seu dever, ou seja, garantir alimentação, vestimenta, educação e assistência médica. 859 De modo geral, frisa a autora, todo o conjunto de legislações proporcionava aos escravos quatro “consolações”: eleição de um servo menos severo, a faculdade de casar-se seguindo a própria escolha, a possibilidade de comprar a liberdade e o direito de possuir alguma coisa. 860 De qualquer forma, negros prófugos e cativos da América portuguesa, no Alto Peru, se viam frequentemente em posição frágil. Se os primeiros constantemente eram ameaçados de devolução ao Mato Grosso e Cuiabá, como pudemos verificar nos autos do processo de 1809, os segundos estavam vinculados a uma rede de obrigações e jornadas de trabalho que impediam a própria auto-determinação. O estudo da agência escrava, nesse contexto, especialmente no território de Santa Cruz de la Sierra, com as suas diferentes jurisdições, ainda está por se realizar. Todavia, alguns casos já podem ser mencionados, como a luta da negra Maria Francisca na justiça para garantir a sua alforria a partir de 1796. Maria vivia em Cochabamba, capital da Intendência que estava associada a Santa Cruz, e havia recebido a concessão da alforria por meio do testamento escrito em 1796 por Don Juan de las Esas y Guarillas, em retribuição aos “muitos serviços prestados”. Após a morte do seu antigo amo e todas as solenidades do velório, a cativa resolveu escrever 858 SECRETO, Maria Verónica. “Soltando-se das mãos: liberdades dos escravos na América espanhola”. In: AZEVEDO, Cecília; RAMINELLI, Ronald. História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 137. 859 Idem Ibidem, p. 151. 860 Ibidem, p. 148. 346 diretamente ao Governador da Intendência, requerendo o cumprimento das cláusulas do testamento. No entanto, o filho de Juan, Don José Gandarillas, protestou e não autorizou a sua alforria, alegando a falta de fundamento e a interpretação equivocada da cláusula: argumentava que no testamento o seu pai expressava que a prioridade era o pagamento de “dívidas” e que a escrava seria a única maneira de saldá-la. O caso se arrastou por vários anos, com muitas idas e vindas nas mais diferentes instâncias. Se, por um lado, a defesa de José Gandarillas alegava a necessidade de saldar dívidas, por outro lado, os advogados de Maria Francisca, além de investirem no testamento, argumentavam sobre a necessária condição de “liberdade” de que deveriam gozar todos os seres naturais. Em uma das páginas do extenso processo, constava: (...) como por ser em fator de La liberdad que por seo natural correspondente a todo vivente racional, debe no ser molestada por El referido Don Josep quien bien inteligenciado seb deo a esta miserable La há dejado desde La muerte de su amo em quieta y pasifica pocecion de La calidade de libre; sindo por esto may notable q despues de mas los quatro na a esta rececion pretende inquietarle com Ella [grifo nosso]. 861 Esta carta foi assinada pelos procuradores de Maria Francisca em 29 de janeiro de 1800. A situação se encontrava indefinida ainda em 1809 e, infelizmente, não se sabe até então se a cativa conseguiu êxito nos tribunais. O processo se finda com um pedido emitido diretamente de Chuquisaca, pela Real Audiência, ao governador Intendente, determinando que o mesmo procedesse a um levantamento de todos os bens do falecido, possivelmente, para ainda constatar a veracidade ou não dos argumentos contrários à alforria de Maria Francisca. 862 A formação de acampamentos militares semelhantes aos “quilombos” da América portuguesa, na região do “Vallegrande” e “Chilon”, também aventa o incômodo com o cativeiro na região e a posição ativa dos escravos, que não cessavam de buscar liberdade. A região, que estava localizada entre Santa Cruz e Cochabamba, era conhecida por abrigar todos os escravos fugidos da localidade. Uma carta escrita em 1786 dava conta da situação e conclamava as autoridades do Alto Peru a tomarem providências. Argumentava que os cativos fugidos que se encontravam na área já haviam construído fortes, praticavam desordens nas fazendas e chácaras vizinhas, além de seduzirem escravos dos povoamentos vizinhos para a fuga: “(...) ellos no solo lhe huyen, sino que seducienlo a otros esclavos y esclvas y roband lãs 861 862 ABNB, EC1809-74, “Autos seguidos por El procurador sobre La libertad de uma esclava”, 1809. Idem Ibidem, fl. 45v. 347 atajas mais floridas de suas amos, reconducen para aquelles lugares, em donde hallan La acolhida y amparo que esta visto”.863 A carta ainda alertava que, se não fossem tomadas providências imediatas, dia após dia, o ajuntamento de escravos fugidos aumentaria. Era preciso não somente desfazer a reunião e capturá-los, mas punir todos os “vizinhos protetores” que amparavam e prestavam solidariedades aos negros fugidos. A liderança das fugas cabia a “negros portugueses”: (...) em orden ala exterminacion de baxios negros portugueses que son los que aun biniendo a esta ciuidad los condusen y los llevan quellos donde existen ya formado su poblacion. Segun noticias pocitibas que Sean tomado se baxias perzonas, desuerse que para fomentarse y mantenerse saquean y roban las sementeras y panados e las haciendas cabenzias, prejudicando de este modo a tanto a Republica que lamentan este estrago (...) [grifo nosso].864 Fugidos dos domínios portugueses, agora negros – crioulos ou africanos –, estavam à frente da formação de ajuntamentos, que no território português eram denominamos “quilombos”. Curiosamente, a estratégia de manutenção de tais espaços mencionada nas cartas guardava estreitas semelhanças com os espaços formados em território luso-brasileiro: incursões às vizinhanças, sedução de negros que ainda se mantinham em cativeiro e, principalmente, alianças externas com outros moradores – aqueles que prestavam “solidariedade” aos negros. Sobre estas últimas, as cartas não informam em que medida se davam as alianças, mas certamente deveriam envolver produtos agrícolas, em vista da conhecida alcunha de bons agricultores que possuíam negros provenientes das terras lusitanas. A bandeira então foi autorizada por autoridades de La Plata e finalmente foram enviados soldados à região. Entre os capturados, vários apareceram identificados como “emigrados de Portugal”, como os irmãos Lorenzo Chavez e Ignacio. Ao procederem o interrogatório, constataram que eles, africanos da costa da Mina, haviam fugido das minas do Cuiabá e que eram escravos de Manuel Diablo. Adentraram os domínios da Espanha pelos Chiquitos e, posteriormente, passaram ao Vallegrande. Ignacio declarou que exerciam o ofício de peões nas fazendas da região. Na descrição dos irmãos, apontava-se que aparentavam uma idade em torno de 25 anos, com características físicas “robustas” e que Ignácio provavelmente estava enfermo, pois apresentava febre. 863 ABNB, MyCh 195-10, 11, 11v. – sobre escravos minas na Bolívia, 1786. 864 Idem Ibidem. 348 Segundo consta no inquérito, vários apreendidos se declararam “livres”. Assim, para procederem à soltura de quem fosse legalmente livre, as autoridades começaram por escrever cartas à Capitania de Mato Grosso, a fim de identificarem os fugitivos, que seriam devolvidos à América portuguesa. Outras medidas também foram tomadas, conforme a carta escrita em 19 de agosto de 1786: (...)Respecto de acreditan este expediente que em los lugares de Santa Cruz, Vallegrande y otros de La freguesia relacionada de Cochabamba, se refugian los negros prófugos del Reino de Portugal y de esta ciudade com grande prejuicio de sus duenos, de (sic) oficio a los gobiernntes intendentes de La Provincia para que tome las providencias mas serias y condusentes a que em su distrito no se permita vagar libremente ningun negro y los que assi de encontraren sean asegurrados y remetidos sus duenos castigando a los desertores com las penas q Le chise hu restituto y zelo, y sean conformes [grifo nosso].865 Após a expedição de captura, não estava permitida nem a circulação livre de negros na região, pois, conforme observamos acima, se fossem pegos, seriam aprisionados e levados aos seus proprietários para que estes os castigassem. Alberto Crespo Rodas, por sua vez, ao investigar a instituição escravista em todo o Alto Peru, especialmente no eixo Potosi-Cuzco, apresenta numerosos exemplos de escravos ativos e participantes dos acontecimentos políticos na região, desde o comércio ilegal da prata nas minas de Potosi, até a tomada de partido nos conflitos armados na região desde o final do século XVIII. Em Potosi, por exemplo, afirma o autor que a população escrava, empregada nas minas ou como cunhadores e fundidores de prata, era acusada de furtar metais. Como viviam presos na “Casa da moeda”, adotaram a seguinte estratégia: no momento em que cativas ingressavam na casa para abastecê-la de água, estas recebiam prata e trocavam na cidade. Em 1657, Rodas cita um episódio em que cativos furtaram e depois fugiram. Ao serem capturados, foram submetidos a torturas até confessarem os detalhes do episódio.866 Em 1780, quando irrompeu em Cuzco o levante liderado por Tupac Amaru contra o poder colonial, vários cativos tomaram partido no conflito, em ambos os lados. Para Rodas, foi a primeira ocasião em que se havia apresentado de maneira “tangível e concreta” uma oportunidade de oferecer-lhes liberdade, em troca do alistamento. Em palavras de Tupac: “(...) para que se sumen a su empresa y convoca a los esclavos para que abandonen a sus amos con 865 866 Idem Ibidem, fl. 11v. RODAS, Op. Cit., pp.9-10. 349 aditamento de que quedarán libres de la servidumbre y esclavitud en que estaban.” 867 Depois de sufocada a rebelião, entre os fuzileiros identificados que combateram ao lado das forças rebeldes, estavam mencionados “negros” que haviam fugido da cidade de La Paz. Em 1814, um novo episódio causaria grande tormenta na mesma cidade, já em meio às guerras de independência. Relata Rodas que eclodiu em agosto daquele ano uma “guerra total” ou de “morte” contra os espanhóis, liderada por crioulos, que contavam com indígenas e negros como aliados, ocasionando uma sequência de execuções e roubos na cidade. 868 A história do mulato Francisco Rios, também conhecido pelas autoridades chuquisaqueñas pela alcunha de “El Quitacapas”, exemplifica com grande clareza a participação ativa de negros livres ou cativos na vida política e contendas no Alto Peru e América espanhola, sobretudo daqueles que se ‘originaram’ das terras luso-brasileiras. El Quitacapas era identificado nos documentos oficiais como originário do Rio de Janeiro. Em meio a efervescência que provocava o levante na tarde do 25 de maio de 1809 em Chuquisaca, El Quitacapas apareceria identificado como aquele que havia liderado a histórica rebelião contra o governador da Audiência, Pizarro, no bombardeio à casa de governança e saques das lojas de pólvora para manter o ataque. Naquela altura, todavia, já era conhecido pela “obscura fama”, acusado de comandar bandos de assaltos e roubos na região. Em todo caso, a participação na noite de 25 de maio e a fama que carregava voltaria a causar tormentos às autoridades no dia 21 de julho de 1809, quando foi preso na cidade de Oruru, entre Chuquisaca e La Paz. A justificativa era a de que se encontrava na localidade para reunir novos comparsas e realizar outros “desrespeitáveis procedimentos” que lhe inspirava o coração corrompido, conforme consta na “Causa Criminal” de Francisco Rios. 869 Em sua defesa, El Quitapacas alegava que estava na cidade apenas de passagem e que se dirigia a La Paz para se encontrar com sua mulher, Maria Antonio, e posteriormente os 867 Bando de la libertad de Tupac Amaru Don Joseph Gabriel Thupa Amaro Indio de la sangre real de los Ingas y tronco principal. Bando del 16 de noviembre de 1780 para el Cuzco para que desamparen los chapetones ofreciendo libertad a los esclavos. En Valcárce, Tupac Amaru, pág.321 apud RODAS, Ibidem, p. 86. 868 O seguinte furor em Cuzco havia sido motivado pela coluna de La Paz, liderada por Juan Manuel Pinelo, que se apoderou daquela cidade e promoveu a morte do governador-intendente junto a 52 espanhóis. Ibidem, p. 95. 869 No Archivo y Biblioteca Nacional de Bolivia consta um extenso processo criminal contra Francisco Rios, que cobre as várias prisões e contendas em que o mulato se envolveu durante as guerras de Independência no Alto Peru. Ver ABNB, ALP, Fondo de Emacipación de la Audiencia de la Plata (1807-1824), Em4, “Causa Criminal contra Francisco Rios, conhecido como El Quita Capay”, 1809. 350 conduziria a Chuquisaca. Prometia, ao retornar a esta última, se comportar como um “homem de bem”, sem envolver-se em novos motins. 870 As promessas de Rios não surtiram efeito, pois era considerado uma ameaça constante, identificado por autoridades como o “principal caudilho” que liderou o levante de Chuquisaca. Em carta escrita por Don Diogo Antonio del Portilho, defendia-se a manutenção da prisão de Francisco Rios por uma questão de prevenção, pois acreditava-se que solto em breve retornaria ao “vício do roubo”. 871 Assim, por prevenção e medo, El Quitacapas permaneceu preso em Oruru até 1810, quando foi transferido a Chuquisaca. Segundo Rodas, após a derrota dos exércitos espanhóis para os rebeldes, um dos primeiros atos foi a saída do povo às ruas clamando a soltura de Francisco Rios, que era considerado um herói da independência na cidade. Solto, novamente El Quitacapas é acusado de envolvimentos com assaltos e roubos e retorna à prisão. Contudo, em 1811, seria posto em liberdade mais uma vez, agora com a condição de se agregar à “Companhia dos Pardos”, que combateria as forças monarquistas em Buenos Aires.872 Em suma, Maria Francisca, Lorenzo Chavez, Ignácio, os escravos fuzileiros fugidos de La Paz, Francisco Rios, Anselmo, Franco, Melchor Florian, Julico, Antonio Gomes, Mateo Apósteles, os demais conjurados de Santa Cruz de la Sierra que não apareceram nos documentos oficiais, mas que por longa data assombraram a consciência cruceña, e outros tantos, revelam a caminhada contínua por uma vida ao menos possível, especialmente aqueles que cruzaram as Américas e estavam cada vez mais distantes da terra natal. Revelam, como na metáfora de mulheres de pedra e homens de ferro, uma disposição instigante para sempre recomeçar, frequentemente levantar acampamento, seguir novos destinos ou caminhos em empreitadas extremamente difíceis e imagináveis para quem é feito de carne e osso. O que pensavam, acreditavam ou esperavam, não sabemos, todavia, pela lente do colonizador, involuntariamente, a chama que lhes fazia seguir em frente nos é perceptível, historicizável, apesar das lacunas ou silêncios. 870 Idem Ibidem, fl.3. Em palavras de Don Diogo Antonio del Portillo: ““(...) Fue igualmente se hallaba aprensiva La mayor parte de La gente honrada con el hecho de La noche del veinte y cinco de mayo última verificado em La ciudade de La Plata done expresò pulicamente El mismo haver sido el principal caudillo del movimento popular de ella. [grifo nosso]”. Idem Ibidem, fl.10v. 872 RODAS, Op. Cit., p. 90. 871 351 Mapa 22 – O trajeto entre o Cuiabá-Vila Bela (Mato Grosso) e Santa Cruz de la Sierra (1789). Fonte: Autor desconhecido. “Extension y situacion de los gobiernos de Sta Cruz de la Sierra, Matogrosso, Cuyaba y pueblos de los yndios llamados los Chiqutos. Ano de 1789. Disponível em < http://bndigital.bn.br/acervo-digital>. Acessado no dia 15 de janeiro de 2015. Mapa 23 – Cuiabá, os povos Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra (1778) 352 Fonte: Autor desconhecido. “Mappa de Cuiaba, Matogrosso y pueblos delos indios Chiquitos y Santa Cruz” (1778). Disponíel em < http://bndigital.bn.br/acervo-digital>. Acessado no dia 15 de janeiro de 2015. 353 7. Considerações finais Certamente, nem todos puderam vislumbrar um horizonte livre dos grilhões, contudo, os casos trabalhados no itinerário escolhido por este estudo – do hinterland de Benguela ao Alto Peru – apresentam homens e mulheres dispostos a arriscarem a própria vida para se verem longe do cativeiro. Em todos os espaços analisados, é perceptível a movimentação de esforços nesse sentido, ora no confronto violento direto, ora pelas instâncias judiciais; especialmente nas disputas movidas nos tribunais pela garantia da condição livre em função do status de “vassalo” – como o caso de Leonor, que transformada em escrava conseguiu a alforria alegando ser “vassala” da coroa portuguesa – ou nos pedidos de “manumissão” comuns à América espanhola, fundamentados nas “Siete partidas”. Na África, vimos casos que demonstravam as constantes alianças firmadas entre chefes locais para fazer frente à coroa lusitana; como o enfrentamento perpetrado por cerca de duas décadas pelo soba Quiombella (1720-1730), confederado com outros chefes, que habitava os entornos do presídio de Caconda (ponto fundamental na rota escravista); ou episódios que ilustravam atitudes possíveis para o embarque ao Novo Mundo, tal como o episódio em que africanos assaltaram o navio negreiro e desviaram a rota ao chefe Dembo, conhecido por conceder asilo a escravos fugidos. Igualmente, na América portuguesa, nos deparamos com numerosas situações que evidenciavam o papel ativo na confecção do próprio destino. Esse foi o caso de Sebastião de Benguela (1733), que sendo transportado para as minas do Cuiabá, mediante o ataque dos indígenas Payaguás, pegou em armas e partiu para defesa da própria vida. Corresponde também à história do cativo que fugiu e foi aceito entre os indígenas Bakairis (1798). Ou mesmo à história de Félix (1773), que fugiu para América espanhola e se casou, foi re-escravizado e trazido à América portuguesa, mas posteriormente voltou à Fazenda onde vivia para re-encontrar a esposa. A história desses homens e mulheres se passava em constantes re-começos. O mundo Atlântico havia conseguido integrar os mais diferentes pontos do globo, desde os mais diferentes hinterlands do continente africano às lonjuras do continente americano, em torno da empresa escrava; todavia, não conseguira eliminar a agência desses milhões de sujeitos que não cessavam de buscar, se não a liberdade total dos grilhões, ao menos condições suportáveis de vida. Para tanto, dentro de todo o itinerário, deveriam se mostrar abertos às novas presenças e relações. É o que observamos no “Quilombo Grande”, 354 liderado por Teresa de Benguela. Além das necessárias relações externas com povoados lusobrasileiros ou “asenzalados” que ainda permaneciam em cativeiro, os aquilombados também mantiveram relações com os povos indígenas locais. Sobretudo, com os Pareci-cabixis, que, pelo rapto de mulheres e posterior incorporação à estrutura produtiva dos quilombos, acabaram por favorecer um possível processo de “aruaquização”, que vinha ao encontro das noções de organização política que traziam consigo da África e dos rudimentos de doutrina cristã que haviam adquirido na experiência no cativeiro. Em outras palavras, com base em estudos etnográficos (especialmente Max Schmidt) e história política dos africanos de origem bantu, o Quilombo Grande poderia ter se beneficiado concomitantemente de elementos provenientes de culturas aruaques (sobretudo na organização da produção de alimentos) e Ovimbundu-Imbangala, principalmente no que diz respeito à lógica e organização política. Nossos homens e mulheres de ferro demonstravam uma imensa força para novos recomeços e disposição para se agregarem ou serem agregados a outras estruturas, em nome da manutenção da liberdade. Atentos às diferentes conjunturas políticas, tomaram partido e foram decisivos nos embates de interesses europeus no Novo Mundo. O recrutamento de escravos nas guerras de Independência na América espanhola ou mesmo os depoimentos dos conjurados de Santa Cruz de la Sierra de 1809, que afirmavam ter lutado contra a coroa portuguesa em nome da espanhola em outras ocasiões, atestam a referida consciência. Embora a empresa escrava não cessasse de lhes perseguir, mesmo que estivessem evadidos ao outro lado da fronteira, não deixavam de lutar por uma vida para além do cativeiro. A conspiração tramada no agosto de 1809 entre negros livres, escravos e indígenas, exemplifica essa determinação: detinham consciência que somente eles mesmos e, quiçá, inspirados pelas histórias que circulavam acerca da revolução haitiana, poderiam se dar a liberdade, uma vez que a América espanhola, ao contrário do que pensavam quando estavam em solo português, ainda não era uma terra sem cativeiro, ao menos até a nova conjuntura que se abriu mediante o irromper das guerras de independência. A despeito das terríveis condições do cativeiro que levaram à mortalidade de milhares, o fogo da liberdade não deixou de crepitar em alguns corações. Inseridos em uma jornada que poderia remeter às áreas mais interioranas do continente africano e se estender ao extremo oeste da América do Sul, não cessaram de tomar partido e serem protagonistas do próprio destino que lhes estava à frente. 355 Ademais, vale ressaltar que o itinerário investigado neste estudo foi um possível entre outros tantos, visto que um indivíduo africano que conseguira fugir à América espanhola poderia ser originário de outras localidades da África, ou mesmo ter passado por outras experiências de cativeiro na própria América portuguesa. Afinal, nem todos que eram trazidos para as minas do Cuiabá e Mato Grosso eram importados diretamente da África. Em todo caso, tais questões merecem tratamento em futuras pesquisas, sobretudo, aquelas pertinentes aos contatos interculturais entre africanos aquilombados e indígenas; ou mesmo entre cativos prófugos nos domínios espanhóis e os movimentos de independência na América espanhola no alvorecer do século XIX, bem como as alianças firmadas com indígenas hostis às relações com castelhanos – como os Chiriguanaes. A investigação do percurso desses homens ferro e mulheres de pedra é um verdadeiro horizonte aberto, que certamente tem muito a dizer sobre o que pode ter sido a experiência de cativeiro para indivíduos, por exemplo, como Francisco Rios, que, proveniente do Rio de Janeiro, construiu uma nefasta reputação no Alto Peru e chegou a participar do primeiro levante que levou a região às futuras guerras de Independência, apontado como o “principal caudilho”. Aclamado como um dos “heróis” do levante de 25 de maio de 1809 em Chuquisaca, certamente “El quitacapas” teria percorrido um longo caminho até se livrar da condição escrava. Em última instância, investigá-los em situação ou lugar de ruptura, enfrentamento, nos faz adentrar a própria “morada viva” da história, como assim concebe Arlette Farge. Lugar privilegiado que, no desequilíbrio do “Eu”com as demais “comunidades sociais”, faz aparecer as “descontinuidades” e, por conseguinte, a agência humana. E o que seriam as fugas desesperadas à floresta, a resistência na proteção dos quilombos ou as conspirações tramadas contra ibéricos, se não “descontinuidades” à regra ou comportamento esperado por agentes escravistas? Ao pulsarem em paixão e fúria, nossos homens e mulheres de ferro e pedra frustravam os agentes escravistas e, consequentemente, escreviam a própria jornada. 356 8. Referências 8.1.Referências documentais 8.1.1.Fontes Publicadas AMADO, Janaina; ANZAI, Leny Caselli. Anais de Vila Bela (1734-1789). Cuiabá: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006. CAVAZZI, Giovanni Antonio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola [1687]. Tradução de Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965. COELHO, Filipe José Nogueira. Memórias Chronológicas da Capitania de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Revista Trimestral de História e Geografia/Jornal do IHGB, 2º semestre de 1850. FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial ao Tietê ao Amazonas de 1825 a 1828. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1977. FONSECA, João Severiano da Fonseca. Viagem ao redor do Brasil (1875-1878). Vol.2. Rio de Janeiro: Typografia de Pinheiro, 1881. JUSTINIANO, Adrian. Uma Conjuracion de mulatos. In: El Correo del Plata, Ano I, N.2015, 15 de agosto de 1899. MELLO, Francisco Pedro. Diário de Diligência [1795]. In: ROQUETTE-PINTO. Rondônia. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Volume XX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. MENDES, Luis Antonio de Oliveira. Memorias econômicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Tomo IV. Lisboa: Tipografia da Academia, 1812. PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Viagens e Apontamentos de um Portuense em África [1817-1890].Vol.II. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimba, 1986. SÁ, Joseph Barboza de. Relação das povoações do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé o s prezentes tempos [1775]. Cuiabá: UFMT/SEC, 1975. SCHMIDT, Max. Die Aruaken: um classic da etnologia sul-americanista. Leipzig: Veit & Comp. [1917]. Disponível em < http://etnolinguistica.wdfiles.com/local-files/biblio%3Aschmidt-1917-aruaques/schmidt_1917_aruaques.pdf >. Acessado no dia 06/12/2014. SUZUKI, Yumiko Takamoto. Annaes do Sennado da Camara do Cuyabá (1719-1830). Transcrição e organização Yumiko Takamoto Suzuki Cuiabá:Entrelinhas/Arquivo Público de Mato Grosso, 2007. VIEDMA, Francisco de. Descripcion Geografica y estadística de la Provincia de Santa Cruz de la Sierra. 1ª ed. Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836. 357 1.1.2.Fontes Manuscritas Arquivo Histórico Ultramarino a) Caixas Avulsas-Angola: AHU, Angola, Cx. 48, Doc. 27. AHU, Angola, Caixa 20, Doc. 98. AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 66, 1727 AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 66, 1727 AHU, Angola, Caixa 24, Doc. 41, 1727. AHU, Angola, Cx. 24, doc. 80, 12 de março de 1728. AHU, Angola, Cx. 24, doc. 97, 29 de maio de 1729. AHU, Angola, Cx. 24, doc. 120. AHU, Angola, Cx. 24, Doc. 115, 19 de setembro de 1729. AHU, Angola, Cx. 24, doc. 136. AHU, Angola, Cx. 26, doc. 114;115. AHU, Angola, Cx. 6, Doc. 128 AHU, Angola, Cx. 48, Doc. 35. AHU, Angola, Cx. 83, Doc. 41, de 13 de abril de 1796. AHU, Angola, Cx. 89, Doc. 67. AHU, Angola, cx. 74, doc. 49 AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 12, 1768 AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 12, 1768 AHU, Angola, Cx. 52, Doc. 5. AHU, Angola, Cx. 24, Doc. 96. AHU, Angola, Cx. 53, Doc. 29 (1769). AHU, Angola, Cx. 26, Doc. 115. AHU, Angola, Cx. 53, Doc. 71, de 18 de outubro de 1769. b) Códice AHU, Cód. 554, fls. 47-50 c) Rio de Janeiro 358 Requerimento de Manoel da Silva, em 22 de outubro de 1735, AHU, Rio de Janeiro, cx. 31, doc. 21. Petição de Manoel da Silva em 26 de janeiro de 1736, AHU, Angola, cx. 29, doc. 12. Requerimento de Manoel da Silva, em 15 de abril de 1738, AHU, Rio de Janeiro, cx. 35, doc.3. Petição de José de Torres, em 3 de setembro de 1739, AHU, Angola, cx. 31, doc. 59. d) Mato Grosso (dispostos no NDIHR) AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 618, 1754 (rolo 10). AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 660, 1761 (rolo 11). AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 709, 1763 (rolo 11). AHU, Mato Grosso, doc. 3621. AHU, Mato Grosso, Cx. 17, doc. 1054 (rolo 15). Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) BNP. Microfilme F. 7183. CARVALHO, Henrique de. O Jagado de Cassange, Lisboa: Typ.de Cristovão Augusto Rodrigues, 1898. BNP, Cód. 8553, fl.92-92v, 14 de agosto de 1768. BNP, Microfilme-Cota F7179. Neves, António Rodrigues NEVES, António Rodrigues. Memória da expedição a Cassange commandada pelo Major graduado Francisco de Salles Ferreira em 1850, Escripta pelo capitão móvel d’Ambriz António Rodrigues Neves, Lisboa, Imprensa Silviana, 1854. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) ANTT, Condes de Linhares, Liv. 99 I, 7 de Agosto de 1761, pp. 30-31. ANTT, Carta de D. Francisco de Inocêncio para sua Majestade pelo Conselho Ultramarino. Fundo: Conde de Linhares, liv. 99 I, p. 19v, de 25 de julho de 1761. ANTT, FF, JU, África, Mç.24, doc. 6, de 7 de março de 1792. ANTT, FF, JU, África, Mç. 2, doc. 3B, de 15 de abril de 1780. Carta da Junta de Administração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 14 de março de 1781, ANTT, AHMF, Livro 291. Carta da Junta de Admnistração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 23 de janeiro de 1792, ANTT, AHMF, livro 291. 359 Carta da Junta de Admnistração da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, em 17 de maio de 1782, ANTT, livro 291. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT) APMT, Manuscrito, Estante 1, C-02, 30 de agosto de 1733. APMT, Manuscritos, Estante 1, C-03, 1749. APMT, Cópia da instrução de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres a João de Albuquerque Mello Pereira e Cáceres, Estante 1, C-03 (1749-1772). APMT, Estante 1, C-05, 1761. APMT, Manuscritos, Estante 1, C-03, 1765. APMT, Manuscritos, Estante 1, 1769, C-04. APMT, Manuscritos, Estante 1, 1770, C-04. APMT, Cópia da instrução de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres a João de Albuquerque Mello Pereira e Cáceres, Estante 1, C-03 (1749-1772). APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 1771. APMT, Estante 1, C-07, 30 de abril de 1773. APMT, Manuscritos, Estante 1, C-07, 11 de junho de 1773. APMT, Mapa da População da Freguesia de Nossa Senhora das Brotas, Lata 1838, 1838. APMT, Livro de termos Livro de termos de fiança, cartas expedidas e rematações nos Governos de Luiz Pinto de Souza Coutinho e Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Estante 1, C-07 (1751-1775), 1771. APMT, Relatório de Ernesto Júlio Bandeira Melo ao Conselheiro de estado Francisco de Paula de Negreiro Sagão Lobato. Cuiabá, Lata 1871C, 29 de fevereiro de 1872. Revista do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (RAPMT) “Carta regia encaminhada pela ‘rainha’ ao capitão General do Estado do Pará em 12 de maio de 1778”. In: RAPMT, Vol.1, n.3, março-setembro de 1987. Museu de Historia Y Archivo Regional de Santa Cruz de La Sierra Museu de Historia Y Archivo Regional de Santa Cruz de La Sierra. Fondo Melgar y Montaño. “Declaración de posesión de esclavos (edad, sexo, estado civil) por sus amos vecinos de esta ciudad”. Caja 3, Carpeta 5, leg. 12, doc. 1, 1825. 360 J) Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia (ABNB) ABNB, MyCh 195-10, 11, 11v. – sobre escravos minas na Bolívia, 1786. ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809. ABNB, EC1809-74, “Autos seguidos por El procurador sobre La libertad de uma esclava”, 1809. ABNB, ALP, Fondo de Emacipación de la Audiencia de la Plata (1807-1824), Em4, “Causa Criminal contra Francisco Rios, conhecido como El Quita Capay”, 1809. 8.2.Referências Bibliográficas 8.2.1. Livros, artigos, dissertações e teses ABRANTES, José Mena. Ana, Zé e os escravos – in Teatro I. Coimbra: Cena Lusófona, 1999. AMADO, Janaína. Ponto de vista: Região, sertão, nação. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 8, n. 15, 1995, pp. 145-151. ANGENOT, Geralda de Lima; SOARES, Cezanildo Alves. “Aspectos morfológicos do falar afro-guaporeano”. In: Revista Eletrônica Língua Viva. Vol. 1, No.1, 2011. ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina, 1800-2000. Tradução de Magna Lopes. São Carlos: EdUFSCAR, 2007. ANSTEY, Roger. The Atlantic Slave Trade and Britsh Abolition, 1760-1810. London: Macmillan; Atlantic Highlands, 1975. ALEXANDRE, Valentim. “Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-1851)”. In: Análise Social, Vol. XXXVI (111), 1991 (2º Ed), 293-333. ARRUDA, Elmar Figueiredo. O mercado interno de Mato Grosso – século XVII. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1991. ASSUNÇÃO, Matthias Rörig. “A resistência escrava nas Américas: algumas considerações comparativas”. In: FURTADO, Junia Ferreira; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo/Belo Horizonte : Annablume/PPGH-UFMG, 2006. AZEVEDO, Thales de.Cultura e situação racial no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. BANDEIRA, Maria Lourdes. Território negro em espaço branco: estudo antropológico de Vila Bela. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. BARBOSA, Waldemar. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Itatiaia: Belo Horizonte, 1995; LOURES OLIVEIRA, A. P. P. Arqueologia e história indígena de Minas 361 Gerais: os Carijós de Vila Rica. In: LOURES OLIVEIRA, A. P.P.; MONTEIRO OLIVEIRA, L. (org.). Arqueologia e Patrimônio de Minas Gerais: Ouro Preto, Juiz de Fora: Ed. UFJF, pp. 155-164. BARROS, Edir Pina de. Os filhos do sol: história e cosmologia na organização social de um povo Karib: Os Kurâ-Bakairi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. BASTOS, Augusto. Traços Gerais sobre a Ethnographia do Districto de Benguella. Lisboa: Composição e Impressão na Typographia Universal, 1909. BASTIDE, R. As Américas Negras. As Civilizações Africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difel, 1974. BERTOLETTI, Esther Caldas; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; CARLOS DIAS, Erika Simone de Almeida. O Projeto Resgate de documentação histórica Barão do Rio Branco: acesso às fontes da história do Brasil existentes no exterior. In: Clio – Revista de Pesquisa Histórica, N. 29.1, 2011. BETHELL, Leslie. The Abolition of the brazilian slave trade: Britain, Brazil and Slave trade question, 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da Capitania de Mato Grosso: 1752-1798. Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2007 (dissertação). BLOCH, Marc. Apologia da história, ou ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BLOCK, David. La cultura reducionall de los llanos de Mojos. Tradução de Joseph Barnadas. Sucre, Bolivia, 1997. BORDIGNON, Mário. Os Bororos na História d Centro Oeste brasileiro (1716-1086). Campo Grande: Missão Salesiana de Mato Grosso/CIMI, 1986. BOXER, C.R. O Império Marítimo Português. Rio de Janeiro: São Paulo, 2002. CALDEIRA, Newman di Carlo. Brasil e Bolívia: fugas internacionais de escravos, navegação fluvial e ajustes de fronteira (1822-1867). Fronteiras, Dourados, v. 11, n. 19, p. 249-272, jan./jun. 2009. CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EdUFMT, 2004. CARVALHO, Flávia Maria de. Os homens do rei em Angola: sobas, governadores e capitães mores, séculos XVII e XVIII. Niterói: Universidade Federal Fluminense – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Programa de Pós-Graduação em História, 2013 (tese). CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaio de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2a. ed. Tradução de Maria de L. Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 362 ______- Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CHATTERJEE, Partha. Colonialismo, Modernidade e Política. Tradução de Fábio Baqueiro. Salvador: EDUFBA, 2004. CHAVES, Otavio Ribeiro. Escravidão, Fronteira e Liberdade: resistência escrava em Mato Grosso (1752-1850). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal da Bahia, 2000 (dissertação). COLBACCHINI, A. & VENTURELI, C. Os Boróros Orientais: Orarimodogue do Planalto Oriental de Mato Grosso. Campo Grande: MSMT, 1942. COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre, V. 15, N. 27, pp. 21-73, Jul. 2008. CORDOVA-BELLO, Eleazar. La independência de Haiti y su influencia en Hispanoamérica. Caracas: Instituto Panamericano de Geografia e Historia, 1967. CORRÊA FILHO, Virgilio. As raias de Mato Grosso (Fronteira Meridional). São Paulo, 1924, N. 4, vol., v. 1. COSTA, Iraci del Nero da (compilador). Pesos e medidas no período colonial brasileiro: denominações e relações. Boletim de História Demográfica. São Paulo, FEA-USP, 1(1), 1994. CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Casamentos de escravos africanos em Mato Grosso: um estudo sobre Chapada dos Guimarães (1798-1830). Cuiabá-MT: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2001 (dissertação). CUÉLLAR CHÁVEZ, Bismark. La rebelión de los negros y mulatos em Santa Cruz de La Sierra, 15 de agosto de 1809. Santa Cruz: Bismark A. História, turismo & cultura, 2009. CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969. CURTO, José. Álcool e Escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental. Tradução de Márcia Lameirinhas. Lisboa: Editora Vulgata, 2002. DELAMÔNICA, Adiléa Benedita. “A cor do medo e os seus vários significados: os quilombos mato-grossenses do Rio Manso (1850-1888)”. In: BORGES, Fernando Tadeu de Miranda; PERARO, Maria Adenir (Orgs.). Sonhos e Pesadelos na história. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2006. DINIZ, Alberto Castanheira. Características Mesológicas de Angola. Nova Lisboa: Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, 1973. ELTIS, David. “The Impact of abolition on the Slave Trade”. In: The Abolition of the atlantic slave trade. Madison: University of the Wisconsin Press, 1981. 363 FARAGE, Nadia. Muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991. FARGE, Arlette. Lugares para a história. Tradução de Tema Costa. Lisboa: Editora Teorema, 1997. FELNER. Angola: apontamentos sobre a colonização dos planaltos e litoral do sul de Angola. Divisão e Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colônias, 1940. FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo: Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1964. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: portuguesa. 6ª ed. Curitiba: Editora Positivo, 2004. o dicionário da língua FERREIRA, Roquinaldo. Biografia, Mobilidade e Cultura Atlântica: A Micro-Escala do Tráfico de Escravos em Benguela,séculos XVIII-XIX. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n20/03.pdf >. Acesso no dia 11/04/2014. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ______; RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues. Aspectos comparativos do tráfico de africanos no Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31 (2004). FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola (século XVII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Departamento de História – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2012 (dissertação). ______ - Significado do protesto negro. São Paulo: Autores Associados, 1989. FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In: Ditos e escritos: estratégia, podersaber (v.4). Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2° Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ______. “A Governamentalidade” (1978). In: Ditos e Escritos, IV: Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ______. “Omnes ET singulatim”: uma crítica da razão política. In: Idem Ibidem. Ditos e Escritos, vol.IV. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. FU- KIAU, Kimbwandande Kia Busenki. Tying the Spiritual Knot. African Cosmology of the Bântu-Kôngo. Principles of Life & Living, Canada, Athelia Henrietta Press, 2001. FUNARI, Pedro Paulo de Abreu. “A arqueologia de Palmares – sua contribuição para o conhecimento da história da cultura afroamericana”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Memória, história e testemunho”. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res) sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001. 364 GLUCKMAN, Max. “Análise de uma situação social na Zululândia Moderna”. In: BIANCO, Bela Feldman. Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1997. GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII- XIX). São Paulo: Ed.UNESP; Ed. Polis, 2005. GONÇALVES, Rosana Andréa. África indômita: Missionários capuchinhos no Reino do Congo (século XVIII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de História, 2008 (dissertação). GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. In: Afro-Ásia, N. 27, 2002. GUARDIA, Nino Gandarilla. Desenredando La Independencia de Santa Cruz y SUS Provincias (1809-1831). Santa Cruz de La Sierra: Centro de Estudis Nacionales, 2008. GUIMARÃES, Carlos Magno. “Mineração, quilombos e Palmares – minas gerais no século XVIII”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. GUIMARÃES, Tereza Martha Borges. Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do Sul: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade, 2005. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Tradução de Rosa Freire d’Aguiare Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1979. ______ . Estrutura social, mobilidade e raça. Rio de Janeiro: Iuperj, 1988. HEINTZE, Beatrix. Asilo Ameaçado: oportunidades e consequências da fuga de escravos em Angola no século XVII. Tradução de Lotte Pluger. Luanda: Ministério da Cultura, 1995 ______. Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história. Tradução de Marina Santos. Luanda: Kilombelombe, 2007. HENRIQUES, Isabel Castro; MEDINA, João. A rota dos escravos: Angola e a Rede do Comércio Negreiro. Lisboa: Cegia, 1996. ______. Percursos da Modernidade em Angola: Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997. HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal (século XVII). Coimbra: Almedina, 1994. HILTON, Anne. “The Jaga reconsidered”. The Journal of African history”, Vol. 22, n.2 (1981), pp. 191-202. ______ . The Kingdom of Kong. Oxford, Oxford University Press, 1985. 365 HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos no Rio de Janeiro, 17581831. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Programa de Pós-Graduação em História, 2008, (Dissertação). IANNI, Octávio. Escravidão e Racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. ______ - Raças e Classes sociais no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. JAMES, Cyril Lionel Robert. The Black jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution. New York: the Dial Press, 1938. JUST LLEO, Estanislao. La revolución del 25 de mayo de 1809 en Chiquisaca. Sucre: Universidad San Francisco Xavier, junio-julio de 2007. JUSTINIANO, Oscar Tonelli. Reseña histórica social y econômica de La Chiquitania. Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, 2004. KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ______. "Central Africans in Central Brazil." In: Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora, ed. Linda M. Heywood (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), 117-151. KEULLER, Adriana T. A. Martins. Revisitando Rondônia: história, memória e ciência. In: História, ciência, Saúde, V. 14, n. 2, Abril-Junho, 2007, pp. 641-642. KLEIN, Herbert. The trade in African Slaves to Rio de Janeiro, 1825-1811: Estimates mortality and Patterns Voyages. Londres, X (4), pp. 33-549, 1969. ______. The atlantic slave trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. LARA, Silvia Hunold. “Do singular ao plural: Palmares, capitães do Mato e o governo dos escravos”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. LENHARO, Alcir. Crise e mudança na frente oeste de colonização. In: Cadernos do NDIHR UFMT- Ensaios, n° 1, Cuiabá: Imprensa Universitária - PROEDI, 1982. LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato Grosso. Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001 (publicações avulsas, originalmente publicada em 1949). LIMA, José Leonildo. Vila Bela da Santíssima Trindade – MT: sua fala, seus cantos. Campinas: Universidade de Campinas – Instituto de Estudos de Linguagens, 2000 (dissertação). LOVEJOY, Paul E. “Fugitive slaves: resistance to slavery in the Sokoto Caliphate”. In: Gary Y. Okihiro (Org.). In: Resistance, Studies in African, Caribeean, and Afro-American History. Ambherst, 1986. 366 ______. Transforming in Slavery. A history of slavery in Africa. 2 ed.. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. LUCÍDIO, João Antonio Botelho. ‘A Ocidente do imenso Brasil’: as conquistas dos rios Paraguai e Guaporé (1680-1750). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013 (tese). LUVIZOTTO, Rodrigo. Os diários de Langsdorff: prelúdios paisagísticos. São Paulo: Universdade de São Paulo – Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2012 (tese). MACHADO, Maria de Fátima Roberto. Quilombos, Cabixis e Caburés: índios e negros em Mato Grosso no século XVIII. Goiania: Associação Brasileira de Antropologia – 25º Reunião Brasileira de Antropologia – GT 48: Saberes Coloniais sobre os indígenas em exame: relatos de viagens, mapas, censos e iconografias, junho de 2006. MACGAFFEY. Wyatt. Religion and Society in Central África. The BaKongo of Lower Zaire. Chicago, The University of Chicago Press, 1986. ______ . Kongo Political Culture. The conceptual challenge of the particular. Bloomington, Indiana University Press, 2000. MACHADO, Lia Osório. Mitos e Realidades da Amazônia no contexto geopolítico internacional (1540-1912). Barcelona: Universitat de Barcelona, 1989 (tese). MAESTRI, Mário. “A escravidão em Mato Grosso: o singular e o geral” (Prefácio). In: BRAZIL, M. C. . Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso, 1718-1888. 1. ed. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo, 2002. MALAMUD, Carlos. Historia de America. Madrid: Alianza Editorial, 2005. MAGNOLI, Demétro. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009. MARTINS, José Vicente. Crenças, Advinhação e Medicina Tradicionais dos Tutchokwe do nordeste de Angola. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1993. MATTOS, Hebe; LUGÃO, Ana Maria. Memórias de cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MATTOS, Hebe. Das cores do Silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, século XIX. 2º Ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. Tradução de James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. MESQUITA, Ana & VALADÃO, Nyl-Iza. D. Antônio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja: correspondências. Cuiabá: UFMT/ NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL,Vol. 1, 1982. (Coleção Documentos Ibéricos, série: Capitães-generais). 367 MEIRELES, Denise Maldi. Guardiões da Fronteira – Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis: Vozes, 1989. MESQUITA, Ana & VALADÃO, Nyl-Iza. D. Antônio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja: correspondências. Cuiabá: UFMT/ NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL,Vol. 1, 1982. MILLER, Joseph. “The Imbangala and the cronology of early central African history”. The Journal of African history, Vol. 13, n. 4, 1972, pp. 121-149. ______ . Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave trade (1730-1830). Madison-Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1988. ______ . Poder político e parentesco: os antigos estados Mbundu em Angola. Tradução de Maria da Conceição Nero. Luanda: Arquivo Histórico Nacional-Ministério da Cultura, 1995. ______. “Beyond Black, bondage and blame: why a multi-centric wolrd history needs Africa”. In: Historically Speaking, November/December, 2004. MORENO, Alcides Parejas. “Los movimientos independentistas en la gobernación de Santa Cruz de la Sierra”. In: SANTA CRUZ e sus 200 años de Independencia: historia, procesos y desafios. Santa Cruz de la Sierra: Jatupeando; Investigacruz, 2012. MOTT, Luis R. B. “A revolução dos negros do Haiti e o Brasil”, in Questões & Debates, ano 3, n.4 (junho de 1982), pp. 55-63. MOURA, Carlos Francisco. D. Antônio Rolim de Moura, Primeiro Conde de Azambuja – Biografia. Cuiabá: Imprensa Universitária, 1982. MUNANGA, Kanbele. Origem e histórico do quilombo na África, Revista USP, São Paulo, No. 28, dezembro-fevereiro, 1995/1996, pp. 56-63. OBENGA, Theophile. Les Bantu. Dakar: Présence Africane, 1980 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. O banzo e outros males: o páthos dos negros escravos na Memória de Oliveira Mendes. Rev. Lattinoam. Psicopat. Fund. X, 2, pp. 346361. OLIVEIRA, Maria Inê Cortês de. Quem eram os “Negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, 19/20, 1997. OLIVEIRA, Tiago Kramer de. “Jogos Monetários na fronteira do Império Português: produção rural e comércio do centro da América do Sul (1716-1750)”. In: Revista Territórios e Fronteiras, V. 1, n.2, jul/dez 2008, pp. 243-270. ______. Desconstruindo velhos mapas, revelando espacializações: a economia colonial no centro da América do Sul (primeira metade do século XVIII). São Paulo: Universidade de São Paulo – Departamento de História, 2012 (tese). PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003. 368 PERARO, Maria Adenir. Fardas, Saias e Batina, A ilegitimidade na Paróquia Senhor Bom Jesus do Cuiabá. 1853-1890, Curitiba: UFPR, Departamento de História, 1997, p. 30 (tese). PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia: um estudo do contato racial. São Paulo: Ed. Nacional, 1945. PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1979. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3, 1989. POLIAKOV, Léon. O Mito Ariano: Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. PRESOTTI, Thereza Martha. Na trilha das águas: Índios e natureza na conquista colonial do centro da América do Sul – sertões e minas do Cuiabá e Mato Grosso (século XVIII). Brasília: Universidade de Brasília – Departamento de História, 2008 (tese). PRICE, Richard. “Palmares como poderia ter sido”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989. ______. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ______; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. RIBEIRO, Alexandre V. “O tráfico atlântico entre a Bahia e a Costa da Mina: flutuações e conjunturas (1683-1815)”, Estudos de História, vol. 9, nº 2 (2002). RIVERA, Marco Antonio del Río. “La economia cruceña (1810-2010”. In: SANTA CRUZ e sus 200 años de Independencia: historia, procesos y desafios. Santa Cruz de la Sierra: Jatupeando; Investigacruz, 2012. ROCA, José Luis. 1809. La Revolución de la Audiencia de Charcas en Chuquisaca y en La Paz. La Paz: Ed. Plural, 1998. RODAS, Alberto Crespo. Esclavos negros em Bolivia. La Paz: Academia Nacional de Ciencias de Bolivia, 1977. RODRIGUES, Bruno Pinheiro. Paixão da alma: o suicídio de cativos em Cuiabá (18541888). Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2010 (dissertação). RODRIGUES, Nathália Maria Dorado. “A atuação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão na Capitania de Mato Grosso entre 1755 e 1778”. In: “Usos do Passado – XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ”, 2006. 369 ROSA CRUZ. Angola e seu Potencial. Luanda: Ministério da Cultura, 1997. ROSA, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: vida urbana colonial em Mato Grosso (1722-1808). São Paulo: USP, 1996 (tese). ______. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de (orgs.). A terra da conquista: a história do Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003. SAMARA, Eni de Mesquita. “A historiografia recente e a pesquisa multidisciplinar”. In: História & documento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos caminhos de África: Serventia e Posse. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998. SANTOS, Eduardo. Religiões de Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1969. SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia (1750-1800). Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História, 2012 (dissertação). SCHARCZ, Lilia Mortiz. Retrato em branco e negro. Jornais, Escravos e Cidadãos em São Paulo em finais do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1987. ______ - O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das letras, 1993. SCHWARTZ, Stuart. Stuart Schwartz, “Resistance and Accomodation in 18th Century Brazil”, Hispanic American Historical Review, vol. 57, no 1 (1977), pp. 69-81. SECRETO, Maria Verónica. “Soltando-se das mãos: liberdades dos escravos na América espanhola”. In: AZEVEDO, Cecília; RAMINELLI, Ronald. História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. SENA, Ernesto Cerceira. Entre Anarquizadores e pessoas de costumes: a dinâmica política nas fronteiras do Império – Mato Grosso (1834-1870). Cuiabá: Carlini & Caniato, 2009. ______ - Representantes de governo, povos indígenas e outros atores na zona fronteiriça de Bolívia e Brasil – 1825-1879. In: Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.15, jul/dez 2013a, pp. 5-36. Disponível em < http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/view/1436 >. Acessado no dia 6 de outubro de 2014. ______. Fugas e reescravizações em região fronteiriça – Bolívia e Brasil nas primeiras décadas dos Estados nacionais. In: Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 39, n.1, p. 82-89, jan/Jun. 2013b. SERRANO, Carlos M. H. Ginga, a rainha quilombola de Matamba e Angola. Revista USP, N. 28, Dezembro-fevereiro, 1995-1996, pp. 136-141. SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores: políticas de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995 370 SILVA, Valderez Antonio da. Os fantasmas do rio: um estudo sobre a memória das monções do Vale Médio do Tiete. Programa de Pós-graduação em História – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, 2004 (dissertação). SIQUEIRA, Elizabeth Madureira; COSTA, Lourença Alves da; CARVALHO, Cathia Maria Coelho. O processo histórico de Mato Grosso. 3ª ed. Cuiabá: Editora Guaicurus, 1990. SLENES, Robert. Na Senzala uma flor: Esperanças e Recordações da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. SILVA, Nelson do. Uma nota sobre raça social no Brasil. In: Estudos dos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.26, 1994. SOUZA, Marina de Mello e.Evangelização e poder na região do Congo e Angola: a incorporação dos crucifixos por alguns chefes centro-africanos, séculos XVI e XVII. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, 2005. TAUNAY, Visconde de. A cidade do ouro e das ruínas (1891). 2º ed, São Paulo: Melhoramentos, 1923. TEIXEIRA, Marco Antonio Domingues. “O comércio e as rotas fluviais na sociedade guaporeana colonial”. In: Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente – Set – Nº 13, Vol. II, 1998. THORNTON, John. A ressurection for the Jaga. Cahiers d’etudes africaines, v. 18., n. 69, p. 223-227. TUAKANE, Isabel Teresa Cristina. Na trilha das Pekobaym Guerreiras Kura-Bakairi: de mulheres árvores ao associativismo do Instituto Yukamaniru. Universidade de Brasília – Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), 2013 (dissertação). WEBER, Priscila Maria; REMEDI, José Martinho Rodrigues. A literatura de viagem e o Império das festas: os coroamentos dos Reis do Congo no Brasil Meridional Oitocentista na visão dos Viajantes. In: Signo, Santa Cruz, v. 34, n. 57, jul/dez de 2009, pp. 239-248. VANSINA, Jan. How Societies are Born: governance in West central Africa before 1600. Virginia: University of Virgina Press, 2004. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819. São Paulo: Hucitec, 1987 ______. Cativos do Sertão. São Paulo: Editora Marco Zero; Cuiabá, MT: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1993. ______. Quilombos em Mato Grosso: Resistência negra em área de fronteira. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ZAGO, Lisandra. Etnoistória Bororo: contatos, alianças e conflitos (séculos XVIII e XIX).Dourados, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de PósGraduação em História, 2005 371 8.2.2.Homepage ARRUZZO, Roberta Carvalho. Construindo e desfazendo territórios: as relações territoriais entre os Paresi e os não-índios na segunda metade do século XX. In: XII Colóquio Internacional de Geocrítica. Disponível em < http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/08-R-Carvalho.pdf>. Acessado no dia 12 de setembro de 2014. Brasil. “Novo Diagnóstico de pessoas presas no Brasil”. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, junho de 2014. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf >. Acesso no dia 16 de setembro de 2014. ÉBOLI, Luciana Morteo. A Literatura dramática em África de língua portuguesa: história e cultura. In: Língua Portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Universidade de Évora, 2010. Disponível em < http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/slt63/03.pdf >. Acessado no dia 6 de outubro de 2014. GOMIDE, Maria Lucia Cereda. Território no mundo A’uwe Xavante. Disponível em <http://confins.revues.org/6888?lang=pt#ftn1>. Acessado n dia 13 de setembro de 2014. GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Racismo e anti-racismo no Brasil. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, Nov. 1995. Disponível em < http://novosestudos.org.br/v1/files/uploads/contents/77/20080626_racismo_e_anti_racismo.p df> . Acessado no dia 6 de outubro de 2014. ______ - Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. In: Novos Estudos, n. 61, Novembro de 2001. Disponível em http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/95/20080627_democracia_racial.pdf . Acessado no dia 6 de outubro de 2014. LUANSI, Lukonde. Angola: Movimentos migratórios e estados precoloniais – identidade nacional e autonomia regional. In: International Symposium Angola on the move: transport routes, communication and history, Berlin, 24-26 September 2003. Disponível em < http://www.zmo.de/angola/papers/Luansi_(29-03-04).pdf> . Acesso no dia 14 de maio de 2014. MENEZES, Paula; ALMEIDA, Fábio. “Parte da casa da jovem que ofendeu Aranha é incendiada em Porto Alegre”. Disponível em <http://globoesporte.globo.com/rs/noticia/2014/09/advogado-diz-que-jovem-que-ofendearanha-teve-casa-incendiada-bm-nega.html >. Acessado no dia 16 de setembro de 2014 MONTEIRO, Felipe Mattos; CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: um debate oportuno. In: Citivas, Porto Alegre, v. 13, n.1, p. 106. Disponível em <file:///C:/Users/Bruno/Downloads/1259255849-2-PB%20(1).pdf >. Acessado no dia 16 de setembro de 2014. RODRIGUES, Raymundo Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, p. 161. Disponível em <http://www.capoeiravadiacao.org/attachments/382_Os%20africanos%20no%20Brasil%20%20Raymundo%20Nina%20Rodrigues.pdf >. Acesso no dia 15/01/2014. 372 SALLES, Ygor. “Caso Aranha: a começão que vira ódio”. Disponível em <http://hashtag.blogfolha.uol.com.br/2014/08/29/caso-aranha-a-comocao-que-vira-odio/>. Acessado no dia 16 de setembro de 2014. SCHWARCZ, Lilia Mortiz. “Quase pretos, quase brancos”. In: Pesquisa FAPESP, n.134, abril de 2007, pp. 11-15 (entrevista realizada por Carlos Haag). Disponível em < http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/04/01/quase-pretos-quase-brancos/ >. Acessado no dia 6 de outubro de 2014. SILVA, Maria Nilza da. O negro no Brasil: um problema de raça ou de classe? In: Revista Medições, Londrina, v. 5, n.2, jul/dez de 2000, pp. 99-124. Disponível em < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/9162 >. Acessado no dia 6 de outubro de 2014. SOUX, Maria Luisa. “El tema de la soberanía en el discurso de los movimientos juntistas de La Plata y La Paz en 1809”. In: Revista Número 22-23, Agosto de 2009 (Universidad Católica Boliviana). Disponível em <http://www.revistasbolivianas.org.bo/pdf/rcc/n2223/v10n23a01.pdf >. Acessado no dia 5 de janeiro de 2015. VÁZQUEZ MACHICADO, Humberto. VÁZQUEZ MACHICADO, Humberto. “La efervescência Libertaria en el Alto Perú de 1809 y la Insurrección de Esclavos en Santa Cruz de La Sierra”. Disponível em <http://www.soysantacruz.com.bo/Generales/GenWebHistoriaHnosVM/Htm/H-06.htm >. Acessado no dia 24/12/2014. VEJA, Fernando Cajías de la. La Rebelión afro-indígena en Santa Cruz. Agosto de 2009. Disponível em < rcci.net/globalizacion/2009/fg898.htm >. Acessado no dia 9 de janeiro de 2015. WAISELFISZ, Julio Jaboco. Os Jovens do Brasil: mapa da violência. Brasília: SecretariaGeral da Presidência da República – Secretaria Nacional de Juventude, 2014, p. 146. Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf >. Acessado no dia 16 de setembro de 2014. 8.2.2.1. Center for Research Libraries: Brazilian Government Document Digitalization Project Relatório de Francisco José Cardoso Júnior, de 4 de outubro de 1873. Disponível em <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/437/000004.html >. Acessado no dia 27 de maio de 2013. Relatório de Antonio Pedro de Alencastro de 3 de maio de 1861. Disponível em < http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/437/000004.html >. Acessado no dia 27 de maio de 2013.