MONTAGEM E ESTÉTICA DE VANGUARDA EM

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MONTAGEM E ESTÉTICA DE VANGUARDA EM
MONTAGEM E ESTÉTICA DE VANGUARDA EM ÚLTIMO ROUND (1969),
DE JÚLIO CORTÁZAR
Bárbara Nayla Piñeiro de Castro Pessôa
RESUMO: Este trabalho anseia discutir como o conceito de montagem
cinematográfica, tal como o teoriza Sergei Eisenstein, é utilizado literariamente por
Júlio Cortázar em seu livro de colagens Último Round (1969). Pretendemos levantar as
questões que este meio de criação, entendido desde uma perspectiva intersemiótica,
suscita em relação aos princípios da estética de vanguarda.
Palavras-chave: montagem; colagem; vanguardas; Júlio Cortázar
ABSTRACT: This work aims to discuss how the concept of cinematographic montage,
theorized by Sergei Eisenstein, is used by Júlio Cortázar in his collage book Último
Round (1969). We are interested in thinking about questions raised by this specific
mean of creation, understood in an intersemiotic perspective, in relation to te avantgarde aesthetics principles.
Key-words: montage; collage; avant-garde; Júlio Cortázar
Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista do Cnpq.
Automobilista de férias percorre as montanhas do centro da França,
entediado longe da cidade e da vida noturna. Garota lhe faz o gesto usual de
pedir carona, timidamente pergunta se direção a Beaune ou Tournus. Na
estrada umas palavras, belo perfil moreno que poucas vezes pleno rosto,
laconicamente às perguntas de quem agora, olhando as coxas nuas contra o
assento vermelho. Depois de uma curva o carro sai da estrada e se perde no
mais espesso. De esguelha sentindo como cruza as mãos sobre a minissaia
enquanto o terror pouco a pouco. Sob as árvores uma profunda caverna
vegetal onde vai poder, salta do carro, a outra porta e brutalmente pelos
ombros. A garota o olha como se não, deixa-se tirar do carro sabendo que na
solidão do bosque. Quando a mão pela cintura para arrastá-la entre as
árvores, pistola da bolsa e na têmpora. Depois carteira, verifica bem cheia, de
quebra rouba o carro que abandonará alguns quilômetros adiante sem deixar
nenhuma impressão digital porque nesse ofício não se pode descuidar1
(CORTÁZAR, 2008, p.28)
Intitulado “Cortísimo metraje” este texto concentra uma pequena narrativa. A
linguagem aqui acelera, elide e, em flashes, parece querer concentrar toda possibilidade
de significação e reduzir-se ao mínimo. O que é elidido e o que permanece estabelecem
o vínculo de sentido, estreito, sem o qual a leitura fracassaria.
Toda uma rede de implícitos parece ativar-se durante a leitura do texto, fazendo
que a cena da moça que “se deja bajar del auto sabiendo que en la soledad del bosque”,
resgate um clichê cinematográfico antigo: a do rapaz que leva a moça a um bosque
isolado para violá-la. Entretanto, há uma guinada na expectativa, o texto guarda uma
curva inesperada, quem é o autor do crime é a moça, que interessadamente o deduz e,
contando com sua realização, rouba o carro e o dinheiro do suposto criminoso.
1
Automovilista en vacaciones recorre las montañas del centro de Francia, se aburre lejos de la ciudad y
de la vida nocturna. Muchacha le hace el gesto usual del auto-stop, tímidamente pregunta si dirección
Beaune o Tournus. En la carretera unas palabras, hermoso perfil moreno que pocas veces pleno rostro,
lacónicamente a las preguntas del que ahora, mirando los muslos desnudos contra el asiento rojo. Al
término de un viraje el auto sale de la carretera y se pierde en lo más espeso. De reojo sintiendo cómo
cruza las manos sobre la minifalda mientras el terror poco a poco. Bajo los árboles una profunda gruta
vegetal donde se podrá, salta del auto, la otra portezuela y brutalmente por los hombros. La muchacha lo
mira como si no, se deja bajar del auto sabiendo que en la soledad del bosque. Cuando la mano por la
cintura para arrastrarla entre los árboles, pistola del bolso y a la sien. Después billetera, verifica bien
llena, de paso roba el auto que abandonará algunos kilómetros más lejos sin dejar la menor impresión
O fim aparece como desfecho de uma sequência que se desdobra, desarmando a
cristalização de uma cena corriqueira. É, deste modo, que “a imagem de uma cena, de
uma sequência, de uma criação completa, existe não como algo já fixo e já pronto.
Precisa surgir, revelar-se diante dos sentidos do espectador” (EISENSTEIN, 1992,
p.28).
Se o sentido desponta no horizonte da leitura, poderíamos perguntar-nos o que faz
com que, por exemplo, fragmentos tão curtos como “Depois carteira” consigam
conduzir a “depois olha a carteira e a verifica”. Se a criação de uma linguagem
subtraída, reduzida ao mínimo da possibilidade de significação, gera uma estética
participativa, por outro lado, percebemos que esta aparece guiada, o curso da leitura das
justaposições está sulcado, basta ao leitor que percorra um caminho, sintético e
dinâmico por “incluir no processo criativo a razão e o sentimento do espectador”
(EISENSTEIN, 1992, p.29).
Ainda que a história provoque um deslocamento do sentido, desmontando o
clichê, a linguagem se desenvolve numa direção em que a descontinuidade linguística
resulta numa recepção bastante determinada pelas relações propostas em cada
fragmento. Se, por um lado, a montagem fragmenta a linguagem, por outro, a unidade é
preservada no ato da recepção.
Nossa leitura consiste em codificar os elementos fornecidos e relacioná-los de
maneira imediata, a mecânica da percepção parece estar de acordo com aquilo que
Eisenstein identifica como o “hábito psicológico que tende a reduzir esta cadeia
intermediária a um mínimo, a fim de que apenas o início e o fim do processo sejam
percebidos” (EISENSTEIN, 1992, p.20). É, assim, que o grande pensador da montagem
digital porque en ese oficio no hay que descuidarse (CORTÁZAR, 2010, p.36).
cinematográfica indica a recepção deste princípio reitor da justaposição de dois ou mais
fragmentos para a formação de uma terceira coisa cujo “resultado é qualitativamente
diferente de cada elemento considerado isoladamente” (EISENSTEIN, 1992, p.16). Se
a subtração das conjunções que ligam os fragmentos libera-os de uma amarração lógica,
a disposição dos mesmos, entretanto, é dada na intenção de uma unidade já prevenida.
No marco das estéticas de vanguarda, estas considerações problematizam o
alcance do caráter crítico e transgressor da teoria e prática em foco. O hábito, inimigo
maior da vanguarda, aparece aqui como um elemento articulador da síntese, o elo que
torna o descontínuo legível. A armadilha se arma no paradoxo entre os pressupostos da
vanguarda de estranhamento, motor estético da desautomatização, e o poder sintético
das imagens sensoriais.
Se a razão é solicitada é porque a recepção aqui se volta ao reconhecimento dos
princípios construtivos. Ao tornar-se reconhecível, o processo artístico rejeita seu
caráter de produto, por um lado, ao mesmo tempo em que, por outro, indica que este é
seu fim: “a justaposição de dois planos isolados através de sua união não parece a
simples soma de um plano mais outro plano – mas o produto” (EISENSTEIN, 1992,
p.16).
Este produto, entretanto, não é dado ou expulso do texto, pertence exclusivamente
à recepção, uma vez que compete ao espectador a realização da obra de arte:
toda criação se baseia fundamentalmente num processo de pensamento por
imagens sensoriais. O discurso interior acha-se precisamente no estágio da
estrutura imagético-sensorial, não tendo ainda alcançado a formulação lógica
de que se reveste, antes de vir à tona. Assim como a lógica obedece a toda uma
série de leis de construção, é bastante significativo que o discurso interior, esse
pensamento sensorial, também ele esteja sujeito a particularidades estruturais e
não menos definidas (EISENSTEIN Apud XAVIER, 2005, p.224).
Encontrar o esquema do sensitivo, a armação de seu “mecanismo” parece estar na
primeira ordem da investigação estética de Eisenstein. O interesse no “método da arte”
está na aposta de que a eficácia da montagem estaria no entrelaçamento entre razão e
percepção, numa articulação estética que reconstruiriam as próprias “leis do processo do
pensamento” (EISENSTEIN, 1992, p.214). Deste modo, o conceito da montagem
ultrapassa a esfera do cinema e pode ser entendido como um processo do próprio
pensamento, presente em todas as artes.
O problema da montagem aparece justamente em termos de discurso e de que
maneira este atinge o espectador. Fica claro aqui que o impacto na recepção se dá
através de uma espécie de “invasão” do mundo perceptivo do espectador. O “controle
consciente do processo criativo” (VIERA, 2004, p.25), axioma do credo construtivista,
que parece ativar todo o processo criativo, é tensionado na teoria de Eisenstein por uma
recepção próxima aos processos mentais alógicos:
Eisenstein, ao obrigar o espectador a criar a imagem, reunindo todas as
relações entre atrações (relações que existem por causa do tema
interpenetrante), dá ao espectador não uma imagem completa, mas a
“experiência de completar uma imagem”. Tal experiência gera uma
compreensão do tema mais primal e mais poderosa do que qualquer apelo
através do discurso normal e da lógica. Neste ponto, é até possível ver traços de
misticismo no pensamento de Eisenstein. Sua constante curiosidade com
relação aos processos mentais das culturas primitivas e das crianças origina-se
de sua crença de que, ao evitar as cadeias de lógica verbal às quais estamos
subjugados, elas são naturalmente ligadas a um mundo mais real, no qual a
mente padroniza os estímulos que encontra no mundo (ANDREW, 2002, p.70)
Interessa-nos por em questão o caminho trilhado pela atividade de “completar
uma imagem”. Torna-se explícito que tal experiência não passa por uma construção da
ordem do consciente, mas sim, de algo que surge, que se dá. A manipulação das
combinações dos fragmentos, privilégio do criador, guia a recepção.
Em Último Round, entretanto, Cortázar intenciona deslocar este processo de
montagem da criação para o lado da recepção. “Poesía permutante” indica, já pela
dedicatória a Raymond Queneau, a aproximação aos jogos surrealistas com a
linguagem, principalmente a proposta pelo escritor francês em seu livro de poemas Cent
mille millards de poème, no qual o autor francês joga com o recorte de vários pedaços
de poemas que podem ser intercambiados até a cifra de cem milhões de poemas. A
própria estrutura do livro de Cortázar consiste em guilhotinar a página com o objetivo
de dividir o livro em dois pisos, estabelecendo o mesmo jogo de Queneau. Assim,
Último Round se configura como um conjunto disperso de textos de distintas naturezas:
contos, poemas, fotografias e ensaios. Nada no livro assegura um todo, pois esta reunião
disparatada, cortada em dois níveis de distintos tamanhos, se oferece ao constante
manuseio, a permuta das folhas e ao convite a diversas leituras combinatórias. Em
“Poesía Permutante”, Cortázar explicita seu projeto:
Escrever textos cuja unidade básica possa ser permutada até o limite do
interesse do leitor ou das possibilidades matemáticas. O poema se torna, assim,
circular e aberto ao mesmo tempo; embaralhando as estrofes ou unidades se
originam diferentes combinações; por sua vez, cada uma destas pode ser lida
desde qualquer uma de suas estrofes ou unidades até fechar o círculo em um ou
outro sentido (CORTÁZAR, 2008, p.89).2
A preocupação em “cerrar el círculo en uno u otro sentido” explicita o objetivo
último do programa permutante: a síntese. Aqui o leitor escolhe os fragmentos,
ocupando o papel do próprio montador. O caráter aberto da “dispersão programada”
ambiciona articular a multiplicidade dos papéis à dimensão circular da síntese.
Entretanto, a preocupação com a unidade, com um todo que subordina as partes,
própria da montagem, também se constitui como principal ponto crítico em relação às
estéticas da vanguarda. Na contramão daquilo que Peter Bürger, em Teoria da
2
Escribir textos cuya unidad básica puedan ser permutadas hasta el límite del interés del lector o de las
posibilidades matemáticas. El poema se vuelve así circular y abierto a la vez; barajando las estrofas o
unidades, se originan diferentes combinaciones; a su turno, cada una de éstas puede ser leída desde
cualquiera de sus estrofas o unidades hasta cerrar el círculo en uno u otro sentido (CORTÁZAR, 1974,
p.56)
Vanguarda, postula como arte não orgânica, Eisenstein defende, em seu texto “Palavra
e Imagem”, “a necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do material, da
trama, da ação, do movimento interno da sequência cinematográfica e de sua ação
dramática como um todo” (EISENSTEIN, 1992, p.14).
Segundo Bürger,
Na obra vanguardista [...] os momentos individuais possuem um grau muito
mais elevado de autonomia e podem, por exemplo, ser lidos e interpretados
também individualmente ou em grupos, sem que o todo da obra seja aprendido
(BÜRGER, 2008, p.147).
A montagem aqui é recuperada pelo conceito adorniano, que a entende como um
princípio cujo objetivo é não produzir mais a aparência de reconciliação. Se o núcleo da
recepção vanguadista parece ser conservado na montagem eisensteiniana, o choque
entre os diversos fragmentos é o que move o processo da montagem, por outro lado, o
respeito à unidade da obra de arte, a defesa da organicidade e da reconciliação, vai na
contramão do caráter não orgânico da obra de arte de vanguarda. A autonomia dos
fragmentos fica aqui sujeita a uma ordem coerente e esquemática.
O conceito de máquina dá corpo à organicidade defendida por Eisenstein. O
esquema, descortinado através do constante uso dos termos “mecanismo” e “mecânica”,
revela o paradoxo de sua empresa: a impossibilidade de se criar uma máquina que
desautomatize, uma engrenagem capaz de trazer em seu bojo uma antimecânica. Se a
arte de vanguarda aposta no estranhamento como desautomatização do hábito, a ideia de
um esquema artístico, acaba por colocar em cheque sua própria realização estética.
“Poesía Permutante”, entretanto, através da defesa de seu caráter aberto, parece
deixar uma margem de não funcionamento da máquina, preservando um lugar de
instabilidade, que resiste a operação da síntese. Esta espécie de resíduo, que não se
submete à ordem da máquina sintética, garante seu caráter de obra não orgânica e em
processo, contrariando os esquemas propostos pelo conceito eisensteiniano.
No permanente jogo com o que pode submeter-se a síntese ou não, a obra de
Cortázar dialoga com a teoria da montagem eisensteniana na medida em que entende a
síntese como um processo aberto, realizado pelo leitor. Aqui a obra vanguardista
questiona os limiares do sentido e da utopia de desautomatização da percepção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDREW, J.Dudley. As principais teorias do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
CORTÁZAR, Júlio. Último Round. Madrid: Siglo XXI, 1974
________________. Último Round. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
2008.
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São
Paulo: Paz e Terra, 2005.