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PODER Tema: O Povo no Poder ou O Povo Contra o Poder? Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse Entre os anos 1960 e 1970 uma série de filmes latino-­‐americanos retrataram as insurreições e a força dos poderes populares contra a ordem instituída. Era o momento em que o continente sofria golpes de Estado e revoluções, tanto o populismo de direita quanto os movimentos de esquerda diziam estar a serviço do povo. Este é o grande tema, por exemplo, do Cinema Novo. O programa O Povo no Poder ou o Povo Contra o Poder? reflete sobre esse “mito” do poder do povo no cinema latino-­‐americano e na história recente do continente. Serão discutidos filmes paradigmáticos dessa discussão como Ganga Zumba, de Carlos Diegues, A Batalha do Chile III: o Poder Popular, O Sonho de Rose, de Tetê Moraes e Que Viva Mexico!, de Sergei Eisenstein. Apresentação dos filmes e das questões Nota do pesquisador: prestar atenção nas distinções que se faz, na sinopse de cada filme, das concepções de POVO e PODER presentes em cada um dos filmes. Como como MITO (Viva México!), como AGENTE DA HISTÓRIA (Ganga Zumba) e como FORÇA SOCIAL ORGANIZADA, seja na luta (Batalha do Chile 3) seja na conquista (O Sonho de Rose). Que Viva Mexico! (México, 1932), de Sergei Eisenstein Considerado um dos projetos mais ambiciosos do cineasta russo Sergei Eisenstein, Que Viva México! É um projeto inacabado e patrocinado pelo escritor americano Upton Sinclair e sua esposa Mary Kimbrough Sinclair que ambicionava contar a cultura do México e sua história desde a época pré-­‐hispânica até a Revolução Mexicana. A produção passou por problemas e foi abandonada. Teve várias montagens diferentes, nenhuma definitiva. Filma o povo mexicano, de seu passado ancestral até a época moderna. É a história, a beleza, a tragédia e a força de um povo. Eisenstein, como em seus filmes russo, mitifica o POVO. O POVO como entidade. Ganga Zumba (Brasil, 1964), de Carlos Diegues “No Nordeste brasileiro, entre os séculos 16 e 17, alguns escravos de um engenho de cana-­‐de-­‐
açúcar tramam uma fuga para o Quilombo dos Palmares, uma comunidade de negros fugidos da escravidão, na Serra da Barriga. Entre eles, encontra-­‐se o jovem Ganga Zumba (Antonio Pitanga), futuro líder daquela república revolucionária, a primeira de toda a América” (sinopse oficial). O filme foi realizado em 1963 e como outros exemplares do Cinema Novo dessa época cultivava a fé nas “energias libertadoras do povo”. Entre os cineastas do Cinema Novo foi Cacá Diegues quem mais voltou seu cinema à questão do negro. Aqui, como em boa parte do cinema novo, o POVO oprimido e explorado (aqui na figura de uma de uma de suas frações: os negros) é levado a reagir à sua exploração e opressão, como de ser protagonista da história e conquistar a liberdade que lhe foi cerceada. A Batalha do Chile III: o Poder Popular (1980), de Patrício Guzman O diretor Patrício Guzman realizou A Batalha do Chile em três partes quando das agitações do golpe que derrubou o presidente socialista Salvador Allende em 1973. Nessa terceira parte, Gusman mostra a mobilização e as ações coletivas e espontâneas da população por meio de sindicatos, trabalhadores rurais organizados e cooperativas em favor de Allende. Guzman mostra o poder popular como “movimento e ação”, não como ações políticas institucionalizadas. Gusman registra não o povo como entidade romantizada, mas como agente histórico concreto por meio de seus representantes e mobilizações a fim de interferir no rumo dos acontecimentos. O Sonho de Rose (1997), de Tetê Moraes A diretora Tetê Moraes realizou O Sonho de Rose dez anos depois de Terra para Rose, que mostrava a luta de um grupo de sem terras no Rio Grande do Sul (berço do MST) por meio de Roseli. Em O Sonho de Rose, a diretora aborda detalhes do triste destino de Roseli e o cotidiano dos assentamentos em 1996, reencontrando vários personagens do filme anterior que se tornaram pequenos produtores. O filme busca entender as conquistas do povo organizado pós-­‐luta pelos direitos. Material Anexo 2 Nota do pesquisador: muito difícil encontrar um texto que trate das questões de Viva México que não seja de modo estritamente estético. Portanto, haverá aqui análises que vez ou outra encontrarão as questões referentes a essa pesquisa, entretanto, nada muito sistemático. No que diz respeito à batalha do Chile, por sua vez ocorre o contrário: as resenhas falam da importância (da denúncia, do fato histórico registrado) da obra de maneira generalista e muito pouco se fala do modo como o documentarista constrói o seu discurso. Ganha Zumba por sua vez só tem fortuna crítica da época do lançamento e não desperta interesse nas novas gerações de teóricos e críticos. Apesar de ter envelhecido mal, reúne características “populares” e “políticas” típicas do Cinema Novo. Por fim, O Sonho de Rose é mais recente e encontrou uma recepção mais calorosa (ainda que não seja elogiosa) de muitos críticos. O poder popular na América Latina Uma abordagem do poder popular na América Latina, a partir de A mosca Azul, de Frei Betto. Início de conversa Segundo Frei Betto a Revolução Cubana incentivou os movimentos populares na AL. Essa revolução trata da tomada do poder em Cuba pela força militar popular, levando o jovem Fidel Castro ao poder, no lugar do também ditador Fugêncio Batista, que desde 1952 governava Cuba. Inspirou principalmente a luta antiimperialista e o surgimento de grupos guerrilheiros. Já a partir dos anos 70, a AL vivia sob ditaduras, acontece a queda do governo de Isabelita Perón (Argentina), a deposição de João Goulart (Brasil) e o assassinato de Salvador Allende (Chile). Também a derrubada do foquismo guerrilheiro e a aniquilação de grupos contrários. Estes países enfrentaram a autocrítica dos setores que esquerda que adotaram na prática o que tanto defendiam em teoria: A natureza popular de sua ação política. Não só a Igreja, em 1979 em Puebla, fez opção preferencial pelos pobres, mas também as tendências políticas surgidas de dissidências dos velhos troncos da política comunista da AL fizeram sua ida aos pobres. As CEBs representaram as duas correntes no Brasil. Mas não só a teologia da libertação influenciou o pensamento e a ação pastoral-­‐política de frei Betto, também a filosofia da libertação teve seu papel. Essa tem como primeira tarefa a de esclarecer e justificar, na sua originalidade, esta tomada de posição fundamental, que é também uma escolha de vida. Filosofia da libertação Seu idealizador principal é Enrique Dussel, filósofo argentino, nascido em 1934 e exilado no México desde 1975. Sustenta-­‐se numa metafísica da práxis, colocando no coração da pesquisa 3 filosófica uma escolha de justiça e de solidariedade. Dialoga com a formação social periférica, sob influência de um dos maiores pensadores ético do século XX: E. Lévinas, que trata da alteridade negada, decididamente antagônica à que inspira atualmente a organização da sociedade e do mundo. Nega a religião fetichista, que justifica toda a injustiça social da AL como vontade de Deus. Ao desmascarar o funcionalismo, denuncia um sistema imperial norte-­‐
americano que deposita sob a AL seus dejetos políticos e econômicos. Buscando fazer a passagem do ontológico ao transontológico, ela se coloca numa sociedade em que o povo não é sujeito de sua história e num mundo onde, a maioria dos povos ainda não alcançou a condição de sujeitos libertos e autônomos. Quer despertar o senso de responsabilidade pelo outro. A filosofia da libertação origina-­‐se portanto da estreita relação entre o polo existencial, subjetivo e o polo político, objetivo da busca e da libertação; entre projeto de vida e projeto de sociedade. Como bem expressa E. Dussel: "Não negaremos então a razão, mas a irracionalidade da violência do mito moderno; não negamos a razão, mas a irracionalidade pós-­‐moderna; afirmamos a "razão do Outro" rumo a uma mundialidade transmoderna". Filosofia política na AL Frei Betto considera que a filosofia política latino-­‐americana baseava-­‐se até a emergência dos movimentos populares numa sólida catedral de conceitos marxistas que rui, ao se encontrar com elementos que emergem junto desses movimentos. Há uma mudança de lugar também do saber epistêmico, quando esse marxismo choca-­‐se como o saber popular, marcante na AL, mesclado de referências e valores éticos e sociais cristãos. Esses arquétipos de aspiração popular choca-­‐se com os arquétipos das classes dominantes, culminando num senso prático crítico, capaz de dar consistência pragmática à proposta de organização popular. Poderes populares Em toda a AL setores populares fortalecem seu poder de demanda e assumem uma consciência critica proporcional ao seu desempenho como sujeitos políticos. É o casos destes poderes que citamos ai. Os Zapatistas (Inspirado na luta de Emiliano Zapata, no México em 1910. O movimento de 1994 representou o Ya basta contra o Nafta). Camponeses da Zona ocidentel da Colômbia (que resistem e criam propostas firmes para a reforma agrária em oposição ao governo Alvaro Uribe que cede as forças imperialistas). Os mineiros do altiplanos bolivianos (que resistem aos incentivos dados pelo Estado às mineradoras e petrolíferas). O 4 MST brasileiro (movimento surgido na década de 1980, que combate a expansão da fronteira agrícola e os megaprojetos de mecanização da produção, em vista da reforma agrária). A afirmação de Frei Betto sobre a Revolução Francesa chegar a AL, abre espaço à compreensão em parte da formação dos movimentos populares surgidos nas últimas décadas, em face de uma libertação do homem, como previu a Revolução. Movimentos populares A partir da presença desses ideais da Revolução Francesa, começamos perceber movimentos de Solidariedade, de Reivindicação, de Conquista e de Denúncia. Frei Betto lembra ainda que uma extensa rede de apoio a esses movimentos surgiu, em decorrência da importância que passaram a ter como protagonistas políticos. Surgem centros de educação popular, instituições ecumênicas e escolas de formação, publicações, ONGs e universidades. Há também o fortalecimento de um novo sindicalismo desatrelado do Estado e dos pelegos patronais. Contudo, sem se iludir, frei Betto mostra sua consciência de que os ideais de solidariedade não são de fáceis de ser adquiridos e disseminados. A propriedade privada nega a igualdade. Porque a bandeira francesa não se aplica ao setor econômico. Governo O governo democrático latino-­‐americano é essencialmente representativo, enquanto for assim continuaremos elegendo quem pode seguir seus próprios interesses sem obrigação de sintonizar-­‐se com seus eleitores, o que no modelo participativo de democracia seria diferente. A consciência de que eleger-­‐se não é chegar ao poder, mas ao serviço, está longe de nossos representantes. Enquanto no primeiro se valoriza o poder institucional, que se alimenta da imagem que reflete de si mesmo, de sua semelhança, no segundo quer se dar espaço ao poder popular, que não reflete imagem, por não constituir forma de poder, mas apenas meio de o líder popular chegar ao poder institucional. O poder assenta-­‐se sobre duas bases: O Estado organizado e hierarquizado e a Sociedade Civil. A primeira institucionaliza o poder através da política, do indivíduo e da história. A política é a forma de estabelecer relações de poder, é o “cuidado” com o poder público. É exercida por indivíduos, o eleito e os eleitores, que formando o Estado, contribuem com sua história. Já a Sociedade Civil é a esfera das relações, a base de que emanam os conflitos, as reivindicações e as denúncias a que a política, entendida como sistema político, deve responder. Na sociedade civil estão incluídas as várias formas de mobilização, associação e 5 organização das forças sociais que tendem à conquista do poder político. Poder de fato e de direito. Desafios e dificuldades Surgem os desafios e as dificuldades para a chegada a esse poder popular. Baseando-­‐se essencialmente nos movimentos populares sociais, frei Betto conclui que nos últimos 40 a sociedade civil latino-­‐americana fortaleceu-­‐se pela multiplicidade desses movimentos. Sob as ditaduras militares, a dificuldade de atuação através de movimentos legais, muitos deles suprimidos ou cerceados pela repressão, estimulou o surgimento de movimentos legitimados pelas demandas populares assumidas por eles. Como as oposições sindicais, as pastorais populares, as associações de moradores, os grupos de defesa de direitos humanos, mulheres negros e indígenas, sem-­‐terra, sem-­‐teto etc. Além disso, na defesa de seus direitos e interesses as classes populares respaldaram também movimentos de perfis mais específicos, como saúde, carestia, apoio jurídico, reforma agrária, ecologia etc. Tudo isso emergiu como parcela representativa da sociedade civil, por ser mais organizada e consciente, no entanto se insere numa conjuntura adversa, tanto do ponto de vista político, como econômico. No ponto de vista político, tem seu entrave na hegemonia das classes dominantes e no econômico, as relações capitalistas de produção determinam em muito o viés do poder social, principalmente no que tange a igualdade e à solidariedade. Esta sociedade que media toda essa problemática sustenta uma constante guerra de posições, na qual se buscam espaços políticos institucionalizados pela máquina estatal. Contanto, visa fortalecer o poder da classe trabalhadora e de todas as vítimas da opressão, tendo em vista a construção de uma futura sociedade socialista. Frei Betto considera que sejam duas as dificuldades do poder popular. A provisoriedade de muitos movimentos, atrelados a uma conjuntura especifica que, uma vez modificada, obriga-­‐
nos a redimensionar sua proposta. Isso decorre do fato de que muitos surgem por reação espontânea de movimentos sociais periféricos frente a um objetivo adverso – como um atropelamento em uma rodovia, que requer passarela de pedestre ou um enchente em tempo de chuva, provocada pela falta de saneamento básico. Isso faz que fiquem sempre na dependência de instituições abrangentes, como o Estado e a Igreja, que quase sempre as neutralizam também. O outro problema apontado por frei Betto é a cooptação dos movimentos por parte do poder público (Caso recente da UNE) como qual costumam ter relação direta. Essa cooptação é facilitada pelo baixo nível de institucionalidade dos movimentos e pela hipertrofia das 6 lideranças. Muito facilmente as lideranças políticas assimilam as lideranças populares, através de promessas de cargos, recursos materiais e até mesmo de processos de institucionalização, que tornam os movimentos apêndices do governo. Sugere criar um pólo de referência, como a central dos movimentos populares a coordenação de movimentos sociais, que, a partir das bases se impusesse como vínculo orgânico de subsistência, assegurando o fluxo de informações e mobilizações. Questões: A causa popular seria de fato possuidora de poder senão um poder institucionalizado regido pelo Estado, portanto, poder de ideologia e classe dominante? O próprio frei Betto diz que a chegada de um operário no poder não quer dizer que os operários tenham chegado ao poder. As forças populares têm representado os fins que trazem ou são uma espécie de trampolim para o poder eleito de um só? Mas por outro lado, podemos negar que nas pequenas comunidades haja movimentos de base que representem bandeiras sociais convictas? E isso tudo, pode, de algum modo, gerar um novo poder, que seja permeado pelos ideais da filosofia da libertação, levando em conta aspectos socioculturais de um povo? Cláudio Geraldo Cogitatio Disponível em http://claudiofilosofo.blogspot.com.br/2010/10/o-­‐poder-­‐popular-­‐na-­‐america-­‐
latina.html Cacá Diegues: O povo brasileiro pelas câmeras Ele é um dos mais importantes cineastas brasileiros e sua grande paixão é o meio de mostrar o Brasil através da arte cinematográfica. Um dos fundadores do Cinema Novo, Cacá Diegues, sempre polêmico, foi perseguido no período da gerência militar, obrigado a sair do país, mas nunca abandonou seu ideal de fazer cinema para o povo. Sua dedicação ao cinema, sempre aliando qualidade artística e atração do público, é reconhecida no mundo inteiro, com premiações diversas. Carlos Diegues nasceu em Maceió, Alagoas, no dia 19 de maio de 1940. Aos seis anos de idade sua família estava de mudança para o Rio de Janeiro, onde passou toda sua infância e adolescência, e formou-­‐se em direito, talvez por não haver escolas de cinema na época, final da década de 50. Na universidade, PUC/Rio, comportava-­‐se como alguém politizado e muito apaixonado por cinema. Foi presidente do diretório estudantil e fundou um cineclube, começando suas atividades como cineasta, ainda amador, na companhia de Paulo Perdigão, David Neves, 7 Arnaldo Jabor e outros. Na mesma época dirigiu o jornal 'O Metropolitano', órgão oficial da UME — União Metropolitana de Estudantes, e juntou-­‐se ao CPC da UNE, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Animado como cineasta amador, realizou três curtas-­‐metragens, juntamente com David Neves e Affonso Beato. Entre esses curtas está Domingo, um dos filmes pioneiros do movimento Cinema Novo. Tanto o grupo da PUC quanto o de 'O Metropolitano' tornaram-­‐se, a partir do final da década de 50, um dos núcleos de fundação do Cinema Novo, do qual Diegues figurava entre os fundadores e líderes, junto com Glauber Rocha, Leon Hirszman, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e grandes nomes do cinema brasileiro. — O Cinema Novo foi um dos movimentos mais belos que aconteceu na cultura brasileira do século vinte. Eu tenho muito orgulho, e acho que foi uma sorte ter participado disso, de ter sido um dos fundadores e um dos membros desse movimento que inaugurou o cinema moderno no Brasil e produziu uma imagem do nosso país para o cinema, numa época em que a televisão não tinha esse poder de hoje — declara Diegues. E foi no CPC, que Diegues dirigiu o seu primeiro filme profissional, em 35 mm, Escola de Samba Alegria de Viver, um dos episódios do longa-­‐metragem Cinco vezes favela. Os outros episódios são dirigidos por Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges. — O episódio fala dos esforços de uma pequena escola de samba para desfilar no carnaval, além dos conflitos entre seu líder e a esposa, envolvida em lutas sindicais. Nós tínhamos uma preocupação, que trago até hoje, que era de mostrar o Brasil, falar de Brasil para o público. Acho que devemos ver o cinema novo como um exemplo de algo importante que se fez no Brasil, único, como o modernismo, como a música, a pintura de Cícero Dias, de Di Cavalcante, que não é reprodutível, mas decisivo na expressão cinematográfica brasileira — diz. Diegues se remete ao cinema novo considerando que não teve exatamente uma linha para ser seguida hoje. Ele surgiu em um momento em que o mundo, o país, tudo era diferente. Um outro tempo, é claro que com situações parecidas de lutas de classes, de dominação, corrupção, etc., mas por ser um outro tempo, naturalmente que em circunstâncias e comportamentos diferente. E esse momento, pleno de perspectivas de profundas transformações, era retratado de alguma forma naquele cinema. 8 — Hoje é muito difícil alguém dizer que está seguindo a linha do cinema novo. E se alguém faz algo igual ao que fazia há pelo menos cinco anos, já é muita falta de imaginação, quanto mais o que se fazia há cinqüenta anos. Além disso, seria desastroso impor aos jovens cineastas um monumento histórico como esse, para reproduzirem — fala convicto. O que e como dizer E completa: — Acredito que as novas gerações de cineastas brasileiros compreendem o sentido do cinema novo e embora não reproduzam e nem devam fazê-­‐lo, estão realmente interessados nessa idéia principal que era a de fazer um cinema autenticamente brasileiro no Brasil. Cacá Diegues nunca abandonou essa idéia. Para ele o Brasil é riquíssimo e precisa ser mostrado: — Eu só sei fazer filmes sobre o Brasil, só me interesso por isso. É onde eu vivo, e onde está o meu próximo mais próximo. O Brasil é a nossa força e a nossa fraqueza ao mesmo tempo. Essa tentativa de entender o país, de compreender o que está se passando, é algo que faz parte da minha vida e não tem como fugir disso. Acredito que o cinema brasileiro busca o mesmo. Depois do episódio de Cinco Vezes Favela, fez seu primeiro longa-­‐metragem, Ganga Zumba (1964). O filme conta a história dos quilombolas de Palmares e o ingresso de Zumbi na chefia da resistência. No nordeste brasileiro, no século 17, alguns escravos de um engenho de cana-­‐
de-­‐açúcar tramam uma fuga para Palmares, na Serra da Barriga, onde havia um território libertado por africanos e filhos de africanos que fugiram da escravidão. Entre eles, encontra-­‐se o jovem Ganga Zumba (magnificamente interpretado por Antonio Pitanga), futuro líder daquela que foi a primeira república de toda a América, inclusive a primeira república revolucionária do continente. Diegues mostrou em Ganga Zumba um Brasil praticamente desconhecido até aquele momento. Hoje se fala muito em Zumbi dos Palmares, mas naquela época não se falava nada sobre Zumbi. A exibição do filme ficou a cargo da rede Bruni, no Rio de Janeiro. Terroristas, do Movimento Anticomunista (MAC) e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), fizeram inúmeras provocações durante a exibição nos dias de lançamento do filme, com casa cheia, no cinema Carioca, praça Saenz Peña, Rio de Janeiro. Mais tarde, esses bandos passariam a invadir teatros 9 espancando o público e os atores. A polícia nunca os interrompia. Simultaneamente, os grandes empresários "nacionais" reclamavam da lei da obrigatoriedade de exibição dos filmes brasileiros. — Tenho muito orgulho de ter colaborado para que Zumbi fosse reconhecido como um herói nacional. Além do Ganga Zumba, vinte anos depois eu fiz Quilombo, uma espécie de continuação do Ganga Zumba, falando também sobre Zumbi, e todo o episódio do Quilombo dos Palmares —diz Cacá. Depois desse longa, vieram A Grande Cidade (1966) e Os Herdeiros (1969). Polemista inquieto, ele trabalhou escrevendo críticas, ensaios e manifestos cinematográficos, em várias publicações diferentes, no país e também no exterior. Não se calou Presente e combativo na resistência intelectual e política ao gerenciamento militar que havia instaurado a ditadura fascista para assegurar o sistema semifeudal e semicolonial no Brasil, assim como um dos alvos da repressão, Diegues foi obrigado a viver no exterior, a partir de 1969, primeiramente na Itália e mais tarde na França — juntamente com sua esposa, a valorosa intérprete da nossa música, Nara Leão. Regressando corajosamente no começo dos anos setenta, ele enfrentou um Brasil mergulhado ainda em uma fase intensa de ditadura militar. Não se intimidou e realizou mais dois filmes: Quando o Carnaval Chegar (1972) e Joana Francesa (1973). Cacá Diegues foi muito perseguido pela censura fascista: — Sofri muita represália na época da ditadura militar. Respondi a vários questionários, inquéritos, e fui obrigado a deixar o Brasil. Meus filmes foram censurados. Mas, com tudo isso, temos uma bela história de resistência pelo que fizemos. Não podíamos usar a repressão como uma desculpa para omitir nossa história e trair o nosso povo. Graciliano Ramos em seu Livro Memórias do Cárcere, que escreveu quando era prisioneiro no Estado Novo, a ditadura de Getúlio, disse que entre a repressão da polícia política e as dificuldades da gramática, sempre há um espaço para podermos nos manifestar. O cineasta prossegue: — Acredito que muitos dos cineastas brasileiros, sobretudo a geração do Cinema Novo, cujo rumo, trajetória, foi de certo modo desviada pelo golpe militar, compreendem isso. Soubemos 10 fazer da repressão uma linguagem, e passamos a fazer um cinema que permitisse ao Brasil ter um cinema vivo e atuante quando acabasse a ditadura militar — acrescenta. Cacá Diegues diz também que durante a ditadura militar, nos anos 70, 80, se fizeram muitas pornochanchadas, sem conteúdo democrático, mas que isso não prejudicou exatamente a imagem do cinema brasileiro como um todo, porque, em maior quantidade, outros cineastas resistiram com seus filmes polêmicos, politizados, fortes em suas mensagens. — Naquele período de opressão sem disfarces, o cineasta não podia fazer o filme que queria, mas realizava o que podia fazer, já que para a cinematografia não é possível se manter aguardando. Se não passar naquele momento, não passa mais. A minha geração de cineastas — do cinema novo, e todos os demais que se conduziram de maneira séria —, fez um cinema perfeitamente cabível naquele momento. Algumas das expressões mais importantes do cinema brasileiro surgiram nesse período. Por exemplo, com Os Inconfidentes do Joaquim Pedro, Eles não usam black-­‐tie do Leon Hirszmam, e muito mais — explica. No que diz respeito à degeneração da moral oficial, Cacá estabelece um paralelo entre dois momentos: — Evidente que havia cineastas fazendo pornô-­‐chanchadas, o que nos enfurecia. Desprezamos porque eram pornográficos. Comparados à moral de hoje, são quase que "Branca de Neve e os Sete Anões". De certo modo, são filmes até muito ingênuos, comédias às vezes sensuais, já que, hoje, crianças de dez anos são obrigadas a ver coisas muito piores na televisão. Em 1976, Cacá Diegues dirige Xica da Silva, um grande sucesso de público no país. Em 1979, realiza Chuvas de Verão. Em 1980, ele nos traz Bye Bye Brasil, também um estrondoso sucesso. Três artistas ambulantes que cruzam o nordeste do Brasil com a Caravana Rolidei, realizando espetáculos para camponeses, cortadores de cana, índios, povo em geral, sempre fugindo da concorrência da televisão que prende as pessoas. A eles se juntam um sanfoneiro e sua mulher, com os quais a Caravana Rolidei atravessa a Amazônia até chegar a Brasília, vivendo diversas aventuras pelas estradas do país. Reconhecido no mundo inteiro, com filmes premiados em grandes festivais e exibidos em todos os continentes, Cacá se sobressai pela narrativa, imagem e unidade de discurso — brasileiras e atualíssimas. Os elencos sob sua direção sempre se consagram com profissionais capazes de libertar o que existe de mais nacional e popular na cultura brasileira. 11 Cena de Ganga Zumba, de 1964, premiado em diversos festivais entre os quais o Festival de Cannes — prêmio da Semana da Crítica — em 1964, o Festival de San Sebastian e o de Huelva na Espanha, em 1965. Já na fase decadente da economia cinematográfica no país, Diegues realizou dois filmes de "baixo custo", todavia de ótima qualidade: Um Trem para as Estrelas, 1987, e Dias Melhores Virão (1989). Quando pela primeira vez após o golpe militar de 1964, a farsa eleitoral sofreu o seu primeiro desmascaramento — com Luiz Inácio que preferiu manter sua candidatura para prejudicar a do Dr. Leonel Brizola, favorecendo o imperialismo e as classes reacionárias internas, no que resultou na eleição da ridícula gerência Collor de Melo —, a produção anual de cinema no Brasil caiu, de cerca de 100 filmes, no final dos anos 1970, para três ou quatro, no começo dos 90. Tentando sobreviver ao desastre, Diegues realiza, em parceria com a TV Cultura, o filme Veja esta canção, 1994, que foi um marco fundador nas relações entre cinema e televisão no Brasil. — Houve uma crise grave no cinema brasileiro na segunda metade dos anos 80. O descontrole da economia no país chegou ao seu ponto mais crítico, acontecendo a manifestação aguda no agravamento da questão do petróleo, a inflação gigantesca etc. Enfim, o país quebrou, foi para uma moratória, e na hora que as pessoas não têm dinheiro nem para comer, muito menos terão para ir ao cinema. Depois, com a chegada de Collor, o cinema já moribundo foi enterrado — explica. É muito triste colocar o povo na tela sabendo que não estará na sala, por ser caro demais para ele Cacá aprofunda: — Com isso, num período de aproximadamente dez anos, o cinema brasileiro desapareceu. No início dos anos 90, por exemplo, foram produzidos no Brasil cerca de três filmes por ano. No período Collor praticamente não se filmou — acrescenta. Com quase cinquenta anos de cinema, Diegues revela ter assistido muitas vezes o cinema brasileiro ser submetido a várias formas de intolerância, de toda a sorte de golpes, o que nunca diminuiu a importância da verdadeira cinematografia brasileira. 12 — O Brasil tem umas das cinematografias mais antigas. É um dos primeiros países do mundo onde se filmou. No entanto, nós nunca tivemos uma história fluente no cinema, mas uma história de ciclos que se abriram e se fecharam. E cada vez que um desses ciclos se fecha, o próximo começa do zero novamente. Esse período entre a crise do petróleo e o Collor, 1990/92, foi um desses que se fechou, e só foi retomar em 1995, quando os primeiros filmes foram produzidos, pela lei do Audiovisual que é de 1994 — revela. — E olha que a lei do audiovisual não é tão aproveitável. E, mesmo assim, foi só surgir e apareceram cineastas do norte, do sul, de toda parte do país, fazendo seus filmes. Tem gente filmando na Bahia, no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, em Minas Gerais, em Brasília, o que prova que o Brasil tem uma grande vocação para o cinema — continua. Quando a nova Lei do Audiovisual é promulgada, Cacá Diegues é um dos poucos cineastas veteranos em atividade, trabalhando em comerciais, documentários e videoclipes. Assim, fez mais três filmes: Tieta do Agreste (1996); Orfeu (1999) e Deus é Brasileiro (2002) — adaptados de grandes obras da literatura e teatro nacionais. Em 2006, realizou O Maior Amor do Mundo, com roteiro original escrito apenas por Diegues, fato incomum em sua carreira. A maioria dos seus filmes foi selecionada por grandes festivais internacionais, como Cannes, Veneza, Berlim, Nova York e Toronto, e exibidos na Europa, USA e América Latina, tornando-­‐o um dos cineastas brasileiros mais conhecidos em todo o mundo. Diegues já recebeu prêmios em vários países e a França lhe concedeu o título da Ordem das Artes e das Letras ( l'Ordre dês Art set des Lettres), da qual é, hoje, membro oficial (officier). Também é membro da Cinemateca Francesa. Arte e repressão O Brasil, como país semicolonial e semifeudal, sempre esteve submetido a uma terrível censura, tanto ideológica quanto comercial. Os grupos que monopolizavam as casas de espetáculos — aliados às distribuidoras ianques, mesmo antes do golpe de abril — promoviam toda a sorte de sabotagens ao cinema brasileiro, desde a distribuição à sonorização, desde a redução do tempo em cartaz ao financiamento de "críticas" na imprensa, insultando a produção brasileira. Quanto às sabotagens econômicas, a coisa não mudou muito. Se a tecnologia avançada tem facilitado a produção, as maiores dificuldades (para o cinema autenticamente brasileiro) estão na distribuição: 13 — O cinema está mudando muito rapidamente e sei que certamente segue uma direção em que essas novas tecnologias digitais serão vitoriosas. Essa tecnologia digital democratiza o cinema, porque está ao alcance de um maior número de pessoas. É claro que existem variáveis de recursos. As superproduções sempre existirão, assim como sempre existirão os filmes mais pobres. Mas, sem dúvida, a tecnologia digital está colocando ao alcance de muitos a manifestação audiovisual — fala. — Por conta disso, está surgindo no Brasil um cinema de periferia, feito em digital, o que é bem oportuno. Os cinemas produzidos nas favelas do Rio de Janeiro, na periferia de São Paulo, em Santa Catarina, em Brasília, enfim, em várias partes do país estão se firmando. O problema hoje não é mais o de realizar, mas como fazer ver esses filmes, porque apesar de se multiplicarem as formas de difusão do audiovisual, seja através da televisão, do DVD, do vídeo cassete, como também dos satélites, essas não se encontram democratizadas— acrescenta. Amo cinema e posso dizer que quase tudo que sei da vida aprendi com ele Conta Diegues, a Ancine — Agência Nacional de Cinema, publicou recentemente um relatório sobre o cinema brasileiro na televisão, constatando que apenas três canais de televisão aberta no Brasil exibiram filmes brasileiros. Rosa Minine A Nova Democracia Disponível em http://www.anovademocracia.com.br/no-­‐35/286-­‐caca-­‐diegues-­‐o-­‐povo-­‐
brasileiro-­‐pelas-­‐cameras Nota do pesquisador: o texto abaixo não tem necessariamente a ver com os filmes em questão, mas implica uma controvérsia na relação que a tradição de esquerda na América Latina tem com o papel do povo no processo histórico. Roberto Schwarz e Caetano Veloso – Parte 2 texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 18/05/2012 Retomando a coluna da semana passada: segundo Roberto Schwarz, Caetano Veloso não usa populismo “na sua acepção sociológica usual, latino-­‐americana, de liderança personalista exercida sobre massas urbanas pouco integradas.” Concordo: Caetano não se refere a Perón ou Vargas. Mas o resto da interpretação de Schwarz me parece menos clara: a “morte do 14 populismo” não surge em “Verdade tropical” para anunciar um novo tempo em que o “povo trabalhador” (quem fala em povo somente trabalhador é Schwarz) não teria mais “papel especial” como “sujeito e aliado necessário a uma política libertadora”. Caetano, acredito, estava pensando com aspas (ele literalmente usou aspas), dialogando com os múltiplos usos e definições do popular (o próprio CPC diferenciava “arte do povo”, “arte popular” e “arte revolucionária”) que circulavam no debate cultural dos anos que antecederam o lançamento de “Terra em transe”, filme que traz cena polêmica do poeta ficcional Paulo Martins decretando “a falência da crença” – assim está escrito em “Verdade tropical” – “nas energias libertadoras do ‘povo’.” A narrativa do artigo de Schwarz se constrói em torno desse trecho de “Verdade tropical” sobre “Terra em transe”, momento que teria sido decisivo para uma “virada” ou “conversão” de Caetano. Antes, era bom moço, “simpático à transformação social, ao método Paulo Freire de alfabetização de adultos e ao CPC”. Depois, passa a se imaginar “livre das amarras políticas tradicionais”, “cultuando divindades antagônicas” e se tornando também “adversário” da esquerda. Schwarz afirma repetidas vezes que sua leitura está baseada no texto, mesmo para desdizer o que Caetano diz (“a despeito do autor, não é isso que o livro mostra”). Então volto ao texto de Caetano. Não sei se há “virada” tão nítida assim. Por exemplo: no relato de suas primeiras conversas com o diretor de teatro Álvaro Guimarães (“quem nos lançou, a mim e a Bethânia, como profissionais de música”), na parte do livro da qual Schwarz mais gosta, o autor de “Verdade tropical” já se distanciava do pensamento de certa esquerda: “ele me agradou em cheio e me interessou ao externar suas críticas ao teatro panfletário do CPC.” Em outro escrito da mesma época, seu primeiro texto longo, publicado em revista universitária baiana, Caetano ataca “uma tendência equívoca da inteligência brasileira”: “A julgar pelos artigos histéricos reunidos em livro pelo Sr. José Ramos Tinhorão [...], somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de fazer música no Brasil.” Desafiando um pensamento nacional-­‐
popular, afirma que o “povo (e aqui podemos dar à palavra povo o seu sentido mais irrestrito, isto é, a reunião das gentes) desmaia aos pés do jovem industrial Roberto Carlos”, enquanto lançamentos do samba classificado como autêntico fazem sucesso “restrito aos universitários”. Claro que Caetano queria, bem antes de “Terra em transe”, combater esse tipo de populismo, culto de um “povo” irreal (que não deveria gostar de jovem guarda), cujo projeto, no Brasil, incluía apagar as lições de João Gilberto. Contudo, a “morte do populismo” não foi encarada com alegria. Para Caetano, foi uma “hecatombe”. Quem escreve “hecatombe bem-­‐vinda”, e fala das “razões que fizeram que Caetano festejasse a derrocada da esquerda”, é Schwarz. A narrativa de “Verdade tropical” 15 tem tom de tragédia, não de festa. Não foi “júbilo ante o incêndio da UNE”, como escreve Schwarz, mas sim, nas palavras de Caetano, “estranho júbilo de entender com clareza suas razões [de Rogério Duarte -­‐ Schwarz o apresenta apenas como Rogério -­‐ que havia dito que o prédio da UNE deveria sim ter sido queimado], e mesmo de identificar-­‐me com elas”. Porém, e isso é o mais importante, esse júbilo não era sorridente, ou experimentado sem dor. (Já li “Verdade tropical” como uma virada, mas com outro sentido, do antipop para o pop – e nela também não há nada festivo. Cito trecho angustiado, na minha leitura mais central que o comentário sobre o filme de Glauber Rocha: “Imagine-­‐se com que força eu não tive que pensar contra mim mesmo para chegar a ouvir Roberto e Beatles e Rolling Stones – e mesmo Elis – com amor.”) O que considero mais original no artigo de Schwarz, para além do texto do Caetano (mesmo que demonstrando satisfação ao reconhecer em “Verdade tropical” elementos para provar sua tese), é sua descrição de uma idade do ouro da cultura brasileira ali por volta de 1964, quando “a invenção artística radical se sintonizou com a hipótese da revolução e fez dela seus critérios”. Os grupos de tolo nacionalismo que depois vaiaram Caetano não deveriam ser considerados hegemônicos na esquerda dessa época. Contudo, Schwarz reconhece: “é possível que o saldo do período, avaliado nas obras, não sobressaia particularmente.” Então veio o tropicalismo, com suas obras brilhantes, e bagunçou essa frente anticapitalista, dando a tudo a feição de “grande mercado”. Schwarz não se deixa arrebatar nem pela caetanave: enxerga na alegria – agora sim – de Caetano, ao ser recebido, depois do exílio, por um trio elétrico espacial batizado com seu nome, como “abdicação”. No final, tudo parece apenas mais um capítulo daquilo que o próprio Schwarz reconhece ser “uma comédia de desencontros” entre a contracultura e arte engajada. Não sei se devo torcer pelo encontro. O mundo ficaria chato sem novos rounds da luta entre Schwarz e Caetano. Hermano Vianna Disponível em http://hermanovianna.wordpress.com/2012/05/19/roberto-­‐schwarz-­‐e-­‐caetano-­‐
veloso-­‐parte-­‐2/ Que Viva Mexico! (1932), de Sergei Eisenstein Que Viva México! Que viva México! (em russo: Да здравствует Мексика!, em espanhol: ¡Qué Viva Mexico!) foi um projecto cinematográfico não terminado do cineasta vanguardista Sergei Eisenstein, sobre a cultura do México da época pré-­‐hispânica até à revolução mexicana. A produção foi marcada 16 por dificuldades e finalmente abandonada. Jay Leyda e Ziba Voynow denominam-­‐no como o seu maior projecto de filme e maior tragédia pessoal.[1] Eisenstein chegou ao México em Dezembro de 1930, patrocinado por Upton Sinclair e pela sua esposa Mary Kimbrough Sinclair. Em 1933, Eisenstein, preocupado pela ingerência do sobrinho da Sra. Sinclair, pediu aos Sinclair mais fundos, mas foram-­‐lhe recusados. Devido a se esgotar o visto do passaporte, Eisenstein viu-­‐se obrigado a regressar à União Soviética por Nova Iorque enquanto os Sinclairs receberam o filme em Los Angeles. O material original nunca foi montado. O material filmado foi reconstruído por outros sob os títulos de Thunder Over Mexico, Eisenstein in Mexico, Death Day e Time in the Sun. Em 1979 Grigori Aleksandrov, a partir dos storyboards originais de Eisenstein, compilou Da zdravstvuyet Meksika!, uma aproximação à montagem que aquele planeara. No início do século XX, muitos intelectuais e artistas associados aos movimentos vanguardistas europeus estavam fascinados pela América Latina em geral e pelo México em particular: para André Breton, artistas francês e líder do movimento surrealista, por exemplo, o México era quase uma incarnação do surrealismo.[2] Como o historiador do cinema David Bordwell refere, "tal como muitos esquerdistas, Eisenstein estava impressionado com o México por se ter aí desenrolado uma revolução socialista em 1910".[3] O seu fascínio pelo país datava pelo menos de 1921, quando aos 22 anos de idade "a sua carreira artística começou com um tópico mexicano" quando encenou no teatro uma versão da história de Jack London O Mexicano, em Moscovo.[4] A investigadora de cinema Inga Karetnikova enquadra esta produção como um exemplo clássico da estética avant-­‐garde, um exercício formal mais que um documentário realista; mas "indirectamente," argumenta, "ele recreou a atmosfera mexicana". Sobretudo, Eisenstein viu na revolução mexicana uma instância de um "idealismo fervoroso" que era também "próximo de Eisenstein, tal como o era para toda a geração de vanguardistas soviéticos do início da década de 1920".[5] Alguns anos depois, em 1927, Eisenstein teve a oportunidade de encontrar o muralista mexicano Diego Rivera, que estava de visita a Moscovo para as celebrações do décimo aniversário da Revolução Russa de 1917. Rivera tinha visto o filme mais conhecido de Eisenstein, O Couraçado Potemkine, e louvara-­‐o ao compará-­‐lo ao seu próprio trabalho como muralista ao serviço da revolução mexicana; também "falou obsessivamente da herança artística mexicana", descrevendo as maravilhas da arte e arquitectura dos antigos Astecas e Maias.[6] O cineasta soviético escreveu que "a semente para o interesse naquele país (…) alimentada pelas histórias de Diego Rivera, quando visitou a União Soviética (…) transformou-­‐
se num imenso desejo para viajar até lá".[7] 17 Análise A grande pergunta sobre o que teria sucedido realmente se Eisenstein tivesse terminado a obra, ficará para a história. Trata-­‐se de uma grande ilustração que, por ser representada de uma maneira artística, fez dos costumes mexicanos uma obra de arte à mexicana. O prólogo do filme explica qual foi a contexto e o motivo de não se ter finalizado a obra, e como é que foi construído, baseando-­‐se nos dados que Eisenstein deixou, procurando assim conservar o estilo do realizador. Tem um fio condutor muito interessante, que vai introduzindo o espectador nos aspectos e características dos mexicanos, levando-­‐o de uma história a outra entrelaçando-­‐as com os aspectos culturais locais. Uma sequência muito interessante que exemplifica a forma de interligar as cenas é quando a tehuana por fim compra o seu colar de moedas de ouro e o põe, havendo logo um esbatimento da cena para continuar onde um jovem está numa maca, mas com a forma do colar. A maneira de interligar as cenas e as formas artísticas que representam é surpreendente. Reflecte o grande planeamento que se teve para realizar o filme, com grande esforço e dedicação por parte de toda a equipa que o realizou. Quando aos ângulos que se fizeram durante o filme, Eisenstein deixou claro como representa a divindade, as filmagens que fez dos sacerdotes e do altar da Virgem foram contrapicadas, deixando em claro que essas imagens têm um significado e uma representação de autoridade. A construção simétrica é impressionante, sempre buscando deixar as coisas centradas, fazendo com que o filme no global tivesse muita qualidade, com uma muito boa fotografia. Além do uso da montagem, faz uso do close up, tomas detalhadas, e é como se como fosse um documentário da vida mexicana, com a representação que faz da união íntima entre os casais através da cena dos pássaros. O som está de acordo com as imagens, deixando uma sensação que representa o momento. A capacidade de produzir um filme assim mostra o resultado de um grande esforço. Tendo em conta que a cultura mexicana é muito conservadora e no filme se vêem algumas cenas que podem considerar-­‐se como indecentes, são tratadas com arte, com uma grande estrutura e com uma fotografia de elevadíssima qualidade. Referências Leyda e Voynow 1982, p. 61 May Castleberry, America Fantastica: Art, Literature, and the Surrealist Legacy in Experimental Publishing, 1938–1968 [1] The Museum of Modern Art, acesso em 2008-­‐05-­‐10 Bordwell 1993, p.19 18 Karetnikova 1991, p.5. Ronald Bergan afirma que Eisenstein era apenas o encenador, e data a produção em 1922, mas também enfatiza que o México tinha "cativado a imaginação [de Eisenstein]" desde o seu envolvimento nessa peça teatral (Bergan 1997, p.217). Karetnikova 1991, p.5-­‐6 Karetnikova 1991, p.8-­‐9 Citado em Karetnikova 1991, p.10 Leyda e Voynow 1982, p.61 Bordwell 1993, p.202-­‐203 a b Bordwell 1993, p.203}} Eisenstein 1972, p.28 Wikipedia Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Que_Viva_M%C3%A9xico! Que Viva México! (Da Zdravstvuiet, Meksika!, 1931), de Sergei Eisenstein É interessante reparar Que Viva México! como mais um expoente de uma tendência na obra de Eisenstein posterior a Outubro (1927) e iniciada em A Linha Geral (1928), em que o ideal da montagem dialética é consoante a um aspecto dotado de um alto teor lírico, o que rescalda também em planos longos, até pouco tempo malditos pelo cineasta. Uma câmara mais calma, que divide a sua antiga função com uma nova, a de observar. Isto pode ser fácil de compreender, se lembramos de uma das polêmicas que lhe envolveram devido a notabilidade mundial angariada após Potemkin (1925): o debate bastante polarizado entre Bela Balazs e Eisenstein. O teórico húngaro defendia a busca de mecanismos que revelassem a subjetividade através da objetividade da fotografia dentro de um único plano, conseguida, claro, se este último estivesse devidamente contextualizado na seqüência montada; o russo, por sua vez, concordava com ele no aspecto do primado da montagem, mas preferia propor uma significação através da dialética entre planos, a montagem intelectual. Os close-­‐ups da jovem Concepción ou os longos planos da preparação das vestes de toureiro mostram então um Eisenstein que se deixou interferir neste sentido. O filme será assim, apazigüe, até que a ferida da Revolução seja tocada. No início, o prólogo, vemos imagens estáticas das pirâmides do México antigo e de suas estátuas deterioradas, erigidas pela nação americana mais desenvolvida da pré-­‐colonização. Aqui já temos a noção de que a história do México até à Revolução de 1910 será contada desde o mais longínquo início. Há uma enumeração de aspectos das edificações, enquadradas junto a mexicanos nativos, fenotipicamente puros, descentes diretos das tribos que ali 19 habitavam. O rigor que tange as composições cria uma esfera sensorial que nos distancia através do êxtase. A história aqui é operística e o aspecto da modernidade é ausente – como o será também no restante do filme. Enquanto isso, uma voz over lê o texto escrito por Eisenstein: “O tempo no prólogo é eterno. Tudo o que acontece aqui pode ter acontecido há vinte anos atrás, ou há mil anos atrás. Pedra. Deuses. E o Povo. [...] em um lugar onde o passado domina o presente”. Com estes caracteres, o filme promove a sua tônica que faz parecer que a história é contada como se estivesse acontecendo no momento da documentação. E o fascínio vem do fato de nada ser propriamente fictício. Os cenários são reais e os figurantes que nele vivem são nativos. A partir daí o filme progride episodicamente, respeitando o ideal de verticalidade da representação construtivista de Eisenstein, referenciando também outras épocas e regiões do país, concernentes a períodos posteriores da História, por exemplo: temos o cotidiano das cantadoras de Sandunga e o casamento de uma delas; saltando para outro momento, para lembrar a conquista espanhola, temos uma longa seqüência de tourada, na íntegra, a primeira filmada no México. Nestes retratos, todas as ações que vemos os figurantes levar frente à câmara são meras execuções de ritos folclóricos e religiosos, absolutamente. Isto retira das pessoas que vemos qualquer possibilidade de subjetivação, já que estas fazem tudo automaticamente, levadas apenas pelo motivo ritualístico, lacuna talvez compensada pela descrição que Eisenstein as entrega. O cineasta, a quem a xenofobia não interessa, investiga os cânones da cultura popular, e ao mostrá-­‐los sob diferentes perspectivas e variações, promove uma reiteração que, aliado ao estupefante tratamento dado pela fotografia de Eduard Tissé, busca valorizar o povo em questão através do legado cultural que construiu em milênios. Os ideais virtuosos de humildade e trabalho são então atribuídos a eles por tabela. Conseguido isto, é chegada a hora de se instaurar o contraponto vilanesco dos colonizadores -­‐ mote maior da causa revolucionária -­‐ para então representar, numa empreitada alegorista, o que interessa a Eisenstein esclarecer no espectro da História. Assim como em Potemkin ou em A Greve (1924), aqui, mais uma vez, a Revolução não é representada através da reprodução de acontecimentos históricos datados e grandiloqüentes (Griffith). Se em Potemkin o que gera a revolta é simplesmente a displicência do capitão do encouraçado com relação ao pedaço de carne putrefeita que a cozinha destinou para alimentar a tripulação -­‐ o que reverbera depois em atitudes mais violentas -­‐, em Qué Viva México! é o abuso sexual da namoradinha de um criado, por parte de um hóspede do proprietário, que ensejará uma movimentação rebelde em toda a vassalagem. 20 A seqüência que mostra a rebelião é quem quebra o paradigma da ponderação dos planos pelo lirismo. As lentes não mais se preocupam com os dados culturais do México pré-­‐
revolucionário, e os longos e estonteantes planos dão lugar, finalmente, aos velhos faux raccords que consagraram seu autor. A evocação das classes dominantes no filme se faz lançada a partir da iconografia de uma imagem de Porfírio Diaz, para qual um dos convidados de uma festa do proprietário da fazenda Tetlapayac faz honrarias. Os gestos dele e dos demais convidados são grotescos e ganham a mesma proporção alegórica que é dada por Eisenstein, em toda a sua obra, às personagens oriundas deste estamento social. É após uma batalha armada, onde o proletariado perde e o seu líder mais dois rebeldes são enterrados até a cabeça -­‐ cada uma pisoteada por cavalos assustados -­‐, que a fita acaba, interrompida por desentendimentos entre Eisenstein e o roteirista hollywoodiano Upton Sinclair, que havia topado financiar o projeto. A obra, como diz o montador Grigory Alexandrov na apresentação do filme, "pertence ao mundo". Marcos Blasius Opsignos Disponível em http://oopsigno.blogspot.com.br/2007/03/que-­‐viva-­‐mxico-­‐da-­‐zdravstvuiet-­‐
meksika.html As listras do sarape, as linhas do engenheiro e a rã rechonchuda [Texto escrito para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro como introdução à leitura de A forma do filme e O sentido do filme de Sergei Eisenstein e à discussão do material não montado de ¡Que viva México!] Em textos escritos entre 1945 e 1946 Sergei Eisenstein se refere ao México como o espaço e o tempo em que surgiu sua paixão pelo quadro, seu interesse pela forma interna do plano. Conta que em seus primeiros filmes se encontrava especialmente interessado nos movimentos puramente matemáticos da idéia de montagem e que por isto dava menor atenção às linhas de composição de cada um dos planos, concebidos então como partes que só ganhariam sentido quando o todo que ajudavam a formar fosse percebido. “Minha paixão pelo quadro veio mais tarde, e embora possa parecer estranho isto é absolutamente lógico e natural. Vale lembrar o que diz Engels: o que primeiro chama a atenção é o movimento, e só depois aquilo que se move”. [Como aprendi a desenhar e Como me tornei um diretor de cinema, reunidos no primeiro volume das Memórias editadas em francês em pela Union Générale d‘Éditions em associação com o Cahiers du Cinéma na coleção 10/18, Paris 1978] 21 No México, passeando tanto pela pintura mural mexicana – Rivera, Orozco e Siqueiros – quanto pelas formas de arte popular mexicana, “os instrumentos primitivos, a ornamentação dos utensílios” e as gravuras de José Guadalupe Posada (Eisenstein conta “ter percorrido avidamente com as mãos e os olhos” as gravuras de Posada); influenciado tanto pela “estrutura linear, surpreendentemente pura, da paisagem”, quanto pelo “contorno arredondado dos sombreros dos peões, pelo branco chapado e pelo retangular de suas roupas, que, por sua cor e por suas linhas retas, parecem ser o primeiro passo, a tabula rasa, de todas as roupas”, no México Eisenstein redescobre o desenho assim como redescobre o plano. Desenha muito e desenha muito rapidamente – algo próximo de uma escrita automática, comenta o pintor Jean Charlot (que em 1931 viu Eisenstein desenhando em diversas ocasiões), num depoimento para o livro Sergei M. Eisenstein, a biography de Marie Seton (The Bodley Head, Londres, 1952): “Ele desenhava tão rapidamente quanto necessário para não deixar escapar os elementos subconscientes. Planejava o número de desenhos de cada série e a ordem em que eles seriam feitos; considerava cada um deles como um fotograma de uma imaginária tira de um filme ou uma anotação visual de seu pensamento. Costumava dizer que depois iria analisar os desenhos para descobrir o que estava pensando e como estava pensando”. Os desenhos, portanto, eram desenhados para o desenhista. Não assim como os desenhos costumam ser feitos, para serem vistos por outros. Nem assim como os desenhos costumam ser feitos quando quem desenha desenha para fazer um filme: nem desenho para uma exposição nem desenho de produção. Aqui o espectador primeiro, o espectador a quem o desenhista se dirige em primeiro lugar é o próprio desenhista. Anotação pessoal, modo de registrar o pensamento no instante em que ele construía a si mesmo, se articulava; desenho para tornar consciente o processo de criação, para o diretor/desenhista esclarecer para si mesmo como era o filme que estava em sua cabeça, ele começava a fazer o filme no papel, a lápis. Quinze anos mais tarde, ao escrever sobre os desenhos feitos México, Eisenstein disse que eles eram “linhas para serem vistas como rastros de uma dança. O desenho e a dança nascem, é claro, da mesma fonte e não passam de duas corporificações do mesmo impulso”; disse que eles refletem a busca “por um estágio de purificação interior, a busca de uma linha mais pura, mais matematicamente abstrata” – um efeito “particularmente vigoroso quando relacionamentos extremamente sensuais entre figuras humanas, em geral em situações estranhas e extravagantes, são desenhadas por meio dessa linha abstrata, intelectualizada”; disse que os desenhos eram um modo de perguntar se ele já não dedicara um longo tempo e espaço de seu trabalho às questões de montagem e se não deveria, então, “consagrar toda 22 uma obra (do ponto de vista da pesquisa formal) à questão da natureza da composição do quadro”. Desta preocupação, entre outras, mas desta muito especialmente, nasceu ¡Que viva México!, projeto imaginado e parcialmente filmado em 1931 para discutir a questão do plano e que, por amarga ironia, sobrevive como um conjunto de planos. Interrompido ao meio, as imagens filmadas não puderam ser montadas por Eisenstein. “Como uma espécie de punição por não ter deixado quase nenhum lugar para a montagem neste projeto”, disse Eisenstein em 1945, “ele apareceu diversas vezes em montagens que interpretam diferentemente os planos, montagens feitas pelos mais diversos montadores. Estas versões suportam o olhar sem dúvida porque o filme foi, antes de mais nada, pensado do ponto de vista do plano”. Eisenstein jamais teve em mãos os copiões de ¡Que viva México!, que viu uma única vez, em Nova Iorque, depois da interrupção do projeto, numa escala da viagem de volta para Moscou. As imagens foram utilizados em diferentes filmes nos Estados Unidos – alguns até assinados em seu nome sem que ele tivesse sido sequer consultado sobre a montagem, como Thunder over México, 1933, 72 minutos de projeção, produzido por Sol Lesser. Nos créditos, Harry Chandlee aparece como Editorial Supervisor; Donn Hayes e Carl Himm como montadores; Kate Gartz, S. Hillkowitz, Otto Kahn, Hunter Kimbrough, Mary Craig Sinlair e Upton Sinclair como produtores, Eduard Tissé como fotógrafo, Alexandrov como roteirista, Eisenstein como diretor. O mesmo ocorre em S. M. Eisenstein in Mexico, 1933, 50 minutos de projeção, produção de Sol Lesser, montagem de Don Hayes e Harry Chandlee. E ainda em Death Day, 1934, 17 minutos de projeção, produção de Lesser e montagem de Don Hayes. Veio em seguida o filme de Marie Seton, Time in the Sun, de 1939, 55 minutos de projeção, com montagem de Paul Burnfold; e Mexican Symphony, série de seis documentários didáticos de curta-­‐metragem produzidos pela Bell & Howell em 1942, com montagem de William Kruse: Mexico Marches, Conquering Cross, Idol of Hope, Land and Freedom, Spaniard and Indian e Zapotec Village. Finalmente, em 1957, a produção da Film Library do Museum of Modern Art New York, 1959, Eisenstein’s Mexican Film: Episodes for Study com cerca de três horas de projeção ( a few fragmentary sequences, adverte um letreiro depois do título), de Jay Leyda, com os planos que puderam ser preservados tal como filmados. Além destas versões americanas (não as únicas, mas as mais conhecidas), pelo menos duas montagens foram feitas na então União Soviética depois da cessão, pelo MoMa de New York, dos negativos originais a Moscou: ¡Que viva México! / Zdravstuyer Meksika (1978, 90 minutos de projeção), com supervisão de Grigori Alexandrov e de Nikita Orlov; e, Sergei Eisenstein 23 Meksikanskaya fantasiya / A f antasia mexicana de Eisenstein (1998, 99 minutos de projeção), com supervisão de Oleg Kovalov. A montagem de Jay Leyda reúne os planos colados na ordem da filmagem, respeitando-­‐se o tempo original de cada tomada, sem qualquer tentativa de edição ou acompanhamento sonoro, separados apenas por letreiros indicativos das seqüências a que pertencem. Todas as outras edições buscam interpretar os planos a partir dos modelos de narrativa da indústria audiovisual então dominantes ou a partir dos modelos de montagem dos filmes mudos de Eisenstein – duas soluções igualmente distantes do que ele pretendia. Ele não deixou uma anotação para orientar como deveria ser a montagem de ¡Que viva México!, nem mesmo um roteiro detalhado que pudesse servir de guia. Um primeiro esboço de roteiro, datado de 15 de abril de 1931, e o tratamento mais detalhado enviado pouco depois a Upton Sinclair (publicado na revista Experimental Cinema, número 5, Nova Iorque, 1934) são “intencionalmente suavizados, porque se dirigiam ao grupo que, em torno de Sinclair, deveria financiar o projeto” e também porque era preciso passar pelo “olhar desconfiado da censura governamental do México na época” – escreveu Eisenstein em suas Memórias; “as referências a problemas sociais entre fazendeiros e peões, repressões e revoltas, geravam descontentamento”. Não existem anotações precisas sobre como deveria ser montado o material, mas diversas observações feitas antes e depois da filmagem, a visão dos desenhos feitos no México e o conhecimento do material assim como ordenado por Jay Leyda, sugerem uma solução mais próxima de Ivan, o terrível – a montagem feita para o plano – que dos filmes mudos de Eisenstein – o plano feito para a montagem. A montagem em função do plano: entre o final do cinema mudo e o começo do sonoro, ¡Que viva México! começa a desenhar o plano cinematográfico não só como elemento do conflito a ser obtido pela montagem mas também como um espaço dotado de um conflito interno, como um espaço a ser dramaturgicamente explorado em profundidade, feito para se entrar nele, jogar-­‐se dentro dele, ou saltar para trás, sair dele, ampliar o campo de visão. O plano em função da montagem: Greve (1924), O encouraçado Potenkin (1925) e Outubro (1928) eram já bastante conhecidos e admirados na Europa e nos Estados Unidos quando Eisenstein deixa a União Soviética, em agosto de 1929, pouco antes da estréia de A linha geral ou O velho e o novo, filme que ele começara a filmar dois anos antes e interrompera para realizar Outubro. Viaja em companhia do fotógrafo, Eduard Tissé, e do assistente de direção, Grigori Alexandrov. Os três (mais o diretor Pudovkin) tinham divulgado em julho de 1928 um texto a favor do cinema sonoro e das novas possibilidades de montar contrapontos audiovisuais. Saíam sob o pretexto de estudar as técnicas de cinema sonoro no ocidente. 24 Na Europa (na Suiça, Alemanha, Inglaterra e França, período atribulado pelas freqüentes proibições e pedidos de expulsões do país) Eisenstein participa do primeiro congresso de cinema de La Sarraz, faz conferências em universidades alemãs, inglesas e francesas, e encontra-­‐se com artistas e intelectuais europeus (Käthe Kollwitz, Paul Éluard, Blaise Cendrars, Albert Einstein, John Grierson, James Joyce, Bernard Shaw, Le Corbusier) e em abril de 1930, negada a autorização para permanecer na França, assina um contrato com a Paramount e segue para os Estados Unidos. Em Hollywood, Eisenstein tem seu contrato com a Paramount rompido em outubro de 1930, depois de propor e ver recusado uma série de projetos [entre eles: Ouro de Sutter/ Sutter’s Gold, baseado em Blaise Cendrars, e Uma tragédia americana / An American Tragedy, baseado em Theodore Dreiser, escritos com a colaboração de Grigori Alexandrov e Ivor Montagu, e publicados no livro With Eisenstein in Hollywood, de Ivor Montagu, International Publishers, Nova Iorque, 1969.] Dois meses depois, em primeiro de dezembro de 1930, assina um contrato com o escritor Upton Sinclair para a produção de um “filme de tema não político” sobre o México. Ao lado de um estudante mexicano, Agustín Aragón Leiva, como guia e tradutor, e do cunhado de Sinclair, Hunter Kimbrough, como produtor, Eisenstein, Tissé e Alexandrov chegam ao México no dia 9 de dezembro (com uma carta de recomendação assinada pelos diretores Robert Flaherty e Dudley Murphy). Começam a filmar no dia 13 (a festa de Nossa Senhora de Guadalupe e uma tourada), mas são detidos pela polícia: filmavam sem autorização oficial. Liberados depois da indicação de um supervisor mexicano que deveria acompanhar a filmagem, o crítico de arte Adolfo Best Maugard, Eisenstein retoma o trabalho em janeiro de 1931: viajam para Oaxaca (no dia 14 Kimbrogh envia um telegrama para Sinclair: “Eisenstein and boys leaving immediately aeroplane for Oaxaca. Earthquake”) e realizam um documentário de dez minutos que, uma semana mais tarde, no dia 22 de janeiro, é exibido nos cinemas do Distrito Federal: Terremoto em Oaxaca. Entre janeiro e abril viaja muito, da Cidade do México para Tehuantepec, para o Norte e para o Sul do país até chegar à fazenda Tetlapayac. Neste período é que se define a idéia de ¡Que viva México! Antes de começar a filmar, e mesmo durante as filmagens, desenha muito. A lápis, em folhas do papel de carta do Imperial Hotel da Cidade do México, no papel de carta de Julio Saldivar, o proprietário da fazenda Tetlapayac, por trás de uma página datilografada com idéias para o filme, em qualquer pedaço de papel disponível: observações soltas – os peões de Merida, Xochimilco, Tehuantepec ou de Tetlapayac; retratos de amigos – o pintor Gabriel Fernández Ledesma; e, principalmente, séries desenhos em torno de um mesmo tema: O destino do peão 25 revoltado, O beijo de Judas, Salomé e São João Batista, David e Golias, O suicídio de Werther, O barroco mexicano, José e a mulher de Potifar, A morte do touro, Verônica, O Cristo crucificado. Algumas destas séries – Sansão e Dalila e A morte do rei Duncan, por exemplo – contam com mais de cem desenhos. Pelo movimento da linha no papel, pela angulação e dinamismo das figuras desenhadas, pela sugestão de uma possível seqüência ou montagem entre eles, os desenhos parecem cinema. De um certo modo, são parte integrante do projeto ¡Que viva México!, cinema no papel, imagens tão cinematográficas quanto aquelas que registrou em película mas não pode montar. Os desenhos não são simples diagramas utilitários para preparar a filmagem, têm vida própria, sim, mas talvez possam ser vistos também como um diário da filmagem. Do mesmo modo que a série O destino do peão revoltado parece uma anotação do que o diretor pensava enquanto preparava Maguey, a segunda das quatro histórias que iria contar em ¡Que viva México! (ou uma anotação do que pensava da punição sumária imposta a um trabalhador índio da fazenda Tetlapayac, história real que ao que tudo indica inspirou a seqüência da morte de Sebastian), assim, da mesma maneira, é possível que séries como O beijo de Judas, David e Golias, Sansão e Dalila, A morte do rei Duncan e O suicídio de Werther possam ser vistas como anotações do que se passava na cabeça do diretor na medida em que as pressões contra a conclusão do projeto se tornavam mais e mais fortes. Mas, sem dúvida, os desenhos importam primeiro e essencialmente como desenhos, e desenhos marcados por uma qualidade cinematográfica: cinematisme – a palavra criada pelo diretor é a que melhor qualifica seus desenhos. Eisenstein desenhara antes e voltará a desenhar depois do México. Como conta em suas Memórias: “Deixe-­‐me começar por dizer que jamais aprendi a desenhar. É por isso que desenho e é assim que desenho”, guiado pela lembrança do engenheiro Afrosimov, amigo de seu pai, que costumava fazer surgir, “diante dos olhos de espectador deliciado” do menino Eisenstein, toda a sorte de bichos -­‐ cachorros, gatos e, ele se lembra em especial, uma rã rechonchuda de pernas arqueadas – “desenhados com uma linha que pula e se move para traçar o contorno do objeto e, magicamente, torná-­‐lo visível em traços de giz branco sobre o fundo azul escuro”. Eisenstein desenhara antes, movido pela lembrança da linha como um rastro do movimento, para por meio do desenho pensar o filme que iria fazer. Mas o que dá um caráter especial aos desenhos feitos sob o impulso de ¡Que viva México! é o fato de que, mesmo quando se referem a cenas do filme (as notas gráficas para a filmagem da festa de Corpus Christi ou para a filmagem da morte de Sebastián, enterrado vivo, de pé, até os ombros, a cabeça descoberta para ser pisoteada por cavalos), tais esboços não são registros utilitários para a composição dos planos, figurinos, cenários, ou gestos dos intérpretes. São um outro modo de dar forma ao 26 tema. São, ao mesmo tempo, inteiramente independentes e intimamente ligados ao filme que teria quatro histórias, Sandunga, Maguey, Fiesta e Soldadera, um prólogo, um epílogo e três canções populares, Sandunga, El Alabado e Adelita – no filme “nem tanto como músicas, mas como expressões dotadas de significado próprio na cultura mexicana”. Os desenhos são independentes e simultaneamente frutos deste projeto de discutir (do ponto de vista formal) o plano e (do ponto de vista temático) o rompimento do plano, como “o homem vai além do limite imposto pela morte ao se realizar enquanto um ser social, coletivo”. Embora tenha realizado filmagens entre janeiro e março, a idéia do filme parece ter-­‐se concretizado apenas em abril, depois da chegada a Tetlapayac, de acordo com a carta (15 de abril de 1931) enviada a Upton Sinclair. O texto que define a estrutura de ¡Que viva México! começa com uma pergunta, “Sabe o que é um sarape?”, para logo explicar: “poderia ser o símbolo do México” porque as culturas mexicanas coexistem tal como as listras do sarape, próximas umas das outras e formando contrastes violentos. E explicar que “nenhum argumento ou história única poderia ser imposta a este sarape sem ser falsificadora ou artificial” – daí a decisão de “tomar a constrastante independência de suas cores como motivo para a construção de um filme em seis partes” de diferentes características, personagens e paisagens. Diferentes, mas “reunidas pela unidade do tecido”, uma construção rítmica e musical que envolve a idéia do círculo eterno tal como desenhado pela cultura mexicana: “A morte. Crânios humanos. Crânios de pedra. Deuses astecas e terríveis divindades de Yucatan. Imensas ruínas. Pirâmides. Um mundo que foi e não é mais. Seqüências intermináveis de pedras e de coluna. E rostos. Rostos de pedra. E rostos de carne e osso. O homem de Yucatan de hoje. O mesmo que viveu há milhares de anos. Imutável. Idêntico. Eterno. E a grande sabedoria do México com respeito à morte. A unidade entre a vida e a morte. O desaparecimento de um e o nascimento do seguinte. O círculo eterno. A sabedoria ainda maior do México que consiste em festejar este círculo eterno. O dia dos Mortos no México. Dia de festa e de alegria. Dia em que o México provoca a morte e ri -­‐ a morte é apenas uma etapa em direção a um outro ciclo de vida”. Os fatos em torno do cancelamento do projeto, em janeiro de 1932, são razoavelmente conhecidos mas não explicam muito: Upton Sinclair teria interrompido o trabalho antes da filmagem do episódio Soldadera porque o filme teria ultrapassado o orçamento (50 mil dólares) e o tempo de filmagem (quatro meses) previstos; ou porque considerava absurda a repetição de tomadas de um mesmo plano; ou porque recebeu um telegrama de Stalin com a informação de que Eisenstein perdera “a confiança de seus camaradas na União Soviética” e passara a ser considerado “um desertor”: “as pessoas não se interessam mais por ele”. Por um 27 destes motivos, ou pela soma de todos eles e a presença de alguns outros mal-­‐entendidos, ¡Que viva México! foi interrompido. Eisenstein não filmou em demasia, comenta Ivor Montagu em With Eisenstein in Hollywood, “nem gastou demais; na realidade trabalhou economicamente, como demonstram as imagens que puderam ser recuperadas”; mas como nem Eisenstein nem Sinclair sabiam prever com exatidão o necessário para a realização de um filme no México, a previsão inicial revelou-­‐se insuficiente. E mais, prossegue Montagu, Sinclair errou ao dar a seu cunhado, Hunter Kimbrough, uma função que ele desconhecia por completo, a de produtor executivo. No México para controlar a produção, Hunter não compreende porque cada ação tem de ser filmada mais de uma vez. O material, enviado para revelar em laboratórios nos Estados Unidos, começou a parecer repetitivo e desordenado para Sinclair, que começa a se perguntar se Eisenstein tinha enlouquecido (“Is the man mad?”). Na verdade, diz Montagu, Eisenstein filmou bem menos, por exemplo, do que Robert Flaherty para O homem de Aran / Man of Aran, feito quase ao mesmo tempo. O desentendimento se agravou no período em que Eisenstein ficou retido no México à espera de um visto para entrar nos Estados Unidos e com a apreensão pela alfândega norte-­‐
americana dos desenhos feitos no México, considerados pornográficos, degenerados. “Os funcionários da alfândega abriram as malas para inspecionar o que elas continham e descobriram as coisas mais sujas e degradantes que já tinham visto”, conta Sinclair em carta citada por Marie Seton em Sergei M. Eisenstein, a biography. Só três meses depois de interrompidas as filmagens o diretor conseguiu um visto de trânsito para viajar para a União Soviética via Nova Iorque e uma promessa, jamais efetivada, de envio dos copiões para que ele pudesse concluir o filme. Eisenstein viu o material filmado uma única vez, numa projeção em Nova Iorque, em maio de 1932, pouco antes de seguir viagem para Moscou (em companhia de Bertolt Brecht, convidado por ele para mostrar o filme que realizara na Alemanha com Slatan Dudow, Kuhle Wampe / Barrigas frias). Os “pornográficos e degradantes” desenhos mexicanos ficaram retidos na alfândega. O material filmado foi vendido em lotes pelos produtores para a montagem de documentários sobre o México. De retorno à União Soviética, Eisenstein desenvolveu um sem número de projetos que não se concretizaram (entre eles, uma adaptação de Ulysses de Joyce) e teve um filme censurado depois de concluídas as filmagens, O prado de Bejin, em 1935. Só seis anos depois, em 1938, pode concluir um outro projeto, Alexandre Nevsky. Projeto inacabado, ¡Que viva México! – bem precisamente: o conjunto de imagens filmadas e desenhadas que Eisenstein produziu no México – é provavelmente uma de suas criações mais 28 originais. “O México foi para mim a época do maior êxtase da criação”, observou num texto datado de 27 de outubro de 1946 [traduzido para o francês por Gérard Conio e publicado em MLB, plongée dans le sein maternel, Éditions Hoëbeke, Paris, 1999]. Anotações de uma visita a uma exposição da coleção do Museu de Dresden (obras de Rubens, Rembandt, Tiziano, Tintoretto, Veermer, El Greco, entre outros) Rêve de vol plané traz uma breve referência aos desenhos feitos no México (ele observa que as figuras que desenhou então flutuavam no espaço, sem um ponto de apoio definido) e diz em sua última linha: “Muitas de minhas intuições mais luminosas e as mais intensas nasceram justamente aí, nesta época e neste lugar, no México”. Em grande parte figuras soltas no espaço, planando em vôo livre, os desenhos são como um fotograma, como pedaço de uma imagem em movimento. Já as imagens filmadas são como uma pintura mural. O filme como coisa acabada não existe, mas é possível apanhar cada um dos planos que iriam construir o filme como expressão independente. Os desenhos existem acabados no papel, mas parecem feitos como parte de um movimento que não se esgota neles: como anotações de uma composição que examina e desmonta a natureza para depois remontá-­‐la numa ordem de dinâmica e expressividade próprias. Na tela e no papel estão registros do movimento no instante em que o observador se dá conta do que se movimenta. A estrutura do projeto parece ter nascido de idéias esboçadas na Declaração sobre o futuro do cinema sonoro, texto de 1928, e no ensaio Dramaturgia da forma do filme, originalmente escrito em alemão, em 1929, revisto, ampliado e traduzido para russo neste mesmo ano, publicado em inglês em 1930 na revista Close Up, e mais tarde incluído em A forma do filme. Nos textos, se esboça uma fusão de idéia de montagem com a de uma mixagem em que o som não está em sincronismo com a imagem e uma imagem não está em sincronismo com outra. Primeiro, a não-­‐sincronização com as imagens visuais: assim deveriam ser trabalhadas as imagens sonoras. Apenas um uso polifônico do som com relação a cada peça de montagem poderá levar o cinema à criação de um contraponto orquestral das imagens visuais e sonoras. “Este novo descobrimento técnico não é um momento acidental na história do cinema, mas um caminho orgânico livre para por fim a uma série de impasses que pareciam não ter solução”, como as legendas dos filmes mudos e os diversos planos de detalhes explicativos da ação que retardavam o ritmo do filme. O som, portanto, não como um apêndice do que se vê no plano mas como um elemento constitutivo dele. Depois, compor o plano, “o fragmento de montagem cuja essência reside em sua falta de existência como unidade singular”, como, simultaneamente, algo dotado de existência singular ou pelo menos de uma natureza singular. O conhecimento dessa singularidade é essencial para o trabalho de montagem, para a colisão (para pensar o plano não como elemento mas como 29 célula de montagem) e para a superposição (os planos são percebidos não um depois do outro, mas um em cima do outro: a ilusão de movimento nasce do processo de superposição do sinal da posição atual do objeto sobre aquele outro, conservado na memória, da posição anterior do mesmo objeto). Colisão, superposição, não-­‐sincronização, criam o sentido do filme. Imaginemos os desenhos e as imagens filmadas no México, os ensaios escritos antes delas e lembrados acima, e os ensaios escritos pouco depois do projeto mexicano e reunidos em O sentido do filme (“Palavra e imagem”, “Sincronização dos sentidos”, “Cor e significado” e “Forma e conteúdo: prática”) como células de montagem de um contraponto orquestral de imagens visuais e sonoras. Imaginemos que o que não pode se concretizar em ¡Que viva México! tenha alimentado não só textos teóricos como a construção de Alexandre Nevsky e Ivan, o terrível. Vejamos ¡Que viva México! não apenas como a história trágica de um filme não terminado, o que ele efetivamente é, mas, também, e principalmente, como uma aventura da criação, como a realização de uma vontade artística, o que ele também é, uma idéia que se afirma apesar de impedida de aparecer por inteiro. Ver assim, a invenção como ela se inventou, torna possível perceber estes desenhos feitos com a câmera ou com o lápis como um roteiro ou expressão antecipada do audiovisual que se produz hoje, especialmente desde que a incorporação de técnicas digitais ampliaram as possibilidades de filmar e gravar sons com liberdade e simplicidade semelhantes às das linhas dos desenhos do engenheiro Afrosimov, que ao traçar as pernas arqueadas de uma rã rechonchuda ensinou ao cineasta que o desenho, a dança e o cinema nascem de uma mesma fonte que se liberta do chão para planar solta no espaço. José Carlos Avellar EscreverCinema Disponível em http://www.escrevercinema.com/que_viva_mexico.htm Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues 30 31 32 33 34 A Batalha do Chile III: o Poder Popular (1980), de Patrício Guzman A batalha do Chile South of Border de Oliver Stone acaba de chegar aos cinemas mineiros. O documentário tem como tema a escalada ao poder de governos progressistas na América do Sul. É um momento oportuno para voltar no tempo, mais precisamente ao Chile de inícios dos anos 70, e resgatar a memória daqueles tempos obscuros, de forma a deles extrairmos importantes lições para o presente. Era um tempo de efervescência política, quando o geograficamente estreito país sul americano experimentou algo jamais sonhado na America Latina: a chegada ao poder de um governante marxista pela via pacífica, ou seja, pelo voto. Era a chamada “via chilena para o socialismo”. Salvador Allende, médico e maçom, eleito presidente em 1970, inicia intensa campanha de nacionalização de setores estratégicos da economia chilena, promove a reforma agrária, nacionaliza os bancos, fazendo com que mais de 60% da economia chilena ficasse sob o controle do Estado. Insatisfeitos com os rumos da política interna chilena e francamente opostos ao interesses econômicos norte-­‐americanos, os EUA, capitaneados por Richard Nixon, patrocinam várias investidas de sabotagem contra o governo Allende. Como nenhuma das investidas “desarmadas” surtiu o efeito desejado, partiu-­‐se então para o golpe direto. Em 11 de setembro de 1973 a “via pacífica para o socialismo” ruía sob as botas dos militares chefiados pelo general Augusto Pinochet. O Palácio de La Moneda, sede do governo, fora violentamente bombardeado. Acuado dentro do palácio e em companhia de alguns partidários, Allende fez seu último discurso: "Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-­‐me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. [...] Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo.[...] Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão". Horas depois, Allende dava cabo à própria vida ainda nas dependências do palácio. Este é o tema de um dos documentários mais impressionantes que já tive a oportunidade de assistir. Trata-­‐se de A Batalha do Chile, filme de Patrício Guzmán, considerado um dos melhores e mais completos documentários políticos do mundo, verdadeiro “cult" nas terras latino-­‐americanas. O box da Vídeofilmes consiste em 4 DVD’s (se não estou enganado, já se encontra fora de catálogo). O primeiro (A Insurreição da Burguesia) trata da forma como a 35 burguesia chilena, secretamente apoiada e financiada pelo governo norte-­‐americano e pela CIA, se insurgiu contra a política de Salvador Allende, procurando de todas as formas sabotar seu governo, e mostra com detalhes a mobilização do povo em defesa de Allende. O segundo disco (O Golpe de Estado) narra o golpe cujo momento culminante é o bombardeio ao Palácio de La Moneda, sede do governo. O terceiro disco (O Poder Popular) relata como os cidadãos chilenos experimentaram algo que muito se aproximou do conceito marxista clássico de ditadura do proletariado. Há ainda um DVD de extras que contém os documentários Patrício Guzmán – uma história chilena, que relata os bastidores da produção do documentário, e A resistência final de Salvador Allende, que narra os momentos finais de Allende antes do golpe. Com a subida ao poder de uma junta militar capitaneada pelo general Pinochet, o Chile, anteriormente um país tranquilo, cuja história até então não havia sido abalada por golpes de Estado, passa a ser dominado por uma das ditaduras mais sangrentas do cone sul. Em sete de janeiro de 2001 o exército chileno reconheceu ter eliminado mais de 180 partidários de Allende, muitos deles atirados ao mar. Era a primeira vez, após quase 30 anos, que os militares chilenos admitiam um crime. Sobre o golpe de Estado no Chile, o escritor Pablo Neruda escreveu o seguinte poema: Vitória Honra à vitória apetecida, honra ao povo que chegou à hora de estabelecer seu direito à vida! Porém o rato acostumado ao queijo, Nixon, entristecido de perder, despediu-­‐se de Eduardo com um beijo. Mudou de embaixador, mudou de espias e decidiu cercar-­‐nos com arame: não nos venderam mais mercadorias para que o Chile morresse de fome. Quando a Braden lhes abanou o rabo as múmias ajudaram na tarefa 36 Gritando “Liberdade e Caçarolas”, enquanto os patrões fingindo-­‐se de vítimas pintavam de bondade suas caras feias e se disfarçando de proletários decretavam a greve de senhores recebendo de Nixon os dinheiros: trinta moedas para os traidores. Portanto, A Batalha do Chile é um documentário obrigatório para aqueles que querem conhecer os antecedentes do golpe de Estado chileno e para aqueles que querem conhecer mais sobre a história recente da América Latina. Cléber Sérgio de Seixas Observadores Sociais Disponível em http://observadoressociais.blogspot.com/2010/06/dica-­‐cultural-­‐batalha-­‐do-­‐
chile.html A batalha do Chile O chileno Patrício Guzmán foi considerado por muito tempo um cineasta non grato em seu país natal. Preso e torturado pela ditadura, vivência que o levou a se radicar na França, foi também alvo de discriminação por parte da esquerda chilena, que via em suas produções uma imparcialidade inconcebível para alguém que defendia os ideais revolucionários e utópicos do presidente assassinado Salvador Allende. Com uma extensa filmografia, ele foi responsável pelos documentários mais críticos à sociedade chilena em um período conturbado da história recente do país: o fim do socialismo libertário defendido por Allende e a ascensão da ditadura militar liderada pelo general Augusto Pinochet no começo dos anos 70. Uma época em que, cindido, o Chile entrou em completo caos social. Esse é o contexto do documentário A Batalha do Chile, a primeira grande obra de Guzmán, com cinco horas de duração, dividida em três partes. A primeira, A Insurreição da Burguesia (91 min.), é a principal: mostra o sistemático envolvimento da elite para inviabilizar os projetos sociais do governo. Impedido de governar e 37 cumprir suas metas, Allende não consegue frear a crise no país, que transforma ruas e avenidas em praças de guerra. A trilogia segue com O Golpe de Estado (89 min.) que retrata o ponto crítico do período. A desestabilização econômica nas mãos dos Estados Unidos, a ação de grupos fascistas e das forças armadas culmina no bombardeamento do Palácio de la Moneda pelos militares. A bandeira nacional incendiada sobre o gabinete presidencial é, ao lado de pessoas feridas sendo carregadas por ambulâncias, uma das imagens eternizadas pela lente do cineasta. Seguindo cronologicamente os acontecimentos, a população -­‐ principalmente a mais pobre -­‐ começa a criar comitês para enfrentar o racionamento de alimentos e combustível imposto pelo novo governo. O Poder Popular (100 min.), que encerra a trilogia, adentra assim o princípio da ditadura, apontando os caminhos que moldaram o pensamento chileno para enterrar esses acontecimentos em uma criticada amnésia histórica. Embora nunca tenha entrevistado Salvador Allende, o então jovem cineasta seguiu com sua câmera toda a cúpula de seu governo, tal como filmou diferentes movimentos sociais, a oposição, a atividade sindical, as marchas e a elite empresarial. São essas imagens e entrevistas em preto-­‐e-­‐branco que irrompem na tela com especial didatismo. Nesse sentido, Guzmán pretendia -­‐ e ainda pretende -­‐ recuperar parte da memória coletiva chilena. Por isso, tem se dedicado por todos estes anos a lembrar seus compatriotas que os crimes cometidos por toda uma população não podem ser enterrados. Suas últimas produções, todas premiadas internacionalmente, como En Nonbre de Dios (1986), La Memoria Obstinada (1997), El Caso Pinochet (2001), Salvador Allende (2004), começam agora a estrear nos cinemas chilenos, tal como invadiram festivais internacionais de cinema. Seu trabalho finalmente foi reconhecido em 2004, quando, homenageado publicamente, recebeu a condecoração da Ordem ao Mérito Artístico Cultural Pablo Neruda. O prêmio, dado a pessoas que se destacam por sua contribuição à cultura dos chilenos, mais do que um mérito, é considerado um agradecimento à sua função educativa para as novas gerações. Rodrigo Zavala Cineweb Disponível em http://cineweb.com.br/filmes/filme.php?id_filme=1626 O Sonho de Rose (2000), de Tetê Moraes O Sonho de Rose – 10 Anos Depois, Brasil, 2000 38 É difícil se julgar friamente um projeto como O Sonho de Rose simplesmente pela importância do seu tema, pela necessidade das revelações que faz, pela urgência de sua exibição e chegada ao público. Afinal, o filme é simplesmente o fruto de uma coincidência mágica que fez com que a cineasta Tetê Moares estivesse por duas vezes frente a dramáticos acontecimentos que equivalem a verdadeiras aulas de História do Brasil contemporâneo. Primeiro, há dez anos, quando realizou Terra para Rose, ela registrou o nascimento do Movimento dos Sem Terra, e uma de suas primeiras grandes ocupações e confrontos com o Governo. Não bastasse isso, a líder que havia escolhido como símbolo do seu documentário, acabou morrendo durante a realização deste, emprestando inesperada urgência e dramaticidade ao documento. Agora, neste novo filme, a importância do trabalho de Tetê Moraes é uma, acima de todas: mostrar um exemplo de sucesso com o funcionamento dos assentamentos conquistados pela luta do MST de então. Ou seja, no momento onde o argumento mais comum contra o MST é não apenas o de baderneiros, mas o de que não adianta dar a terra a eles que não saberão o que fazer com ela, é vital se ver este filme para ver como todo o processo de reforma agrária no Brasil poderia ser mais simples, mais humano, mais positivo. É um exemplo absolutamente incontestável de solução de problemas ancestrais. Com todas estas características, é fácil entender a comoção que o filme causa, as inevitáveis lágrimas e palmas de pé dos que acreditam um pouquinho ainda neste país. Mas, o que não se pode negar são os defeitos em que o filme cai, como linguagem documental. Em primeiro lugar, o filme não parece acreditar no poder do que documenta por si só de emocionar, informar, levar a tomada de posições. Utiliza-­‐se de uma exagerada e piegas trilha sonora e de narração em off que acabam não o diferenciando muito dos artifícios de "ficcionalização" da realidade de um fantástico ou de um Jornal Nacional. Tomar posição ou direcionar o espectador são mais do que desejáveis, mas não precisa ser feito pelos métodos menos sutis e mais antigos de identificação. Com isso o filme ganha em momentos um tom paternalista pouco desejável, algo do tipo "veja como eles são bonzinhos e trabalham direitinho" que não condiz com a força e a maturidade dos depoimentos dos agricultores. Quando só informa, o filme é bem mais efetivo do que quando tenta "se posicionar". Da mesma forma, a presença em cena da diretora Tetê Moraes parece, ao contrário da presença paradoxalmente fria e envolvida de um Eduardo Coutinho, igualmente exagerada e distante. Parece haver uma excessiva dose de egocentrismo do tipo "olha como eu sou boa e amiga do povo..." O que se confirmou um pouco na recepção do prêmio que o filme ganhou no Festival do Rio BR, onde o último e quase esquecido a ser agradecido foi o povo do assentamento, que afinal É o filme. O mais incrível é que com todos estes defeitos que o filme apresenta e que chegam a incomodar, e muito, ainda assim a excelência de seu tema, e acima de tudo, de seus 39 protagonistas, supera a tudo e consegue emocionar, mesmo sem musiquinha indicando a hora exata. O filme consegue ser um jato de água na cara das certezas, e que faz parecer tão simples e tão óbvio o que as pessoas tentam complicar tanto. Que, na briga dos poderosos com os que nada têm, estes terão sempre razão, e que dada uma oportunidade, eles mostrarão seu valor. É bom lembrar disso de vez em quando. Eduardo Valente Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/22/sonhoderose.htm Trecho extraído do texto “O inferno das boas intenções” O Sonho de Rose – 10 Anos Depois se cobre de todas as desculpas em sua feitura: é urgente, fala sobre um tema fundamental da vida corrente do país, e mostra ao contrário do que o Governo Federal tenta mostrar – ao chegarmos em Recife, as primeiras imagens que vemos são de uma propaganda institucional que tenta convencer a opinião pública de que é inútil invadir terras improdutivas, tendo como elemento estético principal o sol poente depois de um dia de trabalho árduo, por excelência "o" elemento estético dos totalitarismos do século passado – que o Movimento dos Sem-­‐Terra dá, sim, certo. O filme mostra as felicidades, mas também as rusgas de quem não conseguiu se adaptar perfeitamente a esse modo comunitário de vida, e consegue apesar de tudo compor um bonito painel da vida dos principais personagens do primeiro Terra Para Rose. O que o filme não consegue é deixar de soar falso em inúmeras ocasiões que são claramente encenadas (um toc toc toc mais que rapidamente acompanhado de uma porta que se abre e, sem surpresas da anfitriã com a chegada de uma amiga longínqua ou a invasão de uma câmera) ou apoiar-­‐se numa música de melodrama mexicano, cor-­‐de-­‐rosa demais para um tema tão polêmico. Constitui também um problema a presença eterna de Tetê Moraes em frente à câmera, na voz em off, sempre explicativa demais. Como filme, O Sonho de Rose incomoda em mais de um aspecto, e a construção de imagem é rala, não tem substância. Como registro, é um filme fundamental como nenhum outro em competição. Ruy Gardnier e Eduardo Valente Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/28/recifelongas.htm O Sonho de Rose atualiza trajetória dos sem-­‐terra A jornalista e diretora Tetê Moraes registra o assentamento de sem-­‐terras mais de dez anos depois de filmar Terra para Rose, premiado documentário sobre a ocupação de um latifúndio 40 no Rio Grande do Sul, na Fazenda Annoni, por um grupo de lavradores rurais que inspirariam a criação do Movimento dos Sem-­‐Terra (MST). Foi em 1985 a primeira vez que a diretora realizou contato com os ocupantes da fazenda. O Sonho de Rose segue a trilha de Terra para Rose. O documentário conta como estão as 1.500 famílias de agricultores que participaram da primeira ocupação de terra improdutiva no Brasil. "Não era minha intenção fazer uma continuação, mas, com o crescimento do MST, além da minha curiosidade sobre o destino daquelas pessoas, me convenci a voltar ao local." Tetê parte de histórias pessoais para montar a trajetória do grupo: alguns abandonaram o MST no meio do caminho, outros foram bem-­‐sucedidos com suas cooperativas. É especialmente interessante descobrir o destino da família de Rose, mulher que participou da ocupação da Fazenda Annoni, em 1985, com o marido, e teve um destino trágico: depois de ter um filho, o primeiro bebê nascido no acampamento, Rose foi atropelada por um caminhão, acidente que depois foi apurado como criminoso. "Curiosamente, a família dela não ficou no assentamento: o marido, desanimado, perambulou desempregado, com os filhos", conta Tetê. "A filmagem de O Sonho de Rose, porém, motivou uma discussão entre os próprios personagens do filme, que buscaram uma solução até que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), recentemente, decidisse assentar a família de Rose." Captado em Beta, o filme foi transferido para película. Foi com a ajuda dos amigos e parcerias que a diretora conseguiu realizar o longa, cujo orçamento já era reduzidíssimo. Um dos destaques do filme é a trilha sonora de Chico Buarque de Holanda que, depois de assistir ao vídeo, aceitou o pedido da diretora de regravar a canção Assentamento. Luciana Rocha Terra Disponível em http://www.terra.com.br/cinema/noticias/2001/05/03/011.htm Provas de solidariedade A integridade saiu em DVD. Traduzindo: Terra para Rose e O Sonho de Rose , documentários de Tetê Moraes, foram reunidos num mesmo pacote – intitulado Da Terra ao Sonho de Rose – que conta com extras que abarcam um abrangente depoimento da diretora, comentários de profissionais conectados profissional e/ou afetivamente aos filmes, trailers, matérias divulgadas na televisão e fotos. A jornada de Tetê começou em meados da década de 80, quando decidiu registrar os diversos conflitos de terra que testemunhava no interior do Brasil. O enfoque se concentrou a partir do momento em que se deparou com uma foto de jornal relativa às reivindicações de famílias 41 sem-­‐terra na improdutiva fazenda Annoni. A tendência de flagrar focos de resistência no Norte e Nordeste do país acabou sendo canalizada para o Sul. Terra para Rose exigiu feitura longa, tendo em vista que foi sendo realizado concomitantemente aos acontecimentos – em especial, à marcha de cerca de 500 km dos trabalhadores em direção a Porto Alegre e à morte de Rose. Já a confecção de O Sonho de Rose consumiu apenas duas semanas, na medida em que Tetê visava flagrar no presente as transformações ocorridas nos últimos dez anos – período que separa a realização dos dois trabalhos. Para tanto, palmilhou uma região do Brasil, numa travessia que partiu da Annoni em direção à cidade grande (de modo a mostrar aqueles que se viram obrigados a migrar para o centro urbano, algo que no primeiro filme era visto como uma negação às próprias raízes). Diante da oportunidade de conferir as obras juntas, o espectador pode traçar diferenças – Terra para Rose e O Sonho de Rose revelam-­‐se como filmes em andamento, mas as qualidades dos respectivos movimentos são diferentes, com o primeiro tratando de uma marcha coletiva “à espera da terra prometida” e o outro, de uma caminhada de constatação e reencontro empreendida pela própria Tetê. No entanto, ambos tratam do aprendizado da vida em comunidade, da comunhão, da superação de expectativas individuais em prol do bem comum e da possibilidade de “jogar para a frente” pensando nas novas gerações. Bastante simbólico o surgimento do filho de Rose, a primeira criança a nascer no acampamento da Annoni. Tetê Moraes quis flagrar justamente a “manutenção da vida”, valorizando – não por acaso – a mulher, numa ponte possível com Que Bom te ver Viva , outro excelente documentário, de Lucia Murat, que trazia uma costura arrebatada de depoimentos de mulheres torturadas durante a ditadura militar e que sobreviveram sem perder a sanidade mental. Os filmes de Tetê também estão repletos de falas sinceramente arrebatadas. “É só através desta luta, deste sofrimento, que vamos conseguir alguma coisa”, afirma uma das personagens de Terra para Rose . Muito importante destacar, Tetê trata (em seu depoimento, presente entre os extras do DVD) cada um como personagem – a mesma denominação utilizada pelo documentarista Eduardo Coutinho, que apresenta, agora, seu novo filme, Edifício Master . A denominação faz sentido (considerando-­‐se que ninguém é totalmente natural quando colocado diante de uma câmera). Mas assumir a “nomenclatura” pode causar algum estranhamento, já que personagem é uma espécie de biombo colocado na frente da pessoa – como que protegendo de uma exposição mais aprofundada. De qualquer maneira, é surpreendente verificar como Terra para Rose e O Sonho de Rose não foram atingidos pela artificialidade, perigo que se corria seja em virtude de uma necessidade de encenar algumas passagens (resgatando, por exemplo, a saída dos trabalhadores do acampamento rumo a Porto Alegre), seja na utilização de novos recursos tecnológicos no 42 segundo filme. Mesmo em Terra para Rose , em que se propôs a documentar com mais secura a interminável via-­‐crucis enfrentada pelos trabalhadores (as promessas de assentamento do governo datam de 1972), Tetê Moraes elegeu as motivações pessoais como linha condutora. A autenticidade dos resultados advém do espírito solidário contido nos filmes e irradiado por eles. Autor da música Assentamento , que serve O Sonho de Rose e foi criada sob as influências das fotografias de Sebastião Salgado e de um texto de Guimarães Rosa contido em Tutameia , Chico Buarque assume uma conexão com o Movimento dos Sem-­‐Terra (MST) desde os anos 80. Salgado, por sua vez, testemunhou de forma ativa a intensa migração do campo para a cidade ocorrida a partir da década de 60, algo que o ligou de modo inquebrantável à terra e, por conseguinte, à luta em favor da consciência social. A jornalista e crítica de cinema Susana Schild recorda a emocionante exibição de O Sonho de Rose no Festival de Gramado, em sessão que contou com a presença dos familiares de Rose, e a habilidade da diretora em filmar gente, ao passo que o também crítico de cinema Carlos Alberto Mattos comparou os feitos de Tetê ao de Coutinho no emblemático Cabra Marcado para Morrer e sublinhou a capacidade de utilizar o instrumental cinematográfico na transmissão de uma simpatia em favor das questões populares. O DVD traz, entre outras, as impressões do fotógrafo Walter Carvalho, evocando a madrugada em que a polícia do Rio Grande do Sul se valeu de violência contra os trabalhadores e o próprio processo de filmagem que extraiu criatividade da falta de recursos à disposição, do embaixador Arnaldo Carrilho, atualmente à frente da RioFilme, e da atriz Lucélia Santos, narradora dos filmes. Daniel Schenker Crítico.com Disponível em http://criticos.com.br/?p=177&cat=3 43