1 AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LEI 11.340/06 SOB A ÓTICA

Transcrição

1 AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LEI 11.340/06 SOB A ÓTICA
1
AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LEI 11.340/06 SOB A ÓTICA DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
THE UNCONSTITUTIONALITIES OF THE LAW ACT 11.340 OF 2006 IN THE STATE
OF LAW
Débora Carvalho Fioratto*
Fernando Horta Tavares**
Flávia Soares***
Isabella Saldanha de Sousa****
Marcela Viviane Michelle Ferreira da Silva*****
Rafael de Abreu Pires dos Santos******
SUMÁRIO: Introdução. 1. As origens da Lei Maria da Penha e o Art.
226 § 8º da Constituição Federal. 2. A igualdade entre os gêneros e a
inconstitucionalidade da lei 11.340/06 por violação ao princípio
constitucional da isonomia. 3. A ação penal pública incondicionada e
a violação da autonomia privada da vítima. 4. O estereótipo de vítima
criado pela lei 11.3040/06 e as suas conseqüências práticas.
Conclusão. Referências Bibliográficas.
SUMMARY: I-Introduction. II- The origin of the Law Act known as
“Maria da Penha” and the article 226 §8º of Brazil´s Federal
Constitution. III- Gender equality and the unconstitutionality of the
Law act 11.340 of 2006, due to an unconstitutional infringement on
equality principle. IV- The unconditioned public action and the
violation of the victim´s autonomy. V- The stereotype of victim
created by the Law act 11.340 of 2006 and its consequences. VIConclusion. VII- References.
RESUMO
*
Mestranda em Direito Processual pela Puc-Minas; Bolsista da FAPEMIG; Graduada em Direito pela PucMinas; Sócia Fundadora e membro do Conselho Deliberativo do IHJ/MG; Graduanda em Letras pela UFMG;
Advogada.
**
Pós-Doutoramento em Direito Constitucional pela Universidade Nova de Lisboa. Doutor e Mestre em Direito
e em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Graduação e PósGraduação da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. Advogado.
***
Graduando em Direito pela PUC – Minas.
****
Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Pós-graduada em Direito Processual
pelo Instituto de Educação Continuada (IEC), da PUC Minas. Professora Assistente da Faculdade de Direito
Padre Arnaldo Janssen. Advogada. Endereço eletrônico: [email protected]
*****
Graduada em Direito pela PUC-Minas, Advogada.
******
Graduando em Direito pela PUC – Minas.
2
A presente pesquisa tem como eixo central o estudo da Lei 11.340/06, bem como a análise
doutrinária e jurisprudencial quanto ao tema que já se adianta ser bastante polêmico. O estudo
passará por uma compreensão da “provável” origem da Lei e terá como objetivo precípuo
verificar as (in) constitucionalidades da Lei “Maria da Penha”, seja em decorrência da
violação ao princípio da isonomia e da violação da autonomia privada da vítima com a ação
pública incondicionada, seja em decorrência do estereótipo de vítima criado. Para que haja
uma leitura constitucionalmente adequada dessa lei é imprescindível uma interpretação
lógico-sistemática das normas do art. 226, §8ºC.R/88, e do caput do art. 5ºC.R./88, para que
conteúdos e institutos jurídicos se coadunem com o Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave: Lei 11.340/06. Princípio da Isonomia. Autonomia privada da vítima.
Inconstitucionalidades.
ABSTRACT
This research has as its central theme the study of the Law Act 11.340 of 2006 and also the
analysis of doctrine and jurisprudence about it, since it is a very polemic law. The study will
begin with the comprehension of the probable origin of this law and will have as its main goal
the verification of the unconstitutionalities of it, since it infringes the constitutional principle
of equality and also violates the private autonomy of the victims, as well as creates a
stereotype for them. Therefore, to have a constitutional reading and understanding of this law
it is important to have a logic-systemic interpretation of arts. 226§8º and 5º, caput, both from
Federal Constitution, in order to have its (law) content in conformity with the State of Law.
Key-words: Law Act 11.340/06. Principle of Equality. Private autonomy of the victim.
Unconstitutionalities.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo situar o contexto sócio-jurídico no qual a Lei
11.340/06 foi forjada, para posteriormente analisar as principais reformas que a mesma
introduziu em relação ao tratamento penal e processual diferenciado para os tipos penas já
existentes
na
legislação
penal
em
vigor
para,
então,
se
posicionar
sobre
a
inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos legais, tendo como marco o Estado
Democrático de Direito.
3
A partir da teoria da democracia1 os institutos jurídicos exigem uma reconfiguração de
tal forma que se possa superar a sua visão dicotômica (autonomia pública x autonomia
privada, Estado Liberal x Social, direitos humanos x soberania popular) para que sejam
compreendidos a partir de uma tensão permanente (CARVALHO NETTO, 2003, p. 92).
Assim, espera-se que os sujeitos de direito num Estado Democrático não sejam meros sujeitos
passivos à espera que o Estado Social implemente os seus direitos fundamentais como se
fizessem parte de uma sociedade civil ainda não emancipada.
Ao contrário, aos sujeitos de direito de um Estado Democrático deve ser garantida
uma atuação co-participativa, numa situação ideal de fala orientada pela teoria do discurso,
especialmente no discurso de aplicação a fim de que a Lei 11.340/06 seja aplicada em
consonância com as garantias que compõem o devido processo (legal e constitucional2).
Indaga-se se a Lei 11.340/06, ao pretender alcançar uma suposta igualdade de gênero
(masculino e feminino), na verdade, não estaria aplicando tratamentos jurídicos desiguais à
situações jurídicas idênticas, quando o Art. 226, §8º da CR/88 determina que o Estado
promova a proteção de todos os integrantes da entidade familiar e não apenas do gênero
feminino. Discute-se, ainda, sobre a violação do princípio constitucional da isonomia na
medida em que a referida Lei 11.340/2006 determina que figure como vítima do crime de
violência doméstica e familiar apenas o sexo feminino, o que poderia dar ensejo ao
reconhecimento da inconstitucionalidade da referida norma.
Questiona-se se o enquadramento do referido diploma legal no paradigma de Estado
Social na verdade não representaria uma violação à autonomia privada e pública da mulher,
como sujeito de direito que tem plena capacidade para optar em relação aos seus próprios
1
O paradigma procedimentalista do Direito, segundo Habermas, permite que se obtenha a legitimidade de uma
ordem jurídica, na medida em que se garanta ao mesmo tempo o exercício da autonomia (privada e pública) dos
cidadãos em um procedimento deliberativo de formação e de institucionalização da opinião. Nesta perspectiva se
exige que o princípio do discurso se converta em princípio democrático, substituindo-se a soberania popular tida
como fundamento da legitimidade do Estado pelo poder comunicativo. É este poder comunicativo que viabiliza a
possibilidade de se obter a formação do consenso público pela força do melhor argumento, de tal forma que a
autonomia privada e a autonomia pública se pressupõem mutuamente, gerando um procedimento legítimo e
democrático de formação e de institucionalização da opinião dos atores sociais. A importância da teoria do
discurso e de um procedimento democrático reside em possibilitar aos seus participantes a igualdade de
oportunidade de argumentação, resguardadas as condições de uma situação ideal de fala, para que se possa obter
um consenso a partir da busca pelo melhor argumento. Num caso concreto, pressupõe-se a validade prima facie
da lei obtida pelo procedimento legislativo (discurso de fundamentação), mas é através do discurso de aplicação
(processo de aplicação jurisdicional do direito) que se obtém a norma válida mais adequada ao caso concreto,
através da inclusão das perspectivas de todos os participantes do discurso, através de uma avaliação reconstrutiva
das normas tidas como válidas Cf. (SIMIONI, 2007, p. 199-231).
2
Esclarece Madeira que a locução devido processo “designa a junção de ambos (ou seja, o instituto abriga tanto
os princípios constitucionais quanto os modelos procedimentais) e se fez isso porque, após Couture e FixZamudio, todo Processo é de índole constitucional e traz, em seu conceito, tanto as garantias constitucionais,
quanto os modelos procedimentais. O instituto do devido processo traz todos estes elementos e, se assim não for,
não é Processo” (MADEIRA, 2008, p. 123).
4
projetos de vida e se, tal interpretação paradigmática acarretaria novas discriminações de
gênero.
E, finalmente, pretende-se analisar se o direito penal é capaz de solucionar os
problemas da violência perpetrada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, tendo em
vista que na maioria dos casos trata-se de um problema de cunho social e não propriamente
jurídico.
1 AS ORIGENS DA LEI MARIA DA PENHA E ART. 226 § 8º DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL:
A Lei 11.340/06 que passou a ter vigência no Brasil em 07 de agosto de 2006,
popularmente conhecida como Lei “Maria da Penha”, alterou a redação do Código Penal, do
Código de Processo Penal e da Lei de Execuções Penais e dispôs sobre os Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Ela foi criada com fito de coibir a violência
contra a mulher que foi vítima de discriminação por gênero, ocorrida no âmbito doméstico ou
familiar.
A partir de 1990 tiveram início as legislações penais especiais com nítido caráter de
especialização dos vários tipos de violência, como por exemplo, a Lei 8078/92, a Lei 9.099/95
e em 1997, o CTB (Código de Trânsito Brasileiro – Lei 9.513/97), dentre outras legislações
que foram produzidas em razão dos dados estatísticos alarmantes de violência na sociedade
brasileira. Aliás, foi com este objetivo de especialização que a Lei 11.340/06 também foi
gestada, tendo inclusive sido intitulada de “Maria da Penha” em homenagem a Srª. Maria da
Penha Maia Fernandes, que foi vítima de uma dupla tentativa de homicídio pelo marido no
Estado do Ceará, no Brasil.
A referida legislação é fruto de uma discussão antiga entre o governo brasileiro e a
sociedade internacional em relação à necessidade de se coibir a violência contra a mulher, que
tomou vulto com a ratificação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher, assinada em 27/11/1995, também conhecida como Convenção
de Belém do Pará, que já tinha sido adotada pela Assembléia Geral da Organização dos
Estados Americanos em 06/06/1994. Trata-se de um sistema regional especial de proteção
aos direitos humanos, que foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do
Decreto Presidencial nº 1.973, de 01 de agosto de 1996.
5
O Art. 1º da mencionada Convenção define a violência contra a mulher como sendo
“qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público, como no privado” (BRASIL, 1996).
O Brasil, ao ratificar tal convenção, se comprometeu a adotar políticas, de forma célere e
utilizando-se de meios eficazes, para prevenir, punir e erradicar a violência, contra a mulher,
mais especificamente se a violência tiver ocorrido no âmbito privado, geralmente no meio
social em que a mulher convive e mantém as suas relações interpessoais e também no âmbito
público, como, por exemplo, nas relações de trabalho e emprego3 e também nas instituições
de ensino.
A referida convenção é um instrumento jurídico interno de proteção aos direitos
humanos já consagrados pela Declaração Universal de 1948 que passa a ser obrigatória para
os países signatários, sob pena de intervenção judicial. Com fundamento nela é que a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Brasil, por violação das
obrigações referentes à prevenção da violência doméstica contra a mulher já que o
procedimento penal em relação ao caso Maria da Penha4 teve a duração de 19 anos, após o
oferecimento da denuncia e sem que a vítima viesse a receber qualquer compensação pelos
danos sofridos, já que veio a ficar paraplégica em relação aos membros inferiores, aos 38 anos
de idade.
Em 13 de março de 2001, a CIDH determinou que o relatório n° 54/01, referente ao
caso Maria da Penha, fosse enviado ao Estado Brasileiro para que este seguisse as
recomendações ali estabelecidas, com o fim de coibir esse tipo de violência doméstica contra
a mulher:
Dado que esta violação contra Maria da Penha é parte de um padrão geral de
negligência e falta de efetividade do Estado para processar e condenar agressores, a
Comissão considera que não é só violada a obrigação de processar e condenar,
como também a de prevenir essas práticas degradantes. Essa falta de efetividade
judicial geral e discriminatória cria ambiente propiciam para a violência domestica,
não havendo evidencia socialmente percebida da vontade e efetividade do Estado
como representante da sociedade, para punir esses atos (BRASIL, 2001).
3
Neste sentido, importante a leitura do Art. 2º, incisos I e II da Lei 9.029/95, que é mais um instrumento
específico contra a discriminação nas relações de trabalho e emprego que visa coibir as práticas discriminatórias
como “a exigência de teste, exame perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à
esterilização ou a estado de gravidez; a adoção de quaisquer medidas de iniciativa do empregador, que
configurem, indução ou instigamento à esterelização genética ou promoção de controle de natalidade, exceto o
oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar submetidos às normas do sistema único
de saúde” (BRASIL, 1995).
4
O Sr. Marco Antônio Heredia Viveiros, marido da vítima Maria da Penha Maia Fernandes foi julgado e
condenado pela prática do crime de tentativa de homicídio contra a sua esposa por duas vezes, a primeira em
razão de um tiro e a segunda por eletrocussão e afogamento.
6
Dessa forma, com o fim de eliminar as possíveis tolerâncias por parte do Brasil em
relação a este crime e dar cumprimento às recomendações da CIDH foram restabelecidas as
discussões sobre o tema referente violência contra a mulher que foi vítima de discriminação
por gênero, ocorridas no âmbito doméstico ou familiar, que culminou com a promulgação da
Lei 11.340/06.
A referida Lei tem por objetivo proteger as mulheres que são vítimas da violência no
âmbito doméstico e familiar, punindo o agressor com mais rigor, já que este pode até ser
preso em flagrante delito ou ainda ter a sua prisão preventiva decretada. Salienta-se que, a
princípio, o Art. 226, §8º da CR/88, prevê o dever do Estado de “assegurar a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações”.
Numa análise literal, a princípio se evoca a idéia de que cada um dos entes que
integram a família, como a criança e o adolescente, o idoso e a própria mulher, exigem, de
forma individualizada, uma lei para coibir a violência perpetrada no âmbito de suas relações,
através da necessária criação de uma legislação especializada neste sentido. Todavia, esta
suposta necessidade de especialização de estatutos que coíbem a violência contra um
determinado sujeito de direito é falsa porque, como esclarecem Barros e Machado
a formação de microssistemas legais, para grupo ou minoria, como criança idoso ou
mulher, acaba gerando análises estanques de seus conflitos e relações deixando de
considerar o seu lugar como membro de uma entidade familiar. Desta feita, uma
interpretação adequada da referida lei deve levar em conta que no contexto das
relações domésticas familiares e afetivas os indivíduos são sujeitos iguais em
direitos, mas diferentes em suas identidades (BARROS; MACHADO, 2006,
p.5199).
Isso significa que a Lei “Maria da Penha”, em sua própria designação é
discriminatória em relação aos demais sujeitos de direito, que igualmente integram uma
entidade familiar e, que deveriam ter assegurado o seu direito fundamental à proteção contra a
violência. A visão de que tais crimes de violência doméstica e familiar têm como vítima
exclusivamente a mulher; que ela seria supostamente o sexo frágil e que se sujeitaria aos
desígnios masculinos; precisaria de uma legislação específica que coibisse com rigor os
crimes desta natureza, os quais teriam como autores apenas homens que guardam algum
vínculo afetivo com a vítima, tal como foi veiculada no discurso de justificação (legislação)
para a criação desta lei é completamente equivocada.
Isto porque esta visão é compatível com o paradigma do Estado Social em que os
sujeitos de direito são verdadeiros clientes em que o gênero feminino exige do Estado a
7
implementação de seus direitos fundamentais, para compensar o grau de desigualdade em que
se encontra ao ser comparada ao gênero masculino.
Segundo Habermas, a idéia de promover uma luta pela igualdade de condições do
gênero feminino “assegurando a autonomia das pessoas do direito por meio de reivindicações
de benefícios outorgados a clientes do Estado de bem-estar social” (HABERMAS, 2002, p.
296-297), deve dar lugar a um terceiro paradigma do direito, qual seja, o procedimentalista.
Tal paradigma assegura
ao mesmo tempo a autonomia privada e pública: os direitos subjetivos, cuja tarefa é
garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para as suas próprias
vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios
envolvidos articulem e fundamentem os aspectos relevantes para o tratamento igual
ou desigual em casos típicos (HABERMAS, 2002, p. 296-297).
Por isso, é essencial que todos os sujeitos de direito que integram a família tenham
preservadas as suas identidades (masculina e feminina), já que eles são os destinatários
normativos que efetivamente serão atingidos pela legislação em questão, podendo se
enquadrar no conceito de vítima, segundo o disposto no Art. 7º do referido diploma legal.
Assim, referida lei deve ser aplicada a todos os casos de violência doméstica e familiar em
que exista uma convivência contínua e afetiva entre o autor de eventual crime e a vítima,
independentemente do gênero (masculino e feminino).
Embora os Tribunais pátrios já tenham se manifestado a favor de sua aplicação apenas
em relação ao gênero feminino, este entendimento deve ser modificado para uma
interpretação extensiva e constitucionalmente adequada da Lei 11.340/06, sob pena de
violação ao princípio da isonomia.
Além disso, houve também outras reformas processuais que retiraram as garantias
processuais do autor de eventual crime, para atingir a finalidade de rigor no sentido de não
produzir mais o sentimento de impunidade, como por exemplo, a alteração do Código Penal e
de Processo Penal para aumentar a pena para o crime de lesão corporal (cuja sanção máxima
restou estabelecida em 03 anos, ao invés de 01 ano de detenção), impossibilitando que o
sujeito ativo seja beneficiado com a pena alternativa, qual seja, o pagamento de cestas básicas
e prestação pecuniária e, principalmente, seja liberado após o flagrante, como ocorria no
procedimento estabelecido na Lei nº 9.099/95.
Nesse mesmo sentido foram criadas as medidas protetivas de urgência contra eventual
agressor, previstas no art. 22 da lei 11340/06, que consistem, em síntese, em determinações de
8
afastamento do lar, proibição de determinadas condutas, suspensão ou restrição do porte de
armas, visitas aos dependentes menores, além da prisão do acusado.
Devido às peculiaridades já apontadas, a violência doméstica não será mais
considerada crime de menor potencial ofensivo, o qual será julgado pelo Juízo Comum, com a
possibilidade de se estabelecer e criar uma justiça especializada.
Embora o legislador ainda esteja arraigado ao paradigma do Estado Social ao criar esta
lei em prol da grande parcela de mulheres que são vítimas de violência doméstica, percebe-se
que a mesma viola flagrantemente o disposto no Art. 226 §8°, da CR/88, já que no Brasil
ainda são poucos os casos em que foi aplicada a referida lei em prol de homens quando são
vítimas da violência doméstica, em uma interpretação que não viola o princípio da isonomia.
Ressalta-se que toda lei infraconstitucional deve estar em conformidade com a
Constituição Federal, portanto, a não incidência da Lei Maria da Penha aos litígios em que o
sujeito passivo é uma pessoa cujo sexo é o masculino afigura-se violação a todos os princípios
constitucionais, o que de fato, não é admissível quando se trata de um Estado Democrático de
Direito.
Portanto, estamos diante de um conflito, ou se reconhece a inconstitucionalidade desta
lei, colocando fim a qualquer tipo de procedimento diferenciado em relação à mulher quando
esta for vítima de violência, uma vez que uma interpretação restrita estaria violando o
princípio constitucional da isonomia e o Art. 226§8º da CR/88, ou aplicam-se integralmente
as disposições legais que compõem esta lei a homens e mulheres indistintamente. Sendo
assim, o mencionado parágrafo 8º, do artigo 226, da Constituição Brasileira, foi claro na
redação da expressão “na pessoa de cada um dos que a integram”, isto é, se é cabível a idéia
que uma pessoa do sexo masculino faça parte de um ambiente familiar, é perfeitamente
possível que este também seja vítima de violência doméstica, seja ele marido, namorado,
companheiro, filho, sobrinho.
Não há dúvidas quanto ao alto índice de violência contra a mulher em todo o território
brasileiro. Entretanto, esta situação não corre unilateralmente contra elas. Não se podem
negligenciar os diversos casos em que as vítimas são pessoas do sexo masculino, sendo,
portanto, também titulares dos direitos e garantias previstos na Lei 11.340/06. As diversas
manchetes publicadas por vários meios de comunicação comprovam que a mulher muitas das
vezes é autora do crime e não a vítima:
“Mulher agride marido com pé-de-cabra” (informação verbal)5.
5
Jornal da Alterosa, de 09 de março de 2007.
9
“Mulher de 22 anos agride marido de 85” (informação verbal)6 .
Saliente-se, ainda, que segundo a Lei Complementar 95/1998 uma lei quando for
editada, deve ter caráter genérico e abstrato, não podendo ser promulgada com o nome de uma
pessoa específica, uma vez que sempre se estará induzindo a uma vinculação à vítima Maria
da Penha Fernandes e sua história de vida, com a de outras vítimas, construindo, portanto, um
estereótipo de mulher vitimizada, o que será mais discutido no capítulo V deste trabalho.
Portanto, se a legislação em questão tivesse sua denominação e conteúdo normativo
mais genérico e abstrato, talvez conseguisse se amoldar perfeitamente ao princípio
constitucional da isonomia já que devem ser resguardados a todos os afetados por ela e não
apenas ao gênero feminino, por um critério de suposta compensação da desigualdade de
gênero (feminino em relação ao masculino), em prejuízo dos demais sujeitos de direitos do
gênero masculino, que foram excluídos da possibilidade de serem tratados como vítimas de
tais crimes de violência no âmbito doméstico e familiar.
A partir da escritura do parágrafo 8º, do artigo 226, da Constituição Brasileira a Lei
11.340/06 está fadada a ter a sua interpretação ampliada para incluir os demais sujeitos de
direito do gênero masculino como vítima, uma vez que é notório que tal vício discriminatório
viola frontalmente o princípio da igualdade previsto no caput do art. 5º da Constituição
Federal de 1988, porque a simples diferenciação quanto ao gênero (masculino ou feminino)
não constitui critério racional para excluir os demais sujeitos de direito da condição de
vítima, haja vista que o bem jurídico tutelado é a integridade física das pessoas integrantes do
ambiente familiar, que é composto por homens, mulheres, crianças e pessoas idosas.
2 A IGUALDADE ENTRE OS GÊNEROS E A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI
11.340/06 POR VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA.
O presente capítulo pretende esclarecer o conceito de isonomia entendido como
“direito-garantia constitucionalizado” (LEAL, 1999, p. 98) e as implicações advindas com
edição da Lei 11.340 de 07.08.2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
Desde sua promulgação, a Lei especial destinada a coibir a violência7 contra as
mulheres, tem sido alvo de várias críticas oriundas da doutrina penal e constitucional. Os
6
Agência à Tarde, de 29 de novembro de 2007.
10
argumentos contrários à nova Lei vão desde críticas ao “feminismo” até aos seus aspectos
penais inovadores8. Mas, a principal crítica feita à Lei Maria da Penha é a de que esta fere o
princípio da isonomia, no sentido que atenta contra a igualdade de gênero consagrada no
inciso I do artigo 5º da Constituição da República de 1988.
Os defensores da Lei 11.340/06, tais como Shelma Lombardi de Kato (2009) e Maria
Berenice Dias (2007, p. 35), argumentam que a igualdade, em sua dimensão jurídica, refere-se
não só ao aspecto formal (igualdade perante a lei), mas também a seu aspecto substancial
(igualdade de fato), o que implica o reconhecimento das diferenças sociais. Reconhecem
ainda que há diferenças entre homens e mulheres construídas socialmente e que elas se
constituem em relações de poder, isto é, para eles existe uma sobrevalorização social do
homem que hierarquiza as relações entre os sexos de tal modo que cria uma desigualdade
entre os gêneros.
Dessa forma, concluem que o Direito, como mecanismo de integração social, deve
criar normas para “igualar” homens e mulheres. Logo, a Lei Maria da Penha seria uma
tentativa de alcançar a idealizada igualdade material, uma vez que foi criada a partir da idéia
de “discriminação positiva”, na qual a vulnerabilidade social do grupo ou minoria a ser
protegida por uma norma discriminatória atua como legitimadora de tal medida.
Segundo Alexandre de Moraes, existe desigualdade (discriminação) na lei quando uma
norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas
diversas. Segundo ele, para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não
discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de
acordo com critérios e juízos valorativos e genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicarse em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso
uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade
perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente
protegidos (MORAES, 2001, p. 64).
7
Ao se analisar a definição expressa no artigo 1º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), na qual a violência de gênero é considerada como
qualquer conduta baseada no gênero que cause ou possa causar dano às mulheres, ou seja, qualquer forma de
agressão à dignidade corporal, psicológia e sexual da mulher. Entendemos que a violência de gênero se distingue
da violência doméstica por seu caráter amplo e por ser dirigida contra a mulher; a violência doméstica se refere
ao lugar onde a agressão é cometida, isto é, a expressão “violência doméstica” não distingue autores e vítimas,
apenas determina o local onde ela ocorreu. No entanto, no Brasil, a terminologia “violência doméstica” é usada
como sinônimo de violência contra a mulher praticada por parceiros íntimos.
8
A Lei Maria da Penha trouxe alterações inovadoras para a legislação brasileira, a saber: o aumento das penas
dos crimes de lesão corporal, a proibição da aplicação das ditas penas alternativas, a criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a impossibilidade de renúncia da representação da vítima, os
programas de recuperação e reeducação, dentre outras.
11
No mesmo sentido, disserta Celso Antônio Bandeira de Mello para quem
tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério
discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é,
fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o
específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada
(MELLO, 2005, p. 21).
Dessa forma, faz-se necessário saber se a Lei 11.340/06 atende tais requisitos
necessários a uma lei que pretende, de forma razoável e proporcional, efetivar a igualdade de
fato entre homens e mulheres sem atentar contra o princípio constitucional da isonomia.
Para tal reflexão, vale ressaltar a definição de isonomia, em sentido processual, de
Rosemiro Pereira Leal, que entende que “a isonomia é direito-garantia constitucionalizado
que supõe três vertentes de reflexão: isotopia, isomenia e isocrítica” (LEAL, 1999, p. 107). A
primeira entendida como igualdade perante a lei, a segunda como igualdade de interpretar a
norma jurídica e a última como igualdade de criar e alterar a lei; Ao passo que no dizer de
Fernando Horta Tavares, “a isonomia é a igualdade na lei, e não apenas perante a mesma”
(informação verbal)9.
Defende-se essa última definição e entende-se que qualquer lei infraconstitucional ou
ato processual que atente contra qualquer uma das citadas vertentes que compõem a isonomia,
fere tal princípio. Leal, ainda sob o ponto de vista do direito processual, entende que não pode
valer a regra de tratar iguais igualmente e desiguais desigualmente10, porque o Processo na
teoria do direito democrático é o ponto discursivo da igualdade dos diferentes (LEAL, 2002,
p. 75).
Percebe-se, portanto, que o fato da Lei “Maria da Penha” tratar a mulher de forma
especial vai contra as atuais teorias que buscam, a priori, a igualdade formal, mas pretendem,
também, alcançar a igualdade substancial, no momento em que todos são realmente iguais na
Lei. A afirmativa acima é despretensiosa em dizer que a violência contra a mulher é um
problema social grave, todavia, a violência, sendo ela doméstica ou não, pode se traduzir
como uma característica da sociedade pós-moderna e tem de ser combatida de forma
generalizada pelo Direito.
Todavia, não se está dizendo que é o caso de se voltar contra qualquer lei que dê um
tratamento especial a um determinado grupo social, haja vista o Estatuto da Criança e
9
Aula ministrada na disciplina “Teoria da Efetividade do Processo”, do Programa de Pós-Graduação da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais no 1º semestre de 2008.
10
“É insuficiente recorrer à notória afirmação de Aristóteles, pois existe um fosso de incertezas cavado sobre a
intuitiva pergunta que aflora ao espírito: Quem são os iguais e quem são os desiguais?” (MELLO, 2005, p. 11).
12
Adolescente (Lei Federal 8.069/90); o Estatuto do Idoso (Lei Federal 10.741/03) e leis que
pretendem promover e a efetivar direitos fundamentais compatíveis à Constituição. Este,
muito provavelmente, é um objetivo que a Lei “Maria da Penha” não alcançará, uma vez que
em sua essência há um traço desigualador não pertinente aos interesses constitucionalmente
protegidos (MELLO, 2005, p. 41), isto é, ao lume do texto constitucional não existe
diferenciação entre homens e mulheres, no que diz respeito a direitos e obrigações.
A criação de uma Lei que combata de forma eficiente toda e qualquer forma de
agressão doméstica contra a pessoa humana seria, conforme os conceitos de isonomia
discutidos neste trabalho, mais proveitosa do que uma Lei específica destinada a proteger
apenas pessoas do sexo feminino em um ambiente doméstico e familiar.
Quanto ao argumento de que a Lei 11.340/06 irá efetivar a igualdade entre os sexos,
acreditamos que não se constrói igualdade com uma lei punitiva, mas sim com uma lei
construtiva, ou seja, a lei em questão, como outras leis rigorosas visa combater apenas as
conseqüências e não as causas da violência contra a mulher. Como foi dito a violência não é
um problema pontual (apenas contra a mulher), mas sim estrutural e presente em toda a
sociedade, sendo certo que a criação de uma lei específica, menos ou mais rigorosa, não
mudará o quadro social11 em que estamos inseridos.
Ante o exposto, conclui-se que a Lei “Maria da Penha” seria inconstitucional por
violar o princípio constitucional da isonomia, posto não condizente com a atual Constituição
da República de 1988. Entretanto, como não foi declarada a inconstitucionalidade da
mencionada norma, esta permanece ainda vigente e se encontra em constante aplicação. Logo,
cabe aos estudiosos do Direito fazer uma interpretação extensiva do termo “mulher”,
englobando qualquer pessoa vítima de violência doméstica, seja homem, mulher, criança,
homossexual.
3 A AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA E A VIOLAÇÃO DA
AUTONOMIA PRIVADA DA VÍTIMA.
Em face de influências e pressões internacionais, o Brasil editou em 2006 a lei 10.340
que positivou regramentos com a pretensa intenção de coibir a violência doméstica e familiar
11
A desigualdade social é a responsável pelos processos de violência a que está sujeita toda a sociedade,
especialmente diante de precariedade de acesso aos direitos sociais básicos (saúde, alimentação, educação,
emprego etc...). Não há como mudar esta situação apenas com a promulgação de uma lei que coíbe a violência
doméstica. Deve-se lançar mão de uma política nacional integrada nos níveis federal, estadual e municipal, que
abranja ações que diminuam tais vulnerabilidades.
13
contra a mulher e constitui um importante marco na evolução do direito pátrio contra crimes
dessa natureza.
Nesse espeque, a referida lei trouxe inovações e peculiaridades que merecem ser
ponderadas, visto que alterou dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da
Lei de Execução Penal. Contudo, tais inovações são controversas na doutrina pátria que,
apesar de incipiente, já trava acaloradas discussões sobre os avanços e retrocessos de cunho
jurídico e social trazidos com a edição da lei supracitada. Dentre as inovações que fomentam
os escritos da doutrina brasileira sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher,
podemos destacar a suposta transgressão da autonomia privada da vítima contra a concepção
daqueles que entendem serem os crimes de violência doméstica de Ação Penal Pública
Incondicionada.
Importante relembrarmos, ainda que de forma perfunctória, o conceito de ação penal
pública incondicionada para melhor concepção do tema proposto, oferecida por Oliveira:
Do dever estatal da persuasão penal resulta, como regra, que o Ministério Público é
obrigado a promover a ação penal, se diante de fato que, a seu juízo, configure um
ilícito penal. Daí a regra básica da ação penal pública incondicionada, qual seja, o
denominado princípio da obrigatoriedade. Estar obrigado à promoção da ação penal
significa dizer que não se reserva ao parquet qualquer juízo de discricionariedade,
isto é, não se atribui a ele qualquer liberdade de opção da conveniência ou
oportunidade da iniciativa penal, quando constatada a presença de conduta
delituosa, e desde que satisfeitas as condições da ação penal. A obrigatoriedade da
ação penal, portanto, diz respeito à vinculação do órgão do Ministério Público ao
seu convencimento acerca dos fatos investigados, ou seja, significa apenas ausência
de discricionariedade quanto à conveniência ou oportunidade da propositura da
ação penal (OLIVEIRA, 2006, p. 103).
Bem ponderadas foram as palavras da Desembargadora Jane Silva, do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais que foi convocada para atuar como relatora no Julgamento do Habeas
Corpus n.º 96.992/DF no STJ. Dentre elas destaca que até 1995, as três modalidades de lesões
corporais (leves, graves e gravíssimas) correspondiam à Ação Penal Pública Incondicionada,
ou seja, não dependiam da representação do ofendido. Com o advento da Lei 9.099/1995,
devido ao quantitativo da pena máxima imposta aos crimes de lesão corporal, a competência
para processar e julgar crimes de lesões corporais simples e culposas passou a ser dos
Juizados Especiais (BRASÍLIA, STJ, HC96.992/DF, Relator Min. Jane Silva, 2009).
Nesta oportunidade, o legislador disciplinou no artigo 88 da supracitada lei que
“além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a
ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”, ou seja, os crimes
14
capitulados como lesão corporal leve e lesão corporal culposa corresponderiam à ação penal
pública condicionada à representação do ofendido.
Ocorre que, com a inclusão do § 9º no artigo 129 do Diploma Penal pátrio, uma nova
modalidade de lesão corporal foi suscitada pelo legislador, qual seja, a lesão corporal
praticada dentro do seio familiar, punida mais severamente pela deturpação não somente da
integridade física ou psíquica do indivíduo, mas também pela discrepância com a
normalmente esperada estrutura familiar.
Não obstante, a Lei 11.340/2006, em seu Art. 41 estabeleceu que “aos crimes
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena
prevista, não se aplica a lei n.º 9.099 de 26 de setembro de 1995” (OLIVEIRA, 2006, p. 103).
Não somente isso. Tratou de aumentar a pena do delito capitulado no § 9º do artigo 129 do
Código Penal. Diante do escorço histórico declinado, uma importante indagação ecoou no
momento de capitulação daqueles delitos previstos no § 9º do artigo 129 do Código Penal.
Trata-se de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação da vítima?
Aceso o debate com o surgimento de duas correntes com concepções diferentes para o
impasse. Defendida por muitos, mas em especial por Damásio Evangelista de Jesus e Rogério
Grecco, a primeira corrente, com respaldo jurídico no artigo 16 da Lei 11.340/2005, admite a
existência de lesões corporais, ainda que praticadas em desfavor das mulheres, que sejam
condicionadas à representação da ofendida. Salientam que o legislador pretendeu alterar a
exegese do artigo 88 da Lei 9.099/1995.
Ao passo que a segunda corrente, defendida por Guilherme de Souza Nucci, Luiz
Flávio Gomes e Marcelo Lessa Bastos, com concepção oposta, procurou influenciar aqueles
que acreditam que a lei 11.340/2006 trouxe importantes mudanças e meios coercitivos
capazes de mudar a triste realidade vivenciada por inúmeras mulheres que são agredidas
cotidianamente em nosso país e se escondem na dor e sofrimento físico e moral, muitas vezes
para poupar seus companheiros ou mesmo por reprimenda dos mesmos.
Levando-se em consideração a concepção perfilhada pela segunda corrente, defensora
de que o legislador pretendeu, na elaboração da lei 11.340/2006, extirpar da sociedade
brasileira os crimes praticados contra a mulher, e para tanto inovou ao retirar dos Juizados
Especiais a competência para processar e julgar os crimes praticados com violência doméstica
e familiar contra a mulher criou-se certo infortúnio àquelas vítimas que de fato não
pretendiam representar contra seus companheiros.
15
O assunto mostra-se bastante controvertido entre nossos Tribunais Estaduais e até
mesmo entre os Tribunais Superiores. Sobre o tema declinado, a Sexta Turma do STJ proferiu
decisões distintas a casos congêneres, senão vejamos:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA
MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA.
PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA
INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA.
1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência
à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos
para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da
Constituição da República).
2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser
base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos
dificilmente terão condições de convive sadiamente em sociedade, daí a
preocupação do Estado em protege especialmente essa instituição, criando
mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.
3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no
crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal.
4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e
familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006).
5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por
força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse
Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada.
6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo
44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal
qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos
Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da
vítima.
7. Ordem denegada (BRASÍLIA, STJ, HC96992/DF, Relator Min. Jane Silva,
2009).
Lei Maria da Penha. Delito de lesões corporais de natureza leve (art. 129, § 9º do
CP). Ação penal dependente de representação.
Possibilidade de retratação da representação. Extinção da punibilidade pela
decadência.
1. O art. 16 do Lei nº 11.340/06 é claro ao autorizar a retração, mas somente
perante o juiz. Isto significa que a ação penal, na espécie, é dependente de
retratação.
2. Outro entendimento contraria a nova filosofia que inspira o Direito Penal,
baseado em princípios de conciliação e transação, o objetivo de humanizar a pena e
buscar harmonizar os sujeitos ativo e passivo do crime (BRASÍLIA, STJ,
HC113608/SP, Relator Min. Og. Fernandes, 2009).
Não se pode olvidar que os crimes praticados no âmbito familiar devem ser tratados
com acuidade, uma vez que pode o Estado exercer a jurisdição para punir aqueles agressores
já perdoados pela própria vítima.
Assim, aplicando-se por analogia o Art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, “na
aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
16
comum” (BRASIL, 1942), cabe ao julgador, antes de aplicar a literalidade de qualquer texto
legal direcioná-lo para os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito.
Por tais razões, rogando-se vênia à concepção daqueles que comungam com a tese de
que a Lei 11.340/2006 trouxe meio coercitivo que deve ser respeitado, extirpando dos
Juizados Especiais a competência para processar e julgar ações provenientes dos crimes de
lesão corporal leve praticada no âmbito familiar, tal situação mostra-se contrária aos
princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade.
Rômulo de Andrade Moreira cita bons exemplos que demonstram a discrepância da
Lei 11.340/2006:
A prevalecer a tese contraria, em uma lesão corporal leve praticada contra uma
mulher a ação penal independe de representação (é pública incondicionada), mas
uma lesão corporal leve cometida contra um infante ou um homem de 90 anos
depende de representação. Outro exemplo: um pai agride e fere levemente seus dois
filhos gêmeos, um homem e uma mulher; receberá tratamento jurídico-criminal
diferenciado (MOREIRA, 2009, p. 21).
Precisas foram as palavras do Ministro Celso Limongi que, convocado pelo Superior
Tribunal de Justiça para o julgamento do Habeas Corpus n.º 113.608/SP assim deliberou:
Não posso deixar de levar em consideração as consequências da dispensa de
representação: muitos casais se reconciliam após momentos de crises, às vezes mais
duradouras, outras passageiras. E a dispensa de representação obrigaria ao
prosseguimento da ação penal, até com, agora indesejada, condenação do réu.
Retornaríamos à época em que a jurisprudência, no caso de reconciliação, aplicava
a chamada "boa política criminal" e absolvia o réu, mesmo porque a ofendida,
arrependida, apresentava outra versão dos fatos e dizia que apenas se acidentara.
Nesse ponto, a dispensa de representação contraria toda a nova filosofia do Direito
Penal e até o Direito extrapenal, buscando sua humanização, com base na
conciliação. A dispensa de representação, na ação penal por delito de lesão corporal
de natureza leve, seria, data venia, uma passo atrás. Nem se dirá que a mulher fica
cerceada em seu direito de agir, pois querendo, basta representar e, assim mesmo,
como acontece nos crimes sexuais, a representação não exige forma sacramental
(BRASÍLIA, STJ, HC113608/SP, Relator Min. Og. Fernandes, 2009).
De mais a mais, também merece ser ressaltado o teor do Art. 12, inciso I, da Lei em
comento, uma vez que sua exegese é clara ao estabelecer que
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito
o registro da ocorrência deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os
seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo
Penal:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a
termo, se apresentada (BRASIL, 2006).
Não há como desconsiderar a expressão empregada pelo legislador no artigo 12, I, da
Lei 11.340/2006, visto que resta clara sua intenção em facultar à vítima a prerrogativa de
17
representar ou não contra seu agressor. Por mais relevante que sejam os argumentos
contrários, o legislador deixou clara sua intenção.
Ainda nos termos do voto do Sr. Ministro Celso Limongi no julgamento do Habeas
Corpus n.º 113.608/SP temos que:
ao afastar o legislador a Lei n° 9.099/95, como dispõe o artigo 41 da Lei Maria da
Penha, não o fez no tocante à dispensa de representação, porém, sim, quanto à
composição civil dos danos, à suspensão condicional do processo e à transação
penal. Não é outro o entendimento de Damásio Evangelista de Jesus e da
Desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal da Justiça do Rio Grande do
Sul, in ""Justilex", n° 70, artigo de Celso Jerônimo de Souza, Ricardo Coelho de
Carvalho e Samoel Martins Evangelista, sobre Violência doméstica e a natureza
jurídica da ação penal (BRASÍLIA, STJ, HC113608/SP, Relator Min. Og.
Fernandes, 2009).
Ademais, afastar a autonomia da vítima nos casos de lesão corporal leve praticada no
âmbito familiar seria ir de encontro com a política jurisdicional contemporânea de mínima
intervenção estatal. Nesse sentido, não se pode olvidar que retirar da vítima a prerrogativa de
representar contra seu agressor em crimes de lesão corporal leve praticados no recanto
familiar poderá trazer à própria vítima embaraços maiores talvez do que aqueles criados com
a própria agressão sofrida, uma vez que o Estado poderá dar continuidade em uma Ação Penal
que pode vir a criar dificuldades a uma eventual reconciliação do casal.
Em que pese os valorosos argumentos defendidos por aqueles que acreditam que a
ação proveniente dos crimes praticados contra a mulher no âmbito familiar seria pública
incondicionada, não há como negar que a inobservância da vontade da vítima, resguardada
pela própria lei 11.340/2006, poderia criar efeitos às avessas do que aqueles princípios
realmente protegidos.
4 O ESTEREÓTIPO DE VÍTIMA CRIADO PELA LEI 11.3040/06 E AS SUAS
CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS.
No capítulo primeiro já foi feita a reconstrução do contexto histórico e paradigmático
(Estado Social de Direito) em que a Lei 11.340/06 foi forjada, o que carreou para o gênero
feminino o estereótipo de “sexo frágil”, que sempre é a vítima de crimes de violência
perpetrados no âmbito doméstico e familiar. Este processo de constante vitimização é
conseqüência do tratamento paternalista que é dado pelo Estado Social aos sujeitos de direito,
18
especialmente em relação à luta política por reconhecimento do gênero feminino e as próprias
legislações que lhes são direcionadas. Percebe-se, como diz Habermas, que as mulheres são
tratadas de forma
assimétrica e desfavorável à igualdade de direitos. A diferenciação de situações de
vida e experiências peculiares ao gênero não recebe consideração adequada, nem
jurídica, nem informalmente, tanto a autocompreensão cultural das mulheres quanto
a contribuição que elas deram à cultura comum, estão distantes de contar com o
devido reconhecimento (HABERMAS, 2002, p. 238-239).
Questiona-se, então, a forma pela qual a Lei 11.340/06 tenta promover a igualdade
entre os gêneros pelo combate à violência doméstica conferindo à mulher o estereótipo de
vítima e não de sujeito de direito apto a participar da construção autônoma de sua identidade
num Estado Democrático de Direito, em que a autonomia pública e privada são
necessariamente complementares.
Assim, inúmeros dispositivos legais trazidos pelo referido diploma legal,
especialmente as medidas protetivas, supostamente voltados para a promoção e a proteção de
direitos fundamentais de mulheres em situação de violência doméstica, na verdade retiram
delas o direito de optar “de forma autônoma em relação ao seu próprio projeto de vida”
(HABERMAS, 2002, p. 294), acarretando novas discriminações.
Constata-se que se uma mulher comparece perante uma autoridade policial para relatar
que foi vítima de uma agressão ou violência sofrida no âmbito doméstico ou familiar,
automaticamente se reproduz a imagem da Srª. Maria da Penha Maia Fernandes, em que a
mulher passa a ser vista como um sujeito fragilizado que necessita de uma tutela protetiva por
parte do Estado contra o homem, que é visto a partir de sua índole agressiva e violenta.
Não resta dúvida acerca da brutalidade e da conturbada relação afetiva vivenciada pela
Srª. Maria da Penha no âmbito doméstico e familiar com o seu cônjuge. Entretanto, este caso
não pode servir como paradigma ao demais como se em todas as hipóteses o agressor seja
sempre o homem e a vítima seja sempre a mulher.
Esta imagem da mulher como vítima é notória e vem sendo reproduzida ao longo de
toda a legislação 11.340/06, quando, por exemplo, impõe ao agressor um procedimento
processual penal com maior rigor e especializado, com fito de promover a proteção à
vulnerabilidade das vítimas, o que na verdade retira daquele os direitos fundamentais e
garantias processuais consagrados pela constituição e pela legislação infraconstitucional, que
poderiam lhe ser assegurados se fosse adotado o procedimento previsto na lei 9099/95 para
apurar os crimes de menor potencial ofensivo. Na hipótese de lesão corporal leve, por
19
exemplo, o acusado teria o direito à transação penal, à possibilidade de suspensão do
processo, à substituição de pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos e a
possibilidade de composição civil dos danos, o que foi abolido na Lei 11.340/06. Tais
supressões foram realizadas com fito de punir com mais rigor autores de crimes marcados por
agressões e/ou violência doméstica e familiar.
Mas na verdade, trata-se de uma verdadeira barbárie hermenêutica em relação à
interpretação constitucionalmente adequada da questão da violência doméstica e familiar no
paradigma do Estado Democrático de Direito, eis que se promove um hiato cada vez maior
entre agressor e vítima, ao invés de zelar pela obtenção de uma solução consensual do conflito
se ambos fossem tratados de forma simétrica e paritária, num discurso com iguais condições
de fala, resguardadas pelas garantias do devido processo legal e constitucional.
As decisões judiciais dos Tribunais pátrios em relação a vários dispositivos legais da
Lei Lei 11.340/06, infelizmente, também estão sendo fundamentadas à revelia do paradigma
do Estado Democrático de Direito. Exemplo típico é o que ocorre nas hipóteses de lesões
corporais leves e culposas praticadas contra a mulher, no ambito familiar ou doméstico, em
que o Art. 41 do referido diploma legal afasta a aplicação da Lei 9099/95, de forma que a
ação penal para a apuração de tais crimes deve ser necessariamente pública incondicionada.
Fundamenta-se que desta forma estará sendo promovida a proteção à entidade familiar
preconizada pelo Art. 226, §8º da CR/88 (BRASÍLIA, STJ, HC96.992/DF, Relator Min. Jane
Silva, 2009) e que “se prescinde, portanto, do direito de representação” (ESPIRÍTIO SANTO,
2008). Assim, a vítima que não pretende que o agressor seja processado, julgado e apenado
com pena privativa de liberdade, seja porque não pretende a sua punição ou porque tenha
cessado a violência no âmbito familiar ou doméstico, não tem o direito de representar contra o
agressor e posteriormente se retratar em relação à representação.
Embora já tenha havido um abrandamento desta interpretação, admitindo-se a
possibilidade de a ação penal ser pública condicionada à representação da vítima, sendo
passível de posterior retratação, aquela interpretação canhestra do Art. 41 da Lei 11.340/06
ainda vem sendo admitida. Isso porque há uma sanha por parte do Estado em punir o agressor
do crime de violência doméstica a qualquer custo, independente da vontade da vítima, o que
representa uma verdadeira violação ao exercício de sua autonomia privada. Presume-se que “a
única solução para o conflito de violência doméstica é a pena de prisão e trata-se a mulher
como um sujeito incapaz de fazer escolhas conscientes sobre as suas opções de vida”
(BARROS; MACHADO, 2006, p. 5203).
20
Na verdade, a equiparação às avessas do gênero feminino ao masculino pela Lei
11.340/06, promovendo a exclusão do homem da condição de vítima de crimes de violência
doméstica através de um procedimento penal mais rigoroso, apenas afunilou o conflito entre a
vítima e o agressor e endossou o estereotipo da mulher que sempre é e será vista tal como a
Srª. Maria da Penha Maia Fernandes.
Há várias conseqüências sociais em razão do acatamento acrítico das interpretações
canhestras dos dispositivos legais da Lei 11.340/06. Primeiramente, é que o direito penal
muitas vezes não traz a solução mais adequada para a resolução de conflitos familiares e deve
ser aplicado apenas como ultima ratio. Isto é, o Estado deve intervir de forma mínima,
resguardando aos sujeitos de direito a possibilidade de solucionar o conflito com medidas
extrapenais e quando for indispensável a sua intervenção em conflitos familiares ou
domésticos esta deve ser realizada da forma mais branda possível, respeitadas todas as
garantias processuais constitucionais que informam o princípio do devido processo (legal e
constitucional).
Dessa forma, fatos típicos idênticos não podem ensejar um tratamento jurídico-penal
distinto e uma punição diferenciada, como por exemplo, acaso o crime de violência ou
agressão no seio familiar ou doméstico tenha sido praticado pela mãe em relação ao filho.
Nesta mesma linha de raciocínio, quando há agressões recíprocas entre homem e
mulher, aplicando-se de forma acrítica a Lei 11.340/06, apenas o agressor do sexo masculino
que tenha agredido a vítima do sexo feminino, será processado e julgado sob a égide do
referido diploma legal, sendo recolhido em um estabelecimento prisional e tendo que respeitar
as medidas protetivas quando requeridas.
O problema da violência doméstica, “não é de natureza jurídica, mas sim social, de
forma que a Lei 11.340/06 deveria ter um caráter preventivo e não punitivo” (WILLIAMS;
PINHEIRO, 2002, p. 272-273), como vem sendo interpretada. Em entrevista feita com
grupos de mulheres que são consideradas vítimas destes tipos de agressões, que geralmente
são perpetradas por seus parceiros, restou comprovado que em torno de 60% dos homens
fazem uso excessivo de bebidas alcoólicas e que a maioria das queixas perante a autoridade
policial especializada acontece justamente na segunda feira (informação verbal)12. Mas não
podem ser feitas generalizações de que todos os homens agem desta forma, criando também o
estereotipo do homem como propenso à agressão e à violência.
12
Jornal
O
dia,
notícia
publicada
no
dia
30/04/2008.
Disponível
<http://odia.terra.com.br/blog/blogdaseguranca/200804archive001.asp> Acesso em: 10 mai. 2009.
em:
21
Há que se considerar, ainda, que um número considerável de mulheres se vale da
apresentação da queixa-crime, quando esta é exigida, como uma tentativa de fazer cessar a
violência perpetrada por seus parceiros, em razão do mito que já se criou em torno do
estereótipo de agressor do gênero masculino e de vítima do gênero feminino.
Constata-se que a maioria dos casos a violência doméstica está relacionada com a
utilização de entorpecentes, bebidas alcoólicas, enfim, tem fundamento em algum vício. E, em
tais hipóteses o mais prudente é submeter o agressor a um tratamento médico ou psicológico e
não processá-lo e julgá-lo, tendo como fundamento a Lei 11.340/06, estando sujeito ao
encarceramento em estabelecimentos prisionais precários onde terá contato direto e intenso
com pessoas de alta periculosidade e que foram condenadas por crimes de tráfico de drogas,
homicídio, estupro, roubo, dentre outros.
Isto é, segregar um homem que ameaça ou agride a sua mulher quando está
alcoolizado não é a medida adequada à resolução de um problema que é nitidamente social,
eis que se pode acabar endossando o aumento da criminalidade.
Frisa-se, uma vez mais, que a finalidade do Direito Penal é tutelar os bens jurídicos
considerados essenciais à sociedade apenas quando outros ramos do direito não são eficientes
para protegê-lo. Assim, a solução mais adequada para coibir a violência doméstica pode ser
resolvida no âmbito do direito de família, pela legislação civil, e, apenas em último caso pelo
direito penal:
O direito penal deve, portanto, interferir menos possível na vida em sociedade,
somente devendo ser solicitado quando os demais ramos do direito,
comprovadamente, não forem capazes de proteger aqueles bens considerados de
maior importância (GRECO, 2003, p. 54).
Conclui-se, então, que o direito penal não é o meio eficaz para se combater a violência
de gênero no país eis que se faz necessário erradicar as causas desta modalidade de violência
através da implementação de políticas públicas que promovam o reconhecimento e a inclusão
da mulher na sociedade. Além disso, o sistema penal
não previne novas violências, não dá ouvidos aos distintos interesses das vítimas e
não contribui para a compreensão da própria violência e a gestão do conflito e,
muito menos, para a transformação das relações de gênero (ANDRADE, 2003, p.
120).
Portanto, caberia também à mulher que foi vítima de agressão procurar solucionar o
conflito, por exemplo, através do ajuizamento de ações de separação e divórcio judicial e
também pela reparação civil em virtude do cometimento dos crimes de injúria, calúnia e
22
difamação, medidas que podem ser eficazes sem que haja necessidade de uma intervenção
imediata do Direito Penal.
Suscitadas as críticas em relação à interpretação mais adequada da Lei Maria da Penha
no marco do Estado Democrático de Direito, percebe-se que o deferimento das medidas
protetivas muitas das vezes ao invés de representar uma fonte para a punição do agressor, na
verdade representa uma ameaça aos princípios isonomia, pois “saímos da ditadura do
masculino para a ditadura de um feminino estereotipado, que nega tudo o que é feminino”
(JUNIOR; PASCHOAL, 2007, p.3).
Apesar das inúmeras inconstitucionalidades que foram constatadas em relação à Lei
11.340/06 neste tópico, nenhuma delas poderá ser efetivamente combatida se o próprio gênero
feminino continuar avocando para si o estereótipo do sexo fragilizado, numa visão
paternalista que necessita de uma contínua intervenção estatal para promover uma igualdade
em relação ao gênero masculino, a partir de práticas discriminatórias em relação ao mesmo,
pois
a vítima no Estado Democrático de Direito, deve ser compreendida a partir de sua
autonomia público e privada. Percebe-se que todas as medidas (previstas na Lei
11.340/06) são verdadeiras formas de deslegitimação do direito, pois não permite
assegurar nem à vitima nem ao acusado os seus direitos fundamentais de sujeitos de
direitos (BARROS; MACHADO, 2006, p. 5204).
CONCLUSÃO
A Lei 11.340 de 2006 teve como objetivo precípuo criar mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição
da República Federativa do Brasil. Entretanto, em uma análise detalhada e por meio de uma
interpretação lógico-sistemática da Constituição verifica-se que o §8º buscou resguardar a
família e, portanto, determinou a criação de mecanismos para coibir a violência perpetrada
contra qualquer pessoa que integra a família e, não somente a mulher.
Logo, equivoca-se o legislador ao afirmar que a Lei 11.340/06 garantiu eficácia plena
a essa norma constitucional. Ademais, o art. 5º caput da C.R./88 prevê o princípio da
isonomia, ao afirmar que todos são iguais perante a lei. Logo, uma lei que determina que
somente a mulher poderá ser beneficiada por essa lei, viola esse princípio expresso na
Constituição.
23
Em uma análise superficial da Lei supracitada conclui-se pela sua incompatibilidade
com as normas constitucionais e conseqüente inconstitucionalidade. No entanto, o Supremo
Tribunal Federal não declarou a inconstitucionalidade dessa lei o que significa que ela
continua vigente e aplicável. Cabe aos intérpretes do direito, como os advogados, partes,
juízes e promotores de justiça, a tarefa de harmonizá-la à Constituição quando de sua
aplicação. A Lei 11.340/06 deverá ser aplicada para coibir toda e qualquer violência
decorrente de relação doméstica e familiar, independente do gênero da vítima.
Sempre que o legislador se referir a “mulher”, deverá este signo representar um
significado extensivo, englobando todo ser humano, sem que sejam ressalvadas as
características quanto ao gênero, quanto à opção sexual, ou outras distinções possíveis para
limitar quem poderá ser a vítima. Diante dessa interpretação extensiva da vítima dessa lei,
conclui-se que o princípio da isonomia está sendo respeitado.
Entretanto, em uma análise detalhada da Lei verifica-se uma aparente antinomia entre
as suas normas. O art. 41 da Lei 11.340/06 proíbe a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes
praticados contra o ser humano no âmbito doméstico e familiar. Ao passo que o art. 16
determina que a renúncia à representação por parte da vítima, nas ações penais públicas
condicionadas à representação, só será admitida perante o juiz.
A Lei 9.099/95 estabelece que no crime de lesão corporal leve e culposa será exigida a
representação da vítima para a propositura da ação penal, mas, o art. 41 proíbe a aplicação
dessa Lei. Logo, uma conclusão superficial seria que toda ação será pública incondicionada, o
que contraria o Estado Democrático de Direito e viola a dignidade da pessoa humana.
Portanto, a conclusão deverá ser no sentido de que cabe à vítima optar por representar ou não
quando sofrer lesão corporal leve ou culposa. Se optar por representar, ela só poderá renunciar
a essa representação perante o juiz.
Enfim, conclui-se que a Lei 11.340/06 deve ser interpretada conforme a Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, sob pena de posterior declaração de
inconstitucionalidade. Ademais, os institutos e conteúdos jurídicos previstos nessa lei devem
ser compreendidos por meio de interpretação lógico-sistemática com as normas
constitucionais, para que se coadunem com o Estado Democrático de Direito.
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da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
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