Enrique Dussel é conhecido no Brasil pelo seu trabalho na CEHILA

Transcrição

Enrique Dussel é conhecido no Brasil pelo seu trabalho na CEHILA
Enrique Dussel é conhecido no
Brasil pelo seu trabalho na
CEHILA sobre a história da Igreja
na América Latina e tambétri por
seus escritos sobre ética. Ele é o
principal responsável pela
"periodizaçáo" da história da Igreja
em nosso continente. Neste livro
nos apresenta a história da teologia
na América Latina.
Após apresentar o "status
quaestionis" no cap. 1, mostrando
todo o esforgo ideológico da
atividade teológica, e contrapor a
teologia do "centro" à teología
latino-americana, vai examinando
o desenrolar da teologia nas cinco
épocas da história da América
Latina. Finalmente, no cap. 3,
estuda a teología nos vários
períodos da sexta época, que va¡ de
1959 até hoje. Esta última época,
que comeja com os encontros
gerais do CELAM, é também a
época da teología da libertagáo,
que nasceu da prática pastoral no
meio dos pobres. Termina
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmra Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Dussel, Enrique D., 1934Teologia da Libertação : um panorama de seu desenvolvimento
Enrique Dussel; tradutor Francisco da Rocha Filho- - Petrópolis, RJ: Vozes,
19 9 7. - (Temas religiosos contemporâneos)
Título original: Teologia de Ia Liberación : un panorama de su
desarrollo.
ISBN 85.326.2204-6
1. América Latina - História da Igreja 2. Teologia da Libertação 3. Teologia
dogmática - América Latina - História I. Título.
97-1229 CM-261.8098
índices para catálogo sistemático
1. América Latina: Teologia da Libertação 261.8098
Enrique Dussel
Teologia da libertação
Um Panorama de seu desenvolvimento
Tradução de
Francisco da Rocha Filho
EDITORA
VOZES
Petrópolis
1999
©Enrique Dussel
© 1995, Potrerillos Editores S.A. de C.V.
Vicente Suárez 7 2 - Colonia Condesa - Ciudad de México
Título do original espanhol: Teologia de Ia liberación - Un panorama
de su desarrollo.
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25689-900 Petrópolis, RJ
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ISBN 968-7441-02-X (edição espanhola)
ISBN 85.326.2204-6 (edição brasileira)
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. -Rua Frei Luís, 10 0. Petrópolis, RJ
-Brasil -CEP 25689-900 -Tel.: (OXX24) 237-5112-Fax: (OXX24) 231-4676-Caixa Postal 90023.
INDICE
PREFÁCIO, 7
CAPíTULO PRIMEIRO
IDEOLOGIA E HISTÓRIA DA TEOLOGIA, 9
Constituição ideológica da teologia, 9
Condicionamentos ideológicos da teologia do "centro", 15
CAPíTULO SEGUNDO
HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA I, 23
PRIMEIRA ÉPOCA. Primeira Teologia da Libertação. Teologia profética
entre a conquista e a evangelização (desde 15 11), 23
SEGUNDA ÉPOCA. A Teologia da cristandade colonial (1533-1808), 29
TERCEIRA ÉPOCA. Segunda Teologia da Libertação. Teologia revolucionária diante da emancipação contra a Espanha e Portugal (desde
meados do século XVIII), 34
QUARTA ÉPOCA. A teologia neocolonial na defensiva (até 1930), 40
QUINTA ÉPOCA. A teologia da "Nova Cristandade" (desde 1930), 42
CAPíTULO TERCEIRO 1
HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA II (Sexta época), 5 1
PRIMEIRO PERÍODO. Da teologia européia à latino~americana
(1959-1968), 51
SEGUNDO PERÍODO. Formulação da Teologia da Libertação
(1968~1972), 59
TERCEIRO PERÍODO. A Teologia da "Igreja dos pobres" no cativeiro e
no exílio (1972-1979), 79
QUARTO PERÍODO. A Teologia latino-americana diante da revolução
centro-americana e os novos ataques (desde 1979), 91
QUINTO PERÍODO. Desde a "Instrução" romana de 1984, 102
Novos desafios da Teologia da Libertação no início da década de noventa, 108
Glossário, 120
PREFÁCIO
No debate, pela primeira vez em âmbito mundial, do tema da
teologia da libertação latino-americana, provocado em parte pelo
aparecimento da "Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da
Libertação " da Sagrada Congregação para a Doutrina da fé
-promulgada em Roma no dia 6 de agosto de 1984, mas só publicada
em 3 de setembro pelo Cardeal Joseph Ratzinger (meu professor em
Muenster em 1964) - colheu muitas pessoas um tanto desprevenidas, já
que passaram a se indagar sem um prévio conhecimento: o que é essa
teologia da libertação?
Na realidade, na Europa latina ou germânica, ou na eslava
(incluindo a Rússia ou a Polônia), a América Latina é a grande
desconhecida. Algumas pessoas podem pensar que a teologia da
libertação não possui antecedentes e é uma criação de alguns teólogos
e produzida por situações totalmente novas. Desejaríamos que
tomassem consciência de que os grandes momentos criadores de
teologia na América Latina foram, desde sua origem, teologia da
libertação diante da opressão sofrida pelos "pobres" de nosso
continente. No começo, e para o agora tão celebrado "descobrimento"
-que na realidade foi conquista, violência e morte dos ameríndios -, os
pobres foram os indígenas ou primitivos habitantes americanos; depois
as vítimas foram os criollos ante os "europeus intrusos 11 como os
denominava o grande herói rebelde cristão Túpac Amaru - e na
atualidade são as massas populares de operários, camponeses, etnias,
marginais, o bloco social dos explorados pelo capitalismo nacional e
transnacional. Diante dessas três opressões históricas que se sucedem
no tempo e que possuem o mesmo sujeito histórico: o povo latinoamericano - e quando se produz objetivamente uma práxis de
libertação do mencionado povo, já surgiram em três ocasiões teologias
da libertação. Se aqueles que desejam condenar-nos sem conhecer a
nossa realidade se debruçassem com mais atençao sobre a nossa
história, é possível que não recaíssem em erros passados. É necessário
não esquecer que o Papa Pio VII condenou a
7
emancipação americana contra a Espanha a 30 de janeiro de 1816 em sua
encíclica Etsi longissimo. E como uma nova incidência no mesmo erro
político do papado - já que nesse nível, como no da recente "Instrução",
em nada está comprometida a infalibilidade pontificia, pois se trata de
disposições referentes ao nível político mais que ao espiritual, como
veremos - uma nova encíclica, a Etsi iam diu de 24 de setembro de 1824,
volta a condenar as lutas da emancipação, aconselhando obediência ao
Rei da Espanha, "nosso muito amado filho Fernando", no qual o Papa
observa "sublime e sólida virtude" - sendo que na realidade fugiu
covardemente deixando a defesa da pátria contra a invasão napoleônica
nas mãos do próprio povo espanhol. Por fim, carência de conhecimento
romano da nossa realidade, devido a uma informação deficiente. É por
isso que a história poderá nos defender diante de decisões precipitadas.
Enrique Dussel
Cidade do México, 1995
CAPíTULO PRIMEIRO
IDEOLOGIA E HISTÓRIA DA TEOLOGIA
0 contexto da história da teologia na América Latina é a história da
teologia do "centro", originariamente do Mediterrâneo e da Europa e
hoje, por extensão, dos Estados Unidos. O contexto da biografia do
filho é a biografia do pai, o que não quer dizer que o filho seja o pai e
sim, muito pelo contrário, que é somente o seu contexto. A teologia
latino-americana é filha da europeia, porém é diferente; é outra: é um
acesso diferente à mesma tradição porque surge num mundo
"periférico" dentro da época moderna mercantil primeiro e depois
imperial monopolística. A teologia de um mundo colonial ou
neocolonial pode por momentos refratar a teologia do "centro", mas,
nos momentos criativos, produzirá uma nova teologia que se erguerá
contra a grande teologia constituída tradicionalmente. É nesse
movimento de refração imitativa ideológica ou de criatividade que
acede à realidade distinta de nosso mundo latino-americano que se
decidirá a sorte da história da teologia em nosso continente dependente.
Examinemos a questão por partes.
CONSTITUIÇÃO IDEOLÓGICA DA TEOLOGIA
A noção de ideologia' é descoberta pelo seu oposto: a revelação
não-ideológica. Se há uma expressão que permite furar a crosta externa
de todo sistema ideológico constituído é a proto-palavra, a exclamação
ou interjeição de dor, conseqüência imediata do traumatismo sentido. 0
"Ai! " do grito de dor produzido por um golpe, uma ferida, um
acidente, indica de maneira imediata não algo mas sim alguém. Aquele
que ouve um grito de dor é pego de surpresa por
1 . Veja-se uma bibliografia mínima sobre ideologia na obra de Kurt Lenk, ldeologie.
ldeologiekritik and Wissensoziologie, Berlim, 1971 (Trad. esp. Buenos Aires, 19 74),
9
que irrompe em seu mundo cotidiano e integrado o sinal, o som, o
ruído que quase permite vislumbrar a presença ausente de alguém na
dor. Não se sabe, ainda, que tipo de dor nem o porquê do grito, e por
isso éinquietante até que se saiba quem é e por que se lamenta. O que o
referido grito diz é secundário; o fundamental é o próprio dizer, é que
alguém diz algo. No grito de dor não se apresenta o dito mas um dizer,
a propria pessoa, a exterioridade que provoca: que "voca" ou chama
pedindo ajuda. No entanto, exclamar "Socorro! " é já uma palavra de
uma linguagem, de uma cultura. 0 grito, antes de ser uma palavra de
auxílio, é talvez o sinal mais distante do ideológico: "Ouvi o seu
clamor por causa dos seus opressores" (Êxodo 3,8); "... e lançando um
grande grito expirou" (Marcos 15,37). É o limite da revelação humana,
e divina, que se situando fora do sistema o coloca em questão - quando
a dor éproduzida pela opressão, quer dizer, pela injustiça ou dornínação
sobre o Outro, que é a dor de já e não uma mera dor física, ainda que
esta também questione.
O grito de dor como o "Tenho fome!" exige uma resposta
premptória. A resposta que traz como obrigação a responsabilidade: ser
responsável ou tomar a seu cargo aquele que clama e a sua dor. Nessa
responsabilidade se fundamenta a religião autêntica e o culto2 , e o
traumatismo que sofre aquele que se arrisca pelo Outro que clama é no
sistema a glória do infinito. "Tenho fome! " é a revelação de que o suco
gástrico molesta ou sensibiliza as paredes internas do estômago. Esse
ácido que produz dor é o apetite; o "desejo" de comer. Este desejo
carnal, corporal, material é já o desejo do Reino dos Céus em sua
significaçao más real: é a insatisfação que exige ser saciada. Quando se
trata da fome de um povo, habitual, a fome da pobreza, é o lugar donde
surge a palavra não-ideológica. Esse é o carnalismo ou adequado
materialismo que Jesus coloca como critério supremo do Juízo: "Tive
fome e me destes de comer" (Mateus 2 5,3 5).
O "Ai!" da dor primeira, o "Tenho fome!", já articulado numa
linguagem, numa classe social, num povo, num momento da his
2. Vide Capítulo X, "La Arqueológica", de meu livro Para una ética de lu liberación
latinoaincric~ma, USTA, Bogotá, t.V, 1980 (em port. Loyola/UNIMEP São Paulo /Piracicaba,
1977).
10
tória, faz referência à Realidade ou exterioridade de todo sistema
constituído. Não podem ser expressões ideológicas. São as palavras
políticas ou primeiras, as que instauram nova totalidade de linguagem
e de formulações conceituais de sentido.
Efetivamente, só a provocação para a constituição de um novo
sistema, que satisfaça a insatisfação do pobre do antigo sistema, é o
ponto de partida da libertação da língua. Mas tão logo o grito foi
escutado e formulado, tão logo se tenta organizar um novo sistema e se
esboça um modelo, tão logo se conceitualizam as mediações para a sua
realização e muito mais quando o sistema foi construído, uma nova
totalidade estruturada ocupa agora o lugar da antiga totalização. No
seio de todo sistema ou totalidade os conceitos e as palavras se
estruturam por sua parte em uma totalidade significativa, mas, como o
sistema é dominado por alguns, por certas classes ou grupos, o projeto
desses grupos se impõe a todo o sistema. A partir desse momento a
conceitualização e a linguagem do grupo dominador se confunde com a
"realidade" das coisas e com a linguagem enquanto tal. O conceito, a
palavra que o expressa, fundamenta, por um lado, a ação de todos os
membros do sistema, mas, ao mesmo tempo, oculta não só as
contradições internas do sistema como, e principalmente, a
exterioridade do pobre3. É nesse momento que a formulação (o
conceito, a palavra: a idéia) se converte em ideologia: representação
que na função prática oculta a realidade4. Há então uma dialética entre
descobrimento e en-cobrimento e entre teoria e práxis.
Quando Jesus diz que "eles não sabem o que fazem" (Lucas
23,34), demonstra explicitamente e com clareza essa dupla dialética
entre descobrimento (o "saber" é visão) e en-cobrimento ("não"
sabem), entre teoria (o "saber" é teoria) e práxis (o "fazer" é práxis).
Trata-se de uma autêntica reflexão teológica sobre a ideologia, em
situação limítrofé por outro lado, já que Jesus está sendo
3. Veja-se o que dissemos no artigo " D omi nação -libertação", em Concilium 96, junho de 1974.
4. Dar-lhe-emos neste trabalho um sentido restritivo à noção de "ideologia", não como toda expressão
de uma classe ou grupo humano, mas quando oculta a realidade e suas contradições conflituais
básicas.
11
torturado num momento de clara significação política, entregue pelo
seu governo e sacerdócio nacional diante das autoridades do império.
Não saber o que se faz é o mesmo que dizer que a interpretação da
práxis que se opera não consegue descobrir seu sentido verdadeiro.
Certamente os soldados sabem o que fazem num certo nível: estão
pregando cravos num condenado político. No entanto, fica encoberta
àinterpretação sua verdadeira significação, o sentido último de sua
práxis. Essa é, exatamente, a função prática da ideologia: produzir um
certo conhecimento que fundamenta a ação mas que ao mesmo tempo
oculta o plano fundamental de seu sentido derradeiro ou real. Jesus nos
introduz então na crítica da ideologia.
A ideologia é então um sistema interpretativo-prático. Tomemos
um exemplo latino-americano no nível da interpretação cotidiana
primeiro e da formulação teológica depois.
A conquista da América, que se inicia desde o próprio
descobrimento em 1492, não é somente um feito individual mas sim
histórico-político. A Europa começou mediante a Espanha e Portugal
sua expansão dominadora sobre o mundo periférico. Seguiramse depois
Holanda, Inglaterra, França, etc. Na Espanha, por exemplo, houve
desde 1493 a "justificação" teórica da conquista. O Papa Alexandre VI
expediu a bula Inter coetera de 1493 em favor dos reis católicos da
Espanha porque isso lhe permitia evangelizar aquelas terras e sujeitálas
ao seu domínio. É assim que na Recopilação das Leis dos Reinos das
índias (efetuada em 1681), na primeira lei do primeiro título do
primeiro livro, está expresso que o senhorio5 do rei da Espanha sobre os
novos reinos é devido à obrigação que o monarca contraíra com a Santa
Sé de doutrinar os índios na fé católica. Dessa maneira se "justifica" a
práxis conquistadora a partir de um fundamento teórico: a bula
pontificia. Toda a estrutura jurídica concreta do século XVI
hispano-americano foi, está bem claro, um tipo de ideologia. Por trás de
belos principios ocultava-se, se encobria, o sentido real da práxis
conquistadora. 0 sentido encoberto era o de que na
5. "Deus nosso Senhor, por sua infinita misericórdia e bondade, se dignou dar-nos sem nossos
merecimentos tão grande parte no Senhorio deste mundo", diz o Rei da Espanha na Recopiloçáo
I,I,I.
12
realidade os europeus tinham dominado o índio reduzindo-o à mais
horrível servidão. A morte, o roubo, a tortura (que era o fruto real da
práxis conquistadora) ficavam encobertos pela interpretação ideológica:
a evangelização. As bulas desempenhavam na consciência cotidiana do
conquistador a mesma função ideológica que a doutrina
norte-americana do Manifest destiny, graças à qual Houston ocupou o
Texas e o desprenderá depois da nação mexicana em 1846. Todos os
impérios possuem razões (irracionais) que lhes permitem fundamentar
sua ação dominadora; mas tais razões são ideológico-existenciais no
plano concreto cotidiano.
O nível ideológico cotidiano é elevado ao nível da ideologia como
ciência no caso de alguns exemplos teológicos, já que a própria ciência,
enquanto deve aceitar como principios Juízos evidentes (mas com
evidência histórico-cultural), tem um momento inevitavelmente
ingênuo (a ciência não pode por definição demonstrar seus princípios;
quer dizer, os princípios da ciência não são científicos, e desde
Aristóteles sabe-se que são objeto da dialética)66. É assim que a
ideologia que sustentava a práxis da conquista é alçada, por um Juan
Ginés de Sepúlveda (1490-15 7 3) e pelo mesmo Francisco de Vitoria
(1486-15 46), à condição de teologia. Para Ginés a conquista da América e
a guerra contra os índios é justa. A 11 causa da guerra justa (iusti belli
causa) por direito natural e divino (jure naturali et divino) é a que se
empreende contra a rebeldia dos menos dotados que nasceram para
servir, porquanto recusam o império de seus senhores; se não se pode
submetê-los por outros meios, a guerra é justa" - nos diz ele no
Democrates alter7 . É evidente que Ginés segue nisso a Aristóteles - no
tão ideológico texto sobre a escravidão na Grécia do livro I da
Política,mas também segue aos
6.Vide Aristóteles. Topicos 1,2, 101 a 26b 4; em minha obra Método para una filosofia de Ia
liberación, Salamanca, 1974, p. 17s (Loyola, São Paulo, 1986).
7. Cit. Venancio Carro. La Teologia y Ias teólogos-juristas españoles ente Ia conquista América
Madri, 1944, p. 5 9 3. C£ Juan Ginés de Sepúlveda, Opera, Real Academia de Ia Historia, Madri,
17 8 0, t. I-IV, e, em especial, Tratado sobre Ia justa guerra contra ]os indios, México, 1949. Vejase igualmente Juan Solórzano Pereira, De indiarum iure, Lugduni, t. I-II, e de Sílvio Zavala, La
filosofia política de Ia conquista de América, México, 1947. Nas obras de Lewis Hanke, Giménez
Fernández e J. Hoeffner foram estudadas com detalhes essas controvérsias teológico-políticas.
Sepúlveda dizia ainda que diante dos índios "convém usar (a arte da caça), já que essa se pratica
não somente contra as feras mas também contra aqueles que, tendo nascido para obedecer,
recusam a servidão; tal guerra é justa por natureza" (Extraído do Democrates alter, cit. Carro, op.
cit., P. 595).
13
autores medievais, e ainda a Tomás de Aquino no caso do ius
dominativum que os senhores feudais tinham sobre os servos8, na
esteira de outros professores contemporâneos como Juan Mayor (14691550) em Paris que ensinava que na América "aquele povo vive
bestialmente (bestialiter), pelo que o primeiro que os conquiste
imperará justamente sobre eles, porquanto são por natureza servos
(quia natura sunt servi) 9 . E por isso que ainda no melhor dos casos o
índio foi tido como um "rude", um "menino" que devia ser civilizado,
com pouca inteligência e propenso a seguir seus instintos; pouco dado
ao celibato", dizia um missionário.
O próprio Francisco de Vitoria, egrégio professor de Salamanca e
autor do De Indis (1537), indica que não se pode conquistar os índios
nem por terem religião diferente, nos diz em De iure belli (1538), nem
por direitos do rei, nem para pregar o evangelho, nem por
outorgamento pontifício, nem para opor-se ao pecado contra naturam
que um povo ainda selvagem poderia cometer. Mas por fim aceita que a
conquista é possível no caso de se impedir ao missionário anunciar
livremente o evangelho "libere annuntient Evangelium..." explica ele
na Relectio de indis, quarta conclusio): "por isso é possível, a fim de
evitarse o escândalo, doutriná-los ainda que contra a sua vontade... e
aceitar a guerra ou declará-la". Para o grande teólogo pela iniuria
accepta épermissível a conquista. "Dessa conclusão também se infere
claramente que, por essa mesma razão, se não é possível resolver de
outro modo o atinente à religião, torna-se lícito aos espanhóis ocupar
suas terras e províncias e estabelecer novos donos e destituir os antigos,
e fazer as demais coisas (sic) que por direito de guerra são lícitas em
toda guerra justa" (Ibid.). Observe-se então que, de fato, o teólogo
progressista europeu - o mais avançado de sua época sem qualquer
dúvida, já que em outros níveis defendeu valentemente o índio - não
pôde escapar a formulações ideológicas.
Como indicação final devemos concluir então que a ideologia das
classes dominantes ou das nações opressoras é encobridora, enquanto
que as formulações das classes oprimidas ou a dos profetas dos
mencionados grupos é crítica descobridora, é a articulação de sentido
que emana do grito do pobre.
8. Summa Theologiae, II-II, p. 57, art. 4.
9. In secundum sententianun, dist. XLIV, p. (Paris,
1510).
14
CONDICIONAMENTOS IDEOLÓGICOS DA TEOLOGIA DO "CENTRO"
A ideologia justifica então a práxis, ocultando ao mesmo tempo o
sentido derradeiro da mesma práxis, concedendo por outro lado "boa
consciência" ou "consciência de inocência" àquele que comete a
injustiça. A ideologia é a formulação (existencial ou científica) das
mediações do projeto do sistema sem que se mostre como tal: como
sistema de dominação. 0 que se encobre é a dominação em alguns de
seus níveis. Por isso é possível indicar o sentido ideológico da teologia
quando se descobre o tipo de dominação que oculta. Quer dizer, tratarse-ia de indicar os condicionamentos que inclinam a reflexão teológica
numa certa direção encobridora, naquela direção que beneficia ou
justifica a práxis do grupo, classe, nação ou cultura para a qual serve de
fundamento teórico. Tentemos exemplíficar o que foi dito mostrando
alguns dos condicionamentos que têm constituído alguns níveis
teológicos de maneira ideológica na história da teologia mediterrâneoeuropéia (que é o marco referencial da teologia latino-americana, que
só despontou no século XVI)10
Nos tempos originários do cristianismo, no Novo Testamento, por
ser a totalidade dos cristãos um grupo oprimido dentro do Império (a
Palestina era uma colônia distante) e também como classe social (os
primeiros batizados eram da classe desprezada e sem influências no
seio da estrutura de seu tempo), a função ideológico-encobridora das
primeiras formulações cristãs é mínima. Em Paulo denota-se um certo
machismo (no tocante ao problema da mulher) ou uma aceitação nãocrítica no nível sociopolítico do escravismo, por exemplo (na Epístola a
Filêmon) 11. Se por algo deve-se no entanto aceitar o evangelho é,
justamente, pelo seu estrito caráter crí
10. O que diremos sobre o desenvolvimento do pensamento teológico europeu só possui valor
indicativo. Daí que não será indicada nenhuma bibliografia específica. De qualquer modo, seria
proveitoso para a Europa escrever-se uma história da teologia tomando-a como um fenômeno que
inclui momentos ideológicos.
11. O momento ideológico-histórico em nada invalida o estatuto próprio da revelação, já que a
revelação consiste em suas virtualidades; crítico-escatológicas que desenvolvem sua
potencialidade em seu momento. A revelação inspira a ação antiescravagista do mestre Ramírez,
SJ, ou de seu discípulo S. Pedro Claver, SJ, em Cartagena das índias, em fins do século XVI, assim
como o antimachismo dos movimentos feministas cristãos, por exemplo, só desenvolveram essa
crítica em nossa época. De qualquer maneira, fica de pé a questão de revelação e ideologia.
15
tico-desideologizante, em especial naquelas poucas formulações que
podemos atribuir sem dúvida a Jesus de Nazaré. Pouco depois, nos
textos da tradição do primitivo judeu-cristianismo apocalíptico, como
as revelações do pastor de Hermas, já se pode notar um certo
"escapismo" da realidade política, mas dentro de uma reflexão ainda
pouco ideologizada.
Os padres apologistas, em troca, ao irem adotando as categorias
helenísticas, começam igualmente a aceitar determinados elementos
ideológico-encobridores. No entanto, possui grande beleza a crítica
político-religiosa (e por isso desideologizante) daqueles cristãos que se
confrontaram com a cultura dominadora do Império 12. É
impressionante aquela crítica frontal contra todos os valores
idecilogizados do Império realizada por pensadores recérri-batizados e
que se sentem gregos e cristãos ao mesmo tempo13. Talvez até a nossa
época o cristianismo não contará com críticos tão cabais da cultura
imperial vigente.
A crítica ao Império continuará sempre a ser exercida seja contra o
paganismo, contra a cultura helenística ou romana e contra os vícios
das cidades. Ainda nos teólogos já muito influenciados pela filosofia
grega como Clemente de Alexandria, Orígenes ou Ireneu de Lyon, a
teologia nascente cumprirá um papel de descobrimento das
contradições do sistema. isso pode ser entendido claramente porquanto,
por serem as comunidades cristãs consideradas por Roma como grupos
dissidentes, "quintacolunistas" ou sabotadores da cultura imperante,
eram freqüentemente perseguidas. A perseguição era de fato a
demonstração de que a teologia cristã era substancialmente crítica ou
profética. Perseguia-se os cristãos porque solapavam os "fundamentos"
do sistema, os valores, os deuses. A teo
12. O cristianismo foi originariamente uma compreensão da existência dos grupos oprimidos do
Império, como bem deixa entrever um texto do apologista: "Entre nós não ocorre a ambição de
glória e filosofam (filosofousi) não só os ricos como também os pobres ... Todos os homens que
desejam filosofar (filosofein) apelam a nós que não examinamos as aparencias nem julgamos pela
figura..." (Taciano, Oratio adversas graecos, ed. Ruiz Bueno, tradução espanhola e texto grego em
Padres Apologistas griegos, Madri, 1954, p. 607.
13. Aristides critica em sua Apologia todos os fundamentos do Império e a cultura helenística; sua
atitude é subversiva: "Os que crêem que o céu é Deus erram... Os que crêem que a terra é deusa se
equivocam... Os que pensam que a água é Deus julgam mal ... " (op. cit., p. 119-12 1).
16
logia tinha então uma função critico-profética que se manifestava
igualmente no nível político. O Império, ao se defender com a
repressão política contra os cristãos, manifestava realmente que o
cristianismo cumpria sua missão libertadora, teologicamente
desideologizante. Um passo de importância radical para a compreensão
da teologia cristã como ideologia se efetua desde o momento em que
Constantino écoroado imperador (324), desde o Concílio de Nicéia
(325): o século mais glorioso da teologia patrística (325-425) é
igualmente o início da constituição da teologia como ideologia - não
queremos dizer com isso que a teologia perdera seu valor, indicamos
somente que o momento ideológico da teologia cresce, aumenta, tem
um lugar maior. A Patrística grega (desde um Atanásio, Basílio, os
Gregórios até um João Damasceno) e latina (desde Ambrósio,
Agostinho, até Isidoro de Sevilha), uns sob o poder do imperador e
outros do papado, aceitarão a realidade do Império não só como
"natural", como também - em especial no mundo latino - se chegará a
considerar o Império como a própria civitas Dei (por um deslocamento
de conteúdo da civitas Dei de Agostinho). A Christianitas
(Cristandade) veio a identificar-se com o cristianismo. A Teologia
aceitou demasiadas estruturas imperiais, sociais, culturais, lingüísticas,
sexuais, como momentos essenciais do cristianismo. Dessa maneira, a
grande teologia com método platônico ou platônico veio a justificar a
dominação política e social dos primeiros séculos da Cristandade
bizantina e latina. 0 deslocamento do método (de histórico-existencial
no pensamento bíblico para o epistemático ou apodítico, ao qual
deve-se acrescentar o dualismo ontológico e antropológico) lança a
teologia por muitos becos ideológicos. Um estudo detalhado se faz
necessário. É evidente que um cristão aristocrático, imperial e
constituído em seus setores de tomada de decisões eclesiais pelas
classes mais influentes, instrumentalizou crescentemente o próprio
cristianismo para seu poder. Queremos indicar novamente, e isso é
válido para toda essa nossa contribuição, que isso não invalida o
empenho teológico, simplesmente o limita (e se sabe que toda teologia
é só uma analogia da "ciência de Deus" consigo mesmo que será
participada como visio somente no Reino realizado). Os momentos
ideológicos de toda teologia indicam que ela éuma reflexão
inevitavelmente histórica, situada, condicionada. A Patrística grega
seguiu seu cami
17
nho até seu fim (1453), mas não inovando fundamentalmente durante
séculos (ainda que seu crescimento fosse incessante como bem o
demonstram os exilados na Itália do quattrocento).
Os latinos, por sua vez, graças aos francos, foram geradores de um
novo processo teológico. Beda o Venerável (672-735) está na base de um
processo que se ampliará no Sacro Império Germânico (cuja
sacralidade justifica o cristianismo, de essencial importância
cricobridora da dominação imperial e social sobre os reinos oprimidos e
sobre os servos do feudalismo). Da época clássica da Primeira
Escolástica poderíamos dizer que é posterior ao IV Concílio do Latrão
(1215). No século de ouro da Cristandade latina e da Escolástica (12151315) ensinaram Abelardo, Boaventura, S. Tomás e Duns Escoto. O
método platonico ou agostiniano é modificado pelo descobrimento do
organon aristotélico procedente dos árabes via Espanha (Toledo). Por
trás de um aparato certamente muito mais definido, com categorias
substancialistas usadas com admirável habilidade, com uma lógica
muito desenvolvida, aquela teologia fundamentalmente a-histórica
encobriu ideologicamente inúmeras contradições. A começar pelo
machismo imperante, que dominava a mulher14 bem como as oposições
entre as classes (era cidadão o simpliciter politicum iustum, quer dizer,
somente o senhor feudal)15 ou entre os reinos - já que nenhum teólogo
questionava o direito do imperador sobre os outros reis, ou, em outras
posições, do Papa sobre o imperador e outros reis. A análise ideológica
dessa teologia, tão válida e importante por outro lado, realizada com
metodologia sociopsicanalítica ou econômico-política, sem que se
incida em ingenuidades extremistas, dará no futuro grandes resultados.
Isso nos mostrará melhor a genialidade daqueles teólogos e as
limitações inevitáveis de seus condicionamentos. Eram homens e não
deuses.
Da mesma maneira, a Segunda Escolástica, cuja época clássica se
situa em torno de Trento (1545-1563), quer dizer, desde 1530 apr. a 16 3
0 apr., sob a influência de Vitoria, Báñez, Soto, Suárez, Molina,
14. Summa theologioe, I-II,q. 8 1, art. 5: "... quod principium activum in generatione est a patre;
materiam autem mater ministrar... Si, Adam non peccante, Eva peccasset, filii originale peccatum
non contraherent". A mulher só dá a matéria, mas o varão dá o ser ao filho.
15. Ibid., II-II, q. 57, art. 4.
18
Juan de Santo Tomás - prenunciados por Silvestre de Ferrera e
Cayetano -, em torno de Salamanca e do Império hispânico,
resplandeceu pelo seu método aristotélico-tomista de comentários mas
Já na via moderna, que fornecerá as bases da ontologia do sujeito tanto
de um Descartes como de um Wolff, seguindo nas escolas franciscanas
da Inglaterra o caminho de onde procederá o empirismo filosófico.
Observamos então que, se a Patrística floresceu no Império bizantino
ou com o Papado e seus reinos dependentes da África, Gália ou
Hispânia, e se a Primeira Escolástica necessitou do poder dos Reinos
Francos, a Segunda apoiou-se no Império de Carlos V, imperador da
Espanha, dos Países Baixos e da Alemanha. Seu momento ideológico
éevidente. Em pouco ou nada essa teologia manifesta a realidade das
colônias descobertas e exploradas, em nada se descobrem os graves
problemas da pobreza na Espanha, contrapartida. da conquista da
América. Trento só se concentrará nos problemas germânicos e para
nada leva em conta a enorme abertura que o aparecimento da África,
Ásia e América produziu na Europa. A Cristandade moderna, o
cristianismo católico, se fecha sobre a Europa e começa a ostentar uma
cegueira especial diante da exterioridade, de outras culturas, povos,
estados.
É por isso que a Terceira Escolástica, que viceja desde o Concílio
Vaticano 1 (18 69-18 70) na Europa latino-católica, conquanto haja entre
eles muitos teólogos alemães (tais como Kleugten que morreu em
1893), fica consagrada na Encíclica sobre a necessidade dos estudos a
partir de Tomás de Aquino. 0 eixo é então Roma-Lovaina. O
catolicismo, tendo abandonado lentamente as teses primeiro imperiais
e depois monárquicas e feudais, abre-se aos poucos à aceitação e
depois àapaixonada justificação da democracia liberal, e,
sub-repticiamente, do regime burguês capitalista que receberá sempre
modificações reformistas. Quando lemos hoje as obras de Mercier,
GarrigouLagrange ou Maritain, deixando de lado seu grande valor e a
importância que têm exercido na reformulação católica, não podemos
deixar de perceber um importante momento ideológico de ocultamento
no nível social-político16.
16. C£ Reyes Mate, El ateísmo. Un problema político, Salamanca, 1973.
19
Por sua vez, a tradição que poderíamos chamar de teologia
germânica onde se abrirá caminho à teologia protestante, que possui
evidentemente componentes de origem suíça, francesa, inglesa, etc.,
que cresce a partir do século XVI, desde a Reforma, não deixa por isso
de ocultar igualmente as contradições de sua época. 0 próprio Lutero já
se defrontara com a crítica de Thomas Müntzer que falava em nome do
camponês empobrecido do mundo feudal em crise. Essa tradição de
origem agostiniana e com influências franciscanas e ainda tomistas
(como em Melanchton) receberá o impacto do racionalismo wolffiano,
do kantismo, da Aufklarung e do idealismo (em especial da direita
hegeliana) embora não unicamente (cabe apenas recordarmos o
exemplo do anti-hegeliano Schleiermacher). O próprio mundo católico
de um Moehler, que se diplornou em Tübingen (falecido em 1838),
pode ser inscrito nessa linha. Mediando o neokantismo, a
fenomenologia, a ontologia heideggeriana, teríamos por um lado um
Bultmann ou um Rahner (posições teológicas tão diversas que no
entanto levam em conta Heidegger), e implantando isso como uma
crítica sociopolítica desde a Escola de Frankfurt a um Metz, desde a
posição própria de Ernst Bloch a um Moltmann. Um pouco antes, a
chamada "nouvelle théologie" do pré-guerra na França, pelo
descobrimento da história da teologia, como posteriormente as
teologias querigmáticas, desmitizantes, existenciais, políticas ou
utópicas, todas elas - e ainda os seus prolongamentos nos Estados
Unidos como as teologias da 11 morte de Deus", etc. - não podem negar
que vicejam no "centro" da Europa, e particularmente em torno e após a
Segunda Guerra Mundial. Como o Concílio Vaticano 11 (1962-1965) e
os melhores ganhos do Conselho Mundial de Igrejas, todas essas
teologias vivenciam o otimismo de uma Europa reconstruída, a do
milagre alemão", no tempo em que o Império norte-americano suplanta
além do Atlântico o Império inglês (que deve bater humildemente às
portas do Mercado Comum Europeu para que o aceite como um de seus
membros). o método dessa teologia é agora existencial, ontológico e
até dialético. A influência hegeliana é cada vez mais crescente desde a
comemoração do segundo centenário de seu nascimento (1770-1970).
Seja corno for, toda essa teologia tem importantes momentos
ideológicos: um deles e a ingênua evidência de ser o "centro" do
20
mundo (de um ponto de vista cultural, político e econômico: conquanto
a Europa dependa dos Estados Unidos, possui sobre eles uma
reconhecida "superioridade" humanístico-cultural, embora já não
científico-técnica). Ao mesmo tempo essa teologia não tem levado
ainda a sério seu condicionamento de classe: o teólogo não é só o fruto
de uma classe aristocrática (universitária) como o é de uma nação
dominadora (que de alguma maneira oprime as colÔnias com o seu
inclustrialismo capitalista monopolista). Nesses aspectos não tem sido
questionado o "ponto de partida" de uma reflexão teológica, já que, se o
referido ponto de partida fosse a práxis libertadora dos oprimidos (que
é a origem da palavra não ideológica e da crítica de toda ideologia), a
teologia deveria definir seu compromisso orgânico com eles. Estes,
porém, encontram-se freqüentemente fora do horizonte da mencionada
teologia (não só socialmente por serem classes pobres, como
geopoliticamente por serem nações dependeri-tes, neocoloniais, da
"periferia"). A proposta de uma tal teologia fica inevitavelmente
circunscrita ao horizonte do 11 centro" e por isso se ideologiza: quer
dizer, oculta a contradição de nosso tempo entre "centro-periferia "e
com isso torna igualmente falsa a relação das classes no "centro".
Transforma-se numa teologia que encobre e por isso justifica a
dominação dos povos pobres do mundo.
Daí podemos concluir que a teologia, enquanto significou a
reflexão de uma fé não-teológica dos oprimidos, quer dizer, a
expressão metódica daqueles que não dominaram um sistema, teve
todo o seu sentido antiideológico e crítico-profético. Na medida em
que expressou uma fé não-teológica daqueles grupos ou nações
dominadores, tendo perdido em parte a sua dimensão profética (pelo
menos na dimensão em que é um sistema de dominação), a teologia se
ideologiza. É por isso que nos Estados Unidos e na Europa (esta última
é "centro" conquanto relativamente dependente dos Estados Unidos) os
movimentos radicais ou socialistas democráticos ainda não podem ser
reformistas enquanto não cheguem a dialogar seriamente com aqueles
que na "periferia" questionam realmente o sistema17. É fácil falar de
liberdade para aquele que de alguma maneira exerce o poder. Como a
Inglaterra imperial que
17. Na reunião de Detroit (Theology in the Americas, agosto de 1975) parecia que à black theology
(cf Jarnes Cone, Black theology and black power, New York, 1969; ldern, God of the oppressed,
New
21
impõe desde o final do século XVIII o "liberalismo" econômico às suas
neocolônias. A Inglaterra exigia "liberdade" para a venda de seus
produtos nos países não industrializados, esquecendo que em Londres
se enforcava em praça pública no início do século XVIII aquele que
adquirisse um produto francês. 0 "protecionismo" da indústria nascente
inglesa se converte em "falta de liberdade" ou 11 totalitarismo" quando
um país periférico o exerce. A liberdade não é somente a possibilidade
de escolher entre várias possibilidades; antes disso é o poder ter pelo
menos uma possibilidade a escolher. Antes da liberdade de escolha
(entre essa ou aquela possibilidade) do liberalismo, énecessária a
justiça que permite ter algo a escolher (a justiça que faz com que os
mais oprimidos possam comer, vestir-se, ler, decidir .. ). A liberdade
humana fundamental é a de poder viver, muito antes do que decidir
viver dessa ou de outra maneira. A justiça ou a libertação sociopolítica
é a que possibilita a liberdade posterior de escolhas: Tempore
necessitatis omnia sunt communia, dizia Huguccio... Éevidente que há
tempos nos quais é necessário que todos colaborem disciplinadamente,
superando o egoísmo aristocrático das antigas classes dominantes (que
eram as únicas que podiam "ter" e 11 escolher" isso ou aquilo), para
produzir ou fabricar os bens que permitam que todos possam viver
humanamente.
York, 1975; Benjamin Reist, Theology in red, white and black, Filadélfia, 1975) ou ao
movimento teológico da mulher nos EUA (c£ Rosemary Radford Ruether, Liberation theology,
New York, 1972, no capítulo sobre a teologia da mulher) falta a distinção entre o centro e a
periferia a nível mundial; podem assim projetar o movimento de libertação aos seus grupos porém
no seio de uma nação opressora do centro (como os Estados Unidos) e incluir em seu projeto as
nações oprimidas como oprimidas, sem criticar, portanto, o imperialismo. Essa contradição
centro-periferia distinguia então a black theology dos Estados Unidos daquela da África, por
exemplo (já que a primeira só observa a opressão racista, mas esquecendo a econômicopolítica, a
nível internacional) e a oposição do feminismo do centro daquele da periferia (como pôde ser
constatado no Congresso Mundial da mulher realizado no México em julho de 1975, no qual os
movimentos femininos do Vietnã, de Cuba e da América Latina, além de outros, se opuseram
frontalmente ao feminismo apolítico e exclusivamente sexualista das norte-americanas, em
especial). Se os movimentos teológicos contesta-tórios do "centro" não captarem a realidade do
imperialismo, incidirio necessariamente num perigoso reformismo revisionista. Felizmente, desde
1975 se tem avançado muito.
22
CAPíTULO SEGUNDO
HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA I
Em outros trabalhos sugerimos uma periodização da história da
Igreja na América Latina. Tratar-se-ia da história de uma fé
nãoteológica convertida em práxis. Agora proporemos como hipótese
urna certa periodização que abra um caminho num campo de es~ tudos
sobre o qual não há, quanto eu saiba, até o presente nenhum trabalho. A
História da teologia católica de Grabmann, por exemplo, contém umas
Sreves indicações acerca da teologia na América Hispânica" 18. Como
de costume, ao qual nós latino-americanos ja estamos habituados, nos
deixa fora da história. Qual tem sido o desenvolvimento de nossa
teologia? Quais são seus períodos mais importantes? Qual é o sentido
de cada um deles?
Primeira Teologia da Libertação. Teologia
profética entre a conquista e a evangelização (desde 15 11)
PRIMEIRA ÉPOCA.
Antes da conquista houve uma reflexão teológica ameríndia19. Em
geral não se examina o período pré-hispânico, mas queremos nos
referir explicitamente a ele por sua importância até o presente, As
cosmovisões e ritos religiosos dos habitantes nativos da América Latina
tinham alcançado um grau de racionalização que, conquanto não
científico, poderia situar-se entre as explicações codificadas em
tradições orais (e ainda escritas, como nos códices astecas)20. As
teogonias dos povos menos desenvolvidos, do norte e do sul do
18. M. Grabmann, Historia de Ia teologia católica, Madri, 19 4 0, p. 3 5 0 s.
19. Vide meu livro El encubrimiento del Indio: 1492. Hacia el origen del Mito de la Modernidad,
Editorial Cambio XXI, México, 1994, 219 p.
20. Vide W Krickeberg-W Müller-H.Trimborn, Die Religionen des alten Amerika, Stuttgart, 19 6 l;
em minha "Introducción General" à Historia General de la Iglesia en América Latina,
Salamanca, 1983 1/ 1, p. 123-15 6; H.-J. Prien, La Historia del Cristianismo en América Latina,
p, 29-5 2.
23
continente, freqüentemente caçadores e pescadores nômades
(Magalânicos, Pampas, do Grande Chaco, no sul; do Brasil oriental; até
californianos no norte), afirmavam um "Pai dos Céus" (urânico
então), o "Antiqüíssimo" dos Yahganes, o "Temaukel" dos Onas, em
alguma relação com o sol. Isso levou W Schmidt a pensar que havia.
uma revelação primitiva do Deus uno21. junto a eles os deuses gêmeos,
espíritos, demônios, a grande Mãe (a Lua). E também os deuses
totêmicos das tribos, dos clãs e das famílias.
Os povos de plantadores (desde os Araucanos até os Guaranis e
Túpi-Arawaks, os Caribes e os das pradarias da América do Norte),
especialmente as culturas urbanas (Incas, Chibchas, Maias e Astecas),
possuem teogonias muito mais desenvolvidas. Entre os incas havia um
Deus transcendente, Pachacamac, Deus-criador, espiritual, que
popularmente se concretiza em Inti (o sol, fecundador, origem da
fertilidade e deus dos caçadores e guerreiros - como o Huizilopochtli
dos nahuatl mexicanos - mas nesse caso muito mais agressivo). A lua
(Quilla entre os incas), relacionada com a terra (a Pachamama ou a
Coatlicue para os astecas), impera nos panteões. Não faltarão tampouco
os deuses totêmicos, os ritos cíclicos e a racionalizaçao 2 que atuam
como proto-teologias22 .
A descoberta da América por espanhóis e portugueses significa
uma revolução geopolítica sem precedentes na história mundial. 0
Mediterrâneo oriental, que era o "centro" da história desde os cretenses,
perde a sua primazia, dando lugar ao Atlântico norte (desde o século
XVI até hoje). Por outro lado, chega ao Mediterrâneo e a Europa,
somente no século XVI, dez vezes mais quantidade de prata e cinco
vezes mais de ouro de quanto existia então, procedentes das minas
exploradas com o sangue dos índios. É a origem da riqueza colonial,
capital acumulado que será a base essencial da posterior revolução
industrial. Um mundo desmorona; a Europa enclausurada por turcos e
árabes se abre para o vasto mundo. É um tempo de
2 1. Em sua obra Ursprung und Werden der Religion. Theorien und Tatsachen, Münster, 19
3 0.
22. Vide J. de Acosta, Historia natural de Ias Indias; J. Soustelle, Lu Religion des Incas, em Histoire
Générale des Religions, Paris, t. 1, 1948, p. 20 1 s; F. Hampl, Die Religionen der
Mexikaner,Maya und Peruaner, em Christus und die Religionen der Erde, Freiburg, t. li, 195 1, p.
7 54-7 84. Toynbee acha que houve uma prototeologia (o viracochinismo inca). A Study of
History, Oxford, 1963, t. VII, no tocante às "Universal Churches".
24
utopias, de novidades, de descobertas. Na Espanha, Cisneros inicia a
primeira reforma, edita as primeiras obras críticas do Novo e do Antigo
Testamento em fins do século XV, muito antes de Erasmo. Em 1492, os
Reis católicos, na última cruzada medieval, tomam de assalto
derradeiro reino árabe na Europa: Granada cai .23
As bulas pontificias desde 1493, como já vimos, conferem
justificação sagrada à conquista da América. 0 fato do descobrimento
da América não influi para nada em Trento. Fracassada a tentativa do
cardeal Jiménez de Cisneros de ocupar as índias sem armas, a
conquista será violenta, como o será igualmente a que empreenderão
por sua vez holandeses, ingleses, franceses e até alemães (já no século
XIX na África). No entanto, ergue-se um punhado de profetas, de
grandes cristãos missionários em defesa do índio24 . Teologicamente
queremos mencionar somente alguns deles.
Com exceção de algum irmão leigo franciscano, foi Antonio de
Montesinos, OP (t 15 45), quem, por ordem de seu superior Pedro de
Córdoba, OP (1460-1525), lançou em 1511 o primeiro brado críticoprofético na América. Naquele distante 30 de novembro o clérigo
Bartolomeu de Ias Casas (1484-1566) ouve o sermão em favor dos
índios e contra os encomendeiros. Somente em 1514 é que ele se
converte à causa da justiça:
O clérigo Bartolomeu andava bem atarefado e muito solícito em
suas granjas como os outros, enviando índios de sua repartição às
minas, para extrair ouro e fazer sementeiras e aproveitando-se
deles quanto mais podia... Mas num dia de páscoa de pentecostes
começou ele a atentar para o Eclesiástico, capítulo 34: "A oferenda
daquele que sacrifica um bem mal adquirido é maculada. Aquele
que oferece um sacrificio com os bens dos pobres é como o que
degola o filho sob os olhos do pai". Co25 meçou, digo, a observar a
sua indigência 25.
23. Vide minha obra –“Introducción general" à Historia general dela Iglesia en América Latina,
Sígueme, Salamanca, 1983, tomo I/I capítulos 4 e seguintes.
24. C£ minha obra sobre El episcopado hispanoamericano, institución defensora del indio
(1504-1620), III,Cuernavaca, 1969, 6-14.
25. Historia de las Indias, livro III, cap. 79, em Frei Bartolomeu de las Casas, Obras escogidas, t. II,
Madri, 1961, 356.
25
Essa conversão, profética, de um pensador que será depois tão prolifero
em obras como profundamente prático em suas conclusões, poderia ser
considerada como o nascimento da teologia da libertação latino-americana. O
mesmo Bartolorneu escreverá em seu Testamento 15 64) cinqüenta anos mais
tarde:
Deus houve por bem escolher-me como seu ministro sem que eu o
merecesse, para procurar e compensar todos aqueles povos que
chamamos índios, possuidores e proprietários daqueles reinos e
terras, pelos agravos, males e danos nunca vistos nem ouvidos
antes, que de nós espanhóis receberam contra toda razão e justiça,
e para reduzi-los à sua liberdade prístina de que foram despojados
injustamente, e a fim de libertá-los (sic) da morte violenta que
ainda sofrem 26.
Bartolorneu de Ias Casas, assim como um José de Acosta, SJ (15391600),
no Peru, Bernardino de Sahagún, OFM (†1590), no México, entre outros, são
os teólogos da primeira geração ou pelo menos dos que se defrontaram com a
realidade de seu tempo com uma visão menos ideológica do que seus
companheiros de conquista ou evangelização. observe-se no texto que
propomos a clareza com que expõe a contradição principal de sua época e
como mostra o ocultamento ideológico em que viviam mergulhados seus
contemporâneos:
Deus derramará sobre a Espanha seu furor e ira, porque toda ela
comungou e participou pouco ou muito nas sangrentas riquezas
roubadas e tão usurpadas e mal havidas, e com tantos estragos e
mortes daqueles povos, se grande penitência não fizer, e temo que
tarde ou nunca a fará, porque a cegueira (eis aí o fruto da ideologia!)
que Deus por causa de nossos pecados tem permitido em adultos e
crianças, e principalmente nos que se presumem e têm fama de
discretos e sábios e pretendem governar o mundo, pelos pecados
deles, e de modo geral de toda ela, digo ainda, essa obscuridade
dos entendimentos (indica-se novamente o encobrimento
ideológico!) étão recente que desde setenta anos que começaram a
escandalizar, roubar e matar e extirpar aquelas nações, não se
notou até hoje (sic) que tantos escândalos e infâmias de nossa santa
fé, tantos roubos, tantas injustiças, tantos estragos,
26. Obras escogidas, V, 539.
26
tantas matanças, tantos cativeiros, tantas usurpações de estados e
domínios alheios, e, finalmente, tantas assolações e despovoamentos tão universais têm sido um pecado e uma imensa
injustiça 27.
Para o nosso "teólogo da libertação" o pecado sociopolítico do momento é
a conquista. Essa práxis é "pecado e gravíssima injustiça", mas "não se tem
percebido (visto) até hoje" devido à "cegueira" ou 11 obscuridade dos
entendimentos". Quer dizer, o sentido real da práxis não é conhecido: trata-se
de uma ideologia que encobre a realidade a todos: aos adultos e crianças e
também aos sábios e governantes.
Bartolomeu. não só se opõe a um Juan Ginés de Sepúlveda (o teólogo que
justifica a escravidão natural do índio) como vai mais além do que o
progressista europeu Vitoria. Bartolomeu reconhece que haveria razão para
empreender a guerra contra o índio no caso em que fosse um povo bárbaro ou
absolutamente incivilizado e que cometesse continuamente atos contra toda
razão. Mas o que ocorria é que nenhuma dessas condições se efetuava entre os
índios, porque de
todas as universas e infinitas gentes de todo gênero Deus criou (os
índios) as mais simples, sem maldades, nem fingimentos,
obedientíssimas e fidelíssimas aos seus senhores naturais e aos
cristãos aos quais servem; mais humildes, mais pacientes, mais
pacíficas e quietas, sem rixas nem rusgas, que se verificam no
28
mundo .
Porém há mais, porque
as gentes naturais de todas as partes, qualquer daquelas onde temos
ingressado nas índias, têm direito adquirido de empreender contra
nós guerra justíssima e tirar-nos da face da terra, e esse direito
perdurará para elas até o dia do juizo final 29.
Bartolomeu então justifica a guerra de libertação dos índios contra os
europeus, em sua época e até a nossa. Teria então apoiado :eologicarnente a
rebelião do valente Túpac Amaru (1746-1782)
27. Ibid.
28. Brevísima relación de la destrucción de las Indias, em op. cit.,
V, 136.
29. Consultar esse texto no Memorial al Consejo de Indias (1565), proposto e comentado na edição de
J.B. Lassegue, La larga marcha de Ias Casa, Lima, 19 7 4, 3 8 7.
27
no Peru ou de Fidel Castro em 19 5 9 em Cuba - na mesma Cuba de sua
conversão profética.
Seus tratados teológicos como o De unico modo, a Historia de Ias Indias, a
Apologética historia sumaria (tratado de religiosidade pré-cristã), inúmeros
opúsculos, memórias, defesas, a Brevísima relacián de Ia destruccián de Ias
Indias, os Dieciséis remedios para Ia reformación de Ias Indias, o Argumentum
apologiae, Los Tesoros del Perú, etc., todos eles partem da práxis de um grande
cristão, Conquistador, cura encomencleiro, litigador ante reis e cortes ou
conselhos, organizador de experiências agrárias, missões e comunidades;
noviço, estudante, escritor, polernista, defensor e advogado perante tribunais;
atravessa em pleno século XVI mais de dez vezes o Atlântico, etc. A partir de
sua práxis de defesa e libertação do índio pensa e escreve sua teologia militante,
teologia toda ela política, tal como o demonstra Juan. Friede30. Mas além disso
trata-se de uma teologia histórica31 , concreta 32, com sentido antropológico33 e
com intenção operativa34.
Essa teologia não-acadêmica ou pré-universitária, não porque esteja
contra a universidade mas sim porque de fato não existiam ainda na América
Latina essas sedes de estudos, mas além disso porque nascia no fragor da
própria luta e não como fruto de exigências mais ou menos artificiais da vida
de algum claustro professoral, essa teologia crítico-profética era política,
formava homens de ação, esclarecia normas, descobria opressões estruturais e
pessoais. Tudo isso antecipa em quatro séculos a experiência atual da teologia
criativa na
30. Bartolomé de las Cosas: precursor del anticolonialismo, México,1974.
31. É importante anotar como Bartolomeu escreveu uma enorme História das índias por seu turno José
de Acosta publicou uma Histeria natural y moral de Ias Indias (vide a edição de Madri de 1894, t. I-II).
Sobre este último vide a obra de L. Lopetegui, EI padre josé de Acata, Madri, 1942.
32. Essa teologia se acha explícita em cartas, debates, controvérsias, "Memoriais", apologias,
prédicas. Não é intra-universitária pelo seu "estilo literário" .
33. Bartolomeu de Ias Casas escreveu uma Apologética história sumária tão importante como a sua
História; José de Acosta escreveu uma De procurando indorum salute, Salamanca, 1589, que tal
como a anteriormente citada é uma obra de antropologia; e o grande Bernardino de Sahagún
recolheu materiais do que viria a ser a Historia Universal de Ias cosas de nueva España, Ed. Pedro
Robledo, México 1938, t. I-V, que é a primeira obra da antropologia mundial em seu sentido
atual.
34. Essa teologia formava pessoas, missões, bispos; esclarecia leis (como as "leis novas" de 1542 que
suprimem o sistema econômico das encomendas), justifica políticas, etc.
28
América Latina. É necessário que se estude bem o primeiro empenho
teológico em nosso continente para encontrar entre nós um primeiro
modelo, situado nessas costas do Atlântico, do exercício de uma correta
reflexão sobre a práxis cristã em situação colonial, 11 periférica".
Bartolomeu vislumbrou em seu início a dominação imperial européia;
julgou em seu começo a expansão opressora mundial de "centro";
condenou assim a totalidade do sistema que então se organizava: "é
injusto e tirânico tudo quanto acerca dos índios nessas índias se
comete"35.
Essa foi a teologia elaborada e sustentada na ação de centenas de
missionários da primeira hora de nossa igreja latino-americana, antes
que se organizasse a cristandade das índias.
SEGUNDA ÉPOCA. A teologia da cristandade colonial (1553-1808)
A 3 de junho de 1553, na cidade do México, o professor Francisco
Cervantes de Salazar, mestre de retórica e eloqüência, abre os cursos
universitários de teologia. Essa inauguração acadêmica da teologia,
num claustro que outorgava títulos como os das universidades de
Alcalá e Salamanca, é o início formal de uma tradição que durará dois
séculos e meio. Na realidade, em 1538, os dominicanos abriram em seu
claustro de Santo Domingo as primeiras cátedras de teologia para seus
alunos. Em 1º de julho de 1548 os dominicanos fundavam igualmente a
referida cátedra em Lima. Pouco antes, em Tiripetío (Michoacán), o
célebre agostiniano Alonso de Ia Veracruz fomentava igualmente a
teologia no México. Não obstante, através de cédula real de Felipe II,
de 21 de setembro de 1551, e da bula correspondente, eram fundadas as
universidades de Lima e do México. A 25 de j aneiro de 1553, a
procissão encabeçada pelo reitor-deão do cabido Juan Negrete passou
pelas ruas do Relógio e da Moeda no México, iniciando assim a vida
universitária na América. Nas cátedras estiveram: em prima, Pedro de
Ia Peña, OP; em escrituras, de Ia Veracruz, OSA; em decretais e
cânones, Pedro Morones; em artes, J de García; em leis, Bartolorneu
Frias; em gramática,
35. Historia de Ias Indias, em op. cit., II 79, 357.
29
Blas de Bustamante; e em retórica, o acima mencionado36 . Durante
quatro anos cursavam-se os estudos. Em 19 de setembro de 1580 era
fundada além disso a cadeira obrigatória de língua náhuatl no México
e quíchua ou aímara em Lima. Em 1630, só no México já havia 5 0 0
alunos, a maioria estudando teologia; somente 10 estudantes de direito
civil e 14 de medicina. Em 1775 tinham se diplomado na citada
universidade 116 2 doutores.
Pela cédula real de Felipe IV de 26 de maio de 1622, e com a bula
de Gregório VI de 9 de julho do ano anterior, fundaram-se colégios
maiores com possibilidades de conferir diploma acadêmico desde a
distante Manila (Filipinas), até Cuba, e já no continente em Mérida,
Puebla, San Luis Potosí no México; na Guatemala e Panamá na
América Central; em Caracas, Santa Fé de Bogotá e Popayán. em Nova
Granada; em Cuzco, Huamanga e Quito no Peru; em Charcas (que em
1798 é alçada àcategoria de universidade como Lima e México),
Córdoba e Santiago do Chile no Rio da Prata. A essas deveriam
somar-se muitos seminários tridentinos onde se ensinava teologia,
como o famoso colégio Palafoxiano de Puebla fundado em 1641, que
também funcionou em Guadalajara e Oaxaca, Além disso, os colégios
jesuítas conferiam igualmente diplomas, desde 1578. 0 jovem estudante,
na vibrante Lima do século XVII,
36. Sobre a teologia na cristandade colonial podem ser consultadas, além das histórias das igrejas por
nações (como as de Cuevas referentes ao México, Groot para a Colômbia, Vargas para o Equador,
Vargas Ugarte para o Peru, Cotapos para o Chile, Bruno para a Argentina, etc.), minha Historia de
la lglesia en América Latina, Barcelona, 1974, 433-459; emCEHILA, Para una historia de Ia
iglesia cri América Latina, Barcelona, 19 7 5 (trata-se do 1 Encontro de história do Igreja na
América Latina Quito, de 3 a 17 de janeiro de 19 7 3), 41 - 5 5 (CEHILA quer dizer Comissão de
estudos de história do igreja que se reuniu além do mais em julho de 19 74 em Chiapas); só para o
México: J. Gallegos RocafulI, El pensamiento mexicano cri Ias siglas XVII y XVIII, México,
1951 (bibliografia 397-414); a Bibliotheca Missionum I-IX, Münster, 19161939; J. García
lzcabalceta, Bibliografia mexicano dei sig]o XVI, México , 18 8 6: J. Jimériez Rueda, Herejías y
supersticiones cri Ia nueva España (Ias heterodoxos cri México), México, 1946; C.B. Plaza y Jaen,
Crónica de Ia real pontificia universidad de México, México, 19 3 1; 0. Robles, Filósofos
mexicanos del siglo XVI, México, 195 0 (onde se encontra material para o nosso terna); e a obra
de J. Jiménez Rueda, Historia jurídica de Ia universidad de México, México, 19 5 5; vide ademais
E Ossores, Historia de todos Ias colegios de Ia citidad de México desde Ia conquista basta 1760,
México, 19 29. Entre os teólogos coloniais não se esqueça J. Palafox y Mendoza, Obras I-XVII,
Madri, 1762. A obra de Guillermo Furlong sobre o pensamento no Rio da Prata, por exemplo,
preenche a lacuna sobre essa zona latino-americana. Trabalhos como os de R Henríquez Urefia,
Historia de Ia cultura de América Hispânica, México, 1947, servem de referência contextual. No
entanto, devemos admitir que i-ião existe nenhum trabalho sobre a história da teologia na América
Latina, ainda que os materiais sejam minimamente suficientes para se ter uma idéia de conjunto.
30
iniciava seus cursos por volta de 19 de outubro e os concluía a 31 de
julho. Seu curso de prima começava às 8:15 até 9:15, seguindo-se
quinze minutos de repetição. Às 9: 3 0 começava a secunda e às 10: 30
havia repetição a cargo dos alunos. Durante a tarde, das 14 às 14:30,
aula de quíchua, e a partir daí aula de moral ou escritura. Nos sábados
havia "sabatinas" ou defesas de teses: uma vez por mês a mais
importante; e uma vez por ano os grandes debates. A segunda
escolástica reinava indiscutivelmente. Em lógica, Aristóteles, em
teologia, a Summa de Tomás de Aquino, em suas diversas
interpretações salmanticense (dominicanos), suareziana (jesuítas),
agostiniana e escotista (franciscanos).
O México brilhou no "século de ouro", o século XVI; Lima no
século XVII, o da cultura barroca; Chuquisaca ou Charcas no século
XVIII, o do humanismo jesuíta (até 1767 em que foram expulsos).
Vamos colher alguns exemplos do século XVI.
A partir de uma forte formação lógica - já que não se deve
esquecer que um Antonio Rubio (1548-1615) foi o autor de uma Logia
mexicana (que em 1605 foi editada em Colônia, entre muitas outras
edições), que se tinha como livro-texto em Alcalá, e professor no
37
México como em Córdoba de Tucumán -, a partir dessa formação
lógica o aluno passava para a teologia como possibilidade de ouvir, por
exemplo, Alonso de Ia Veracruz (1504-1584), autor de numerosas obras,
entre outras, de um comentário ao livro das Sentenças e outro às
epístolas de S. Paulo, de uma Relectio de libris canonicis, e ainda de
uma Relectio de dominio in infideles et iusto bello38 . Esse teólogo, a
exemplo de outros, era um dos primeiros missionários, que de Tripetío,
(população indígena) passou a prior de Tacámbaro em 1545, passando
dali para o convento de Atotonilco o Grande entre os índios otomies,
para ser por fim escolhido como provincial mexicano em 1548, período
em que arca com a responsabilidade acadêmica.
37. A obra de Walter Redmond sobre a bibliografia existente em filosofia colonial latino-americana,
publicada por Nijhoff (Haia), indica a importância da produção desse nível.
38. C£ E. Burrus, "Alonso de la Veracruz: defence of the American indians", The Heythrop Journal 4
(1963) 225-25 3; Vide Redmond, op. cit., 781-783. Além do mais B. Junqueira, El maestro
Alonso dela Veracruz, Archivo Agustiniano 18 (1935).
31
Se examinarmos o conteúdo dessa teologia em sua relação com a realidade
de seu tempo, poderemos descobrir seus condicionamentos ideológicos. 0
último teólogo nomeado nega que o rei tenha direito próprio para dominar os
índios, mas admite que o papa tem poder indireto sobre os índios com a
finalidade de catequiza-los e esse poder ele pode outorgá-lo aos monarcas. Por
isso foi justo retirar de Moctezuma, rei asteca, seu domínio, já que assim as
criaturas bárbaras poderiam vir a ser civilizadas e cristãs. Contra o bispo
Montúfar nega que os índios devam pagar elevados tributos, mas admite o
sistema das encomendas, Pode-se ver então que toda a teologia da cristandade
das índias Ocidentais foi, na melhor das hipóteses, reformista, quer dizer,
ocultava a contradição e a injustiça que o grupo "lascasiano" tinha criticado e
condenado.
Ali estava, colega de Veracruz, Pedro de Ia Peña, OP († 1583), professor
admirado de prima, que depois abandonará a cátedra para trabalhar como
missionário em Verapaz (1563-1565) e por fim se transformará no ilustre bispo
de Quito ( 1565 - 1583), autor de comentários sobre a Summa. Um Bartolomeu
de Ledesma, OP (†1604), autor de um conhecido tratado De jure et justitia, e de
um Sumario de ]os siete sacramentos solicitado pelo arcebispo do México,
Pedro de Ortigoza, SJ (1557 - 1626), escreveu um De natura theologiae, De
essentia Dei, comentários sobre a Secunda secundae; André de Valência, SJ
(1582 -1645), editou um Tractatus de Incarnatione; o fecundo Juan de Ledesma
(1576-1636) escreveu dezesseis livros, dos quais só se conservou um: De Deo
uno; Pedro de Pavia, OP (†1589), publicou De sacrosancto sacramento
eucharistiae. A lista tornar-se-ia muito extensa se somente do México neste
século mencionássemos Esteban de Salazar, OSA, Andrés de Tordehumos,
OSA, Juan de Gaouna, OFM, Bernardo de Bazán, OP Francisco de Osuma,
OFM, Pedro de Ia Concepción, Juan López Agurto de la Mata, etc.
Se tomarmos agora como exemplo a universidade de Chuquisaca no
século XVIII, poderíamos ler o que um provincial jesuíta recomendava a seus
religiosos:
Estudai, pois, a metafísica, mas imediatamente tereis que vos
empenhar na fisica geral, que vos manifestará em comum a
harmoniosa composição do universo, para refutar vigorosamente o
Emílio de Rousseau, o Dicionário filosófico de Voltaire, o Sistema
da notarem de Holbach, o Exame de religião de Marechal, as
32
Cartas Persas de
Montesquieu e similares monstros da
impiedade, abortados pelos incrédulos deste século39.
Um Tomás Falkner, discípulo de Newton, que dá aulas em
Córdoba de Tucumán em 17 6 3, inaugura a cadeira de matemáticas
ensinando Leibniz, Wolff, Newton, Locke, Gassendi e Descartes. Seus
alunos passavam depois para a teologia. Só no Chile os jesuítas tinham
bibliotecas com até vinte mil volumes, "a maioria das obras científicas
e literárias mais difundidas na Europa até meados do Século XVIII"40.
Um certo Domingo Muriel (1743-1795) era versado nas escrituras,
concílios, história eclesiástica, direito civil, eclesiástico, municipal, da
Espanha e das índias; além do espanhol, conhecia o francês, italiano,
grego, latim e hebraico41.
De qualquer modo essa teologia foi imitadora da segunda
escolástica e por isso duplamente ideológica: porque já o era na
Europa, e porque ao repetir-se na América encobria não só as
injustiças do antigo continente como além do mais as do novo. No
entanto, uma história documentada de nossa teologia mostrará muitos
aspectos críticos ou desideologizantes, como por exemplo o tratamento
teórico do tipo de propriedade guarani exposto pelo padre Muriel na
universidade de Córdoba de Tucumán, que se distinguia de todos os já
conhecidos e que permitiu a organização das famosas reduções do
Paraguai42, de tipo socialista ou de propriedade comum dos produtos
do trabalho - experiencia que teve importancia no século XVIII
francês, proto-história do que depois será chamado de "socialismo
utópico", pela influência que exerceu sobre pessoas como Meslier,
Mably ou Morelli. Esse tipo de propriedade não foi negada por
nenhum teólogo colonial. Havia nele uma espécie de crítica antecipada
da propriedade burguesa, porém em nome de uma sociedade agrária ou
arcaica.
39. Citação de G. Furlong, Nacimiento y desarrollo de Ia filosofía en e] Río de Ia Plata, Buenos
Aires, 1947, 617.
40. F.A. Encima, História de Chile V, Santiago, 1930, SS Os, 550-596.
41. C£ J. Miranda, Vida del venerable sacerdote don Domingo Muriel, Córdoba, 1916. De Muriel se
conhece Fasti novi orbis, Veneza 1776; uma Rudimento juris naturae et gentium, Veneza 1791, e
uma Collectanea dogmatica de seculo XVII, Veneza 17 9 2, entre a] gumas de suas obras.
42. A obra mais completa sobre o tema das reduções do Paraguai é a de Guillermo Furlong.
33
Por seu turno, Portugal influiu igualmente sobre o Brasil a partir de
sua famosa universidade de Coimbra, mas não teve como a Espanha
interesse em fundar grandes universidades nem numerosos colégios
maiores. De qualquer maneira a vida teológica foi pujante, ainda que
igualmente imitativa. Na colônia lusitana a presença dos jesuítas foi
muito maior do que na Hispano-América, e desde antes de Antônio
Vieira ( 1608 - 1698) formaram a consciência da Igreja no Brasil
colonial43. Por outro lado, como o Brasil não terá uma guerra da
emancipação nacional e o rei de Portugal fundará o império no Brasil, a
crise que assolará a América espanhola não se fará presente em tal
dimensão nesse país, mas tampouco os "ares novos" que sopraram nas
outras nações.
TERCEIRA ÉPOCA. Segunda Teologia da Libertação. Teologia
revolucionária diante da emancipação contra a Espanha e Portugal (desde
meados do século XVIII)
A expulsão dos jesuítas (em 1759 no Brasil por obra do marquês de
Pombal, e em 1767 na América espanhola por decisão de Carlos III da
Casa de Bourbon) significa um forte golpe para a aspiração dos criollos
e a implantação de uma certa hegemonia por parte da burguesia
comercial monopolista-peninsular. Desde as guerras dos comuneros44, e
seguindo a ininterrupta tradição desde o século XVI das rebeliões
indígenas, na segunda parte do século XVIII surge explícita uma nova
teologia da libertação. Mas as pessoas que proferem essa teologia já
não são os proféticos missionários espanhóis mas sim agora os
indígenas, os criollos contra seus antigos mestres de cristianismo:
contra os espanhóis e portugueses.
Um Túpac Amaru define em suas proclamações pelas quais
convoca a rebelião uma explícita teologia da libertação, o que lhe
valerá a excomunhão da parte do bispo de Cuzco:
43. C£ meu livro América Latina, dependencia y liberación, Buenos Aires, 1972, 52s, sobre Vieira.
Esse messianismo se apresenta como tradicional no Brasil até hoje. Vide M.I. Pereira de Queiroz,
Historia y etnología de Ias mavimientos rnesiáfflcos, México, 1969.
44. É interessante observar que o movimento insurrecional dos comuneros foi leigo e até anticlerical
em determinados lugares (c£ P. Posada, El movimiento revolucionaria de los comuneros, México,
1971).
34
... Retirando-os dos impostos e do jugo pesado que até o dia de
hoje nos tem mantido sob o seu peso tão oprimidos, através do
governo tirânico da Espanha, com seus tributos insuportáveis, que
não parecia outra coisa senão uma servidão de total escravidão
àsemelhança do cativeiro da Babilônia, onde o povo de Deus
israelita gemia 45. Cuidando para que cessem as ofensas a Deus...
para retirálos das injusta s servidõ es que têm padecido .46
Túpac vê os indígenas em lugar dos escravos do Egito; o faraó como o rei
da Espanha e aos que se libertam como o povo de Israel. É evidente que ele
não pode deixar de se identificar com Moisés. A novidade nessa interpretação
consiste em que Túpac Amaru. se converte assim num herói e num teólogo
popular da libertação. Sua consciência cristã interpretava os acontecimentos
com maior clareza e justeza que o bispo de Cuzco. Isso nos ensina que na
política os profetas têm uma visão mais clara do que o ministério eclesial. E a
profecia é para a Igreja tão essencial como o magistério (ainda que a esse último
caiba a função de julgar os carismas: mas não a de criá-los; e, além do mais,
pode equivocar-se no julgamento se não parte do pressuposto de que o Espírito
Santo é que os promove e não o mero desejo de opor-se à hierarquia).
A renovação teológica se fez sentir, por outro lado, em todos os meios
criollos, influenciados pela Ilustração. Em 1794, por exemplo, coube ao frade
dominicano Servando Teresa de Mier a prisão nas mais desumanas condições,
por causa de um discurso sobre Nossa Senhora de Guadalupe na catedral da
cidade do México47 . Ele simplesmente afirmou a antiga tradição do século
XVI48 de que o apóstolo Tomé procedente da Palestina, no século I, teria
passado pelo sul da índia e chegado até a América. Dessa maneira tinha
pregado a Virgem de Guadalupe, - prenunciando sua presença no México no
Apocalipse 13, onde as grandes águas eram o lago de Texcoco - e a fé cristã entre
os toltecas. Não importa o equívoco de seus conhecimentos históricos; o
importante era que não se desejava aceitar que
45. Proclamação de 19 de março de 1780 (Boleslao Lewin, La rebelión de Túpac Amaru, Buenos
Aires, 1967, p. 423).
46. De 17 de novembro de 1780 (lbid., p. 415).
47. Vide J. Lafaye, Quetzalcóatl y Guadalupe, México, 1977, p. 357.
48. Ibid, p. 253 s.
35
o dom maior do cristão, a fé, tivesse sido recebido da Espanha contra a
qual os criollos começavam a lutar visivelmente. Essa predição
guadalupana era já teologia da libertação, na medida em que justificava
uma práxis emancipatória. A virgem dos Remédios, que ajudou Cortês
na conquista contra os astecas, converteu-se na. bandeira dos realistas
espanhóis. A virgem de Guadalupe, que apareceu a um indígena, Juan
Diego, foi o estandarte dos oprimidos, a bandeira de libertação. Não foi
por acaso uma luta "entre Virgens" que simbolizavam uma luta entre
criollos e espanhóis, classes distintas e contrapostas na práxis?
A ocupação da Espanha por Napoleâo, (1808) lança as colônias,
guiadas pela oligarquia criolla, contra a burocracia. hispânica (vicereis,
ouvidores, em grande parte bispos, etc.), e na luta da emancipação
contra a metrópole. Na práxis emancipatória, a partir da situação de
classe oligárquica, os sacerdotes, curas, professores, religiosos, leigos
universitários começam a formular a "justificação" teológica de suas
guerras. Nasce, assim, sobre as ruínas da teologia da cristandade, uma
reflexão que se expressa fora das cátedras (volta a ser não acadêmica,
como nos primeiros tempos da conquista), nos púlpitos49 , no brado que
convoca exércitos50, nas assembléias constituintes -como se pode ver
em Tucumán, quando dezessete sacerdotes constituíam a maioria
absoluta dos vinte e quatro deputados eleitos pelas províncias do Rio da
Prata em 1816 -, na redação das novas constituições como a de Quito
redigida pelo diretor do seminário de teologia, em cujo ato
proclamatório de 1809 se entoou a "Salve Rainha", nas proclamações,
nos artigos dos jornais revolucionários, etc.
49. Vide o trabalho de A. Churruca, "El pensamiento de Morelos, una ideologia liberadora": Christus
477 (1975) 13s; 47 8 (1975) 1Os. Ele mostra a oposição entre a Espanha criadora e a Espanha
opressora e decadente: "As afirmações agressivas do libertador mexicano não se referem à
Espanha, que nós mexicanos amamos, que foi personificada por Las Casas e Vasco de Quiroga e
por tantos outros; vão endereçadas aos restos daquela. entidade, encarnada agora pela tão limitada
personalidade de Godoy e pisoteada de modo altaneiro e avessamente por Napoleão e Botella".
Ibid., 477 (1975) 15.
50. Não se deve esquecer que sern a intervenção do "baixo clero" teria sido impossível a
emancipação da Espanha- 0 mesmo cura e pároco Miguel Hidalgo y Costilla (1753-1811), antigo
diretor do seminário de Morelia (México), lançou o brado que convocou o exército da liberdade
em 15 de setembro de 1810. Conduziu os exércitos populares até ser condenado por heresia pela
Universidade do México vindo a morrer fuzilado em 1811.
36
o fragor da guerra e a mudança de estruturas sociopolíticas,
econômicas e administrativas, produziu a desorganização quando não o
fechamento das universidades, colégios maiores e seminários. Os
professores se alistavam nos exércitos, as bibliotecas eram incendiadas
ou ficavam abandonadas; não havia introdução de livros da Europa;
não vinham mais missionários nem mestres; os seminaristas e
estudantes abandonavam seus estudos; desaparece o Patronato real; a
teologia não é mais apoiada pelo Estado; o santo oficio da inquisição
deixa de significar um dique para todo tipo de novas influências
ideológicas. Nesse caos perfeitamente compreensível perde força a
segunda escolástica. e surgem correntes apocalipticas, iluministas ou
ecléticas.
Se a teologia da cristandade foi imitativa, a dessa época recupera
ainda algo da criatividade inicial da teologia na América. Os princípios
aprendidos (no tomismo ou no suarezianismo) são aplicados para
justificar a práxis emancipatória da oligarquia nativa. Essa etaDa
deverá ser levada muito a sério por uma história da teologia
-atino-americana. Trata-se de um novo momento não acadêmico,
prático e político da reflexão a partir de uma fé comprometida num
processo de libertação, e por isso desideologizante. A classe dominante
nas colônias (as burocracias hispânicas) se vê criticada por uma
teologia prática das oligarquias nativas (não ainda das classes mais
oprimidas como acontecerá no século XX). Não é estranho, então, que
um Manuel Belgrano (17 70-18 20), advogado diplomado em Salamanca
e nativo do Rio da Prata, general dos exércitos de emancipação, faça
editar em 1813 em Londres um comentário em quatro volumes do
padre Lagunza, jesuíta chileno, sobre o Apocalipse de S. João: E] reino
del mesías en gloria y majestad, obra que indica dentro de seu
messianismo
o
sentido
do
futuro
num
movimento
político-escatológico. Ou que no mesmo ano se reedite em Bogotá à
Destrucción de Ias Indias de Bartolomeu de Ias Casas para apoiar o
mesmo processo libertador51.
51. 0 historiador Roberto Tisnés descreveu essa edição (seu trabalho foi editado pela Comissio de
Estudos de História da Igreja na América Latina). Para o movimento apocalíptico
consultar: H. Cerutti, América en las utopías del renacimiento, em Hacia una filosofía de la
liberación latino-americana, Buenos Aires, 19 7 3, 5 3 s.
37
Certamente trata-se de uma etapa da teologia que terá que começar
a ser estudada com muita atenção. Os trabalhos de Churruca sobre o
Padre Morelos (e, cabe destacar, a posição de um Miguel Hidalgo
éainda mais importante e clara como teologia da libertação), e o da
equipe venezuelana sobre Juan Germán Roscio, cuja obra em três
tomos manifesta igualmente e de maneira explícita uma teologia da
libertação emergente da práxis, e em especial o trabalho de Max
Salinas e dos outros pesquisadores do Chile (com muito trabalho de
fontes e a caracterização de teologias monarquistas e patriotas
enfrentadas), indicam que a época da emancipação nacional é um
terreno quase inexplorado de teologia crítica, contraditória de outra
que justifica a continuação do domínio hispânico.
A pobreza dessa teologia, enquanto obras escritas ou de "seriedade
acadêmica", não diminui sua importância, ainda que em parte tenha
ficado abortada porquanto faltaram tempo e condições para a sua
consolidação. Rapidamente descaiu para uma reflexão que justificou a
nova ordem das coisas e por isso perdeu seu sentido crítico
revolucionário. Mas nem por isso deixou de cumprir sua função histérrea e mobilizou de fato o povo contra a Espanha, já que a oligarquia
criolla sem o apoio teológico da Igreja não teria podido, de nenhuma
maneira, levar a termo o processo emancipatório.
Quando o cura Miguel Hidalgo foi excomungado e declarado
herege, ele escreveu ao seu bispo um discurso claramente na linha do
que hoje poderíamos chamar a teologia da libertação - contra a teologia
de dominação do bispo que justificava o domínio da realeza e ordenava
a obediência à ordem colonial estabelecida:
Abri os olhos, americanos, não permitais que os nossos inimigos vos
seduzam: eles só são católicos por política; seu Deus é o dinheiro e as
combinações só têm por objetivo a opressão. Acreditais por acaso que não
pode ser um verdadeiro católico aquele que não está submetido ao déspota
52
espanhol? De onde nos veio esse novo dogma, esse novo artigo de fé? ..
O móvel de todo esse empenho dos espanhóis) não é senão a sua sórdida
53
avareza.
52. "Manifesto que hace el pueblo" (1810). (C£ meu trabalho Religión, Edicol, México, 1977, p.
201).
53. Ibid., p. 202.
38
No breviário que tinha em suas mãos o patriota fundador do
México, José Maria Morelos y Pavón, podemos ler:
O apóstata José Maria Morelos... foi tentado pelo demônio e
seguiu o revoltoso Miguel Hidalgo... (neste) povoado (de
Ecatepec) pagou com sua vida todos os seus erros...
(manifestando-se assim) o triunfo da cristandade sobre os seus
mais encar niçados inimigos 54.
Pode-se então observar que para a teologia da cristandade erguerse
contra a ordem política (o rei) significava revoltar-se contra Deus. Não
assim para o teólogo da libertação Morelos. O sacerdote e libertador
latino-americano, que deverá suportar a condenação de uma parte da
Igreja (bispos e até a Santa Sé) para libertar os oprimidos, falava a seus
soldados assim:
Este povo oprimido, semelhante em muito ao de Israel, sujeitado
pelo faraó, cansado de sofrer, ergueu suas mãos ao céu, fez ouvir
seus clamores diante do trono do Eterno... abriu (este) sua boca e
decretou... que o Anáhuac fosse libertado55 .
Mas talvez o teólogo mais interessante que até agora descobrimos
foi o leigo, patriota e membro do primeiro governo libertador
venezuelano, o licenciado Juan Germán Roscio, que desenvolveu numa
obra teológica os motivos pelos quais um latino-americano, cidadão e
cristão, pode empunhar as armas contra a tirania do rei cristão
espanhol:
Tão constante tem sido a obstinação dos teólogos do poder
arbitrário em querer amalgamar duas coisas inconciliáveis: o
cristianismo e o despotismo... vícios próprios dos obstinados
defensores da monarquia absoluta e indignantemente imputa56
dos em nossas relações com o Ser Supremo56. Jesus Cristo, cuja
característica era a de libertador e redentor, não poderia aprovar a
usurpação empreendida pelos imperadores de Roma e os de
54. Vide a citação em meu livro Historia general dela Iglesia en América Latina, I/ 1, p. 270. Esse
texto se encontra no breviário que o cura herói segurava no momento de ser fuzilado.
55 Carta .. bispo de Oaxaca, Antonio Bergoza, em 15 de novembro de 1812 (cf Agustín
Churruca, "El pensarmento de Morelos", em Materiales para una historia de Ia teologia en
América Latina, CEHILA-DEI , San José 1981, p. 241)_
56. El triunfo de Ia libertad sobre el Despotismo (1811), Caracas, 1953, t. L, p. 20.
39
mais opressores daquela época... A doutrina de Jesus Cristo era
57
uma declaração dos direitos do homem e dos povos .
A época da primeira emancipação (a de 1810 e decênios seguintes) é um
canteiro quase inexplorado da teologia da libertação, crítica, política, contrária
a outra teologia que justificava o prosseguimento da dominação
hispano-lusitana.
Essa foi a segunda época da teologia da libertação latino- arnaricana, que
tinha por sujeito os criollos, os nascidos na América mas geralmente de raça
branca ou mestiços. Não era ainda o proprio povo, como bloco social dos
oprimidos, quem se lançava à enunciação de um discurso teológico. De
qualquer maneira foi um discurso de libertação e fundador das nações livres
latino-americanas.
QUARTA ÉPOCA. A teologia neocolonial. na defensiva (até 1930)
As datas que marcam esse período são, por um lado, a aceitação por parte
de Roma da emancipação neocolonial. na pessoa do Papa Gregório XVI pela
encíclica Sollicitudo eccIesiarum ( 1831 ), e por outro a crise da oligarquia
neocolonial. ou do liberalismo dependente pouco depois da crise econômica do
"centro " em 19 2 9. Nesse amplo século a teologia passa da mera lembrança da
teologia da cristandade colonial e das euforias dos dois decênios posteriores a
1809 ao enclausuramento numa tradicional posição conservadora, provinciana,
sempre em defasagem quanto aos acontecimentos (pelo menos até meados do
século XIX)58. O positivismo (que se faz presente pela influência francesa no
Brasil com a obra de M. Lemos, Ausgusto Comte e o positivismo, 18 8 1, no
México por obra de Gabino Barreda, na Argentina por R Scalabrini, etc.), foi
criticado por teólogos conservadores que não deixam por isso de terem méritos:
entre outros,
5 7. Ibid., t. li. p. 9 0.
58. A crise era importante. J. jiménez Rueda, em Historia jutidica de Ia universidad de México, 152153, afirma que Mora dizia que em 1830 teria sido necessária "a supressão de uma multidão
exorbitante de cadeiras de teologia que levavam anos inteiros para contarem com um estudante-.
Em 1834 o plano da teologia é mudado no México: "a cadeira que se chamava de prima de
teologia será a de lugares teológicos; a de Escritura conservará seu nome; a de véspera será de
história eclesiástica": op. cit., p. 160. Pouco a pouco a teologia abandonará para sempre a
universidade do Estado. Em 185 7 a biblioteca de teologia passa. para a Biblioteca Nacional. Em
1867 a faculdade é suprimida definitivamente.
40
Mamerto Esquiú (1826-1883) na Argentina e pouco mais tarde jacinto
Ríos (1842-1892). Algo irá mudar a situação, a "romanização, que ira
ocorrer lentamente desde a fundação em Roma do Colégio Pio Latinoamericano (1859), que coincide com a irrupção das elites do liberalismo
neocolonial anticlerical (na Colômbia aparecem em 1849, no México
com juárez em 1857 e no Brasil com a República em 1889). Um certo
grupo de pensadores, teólogos ou bispos59, assume no £mal do século
essa posição liberal (na política se chamará a "democracia cristã"). É
interessante vermos como Mariano Soler (1846-1908), primeiro
arcebispo de Montevidéu, um dos primeiros alunos do Pio
Latino-americano de Roma e que inaugura presidindo o Concílio
Plenário Latino-americano ( 1899), em sua obra El catolicismo, Ia
civilización y el progreso ( 1878), na qual critica o darwinismo, o
protestantismo (sic), o racionalismo, a propaganda irreligiosa, etc., usa
uma terminologia e até categorias e problemática progressistas e
liberais (com uma bibliografia em francês, inglês e italiano da época),
mas dentro de uma postura fundamentalmente conservadora e
tradicional agrária. Há então uma desconfiança para com a cultura
burguesa, tecnológica nascente, anglo-norte-americana que começa a
ser imperial monopolista, mas por razões europeu-continentais, latinas
e por uma tradição agrária conservadora latino-americana. No entanto,
éno começo do século, e a partir das minorias de "católicos liberais",
que se começa a passar a uma superação dessa posição e se gestam as
posições que posteriormente serão assumidas decididamente pela
teologia progressista, praticada de todas as maneiras pelos setores ou
classes médias, aliadas da alta oligarquia.
Como muito bem demonstrou Beozzo60, a passagem de um
pensamento conservador a outro liberal, e ainda popular, é um fato que
deve ser considerado nessa época. A figura de Júlio César de Morais
Carneiro (1850-1916) poderia muito bem ser colocada como protótipo
da época em questão. De qualquer maneira, os chilenos tais como
Pedro Félix Vicuña ou juan José Júlio Erizalde (to
59. É nesse ambiente que surge o movimento do "liberalismo católico": cf. N.T. Auza, Católicos y
liberales en Ia generación del 80, I-II, Cuernavaca, 1969.
60. Vide os dois tomos publicados por DEI-CEHILA, sobre Historia de Ia Teología Latinoamericana
(1981 e 1985).
41
dos leigos); Riva Agüero ou Víctor Andrés Belaúnde no Peru, Trinidad
Santos no México, e tantos outros (entre os quais cabe mencionar os
redentoristas de fins do século, os Padres Grote ou Sonderns, que pela
sua experiência alemã lançam os "Círculos Operários") nos indicam
que nem tudo foi conservadorismo, e que o liberalis~ mo que alguns
católicos adotaram deverá ser estudado com mais atenção.
A presença de Roma é crescente e em particular da Itália. Os
teólogos do Concílio Vaticano I têm influência direta sobre os cada vez
mais numerosos estudantes de teologia que viajam a Roma, Só o Chile
envia desde o final do século XIX alguns seminaristas para fora da
Itália. É o período da terceira escolástica. A Universidade Católica do
Chile é fundada em 1869, transformando-se no mais importante centro
teológico da América Latina até meados do século XX.
Desde 1850 a presença de protestantes se faz notar, porque antes
dessa data ela fora mais esporádica. Os presbiterianos iniciam sua obra
na Colômbia em 1856, no Brasil em 1859 e no México em 1872. Os
metodistas iniciam sua obra no Brasil em 1835 e na mesma data no
Uruguai (mas fracassam) e retornam em 18 7 6. Os batistas começam a
atuar na Argentina em 18 8 1. Somente no congresso do Panamá de 1916
arregimentam suas forças. Ainda será necessário estudar
teologicamente os movimentos de liberais e maçons para se descobrir
novos caminhos.
QUINTA ÉPOCA. A Teologia da "Nova Cristandade" (desde 19 3 0)
Nesta época se efetuará a passagem da teologia tradicional, reflexo
das classes abastadas rurais ou latifundiários, integrista (cujo inimigo
era o liberalismo burguês, o comunismo, o protestantismo e os 11 tempos
modernos"), para a teologia desenvolvimentista, reformista, que assume
já o ethos burguês mas na trágica posição de ser um capitalismo
dependente - na melhor das hipóteses, porquanto a maioria de nossas
nações não alcança nem sequer o nível de capitalismo e é só uma
neocolônia de exploração de matérias-primas sem uma burguesia
nacional propriamente dita.
A crise de 1929 produziu "de tabela" a crise na "periferia",
especialmente na América Latina. Em determinados países como os do
Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile), no centro do Brasil (entre
42
Rio e S. Paulo) e no México, inicia-se como resposta uma certa
industrialização de substituição de importações, movimento que
crescerá na Segunda Guerra Mundial. Mas ao mesmo tempo surgem
movimentos sociais populares (o primeiro dos quais foi a revolução
mexicana em 1910, posteriormente orientada habilmente pela
burguesia daquele país) que impossibilitam às burguesias neocoloniais
exercerem o poder. Aparecem assim as classes militares em
praticamente todos os países, em nome inicialmente das classes
latifundiárias e depois da ambígua unidade da burguesia nacional e das
classes trabalhadoras. Isso significa o fim do liberalismo militante,
laicista (à francesa e inspirado em Littré), positivista (a partir de
Cornte), anticlerical (ainda que cristãmente moralizante), e, em troca,
inicia-se uma abertura e até se buscará o apoio da Igreja católica
tradicional, conservadora. Isso permitirá a organização de gigantescos
congressos eucarísticos, mas, principalmente, a fundação da Ação
Católica ou outras instituições semelhantes, que partem da formulação
teórica da teologia de "nova cristandade"61.
61. Vide um esboço histórico da teologia na América Latina em minha obra Hipótesis para una
historia de Ia teologia cri América Latina, Indo Amencan Press, Bogotá, 1986; para a época
recente consultar Samuel Silva Gotay, pensamiento cristiano revolucionario en América Latina,
Sígueme, Salamanca, 1981; RobertooliverosMaqueo, Liberación y teología, Génesis y crecimiento
de una reflexión (1966-1976),CRT, México, 1977; José Comblin, "Kurze Geschichte der
Theologie der Befreiung", em Juergen Prien, merika: Gessellschaft, Kirche, Theologie,
Vandenhoeck undRuprecht, Goettingen, 1981, t. II, p. 13 -38 Juergen Prien, Lu Historia del
cristianismo en América Latina, Sígueme, Salamanca, 1985, p. 1072s; Deane William Ferm,
Profiles in Liberation, 36 Portraits of Third World Theologians, Twenty-Third Publications,
Mystic, Connecticut, 1988, p. 114-193; Idem, Third World Liberation Theologies. An introductory
Survey, Orbis Books, New York, 1986, p. 3-58; como introdução geral ver Phillip Berryman,
LiberationTheology, Pantheon Books, New York, 1987; mais teológico que o anterior José Ramos
Regidor, Gesu e 9 Risveglio degli Oppressi,, Amoldo Mondadori Editore, Milão, 1981, e Mario
Cuminetti, La teologia della liberazione in America Latina, Ed. Borla, Bolonha, 1975; para o
contexto da história da Igreja, vide a obra de conjunto de CEHILA, Historia General de Ia Iglesia
cri América Latina, Sígueme, Salamanca, t. I-X, desde 197 7 e ainda inacabada; vide meu livro De
Medellín a Puebla. Una década de sangre y esperanza Edicol-CEE, México, 19 79 (há uma edição
portuguesa em Loyola, S. Pai-do, t. 1-111, 1985); e minha Hipótesis para una Historia de Ia Iglesia
cri América Latina, Estela, Barcelona, 1967 (edições posteriores em Castelhano; em inglês Church
History in Latin America, Eerdmans, Grand Rapids, 1981; em alemão Kirchengeschichte in
Lateinamerika, Gruenesvald Verlag, Mainz, 1988); também, no tocante ás tensões internas na
Igreja, consultar Penny Lernoux, Cry of the People. United States in the Rise of Fascista, Torture
and Murder and the Persecution of the Catholic Church in Latin America, Doubleday, New York,
1980; por último CEHILA, Historia de la Teología en América Latina. VIII Encontro
Latino-americano, Lima (19 8 0), DEI, San José, 19 81 (há uma tradução para o português em
Paulinas, S. Paulo): além desses, Pablo Richard (ed), Raíces de Ia Teologia Latinoamericana,
DEI-CEHILA, San José, 19 8 5 há uma tradução para o português em Paulinas, S. Paulo, 1982; e
para o inglês em Orbis Books, New York, 1985). Para uma postura crítica ante a teologia da
libertação, e com uma bibliografia muito boa, Roger Vekemans, Teología de Ia liberación y
cristianos; por el socialismo, Cedial, Bogotá, 1976.
43
A América Latina, como nenhum outro continente (excetuando-se na
Europa a Espanha, Bélgica ou França, quer dizer, a Europa Latina), pôde
seguir as instruções de Pio XI acerca da Ação Católica. Efetivamente, na Itália
o fenômeno do fascismo, com Mussolini, significou (como nos países mais
industrializados da América Latina; ainda que no México com a crise da
"cristiada" que demarcará a situação de maneira diferente) o surgimento de um
novo "bloco histórico": a burguesia nacional (e "nacionalista"), que
hegemoniza um projeto de industrialização, firmando um ambíguo pacto com
o proletariado crescente, e usando a pequena burguesia como a classe
"burocrática" por excelência 62. A "teologia" da Ação Cató lica foi uma
reflexão cristã que legitimou - ainda que aparentemente criticasse de maneira
externa - o projeto “populista”63 Tomemos como exemplo (de um tema que
ainda não se estudou suficientemente) duas pequenas obras da época, por volta
de 1940. Na tradução da obra de Luis Civardi, Clássica na década de 30,
Apóstoles en el propio ambiente64 o prefaciador - recém-nomeado bispo,
Monsenhor Alfonso Beteler -, escreve:
Os leigos da Ação Católica, por serem participantes do apostolado
Hierárquico (com maiúscula no texto), são incorporados à missão
da Hierarquia (com maiúscula no original) de forma parcial (sic),
mas real. Parcial, porque não recebem a totalidade da missão e sim
uma participação da mesma; real, porquanto não se trata de uma
simples proposição metafórica, mas sim da verdadeira incorpora
ção à missão de que a Hierarquia é depositária65 .
62. Vide meu artigo "El estatuto ideológico del discurso populista", em Práxis latino-americana y
filosofia de Ia liberación, Nueva América, Bogotá, 1983, p. 261-3 06. Ghita lonescu-Ernest Gellner significados y características nacionales, Amorrortu, Buenos Aires, 1971; F. Weffort,
Populismo, marginación y dependencia, Universidad Centroamericana, San José, 1973. Sobre a
Igreja latinoamericana, vide meu livro Die Geschichte der Kirche in Lateinamerika, p. 168s.
63. O "fascismo" ou "nazismo" do "Centro" (Itália ou Alemanha) visava o domínio mundial do
capitalismo. 0 "populismo" da "periferia" (fascismo de países neocoloniais) é o fenômeno análogo
no Terceiro Mundo. A diferença repousa em que o "populismo" (de Vargas no Brasil, Cárdenas no
México, Yrigoyen ou Perón ria Argentina, Ibañez no Chile, Rojas Pinilla na Colômbia, Pérez
Giménez na Venezuela, o APRA no Peru, o MNR na Bolívia, etc.) é "antimperialista" (antianglosaxão) mas dentro do panorama de uma "libertação nacional" (sob hegemonia. da burguesia,
porquanto é um projeto capitalista), sem pretensões hegemônicas "para o exterior".
64. Edições JAC, Conselho Arquidiocesano de Córdoba (Argentina), 1940.
65. Ibid., p. 6.
44
E Monsenhor Civardi expressa, por seu turno:
Apóstolos são todos os legítimos sucessores dos Doze, dos Bispos
(tudo em maiúscula no texto original), e, sob a sua direção, os
sacerdotes. Eles exercem o apostolado Hierárquico. Mas na Igreja
de Cristo podem e devem ser apóstolos, dentro de certos limites
(sic), também os simples fiéis. Seu posto é o de coadjutores do
apostolado Hierárquico. Eis aqui a Ação Católica, vasta falange de
leigos, que se unem ao clero nessa grande empresa, que é a
salvação das almas66 .
Pode observar-se, então, uma eclesiologia absolutamente "hierarquica 11 ,
onde o leigo "participa" (parcialmente, "dentro de certos limites") de um
apostolado que é concedido "de cima", não "de baixo" (de seu batismo, como
consagração messiânica), e sim "institucionalmente" a partir da hierarquia. A
leitura desse texto mereceria todo um tratado teológico específico. Há nele
uma concepção "individualista" da missão cristã, "dualista" (salvar a "alma" ),
etc. É o tempo do ensino do "Estado" como "sociedade perfeita", junto a uma
Igreja também como "sociedade perfeita". Sendo ambas "perfeitas", um pacto
entre elas é possível. Não há contradição. Por isso, na obra de Leopoldo Ruiz,
arcebispo de Morelia (México), Breves instrucciones de Doctrina Cristiana67 ,
nos é dito, no comentário ao sétimo mandamento, sobre o "Não roubarás":
O direito de propriedade, não só do que usamos para nossa
alimentação e vestuário, como também de nossas casas, animais,
bens e terras justamente adquiridas, quer seja por herança, quer
seja por nossa própria iniciativa e trabalho, é um direito natural
sancionado pela lei de Deus (...) O Socialismo não pode ser
admitido senão entre indivíduos que situem a sua felicidade aqui na
terra ( ... ) Por isso mesmo o Socialismo é ímpio, destruidor da
moral, da ordem e da própria sociedade 68.
66. Ibid., p. 13-14.
67. Editorial Moderna, Léon (México), 1939.
68. Ibid., p. 180-18 1. É interessante observar que o arcebispo fala no plural de "casas", e além do
mais de -terras- num país onde os camponeses com Zapata fizeram uma revolução justamente
porque não possuíam terras. Quer dizer, sem consciência, está falando dos que as possuíam: da
oligarquia latifundiarista, dos proprietários urbanos, etc. E, em uma anotação, ele acrescenta: "O
socialismo quis apagar o 7º Mandamento" (Ibid., p. 181). Não se
45
A justificação do Estado populista, da ordem burguesa de
propriedade, numa Igreja concebida clericalmente (hierarquicamente),
fundamenta a teologia das "duas ordens": a ordem "temporal" do
político, do econômico, do profano (o "ambiente" de Civardi ou o
"mundo") onde o leigo vive naturalmente, e onde deve exercer o
"apostolado" ("de cima para baixo"). E a ordem "espiritual" da Igreja,
da alma, da salvação, onde o Bispo (Papa e sacerdote) têm autoridade, e
onde o leigo "participa". Ademais, por uma sutil metamorfose do
"Reino de Deus", o dito Reino é a Igreja, e o "mundo" (o Estado, o
profano, o político) é o "Reino deste inundo". 0 membro da Ação
Católica invoca a "Cristo Rei" (sua "realeza" significará reconquistar
seu domínio sobre o político), e ao receber seu distintivo (que devia
trazer sempre em sua lapela) se compromete a restituir o reinado a
Cristo Rei".
Na América Latina, a Igreja tinha sido deslegitimada pelos liberais
desde fins do século XIX (a República brasileira de 18 8 9, desde
Juárez e o porfiriato mexicano a partir de 18 7 6, o governo de Roca na
Argentina desde 1880). 0 positivismo filosófico, a maçonaria como
força política, o protestantismo como competição religiosa, as
sociedades de livres-pensadores, tinham subtraído da Igreja o poder
político - ela que havia desfrutado na Cristandade colonial de um
consenso sem contrapartida. A Ação Católica foi a "instituição"
eclesial, com base fundamentalmente na pequena burguesia (que nos 11
populismos" é a clientela essencial da burocracia política do Estado),
que "recuperou" a presença política da Igreja na "sociedade política" (o
Estado) e na "sociedade civil" (o "ambiente"):
No sentido mais estrito chama-se de apostolado de ambiente o que
se desenvolve em beneficio daqueles que se encontram na mesma
condição de vida que nós e que portanto têm em comum conosco
os deveres de estado. É o apostolado do operário sobre o operário,
do profissional sobre o colega de profissão, do empregado sobre o
companheiro de escritório, do estudante sobre o colega de colégio,
69
da mãe de família sobre outras mães, etc.
emende o argumento, porque se por alguma coisa o socialismo deveria justificar-se, é, justamente,
pela restituição ao pobre, ao trabalhador, ao camponês daquilo que "lhes foi roubado": suas terras,
seu valor não retribuído em salário, etc.
69. L. Civardi, op. cit., p. 16.
46
Observem os exemplos escolhidos. Fala-se de "operário- (não de
"camponês"), de "profissional", "empregado" e "estudante (pequena
burguesia) e todos "urbanos" - do Norte da Itália então. não do "mezzo
giorno" de Gramsci, nem do mundo rural Iatino- americano (a imensa
maioria do povo latino-americano nos anos 40). É uma teologia
"interclassista" (como exige o "populismo"), e por isso a Ação
Católica:
Não é ação cívica nem política, senão no sentido de que, ao
infiltrar-se o espírito cristão nos indivíduos e famílias, terá
que se fazer sentir a regeneração social e ainda política sem
violências nem transtornos70.
Trata-se então de ganhar "consenso" - ou de impedi-lo aos grupos
antieclesiais. Se junto a isso vemos a política do cardeal Sebastião
Leme (1930-1943) no Brasil, de Santiago Martínez (1936-1952) em São
José da Costa Rica71 , e a organização de massivos Congressos
Eucarísticos que se confrontavam com o Estado populista, poderemos
compreender a que tipo de "teologia" deveria se opor a futura teologia
latino-americana pós-conciliar. 0 certo é que essa teologia não tinha
nenhuma posição crítica diante do regime capitalista, ante o Estado
populista no tocante à sua fundamentação. Ela o criticava enquanto a
Igreja exigia participação no exercício do poder ("ensino religioso nas
escolas", "capelães castrenses", "moralidade externa nos costumes",
etc.), dando em pagamento a "le~ gitimação" do sistema - e penetrando
profundamente no muno da vida cotidiana. A isso temos denominado
"teologia da Nova Cristandade", enquanto a Igreja recupera presença
na "sociedade política" e "civil" num pacto que se assemelha - mas de
nenhuma maneira é idêntico - ao da "Cristandade colonial" (de 15 12 a
18 10, para oferecermos datas aproximadas).
Em 1928 viajam a Roma a fim de estudarem a organização da
Ação Católica os presbíteros A. Caggiano (que será depois cardeal de
Buenos Aires, Argentina) e J.M. Miranda (que igualmente será cardeal
do México). Desde 1929 ela se institucionaliza aos poucos
70. Leopoldo Ruiz, op. cit., p. 281.
71. C£ meu trabalho Los últimos 50 afias (1930-1985) en Ia Historia de la Iglesia en América Latina,
IncioAmerican Press, Bogotá, 1986,p. 17s.
47
em todos os nossos países. Essa teologia distinguia claramente entre o
"temporal" e o "espiritual"; o leigo era responsável pelo temporal,
mundano, material e político; o sacerdote era o "homem do espiritual",
o vigário do reino de Cristo. A função do povo cristão, do militante, era
cumprir o "apostolado". Esse "envio" ou missão se definia como uma
"participação no apostolado hierárquico da Igreja"; entendendo-se por
hierárquico o papel dos bispos e sacerdotes. Dessa maneira os
ministérios e o sacramento da ordem suprimiam praticamente a
significação dos carismas e o sacramento do batismo. Os leigos podiam
atuar na política com partidos de "inspiração cristã" - e assim surge no
Chile em 1936 o grupo da "falange", que se separa da juventude do
partido conservador, e que depois da II Guerra Mundial e por influência
italiana se denominará "democracia cristã", que irá florescer
especialmente entre 1950 e 1970 -; poderão atuar em sindicatos
operários mas igualmente de "inspiração cristã" - assim se organizou a
CLASC ou Confederação Latino- Americana de Sindicatos Cristãos,
que não foram senão sindicatos reformistas na maioria dos casos -;
poderio exercer a docência mas em "escolas cristãs", etc. A tarefa
éentão a de reconverter as nações latino-americanas em naçoes
católicas: o reino de Cristo exige que se reconheça a religião católica
como a oficial e majoritária. A Igreja sonha então em recuperar a cota
de poder que havia perdido no século XIX a partir da crise da
cristandade e sua forma de mediação são os leigos militantes.
Essa teologia da "nova cristandade" não é acadêmica mas sim
militante, porém não é diretamente política e sim dualista, em matéria
de temporal-espiritual, estado-igreja como sociedades perfeitas cada
uma em seu nível e não conflitantes.
Será necessário esperar até 1955 para que ocorra um passo à frente
no rumo de uma teologia desenvolvimentista; quer dizer, o momento
em que os cristãos ou parte deles assumem decididamente o projeto
burguês - e da pequena burguesia - de expansão e desenvolvimento.
No entanto, é evidente, não havia de modo algum consciência do
problema das classes e da dependência que o continente latinoamericano padecia sob o poderio econômico, político e militar dos
Estados Unidos. A terceira escolástica tinha recebido o auxílio de
Jacques Maritain e por último de Emmanuel Mounier, e com eles se
rejuvenescera uma certa interpretação da realidade.
48
Os teólogos se formavam agora não só na Itália, senão que os mais
progressistas iam agora à França, país da pastoral, de experiências
catequéticas, litúrgicas, de espiritualidade, dos padres operários, etc. A
"doutrina social" da Igreja permitia a muitos realizarem experiencias de
compromisso operárias ou em grupos marginalizados.
Nessa época florescem as fundações de faculdades ou centros
teológicos em universidades tais como a Xaveriana de Bogotá
(fundada em 1937), a Católica de Lima (1942), a Bolivaríana de
Medellín (1945), as Católicas de S. Paulo e Rio de janeiro (1947), a de
Porto Alegre (1950), as de Campinas e Quito (195 6), as de Buenos
Aires e Córdoba (1960), a de Valparaíso e a Centro-americana na
Guatemala (196 1), e muitas outras depois. A teologia -à européia"
tinha um âmbito acadêmico no qual podia ir crescendo à espera de seu
momento criativo.
A práxis eclesial ia igualmente se ampliando. A Ação Católica
fundada em 1931 na Argentina e no Chile, em 1934 no Uruguai, em
1935 na Costa Rica e no Peru, em 1938 na Bolívia, e pouco a pouco em
todos os países, permite ir passando a uma fraca "luta social". Grupos
como os de "economia humana" inspirados em Lebret, ou o "centro
Belarmino" em Santiago do Chile, vão criando consciencia. 0 mesmo
pode ser dito dos centros de pesquisas sociais e religiosas que são
fundados em Buenos Aires, Santiago, Bogotá e México e que
permitirão começar a adquirir uma certa visão sociográfica (não digo
sociológica e menos ainda econômico-política) da realidade latinoamericana.
Por outro lado se erigem as bases do movimento bíblico. Os
protestantes pelas suas "sociedades bíblicas" e os católicos por meio de
seminários, revistas e novas edições da Bíblia vão abrindo caminho a
uma renovação nesse sentido.
No entanto, podemos dizer que ainda depois da II Guerra Mundial
a produção teológica é por via de imitação e aplicação do europeu,
sem um conhecimento histórico nem real da América Latina.
49
CAPÍTULO TERCEIRO
HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA II
(SEXTA ÉPOCA)
PRIMEIRO PERÍODO. Da Teologia européia à latino-americana (1959-1968)72
Desde 1959 - com o anúncio do Concílio Vaticano II e a ocupação de
Havana pelas forças revolucionárias de Fidel. Castro e do "Che"
Guevara - foi sendo gerada lentamente uma nova situação teológica. A
crise da Ação Católica - e daí a importância da obra de José Comblin
(nasceu em 1923) sobre o Fracasso da Ação Católica (196 1) é um fruto
do colapso do "populismo". A derrubada em 1954 de Arbenz na
Guaternala (pelo golpe de Castillo Armas preparado pela CIA) e de
Vargas no Brasil (que se suicidou por não poder resistir mais à pressão
do embaixador norte-americano), em 1955 o fim do governo peronista na
Argentina, em 19 5 7 o de Pérez Giménez -ia Venezuela e o de Rojas
Pinilla na Colômbia e em 1959 o de -ulgêncio Batista em Cuba, como
indicamos acima, abrem a porta a hegernonia indiscutível dos Estados
Unidos na América. Latina. É a Década do "desenvolvimento"73 que
ocupará o lugar da teologia
72. Vide Pablo Richard (ed), Morte das cristandades e nascimento da Igreja, Ed. Paulinas, S. Paulo,
1982 (orig. francês: Mort des chrétientés et naissance de lÉglise Paris, 19 7 8 e trad. para o inglês
pela Orbis Books, New York, 1985). Vide igualmente minha obra Los últimos 50 años
(1930-1985) en Ia Historia de Ia Iglesia en América Latina, Indo-American, Press, Bogotá, 1986,
p. 1 7s.
73. Como exemplo 0. Vertrano-F. Houtart, Hacia uno teologia del desarrollo, Bonum, Buenos Aires,
1967; José Comblin, Teologia do desenvolvimento, Belo Horizonte, 1968; G. Bauer, Towards a
Theology of Developrnent, Genebra, 19 70; Rubem Alves, "Apuntes para una teologia del
desarrollo", em Cristianismo y Sociedad 21 (1969); V Cosmao, Signification et théologie du
développement, Centro Lebret, Paris, 1967. Na Alemanha Hugo Assmann alerta sobre a questão
em "Die Situation der unteretiwickelt gehaltenen Laender als Ort einer Theologie der
Revolution", em Diskussion zur Theologie der Revolution, Muenchen, 1969, onde situa a questão
da "Teologia do desenvolvimento". Para os acontecimentos eclesiásticos vide meu livro Die
Geschichte der Kirche in Lateinamerika, p. 2 0 Os.
51
da Ação Católica (ou "teologia da Nova Cristandade", conforme a
denominamos), não significando, teologicamente, mudanças
fundamentais, como veremos adiante.
Podem ser detectadas três linhas de fundo. Em primeiro lugar, a
renovação da Igreja devido ao Concílio Vaticano II (1962-1965), onde,
no entanto, teologicamente, a América Latina não contribuirá com nada
ainda - a não ser pelas posições particulares de certos bispos muito
ativos no próprio Concílio. Em 1955 fora organizada, nos tempos de Pio
XII, a I Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano no Rio de
janeiro - sob a liderança de Monsenhor Manuel Larraín do Chile, e do
jovem sacerdote Hélder Câmara do Brasil. Em 1958 é fundada a
Confederação de Religiosos da América Latina (CLAR), que será,
desde a sua origem, um baluarte da renovação cristã no continente
durante estes últimos trinta anos. Iniciase um grande aprofundamento
dos estudos bíblicos, pastorais, de espiritualidade, litúrgicos. Fundamse
seminários teológicos, revistas etc. Quer dizer, cria-se a infraestrutura
para a próxima profunda renovação.
Teologicamente a visão da Igreja muda. A colegialidade episcopal
descortina novos horizontes de convocação. O mesmo se dá no tocante
à consagração batismal como fundamento da função do leigo no
mundo. Todos os capítulos da teologia se renovam, mas ainda a
inspiração procede da Europa. Mais ainda, os futuros teólogos vão
estudar lá; os católicos, em sua primeira geração, na França
preferentemente; os protestantes nos Estados Unidos. José Míguez
Bonino (metodista, nascido em 1924) estuda nos EUA na década de 50;
Juan Luis Segundo (católico, nascido em 1925) se prepara desde
meados de 19 5 0 em Lovaina; José Porfirio Miranda (nascido em 1924)
estuda em Frankfurt e Roma; Gustavo Gutiérrez (nascido em 19 2 8) faz
o mesmo em Lovaina e Lyon; Hugo Assmann (1933) no Brasil, e
leciona em Muenster desde 1967; Enrique Dussel (1934) estuda teologia
em Paris e Muenster (chega à Espanha em 1957, porém a Paris em 1961,
vinculado à Missão da França); e poderíamos ir relembrando a
formação teológica de cada um. É a época da "dependência" teológica,
inevitável, por outro lado, se levarmos em conta que a América Latina
tinha sido uma colônia intelectual da Espanha e de Portugal até o início
do século XIX. Desde meados do século XIX se efetua o processo de
"romaniza
52
ção", e somente depois da Segunda Guerra Mundial, desde 1945, há
uma franca abertura para a França - a França da renovação pastoral da
"paróquia-comunidade missionaria", da espiritualidade de Charles de
Foucauld, dos sacerdotes operários, fatores estes que causarão impacto
profundo na primeira geração dos futuros teólogos latinoamericanos.
Surgem nessa época organismos de reflexão pastoral que servirão
posteriormente como apoios ou pontos emergentes de reflexão
teológica. Por exemplo, o Instituto de Catequese Latino-americano
(ICLA), no sul (196 1) e no norte (1966); o órgão de Seminários Latinoamericanos (OSLAM) que ministrava cursos para professores de
seminários sacerdotais; o Instituto Pastoral Latinoamericano (IPLA), de
início itinerante, e que depois se situará em Quito desde 19 6 7
-instituição pioneira, e à qual pertenceram os primeiros teólogos latinoamericanos: José Comblin, Juan Luis Segundo, Gustavo Gutiérrez,
Enrique Dussel, Segundo Galilea, etc.
Uma segunda linha, do mais franco compromisso da juventude
cristã na política, seguindo os delineamentos da Doutrina Social da
Igreja nas nascentes Democracias Cristãs, desde a chilena sob a direção
de Eduardo Frei, até a argentina, venezuelana (COPEI), etc. Mas será
com o primeiro governo democrata cristão da América Latina (com
Eduardo Frei no Chile de 1964 a 1970) o início da crise desse tipo de
compromisso "temporal". A ocupação de Puerto Montt em 1967 e a
repressão camponesa escandaliza a consciência cristã de muitas
pessoas. O Centro para o Desenvolvimento Econômico e Social da
América Latina (DESAL), fundado por Roger Vekemans, inspira
tarefas da Democracia Cristã no Chile - em 1970 passará para Caracas e
dali para Bogotá. 0 Instituto Latino-Americano de Doutrinas e Estudos
Sociais (ILADES), fundado por Pierre Bigo, terá igualmente essa
orientaçao em suas origens - até a crise de 1969. A Federação
Internacional de Sociologia Religiosa (FERES), ainda que não
seguindo a mesma orientação, contribuirá para a descoberta da
realidade eclesial e sociológica. Teologicamente, não se encontra uma
variante essencial com a teologia da Nova Cristandade - é só uma
adaptação modernizante à exigência do "desenvolvimento".
Uma terceira linha é a do compromisso de outros jovens cristãos
em outro tipo de relação entre "fé e política": a nascente tradição
revolucionária. A Revolução cubana de 1959 causou igualmente
impacto nos cristãos. Muitos se separam então da Democracia Crista, e
53
seguindo o desenvolvimento do pensamento de Jacques Maritain
passam para o de Emmanuel Mounier, e deste para o compromisso
revolucionário, não necessariamente para o marxismo - e quando
assumem essa posição se inspiram numa linha de pensamento
gramsciana, crítica, antidogmática. Tudo se acelera com a morte de
Camilo Torres (1929-1966), sacerdote e sociólogo (estudou em
Lovaina), que assim escreve em 1965:
Abandonei o sacerdócio pelos mesmos motivos pelos quais me
comprometi com ele. Descobri o cristianismo como uma vida
centrada totalmente no amor ao próximo ( ... ). Me considero, no
entanto, sacerdote até a eternidade e entendo que meu sacerdócio e
seu exercício se efetuam na realização da revolução colombiana,
no amor ao próximo e na luta pelo bem-estar das maiorias74 .
O compromisso de muitos jovens cristãos nas guerrilhas
"foquistas" - que mostrarão seu fracasso posteriormente, com a única
exceção da Frente Sandinista ou da Frente Farabundo Martí
-significará uma profunda crise para a consciência cristã. Essa tradição
se prolongará posteriormente com "Cristãos para o socialismo" desde
19 7 2, primeiro no Chile e depois em toda a América Latina,
antecedida pela cisão da Democracia Cristã do Movimento de Ação
Popular Unitária (MAPU), e pela crise do ILADES, com a saída de
Gonzalo Arroyo e Franz Hinkelammert - que se separam de Pierre
Bigo e Roger Vekemans. Teologicamente, entretanto, todos esses
compromissos -incluindo a "teologia da revolução"75 - não podem ser
considerados ainda como uma teologia "autóctone" da América Latina.
Pertence mais definidamente à teologia européia
74. Rodolfo de Roux, "La Iglesia colombiana desde 1962", em Historia General de Ia Iglesia en
América Latina, t. VII, Sígueme, Sala-manca, 1977, p. 5S9s; cf, meu livro Die Geschichte der
Kirche in Leteinamerika, p. 262s.
75. No campo protestante, e por uma vinculação muito maior com a África. e a Ásia - que tinham
grandes experiências da luta pela emancipação nacional desde 1948 ou de revoluções socialistas,
como a da China ou a do Vietnã -, a partir do Conselho Mundial de Igrejas (WCC), tinha surgido
urna -Teologia da Revolução", mas que, na realidade, era a "aplicação" da teologia européia, em
seu capítulo de moral social, ao campo da política revolucionária. Sergio Arce, em Cuba, foi o
primeiro a iniciar essa corrente - mas junto com uma "Teologia do trabalho" de grande
originalidade, e já em 1961 o ISAL (1961) será um organismo protestante de vanguarda.
54
crítica, de modernização, e ainda revolucionária. O passo fundamental
estava no entanto por ser dado.
Há dois aspectos que devem ser indicados. Em primeiro lugar, a
profunda aspiração da "pobreza" na Igreja. A "pobreza" dos indivíduos
(bispos, padres, militantes leigos) como testemunho de vida
evangélica, produto da conversão do Concílio76 . E, em segundo lugar,
a experiência "classista" que se originará na Ação Católica
"especializada": a juventude Operária Católica (JOC), que começa a
tomar consciência de classe proletária; e a juventude Universitária
Católica (JUC), ou Estudantil (JEC), ou o Movimento Estudantil
Cristão protestante (FUMEC). É a partir desse grupo de militantes,
operários ou de pequena burguesia (este último não só não é algo
negativo, como demonstrará ser uma classe essencial no processo
revolucíonário latino-americano em geral, conforme o manifesta a
FSLN), que a Igreja em seu conjunto experimentará um novo tipo de
compreensão da existência em geral, e política em particular. É a partir
da prática desses grupos, e sua teoria, que emergirá a ruptura teológica
mais importante da história latino-americana desde o século XV.
Se tivéssemos de buscar um primeiro texto que indique o apa
recimento de uma reflexão teológica latino-americana, utilizando
ainda a sociologia fancionalista, não poderíamos deixar de citar a
obra de Juan Luis Segundo, que em 1962 publicou um opúsculo,
Función de Ia Iglesia en Ia realidad Río platense77curso de
"complementação cristã" dado em Montevidéu em 1961. Nele lemos:
76. Recordo, da minha estadia em Nazaré (Israel) com Paul Gauthier (1959-1961), a exigência de
pobreza. Ele escreverá posteriormente o livro profético Les pauvres, Jésus et lEglise (Castermann,
Tournai, 1963) onde se coloca já a questão do "pobre" - estávamos, sem sabermos, na pré-história
da futura Teologia da Libertação. 0 Papa João XXIII falou pela primeira vez da Igreja dos pobres"
- graças ao trabalho de Gauthier com o bispo de Nazaré, Monsenhor Hakim, o de Tournai (Mons.
Hammer), com o arcebispo de Bolonha (Mons. Lercaro), e ainda com Dom Hélder Câmara. no
final do Concílio. Um movimento pela "pobreza" na Igreja e a opçãopelos "pobres" se originou
em Nazaré desde 1959. Vide o capítulo de i. Míguez Bonino sobre o tema dos "pobres" no
Concílio Vaticano, em Los pobres (Guadalupe, Buenos Aires, 1976, p. 134147). 0 texto
fundamental era o de Isaías 6 1, 1, lido por Jesus em Nazaré (Lucas 4,18): "Ruah Adonai Alai... (0
Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa-nova aos
pobres (..) para anunciar aos cativos a redenção ( ... ) para colocar em liberdade os cativos ...)”.
77. Barreiro y Ramos Editores, Montevidéu, 1962.
55
Para colocar melhor e mais objetivamente o nosso problema,
comecemos por fazer uma observação de tipo sociológico (sic).
Tratemos de averiguar algo mais profundo sobre o que a Igreja
significa para os católicos rio-platenses. Escolhamos para a nossa
investigação aquela categoria de cristãos ( ... ) que possuem isso
que comumente chamamos de espírito apostólico ( ... ), mas como
um apostolado mais indireto exercido através da comunidade, da
78
profissão, da ação política, etc.
E partindo das análises sociológicas da Grande Missão de Buenos Aires,
inicia sua tarefa crítica reflexiva. De maneira irônica ele escreve:
Se somos lógicos, pouco importa a Aliança para o Progresso, as
greves gerais ou a escala móvel (dos salários) diante do tremendo
problema de pertença à Igreja dos que nos rodeiam ( ... ).A posição
oposta nos é apresentada na realidade sociológica da 79 Argentina e
79
do Uruguai 19 61 como menos teológica .
Nesse pequeno livro Segundo apresenta já muito claramente a categoria
de "Cristandade"80; coloca igualmente a ambigüidade de um catolicismo de
81
massas históricas e culturais , chegando a escrever:
Este mundo verá ou não a vitória de uma revolução marxista na
América Latina. Não se trata de quebrar a cabeça para saber de que
lado se colocar para ficar bem. Em qualquer hipótese, a história
nos conduzirá a Cristo. De nossa parte cabe negarmos as
simplificações que nos propoem os que se assustam como se 82
fossem perder tudo82 .
Não seria difícil mostrar, pelo método, pelo espírito, a consciência clara de
uma teologia latino-americana nascente, fresca, criativa, que usa as ciências
sociais como instrumento. Juan Luis Segundo foi o primeiro mestre da futura
teologia. Remontando às origens, então, não se pode deixar de mencionar a
primeira reunião de teólogos latinoamericanos, convocada pelo CELAM, e
realizada
78. Ibid., p. 6.
79. lbid., p. 9.
80. lbid., P. 19.
81. Ibid., p. 64s.
82. Ibid., p. 80.
56
em Petrópolis, em março de 1964. Na referida reunião, três teólogos
devem ser mencionados em particular: Juan Luis Segundo expôs o
tema "Problernas teológicos da América Latina". Lucio Gera reiterou o
sentido "sapiencial" e não só racional do que fazer teológico e a
exigência de o teólogo comprometer-se com as aspirações do povo.
Gustavo Gutiérrez analisou a função da teologia em relação às massas
majoritárias, às elites intelectuais e à oligarquia conservadora. Esse
encontro em Petrópolis foi pioneiro. Posteriormente houve outros em
1965 em Havana, de 14 a 16 de julho, com Segundo Galilea e Luis
Maldonado; em Bogotá, de 14 de junho a 9 de julho, com palestras de
Juan Luis Segundo e Casiano Floristán; em Cuernavaca, de 4 de julho a
14 de agosto, com Iván Illich e Segundo Galilea.
Além disso, o CEIAM organizou importantes encontros que
prepararam o terreno para Medellín. O I Encontro episcopal de Pastoral
de Conjunto, em Baños (Equador), de 5 a 11 de junho de 1966. 0
Encontro episcopal sobre a presença da Igreja no mundo universitário
em Buga (Colômbia), em fevereiro de 1967 - e que originará
importantes movimentos estudantis que preparam os acontecimentos de
1968. A reunião dos presidentes das comissões episcopais da Ação
Social em Itapoã (Brasil), de 12 a 19 de maio de 1968. Ali foi declarado:
Dessa concepção do subdesenvolvimento se depreende também
que este só se compreende dentro de sua relação de dependência
do mundo desenvolvido. 0 subdesenvolvimento na América Latina
é, em grande parte, um subproduto do desenvolvimento capitalista
do mundo ocidental. É um fato estarmos inseridos no sistema de
relações internacionais do mundo capitalista e, mais
especificamente, em um espaço econômico em torno de cujo
centro, na periferia, giram as naçoes latino-americanas, como
83
satélites dependentes .
O documento se iniciava com uma reflexão teológica, e é um
antecedente imediato de Medellín.
83. "Presencia de Ia Iglesia en el proceso de cambio de América Latina", em Signos de Renovación,
CEP, Lima, 1969, p. 38.
57
O documento preparatório de Medellín já utilizava as ciências sociais
como ponto de partida:
Sem pretender ser um diagnóstico exaustivo, assinalaremos
unicamente aqueles traços sociais, econômicos, políticos, culturais e religiosos que marcam a físionomia da América Latina e que colocam sérios problemas para o cristianismo84 .
Esse documento despertou viva polêmica em todo o continente, em
especial no Brasil e em torno da pessoa de José Comblin, que foi taxado de
comunista pela ditadura militar então no poder. Ainda caberia aqui destacar a
X Assembléia do CELAM em Mar del Plata, em 1966, onde Hélder Câmara
exclamou:
Essa situação humana de uma sociedade em crise exige d'Ela (a
Igreja) urna tomada de consciência e um empenho decidido de
ajudar
o Continente
a
empreender sua
libertação
dosubdesenvolvimento85 .
O mesmo Dom Hélder tinha sido o primeiro a assinar um famoso
documento que foi publicado na França por Témoignage Chrétien em 31 de
julho de 1966, com outros dezesseis bispos da Periferia, onde se afirmava que
"os povos do Terceiro Mundo constituem o proletariado do mundo atual".
Gustavo Gutiérrez, de quem me recordo na reunião de Melun (França) de
1962, eu como estudante na França e ele como assessor da JEC, publica em
86
1966 Caridad y amor humano , onde se entrevê o propósito de não separar
dualisticamente, o amor a Deus e o amor ao proximo, mas ainda não se
descobre a posterior novidade metodológica, já que está imerso, na
problemática da teologia francesa da época.
Em 1967 aparece meu livro Hipótesis para una historia de Ia Iglesia en
América Latina87 , com a consciência de que nos abríamos para uma nova época,
e por isso terminava com as seguintes palavras:
84. "Documento de trabalho da Segunda Conferência Geral", em Signos de Renovación, p. 193s.
85. Em Signos de Renovación, p.49.
86. Editorial Tierra Nueva, Lima, 1966.
87. Estela, Barcelona, 1967. Escrita em Mainz e Muenster de 1963 a 1964 no Institut fuer
europãische Geschichte, onde era eu Wissenschaftliche Mitarbeiter do Prof Joseph Lortz,
58
Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos (Mateus 8, 22)88 .
SEGUNDO PERÍODO. Formulação da Teologia da Libertação
(1968-1972)
Nessa etapa básica desejaríamos reconstituir com cuidado cada um
dos passos históricos da origem da teologia latino-americana. Não nos
deteremos nos acontecimentos eclesiais que a antecedem, quer dizer, a
práxis eclesial. que explica essa constituição, já que tem sido objeto de
muitas descrições89. Passemos ao nível reflexivo propriamente dito. Em
1965 André Gunder Frank formula a primeira crítica da "teoria do
desenvolvimento"90. Foi o início de uma revolução teórica do
pensamento latino-americano - sua hipótese, muitas vezes criticada em
detalhe, era fundamentalmente certa: a riqueza dos países ricos tem
como um de seus momentos definidos a transferência de valor dos
países pobres. A riqueza dos ricos se origina na pobreza dos pobres.
Nascia assim a "teoria da dependên
foi a primeira interpretação histórica de conjunto, e além disso também uma interpretação teológica na
linha do Concílio Vaticano II da história da Igreja na América Latina. A edição atual de Gruenewald,
Die Geschichte der Kirche in Lateinamaika ( 19 8 8), contém partes; daquela primeira edição (p.
69-199); ali dialogávamos com Juan Luis Segundo (p. 195, nota. 69), quando nos conhecemos em
Paris como estudantes. Em 1961 tínhamos escrito nosso primeiro trabalho sobre "Universalismo e
missão nos poemas do Servo de Javé", no qual se pode observar o sentido da missão ligada ao trabalho
abodah) e o pobre (vide sua publicação posterior com apêndice de El humanismo semita escrito
também em 1961, e publicado em EUDEBA, Buenos Aires, 1969, p. 127170). Tentamos desde 1968
fundar um órgão para poder chegar a escrever a história da Igreja na América Latina. Somente em
1973 foi fundada a Comissão de Estudos de História da Igreja (CEHILA) no Instituto Pastoral de
Quito (IPLA), que dependia do Departamento de Pastoral do CELAM. Posteriormente a CEHILA, ao
ser nomeado Monsenhor López Trujillo corno SecretárioGeral do CELAM, veio a assumir uma
autonomia a fim de salvaguardar a liberdade de investigação.
88. Op, cit., p. 199.
89. C£ meu trabalho Die Geschichte da Kirche in Lateinamerika, p. 224-3 5 S. Esse capítulo foi
escrito em 197 2, como texto novo introduzido na primeira edição de 1967. A pequena obra foi
lida por Dom Hélder Câmara, Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, José Comblin entre outros,
denotando-se na reflexão feita a presença da interpretação histórico-teológica: a cristandade
colonial, a crise da cristandade desde, o século XIX, etc. Acrescentou-se às hipóteses; teológicosociológicas de J.L. Segundo um material histórico concreto. É algo como a "concreção" da
reflexão teológica - a "História da Igreja" como parte da teologia.
90. Sua obra Capitalismo y subdesarrollo en América Latina (1965), Siglo XXI, México, 1970;
América Latina: subdesarrollo y revolución (1969), Era, México, 1972; Lumpenburguesía:
lumpen desarrollo, Laia, Barcelona, 197 1; Desarrollo del subdesarrollo, ENAH, México, 19 70.
Não podemos deixar de lembrar a equipe liderada por Guerreiro Ramos, com sua obra A Redução
sociológica, Rio, 1958, rodeado entre outros de Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes, Álvaro Vieira
Pinto, todos no ISEB. Ao grupo devemos acrescentar Celso Furtado e TeotÔnio dos Santos. Vide
A. Aguilar-Frigerio-Eggers Lan, Desarrollismo y desarrollo, Buenos Aires, 1969.
59
Cia”91, que essencialmente tem-se mantido de pé e não pôde ser
refutada, a não ser em detalhes. 0 volume total da transferência de
valores da Periferia para o Centro é minima, se considerarmos a
totalidade da produção de valores dos países centrais (Estados Unidos,
Japão, Alemanha e demais países desenvolvidos); mas, e isso éo
essencial, esse "volume" é significativo no tocante ao total dos ganhos
que se acumulam nesses países centrais (já que a taxa de juros que se
avolumam nos países periféricos é muito mais alta). E como a 11 taxa de
juros" é o principal indicador do capital, a questão está longe de ser
secundária. Mas, vista a partir da Periferia, essa transferência é a
origem da miséria de tais povos. Para eles a "massa de valores"
transferida é proporcionalmente enorme (pode chegar até a 30% da
produção total de valor do capital global nacional periférico). A questão
é mais essencial no início da década de 1990 (com a agravante da
dívida externa) do que o era em meados da década de 60. É por isso
que as causas originadoras da Teologia da Libertação seguirão
vigorando até fins do século XX A existência da causa fundamenta a
necessidade da referida teologia - e sua existência não depende das
críticas intra-eclesiais, da "moda" em seu exercício ou das variantes ou
deformações que sofra: é um fato histórico e de resposta a realidades
que nem os teólogos as inventam e nem podem ser suprimidas nas
mesas dos burocratas eclesiásticos.
A essa revolução teórica - quer dizer, a teoria da dependência
como crítica do impossível desenvolvimento periférico - caberia
acrescentar movimentos eclesiais propriamente ditos. Em primeiro
lugar, a nova concepção pedagógica surgida a partir do início da
91. Vide meu trabalho sobre "Los Manuscritos del 61-63 y el Concepto de Dependencia", em Hacia
un Marx desconocido, Siglo XXI, México, 1988, cap. 15, p. 312-36 1. Ali se encontra um
desenvolvimento histórico da polêmica sobre a dependência. 0 único ponto que haveria que
corrigir seria que, se é verdade que a competição no nível internacional entre os capitais globais
nacionais é o horizonte teórico da. transferência de valores (ou a depenciência) de um país a outro,
não se efetiva pela constituição de urn "preço de produção internacional", mas sim pela formação
de "preços de produção" ao nível nacional somente. Dessa maneira, a transferência de valores se
efetua partindo do capital menos desenvolvido, que produz com maior valor um produto, para o
capital mais desenvolvido que produz o mesmo produto com menor valor (c£ "Die Qualitaet des
Anpassungsprozesses in der internationalen staatsmonopolistischen Regiulierung", em Horst
Heiniger-Lutz Maier, Internationaler Kapitalismus, Dietz, Berlim, 1987, p. 279-284, onde se
formula claramente que não se trata da "constituição de um preço de produção mundial" mas sim
de um "preço médio" [Durchschrtitts-einheit] ou "preço de produção nacional").
60
década de 60 no Nordeste brasileiro, o Movimento de Educação de
Base (MEB), fundado em 19 6 1, sob a liderança teórica de Paulo Freire
com a sua obra Educação como prática da liberdade92, que impõe o
conceito de "conscientização", educar a partir da cultura popular, tomar
consciência política a partir do universo da vida cotidiana. Esse método
vitaliza o "Ver, julgar e agir" da juventude Operária Católica (JOC),
que de qualquer modo está na origem metodológica da nova teologia
latinoamericana. Por outro lado, o movimento estudantil cristão, desde
a Revolução Cubana de 1959, vinha se radicalizando. No Brasil, não
sem influência do dominicano francês Thomas Cardonnel, j à em 19 5 9,
começam a assumir uma posição socialista. Aldo Arantes, um membro
da JUC, é eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE)
do Brasil. Pouco depois fundam a Ação Popular, um pequeno partido
político que inicia sua experiência desde o início da década de 60. A
questão "fé e política" torna-se central. 0 cristão já não assume posições
reformistas (da Democracia Cristã), mas sim revolucionárias93. Mas,
uma vez assumido o compromisso, a fé entra em crise: "perde-se a fé" este é o problema afrontado pelos teólogos da época. A Teologia da
Libertação nascerá igualmente desse contexto. É por isso que em 1968,
um pouco em todas as partes, novas propostas começam a ser ouvidas.
A partir do âmbito protestante, de larga experiência como temos dito na
África e na Ásia, mas igualmente relacionando com o movimento de
contestação nos Estados Unidos, Rubem Alves, presbiteriano do Brasil,
defende sua tese em teologia em Princeton com o título de Towards a
Theology of Liberation em 1968 -conquanto ideada em 19 6 7. A obra
será editada sob o título de Theology of Hope94 em inglês, e em
espanhol: Religión: Opio o instrumento de liberación?95. Nela é
criticada, em primeiro lugar, a solução puramente tecnologista ou
economicista dos problemas humanos em geral. A partir do diagnóstico
de H. Marcuse, especialmente em O homem unidimensional - e graças
a ele dependendo da Escola de Frankfurt - mas igualmente
92. Publicada pela Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1967.
93. Cf. Ação Popular. Documento-Base (multicopiado), S. Paulo, 1963.
94. Corpus Books, Cleveland, 1969.
95. Tierra Nueva, Montevidéu, 1970.
61
recorrendo continuamente a Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto ou a
Frantz Fanon, ou a Feurbach, Marx, Buber, Bloch, Kierkegaard,
Heidegger ou Nietzsche, e a teólogos como H. Cox, G. Ebeling, J.
Robinson, D. Bonhoeffer, e em postura crítica frente a R. Bultmann, K.
Barth ou J. Moltmann, ele escreve:
No final Moltmann se aproxima de Bultmann e Barth: o que torna
humana a vida no mundo, quer dizer, a transcendência, se introduz
por um ato de consciência ao retroceder a determinado fato do
passado. A única maneira da presença de Deus no mundo seria a
palavra da promessa ( ... ). A objeção principal à conclusão de
Moltmann é, no entanto, que simplesmente não é verdade que a
Igreja tenha sido a parteira do futuro ( ... ). Muitos dos movimentos
que desenvolvem hoje uma profunda preocupação pela criação de
um futuro renovado ( ... ) operam dentro dos limites de uma
96
avaliação puramente secular e humanista da situação .
E assim conclui, no tocante à América Latina:
Os cristãos dedicados à libertação histórica do homem estão há
longo tempo prevenidos quanto ao conflito entre a sua
preocupação derradeira e a linguagem que se acostumaram a falar.
Descobriram que sua linguagem (cristã), em vez de criar
possibilidades novas de entender e de se dirigir à realidade ue lhes
97
é próxima, tem-se destacado pelo seu efeito paralisante .
Ao ter descartado o tecnologismo e o econornicismo, e o
transcendentalismo escatológico idealista, Alves se abre para o
"humanismo messiânico" (o marxismo), mas o assume a partir do
"Messianismo humanista" (o cristianismo de libertação), que prioriza o
político a partir da experiência do sofrimento:
O Deus do qual fala a linguagem da comunidade da fé mostra uma
parcialidade total quanto ao pobre e o oprimido da terra. Os
98
sofrimentos do pobre e do fraco são seus proprios sofrimentos .
96. lbid., na edição castelhana, p. 97-98. Não esquecer que Marcuse tinha participado em Londres
num encontro em julho de 1967, a ser editado com o título: Un "o sobre Ia liberación (em D.
Cooper, Lu dialéctica de la liberación, México, 19 69).
9 7. Ibid., p. 103.
98. Ibid., p. 179.
62
E, em resumo:
A atividade do Messias em uma primeira etapa, (é) um poder
contrário à política do Anticristo, quer dizer, a política do cativeiro.
Através do desejo de libertação de Deus os poderes que mantêm o
mundo sob cativeiro ( ... ) são reduzidos a nada99 .
Enfim, um primeiro grande passo. Uma obra que não deve ficar
esquecida, e que aprecia tanto Teilhard de Chardin como J.L. Segundo
e G. Gutiérrez100.
Dentro dessa mesma tradição, Richard Shaull se indaga acerca da
articulação da esperança escatológica e da "libertação do homem ,101
. Ademais, Hugo Assmann já advertia sobre as limitações da teologia
do desenvolvimento, abrindo caminho à sua superação102.
Em março desse ano ministramos um curso em Villa Devoto
(Buenos Aires), sobre "História da Igreja e cultura", no qual se
indicava a importância da cultura pré-hispânica, da cultura colonial, e
da cultura popular.103
Quando em agosto de 1968 se realiza em Medellín a II
Conferencia Geral do Episcopado, uma nova teologia se manifesta em
estado germinal em alguns documentos. No primeiro deles, sobre
"Justiça", édito:
Existem muitos estudos sobre a situação do homem
latinoamericano. Em todos eles se descreve a miséria que
marginaliza
99. lbid., p, 190.
100. Publicamos em 1965 um folheto En tomo a Ia obra de Teilhard de Chardin, Punto Omega,
Buenos Aires, 1964.
101. Vide "Consideraciones teológicas sobre la liberación del hombre", em IDOC 43 (19 68); e "La
liberación humana desde una perspectiva teológica", em Mensaje 168 (1968), p. 175-179.
102. Vide H. Assmann, "Tarefas e limitações de uma teologia do desenvolvimento", Vozes 62
(1968), p. 13~2 1.
103. Vide Cultura Latinoamericana e historia de la Iglesia, Edições da Faculdade de Teologia
(PUCA), Buenos Aires, 1968, 154 p. Eu recordo a presença entusiástica do então seminarista
Rodríguez Melgarejo e de seu professor Lucio Gera; essas aulas permitiram à teologia argentina
considerar também a história popular de sua própria cultura. Ambos escreveriam, quase
imediatamente após o mencionado curso, o importante artigo: "Apuntes para una interpretación de
Ia Iglesia argentina", em Víspera 15 (197 0), p. 59-88. A equipe que pouco depois era formada por
Aldo Buentig sobre o "Catolicismo popular" continuará nessa tradição que dava prioridade ao
"povo" como sujeito histórico.
63
grandes grupos humanos ( ... ). Por isso, para a nossa verdadeira
libertação, todos os homens necessitamos de uma profunda
conversão104 .
No documento sobre a "Paz", no qual tomava parte como assessor
Gustavo Gutiérrez, é declarado:
Referimo-nos aqui, particularmente, às conseqüências que para
nossos países trará sua dependência de um centro de poder
econômico, em torno do qual gravitam105 .
Na equipe que redigiu o documento sobre "Pastoral popular", da
qual participava Lucio Gera, está escrito:
A expressão da religiosidade popular é fruto de uma evangelização
realizada desde o tempo da conquista ( ... ). Percebe-se na
expressão da religiosidade popular uma enorme reserva de vir
tudes autenticamente cristãs106 .
E no documento sobre "A pobreza da Igreja" lê-se:
Um surdo clamor brota de milhões de homens, pedindo aos seus
107
pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte .
Em 1970 publicamos no IPLA (Quito) um livro sobre América
Latina y conciencia cristiana , onde se fazia uma interpretação à luz de
uma filosofia da cultura (e onde se aborda um tema que voltará a ser
examinado em Puebla, sobre "o núcleo ético-mítico de uma cultura").
Efetivamente, nessa pequena obra o tema principal é a 11 cultura", que
se distingue de "civilização", e é situada na história latino-americana,
para desaguar numa teologia do profetismo
104. Los Documentos de Medellín. Iglesia y liberación humano, Nova Terra, Barcelona, 1969, p.
53-55.
105. Ibid., p. 7 0.
106. Ibid., p. 124. E se indica como resolução: "Que se busque a formação do maior número de
comunidades eclesiais nas paróquias, especialmente rurais ou de citadinos marginalizados.
Comunidades que devem se basear ria Palavra de Deus" (Ibid., p. 129).
107. Ibid., p. 219.
108. Publicado em 1970 era, na realidade, uma ampliação de dois artigos publicados em Esprit
(Paris), julho de 1965, que foram apresentados na "I Semana Latino-americana" efetuada em Paris
em julho de 1964. Ali é citado o famoso texto da conversão de Bartolomeu. de Ias Casas,
Eclesiástico (Ben Sim) 34, 1 8s, sobre "o pão é a vida do pobre". C£ "Amérique Latine et
conscience chrétienne" e "Pour une histoire de 1'église dans l'Amérique Latine" (no mencionado
número de Esprit).
64
como interpretação do sentido atual da práxis à luz da tradição de um
povo. Todos esses temas serão retomados pela teologia da libertação
posteriormente e de muitas maneiras. Nessa época, e de importância
para o futuro diálogo dos Teólogos do Terceiro Mundo, a questão era a
da "Igreja e cultura" principalmente - o marco teórico de minha
Hipótesis para una Historia de Ia Iglesia en América Latina ( 19 64) era
a problemática de "Igreja e cultura". Tudo isso não surgia do nada;
fora-se formando uma tomada de consciência de conjunto, geracional,
um pouco em todos os lugares.
Nesse mesmo ano, aparecia La pastoral de Ia Iglesia en América Latina,
109
de G. Gutiérrez
, que no entanto não manifesta as linhas-mestras que
estavam em gestação. Sobre algumas anotações com vistas a uma conferência
pronunciada em Chimbote em 1964, e que seria publicada em 1969110 , já está
incluído o tema da Teologia da libertação. Sobre esse tema voltará a falar em
novembro de 1969, num encontro na cidade de Cartigny (França), quando
Gutiérrez apresenta "Notas para una teología de Ia liberaciôn"111, a partir da
crítica que vinha se processando no plano sociológico - onde um Fals, Borda,
protestante, acabava de escrever uma Sociología de Ia Liberación em Bogotá e a partir da ffiosofia - onde Augusto Salazar Bondy publicava seu trabalho
sobre Cultura de do~ (1968) em Lima, e que se transformará na obra Existe
112
una filosofía en nuestra América Latina?
Assim vão sendo esboçadas claramente as intuições filturas de fundo
109. MIEC-JEC, Montevidéu, 1968. 0 esquema (pastoral de cristandade, crise da cristandade, pastoral
da nova cristandade, pastoral profética) tem uma relação estreita com a interpretação que se havia
lançado na história da Igreja (vide minha Hipótesis para una Historia de Ia Iglesia en América
Latina, editada no ano anterior), o que mostra a mútua fecundação da reflexão do momento.
Escreverá ainda um artigo sobre história: "De Ia Iglesia colonial a Medellín", em Víspera 10 (19 7
0), p. 3-8.
110. Hacia una teología de la liberación, folheto publicado por MIEC-JEC, junho de 19 69.
111. Aparece, entre outros lugares, em "Notes pour une théologie de Ia libération", em IDOC 30
(1970), p. 54-78; em CEP, Lima, 1970.
112.Nessa pequena obra (Siglo XXI, México, 1968), nega-se a possibilidade de urna filosofia
autentica numa cultura colonial e subdesenvolvida, dependente. Conclui indicando que somente
uma filosofia que reflita o processo de libertação poderá ser autêntica. Foi nesse momento,
simultaneamente, que fiz =a conferência na UNAM (México) sobre a dependência imitadora de
nossa filosofia na América Latina, gravada num disco sobre a "Cultura Latino-americana"
(UNAM, México, 1969), sob a direção de Leopoldo Zea. Dali irá originar-se em fins de 1969 e
início de 1970 a Filosofia da Libertação na Argentina (videminha obra Filosofia de Ia Liberación,,
Edicol, México, 197 7); e sobre a história desse movimento "Hipótesis para una historia de Ia
filosofia latinoamericana", en Panencias do II Congresso Internacional de Filosofia
Latino-americana (Bogotá), USTA, Bogotá, 1982, p. 405-436.
65
Em primeiro lugar, Gutiérrez expressava a tese gramsciana da
prioridade da ação" - que poderia também atribuir-se a Tomás de
Aquino como a "prioridade da caridade". A teologia parte da práxis,
mas é uma "reflexão critica" da referida práxis: "é um ato segundo"113.
Em segundo lugar, a tese da sociologia latino-americana, como crítica
àteoria do desenvolvimento:
o desenvolvimento deveria 'ocupar-se das causas de nossa situação
e, em seu fundamento, há uma dependência econômica, social,
política e cultural de certos povos em relação a outros. A palavra
libertação é a mais exata e expressa melhor o aspecto humano do
problema114 .
A Igreja se encontra, queira ou não, comprometida com o processo
de libertação latino-americana. E os leigos - junto aos quais estava o
assessor dos estudantes da Ação Católica - vivem uma crise particular:
Em muitos casos, o interesse dos leigos pela revolução social
115
substitui aos poucos seu interesse pelo Reino
,
A questão se situava, exatamente, na intersecção entre a fé e a
política; ou melhor: tratava-se da perda da fé ante uma práxis de ação
política revolucionária. Era necessário "criar" uma teologia que
correspondesse, a partir da tradição da fé e como parte da Igreja, a essa
exigência histórica. Quer dizer:
A teologia, enquanto reflexão crítica à luz da fé sobre a presença
dos cristãos no mundo, deve ajudar-nos a encontrar uma resposta
( ... ). O que buscamos junto com a luta contra a miséria, a injustiça
116
e a exploração, é a criação de um novo homem .
Pouco depois, primeiro em 1969 na forma de um folheto, e
posteriormente como um pequeno livro, surge um trabalho de Hugo
113. Da. última citação em francês, p. 56.
114. Ibid., p. 60. Depois se fala da "teoria da dependência", onde são mencionados F. Cardoso, E.
Faletto, Teotonio dos Santos, Felipe Herrera, etc., sociólogos daquela época.
115. lbid., p. 66
116. Ibid., p. 69. Paradoxalmente, a expressão "homem novo" é de São Paulo e do "Che" Guevara.
Soava, então, aos ouvidos dos jovens cristãos revolucionários como uma síntese nova: paulina e
revolucionária... libertadora.
66
Assmann, Teología de la Liberación. Una evaluación prospectiva, que
deve ser indicado como a primeira "demarcação" com relação às
outras teologias existentes - quer dizer, a primeira clara definição
epistemológica117. Assmann acrescentava à nascente teologia da
libertação sua delimitação com relação à teologia alemã - até agora
tinha dialogado com a teologia francesa118 . Sua contribuição é
insubstituível, porque o que tinham sido até ali , intuições principia a
constituir-se como categorias. As coisas tinham sido ditas, mas
Assmann as define; é uma contribuição essencial. Em primeiro lugar,
há uma "inovação terminológica":
Depois de Medellín o termo libertação esteve presente de maneira
impressionante nos documentos episcopais, especialmente
naqueles em que os diversos episcopados nacionais buscavam
aplicar às situações de seu país as conclusões do CELAM. O uso
do termo é freqüente, tanto em títulos de documentos (por exemplo
"Evangelho e libertação do homem" do episcopado chileno) quanto
em conexões temáticas ("salvação-libertação", "graça-libertadora")
e adjetivações ("pastoral libertadora"). A par com a palavra-chave
"conscientização", dificilmente se encontrará outro termo
referencial mais freqüente e signifi119 cativo na linguagem
eclesiástica do momento119 .
Mas, e trata-se do mais fundamental, há um "conteúdo
sócioanalítico e semântico" novo120:
117. Aparecerá em 1970 no Serviço de Documentação, MIEC-JEC, Doc. Série 1, 23-24. Um primeiro
esboço foi publicado, mas resumido, em "La dimensión política de Ia fé", em Vida Pastoral
(Montevidéu), 2 1 (19 7 0), p. 16- 2 5; e em Perspectivas de Diálogo 5 0 (1970), p. 306 - 312. Em seu
livro Teología desde Ia práxis de Ia liberación. Ensayo teológico desde Ia América dependiente,
Sígueme, Salamanca, 1973,p. 15-102.
118. Essa questão possui certo interesse, porque J. Moltmann aparece um pouco na obra de R. Alves,
mas J.B. Metz não é citado. Quando Assmann "demarca" a nascente teologia da libertação em
relação à teologia política ou à teologia da esperança alemãs, não o faz como se tratasse de
teologias que se encontram na origem da nova teologia latino-americana, mas sim, muito pelo
contrário, como teologias diferentes. A teologia da libertação surge a partir da realidade latinoamericana: a partir da realidade eclesial, política, revolucionária e "científica" (das "ciências
sociais" latino-americanas). O horizonte teórico da teologia francesa pouco ajudava a uma
fortemente marcada teologia vinculada aos processos político-revolucionários. A teologia alemã é,
pela primeira vez, em primeira mão e globalmente, abordada por Hugo Assmann.
119. Op. cit., p. 3 0-3 1.
120. lbid., p. 31.
67
O termo libertação subverte a estrutura mágico-proclamativa da
ação pela palavra (Worttat) e exige, pelo menos tendencialmente, a
palavra da ação
(Tatwort)121 .
122
"Libertação" se opõe a "dependência"
- mais que a exploração na
relação capital-trabalho - e por isso pode atrair também as burguesias em seu
intento de libertação "nacional": isto era conveniente e possível. É uma
teologia que usa as "ciências humanas"123 porque descobre o mundo como
124
foco de conflitos" , e daí a importância do uso do livro do Êxodo - que
Rubem Alves foi um dos primeiros a usar paradigmaticamente, e que cita
Assmann:
o Êxodo foi a experiência geradora de consciência do povo de
Israel ( ... ). 0 Êxodo é o centro estruturador pois determina a
lógica integradora, o princípio de organização e interpretação dos
125
fatos da experiência histórica
.
Talvez as partes mais ricas dessa contribuição foram as páginas sobre
"elementos para uma caracterização (demarcação) mais exata" da Teologia da
Libertação 126 . A partir de algumas reflexões sobre a "praxeologia", da relação
de práxis e verdade (onde se inspira em Kotarbinski, G. Petri, T. Maldonado,
Sánchez Vásquez), e da definição "fé como práxis", assinala as diferenças com
127
a "teologia da revolução", a "teologia política" de J.B. Metz
, a "teologia da
es
121. lbid., p. 3 2.
122. Ibid., p. 39s.
123. Ibid., p. 47s.
124. Esses aspectos são anotados em grande parte pela primeira. vez por Assmann.
125. R. Alves, "El pueblo de Dios y Ia liberación del hombre", em Fichas ISAL, 3 (1970), p. 9s; vide
meu artigo "O paradigma do Êxodo na teologia da Libertação", em Concilium 209 (1987), p. 86-99.
126. H. Assmann, Op. cit., p. 59s.
127. Em seu artigo, Gustavo Gutiérrez tinha se referido a Moltmann e Metz ("Notes por une théologie
de Ia libération", p. 73-75), mas não tinha ainda indicado claramente as diferenças. Assmann faz isso
com nitidez (Op. cit., p. 83s). H. Assmann indica como fontes o artigo de G. Gutiérrez, o de J.A.
Hernández "Esbozo para una teología de Ia liberación", em Liberacián, opción de Ia Iglesia en la
década del 70, Bogotá, 1970, p. 37-59; J.L. Segundo, Problemática de Ia idea de Dias y de la
liberación del hombre, ISAL, Montevidéu, 1970 (mimeografado), e sua outra obra Dc Ia sociedad o Ia
teología, Lohlé, Buenos Aires, 1970; Lucio Gera, em Sacerdotes para el Tercer Mundo, Buenos Aires,
1970, p. 134s; Arturo Paoli, Diálogos de Ia liberación, Lohlé, Buenos Aires, 1970; e o famoso artigo
de Methol Ferré, "Iglesia y sociedad opulenta. Una crítica a Suenens desde América Latina", em
Víspera 3 (1969), anexo de 23 páginas.
68
perança" de J. Moltmann, a "teologia do questionamento" de H.D.
Bastian - e um valioso apêndice sobre "A separaçao entre dogmática e
ética. Uma ideologia" (seguindo a pergunta feita por J.L. Segundo).
Deixa-se ver igualmente o início de uma polêmica interna à Teologia
da Libertação. Contra L. Gera e G. Rodriguez Melgarejo (e contra
minha própria posição), Assimann indica que, ao se analisar a questão
do "povo", "omitiu-se demasiadamente a avaliação do fator classes
sociais"128 , e, por isso, "povo" não oferece nenhuma operacionalidade
para uma Teologia da Libertação"129 . Enfim essa pequena obra de
Assmann é o início epistemológico definido da teologia da libertação.
Enquanto isso, vinham sendo realizados numerosos encontros,
assembléias, simpósios, cursos sobre Teologia da libertação. De 24 a 28
de novembro de 1969 a Sociedade Teológica Mexicana organizou um
congresso sobre "Fé e desenvolvimento", publicado depois como
Memoria del primer Congreso Nacional de teología: Fé y desarrollo,
em dois volumes130 onde surgem figuras como Luis del Valle, e se
conclui que o tema real é o da teologia da libertação - com a assistência
de mais de oitocentos participantes. Entre 6 e 7 de março de 1970
realiza-se uma reunião internacional sobre Libertação: opção da Igreja
na década de 70, da qual resulta igualmente a publicação de dois
131
volumes
. Em Buenos Aires, de 3 a 6 de agosto, o ISAL convoca
vinte teólogos, editando-se as exposições feitas em Fichas de Isal (26) e
em Cristianismo y Sociedad (23-24). Foi realizado um segundo encontro
de teologia da libertação em Bogotá, de 24 a 26 de julho editado num
boletim denominado Teología de Ia Liberación, dirigido por Gustavo
Pérez, em Bogotá, em 1970. Na cidade de Juárez (México) se reúnem
de 16 a 18 de outubro em torno de um Seminário
128. G. Girardi publicava Christianisme,libération humaine,lutte des classes, Cerf, Paris, 1972 (de um
texto em espanhol de 19 7 1). Esta posição foi assumida por G. Gutiérrez em E1 Escorial ao expor
o "pobre" como "classe". C£ Noel Olaya, "Unidad cristiana y lucha de clases", em Cristianismo y
Sociedad 23-24 (1970), p. 61-69; Rubén Dri, "Alienación y liberación", em Cristianismo y Sociedad
26 (1970), p. 59-60.
129. H. Assmann, Op. cit., p. 98 nota 101. Será mostrado futuramente como a categoria "povo"
(como "pobre", que defendíamos nessa época) terminará por se impor em toda a teologia da
libertação cinco anos depois.
130. Ediciones Alianza, México, 1970.
131. Já citado (nota 127), Bogotá, 1970; com exposição de J. Hernández, G. Gutiérrez e outros.
69
de Teologia da Libertação cujos trabalhos foram apenas mimeografados
132 . Em Oruro (Bolívia), de 2 a 19 de dezembro realizou-se um curso
de pastoral sobre teologia da libertação. Em Buenos Aires, de 14 a 17
de agosto de 1971, ocorreu um encontro no qual se relacionava a
teologia com filosofia da libertação - assistido por O. Ardiles, H.
Assmann., E. Dussel, J. C. Scannone e Luis Gera133 .
Esses exemplos de reuniões são dados somente para indicar que a
teologia da libertação é um "rnovimento eclesial", fruto de uma
encruzilhada da Igreja como totalidade, e de uma "geração" de
teólogos. Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, escrevia
Rosino Gibelini da Itália, ao contemplar os quase três mil participantes
de um curso de teologia que organizamos na cidade do México, o I
Encontro de Teólogos da Libertação em 19 7 S. Assim ele escrevia:
O europeu que ler algum texto de teologia da libertação entende
conceitualmente as instâncias da teologia da libertação, mas não
percebe que se trata de um movimento de Igreja134 .
Importante foi igualmente a reunião de biblistas sobre o tema
"Êxodo e Libertação", em Buenos Aires, em julho de 1970135. o próprio
secretário-geral do CELAM, Monsenhor Eduardo Pironio, escreveu um
texto sobre "Teologia da Libertação", para o encontro do Departamento
de Educação, de 27 de agosto a 2 de novembro de 1970 136 . Não se pode
esquecer que a nova teologia contava com uma série de excelentes
revistas que apoiavam sua expansão no pla-
132. Podem ser consultados no IDOC (Roma).
133. Vide "Dialéctica de Ia liberación latinoamericana", em Stromata (Buenos Aires), 1-2 (1971), e
posteriormente urna obra conjunta Hacia una Filosofia de Ia liberación latinoamericana, Bonum,
Buenos Aires, 1973.
134. Em Christus (México), 479 (1975), p. 9.
135.Dedicou-se a isso o número de 1970 da Revista Bíblica. Vide além disso H. Bojorge, "Éxodo y
liberación", em Vi" 19-20 (1970), p. 33-37; Pedro Negre, ''Biblia y liberación", em Cristianismo y
Sociedad 24-25 (1970),p. 69-80; José Míguez Bonino, "Teología y liberación", em Actualidad
Pastoral (Buenos Aires), 3 (1970), p. 83s; julio de Santa Ana, "Notas para una ética de Ia
liberación", em Cristianisino y Sociedad 23-24 (1970), p. 43-60.
136. Publicado em Teologia (Villa Devoto, Buenos Aires), 8 (1970), p, 7-28. Ver além disso, do
mesmo autor, "Teología de Ia liberación", em Criterio (Buenos Aires), p. 1607-1608 (1970). Vide
além disso, de Héctor Borrat, "Para una teología de Ia vanguardia", em Vispera 17 (1970), p.
26-31 ; e posteriormente "Hacia una teología de Ia liberación", em Marcha (Montevidéu), 1527
(1971), p. 1 - 15.
70
no nacional ou regional. Recorde-se, por exemplo, Stromata (Buenos
Aires), Teología y vida (Santiago do Chile), Cristianismo y Sociedad
(Montevidéu), Christus (México), Actualidad Pastoral (Buenos Aires),
Pastoral Popular (Santiago do Chile), Revista Eclesiástica Brasileira
(Petrópolis), Sic (Caracas), Diálogo Social (Panamá), Víspera
(Montevidéu, que executou um grande trabalho até ser fechada pela
repressão militar), o "Serviço de Documentação" do MIEC-JEC
(Montevidéu, Lima), Fichas de ISAL, e muitas outras publicações.
Como se pode observar, nessa época o peso reflexivo estava no Cone
Sul principalmente (Argentina, Uruguai, Chile, até Peru e Brasil). Essa
implantação geográfica variará quando desatada a repressão
político-militar posterior.
Além do mais, a nova teologia era, na realidade, a teologia surgida
dentro dos quadros do CELAM. Era ensinada oficialmente em seus
órgãos, o Instituto Pastoral de Quito (desde 1967 a 1973), o de
catequese de Manizales, o de Liturgia de Medellín, o da juventude em
Bogotá; nos cursos para sacerdotes, religiosos e leigos; nos
Departamentos de Educação, de Pastoral, de formação do clero, de
Missões, etc. Era a teologia da Igreja pós-conciliar, da Igreja que tinha
organizado Medellín. Era a teologia das nascentes Comunidades
Eclesiais de Base, a que inspirava a pastoral popular, a que justificava o
compromisso político dos jovens universitários radicalizados,
fundamentais para o futuro da América Latina em seu conjunto.
Como temos notado, a teologia protestante também era sumamente
ativa. Cabe destacar a posição de José Míguez Ronino, que chegará a
ser um dos presidentes do Conselho Mundial de Igrejas de Genebra137.
Não se pode tampouco esquecer que em 1969 surgiu a obra do
mexicano Porfirio Miranda, Marx y Ia Biblia - traduzida imediatamente
para o inglês pela Orbis Books -, que percorrerá o mundo.
137. Vide "La théologie protestante latino-américaine aujourd'hui", em
IDOC-Intemational 9 (1969), p.77-94. Posteriormente "Nuevas perspectivas
teológicas", em Pueblo opimido,Tierra Nueva, Montevidéu, 1972; Doing Theology in
a revolutionary situation, Filadélfia, 1974; Christians and Marxists, Eardmans, Grand
Rapids, 19 7 4; The mutual challenge to revolution, Eerdmans, Grand Rapids, 19 7 6;
La fe en busca de eficacia, Síguerne, Salamanca, 19 7 7. Excelente por sua reflexio e
história é a obra de vários autores Luta pela vida e evangelização. A tradição
metodista no teologia latino-americano, Paulinas, S. Paulo, 1985.
71
De fato, a Bíblia e o pensamento de Marx eram duas referências
sentido diverso, é claro - da nova teologia138 .
38 com
É por isso que quando em 1971 - deve ter sido escrita desde fins
de 1970 ao início de 19 71, já que há poucas citações de 1971, e
somente nos últimos capítulos - se publica em Lima a obra de Gustavo
Gutiérrez Teología de la Liberación, 139 isso constitui o fim da época
da constituição da nova teologia latino-americana. O autor demonstra
como essa teologia não é obra de algumas pessoas, mas sim o fruto da
reflexão de uma "opção da Igreja latino-americana" 140 : é a teologia de
uma experiência eclesial (desde 1968 de maneira especial) a nível
continental, diferentemente das correntes teológicas que dependem de
um fundador"141.
Pode-se notar que o esquema de sua exposição, de algo mais de
vinte páginas, em Chimbote ou Cartigny é, exatamente, o índice da
obra de 1971 - ainda que a única novidade estrutural do livro seja a II
Parte: "Colocação do problema", onde incorpora a matéria adiantada
em sua obra sobre a história das pastorais na América Latina, e um
importante capítulo cinco acerca da "Crise do esquema da distinção de
planos" -no qual são indicadas as linhas gerais de superação da teologia
da Ação Católica, ou, ainda mais profundamente, a ambigüidade do
dualismo da distinção dos "dois planos" nos : o espiritual e o
temporal142.
As quatro partes da obra possuem uma lógica em seu
desenvolvimento interno, e expressam as limitações da época. Na
primeira delas, "Teologia e libertação", e tal como indicamos em sua
expo-
138. Tratamos desse tema em "Teología de Ia liberación y marxismo", em Cristianismo y Sociedad,
(México) 98 (1988), p. 3 7-60.
139. Primeira edição em CEP, Lima, 1971; 2ª edição pela Sígueme, Salamanca, 1972, de onde
extrairemos as citações (em port. Vozes, Petrópolis, 1975). Apareceu uma nova edição modificada
em inglês, A Theology of Liberation, Orbis Books, New York, 19 8 8, onde além do título há
múltiplas modificações e uma nova introdução (p. XVII-XLVI).
140. Capítulo III, principal da obra (p. 111- 183).
141. A parte acrescentada na segunda edição de meu trabalho Die Geschichte der Kirche in
Lateinamerika (p. 2 0 0 - 3 7 9), escrito em fins de 1971, relata os acontecimentos eclesiais e o
contexto dessa gestaçao da tcologia da libertação. As páginas 374-379 foram escritas para a
terceira edição, posterior à Assembléia de Sucre do CELAM em 1972. 0 Anhang (p. 380s) foi
extraído da sétima edição de 1985.
142. Op. cit., p. 73s.
72
sição feita em Chimbote e Cartigny, trata-se de demonstrar a
fecundidade da intuição de Gramsci da relação "práxis-teoria" - sem
referir-se explicitamente ao que a Escola da Frankfurt havia indicado a
tal respeito"143. Mas deve-se entender o que essa problemática significa
para a teologia; sobretudo se a "práxis" da qual se fala é concreta. A
"práxis" referida ao tema do "desenvolvimento" era ambígua e não
exigia a necessidade de uma "libertação humana" - como se dizia na
época -; não podia exigir uma "revolução social" se fosse o caso, e
diante da qual o cristão já não retrocederia por princípio. Na história da
teologia mundial essa questão é um verdadeiro "antes e depois". Sua
fecundidade segue obtendo resultados.
Na segunda parte do livro de Gutiérrez, "Colocação do problema"
-conforme já indicamos -, a história ajuda a descobrir o presente, mas
sobretudo se reflete sobre a insuficiência da teologia (vigente ainda nos
tempos do Papa João Paulo II em grupos hegemônicos da Igreja de
"Restauração" em fins da década de 80) dos "dois planos": o temporal o
e espiritual, Pelo contrário, expressa-se claramente que a história éuna desde o estado da questão teológica na escola francesa. A questão era
mais pertinente na América Latina (com a Ação Católica em crise,
porem vigente teologicamente, e com a Democracia Cristã como
solução política do compromisso cristão que era preciso criticar). Na
realidade, superavam-se Jacques Maritain e o seu Humanismo Integral
(1936), que havia moldado a inteligência mais progressista no
continente, principalmente entre os estudantes (com os quais
principalmente G. Gutiérrez se relacionava).
Na terceira parte, "A opção da Igreja latino-americana", aborda-se
o referente principal da obra: a práxis histórica e comunitária,
institucional, dos cristãos, da Igreja enquanto tal. Não se trata da opção
de uma Igreja paralela" -como se pretenderá depois fazer crer. Éa
opção da "única" Igreja, a "institucional", a "oficial", a hegemonizada
pelo CELAM da época, pelos bispos, sob a aprovação simpática. e
querida do Vaticano. Da "consciência" adquirida da necessidade do
desenvolvimento (cultural, político, econômico, etc.),
143. Em 1963 J. Habermas havia publicado Theorie und Praxis (Teoria e Práxis), e em 1968
Erkenntnis und interesse (Conhecimento e interesse), que teriam sido bons pontos de referência
críticos.
73
e graças à crítica do desenvolvimentismo efetuada pela então recente
"teoria da dependência" - que era ensinada e aprendida com aprovação
em cursos para bispos, entre os religiosos, quer dizer, não era uma
posição de minorias desde a carta dos "Bispos do Terceiro Mundo" - , a
Igreja desde Medellín (em sua práxis coletiva e histórica) optava pela
"libertação humana" global (ainda revolucionária) como condição de
possibilidade integral da salvação da América Latina em nosso tempo.
Égratificante observar a utilização inteligente dos autores do momento,
mas também de um Mariátegui ou de um "Che" Guevara - que
escandalizava, como é óbvio, os conservadores daquele momento "em
retirada" por pouco tempo, como iremos ver. Tratava-se do
compromisso concreto dos cristãos. No tocante aos leigos lemos:
Hoje, os movimentos apostólicos de juventude radicalizaram suas
opções políticas (_). As opções políticas cada vez mais
revolucionárias dos grupos cristãos - sobretudo estudantis (JEC,
JUC, FUMEC), operários (JOC) e camponeses (JAC) - têm
ocasionado com freqüência que os movimentos de apostolado leigo
entrem em conflito com a hierarquia, questionem seu atual lugar na
Igreja e, finalmente, muitos deles passem por sérias crises144.
A teologia da libertação surge, então, não por um prurido
academicista de originalidade, ou pelo prazer do criticismo, nem por
uma intenção de negação da Igreja em sua hierarquia, em sua
institucionalidade, etc.; surge, muito pelo contrário, para preencher a
necessidade de suprir "esquemas teológicos" insuficientes, não
adequados para acompanhar e fazer crescer a "fé" do cristão numa
época de crise, de profundos conflitos, e até em situações
revolucionárias freqüentemente. Foi uma resposta madura, serena,
àaltura das exigências racionais da época. Mas essa crise não afeta
somente o leigo, e sim principalmente o sacerdote:
É freqüente atualmente, na América Latina, que certos sacerdotes
sejam tidos como elementos subversivos145 .
144.Op.cit.,p. 137-138.
145. lbid., p. 145.
74
De fato, desde a renovação do Concílio, os sacerdotes, e os religiosos e
religiosas, descobrem sua responsabilidade na transformação, também política
em última análise (porquanto ali se desenrolam as possibilidades reais da
mudança de estruturas), o que produz uma crise de sua identidade, sobretudo
levando-se em conta a formação teológica recebida. Mas, por último, os
próprios bispos .'se transformam em figuras políticas" ao descobrirem sua
função pastoral em cumprimento do Concílio e de Medellín. Tudo isso confere
à Igreja uma nova "presença" na vida do Continente.
Na quarta parte, "Perspectivas", se abrem diversas brechas de uma possível
reflexão teológica. Contém uma primeira seção sobre "Fé e homem novo". Nela
se expõe a relação entre "libertação e salvação" -que confere um estatuto
teológico ao tema econômicopolítico da libertação -; a história "una" como o
lugar de encontro entre Cristo e o homem - negando por antecipação o
"horizontalismo", e implantando a história em visão cristocêntrica, onde
"conhecer Deus" é operar a justiça (na linha já encetada por Porfirio Miranda).
Num parágrafo central, "Uma espiritualidade da Libertação", se insiste na
importância da espiritualidade, que está situada ainda numa linha mais
individualista e em relação com a opção revolucionária, muito diversa da
espiritualidade do povo numa linha de libertação a partir do sofrimento
ancestral:
Isso é o que tinham começado a vivenciar muitos cristãos ao se
comprometerem com o processo revolucionário latinoamericano146
.
É exposta igualmente a relação entre o projeto do Reino e os projetos
políticos históricos - tão essencial para o futuro desenvolvimento da teologia
da libertação.
Na segunda seção, "Comunidade cristã e a nova sociedade", o autor
aborda duas questões: "A Igreja: sacramento da história" - onde se esboça uma
eclesiologia - e "Pobreza: solidariedade e protesto". Na primeira, a
comunidade" é uma fraternidade que não pode, no entanto, deixar de estar em
meio à "luta de classes"147. Aí se esboça um debate de fundo.
146. Ibid.,p. 266. A citação de A. Paoli, Diálogos de la liberación, é forçada (p. 226, nota 48).
147. lbid, p. 3 5 2s.
75
Num certo momento ele escreve:
Aquele que fala de luta de classes não a propugna(...); o que
realmente faz é comprovar um fato148, e em suma contribuir
para que dele se tome consciência. E não há nada mais sólido
que um fato. Ignorá-lo é enganar ou enganar-se149 .
Na questão da "pobreza" -é verdade que fundamentalmente a pobreza
como posição "subjetiva" (a pobreza como atitude, mas ainda não objetiva e
prioritariamente "o pobre") - trata-se da pobreza material, pobreza ou infância
espiritual, pobreza como fato escandaloso, como "solidariedade com os
pobres".
Para concluir, desejo registrar que Gutiérrez cita um texto de Althusser,
que na década de trinta foi membro da juventude da Ação Católica francesa,
quando este expressa de modo pessimista:
meu ver a crise da Igreja irá se agravar ( ... ). Não são as
teologias da revolução ou da violência as que podem restaurar um
verdadeiro pensamento teológico agonizante ( ... ). Não se vê como
( ... ) pelas estruturas herdadas (pela Igreja) de um longo passado e
de um papel político a serviço das classes dominantes, e na
tradição que disso resulta, a Igreja poderia reconverter-se a serviço
dos trabalhadores na luta de classes150 .
A
A teologia da libertação constituída correspondia justamente a esse tipo de
objeções de fundo, em especial para a consciência dos jovens cristãos (que não
podem ser apressadamente criticados como meros "pequenos burgueses",
porque do meio deles emergirão os revolucionários: os Camilo Torres, Marta
Harnecker ou Luis Carrión); uma geração de cristãos determinantes para a
história latino-americana em seu todo. 0 debate que logo se estabeleceu versava
sobre a realidade "objetiva" do pobre. Alguns, a representação argentina (entre
os quais eu me achava, junto com Gera e Scannone), defendiam já a realidade
do pobre como "povo". Em Sacerdotes para el Tercer
148. Vide a Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, IX, 2 (Acta Apostolicae Sedis
76 [1984] 876-909), onde se afirma exatamente o mesmo.
149. lbid., p. 3 5 S. Aqui é citada a obra de Giulio Girardi, Amor cristiano y lucha de clases Síguerne,
Salamanca, 19 7 1.
150. Ibid., p. 3 8 1 s.
76
Mundo"151, ou em minha História da Igreja na América Latina"152, pode-se ver
como se tenta delinear uma teologia do "povo" de Deus - não tendo ainda como
perspectiva a questão das "classes". Nessa época, os bispos argentinos falam da
"Igreja dos pobres":
A Igreja dos pobres ( ... ). Os pobres são o sacramento de Cristo, o
sinal de sua presença - disse Paulo VI ( ... ) -, na misteriosa
sociologia e humanismo de Jesus. Ele está encarnado em cada
homem enfermo, em cada homem aflito, faminto, desnudo,
encarcerado. Por isso a Igreja honra os pobres, os ama, os defende,
se solidariza com a sua causa ( ... ). Por isso a Igreja, sacramento
de Cristo, é a Igreja dos pobres 153.
Enquanto isso, Juan Luis Segundo tinha continuado a escrever. Sua
154
Teologia abierta para el laico adulto
significará a primeira grande obra
teológica com visão de conjunto. Mas em 1970, em De la Sociedad a la
Teología1155 , estuda já a passagem de uma teologia para a sociedade em seu
todo e começa a elaborar uma teologia da ideologiaque o ocupará muito mais
futuramente. De minha parte, em 1971pronunciei uma série de conferências
em Buenos Aires, editada depois sob o título de Caminos de Liberación
156
latinoamericana
. Nessa obra, no sentido estrito teologia da libertação,
veja-se em especial sua
151. Publicações do Movimento, Buenos Aires, 1970, p. 123s. Vide igualmente Polémica en Ia
Iglesia. Obispos argentinos y sacerdotes del Tercer Mundo, Edições Búsqueda, Buenos Aires,
1970.
152. Die Geschichte der kirche in Lateinamerika, p. 195-197.
153. "Declaração do Episcopado argentino. Sobre a adaptação à realidade atual do país das
conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano", San Miguel, 21-26 de abril
de 1969, Ed. Secretariado do Episcopado, Buenos Aires, 1969, p. 24.
154. Lohlé, Buenos Aires, tomos 1-V, 1969-197 1. É certo que ele ainda parte da tradição da teologia
renovada e progressista do pós-concílio, mas ainda não da teologia da libertação. É de grande
importância sua versão inglesa editada pela Orbis Books, New York. Vide além disso De Ia
Sociedad a Ia Teologia, Lohlé, Buenos Aires, 19 7 0; Liberación de Ia Teologia, Lohlé, Buenos
Aires, 1975; Masas y minorias en Ia dialéctica divina de Ia liberación, La Aurora, Buenos Aires,
1973.
155. Lohlé, Buenos Aires, 1970 (em port. Loyola, São Paulo, 1983).
156. Latinoamérica Libros, Buenos Aires, 1972 (tradução francesa: Histoire et Théologie de Ia
libération,, Editions Ouvrières, Paris 19 7 6, e tradução inglesa: History and Theology of
Liberation, Orbis Books, New York, 1974, como uma das primeiras obras em arribas as línguas
sobre o tema). Vide em português Caminhos de libertação latino-americana, Edições Paulinas, S.
Paulo, vol. I-IV 1984. Posteriormente será publicada Ética y teología de Ia liberación,
Latinoamérica Libros, Buenos Aires, 1974; e toda uma corrente de filosofia da libertação: Para
una ético de Ia liberación latino-americana, Siglo XXI, Buenos Aires, 1973, vol. I-II (em port.
Paulinas/UNIMEP São Paulo/Piracicaba 1977); posteriormente pela Edicol, México, o vol. 3,
1977; em USTA,Bogotá, os vol. IV e V 1980. E Método para una filosofia de Ia liberación,
Sígueme, Salamanca, 19 7 4 (em port. Loyola, São Paulo, 19 8 6).
77
introdução ao livro do Êxodo, com categorias teológicas críticas: o
Outro como "pobre" que interpela a justiça, como lugar da epifania de
Deus, passando do conceito "subjetivo" ao conceito "objetivo" de
"pobre" (agora como "categoria" teológica, como "exterioridade" do
"sistema" ou do "mundo da vida cotidiana"). o "paradigma" do Êxodo
é usado como marco teórico fundamental.
Em agosto de 1971 organizava-se em Buenos Aires uma Semana
Acadêmica 157 sobre a teologia da libertação. Foi determinante na
vinculaçao entre filosofia de libertação e teologia da libertação -questão
que readquire importância no início da década de noventa com a crise
das ciências sociais e o surgimento de uma filosofia crítica como as de
K.O Apel ou Juergen Habermas, como veremos mais adiante"158.
Penso que essa etapa de constituição culmina no Encontro de El
Escorial, realizado na Espanha no célebre lugar que traz este nome, em
julho de 1972. Ali estiveram presentes praticamente todos os teólogos
da primeira geração da teologia da libertação - e ainda alguns da
segunda geração, como Leonardo Boff, por exemplo - , diante de quase
quatrocentos teólogos europeus (não só espanhóis) na presença dos
quais foram expostas algumas das teses da teologia já constituída
"inicialmente" na América Latina, Houve uma acolhida especial na
Espanha que ainda sofria as conseqüências do franquismo - o que
explica a simpatia e "compreensão" do tema (poste
157. Paradoxalmente, nada sabíamos naquele momento sobre o pensamento de Karl 0. Apel ou
Juergen Habermas, mas os situávamos por antecipação (na crítica a Heidegger, à Escola de
Frankfurt, e à teologia da esperança e à teologia política). Essa obra definiu a teologia da
libertação em seu marco epistemológico e histórico. Vide "Dialéctica de Ia liberación
latinoamericana", em Stromata (Buenos Aires) 1-2 (197 1) em que estiveram presentes entre
outros Osvaldo Ardiles, Hugo Assmann, Juan Carlos Scannone, Enrique Dussel, Lucio Gera, etc.
Juan Carlos Scannone escreve "Hacia una dialéctica de la liberación", em Stromata 1 (1971), p.
23-60; "El actual desafio planteado al lenguaje teológico latinoamericano de liberación", em CIAS
(Buenos Aires) 211 (1972), p. 5-20; "Ontología del proceso auténticamente liberador", em
Seladoc. Panorama de Ia teologia latinoamericana, Sígueme, Salamanca, 1975; e por último,
Teología de Ia liberación y praxis popular, Sígueme, Salamanca, 1976. Veremos posteriormente
como a teologia da libertação argentina até 1975 (Lucio Gera, ).C. Scannone, E. Dussel, etc.) terá
uma profunda cisão desde a morte de Perón (cisão que até agora tem sido mal assinalada nas
reconstruções históricas).
158. Vide a obra conjunta que publicamos Hacia una Filosofia de Ia Liberación, Bonum, Buenos
Aires, 19 7 3, com pensadores da estirpe de J.C. Scannone, Osvaldo Ardiles, Alberto Parisi, Hugo
Assmann, Aníbal. Fornari, Enrique D. Guillot, Enrique Dussel, Horacio Cerutti, etc.
78
riormente a história nos conduzirá por caminhos muito diversos)"159. O
número da revista Concilium 160 publicado em 1974 foi elaborado em El
Escorial e pode ser considerado um fruto do referido encontro.
Éinteressante registrar que teologicamente houve uma discussão de
fundo nesse Encontro em torno do "pobre". Eu o situei na história
latino-americana e como "povo" - como também o fizeram Scannone e
Gera, por exemplo -; outros o situaram como "classe" - como G.
Gutiérrez, H. Assmann, Gonzalo Arroyo, etc. Era um tema sobre o qual
não se chegara ainda a um consenso; um certo "classismo" dominava
ainda o discurso, mas -entrará em crise muito depressa161 . Agora já não
se fala só de uma "Igreja pobre" (subjetivamente e em sua hierarquia),
mas sim de uma "opção pelos pobres" (objetivamente). Mas entenda-se
que se a Igreja (ou os teólogos) "optam" pelo "pobre", isto significa que
ainda "não são pobres" por nascimento, por situação ou posição de
classe. É um momento de amadurecimento, mas, ao mesmo tempo, o
final do tempo ou do kairos da constituição da teologia da libertação.
No futuro se edificará, sobre esse fundamento.
TERCEIRO PERIODO. A Teologia da "Igreja dos pobres" no cativeiro e
no exílio (1972-1979)
Se há uma "noite escura" política da fé - num sentido análogo ao de
São João da Cruz no Cântico Espiritual ou na Subida ao Monte
Carmelo - desde 1972 a teologia da libertação a vivenciou.
purificantemente. Quando vierem os novos ataques em 1984 - e agora a
partir da própria Roma -, já se terá a docilidade ao Espírito e a
paciência no sacrificio aquilatados nas perseguições de mais de doze
anos. A teo-
159. A publicação do Encontro em Fe cristiana y cambio social cri América Latina, Sígueme,
Salamanca, 1973: as exposições principais, resumo dos debates em grupos de trabalho, e com
unia boa bibliografia até o presente (em port. Vozes, Petrópolis, 1977).
160. A revista conciliam dedicou o número 96 de 1974 à Teologia da libertação latino-americana. Ali
colaboramos J.L. Segundo, G. Gutiérrez, Leonardo Boff, E. Dussel, S. Galilea, J. Comblin e
outros participantes do encontro de E1 Escorial - onde o mencionado número foi elaborado.
161. J.L. Segundo aborda a questão em La liberación de Ia teología, Lohlé, Buenos Aires, 1974, p.
207-232. E interessante que A. Álvarez Bolado em E1 Escorial, em 1972, chegará a escrever que
a teologia da libertação "assumira a palavra, ainda que a maior parte dos homens dessa família de
opções fosse um dia reduzida ao silêncio" (Fe cristiana y cambio social, p. 24).
79
logia da libertação sofrerá uma dupla pressão. Fora da Igreja, na
sociedade política (o Estado que se militariza) e civil (os grupos
dominantes que passam para a ofensiva com violência); e no seio da
Igreja (desde a XIV Assembléia ordinária do CELAM, com a
secretariageral a cargo de Monsenhor López Trujillo e a reviravolta de
orientação da Conferência dos Bispos), em que os grupos
conservadores, desorientados a partir do Concílio, reagruparn forças em
aliança com setores desenvolvimentistas - progressismo capitalista de
dependência, que confunde industrialização com a expan162 são das
multinacionais162 .
Efetivamente, desde o golpe militar de 1964 no Brasil com Castelo
Branco, ocorreram posteriormente muitos outros ( 1971 na Bolívia com
Hugo Bánzer; em 1973 dissolução do Congresso no Uruguai, o golpe de
Estado no Chile com Pinochet; em 19 7 5 há uma mudança de
orientação com Morales Bermúdez no Peru, em 1976 Rodríguez Lara
no Equador, e Videla comanda o golpe de Estado na Argentina, etc.).
Há então o império da "Segurança Nacional" - com repressão exercida
contra o povo e contra a Igreja, em especial sua corrente profética, até
culminar com o martírio de milhares de leigos e sacerdotes. A teologia
da libertação é reprimida, com o beneplácito de muitos na Igreja - e até
bispos - especialmente no Cone Sul (lugar de sua origem mais criativa):
no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile muitas pessoas
foram violentamente reprimidas (a teologia da libertação era motivo de
prisão, tortura e morte). É por isso que o eixo principal passará para
Peru-Brasil; no primeiro desses países porque nunca houve uma
repressão frontal; no segundo, porque desde 1968, com a presidência da
Conferência de Bispos do Brasil exercida por Dom Aloísio
Lorscheider, será a Igreja institucional (com seus bispos, sacerdotes e
religiosos) que se erguerá para enfrentar a sociedade política em nome
da sociedade civil silenciada, reprimida e martirizada. A obra teológica
de Dom Cândido Padin no Brasil é aprofundada por José Comblin, que
reflete sobre a vin-
162. Vide o desenvolvimento histórico desse período em minhas obras já citadas: Die Geschichte der
Kirche in Lateinamerika, p. 3 80s; De Medellín a Puebla. Una década de sangre y esperanza
1968-1979, p. 245 -5 0 7; e em Hipótesis para una Historia de la Teología en América Latina, p.
49s.
80
culação entre a repressão militar, sua ideologia, e a legitimação a
partir da pretensa defesa da "civilização ocidental e cristã"163.
O CELAM fecha o instituto Pastoral de Quito sob o pretexto de
reunificar os institutos, e abre um novo em Medellín (do qual são
excluídos G. Gutiérrez, J. Comblin, E. Dussel, Carrasquilla, S. Galilea
e outros). Foram excluídos igualmente de todos os departamentos,
seminários, encontros, etc. - e tudo isso culminará na III Conferência
Geral de Puebla, que não contará com nenhum dos teólogos da
libertação. O Instituto "Lumen Vitae" de Bruxelas muda igualmente de
orientação - são excluídos Giulio Girardi, F. Houtart, E. Dussel. e
outros.
Foi no IPLA, dependendo do Departamento de Pastoral do
CELAM, que se organizou a Comissão de Estudos de História da
Igreja na América Latina (CEHILA), em janeiro de 1973 - cujo
presidente foi nomeado por Monsenhor E. Pironio. A referida
Comissão planejou escrever uma História Geral da Igreja na América
Latina - editada desde 19 7 7 -, em onze volumes de grande formato. A
mesma Comissão organizou ciclos de estudos amplos (quatro meses) e
curtos, encontros nacionais e internacionais anuais e tem muitos outros
projetos (uma História da Teologia na América Latina, uma História
Mínima da Igreja por países, etc.) 164 .
É nesse contexto que a Teologia da Libertação, que se tinha
inspirado preponderantemente no paradigma positivo do Êxodo (na
saída de Moisés do Egito), descobre ante a dura realidade da opressão
o tema do "cativeiro" e do "exílio" - este que escreve estas linhas
deverá abandonar sua pátria em 19 7 5 depois de um atentado a bomba.
Não é dificil compreender por que o referido tema é
163. "La nueva práctica de Ia Iglesia en el sistema de Seguridad Nacional", em Encuentro
Latinomericano de Teología, Liberación y Cautiverio. Debates em torno da teologia na América
Latina, Comitê Organizador, México, 19 7 S.
164. Já antes da supressão do IPLA, como dissemos linhas atrás, a comissão exigiu que CEHILA se
tornasse independente do CELAM. CEHILA edita um catálogo com todas as suas obras. A
Historia General é editada em Sígueme, Salamanca, desde 1977 (foram publicados até 1989: seis
volumes em castelhano, urn em inglês o correspondente aos espanhóis nos Estados Unidos], e dois
em português [correspondentes ao Brasil]). Os "Anuários" foram aparecendo ano após ano sobre
temas particulares.
81
exposto pelo teólogo brasileiro - retornado há pouco da Alemanha, onde fez
seus estudos teológicos - Leonardo Boff,165:
Com o estabelecimento de regimes militares em muitos países da
América Latina e face ao totalitarismo das ideologias da Segurança
Nacional, têm mudado profundamente as tarefas da Teologia da
Libertação. É necessário viver e pensar a partir do cativeiro ( ... ).
Para Israel o cativeiro ( ... ) na Babilônia significou tempo de
elaboração da esperança e dos dinamismos necessários para o
momento de ação e da ruptura libertadora166 .
Aparecem as primeiras críticas, por outro lado, contra a teolo
gia da libertação, como por exemplo as conclusões do Encontro de Bogotá em
novembro de 1973167 , e em Toledo em 1974168 . Em setembro de 1975
organiza-se ainda outro encontro crítico169. Roger Vekemans publica sua obra
Teologia do Libertação e cristãos pelo socialismo170. O mesmo tipo de
argumentos será esgrimido na "Instrução" de 1984 da Congregação para a
Doutrina da Fé.
Enquanto isso, alguns teólogos padecem o exílio (devem sair do Brasil
Comblin e Assimannn e ambos posteriormente do Chile, de-
165. Nasceu em 1938. Entre suas obras cumpre destacar: 0 Evangelho do Cristo cósmico, Vozes,
Petrópolis, 19 70;Jesus Cristo libertador. Ensaio de cristologia crítica pata nosso tempo, Vozes,
Petrópolis, 19 7 2; A ressurreição de Cristo - A nossa ressurreição na morte, Vozes, Petrópolis, 19
7 2; Vida para Além da Morte, Vozes, Petróp olis, 19 7 4; 0 destino do homem e do mundo,
Vozes, Petrópolis, 19 7 4, e A vida religiosa e a Igreja no processo de libertação, Vozes,
Petrópolis, 1975.
166. "Qué es hacer teología desde América Latina?", em Liberación y Cautiverio, p. 141.
167. Os resultados são publicados em Liberación: Diálogos en el CELAM, CELAM, Bogotá, 1974,
onde se destaca o artigo de B. Kloppenburg, "Las tentaciones de Ia teolgía de Ia liberación" (p.
401 -515), no qual podem ser notados todos os argumentos da época contra a teologia da
libertação. Da mesma maneira Jorge Mejía, "La liberación, aspectos bíblicos", objeta a partir dos
estudos exegéticos (p. 271-307); Monsenhor López Trujillo, "Las teologías de la liberación en
América Latina" (p, 27-67), onde ele distingue entre as "boas" e as "más" teologias da libertação.
168. Publicada sob o título de Teologia de la liberación. Conversaciones; en Toledo, Burgos, 1974,
com a participação de Jiménez Urresti, Yves Congar, López Trujillo, entre outros, e na qual se fala
de "tantas teologias quantos autores", "libertação integral do homem e universal de todos os
homens" (p. 295s), Não se observa a conflitualidade existente em uma situação de pecado:
domínio de uma nação sobre outra, de uma classe sobre outra, etc. 0 "universalisrno" oculta as
contradições.
169. Conflicto social en América Latina y compromiso cristiano, CELAM, Bogotá, 1975. Encontro
realizado em Lima, do qual se excluem todos os teólogos da libertação. Sobre a nova orientação
do CELAM, F. Houtart publica "Le Conseil Episcopal d'Amérique Latine accentue son
changement", em informations Catholiques internationales; 481 (1975), p. 10-24.
170. Teología de la liberación y cristianos por el socialismo, já citado.
82
onde são exilados igualmente G. Arroyo, F. Hinkelammert e muitos outros,
como Dussel da Argentina, etc), perseguidos pelos regimes militares - e
freqüentemente com a cumplicidade de certos membros da Igreja.
Surgem novas figuras teológicas: Ignacio Ellacuría e Jon Sobrino em El
171
172
Salvador , Luis del Valle no México , Virgilio Elizondoentre os "chicanos"
173
dos Estados Unidos , Raúl Vidales, mexicano, trabalhando no início em
175
176
Lima 174 Alejandro Cussianovich no Peru Rafael Ávila na Colômbia
,
Ronaldo Muñoz no Chile com sua obra Nueva Conciencia de Ia Iglesia en
América Latina 177, etc.
Ao mesmo tempo, os mártires selam com sua vida o que a teologia
explicita posteriormente de maneira teórica. Antonio Ferreira Neto, assassinado
no Brasil em 1969, Héctor Gallegos, desaparecido no Panamá em 1972, Carlos
Mújica, crivado de balas na Argentina em 1974, Iván Betancourt, morto em
Honduras em
171. Do primeiro "Posibilidad, necesidad y sentido de una teología latinoamericana", em Christus 471
(1975), p. 12-16; 472 (1975), p. 17-23. Posteriormente Freedom mede Flesh, Orbis Books, New
York, 19 7 6. Sobre Sobrino nos estenderemos depois.
172. Autor de diversos artigos na revista Christus (México); teólogo do movimento de "Sacerdotes
para opovo" (depois denominado "Igreja solidária"). Alémdisso, "Hacia una prospectiva teológica
a partir de acontecimientos", em Liberación y Cautiverio, p. 103-127.
173. Especialista em teologia do "chicano". Sua obra principal foi Galilean Journey. The Mexican
American Promise, Orbis, New York, 19 8 3. Foi diretor durante muitos anos do Mexican
American Cultural Center (MACC) de San Antonio (Texas), e incentivador teológico dos "spanish
speaking" nos Estados Unidos. Andrés Guerrero publicou A Chicano Theology, Orbis, NewYork,
1987.
174. Sua tese no IPLA La Iglesia latinoamericana y Ia política después de Medellín, IPLA, Quito,
1972. Numerosos artigos nas revistas Servir, Christus e Contacto (México). Também
"Evangelización y liberación popidaLr", em Liberación y Cautiverio, p. 209-234, onde se expressa
claramente: "Assim entendido o povo, podemos então falar das massas populares em seu sentido
mais revolucionário e tendo em conta sua complexidade interna, já que dentro das massas estão
não só os grupos que propriamente chamamos classes sociaís ( ... ) (operários-camponeses), como
também todos aqueles setores que estão relegados a situações de marginalidade sócioeconômica,
política e cultural" (Ibid., p. 223).
175. Vide Nos ha liberada, Sígueme, Salamanca, 1973; obra dirigida à base para ensinar a pensar na
tradição da JOC, da teologia da libertação no método do ver-julgar-agir. Também em Desde Ias
pobres de la tierra, Sígueme, Salamanca, 1977.
176. Teólogo leigo colombiano, especializado em catequese e na temática eucarística. Por exemplo:
Biblia y liberación, Edições Paulinas, Bogotá, 1973; Implicaciones socio-Políticas de Ia
Eucaristía, Policrom, Bogotá, 1977; Teologia y política, Presencia, Bogotá, 1977, com intuições
muito criativas.
177.Ediciones Nueva Universidad, 1973, autêntico Vade-mécum eclesiológico latino-americano; um
clássico no assunto (em port. Vozes, Petrópolis, 1979).
83
1975, até Rutilio Grande e Monsenhor Oscar Romero, mártires de El
Salvador e símbolos de uma época178.
Por seu turno, "Cristãos pelo Socialismo" teve sua reunião de
fundação efetuada em Santiago do Chile em 1972, com representações
de quase todos os países latino-americanos179 .
O I Encontro Latino-americano de Teologia, realizado no México,
em agosto de 1975 180, significa um ponto alto no caminho da nova
etapa aberta em 1968, já que foi o primeiro encontro de uma tal
envergadura no Continente, e como uma continuação do encontro de
El Escorial de 1972. Posições mais abstratas, como a dos seguidores de
Lonergan na América Latina, contrastavam com uma metodologia
dialética que partia da práxis histórica dos pobres.
Nesse mesmo mês de agosto de 1975, e como uma apresentação da
teologia da libertação nos Estados Unidos - mas lançando uma
metodologia de reflexão própria, sob o alento de Sergio Torres, do
Chile, e exilado em Nova Iorque -, Theology in the Americas I181
assinalou o início de um fecundo diálogo da teologia latino-americana
com a Black Theology (james Cone tinha iniciado um diálogo sobre o
tema em Genebra"182). Foram assim sendo descobertos diferentes eixos
de contradições articuláveis: a problemática "nortesul"; a confrontação
entre raças (o "racismo" como objeto teológico);
178. Em 1975 já surge um martirológio em Scarboro Missions (Ontário), junho (1975).
Posteriormente José Marins editará El martirio en América Latina, Misiones Culturales, México,
1982, onde expõe a necessidade de urna pastoral de acompanhamento dos torturados,
aprisionados, das famílias dos desaparecidos, como no cristianismo primitivo: tempo de
perseguição e de martírio.
179. 0 Encontro se realizou de 23 a. 30 de abril desse ano. Vide Pablo Richard, Cristianos por el
socialismo, Sígueme, Salamanca, 1976; José Ramos Regidor, Cristiani per il socialismo, A.
Mondadori Ed.-IDOC, Roma, 19 7 7.
180. As atas do Encontro foram editadas na obra já citada e publicada por Enrique Ruiz Maldonado,
Liberación y Cautiverio, abordando a questão do método em teologia.
181. Em Teología, Iglesia y política, Pueblo de Dios, Bilbao, 1973, foi divulgado um diálogo entre
J.B, Metz, K. Rahner, H. Cox e Hugo Assmann. Pouco depois, no Symposium on Black Theology
and the Latin. American Theology of liberation" (publicado sob a direção de P. Freire, H.
Assmann, E.I. Bodipo Malumba e J, Cone, Teología negra, Teología de Ia liberación, Sígueme,
Salamanca, 1974), começam a ser descobertas novas temáticas,
182. Vide meu artigo "Teologias da Periferia e do Centro. Encontro ou confronto?", em Concilium
191 (1984),p. 121-133; também em Teologia desde el tercer Mundo. Documentas finales de Ias
cinco congresos internacionales de EATWOT, DEI, San José, 1982.
84
a opressão "varão-mulher". Dessa maneira, a teologia da libertação
ampliava o seu horizonte183 .
Em 1974 tínhamos começado a idealizar a possibilidade de um
encontro entre teólogos do Mundo Periférico184 de modo que se
pudesse dialogar de maneira direta, sem intermediários do "centro". O
primeiro Encontro foi realizado em Dar-Es-Salaam (Tanzânia), de 5 a
12 de agosto de 1976. Vinte e dois teólogos da Ásia, África e América
Latina, e das minorias dos Estados Unidos, começamos um diálogo
teológico do Terceiro Mundo. O segundo Encontro foi efetuado em
Accra (Ghana), de 17 a 23 de dezembro de 1977. 0 terceiro realizou-se
em Wennappuwa (Sri Lanka), em janeiro de 1979 185 . Esses Encontros
certamente abriram novos caudais para a teologia, não só a latinoamericana, como também a da África e da Ásia e igualmente a das
minorias negra e hispânica dos Estados Unidos. Produziu-se assim a
"mundialização" de uma teologia que se refletia a partir da práxis dos
cristãos oprimidos do mundo atual. Desde esse momento, então, as
teologias da Ásia, África e América Latina - e a das minorias dos EUA
-ingressam numa etapa de mútua fecundação. A experiência deu
grandes frutos, já que se conheceram diretamente as problemáticas
teológicas do mundo periférico.
Vejamos agora os avanços mais significativos em algumas áreas
teológicas. Em primeiro lugar, na Cristologia186 . Hugo Assmann assim
escrevia:
183. Vide meu artigo "Teologias da Periferia e do Centro. Encontro ou confronto?", em Concilium
191 (1984), p. 121-133; onde se pode consultar acerca da origem e da história do movimento dos
teólogos do Terceiro Mundo.
184. As edições dos mencionados encontros foram: The Emergent Gospel, Orbis Books, New York,
1976; African Theology in Route, Orbis, New York, 1979; Asia's StruggIe for full Humanity,
Orbis, New York, 1980. Em 1980, houve o Quarto Encontro em S. Paulo (The challenge of Basic
Christian Comunities, Orbis, New York, 198 1); o Quinto em Nova Delhi, 198 1, e, por último,
em Genebra em janeiro de 1983, o diálogo entre teólogos da periferia e do centro.
185..J. Ramos Regidor, op. cit., p. 268-353 (boa bibliografia que não repetiremos aqui).
186. "La situación histórica del poder de Cristo. Notas sobre el discernimiento de las contradicciones
cristológicas", em Rosino Gibellini, La Nueva frontera de la Teología en América Latina,
Sígueme, Salamanca, 1977, p. 135 (apareceu antes em um número de Cristianismo y Sociedad
43-44 [1975], dedicado à Cristologia). "A perspectiva - acrescenta Assmann - do futuro próximo
na América Latina faz prever que continuarão a existir Cristas nos dois lados: o dos
revolucionários e o dos reacionários" Ibid
85
O conflito das cristologias não pode ser analisado nem dirimido
fora da dialética dos conflitos sociopolíticos, que foi sempre sua
real condicionante histórica187 .
Assim como há Cristos ressuscitados sem dor entre a aristocracia
bizantina, ou Cristos medievais feudais ou dos cruzados, há também Crístos
operários; há Crístos que apóiam os militares em seus "golpes de Estado" ou o
Cristo que os guerrilheiros levam pendurado em seu pescoço - como os
soldados sandinistas. Trata-se de um "situar" Cristo visualizado a partir de urna
certa perspectiva188 .
O Jesus Cristo Libertador de Leonardo Boff189 apresenta a primeira obra
sobre esse tema. Uma cristologia latino-americana é possível porque a situação
da época de Jesus era análoga à da América Latina de hoje: miséria,
dependência, presença de grupos dominantes, poderosos e repressores do povo
pobre. Existe um primado do Cristo histórico, da antropologia sobre a
eclesiologia, do utópico sobre o fatual, do crítico sobre o dogmático, do social
sobre o individual. Reelaboram-se os temas cristológicos a partir da construção
do Reino.
A Cristología desde América Latina de Jon Sobrino190 enfrenta não tanto a
questão "Cristo-razão" (primeira Ilustração), mas sim a questão "Cristopráxis
transformativa" (segunda Ilustração: o marxismo), quer dizer, é uma cristologia
da libertação. Trata-se do 1. seguimento" do Cristo histórico para construir o
Reino de Deus, numa América Latina em situação análogo à da Palestina, a
partir da "comunidade" (primitiva no primeiro século, ou atual a partir das
comunidades pobres). É uma obra teológica profunda e de ricas conseqüências.
187. Ibid.
188. Vide o Cristo anarquista do início do século no artigo de Maximiliano Salinas, "La Iglesia y los
orígines del movimiento obrero en Chile (1880-1920) ", em Revista de Sociología Mexicana 3
(1987), p. 171-184 (relatório do simpósio realizado pela CEHILA em S. Paulo em 1986, sobre
"classe operária e História da Igreja na América Latina").
189. Vozes, Petrópolis, 1972. Além disso 0 Evangelho do Cristo cósmico, Vozes, Petrópolis, 1970; A
Ressurreição de Cristo, Vozes, Petrópolis, 1972; "Salvação em Jesus Cristo e processo de
libertação", em Concilium 96, junho de 1974, p. 753-764; e muito especialmente Paixão de Cristo
- Paixão do mundo, Vozes, Petrópolis, 1977.
190. CRT, México, 1976 (2ª edição corrigida e ampliada, 1977) (em port. Vozes, Petrópolis, 1983).
86
Ainda que nos adiantemos no tempo, a obra El hombre de hoy ante Jesus
de Nazaret de Juan Luis Segundo é a cristologia mais bem sucedida até o
momento"191, ainda que o autor esclareça:
Nossa tentativa neste livro pode ser definida melhor como
anticristologia do que como mais uma cristologia. Nem sequer a
definiríamos como a cristologia correspondente à teologia da
libertação latino-americana192 ... Libertar Jesus das cristologias que
o aprisionam pressupõe tarefa incessante de criar evangelhos que
sejam, efetivamente, boa notícia para nossos contemporâneos, sem
deixar por isso de verificar sua coerência com o evangelho pregado
historicamente por Jesus de Nazaré 193.
Importante é o capítulo sobre "Jesus e a dimensão política"194 , o "anúncio
central de Jesus", e a releitura de "A cristologia humanista de Paulo". J.L.
Segundo continua sempre sendo crítico de certas ingenuidades; criticismo
salutar 195 De qualquer modo, a cristologia da teologia da libertação, que levará
seriamente em conta a realidade sociopolítica, econômica e histórica do "fato"
de Jesus, está ainda por ser escrita.
Da mesma maneira, na Eclesiologia 196 a teologia da libertação possui
uma particularidade: não é eclesiocêntrica. Talvez a primeira eclesiologia
nesse sentido - e ainda que Rubem Alves já não fosse propriamente um
teólogo da libertação - é o livro do teólogo bra-
191. Cristiandad, Madri, tomos I-III, 1982, fruto do longo silêncio que o exílio em sua própria pátria
lhe foi exigido pela ditadura militar uruguaia (em port. Paulinas, São Paulo, 1985). O tomo I é na
realidade uma obra independente, que no fundo se refere a Marx desde Lukács e Althusser;
sempre latino-americano.
192. Op. cit., II, p. 29. Interessante é que Segundo dialoga com as outras cristologias
latinoamericanas (vide José Comblin, Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1971; Benedito Ferraro,
A significação política e teológica da morte de jems, Vozes, Petrópolis, 1977; I. Ellacuría, "The
political character of Jesus' Mission", em Freedom made Flesh cit., p. 23-86; etc.).
193. Ibid p. 65.
194. Ibid., p. 105 s.
195. "A teologia latino-americana chamada da libertação não escapa ( ... ) a simplificações e
superficialidades ( ... ). Uma delas é justamente a que a faz surgir da práxis ). Nesse caso, esse
poder qualitativo e quantitativo é o povo ou, mais exatamente, as pobres Desse ponto de vista
hermenêutico é de se estranhar, no entanto, que Gutiérrez não se indague por que Jesus não
conseguiu em seu tempo que seu próprio povo, o dos pobres, arrancasse da mesma maneira a lei e
os profetas das mãos dos grandes de Israel" (Ibid., t. R/ 1, p. 5 8 1-5 99). É um longo diálogo que
remonta a 1963 (massa, povo, minorias...).
196. J. Ramos Regidor, Op. cit., p. 354-511 (com boa bibliografia).
87
sileiro protestante: Protestantismo e repressão197 . Paradoxalmente, é
uma afirmação do "catolicismo popular" brasileiro - que igualmente é
repudiado pelo conservador católico romano contra um protestantismo
burocrático, do "saber absoluto", da intolerância, da insensibilidade
com respeito ao "princípio do prazer", de negação da história, de
afirmação do status quo. Uma obra dilacerante, que pode perfeitamente
ser uma alegação contra uma eclesiologia católica em voga, fanática e
doutrinarista.
A partir da experiência das "Comunidades Eclesiais de Base", as
obras de Leonardo Boff198 obterão enorme repercussão. Em especial
Igreja: carisma e poder199, no tocante às "Patologias do catolicismo
romano200 . De qualquer modo, o fundamental não é a crítica à Igreja
realmente existente, mas sim a reflexão a partir da Igreja dos
pobres"201 . De uma Igreja "pobre" no tempo do Concílio Vaticano II,
passa-se a conceber a "Igreja dos pobres", que:
oferece um lugar objetivo e ótimo para vivenciar a fé. Em princí pio não empobrece, como é um temor comum naqueles que a
atacam, o mistério de Deus, mas sim o amplia202 .
De qualquer maneira a Igreja romana e grupos da Igreja
institucional encaram a eclesiogênese "de baixo", a partir das
Comunidades, como uma critica a uma Igreja intolerante,
burocratizada, uniformizada, autoritária, não-missionária. As tensões
irão aparecer ainda no futuro.
197. Editora Ática, S. Paulo, 1979.
198. Eclesiogênese, Vozes, Petrópolis, 1977; com Clodovis Boff, Comunidade Eclesial, comunidade
política, Vo zes, Petrópolis, 19 7 8; vi de meu artigo " A Base na Teologia da libertação ", em
Concilium 10 4 (19 7 5 ), p. 445 -456.
199. Vozes, Petrópolis, 1981.
200. Ibid., p. 13 8s.
201. Jon Sobrino, Resurrección de Ia verdadera Iglesia. Los pobres, lugar teológico de Ia eclesiología,
Sal Terrae, Santander, 1981, em especial o capítulo 4: "Ia Iglesia de los pobres, resurrección de Ia
verdadera Iglesia" (p. 99s). Nossa reflexão "histórica" sobre a Igreja sempre se apoiou numa
eclesiologia (não de "Cristandade" mas sim da "Igreja dos pobres", desde aquele distante 1959
com Paul Gauthier em Nazaré, pouco antes do Concílio). Deve entender-se a tarefa da História da
Igreja como tarefa "eclesiológiça" (Vide Pablo Richard, Morte das Cristandades e nascimento da
Igreja, citada; e meu trabalho De Medellín a Puebla: " Hipótesis mínimas de lectura" [p. 15-48],
onde se desenvolve uma eclesiologia.).
202. J. Sobrino, op. cit., p. 175 -176.
88
O movimento contemplativo que gera o processo de libertação emerge
como uma nova "espiritualidade". Arturo Paoli foi um dos iniciadores com seu
Diálogos da Libertação203 - desde sua distante chegada à América Latina em
1959. Ernesto Cardenal, trapista como Thomas Merton, criador de uma nova
maneira de vida monástica em Solentiname 204; e especialmente desde seu
compromisso revolucionário, tanto em seus Salmos205 , como em La Santidad
de la revolución,206 - já que a "santidade" não é só cristã, mas daqueles que dão
a vida pelo amor a seus irmãos. Da mesma maneira Frei Betto escreve, entre
1969 e 1971, Das catacumbas. Cartas da prisão207 , no Brasil sob a ditadura
militar. Jon Sobrino, a partir de E1 Salvador que vive as dores agônicas do
parto, reflete sobre a oração cristã, pessoal e comunitária208. O próprio Gustavo
Gutiérrez se alonga sobre igual tema 209.
Por isso a antologia de Eduardo Bonnin210 , ou o trabalho empreendido
nos Estados Unidos por Robert McAffee Brown 211', de
203. Arturo Paoli, Diálogos de la liberación, Lohlé, Buenos Aires, 1970; La Iglesia que note entre
nosotros, IndoAmerican Press, Bogotá, 1970; El Evangelio político de San Lucas, Lohlé, Buenos
Aires, 1973; Pan y vino,Tierra (del exilio a la comunión), Coleção Alcance, Bilbao, 1980; etc.
204. El Evangelio en Solentiname.
205. Lohlé, Buenos Aires, 1969: Bem-aventurado o homem que não segue os ditames do Partido /
nem assiste os seus comícios / nem se senta à mesa com os gangsters / ( ... ) " (P.9). Magnífica
poesia nicaragüense, latino-americana, mundial. O maior poeta latino-americano vivo, depois da
morte de Pablo Neruda.
206. Sígueme, Salamanca, 1976: "Creio ser importante que também existam pessoas que recor
dem à humanidade que a revolução se prolonga também após a morte ( ... ), Mas a revolução é
para que a humanidade a madureça e realize depois urna boda com Deus" (p. 21-22).
207. Das Catacumbas. Cortas da prisão, Civilização Brasileira, Rio, 1978, testemunhos comovedores
de uma América latina que reza em meio à tortura e à morte, como nos primeiros séculos do
cristianismo.
208. La oración de Jesús y del cristiano, Ed. Paulinas, Bogotá, 1979. Vide igualmente Spirituality of
Liberation. Toward polítical holiness, Orbis, New York, 1985.
209. Em sua obra La fuerza história de los pobres (CEP, Lima, 1979; Vozes, Petrópolis2 1984),
iniciacom o terna, mas é em Beber en su propio pozo. En à itinerario espiritual de un pueblo (CEP
Lima 1983; Vozes, Petrópolis,41986) e em Hablar de Dias desde el sufrimiento del inocente. Una
reflexión sobre el libra de Job (CEP, Lima, 1986; Vozes, Petrópolis, 1987) que a "espiritualidade"
recebe um tratamento próprio da práxis de um povo em meio ao sofrimento, inas pleno de esperança.
Sobre Jo vide Jorge Pixley El libro de Job. Comentario bíblico latino-americano, Seminário Bíblico,
San José, 1982.
210. Espiritualidad y Liberación en América Latina, DEI, San José, 1982, com trabalhos de V. Araya,
Frei Betto, L. Boff, R Casaldáliga, S. Galilea, G. Gorgulho, J. Hernández Pico, C. Maccise, E. Pironio,
O. Ramírez, R Richard, J. Sobrino (faltando Arturo Paoli, Rubem Alves, etc.).Também A Cruz,
Teologia e espiritualidade, de vários autores (C. Broneto, M. Perda., etc), Ed. Paulinas, S. Paulo, 1983.
211. Spirituality and Liberation, The Westminster Press, Filadélfia, 1988.
89
monstram, já a riqueza da nova espiritualidade latino-americana da libertação.
Nesses anos, além disso, a teologia da libertação, que desde o seu início
havia usado um novo método212, formulou explicitamente essa maneira de
"produzir" teologia213. Apareceram diversos trabalhos sobre o tema214.
Clodovis Boff defende sua tese de teologia em Lovaina sobre Teologia e
prática. Teologia do político e suas mediações 215 que é a primeira obra de um
teólogo da libertação dedicada exclusivamente ao método teológico.
Inspirando-se principalmente em Gaston Bachelard, Louis Althusser e Jean
Ladrière216 , articula a relação teoria prática de uma maneira abstrata, deixando
para o final a questão dialética, com a qual se devia começar. A posição do
"intelectual orgânico" de um Gramsci - e ainda a relação orgânica institucional
de teoria e práxis exposta por Habermas - não foi tomada como ponto de
partida. Fala-se então da "teologia política", mas não estritamente ainda de
teologia "da libertação".
Não é possível concluir essa etapa sem recordarmos novamente os
mártires. José Marins publica uma nova edição de seu livro El
212. Todos os teólogos da libertação, desde seus primórdios, tiveram consciência de que as "ciências
sociais" (de fato foi a "sociologia" a ciência privilegiada) eram a mediação analítica privilegiada
da nova teologia. Graças i influência de Antonio Gramsci, a práxis foi definida como o ponto de
partida da reflexão teológica (G. Gutiérrez), ou a "ortopraxia" como ponto de partida da teoria (da
"ortodoxia" ). No começo foi mais atuante a sociologia funcionalista (de uni Gino Germani, por
exemplo, no caso de Juan Luis Segundo), mas fundamentalmente a partir do enunciado da "teoria
da dependência" se inicia a teologia da libertação propriamente dita.
213. Vide meu artigo "Herrschaft-Befreiung. Ein veraenderter theologischer Diskurs" (1974), em
Herrschaft und Befreiung, Exodus, Freiburg (Suíça), 1985, p. 33-42, onde se coloca a questão do
método teológico, da constituição de novas categorias, etc.
214. Por exemplo, o Encontro do México de 1975 teve por tema o "método ": Liberación y cautiverio.
Debates cri tomo al método de la Teología cri América Latina (ed. citada) - com exposições sobre
o tema de Luis del Valle, Leonardo Boff, jon Sobrino, Raúl Vidales, Casiano Floristán, Juan
Hernández Pico, Ignacio Fllacuría, etc. Ou livros como os de Xosé Miguélez, La teología de la
liberación y su método. Estudio en Hugo Assmann y Gustavo Gutiérrez Herder, Barcelona, 197 6;
Anton Peter, Befrdungstheologie und Transzendentaltheologie Enrique Dussel und Karl Rahner
Verglcich Herder, Freiburg/Br., 1988; ou de Roberto S. Goizueta, Liberation, Method and
Dialogue Enrique Dussel and North American Theological Discourse, American Academy of
Religion, Scholars Press, Atlanta, 1988.
215. Vozes, Petrópolis, 1978.
216. Vide a bibliografia epistemológica rias páginas 391-392.
90
martirio en América Latina"217. As ditaduras militares reprimirão
espantosamente o povo dos pobres e seus profetas. A obra de Rubén Dri,
Teología y dominación218, reflete teologicamente a dolorosa experiência da
responsabilidade da Igreja durante a "guerra suja" na Argentina, de 1976 a
1983. É uma reflexão vigorosa, dificil de aceitar por uma Igreja hierárquica
cúmplice naquele país.
QUARTO PERÍODO. A Teologia latino-americana diante da revolução
centro-americana e os novos ataques (desde 1979)
Examinaremos neste parágrafo duas linhas de fundo que irão se separando
durante os próximos anos. Por um lado aqueles que na Igreja se articulam cada
vez mais com as elites dominantes sejam elas os militares, a burguesia
nacional ou transnacional, que seguem a política do Departamento de Estado
norteamericano, etc. - e os que, dentro de tradições diferentes, prolongam o
compromisso com os pobres que foi gerado a partir da época do Concílio
Vaticano II.
Devemos remontar pelo menos até 1976 para vermos surgir em diversos
pontos da América Latina e da Europa uma mesma postura. Roger Vekemans
publica seu livro Teología de Ia liberación y cristianos por el socialismos219
em 1976 - a única obra até o presente que se ocupa tão amplamente de maneira
crítica da teologia da libertação. Na Alemanha, com a ajuda do Adveniat,
organiza-se um "Grupo de estudo sobre Igreja e Libertação" que de 2 a 7 de
março de 1976 se reúne em Roma (com a presença de A. López Trujillo, R.
Vekemans, R Bigo, próximos de Monsenhor Hengsbach [bispo do Adveniat e
pouco depois do Exército alemão], Weber Cottier, etc), sobre o tema
"Esperança cristã e práxis social"220 . Apareceram na
217. Misiones; Culturales, México, 1982 (Marins publicou esse livro antes como Práxis dei
martirio. Ayer y Hoy, Cepla editores, Bogotá, 1977). Além disso escreveu Modelos de Igreja.
CEB no América Latina, Ed. Paulinas, São Paulo, 1977.
218. Roblanco, Buenos Aires, 1987, "Coleção Teologia e Política". Escreveu também La utopia de
Jesús, Nuevomar, México, 1984, uma tentativa de cristologia levando em conta categorias
classistas; para esclarecer "A sociedade de Jesus" (p. 7 1-83). Será preciso aperfeiçoar esse rumo,
para chegar a uma cristologia mais concreta do que as desenvolvidas até agora.
219. Já mencionado (CEDIAL, Bogotá, 1976).
220. Studienkreis Kirche und Befreiung, que publica Kirche und Befreiung, Pattloch, Aschaffenburg,
1975, de um Encontro realizado de 12a 13 deoutubrode 1973; Kirche in Chile, ibidem, 1976
91
mesma linha de pensamento obras como as de Boaventura
Kloppenburg, Iglesia Popular, na qual se chega a dizer que "a
Igrejapopular é uma. nova seita" 221 , e outras mais publicadas em
revistas tais como Medellín, Tierra Nueva, etc. Em outubro desse ano a
Comissão Teológica Internacional em Roma opina sobre a teologia da
libertação (o primeiro antecedente da futura "Instrução" de 1984). 0
texto é moderado e na realidade não condena a mencionada teologia
nem nenhum dos grandes teólogos latino-americanos concretamente e,
na realidade, todas as advertências foram enunciadas pelos próprios
teólogos da libertação.
No seio do Protestantismo, igualmente, organiza-se a
"Fraternidade" - grupo de teólogos "evangélicos" que se unificam ante
a teologia da libertação222 . A crítica da "teologia evangélica" latino
223
americana
é muito semelhante àquela dos conservadores católicos
(ainda que esses últimos se refiram à instituição eclesiástica e aqueles
àautoridade das Escrituras), mas nenhuma das duas consegue descobrir
a importância das mediações (culturais, sociológicas, políticas,
econômicas, eróticas, etc.). Trata-se de um certo idealismo
(institucionalista ou fundamentalista).
(editam Hengsbach, López Trujillo, Bossle, Rauscher, Weber); Utopie der Befreiung, Idem;
Christlicher Glaube und gesellschaftliche Práxis, ibidem, 1978. Numa linha mais acadêmica Karl
Lehmann, Theologie der Befreiung, Johannes, Einsiedeln, 1977, onde aparece o parecer da
Comissão Teológica Internacional romana (em edição espanhola em Teología de la Liberación,
BAC, Madri, 1978). Urs von Balthasar chega a escrever: "Na realidade, as situações poderão ser
injustas, mas em si mesmas não são pecaminosas; pecadores serão os que têm a culpa dessas
situações e as permitem podendo eliminá-las ou melhorá-las" (Ed. espanhola, p. 179). O teólogo
alemão tem uma concepção individualista, consciencialista e ingênua do pecado. Não capta o
sentido do "pecado institucional" (vide minha obra Ethik der Gemeinschaft, Patmos, Duesseldorf,
1988, p. 29s, especialmente p. 33s).
221. Ed. Paulinas, Bogotá, 1977, p. 63 (em port. Agir, Rio de janeiro, 1983).
222. Por exemplo, a obra de Emilio Núñez, Liberation Theology, Moody Press, Chicago, 1985,
mostra um conhecimento real e simpático do material exposto (tanto histórico como sistemático da
teologia da libertação). O autor e Renê Padilla encabeçam esse movimento. De Padilla vide Misión
integral. Ensayos sobre el Reino y la Iglesia, Nueva Creación, Buenos Aires, 1986, e Ed. Pablo
Alberto Deiros, Los Evangélicos y el poder político en América Latina, Nueva Creación, Buenos
Aires, 1986 (com colaborações de S. Rooy, S. Escobar, E. Cavalcanti e outros). A utilidade dessa
obra está em que explica a "história protestante" da teologia. da libertação, em especial a
importância de "Igreja e Sociedade na América Latina" (ISAL) (P. 53s) (Vide Orlando Costas,
Theology ar the Crossroads in Contemporary Latim América, Rodopi, Amsterdã, 1976); do
Conselho Ecumênico de Igrejas (p. 61s); de Huampani em julho de 1961, de El Tabo em 1966, de
Piriápolis em 1967, de Naña em julho de 1971, até a crise do ISAL.
223. lbid., p. 277s.
92
Dentro da mesma tradição protestante, José Míguez Bonino
224
publicava então La fe en busca de eficacia
onde explica o
surgimento da teologia da libertação dentro da tradição própria,
metodista, protestante histórica. Da mesma maneira a obra coletiva
Los pobres. Encuentro y compromiso225 tem grande valor. Em
primeiro lugar, por seus estudos exegéticos (o de S. Croatto, por
exemplo); o esclarecedor capítulo sobre o Concílio Vaticano de
Míguez Bonino226 sobre a origem do conceito "Igreja dos pobres"; e a
crítica ao meu pensamento de Lambert Schurman ("A influência de
Emmanuel Lévinas na teologia latino-americana")227
.
Por outro lado, desde 30 de novembro de 1976 tinha começado o
que poderíamos denominar a "batalha de Puebla", quando Roma confia
ao CELAM a organização da IV Conferência Geral do Episcopado. Em
29 de novembro de 1977 é dado a conhecer o "Documento de Consulta";
em setembro de 1978 é publicado o "Docurnento de Traballio". De 27
de janeiro a 13 de fevereiro realiza-se a Conferência de Puebla. O
momento teológico principal foi a crítica ao "Documento de
Consulta"228 . O certo é que a totalidade dos teólogos da libertação foi
excluída da Conferência de Puebla, mas grandes temas da Teologia da
Libertação foram abordados na Conferência, em especial a "opção
preferencial pelos pobres" e a referência aos grandes profetas
latino-americanos (Bartolorneu de
224. Sígueme, Salamanca, 1977 (que na realidade é a tradução em castelhano de sua obra Doing
Theology in a revolutionary situation, Fortress Press, Filadélfia, 1975).
225. La Aurora, Buenos Aires, 1978. Esta obra foi o fruto de um ano de trabalho interdisciplinar do
Instituto Superior Evangélico de Estudos Superiores (ISEDET) de Buenos Aires. Em 1971, Emilio
Castro em sua obra Hacia una pastoral latinoamericana (Seminario Bíblico, San José) já tinha
expressado o seu pensamento acerca de "EI cristiano en una sociedad revolucionaria" (p. 137s).
226. Ibid., p. 133-147.
227. Ibid., p, 149-179.
228. Sobre esse tema vide minha obra De Medellín a Puebla, p. 461-549. Sobre a imensa bibliografia
pode ser vista uma síntese na publicação do Centro Lebret (Paris), junho de 1978 com mais de
dois mil títulos. Houve uma reação dos teólogos europeus (Rahner, Metz, Moltmann, etc.) em um
Memorandum de novembro de 1977; depois surgirá o documento de apoio à teologia da libertação
(assinado entre outros por Congar, Chenu, Aubert, Casalis); dos teólogos espanhóis, canadenses,
de bispos e sacerdotes "chicanos", e dos teólogos africanos e asiáticos reunidos em Colombo (Sri
Lanka) em 1978. Pela primeira vez, a teologia da libertação adquire ressonância mundial (embora
muito menor ainda que em 1984).
93
las Casas, Antonio de Montesinos, Monsenhor Valdivieso de León da
Nicarágua e tantos outros) citados como exemplo da Igreja em seu
conjunto229.
Como uma continuação do Encontro do México de 1975, a
tradição teológica da libertação organizou um diálogo entre teólogos
latinoamericanos, europeus e norte-americanos (i. Moltmann, H. Cox,
J. Cone), de grande utilidade para a compreensão dos diversos pontos
de partida e a diferente problemática de cada um.230 Posteriormente, de
21 a 25 de fevereiro de 1978, em São José da Costa Rica, efetuou-se
outro encontro entre teólogos e cientistas sociais231 . Trata-se de um
novo momento na teologia da libertação. A obra de Franz
Hinkelammert - economista, teólogo e pensador de grande
profundidade, de origem alemã mas com décadas de experiências
latino-americanas, especialmente no Chile, donde foi exilado em
virtude da repressão de Pinochet -, Las armas ideológicas de la muerte.
El discernimiento de los fetiches232 , que foi antecedida em alguns
meses por outro livro em que se refletia teologicamente sobre a
experiência da repressão no Chile: Ideologia del sometimiento223 ,
sobre a reflexão da relação entre economia e teologia:
A valorização da vida real tem sido sempre o ponto de partida das
ideologias dos oprimidos, em oposição à absolutização dos
valores da dominação234 .
Se a teologia da libertação iniciou sua reflexão a partir da dialética
"fé-política", agora reitera-se melhor a relação "vida-econo-
229. Vide, em minha obra De Medellín a Puebla, como se conseguiu introduzir boa quantidade de
textos numa visão crítica da história, em contradição com a visão tradicional conservadora ("João
Paulo II, a III Conferência e a História da Igreja na América Latina", p. 593-615), onde se pode
estudar o desenvolvimento das quatro redações do capítulo 1 do Documento Final de Puebla (o
mesmo poderia ser feito com todas as outras partes do dito Documento Final).
230. Práxis cristiana y producción teológica, Sígueme, Salamanca, 1977, editada por J. Pixley e J.P
Bastian (participamos H. Assmann, O. Costas, R. Vidales, E. Dussel, Sergio Arce de Cuba, etc.).
231. Editores E. Tamez-S. Trinidad, Capitalismo, violencia y anti-vida, EDUCA-DEI, San José,
1978, t. MI.
232. EDUCA-DEI, Sanjosé, 1977 (traduzido para o alemão em Exodus, Freiburg [Suíça); para o
inglês pela Orbis Books, New York; para o port. pelas Paulínas, São Paulo, 1983).
23 3. EDUCA-DEI, San José, 1977.
234. Las armas ideológicas de la muerte, p. 240.
94
mia''. já não é apenas a exigência do cristão de optar pelo pobre e
comprometer-se com a política - ainda revolucionária -, como em fins
da década de sessenta; agora é a fome das maiorias o imperativo para
modificar os sistemas de produção injustos. É a relação "pãoprodução"
e daí a centralidade da Eucaristia como "pão da vida" na justiça 235 .
Trata-se de um verdadeiro novo começo que imporá sua lógica
àtotalidade da teologia da libertação na década de oitenta e noventa. A
obra La lucha de los dioses 236 se situa nessa tradição.
Em janeiro de 1979 reuníram-se em Matanzas (Cuba) setenta
teólogos de países socialistas e da América Latina, onde se prosseguiu
no discurso indicado237 . Ainda que um tanto posterior, devemos aqui
registrar o seguinte Encontro entre teólogos e cientistas sociais
efetuado de 11 a 16 de julho de 1983. Foi retomada a temática anterior
mas dentro de um novo perfil: "O Discernimento das Utopias", em que
mais de cinqüenta participantes (do Brasil, Costa Rica, Peru, México,
Chile, Colômbia, estados Unidos e outros países) abriram novo
caminho à teologia latino-americana na "fronteira" (ciências sociais
-so238 ciologia, politologia e economia - e teologia)238 .
Enquanto isso, ocorre o acontecimento central que divide épocas.
A revolução sandinista ascende ao poder em julho de 1979. É um
momento central na própria história da teologia. Uma revolução póscapitalista teve já por referência uma teologia latino-americana que
justificava a práxis cristã revolucionária - o que não havia acontecido
nem na Rússia em 1917, nem, por exemplo, em Cuba em 1959. Em 17 de
novembro de 1979, os bispos nicaragüenses, num documento teológico a
ser recordado, expressam:
235. Vide meu artigo "O pão da celebração. Signo comunitário de justiça", em Herrschaft und
Befreiung, p. 44-61 (publicado em Concilium 172 [1982], p. 196-208).
236. Co-edição DEI-Centro Antonio de Valdivieso, San José-Manágua, 1980,cornosubtítulo: "Los
ídolos de la opresión y Ia búsqueda del Dios Liberador" - inspiração temática de Hugo Assmann,
com a qual fundava o DEI com exilados do Chile, principalmente.
237. Algumas colaborações publicadas em Servir (México) 80 (1979), sobre "Evangelização e
política" (Sergio Arce e outros). Ali se discutiu a presença dos cristãos nas revoluções socialistas
na Asia, África e América Latina, com a presença de teólogos da ex-URSS. Enorme passo adiante
no diálogo teológico intercultural.
238. Ed. R. Vidales-L. Rivera Pagán, La esperanza en el presente de América Latina, DEI, Coleção
Economia-Teologia, San José, 1983. Pablo Richaxd publicará ainda La Iglesia Latinoamericana
entre el temor y la esperanza, DEI, San José, 19 8 0; além disso Raúl Vidales, Desde la Tradición
de los Pobres, CRT, México, 1978.
95
Se o socialismo significa preeminência dos interesses da maioria
dos nicaragüenses ( ... ), um projeto social que garanta o destino
comum dos bens ( ... ), uma crescente diminuição das injustiças
( ... ), nada no cristão existe que implique em contradição com esse
projeto239 .
A igreja apóia então o processo revolucionário. No entanto, em 8 de maio
de 1980, organiza-se um seminário de bispos centroamericanos sob a direção
do CELAM. Dali para a frente tudo mudou. Começa a orquestração
contra-revolucionária sob a roupagem da "questão religiosa". A partir desse
momento, infelizmente, a política do Departamento de Estado norte-americano
e a de alguns membros do Vaticano começam a coincidir240 .
Por seu turno, a Frente Sandinista, em clara coerência com as posturas da
teologia da libertação, expressava na declaração "Sobre a religião", em 7 de
outubro de 1980:
os sandinistas afirmamos que a nossa experiência demonstra que
quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são capazes de
corresponder às necessidades do povo e da história, suas proprias
241
crenças os impulsionam para a militância revolucionária
.
Em 1981, como XC aniversário da Rerum Novarum, a encíclica Laborem
Exercens dá motivos a múltiplas reflexões teológicas. Da América Central o
pequeno livro Sobre el trabajo humano242 mostra que na encíclica se utiliza um
marco teórico categorial novo: conceitos tais
239.Vide, meu artigo "La Iglesia en Nicaragua (1979-1983)", em Histeria de Ia Iglesia en América
Latina (1983), p. 429-447.
240. Vide Ana Maria Ezcurra, El Vaticano y ]a administración Reagan, Nuevomar, México, 1984,
com ampla informação sobre particularidades. Dessa mesma autora deve-se recordar La UPI en
Puebla. Manipulación ideológica de Ia III Conferencia general, CEE, México, 1980, e Lu ofensiva
neoconservadora. Iglesias de USA y lucha ideológica hacia América Latina, IEPALA, Madri,
1982. Além disso, de la também temos Agresión ideológica contra Ia revolución sandinista,
Nuevomar, México, 1993. Vide na mesma linha de pensamento Cayetano De Lella, "El papel del
Instituto sobre Religión y Democracia en la ofensiva neoconservadora", em Cristianismo y
liberación en América Latina, Nuevomar, México, 1984, p. 65-82. Vide meu artigo "La política
vaticana en América Latina" (publicado em Social Compass em 1989), no qual se demonstra a
coerência da mencionada política desde 149 3 - com a bula papal de Alexandre VI -até a presença
de João Paulo II na praça da revolução de Manágua em 1983.
241. Parágrafo 2, da referida Declaração.
242. Equipe do DEI, San José, 1982; o mesmo será publicado no Peru pelo CEP, 1982.
96
como "classe" (Laborem Exercens nº 3), "trabalho em sentido objetivo" (nº 5),
"em sentido subjetivo" (nº 6), "prioridade do trabalho sobre o capital" (nº 12),
"capacidade de trabalho" (no 12), etc., denotam influência do pensamento
marxista243.
A obra de Otto Maduro, Religión y lucha de dases244 , ganha particular
relevância nessa fase.
Enquanto isso já se avançara em novas frentes. Em primeiro lugar, a
questão da teologia da mulher: a mulher como sujeito histórico e teológico. No
seminário sobre "A mulher latino-americana, a práxis e a teologia da
libertação", em Tepeyac (México), de 1º a 5 de outubro de 1979, Elsa Tamez se
manifesta como uma iniciadora nesse setor, a partir de seu artigo "A mulher
como sujeito na produção teológica" 245. Tudo isso culminará no "Documento
Final" da Conferência Intercontinental de Mulheres Teólogas do Terceiro
Mundo, realizada em Oaxtepec, de 1º a 6 de dezembro de 1986, no qual é
declarado:
As participantes perceberam que, em vez de rechaçar a Bíblia em
sua totalidade, como fazem algumas mulheres, dever-se-ia
observála com maior profundidade, repudiando todas as roupagens
patriarcais que têm obstruído seu verdadeiro sentido através dos
séculos e colocando em relevo os elementos esquecidos que
refletem a mulher tanto como pessoa com seus próprios direitos
quanto como co-participante com Deus e agente 246 da vida .
243. Em nossa obra Ética comunitária (Paulinos, Madri, 1986; Patmos, Duesseldorf, 1988; Vozes,
Petrópolis31994), pudemos prescindir de Marx, e pudemos com a encíclíca Laborem Exercens
dizer o mesmo.
244. E1 Ateneo, Caracas, 1979 (em port. Vozes, Petrópolis, 1981
245. Conclusão pessoal do encontro mencionado; artigo publicado em Muja Latinoamericana, IgIesia
y Teología, Ed. MPD, México, 1980; além de "La fuerza del desnudo", em EI Rastro &menina de
Ia Teologia, Ed. Sebila, San José, 1986; e, principalmente, Teólogos de Ia liberación hablan sobre
Ia mujer, DEI, San José, 1986. Vide ademais entre os teólogos as obras de Leonardo Boff, 0 rosto
materno de Deus, Vozes, Petr6polis, 19 79; E. Dussel, La erótica latinoamericana, USTA, Bogotá,
1980 (em port. Loyola, São Paulo) (trata-se do tomo III de Para um ética latinoamericana de Ia
liberación, Edicol, México, 1977; nova edição em La Aurora, Buenos Aires, 1987).
246. Ed. Maria Pilar Aquino, Apartes para una Teologia desde Ia mujer, Bíblia y Fe, Madri, 1988, p.
146-147. As autoras (Ivone Gebara, Carmen Lora, Leonor Aída, Elsa Tamez, Maria C. Bingemer,
a editora, Nelly Ritchie, Luz Beatriz Arellano, Tereza Cavalcanti) são algumas das teólogas
latinoamericanas que começam a ser conhecidas. De Elsa. Tamez vide: La hora de la vida, CEI,
San José, 19 78, e La Biblia y las oprimidos. La opción de la teología bíblica, DEI, San José,
1979.
97
Em outra frente, a teologia começa a descobrir o racismo, em especial o
exercido contra a população afiro-americana. Em dezembro de 1979, realiza-se
o primeiro Encontro sobre o tema em Kingston (Jamaica)247 . No Caribe - em
especial com Laennec Hurbon no Haiti, e no Brasil - com José Oscar Beozzo -,
o tema se converteu em um novo capítulo florescente da teologia da
libertação248 . Armando Lampe, de Aruba, escreve, na consulta da EATWOT
sobre "Cultura negra e teologia na América Latina" (de 6 a 8 de dezembro de
1984):
A teologia afro-antilhana da libertação terá as seguintes fontes: a
Bíblia, a tradição cristã, o processo atual de opressão-libertaçao e
as tradições religiosas afro-americanas e não-ocidentais (como o
hinduísmo). Essa última fonte é a que diferencia a teologia anti
lhana da teologia latino-americana da libertação249 .
Outro novo tema central é a questão indígena. A etnia, a nação ancestral
ameríndia, foi o tema de um Encontro em Chiapas, de 3 a 8 de setembro de
1979: "Movimento indígena e a teologia da libertação". Nesse seminário, com
a presença de indígenas de doze países latinoamericanos, evidenciou-se a.
capacidade teológica dos habitantes nativos do continente250.
Não se pode esquecer tampouco que, durante os anos de repressão,
descobriu-se na profundidade da "religiosidade popular" o lugar da práxis
cristã"251. Devido igualmente a essa repressão, na
Z47. Vide Corno enfrentar racismo en Ia década del 80?, CELADEC-CMI, Lima-Genebra, 1980; cf.
meu artigo "Racismo, América Latina negra y Teología de la Liberación", em Servir 86 (1990), p.
163-210.
248. Entre outras as conclusões do Encontro de Trinidad-Tobago da CEHILA (Vide A Escravidao
Negra e a História de Igreja na América Latina, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1987).
249. Cultura negra y Teología, DEI, San José, 1986. Entre os participantes Laennec Hurbon,
Armando Lampe, José Oscar Beozzo, etc.
250. Um exemplo paradigmático é o de Aiban Wagua, "Erfahrungen imDialog zwischen dem.
Christentum und der einheitnischen Religion der Kuna", em J.B. Metz-P Rottlaender,
Lateinamerika und Europa. Dialog der Theologen, Kaiser-Gruenewald, Muenchen-Mainz, 1988,p.
135-145. Nesse volume há trabalhos de Leonardo Boff, G. Gutiérrez, J.C. Scannone, E. Dussel, R.
de Almeida Cunha, etc. Trata-se de um Encontro teológico realizado em Muenster em novembro
de 1987.
251. Vide SELADOC, Religiosidad popular, Sígueme, Salamanca, 1976; a coleção de Ediciones
Mundo de Miguel Jord, La sobiduría de un pueblo, Santiago, 1975, ou a obra de Ignacio Pinedo,
Religiosidad popular, Mensajero, Bilbao, 1977; R. Vidales-T. Kudo, Práctica religioso y proyecto
histórico, CEP, Lima, 1975; meu artigo "Religiosidade popular como opressão e libertação.
Hipóteses para sua história e atualidade no AL", em Concilium 206 (1996), p. 476-489,
98
sociedade política e civil e na própria igreja, a teologia começa a ser praticada
em "centros" de reflexão, tais como o Bartolorneu. de Ias Casas em Lima, o
Departamento Ecumênico de Investigações em São José da Costa Rica, o
Centro Valdivieso na Nicarágua, o dos padres jesuítas na UCA de El Salvador,
o Centro Gumilla em Caracas, o Centro Montesinos e o Centro de Reflexão
Teológica no México, o CINEP em Bogotá, o Centro Diego de Medellín em
Santiago do Chile, e organismos eclesiais, porém autônomos, como a Comissão
de História da Igreja (CEHILA), etc. Quer dizer, a reflexão teológica explícita
se efetua em equipe. É uma maneira nova, não estritamente acadêmica,
articulada com o povo, de se produzir teologia.
Além do mais, nesses anos, registra-se um deslocamento das teologias do
Sul para o Norte. Em fins da década de 60 eram praticadas sobretudo no Cone
Sul. Em fins dos anos setenta deslocou-se para a América Central, o Caribe e o
México sendo sempre Brasil e Peru um ponto de referência.
Conforme já assinalamos linhas atrás, a revolução sandinista é um marco
central nessa época. Toda a América Central ingressa num processo
revolucionário"252, de compromisso cristão e de resistência contra a repressão.
Monsenhor Oscar Romero exclamava em 5 de março de 1978 em El Paisnal,
onde nasceu o Padre Rutilio Grande:
Dizem - comenta Monsenhor Romero - que alguém rindo no dia do
assassinato de Rutilio ironizou: "Já comprovamos que a pele dos
curas é também suscetível a balas". Assim zombavam, porque
acreditavam truncar toda a sua prédica cristã. O que não esperavam
é que a morte de um padre suscita tempestades,
etc. No mesmo contexto deve ser situada a obra editada por Juan C. Scarmone, Sabiduría popular,
símbolo y filosofia. Diálogo internacional en tomo de una interpretacián latinoamericana,
Guadalupe, Buenos Aires, 1984 - onde se reincide em posições "populistas". Vide de J.C.
Scannone, Teologia de Ia liberación y práxis popular, Sígueme, Salamanca, 1976; obra profunda
sem dúvida alguma, na qual não puderam ser superadas certas limitações próprias da "experiência"
argentina. A posição argentina sobre o tema pode ser observada no trabalho de J. L. Segundo "Die
zwei Theologien der Befreiung in Lateinamerika" em M. Sievernich, Impulse der
Befreiungstheologie fuer Europa, Gruenewald, Mainz 19 8 8, p. 10 3 - 117.
252. Vide Guillermo Meléndez, Iglesia, cristianismo y religión en América Central. Resumo
bibliográfico (1960-1988), DEI, San José, 1988; Pablo Richard-G. Meléndez, Lu Iglesia de las
pobres en América Central. Un análisis socio-politico y teológico de la Iglesia centroamericana
(1960-1982), DEI, San José, 19 8 2: Philip Berryman, The religious roots of rebellion. Christians
in Central American revolutions, Orbis Books, New York, 1984; Cayetano De Lella, Cristianismo
y liberación en América Latina, já citada.
99
suscita primaveras, como as que tem vivido El Salvador cristão já
faz um ano Como tem sido abundante a colheita da perseguição,
253
irmãos!
Na Nicarágua, o processo revolucionário exigirá uma clarificação
teológica da fé. A ideologia sandinista não é uma pura repetição do já
254
conhecido . A partir da mudança de política da Igreja hierárquica, induzida
por alguns desde Roma e o CELAM, ocorre uma alta de diálogo entre a
255
revolução e os bispos . Entre os dias 24 e 28 de setembro de 1979, poucos
meses após o triunfo da revolução, aconteceu um seminário sobre "Fé cristã e
256
a Revolução Sandinista na Nicarágua", , no qual começou a se definir
257
teologicamente a situação. Obras como Nicaragua: trinchera teológica
são
algumas das muitas publicadas; nesses anos. A nosso ver, a obra fundamental
até o momento é a escrita por Giulio Girardi: Sandinismo, marxismo,
cristianismo en la nueva Nicaragua258 . Em primeiro lugar, ela não oculta as
ambigüidades da ideologia de Sandino, mas assinala seu caráter nacionalista e
de libertação - na primeira parte do livro. Na segunda, sobre o "Marxismo
sandinista" (de grande importância estratégica para a história da revolução
nicaragüense, porque Girardi adianta uma tese teórica nova), após criticar o
estalinismo, conclui:
O trabalho teórico coletivo, que a revolução produz sobre a
marcha, acentua a caracterização do marxismo sandinísta como
teoria da prática libertadora. Esta prática do povo e de seus
dirigentes
253. Rodolfo Cardenal, Monseñor Oscar Romero Su pensamiento, UCA, São Salvador, 198 1, p. 69.
Vide James Brockman, The Word remains a life of Oscar Romero, Orbis Books, New York, 1982;
Rodolfo Cardenal, Rutilio Grande. Mártir de Ia Evangelización rural en El Salvador, UCA, San
Salvador, 1978.
254.Donald C. Hodges, Intellectual Foundations of the Nicaraguan Revolution, University of Texas
Press, Austin, 1986.
255. C£ Ana Maria Ezcurra Agresión ideológica contra Ia revolución sandinista, Nuevomar, México,
1983.
256. Com a participação, entre outros, de Jaime Wheelock, Juan Hernáridez Pico, Alvaro Argüello,
Raul Gómez Treto, Sergio Arce (os dois últimos de Cuba), Pablo Richard, etc., Fe cristiana y
revolución sandinista en Nicaragua, IHC, Manágua, 1990,
257. Com a participação, entre outros, de Pedro Casaldáliga, Miguel Descoro, E Cardenal, Uriel
Molina, Mara López Vigil, Giulio Girardi, J. Gorostiaga, E Hinkelammert, José Argüello, E.
Cardenal, etc. (Centro Ecumênico Antonio Valdivieso, Manágua, 1987).
258. Nuevomar, México-Manágua, 1986.
100
converte todo o país em um laboratório econômico, político,
cultural e teológico. E também num laboratório teórico259 .
E, mais importante ainda, Girardi, que em fins da década de 60 tinha
sustentado um "classismo" evidente, agora afirma que "o povo é o eixo do
260
marxismo sandinista , , o "sujeito" da revolução e a convergência entre a
revolução e o cristianismo (os cristãos). Obra teológica fundamental. Ademais,
o essencial da revolução, que está em jogo na luta ideológica - e onde a Igreja
tem um papel inevitável-, significa uma revolução cultural, como "cultura
popular revolucionária"261
Por seu turno, Franz Hinkelammert, refletindo sobre as alternativas
centro-americanas, num nível teórico-abstrato o mais universal possível,
262
escreve outra obra importante: Crítica a Ia razón utópica
~ onde critica o
fundamento do pensamento neoconservador (como o de Peter Berger), e da
economia neoliberal. (como o de Friedrich Hayek). Mas a obra se endereça
principalmente contra Karl Popper como responsável pelos pensamentos
antiutópicos. Uma excelente análise da contradição no conceito tanto da
competição como da planificação perfeitas - a partir das próprias hipóteses
popperianas. No final, ao falar do reconhecimento entre os indivíduos da
presença de Deus, conclui:
Se bem que nesse reconhecimento haja, portanto, libertação junto
com a presença de Deus, para tal teologia a transformação da
sociedade é conseqüência necessária dessa libertação, e deve ser
tal que a nova sociedade seja um apoio estrutural para essa
libertação. Daí sua insistência na satisfação das necessidades
básicas e sua tendência socialista ( ... )263.
259. lbid.,p. 136.
260. Ibid., p. 137s.
261. Giulio Girardi Fe en Ia revolución. Revolución en la cultura, Editorial Nueva Nicaragua,
1983.Vide meu artigo "Cultura latinoamericana y filosofía de la liberación. Cultura popular
revolucionaria más allá del populismo y del dogmatismo", em Cristianismo y Sociedad 80 (1984),
p. 9-45.
262. DEI, San José, 1984.
26 3. Ibid., p. 272. A tentativa de resumir essa valiosa experiência e impossível em tio breve espaço.
Merecerá urna obra completa. No contexto centro-americano deve situar-se também a obra de J.
Sobrino-J. Hernández Pico, Theology of Christian Solidarity, Orbis Books, New
York, 1985, 204 p. Vide EATWOT, Teología de la liberación y comunidades de base, Sígueme,
Salamanca, 1982.
101
Enquanto isso realizara-se o IV Encontro da EATWOT de 20 de
fevereiro a 2 de março de 1980 em São Paulo264 . 0 V Encontro foi
efetuado em Nova Delhi, em agosto de 1981 265 . Houve ademais o II
Encontro de Theology in the Americas em 1981. E também Congressos
de teologia em Madri sobre "Teologia e pobreza" com a participação de
Jon Sobrino; "Os cristãos e a paz" em 1983 (com a presença de Enrique
Dussel); em 1984 com a presença de Hugo Assmann, que eram uma
continuação, de certa maneira, do Encontro de El Escorial de 19 7 2. Em
julho de 19 8 0 a CEHILA organiza seu encontro anual sobre "História
da teologia na América Latina266 ; e na I Conferência Latino-Americana
de História da Igreja houve igualmente um seminário sobre "História da
Teologia na América Latina". Além disso, a partir dessas experiências
fundou-se uma comissão de trabalho para escrever uma História da
Igreja no Terceiro Mundo - da EATWOT, e que realizará até 1989 cinco
consultas intercontinentais.
QUINTO PERÍODO. Desde a "Instrução" rornana de 1984
A Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação", que
foi assinada em 6 de agosto e divulgada em 3 de setembro de 1984,
lançou contra a sua vontade para o foco mundial a teologia latinoamericana. A acusação de marxismo havia começado doze anos antes.
No E] Tiempo de Bogotá fora publicado em S de novembro de 1972 o
seguinte: "CELAM acusado de marxista". Com tais armas López
Trujillo será eleito Secretário-Geral do mencionado órgão para
preservá-lo de tais influências. Jaime Serna declarava na televisão:
"Infiltração marxista no CELAM" 267 . No número um da revista Tierra
Num (Bogotá), fundada por R. Vekemans, López Trujillo assim intitula
o primeiro artigo: "A libertação e ás libertações". A "Instrução" falará
igualmente de "teologias da libertação" 268 no plural. Na obra já
mencionada de Vekemans de 1975 se acusa a teologia da
264. Vide EATWOT, Teologia de Ia liberación y comunidades de base, Sígueme, Salamanca,
1982.
265. Vide as atas editadas em Orbis Books, New York, 1982.
266. O já citado livro do editor R Richard, Materiales para una historia de Ia teología en América
Latina.
267. Vide meu livro De Medellín a Puebla p. 282.
268. Instrução, IV, 3.
102
libertação de marxista - confundindo-a com "Cristãos pelo socialismo"
-e, por isso, vinculada a uma teologia de violência guerrilheira. Em
1978 B. Kloppenburg identifica igualmente teologia da libertação com
"Cristãos pelo socialismo", caindo ambos os movimentos, a seu ver,
numa eclesiologia da "Igreja popular", que é uma seita herética. Por
último, Javier Lozano269 pensa que a "Igreja popular" é o ponto de
partida, a teologia da libertação é sua inspiração, mas, na realidade, a
origem desta é o marxismo-leninismo, estalinista. Em todos os casos
simplifica-se a posição do contrário, deformando-a convenientemente,
e depois ela é criticada. B. Klopperiburg, tal como a "Instrução",
denuncia o "monismo" na teologia da libertação (porque afirma que há
"uma só história") .270
Em primeiro lugar, pensou-se a partir do Vaticano em se fazer
uma "condenação" da teologia da libertação no Peru. O episcopado
formou uma comissão e remeteu a G. Gutiérrez determinadas
perguntas sobre presumíveis erros. Gutierrez respondeu com um
trabalho detalhado no qual esclarecia sua posição.
Além disso, ele escreveu o livro de cunho espiritual Beber en el
propio pozo. Nada se pôde fazer ali. De qualquer maneira 30 Giorni
uma revista relacionada a Comunione e Liberazione - lançava em
Roma em outubro de 1984 uma acusação contra Gutiérrez. Pensaram
então em "condená-la" no Brasil, mas ali era ainda mais difícil
porquanto os teólogos da libertação fazem parte da comissão teológica
269. Vide La Iglesia del Pueblo, teología en conflicto, Centro de Estudios y Promoción Social,
México, 1983.
270. "Instrução", IX, 3; B. Kloppenburg, op. cit., p. 74; também R. Vekemans fala de "monismo
histórico" (op.cit.,p. 179). Em sua obra antiga Iglesia y mundo político. Sacerdocio y política,
Herder, Barcelona, 197 1, Vekemans; já dizia que "entre essas duas cidades (a espiritual e a
temporal) há uma relação escatológica de continuidade, mas esta se rompe quando o homem
absolutiza um pólo, a cidade terrena" (p. 97). Até aqui a formulação é adequada, mas a partir dela
nega-se que haja "uma só história" de onde possa se efetuar a luta entre os dois Reinos. A dita
unidade é denominada "monismo". Deve-se levar em conta igualmente a obra de A. López:
Trujillo, Liberación o revolución? Ed. Paulinas, Bogotá, 1975. Enquanto isso começava a se
produzir o fenômeno de uma teologia neoconservadora norte-americana que atacava a teologia da
libertação. Vide como exemplo Michael Novak, The Spirit of Democratic Capitalism, American
Enterprise Institute, New York, 1982; e em especial, do mesmo autor, Will it liberate? Questions
about Liberation Theology, Paulist Press, New York, 1986, onde a crítica é frontal. Os teólogos da
libertação seriam para M. Novak uns românticos pré-capitalistas, fruto de uma oligarquia
pré-industrial, que tinham saudade da comunidade primitiva pré-tecnológica. Será uma crítica "a
partir de trás".
103
da CNBB (Conferência de Bispos). Por último, planejou-se organizar
um encontro em Bogotá de todas as Comissões teológicas dos
episcopados latino-americanos. O próprio Cardeal J. Ratzinger e
Monsenhor Jérôme Hamer seguiram para a capital da Colômbia. A
presença de Dom Aloísio Lorscheíder impediu novamente um
julgamento adverso da teologia latino-americana. A Congregação para
a Doutrina da Fé se viu obrigada a se defrontar com a "condenação" via
Roma. Em julho de 1984 Dom Agnello Rossi falou sobre a existência
de uma "Instrução". Os teólogos de Concilium advertiram acerca da
inoportunidade do mencionado documento"271, em documento assinado
por Yves Congar. Pouco depois, Karl Rahner escreverá ao Cardeal de
Lima:
A teologia da libertação é inteiramente ortodoxa. Está consciente
de seu significado limitado dentro da globalidade da teologia
católica. Além do mais, está consciente - e com razão - de que a
voz dos pobres deve ser ouvida na teologia no contexto da 272
Igreja latinoamericana272 .
Apareceu então a "Instrução" e Leonardo Boff foi chamado a
Roma para responder a algumas indagações diante da Congregação
para a Doutrina da Fé. A imprensa mundial acolheu favoravelmente
pela primeira vez o questionamento da teologia da libertação. 0 Santo
Oficio enfrentava a "opinião pública" e perdia a batalha. Por isso
mudará de tática futu- ramente, como iremos ver.
Queremos assinalar duas questões teológicas relativas à
"Instrução"273. Em primeiro lugar, se a levarmos a sério,
teologicamente, a "Instrução" denota, paradoxalmente, muita fraqueza
argumentativa. Daí Juan Luis Segundo, o único que teve a paciência de
estudar a questão em profundidade, assim conclui:
A meu ver, e após a análise mais cuidadosa de que sou capaz, o
documento emanado dela (a Congregação para a Doutrina da
271. Vide documento em Cayetano De Lella, Cristianismo y Liberación ,p. 255.
272. lbid., p. 254-255.
273. Vide H.J.Venetz-H. Vorgrimler, Das Lehramt der Kirche und der Schrei der Armen, Exodus,
Freiburg (Suíça) 1985; revista lglesia Viva (Valência), n. 116-117 (1985) dedicada ao tema;
podem ser consultadas revistas como Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis), Páginas (Lima),
etc., dedicadas ao tema.
104
Fé) não apresentou ainda a prova de que a teologia da libertação,
em suas linhas mais básicas e fundamentais, conhecidas
universalmente, seja um "grave desvio da fé cristã" e, menos 274
ainda, uma negação prática da mesma ( ... ) 274.
Em segundo lugar, toda a acusação, em última instância, consiste em que
a teologia da libertação é "uma nova interpretação do cristianismo" (VI, 9)
emanada da colocação do marxismo como ponto de partida da reflexão
teológica. O que acontece na realidade com a relação marxismo e teologia da
libertação?
O Cardeal Ratzinger, em sua obra Rapporto sulla Fede, assim se
expressa:
A análise marxista da história e da sociedade foi considerada como
a única de caráter científico. isso significa que o mundo aparece
interpretado à luz do esquema da luta de classes e que a única
opção possível é a escolha entre capitalismo e marxismo ( ... ). 0
conceito bíblico do pobre oferece o ponto de partida para a
confusão estabelecida entre a imagem bíblica da história 275 e a
275
díalética marxista .
A relação marxismo-teologia da libertação é tão antiga como essa
teologia. Estudamos essa questão em outro trabalho e aqui somente
indicaremos algumas linhas gerais276 . Em primeiro lugar, o
274. Teologia de Ia liberación. Respuesta a] Cardenal Ratzinger, Ediciones Cristiandad, Madri, 1985,
p. 95. 0 teólogo conclui que a teologia quer dizer (que) "não há unia continuidade visível entre
diferentes expressões do magistério comum" (lbid., p. 94). Livro corajoso e necessário.
275. Colóquio com Vittorio Messori, Ed. Paulinos, Milão-Turim, 1985, p. 19 1.
276. Vide meus artigos "Teología de Ia Liberación y Marxismo em Cristianismo y Sociedad 98
(1988),p.37-60;e "Encuentro de cristianos y marxistas en América Latina", em Cristianismo y
sociedad 74 (1982), p. 19-36, aos quais; remetemos para um estudo mais aprofundado, Além disso,
vide Raúl Vidales, Práxis cristiana y mílitancio revolucionaria. Documentos, CEE, México, 1978
(muito valiosa recopilação de documentos sobre o diálogo marxistas-cristãos); Fernando Castillo,
Iglesia liberadora y política, Educación y comunicaciones, Santiago do Chile, 1986, cap. VI: "Los
cristianos, Ia liberación y el socialismo" (p. 157- 201); I Encontro latinoamericano, Los cristianos
y el socialismo, Siglo XXI, Buenos Aires, 1973; J.Ramos Regidor, Cristiani per il Socialismo.
Storia, problematica e prospettive, Mondadori, Milao, 1977; José Míguez Bonino, Christians and
marxists. Eerdmans, Grand Rapids, 1976. Uma crítica à dita possível relação em CELAM,
Socialismo y socialismo eu América Latina, Secretariado General, Bogotá, 1977, onde Monsenhor
López Trujillo escreve: "É admissivel que um sacerdote, angustiado com a dor dos pobres (sic),
sonhe com o socialismo ( ... ) mas que tal opinião se apresente como
uma conveniência ou necessidade geral para a Igreja como tal, ou para boa parte de nossas
comunidades, é demais! " (p. 3 7 1). Além disso: G. Girardi-C. Preve-J. Ramos Regidor, Teologia
della liberazione Sapere 2000, Milão, 1985.
105
tipo de marxismo usado pelos teólogos. Em nenhum caso se usa o
estalinismo, o materialismo dialético ou as posições dogmáticas
freqüentes da esquerda. Os autores citados pelos teólogos são: Marx
(em especial, o "jovem Marx"; pouca ou nenhuma referência a O
Capital, com exceção de F. Hinkelammert ou meus estudos recentes)277
Lukács, Gramsci, Bloch, e, em alguns casos, Althusser e a Escola de
Frankfurt. Entre os marxistas latino-americanos são usados J.C.
Mariátegui e o "Che" Guevara - em seu tema do "homem novo" e seu
marxismo ético e humanista. Esses autores são "usados" ainda de
maneira sumamente ponderada e por isso subsumidos de maneira
perfeitamente compatível com a fé cristã.
Examinando a questão no tocante a autores, buscando alguns
exemplos, notamos que Rubem Alves se inspira mais em Marcuse ou
Bloch (em Toward a Theology of Liberation de 1968), porém além
disso em Álvaro Vieira Pinto ou Paulo Freire - que
latino-americanizam seu discurso. Juan Luis Segundo, por exemplo,
passa de uma sociologia funcionalista, no início dos anos sessenta, para
a utilização da teoria da ideologia - ainda que de amplo espectro
teórico. G. Gutiérrez cita Gramsci em sua primeira nota (da Teología
de Ia Liberación) e do "Che" Guevara recorda um texto sobre o amor
(o verdadeiro revolucionário éguiado por grandes sentimentos de
amor") 278. Menciona ao longo do texto quase todos os autores mar
xistas antes anotados, quer dizer, os marxistas críticos e não
dogmáticos. Francisco Miranda, em sua obra Marx y Ia Biblia 279 , da
mesma maneira. Mas, em todos os casos, a chamada "Teoria da
Dependência" forneceu ao marxismo etico e antropológico um contexto
latino-americano concreto. Em Medellín fala-se da dependência: a
causa da pobreza dos países subdesenvolvidos e periféricos. A contínua
e estrutural "transferência de valores" representa
277. Vide La producción teórica de Marx. Un comentado a los Grundrisse, Siglo XXI, México, 1985;
Hacia un Marx desconocido. Un comentaria a Ias Manuscritos del 61-63, Siglo XXI, México,
1988; ainda E1 último Marx (1863-1880), Siglo XXI, México, 1990, para concluir os comentários
das quatro redações de 0 Capital, e poder mostrar assim sua utilização por parte da teologia - em
um quarto volume que terá como título: La teología "metafórica" de Marx.
278. Op. cit., p. 3 1.
279. Edição particular, México, 1969; em Sígueme, Salamanca, 1972; em Orbis Books, New York,
1974. Livro famoso que continua sendo usado em todo o Terceiro Mundo.
106
um "pecado" de caráter mundial que determina todo outro tipo de
dominação. Mas essa dominação Norte-Sul não é única; há dominação
vertical capital-trabalho; ou erótico-social homem-mulher; ou domínio
ideológico-cultural (pais-filhos; estado ou cultura dominante-cultura
popular). Descobre-se assim a maneira de detectar concretamente e de
maneira objetiva o "pobre" em todas as suas dimensões.
A teologia da libertação nasce assim de uma verdadeira ruptura
epistemológica - não no sentido althusseriano - ao utilizar no discurso
teológico as categorias das ciências sociais críticas latino-americanas.
A partir dos critérios da fé, assim como Tomás de Aquino estudou
e reconstituiu as categorias aristotélicas para produzir teologia no
século XIII, da mesma maneira os teólogos latino-americanos estudam
e reconstituem as categorias das ciências sociais para produzir teologia
em fins do século XX, no mundo pobre e periférico, subdesenvolvido e
explorado.
A "Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação" de 22 de
março de 1986 nada acrescentou de novo, conquanto seu tom fosse
menos ofensivo que na primeira.
No livro de Frei Betto, Filel e a religião, o líder cubano chega a
declarar:
Creio que a grande importância histórica do que você denomina
teologia da libertação ( ... ) é precisamente sua profunda
repercussão nas concepções políticas dos cristãos. E eu diria algo
mais: o reencontro que significa dos cristãos de hoje com os
cristãos de ontem, daquele ontem longínquo, dos primeiros
séculos, quando surge o cristianismo depois de Cristo. Eu po~
deria definir ( ... ) a teologia da libertação como um reencontro do
cristianismo com as suas raízes, com a sua história mais bonita,
mais atrativa, mais heróica e mais gloriosa e de uma maneira tão
importante que obriga toda a esquerda da América Latina a
considerar este como um dos acontecimentos mais fundamentais
280
que ocorreram em nossa epoca
.
280. Brasiliense, Rio de janeiro23, 1987 (orig. Conselho de Estado, Havana, 1985).
107
O repto que vem de longe - desde o Informe Rockefeller de 1969 ou a
primeira "Declaração de Santa Fé" da equipe de Reagan em 1980 - é a
perseguição, às vezes velada, em outras explícita, da própria sociedade política
- desde os Estados Unidos até certos governos antipopulares latino-americanos.
Na E Declaração de Santa Fé lê-se:
É nesse contexto que deve ser entendida a Teologia da Libertação,
uma doutrina política disfarçada em crença religiosa com uma
significação antipapa e contrária à livre empresa, com o propósito
de enfraquecer a independência da sociedade com respeito ao
controle estatal. Trata-se de um retrocesso ao galicanismo do
século XVII, onde o direito divino dos reis pretendia su~ bordinar a
tradicionalmente independente Igreja. Desse modo observa-se a
inovação da doutrina marxista relacionada com um fenômeno
religioso e cultural de longa data281 .
NOVOS DESAFIOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÂ0 NO INíCIO DA
DÉCADA DE NOVENTA
No Encontro teológico do México de 1975 falou-se em empreender a tarefa
de fornecer à teologia da libertação uma exposição sistemática -ainda se falou
282
de um Mysterium Liberationis . A idéia ganhou forma graças ao impulso
generoso de Leonardo Boff, que convocou um primeiro encontro de mais de
cinqüenta teólogos em Petrópolis - depois se realizariam mais dois, em julho de
1984 e em janeiro de 1989 em S. Paulo. Essas reuniões serviram para lançar a
coleção "Teologia e Libertação", que incluirá tomos pequenos de umas 200
páginas - sobre o conteúdo dos tratados tradicionais da teologia (uns trinta
volumes), e outros vinte tomos sobre "Questões debatidas". Essa coleção é
endereçada aos estudantes de teologia (seminaristas, religiosas), leigos e
profissionais, líderes das comunidades, etc. Parece que foi essa coleção de
textos que preo
181. "Santa Fe II. Continúa el intervencionismo de Estados Unidos", em El Dia (México), "El Gallo
Ilustrado", 22 de janeiro de 1989, p. 7.
282. Ali expressamos: "Neste Encontro se principiou a organizar o trabalho teológico de uma
maneira mais sistemática e coerente, visando a produzir alguns trabalhos em equipe. A tarefa
futura a ser empreendida a partir desse Encontro é a de iniciar uma síntese-tentativa da teologia da
libertação. Isso pressuporá sua vinculação com a Ásia e a África e com alguns grupos dos Estados
Unidos" "Condicionamientos históricos de la reflexión teológica en América Latina", em
Liberación y cautiverio, p. 557-558).
108
cupou a Congregação para a Doutrina da Fé, que de imediato se
mobilizou para impedir a publicação de outros volumes. Num primeiro
momento, pressionou os editores (os Paulinos de Madri e Buenos Aires
e os Franciscanos de Petrópolis). Mas como a propriedade da coleção
era do CESEP (S. Paulo), entidade ecumênica, nada se pôde conseguir
por tal via. Tentaram nomear uma Comissão romana para vigiar a
coleção ou uma comissão do CELAM. Diante da clara defesa dos
direitos do teólogo reconhecidos pelo Direito Canônico e pelo Concílio
Vaticano II, por fim o Conselho Editorial283 decidiu não publicar os
tomos como formando uma coleção, mas sim como volumes
independentes. Assim começaram a ser editados ante as negativas da
Congregação.
Enquanto isso, o Papa João Paulo II abençoava o trabalho dos
bispos do Brasil em abril de 1986, e expressava que a teologia da
libertação "não só era oportuna como útil e necessária"284, na tradição
da teologia que se iniciara com os Padres Apostólicos e da Igreja, com
a teologia medieval e as que a sucederam. 0 Papa conferiu assim
àteologia da libertação categoria de teologia central na tradição eclesial.
Isso não impedirá que, de fato, pelo processo de "Restauração"
crescente que a Igreja sofre - sobretudo na nomeação de bispos
conservadores e de núncios que unanimemente se opõem à teologia da
libertação -, os teólogos que apóiam essa tradição de libertação sejam
sistematicamente excluídos das cátedras das universidades pontificias
(que devem ter a aprovação romana) ou dos cargos de ensino; que seja
mudada a orientação das revistas teológicas (como a Vida Nueva na
Espanha, ou de autoridades como a Revista Eclesiástica Brasileira antes
dirigida por Leonardo Boff), etc. De qualquer maneira, em 1988, por
fim, a coleção pôde aparecer - não a condenariam -, mas se restringiria
sua capacidade de circulação no seio da Igreja latino-americana.
283. Fazem parte: Leonardo Boff (Brasil), Sergio Torres (Chile), Gustavo Gutiérrez (Peru), José
Comblin (Brasil), Ronaldo Muñoz (Chile), Enrique Dussel (México), José 0, Beozzo (Brasil),
Pedro Trigo (Venezuela), Ivone Gebara (Brasil), Jon Sobrino (E Salvador), Virgilio Elizondo
(Estados Unidos), Juan Luis Segundo (Uruguai), como assessor de temas ecumênicos Julio de
Santa Ana (Brasil).
284. Carta do Papa João Paulo H aos bispos do Brasil (REB 46 [1986], p. 400).
109
Deve ser levado em conta que os destinatários exigem uma obra
inteligível, que sem perda do caráter científico seja entretanto
compreensível para o leitor que não possua cultura universitária. Isso,
evidentemente, é um risco mas que tinha que ser enfrentado - um risco
sobretudo pelas traduções para outras línguas, já que serão lidas por
acadêmicos e não por seus destinatários naturais na América Latina.
Entre os volumes surgidos da série I (Experiência de Deus e
Justiça), que funciona como introdução, foram editadas a Opção pelos
pobres de Jorge Pixley e Clodovis Boff 285 , que devia iniciar a coleção:
a reflexão teológica de libertação pressupõe uma opção prática prévia.
Ao Deus "verdadeiro" de Israel só se pode ascender a partir de uma
"opção pelos seus pobres", Não se ascende a Ele por "argumentos
teóricos", mas antes pelo caminho que seu Filho revelou para ascender
ao Pai: por um caminho prático. A práxis antecede a teoria. os pobres
são o início da teologia.
A história dos pobres é por isso igualmente introdutória. A obra de
Eduardo Hoornaert, A memória do povo cristão286 situa-se nessa lógica,
e é além disso de grande originalidade. Dizer-se, por exemplo, que com
Eusébio de Cesaréia começa a decadência da história da Igreja - porque
esta se clericaliza no triunfalismo da Cristandade constantiniana, e se
perde o cristianismo profético da Igreja primitiva -tem saudável
consistência. Por isso, é importante quando escreve no capítulo terceiro
sobre "A comunidade eclesial de base"..
A atual experiência eclesial de comunidades de base encontra
dificilmente modelos na história da igreja posterior ao século IV
( ... ). As atuais comunidades de base encontram nas primeiras
comunidades cristãs dos três primeiros séculos paralelismos 287
surpreendentes287 .
É uma "releitura" da história dos três primeiros séculos à luz da
experiência latino-americana atual - o que sempre fizeram os
285. Vozes, Petrópolis, 1987, 285 p. (Edições Paulinas, Madri-Buenos Aires, 1986).
286. Iguais editoriais e lugares, 1986, 308 p. (na edição brasileira).
287.lbid.,p. 137.
110
europeus em suas histórias da Igreja, e nós devíamos lê-Ias como "objetivas". 0
autor se refere à experiência de "marginalidade" do cristianismo prinútivo, à
missão, às relações homem-mulher, ao martírio todos temas atuais de nosso
continente latino-americano.
Da série II (0 Deus que liberta seu povo), podemos dizer que se inicia
com uma obra espiritual, comprometida, refletida.
O livro de Ronaldo Muñoz, O Deus dos cristãos288, exemplar em todos os
sentidos - desde o compromisso do teólogo com os explorados, como por sua
exposição teórica -, nos recorda:
A experiência de Deus como Deus - total, radical e transcendente
-atualiza-se e se renova na América Latina em nossa história
coletiva: a partir do que sofremos, do que desejamos e vamos
conquistando como povo, no nosso caminho mais consciente como
povo oprimido, onde também há sinais de vida, luta solidária e
esperança 289 ... Numa família de meu bairro operário de Santiago
me diziam tempos atrás: "É, magro, já aguachamos
(domesticamos) você no nosso bairro". ou seja, voce ia não e visita
entre nós, já podemos contar com você"290
A obra de Leonardo Boff, A Trindade: a sociedade e a libertação291 , não
consegue - como tem feito em outros de seus excelentes trabalhos - vincular o
mistério da Trindade com a opção pelos pobres, com a história dos explorados.
Não consegue argumentar convincentemente o próprio da teologia da libertação
em seu livro - é antes dogmaticamente tradicional; ainda Hegel o tornou mais
histórico e mostrando a contradição social assumida e superada na comunidade
transcendental divina da Trindade. Era uma tarefa difícil, mas esperamos que
ele a empreenda. Na Argentina, os militares têm suas mãos manchadas de
sangue de uma juventude assassinada na "guerra suja". Dizem que o referido
sangue "salva" a Pátria. O "pai" da perdição mata seu "filho" para salvar o
"espírito" da nação: "trindade" idólatra tão freqüente na América Latina? Um
"pai" que
288. 1987, 252 p. (na edição brasileira).
289. Op. cit., p. 20.
290. Ibid., p. 34.
291. 1986, 296 p.
111
pede o sacrifício do "filho", seu sangue para redimir o pecado, deve ser
um ídolo, um fetiche. Totem e tabu de Freud nos sugere que a morte do
"pai" une os irmãos no pacto originário social. Agora em troca é a
morte do "filho" que fundamenta o pacto social na América Latina.
Da mesma maneira, pouco existe na obra de José Comblin O
Espírito Santo e a libertação 292 sobre os carismas do Espírito na
renovação histórica, nas grandes mudanças sociais e ainda nas
revoluções. Morales y Pavón dizia em 1811, quando lutava em Cuautla
contra os espanhóis na guerra da emancipação: "0 Espírito Santo nos
despertou do sono em que estávamos mergulhados, para gritar para nós:
Que o Anáhuac seja livre! 293 Um excelente livro na tradição dos
tratados, referências à América Latina 294 ; mas no entanto seria
necessário compor uma teologia do Espírito Santo na linha da
libertação.
Pedro Trigo escreve Criação e História 295que a exemplo das obras
anteriores sempre se refere a modelos latino-americanos; coloca a
questão da criação na história, primeiramente, da fé na criação, do mal
nela, da criação da natureza e da criação da pessoa. Cabe indagar de
novo qual é a especificidade do tratado da criação na teologia da
libertação, ao recordar que a mãe dos Macabeus enuncia pela primeira
vez o relato de uma criação "desde o não-ente" (2Mc 7,2 8) - que
Tertuliano posteriormente traduzirá como "ex-nihilo " (a partir do nada)
-, quando os dominadores helenistas estão torturando seu sétimo filho;
podemos concluir no dito tratado que a Teologia da Libertação indica,
exatamente, a finitude de toda ordem política também a ordem vigente
domínadora - e a possibilidade de "recriar" novas ordens políticas
futuras, utópicas, como mediações na realização do Reino de Deus. A
relação criação-política é o ponto específico dessa teologia latinoamericana. Por isso, dessacralização, ateização da ordem vigente,
desfetichização dos dominadores (ainda que se denomi-
292. 1987, 231 p.
293. Vide Augustín Churruca Peláez, "O pensamento de Morelos nas lutas pela Independência do
México ", em História da Teologia na América Latina, Paulinas, S. Paulo, 19 8 1, p. 75 -10 6.
294. Por exemplo, p. 37 s.
295. 1988, 344 p.
112
nem cristãos na América Latina ou nos Estados Unidos): a luta dos profetas
contra os ídolos.
A Série III (A libertação na história) editou a obra de J. Comblin:
Antropologia cristã 296 , que aborda os temas clássicos do tratado, talvez
também faltando-lhe ressaltar mais o aspecto da antropologia da miséria na
sociedade capitalista periférica, o tema da corporalidade, da sensibilidade
sofredora, o tema do martírio dessa mesma corporalidade, a tortura. Quer dizer,
antropologia e política concreta: o "pobre" como ponto de partida e referência
contínua das determinações antropológicas latino-americanas.
A obra de Antônio Moser e Bernardino Leers, Teologia moral. Impasses e
alternativas297 , retoma a partir da América Latina o melhor das teologias
morais européias. Quando se fala das "Tentativas latinoamericanas" 298 não se
faz nenhuma referência aos intentos de fundar uma ética da libertação, e
quando se fala da questão do empobrecimento parece-nos que as categorias
sociológicas e econômicas (as "ciências sociais" tão presentes na Teologia da
Libertação) estão ausentes. Mas, especialmente no capítulo décimo, sobre
"Teologia moral e uma sociedade nova"299 , se incide num "terceirismo": nem
capitalismo nem marxismo, mas a moral cristã, tese francamente contrária à
Teologia da Libertação.
Minha Ética comunitária300 tenta situar o tratado teológico da moral social
dentro do contexto latino-americano, e usando estritamente uma categorização
econômico-política que tem sua origem no trabalho teórico de Marx - preciso,
estrito - mas sem cair no fetichismo das palavras. Creio que assim se demonstra
a possibilidade de uma teologia estritamente bíblica, "tradicional" (Aristóteles,
Santo Tomás, Encíclicas, papais), e, no entanto, profundamente crítica da
realidade do pecado estrutural nos países do capitalismo periférico.
296. 1985, 284 p,
297. 1987, 308 p.
298. p. 72s.
299. p. 251 s.
300. 1986, 285 p.
113
A obra de Francisco Taborda, Sacramentos, práxis e festa301, de
excelente feitura, poderia novamente fazer a indagação: qual é a
especificidade de um tratado do sacramento-festa na Teologia da
Libertação? Como expressava Franz Rosenzweig, "todo povo celebra
somente suas festas de libertação". Paradoxalmente nesse pequeno
tratado se esquece que a festa do deserto e todas as festas trazem
referência a alguma escravidão como passado, a uma libertação como
presente (quando se institui a festa), e no futuro como recordação da
libertação passada. (histórica, como a libertação do Egito, na Hagadá,
na Eucaristia), motor da esperança da libertação futura (histórica: em
projetos históricos; escatológica na plena realização do Reino).
Sacramentos de iniciação. Água e Espírito de Liberdade, de Víctor
Codina e Diego Irarrázaval302, é uma obra que corresponde às
definições da coleção (pequena, quase 200 páginas, clara, com titulação
contínua, etc.), onde a referência à América Latina é constitutiva do
discurso de libertação. Privilegia-se com razão o popular; assim
mesmo, ter-se-ia privilegiado, talvez, o político, o econômico, como
consagração "profética".
Noé Zevallos e Víctor Codina escreveram Vida religiosa. História
e teologia303 uma obra essencial. Talvez tivesse ganho em unidade a
história da vida religiosa européia, latino-americana e da teologia da
vida religiosa se a tivesse exposto como uma história nas três frentes
(pelo menos desde o século XVI). Teria sido interessante o estudo da
reforma tão profunda de algumas comunidades na América Latina
posteriores a Medellín, para mostrar concretamente a impressionante
relevância das religiosas e dos religiosos na renovação da Igreja em
nosso continente desde 1968.
A obra de J.B. Libânio e Maria C.L. Bingemer, Escatologia cristã
, onde se colocam as questões tradicionais desse tratado, deixa, no
entanto, a desejar pela falta de uma exposição da relação entre o
304
301. 1987, 191 p.
302. 1987, 196 p.
303. 1987, 203 p,
304.1995, 302 p.
114
projeto do sistema vigente (político, patriarcalista, etc.), o "próximo"
projeto histórico de libertação (por exemplo um projeto socialista com
relação ao capitalista), e ambos "julgados" a partir do projeto
escatológico. O ponto específico da Teologia da Libertação é,
justamente, a articulação dos projetos políticos (feministas,
pedagógicos, etc.) de libertação e o projeto do Reino. Deve então ser
completado o discurso iniciado.
Na Série IV (A Igreja, sacramento de libertação), já foi lançado o
livro de R. Antoncich e J.M. Munárriz Ensino social do Igreja305 uma
questão certamente muito abordada na teologia da libertação.
Novamente, na ótica de alguns, pareceria que a tese da teologia
latinoamericana não é situada com clareza. É sabido ser dificil situar o
lugar da doutrina social entre o evangelho, a teologia da libertação, o
projeto político que possui autonomia propria e a decisão concreta da
comunidade cristã. Na Teologia da Libertação a questão deverá ainda
ser debatida.
As teólogas Ivone Gebara e Maria C.L. Bingemer escrevem Maria,
Mãe de Deus e Mãe dos pobres. Um ensaio a partir da mulher e da América
306
Latina com tradução espanhola de título mudado . É uma obra de
pioneiras e referencial da Teologia da Libertação da mulher na América
Latina. Dever-se-ia, como pequeno detalhe, ter insistido um pouco mais
na função política de Maria (como, por exemplo, o fato de que a
Virgem de Guadalupe foi o estandarte do exército da emancipação com
Hidalgo no México, estandarte igualmente de Zapata ao ocupar
Cuernavaca ou de César Chaves nos sindicatos "chicanos" da
Califórnia; ou que a Virgen del. Carmen foi a "generala" do exército de
San Martín na libertação do Chile e do Peru).
A obra madura de Júlio de Santa Ana, Ecumenísmo e libertação.
Reflexões sobre a relação entre a unidade cristã e o Reino de Deus307 aborda
o tema tal como a coleção esperava. É uma obra teológica e ao mesmo
tempo histórica - tão necessaria para o público católico latinoamericano. Na linha da libertação talvez se pudesse acrescentar um ca
305. Título da obra sobre a doutrina social da Igreja. 1986, 286 p.
306. 1987, 208 p.
307. 1987, 317 p.
115
pítulo, sobre a contribuição protestante no processo de libertação
latino-americana - tanto da parte dos liberais do século XIX que
ajudaram a superar a intolerância e o conservadorismo, como dos
revolucionários, que participaram na Revolução mexicana de 19 10, ou
na revolução centro-americana ou do-Caribe: seriam exemplos a não se
omitir.
As Séries V e VII não foram ainda lançadas e se ocuparão de
muitas "questões disputadas" latino-americanas. Só foi publicado até
agora o trabalho de Marcelo de Barros e José Luis Caravias Teologia
da terra308 , que trata de uma questão crucial latino-americana
contemporânea. É de se esperar que os outros volumes dessa parte mais
concreta da coleção resgatem o nível mais objetivo e crítico, que ainda
não se faz muito presente na parte mais abstrata das quatro primeiras
séries; ainda que seja de desejar que também essas primeiras séries
completem seus textos - e corrijam outros -, depois de levar em conta
as críticas que necessariamente serão feitas, a fim de melhorar a
coleção a partir do ponto concreto da "especificidade" da Teologia da
Libertação.
É por isso que a coleção "Teologia e Libertação" é um ponto de
chegada - onde os antigos e novos teólogos da libertação vão abarcando
todos os temas tradicionais da teologia, e inevitavelmente terão que
contar com o diálogo e a crítica em terrenos nunca explorados
sistematicamente, mas, ao mesmo tempo, um ponto de partida - já que
se descobrem novos territórios temáticos, a partir de uma práxis sempre
mutável. A produção futura o dirá.
308. 1988, 439 páginas (obra que superou em muito as 200 páginas a que se propunham os editores,
por tratar-se de pequenas obras "introdutórias"). Essa é uma das poucas obras em que Marx
écitado (autocensura que prejudica a coleção devido à pressão de grupos teológicos do Vaticano e
da América latina). No entanto, não se estende sobre o "pecado" no que tange ao arrendamento da
terra como distribuição da mais-valia, em op. cit., p. 57s (Veja-se minha obra Hacia un Marx
desconocido, Siglo XXI, México, 1988, capitulo 9). Os autores têm dúvidas acerca da correção que
Marx certamente fez desde 1873 enquanto que 0 Capital (sua obra central nas edições alemãs de
1867 e 1872-1873) só era válido para a "Europa Ocidental" (tal como o expressa a edição francesa
da mencionada obra de 1875). Vide minha obra El último Marx, 1863-1882, editada não faz milito
tempo); e por isso não só era válido O Capital para a Rússia, como, por suposição, tampouco teria
sido válido, por extensão muito mais evidente, para a América Latina. A doutrina marxista latinoamericana da renda e da terra exige novos desdobramentos.
116
Na verdade, a teologia da libertação no início da década de 1990
enfrenta certamente novos desafios, muito diferentes dos que enfrentou
em fins da década de 1960, quando teve origem. Ficar "dormindo sobre
os louros" - como reza o dito popular -, seria sumamente perigoso não
só para ela, como principalmente para o povo do qual é sua expressão
sincera.
Pode-se entender que esse tipo de interpretação tende a perseguir
os teólogos da libertação e a incluí-los nas listas de pessoas 11 perigosas"
nos serviços de inteligência dos exércitos latinoamericanos, dos órgãos
policiais, etc. O certo é que, de qualquer maneira, a teologia da
libertação enfrenta o desafio de fundamentar a práxis de libertação dos
povos latino-americanos, ainda que isso a coloque no banco dos réus
dos governos que oprimem os pobres.
Por outro lado, o processo de "Restauração" padecido pela Igreja
no mundo inteiro, mas especialmente na América Latina, pela
nomeação unilateral de somente bispos conservadores - ação praticada
de maneira não compartilhada (de cima para baixo e com o julgamento
somente dos Núncios, e nem sequer dos episcopados nacionais, como é
bem sabido pelos exemplos da Holanda, da Áustria, o conhecido caso
do bispo de Colônia, todos os novos bispos do Brasil, etc.) -, conduzirá
a teologia da libertação em futuro próximo a afrontar uma situação
mais dificil do que no passado. Diante disso deve-se divulgar
sistematicamente - através da mídia - toda ação injusta, e se deverá
defender os "direitos humanos" na própria Igreja - usando até os
recursos do direito canÔnico - como se fazia ante os governos de
ditadura militar na década de setenta, para lembrar aos que nomeiam os
bispos que a tradição mais antiga - e até não mais de meio século atrás
-consistia, no início e durante o primeiro milênio, na eleição dos bispos
pela comunidade; posteriormente Roma interveio - só na Igreja latina -,
mas também os reis e posteriormente os governos nacionais. Os bispos
sempre propunham os seus sucessores. o fato de que se nomeiem
bispos levando em consideração somente a avaliação dos membros da
Cúria Romana é um mecanismo novo - e contra a tradição e a confiança
mínima nas igrejas locais.
A existência na América Latina de frágeis democracias, que são o
resultado da crise das ditaduras militares de segurança nacional e da
imensa dívida externa (contraída por essas ditaduras contra a
117
vontade do povo, sendo que é este agora quem deve pagá-la) e da crise
igualmente do projeto neoconservador de Reagan e Bush, fornece por
um lado mais "espaço" político e permite trabalhar na organização das
Comunidades Eclesiais de Base. Mas, por outro lado, coloca-se a
indagação se o ciclo não tornará a se repetir: liberdade aparente (como
com o "desenvolvimentismo" de 1955), organização popular, repressão
das organizações populares e ditadura militar (como no Brasil desde
1964), e novamente "democracias" formais. Quer dizer, é uma coisa
responsável organizar um povo para que seja novamente martirizado?
outro desafio para a teologia é a exigência de crescer no campo da
exegese bíblica e sua leitura popular; na história da Igreja; em todos os
tratados esboçados na coleção "Teologia e Libertação"309. Mas crescer
igualmente em profundidade, metodologicamente. Diante da crise das
ciências sociais na América Latina (como por exemplo as formulações
da teoria da dependência), será necessário então redefinir a maneira de
"usá-las" numa teologia que, sem incidir em critérios academicistas,
deve no entanto ser "científica" ainda no sentido de S. Tomás de
Aquino. A crítica que pode advir das teologias irmãs (da África e da
Ásia), ou das teologias do "centro" (Estados Unidos ou Europa), deve
ser recebida com beneplácito a fim de progredir em exatidão e clareza.
Desde novembro de 1989 há um novo desafio. A crise do
socialismo real, tanto na Europa Oriental como na própria ex-União
Soviética.
Alguns teólogos, como Tischner na Polônia, acreditam que a crise
do socialismo e do marxismo como teoria seria igualmente a crise da
Teologia da Libertação. No entanto, e isso será visto claramente nos
próximos decênios, a teologia da libertação não depende absolutamente
do marxismo como sua inspiração principal. Tem,
309. Desde 1975 se pensou em editar um tratado conjunto sobre Teologia da Libertação. Leonardo
Boff lançou novamente a idéia em 1981 e assim se começou a editar uma coleção de 50 volumes
(os diversos tratados tradicionais de teologia sob inspiração da Teologia da Libertação). Surgiram
muitos volumes editados pela Editora Vozes (Petrópolis, Brasil), Paulinos (Buenos Aires), Patmos
(Alemanha), Orbis Books (Nova York), Burns and Oates (Kent), Cerf (Paris), Cittadella (Assis),
etc.
118
pelo contrário, a capacidade de revitalizá-lo, se fosse necessário e em
vista do projeto histórico de libertação dos pobres, dos oprimidos no
continente latino-americano310 .
E, por último, diante do processo gigantesco de "empobrecimento"
da América Latina, dentro de um modelo de capitalismo periférico
recessivo - exigido pelo FMI e o BM -, a teologia deverá permanecer
fiel em saber exprimir o brado dos oprimidos. É uma tarefa ineludível e
tratase de uma responsabilidade histórica.
310. De nossa parte concluímos um volume terceiro sobre a obra madura de Marx (El último Marx
[1863-1882], já mencionado), que abre a porta para uma reinterpretação completa da obra de
Marx.
119
GLOSSARIO
CEHILA: Comissão de Estudos de História da Igreja na, América Latina.
CELAM: Conselho do Episcopado Latino-americano.
DESAL: Centro para o Desenvolvimento Econômico e Social da América
Latina.
ILADES: Instituto Latino-americano de Doutrinas e Estudos Sociais.
IPLA: Instituto Pastoral Latino-americano.
F5LN: Frente Sandinista de Libertação Nacional.
FUMEC: Movimento Estudantil Cristão Protestante.
JEC: Juventude Estudantil Católica.
JOC: Juventude Operária Católica.
JUC: Juventude Universitária Católica.
MAPU: Movimento de Ação Popular Unitária.
UCA: Universidade Centro-americana.
UNE: União Nacional dos Estudantes (Brasil).
120
chamando atenção para os desafios
lançados à teologia da libertação.
Este livro deve ser lido como uma
síntese que pretende fazer o leitor
ir além, pesquisar e estudar melhor
o assunto. A grande contribuição
deste livro é que nos dá critérios
para este que fazer históricoteológico. (JC)
0 autor
Enrique Dussel é argentino de
Mendonza. Formou-se em História
e Teologia na França e Alemanha.
Perseguido durante o regime militar
argentino, radicou-se no México.
Foi durante muitos anos o
presidente da Comissão de História
da Igreja LatinoAmericana
(CEHILA). Durante três décadas
publicou mais de trinta trabalhos
dedicados principalmente à
reflexão sobre a história da Igreja
na AméricaLatina. Entre suas obras
mais importantes estão: História da
Igreja na América Latina (1967),
Para uma ética da libertação
latino-americana (1973), Filosofia
da libertação (1976), 0 último
Marx (1990), 1492: 0 encubrimento
do outro (1994), Ética da
libertação (1999). Vários outros
livros seus estão traduzidos e
publicados pela Editora Vozes.
1
No início da década de 1990 a teologia da libertação enfrentou novos
desafios ninito diferentes dos que encontrou na década de 1960, quando
teve origem. Alguns teólogos conservadores acreditam que a crise do
socialismo e do marxismo como teoria seria também a crise da teologia da
libertação, Os próximos decênios provarão que a teologia da libertação não
depende do marxisino como sua fonte inspiradora. Sua verdadeira fonte é
o opção pelos pobres.

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