O Globo – Segundo Caderno

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O Globo – Segundo Caderno
O GLOBO
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SEGUNDO CADERNO
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PRETO/BRANCO
PÁGINA 2 - Edição: 29/05/2012 - Impresso: 28/05/2012 — 16: 29 h
SEGUNDO CADERNO
Terça-feira, 29 de maio de 2012
O GLOBO
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Fotos de divulgação
PELO MUNDO
CRISTINA RUIZ-KELLERSMANN, de Berlim
Solta os cachorros
Basta um passeio pelas ruas para se constatar que
os berlinenses são apaixonados por cachorros.
Existe até um bar na cidade com cerveja para cães.
O Gulliver, no bairro de Steglitz, aceita famílias e
seus cachorros e serve aos peludos uma cerveja especial, a Schwanzwedler, sem álcool, sem gás e com
sabor de carne. Os cães alemães são mesmo privilegiados. Onde mais é permitida a presença de cachorro em restaurante, com direito a tigela de água
e outros mimos? Muitos deles acompanham os donos dia e noite, seja no cabeleireiro, no trabalho ou
ao visitar amigos. A entrada de cachorros em lojas
e outros locais é geralmente permitida, não há uma
regra única, então fica por conta de cada lugar.
Cachorro em Berlim tem direito a tomar condução, mas,
se for grandalhão, paga passagem: com desconto, como os
estudantes e os desempregados. E como qualquer cidadão, se for surpreendido sem
passagem, paga multa. Só não
tem direito a assento. O que
se vê nos trens é o seguinte:
se o cachorro é grande ou médio ele costuma ficar deitado
embaixo do banco; os pequenos vão muitas vezes no colo
do dono; mas se for cachorro
de punk ou mendigo, fica no
meio do caminho mesmo e ai
de quem reclamar.
Na Alemanha, cachorro paga imposto. Gato, por exemplo, não paga. A despesa
anual de um cãozinho de estimação saudável beira entre
C 900 e C 1.200, aí somados
Hundesteuer (imposto sobre
cachorro), alimentação, vacina e vermicidas. A taxa de imposto sobre cão em Berlim é
cobrada uma vez por ano e
custa C 120. Cachorros treinados como guias para cegos e
salva-vidas são isentos. No caso dos cãezinhos
adotados de lares
de animais, os donos ganham isenção no primeiro
ano. No mais, todo mundo paga,
até estudantes,
punks e desempregados.
Os custos de
um cão podem
ser muito maiores. Fora alimentação, tosa e veterinário, tem quem gaste com
artigos de luxo como roupas,
acessórios, mobiliário, cosmética e ainda o leve para fazer análise, acupuntura, tratamento dentário e aula de dança. Loucura ou não, fato é que
existe toda uma estrutura e
indústria a serviço do povo
canino. Para quem trabalha
fora e não pode levar o cão ou
quem mora sozinho e fica
doente, existem dogsitters (babás de cachorro), dogwalkers
(pessoas que levam o cachorro para passear) e hotéis.
Como se vê, alimentar um
cachorro não é suficiente,
eles também precisam de cuidados especiais. A VDH, o
Kennel Club alemão, é o órgão
que assegura os direitos dos
cães e os interesses de criadores. Foi esta organização
que criou a Hundeführeschein (a carteira de motorista
para cães), documento que
atesta a guarda do animal e é
concedido após um curso
preparatório. Além de informações sobre a saúde do cão,
são ensinadas medidas de segurança e civilidade para cão
e dono. Esta carteira não é
obrigatória, mas o assunto
anda em discussão.
E quando o cão morre? Os
alemães criam seus cachorros
com muito amor e cuidado.
Eles são para muitos parte da
família, ou mesmo a única
companhia. Mas, como um
cão raramente passa dos 15
anos, mais cedo ou mais tarde
chega o dia da sua morte. A
questão é o que fazer. Enter-
rar no cemitério de animais,
com direito a lápide, ou cremar e guardar as cinzas em
uma urna? Tudo isso é possível, mas esses serviços são
caros. Como nem toda família
tem condições de arcar com
estas despesas, uma das saídas é pagar uma taxa e entregar o corpo para o veterinário. O que irá acontecer com o
corpo do bichinho, cremação
ou aproveitamento na indústria, depende da causa da
morte. Muitos viram sabão ou
farinha de osso.
Estima-se mais de 130 mil
cachorros vivendo na cidade, incluindo o número de
cães “sem papel”, em torno
de 33 mil. Um fato curioso é
que não se veem vira-latas
perdidos, perambulando
pelas ruas. E quando um cachorro é encontrado abandonado, é levado imediatamente ao Lar dos Animais.
Lá, cachorros, gatos e outros animais são alimentados, examinados e disponibilizados para adoção. No
Tierheim de Berlim, o maior
abrigo de animais da Europa,
vivem cerca de
dez mil bichos,
de todos os tipos e tamanhos.
Todo dia tem bicho chegando e,
para dar lugar
aos novatos, é
importante que
outros sejam
adotados.
Os bichinhos
de estimação são
tão queridos que muitas vezes famílias dividem a guarda
de um cachorro. Uma amiga
minha mesmo acabou de
comprar um perdigueiro português para dividir com um
casal de amigos. Como ela e o
marido viajam muito e não
podem levar o cão a tiracolo
o tempo todo, esta foi uma
boa solução.
Na maioria dos casos, os
problemas causados pelos
cachorros são culpa dos donos. Existe uma séria questão
nas calçadas da cidade: a
quantidade de cocô. Mesmo
com latas de lixo especiais
com saquinhos de plásticos
distribuídos de graça, simplesmente muitos donos não
recolhem as fezes de seus
cãozinhos. Esta é uma lei que
as pessoas aqui não respeitam, pois há cocô por toda
parte. Ainda bem que entram
em ação diariamente uns tratores poderosos, tipo um aspirador de pó gigante, que fazem o possível para livrar a
cidade da sujeira.
Gatos, papagaios, camaleões, macacos, aranhas,
hamsters, coelhos e até serpentes aparecem na lista de
animais que vivem domesticados na Alemanha, mas esses a gente não vê na rua. O
máximo que acontece é cruzar com bichos selvagens
dos parques, tipo raposas e
lebres, ou com um gato fujão. Mas, desde que estes
gatos atravessem na sua
frente da direita para a esquerda, tudo certo.
Loucura ou
não, fato é que
existe toda
uma estrutura
e indústria
a serviço do
povo canino
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA
PELO MUNDO
PELO MUNDO
Hermano
José Miguel
Francisco
Felipe
Cristina Ruiz,
Eduardo Graça,
Vianna
Wisnik
Bosco
Hirsch
de Berlim
de Nova York
Eduardo Levy,
de Los Angeles
DOMINGO
Caetano
Veloso
CHARLIZE THERON é a Rainha em “Branca de Neve e o Caçador”, misto de épico e filme de ação: “A beleza é posta em questão a cada momento”, diz
Branca de Neve vai à luta em
releitura do clássico infantil
Charlize Theron e Kristen Stewart falam do filme que estreia sexta-feira
cinema, ocorre todos os dias e
em todas as profissões.
A inocência de Branca de Neve também atraiu Kristen
Stewart. A atriz da saga “Crespúsculo” e de “Na estrada”, de
Walter Salles, considera o papel
um “grande desafio”, por ter como eixo a ausência de um sentimento comum a todos:
— Ela é absolutamente desprovida de vaidade, e é impossível alguém não ter vaidade.
Mas o que o filme realmente
aponta é a natureza mórbida e
competitiva desse sentimento,
a ideia de usar a beleza como
arma, e muita gente faz isso o
tempo todo. Talvez por isso eu
tenha me interessado tanto pela
abordagem dessa história.
Luiz Felipe Reis
[email protected]
Enviado Especial • WEST SUSSEX
B
astam alguns segundos à frente da tela para notar que o lendário conto de fadas dos
Irmãos Grimm foi tomado apenas como ponto de partida para
“Branca de Neve e o Caçador”,
que estreia no Rio nesta sextafeira. Assim como diversas outras adaptações e atualizações
cinematográficas da história,
passando pela clássica releitura
da Disney que sedimentou as
formas dos personagens no
imaginário mundial, o novo longa elege uma dinâmica, um tratamento estético, um gênero e
um eixo temático particulares.
Resumindo: a fita dirigida pelo estreante Rupert Sanders pode ser definida como mescla de
aventura épica com filme de
ação, cuja narrativa não se dá
predominantemente nem por
uma investigação sobre o arquétipo da pureza da Branca de
Neve e nem pela vilania da Rainha Ravenna, mas pelo que o famoso “espelho, espelho meu”
indica: a busca da beleza, na
forma e no conteúdo.
— Criamos a nossa versão da
história. Diferente da tradicional, mas respeitando os elementos que a fizeram sobreviver por
tanto tempo — diz Sanders, em
entrevista para divulgar o filme
em West Sussex, na Inglaterra.
Ao longo das mais de duas
horas do filme, a beleza é, ao
mesmo tempo, protagonista e
objeto de cobiça. O esmero estético parte da mente de um jovem diretor com extensa carreira publicitária, que costura habilidosamente as belíssimas externas capturadas pela fotografia de Greig Fraser a efeitos especiais de alta tecnologia.
— Tive liberdade absoluta
para ousar visualmente. Se você fica apegado à visão tradicional, dificilmente cria algo que
valoriza a imaginação. Queríamos construir uma aventura
épica, fantasiosa, e não um registro histórico.
A beleza também está estampada em cada traço das exuberantes feições do elenco de estrelas, mas, sobretudo, no que
motiva o embate central da trama, que polariza a Branca de
KRISTEN STEWART vive Branca de Neve no longa de Rupert Sanders
Neve interpretada por uma cândida Kristen Stewart e a Rainha
incorporada malignamente no
corpo e nos olhos diabólicos de
Charlize Teron.
— Enquanto Branca de Neve
é a síntese de uma vida e de um
coração pulsantes, a Rainha é
o contrário, alguém que passa
a vida tentando viver e sobreviver, incapaz de saborear o
que tem — compara o diretor.
— Não escolhemos Kristen
apenas por sua beleza, mas pelo magnetismo que a aproxima
da personagem, uma espécie
de messias que se conecta espiritualmente às pessoas e as
congrega para a missão de retomar o reino de seu pai.
A história começa quando
Ravenna é encontrada viva após
uma batalha. Levada à corte do
Rei Magnus (Noah Huntley), torna-se sua esposa, mas, em seguida, o assassina. Ao assumir o
trono, a vaidade a leva não apenas a buscar a manutenção do
poder, mas a beleza da juventu-
de. Para isso, depende de características que não tem. É da pureza e do espírito casto de outras mulheres que ela se alimenta. Entre suas prisioneiras, Branca de Neve é a única capaz de
garantir a eternidade da beleza
que tanto cobiça.
— A beleza é posta em questão a cada momento. Eu mesma
fiz de tudo para entrar num dos
vestidos da Rainha, me olhar no
espelho e me sentir bela — confessa Charlize.
A atriz acredita que a abordagem do diretor reflete questões
atuais da sociedade.
— Com certeza a sociedade
em que vivemos não facilita as
coisas para as mulheres. Ela faz
com que o envelhecimento se
torne um problema, uma coisa
a ser evitada a qualquer custo
— diz. — Como atriz, é claro
que, às vezes, a beleza também
pode ser um problema, no sentido de que temos que provar a
nossa capacidade, mas acho
que isso não é exclusividade no
Kristen, entre estrela e atriz
Na história, Branca de Neve
se une aos sete anões, ao caçador Eric (Chris Hemsworth) e
ao príncipe William (Sam Claflin) para se livrar das investidas
de Ravenna e recuperar o trono,
em batalhas que fazem dela
uma heroína de filme de ação.
— Trabalhamos para redescobrir e reinventar uma personagem clássica. A primeira premissa sustenta que ela é uma
pessoa boa e pura, mas depois
encontramos aspectos menos
previsíveis. Não se trata de uma
garota indefesa, mas de alguém
que lidera um batalhão de homens. Gosto dessa confusão de
sentimentos, das dúvidas que
atravessa por ir entendendo aos
poucos sua missão. Ela sabe
que tem algo especial, mas, na
verdade, ainda não sabe o que é
ou como agir, até que no fim tudo começa a fazer sentido.
Estrela ascendente da maior
indústria cinematográfica do
mundo, e cada vez mais à vontade como a protagonista de
blockbusters, Kristen faz questão
de se colocar à parte da fogueira de vaidades e aparências que
guia a indústria do entretenimento e de reafirmar seu compromisso com o cinema.
— Continuarei a fazer o que
sempre fiz, que é atuar. Nunca
me senti insegura quanto a isso, mas, sim, incomodada
com a commodity por trás
dessa história de ser uma estrela, e não uma atriz. n
O repórter viajou a convite da Universal Pictures
Maré cheia • Continuação da página 1
A
diretora teatral
Isabel Penoni viveu a passagem
do “contexto de
financiamento
social” (as oficinas) para o cultural. Em 2006,
após seis anos atuando na
Maré, criou a Cia. Marginal,
hoje com seis atores, um músico e apresentações lotadas
fora do complexo de favelas.
Depois de “Qual é a nossa cara?” e “Ô, Lili”, o grupo ensaia
neste ano seu maior projeto,
“Em trânsito”, que será encenado em vagões de trens da
Supervia em movimento.
— Desde o início buscamos
gente de fora para trabalhar
conosco, como a dramaturga
Rosyane Trotta, professora da
UNI-Rio. E agora, pela primeira
vez, vamos partir de um material literário, a “Odisseia”, de
Homero — conta Isabel.
Nessa via cultural de mão
dupla, grupos musicais têm ultrapassado as fronteiras da favela. São os casos, dentre outros, das bandas de rock Algoz,
Café Frio, Levante e D’Locks e
do grupo de samba Nova Raiz.
O cineasta Cadu Barcelos, que
também é músico e tem a banda Funk Club, criou com Renato Cafuzo e Jefferson Vasconcelos a produtora Palafita, para impulsionar os artistas da
Maré. Já cuida de três grupos.
— Não temos dinheiro, mas
temos capital humano. E fazemos conexões entre os nossos
trabalhos — diz Paulo Barros,
que dirigiu o clipe da Algoz, cujo produtor é o músico Klaus
Grunwald, ambos da Maré.
Localizada na fronteira entre
comunidades em que o tráfico
de drogas é controlado por facções diferentes, a Lona Cultural
Herbert Vianna — cogestão entre a Redes de Desenvolvimento
da Maré e a prefeitura — é palco de muitos encontros, como
um, mensal, de bandas de rock.
Já no Morro do Timbau, o sarau
que Zé Toré organiza desde os
anos 1980 agrupa música, cinema, teatro, circo e literatura. O
próximo será em 6 de julho.
— Mostrar os trabalhos fora
da favela ainda é árduo. E precisam saber que não é só discurso de favela o que há aqui —
diz a escritora Adriana Kairós,
que já publicou dois livros e organizou duas antologias dentro
do projeto Alepa (A Literatura
dos Espaços Populares Agora).
E o “discurso de favela” se
torna mais criativo. O fotógrafo e artista plástico Davi Marcos, de 33 anos, participou do
primeiro “Travessias”, da Bela
Maré, expondo fotos de moradores, em tamanho natural,
nas esquinas. Uma delas, no
rosto, foi atingida por uma bala
de fuzil. Continuou exposta. n