01 - Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape

Transcrição

01 - Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape
nova cartografia social
dos povos e comunidades
tradicionais do brasil São Paulo
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Comunidades tradicionais
caiçaras da Jureia, IguapePeruibe
União dos Moradores da Jureia
Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape- Peruibe-SP
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Reunião na
comunidade do
Barro Branco 2012.
Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil
SÉRIE Povos e comunidades tradicionais de São Paulo
Coordenação geral do PNCSPCTB
Alfredo Wagner Berno de Almeida (CNPq-NCSA-CESTU/UEA)
Rosa Elizabeth Acevedo Marin (UNAMAZ)
Associação/comunidade
União dos moradores da Jureia e Associação dos Jovens
da Jureia.
Coordenação da Equipe de pesquisa
Equipe 1: Augusto de Arruda Postigo
Equipe 2: Mauro William Barbosa de Almeida
Equipe de pesquisa:
Adriana Souza Lima; Ana Alves De Francesco; Augusto de
Arruda Postigo; Carmen Silvia Andriolli; Dauro Marcos do
Prado; Heber do Prado Carneiro; José Onésio Ramos
Marcos Venicius do Prado; Mauro William Barbosa de
Almeida; Pedro Sardinha do Prado; Renata da Silva Nobrega;
Roberto Sanches Rezende; Rodrigo Ribeiro de Castro.
Fotografias:
UMJ - União dos moradores da Jureia
LATA - Laboratório de Antropologia, Territórios e
Ambientes (CERES/UNICAMP)
Cartografia e mapas:
Coleta de dados e croquis - UMJ, AJJ e LATA
Montagem - Augusto de Arruda Postigo
Edição: Adriana Souza Lima; Ana Alves De Francesco;
Augusto de Arruda Postigo; Carmen Silvia Andriolli; Dauro
Marcos do Prado; José Onésio Ramos; Mauro William
Barbosa de Almeida; Roberto Sanches Rezende; Rodrigo
Ribeiro de Castrol.
Projeto gráfico e editoração:
Sabrina Araújo de Almeida
Ficha Catalográfica
N935 Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil :
Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape-Peruibe / coordenação,
Alfredo Wagner Berno de Almeida, Rosa Acevedo Marin ; equipe de pesquisa,
Adriana Souza Lima ... [et al.]. – Manaus : UEA Edições, 2013.
16 p. : il. color. ; 25 cm. – (Povos e comunidades tradicionais de São Paulo ; 1)
ISBN
1. Comunidades tradicionais – São Paulo. 2. Organizações sociais. 3. Cartogra
fia. I. Almeida, Alfredo Wagner Berno de. II. Marin, Rosa Acevedo. III. Lima, Adriana
Souza. IV. Série.
CDU 528.9:316.48(815.6)
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Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil
Do povo de
dantes à estação
ecológica
“Ninguém sabe ao certo quando chegaram na Jureia os nossos antepassados. Em
1850, os primeiros registros de terras do país
já registravam nomes de famílias que hoje são
comuns na região: Prado, Alves, Pinto, Rodrigues, Lima, Carneiro, Silva, Fortes, Trigo, Lara,
Aquino, Pontes, dentre outras. E esse povo de
dantes viveu na Jureia até que veio a Gomes de
Almeida Fernandes, uma empresa que disse
que era dona das terras da região e que ia transformar nosso território em loteamento para
uma cidade de 70 mil habitantes. Só que em
seguida apareceu a Nuclebras, com um projeto
de usina nuclear que transformou a Jureia em
área de interesse e segurança nacional. E aí vieram os ambientalistas, dizendo que a Jureia ia
virar uma usina atômica e que todo mundo ou
ia ser expulso ou ia morrer por causa da usina. A
proposta desses ambientalistas é que ali virasse
um santuário ecológico. E a gente acolheu essas pessoas. Mas em 1986 foi criada a Estação
Ecológica Jureia-Itatins e essas mesmas pessoas disseram que a gente não podia mais roçar,
caçar, fazer mais nada daquilo que sempre fizemos. Foi aí que a gente montou uma associação
e começou a brigar pelos nossos direitos. E hoje
tem a proposta do governo do estado para a
recategorização da área, mas não é a proposta
que nós queremos. Nós temos a nossa própria
proposta, que respeita a nossa tradição” Dauro,
48 anos, Grajaúna, atualmente morador de Barra do Ribeira, dezembro de 2012.
Telha de barro artesanal de dezembro de 1901,
Grajaúna.
“Fui nascido aqui. Meu pai também nasceu
aqui. [...] A nossa vida aqui é tipo como desses
índios de agora. Nós vivíamos mais do serviço
que nós fazíamos aqui. Nós andávamos até sem
roupa nos meios desses matos, quando nós
éramos pequeno. Camisola, no meu tempo de
criança era o tempo de usar camisola.” Sr. Felício
Ribeiro, 77 anos, Cachoeira do Guilherme, atualmente morador de Peruíbe, janeiro 2012.
“A gente vivia da pesca, da caça, cortava
um palmito para comer, quando não tinha comia goiaba, comia banana cozida. A vida era
simples. Cortava palmito, cortava caixeta, cortava lenha para vender, trabalhava em empresa
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que era de farinha de ostra, de banana, palmito.
Era disso que a gente vivia. E vendia o supérfluo
da colheita de arroz. Vendia aquele supérfluo
para sobreviver. Comprava o açúcar, sabão.” Seu
Irácio Tavares, 68 anos, Cachoeira do Guilherme,
atualmente morador de Iguape, janeiro 2012.
“Nessa época veio a Gomes de Almeida
que tomou esse local aqui e queria fazer um
loteamento. [...] Tinha esta estrada aqui, mas
daqui pra lá não tinha nada. Então a Gomes de
Almeida contratou pessoas para trabalhar para
abrir estrada daqui pra lá. O seu Onésio era o
encarregado na época. Então começou a pegar
as pessoas para que pudesse vir auxiliar ele pra
cá. Aí ele convidou meu pai, meu pai deixou
aquela comunidade [Cachoeira do Guilherme]
e veio pra cá [Grajauna] sozinho. Ficou aqui uns
10 ou 15 dias sozinho e já voltou buscar todos
nós lá. E a gente veio embora pra cá de mala e
cuia, sem conhecer, sem nada e veio pra cá, eles
começaram a estrada. A estrada saia daqui, aqui
era tudo feito no enxadão, na picareta, onde tinha pedra, foram cortando aqui até sair no Rio
Verde. Aí a Gomes de Almeida veio, deu uma
casa pra cada trabalhador dela. Aí foi o momento, depois de uns três ou quatro anos, a gente
saiu daqui [Grajauna] para ir para nossa casa
que era lá no Rio Verde. E aí os adultos trabalhavam nesta estrada, eu era criança, mas o Dauro
que era adolescente, o trabalho de roça ficou na
responsabilidade deles, trabalho de peixe, de
buscar uma caça, ficou mais na responsabilidade deles, então a gente pegou um pouco disso.
(…) Depois que a gente foi vendo que tem direito, mas no começo não sabia nada. A gente
rezava pra que pudesse sair daquela ideia de
usina nuclear e ser implantada a estação ecológica. No início, ninguém sabia o que era uma
estação ecológica, depois que ela foi toda implantada, toda criada, ai que veio: ‘olha só, você
não pode fazer isso e isso’. Então foi deixada a
usina que era aquele negócio que se fosse feito, nós tínhamos que cair fora. Bom agora tem
aquele movimento todo da preservação, vai
vim, a gente continua. Ninguém falou: ‘agora
vocês saem fora’, mas tirou da mesma maneira.
Eles prometeram serviço. Prometeram muitas
coisas: ‘vocês vão poder trabalhar, vocês vão ter
o seu dinheiro, vão poder plantar, vão viver do
jeito que vocês viviam, mas com mais conforto’.
Foi o contrario.” Nélio Gomes, Grajaúna, janeiro
de 2012, atualmente morador de Iguape.
“Culpa de quem que tem essa mata aqui
é nossa, porque a gente não deixou entrar
Casal Leidy e
Antonio, na
Roça Despraiado
Iguape.
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Mutirão e Ajutório
Aí tinha o ajutório, que é diferente do mutirão. O ajutório você vai lá e me convida: Escuta Irácio,
você podia me ajudar amanhã? Posso sim, então nós vamos trocar dia, e aí vai lá no Felício e diz:
Dá para você me ajudar amanhã? Aí convocava 5, 6, 8 homem, ia te ajudar. Depois é dia trocado
Depois quando eu precisava você vinha devolver o dia, me ajudar na minha roça. Então, isso
é o ajutório. Então, tem o mutirão que ninguém cobra nada de ninguém. Vai voluntariamente, trabalha o dia inteiro, faz um baile de tarde. Moído de cansado faz o
baile. O povo molhava a camisa, de escorrer o suor pelo calcanhar dele, no bate
pé. O baile também não era grudado, aqui na comunidade. Já para eles lá, onde
o Felício mora, era baile mesmo. Aqui devido a religião, então eles lá não já era de
fora da religião. Mas, nós também, as vezes participava, nós ia em baile deles. Eu ia
lá e tocava viola. Eu sempre gostava de tocar viola com eles, toca muito bem rabeca.
Então, nós animava a festa, nós era os artistas lá da festa. Tocava viola a noite
inteira, cantava. No outro dia, vinha embora com aquele barulho de viola na
cabeça né. Dormia ali o dia inteiro, e no outro dia, dia normal. Mas a roça deles ficava
pronto. Ficava pronto lá, chegava na época, queimava, plantava, era assim. Seu Irácio
Tavares, 68 anos, Cachoeira do Guilherme, atualmente morador de Iguape, janeiro 2012.
gente de fora para tirar tora de madeira, a
gente não deixa mexer. Agora é diferente, é
o Estado que manda. E está destruindo mais.
A gente que tá dentro da riqueza. A gente que
tá protegendo isso. O governo está atacando a
gente, impedindo o trânsito nas bocas da estrada. Agora é tudo do governo, ninguém é dono de
nada, não tem mais respeito, um entra na terra do
outro. Porque o governo diz que é dono de tudo.
Antes você olhava esse morro aí, era cheio de palmito. Agora que o governo tomou tudo, não tem
mais nada. Quanto dinheiro tem nessa mata? Eles
não deixam pegar nada. Eles não deixam serviço
nenhum para a gente, e aqui é tanta madeira de
lei que dá para levar uma vida inteira só pegando
madeira morta que não vai dar mais nada.” Dona
Cleuza da Silva, antiga moradora do Rio das Pedras, atual moradora do Despraiado, janeiro de
2012.
Colheita de arroz 2012,
Grajauna, Iguape.
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Território,
conhecimentos
e usos
Agricultura
“Você ia lá roçava a roça. Na linguagem de hoje é bosquear. Fazia aquele bosque e depois
deixava seca ali aquela brusca. Chamavam de brusca aqueles mato baixo. Todas aquelas plantas
pequenas, rasteiras, roçava, cortava tudo. Daí deixava uns dias e daí derrubava a madeira maior,
derrubava, deixava secar, queimava e fazia a plantação. [...] Plantava arroz, milho, no lugar de várzea. No lugar mais alto, morro, desmonte, plantava-se mandioca, milho, batata, cará, essas leguminosas”. Seu Irácio Tavares, 68 anos, Cachoeira do Guilherme, atualmente morador de Iguape,
janeiro 2012.
“[...] Quando você ia plantar milho naquele desmonte, não plantava só milho, plantava banana, quando tirava o milho ficava a banana, para não perder aquele serviço, então aquela
terra continuava sendo daquela família. E lá nunca usamos 100 gramas de adubo pra plantar e
não tinha mato nenhum. Um ajudava o outro,
era uma irmandade, quando ia fazer uma roca
bem grande mesmo, fazia o tal do mutirão.
Seu Sátiro e roça
Fazia mais na sexta para sábado (…). Aqui no
“Marcação, [Seu Sátiro] marcava o dia
Despraiado, como a gente não pode fazer como
de fazer a roça. E lá começava... [...] roçafazia antigamente e lá também [Rio das Pedras],
va dez, quinze minutos e tava marcado. Mas
a gente planta hoje quando é semana que vem
aquele que se mandava lá, ele fazia uma
já tem que tacar enxada, carpindo porque nasce
grande oração. ‘Pra que Deus te proteja no
muito mato, mato fino, mata virgem não nasce,
seu serviço, pra que Deus abençoe aquele serdemora pra nascer mato. E mato fino você carpi
viço’. E naquele dia da marcação ele ligava o
hoje amanha já está verde de mato de novo. Por
pensamento naquela área, se ele dissesse ‘ói,
isso que a gente fazia assim, a gente escolhia os
cuidado com aquela lá, aquela figueira lá, tal
lugares de plantar. Tem lugar que dá arroz no
e tal, passe por lá, mas passe com cuidado’
morro e onde não dá. Aqui se você plantar arroz
mas mesmo assim encontrava alguma coisa
no morro dá, no Rio das Pedras não dá, só dá
de errado lá. Era assim. Ele mandava, mas
em lugar que a gente chama de desmonte e luele orava a Deus pra proteger o seu servigar bem molhado que a gente chama de brejo.
ço. Então, por isso que as pessoas, como
Aqui você planta, no brejo é diferente, é jogado
ele era o líder, então o pessoal confiava,
assim, não é todo mundo que sabe plantar arroz
né?” Seu Irácio Tavares, 68 anos, Cachoeira do
de semeada, a gente fala semeada. Na hora de
Guilherme, atualmente morador de Iguape,
jogar o arroz você abre a mão, daí ele cai todo
janeiro 2012.
espalhadinho. Dona Cleuza da Silva, antiga mo-
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O Fandango para a juventude
radora do Rio das Pedras, atual moradora do
Despraiado, janeiro de 2012.
“No mutirão de roçada eu acho que dá mais
de sessenta foiçadas por minuto. Você vai com
a foice assim [mostra como]. Você vai dar mais
de sessenta foiçadas por minuto, quatro horas
de roçada, seis horas... A turma vai cortando,
você tem que ir junto. Se fica para trás você corta o outro. [...] vai assim um paredão e vai levando, antigamente vem um pessoal atrás que já
vinha derrubando as árvores, daí o que vai na
frente roçando corta as menores, as mais finas,
e vinha um pessoal derrubando as árvores, e daí
vinha um pessoal desgalhando, aquelas árvores
que cai fica a copa tudo levantada, aí já vinha
um grupo atrás desgalhando isso, para acabar,
então quando chegava a primeira turma lá esperava a segunda, a terceira chegar, e dali já formava mais uma brincadeira que chamava rabo
de galo, fazia mais uma brincadeira, o dono da
roça falava vamos fazer até aqui, todo mundo
chegou até aqui, acabou cedo, fazia mais uma
brincadeira, fazia mais uma roçada para a frente
para aumentar a roça dele, nessa brincadeira ia
mais uns trinta metros às vezes, mais uns
trinta metros pra frente. Roçava, derrubava dali vinha embora, tomava
um banho, depois tinha a janta
“Por exemplo, pro meu pai [...] já faz uns vinte
anos que ele não vê fazer um fandango por
causa de uma roçada. Eu vou fazer dezoito
anos esse ano. [...] O fandango que eu vi, que
eu participo, ele é feito por ser aniversário de
alguém pra unir mesmo a família. E como
a família sempre gostou disso, é uma tradição. Então se faz o fandango. Agora nessa
época de reiada, não sendo um lazer depois
de um mutirão, isso eu já não vi. O fandango [...] sempre que eu sei, eu vou. Porque eu
moro em Iguape, o fandango quando tem,
que eu sei, até certo tempo atrás a gente ia
na cachoeira do Guilherme, mas agora já os
moradores já saíram de lá também, então
praticamente aqui [Grajauna] é o único lugar que ainda tem o fandango. E no Prelado.
E sempre eles fazem agora lá em Peruíbe, por
causa do Ponto de Cultura. Eles estão resgatando, montaram um grupo de fandangueiros lá, então eles sempre estão reunindo
e quando a gente pode a gente vai lá pra
acompanhar. Pra mim é isso, é continuar.”
Marcos Vinicius, neto de Seu Onésio, Grajaúna, janeiro de 2012.
Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape- Peruibe-SP
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Seu Vitor com um covo, Barra do Una, janeiro de 2012
do Guilherme, atualmente morador de Iguape,
janeiro 2012.
“Foi meu pai [Seu Onésio] quem fez esse
caminho. Meu pai vinha do sitio Brasilia ele
vinha pelo Pogoçá. Ele vinha lá no seu Maneco
Plácido Pereira, ele fazia consulta. Ele era curandeiro também. Aí um dia, minha irmã com dor
de dente, inchado, aí o seu Maneco falou: Seu
Onesio, o senhor vai lá na casa do Sátiro, o Sátiro
cuida da sua filha. Ele pegou uma canoinha do
seu Maneco e veio até aqui. Encontrou com o
seu Sátiro num ranchinho aqui. Aí quando ele
chegou aqui já começou a parar a dor do dente da Glorinha, daí ele voltou embora. Ele foi
embora, mas ficou pensando, mas será que se
fizesse uma trilha por aqui, não ficaria melhor?
Daí, um dia, não sei quem lá ficou doente e não
tinha canoa para vim, daí ele pôs a cabeça no
mato, pegou um carreiro de tatu e veio sair aqui
na roça do senhor Sátiro. Daí começaram a usar
esse caminho e aí virou uma trilha.” Dauro Marcos do Prado, Grajaúna, atualmente morador de
Iguape, janeiro, 2012.
que o dono da casa dava, e aí o baile, clareava o
dia, acabou o baile, pegava a foice, a mochila, tá
tchau,” Nélio Gomes, Grajaúna, janeiro de 2012,
atualmente morador de iguape.
A pesca nós usava anzol, fisga, cóvo. Cóvo
é um recipiente feito de palha de bambu, feito com uma entrada de modo que o peixe não
Pesca
“Nós aqui pescávamos no Rio Comprido.
Mas, pesca era só para alimentação não era
para vender não. [Não pescava no mar] por
causa do acesso. Era dificultoso. Depois num
futuro bem distante aí foi aberto esse caminho
daqui para lá. Daí o pessoal, molecada toda
nova vinha para cá, nós ia para lá. Então começou o entrelaçamento o pessoal daqui com os
de lá. Eles vinham muito para consultar com o
pessoal deles. Então, foi aberto esse caminho
aqui. [...] É uma trilha, caminho do Guilherme que dá acesso a Brasília, Grajaúna.”
Seu Irácio Tavares, 68 anos, Cachoeira
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conseguia sair. Era feito com bambu ou breju
mirim. Então partia aquilo ali, e ia tirando as
palhas, limpando e fazia o cóvo . Cóvo durava
muito tempo. Fazia fortuante. É igual a um coração assim. O peixe entra por essa boca, faz uma
cerca até chegar no barranco, aí você monta o
fortuante aqui. Então você suspende com manivela até subir fora da água. Despesca, coloca de
volta e deixa no mesmo lugar. O peixe entra lá,
dá umas voltas lá e entra dentro. Então, era fortuante, cóvo, pari, pari é um cóvo sem filho que
você coloca contra a correnteza. O peixe para lá
no fim, o peixe não tem marcha ré. Não consegue sair dali. Você chega de manhã pega ele vira
na canoa, e coloca no lugar. Seu Irácio Tavares,
68 anos, Cachoeira do Guilherme, atualmente
morador de Iguape, janeiro 2012.
Caça
“A armadilha era o mundéu, mundéu tem
de vários tipos. Tem mundéu de madeira, tem
o quebra cabeça, uma vara armada assim que
dá uma pancada. Tem o laço, para pegar raposa, gambá. [...] Por exemplo, você é meu amigo,
meu colega, aí nós se ajuntava e dizia, nós podia
caçar amanhã lá na Forquilha. Aí cada um pega
o seu cachorro, cachorro bom n/é, espingarda e
ia caçar. Lá matava, cada um ficava com um pedaço. A caça era feita de dia e de noite. Mas, esse
de noite demorou para chegar, chegou com a
lanterna. Por que você precisava de alumiar no
bicho. Então, para poder enxergar, aí um cara
falou: aí, olha eu estou caçando agora, eu faço
um estaleiro no mato, coloco isca. É a seva que
nós chamava. Aí você ia de noite, você escuta
o barulho do bicho de lá vindo, quando ela começa a comer na isca você alumia e atira. Hoje é
proibido de fazer esse tipo de coisa. Mas é uma
sobrevivência. Se não você vai daqui para comprar carne de boi aonde? (…) Normalmente a
gente repartia um pedacinho para os vizinhos.
E outra coisa a gente respeitava a época da procriação dos animais. Como até hoje o povo que
mora por aqui respeita. Ele pode caçar de mês
de abril até julho. Aí ele fica de agosto a janeiro sem matar um bicho. É o período da criação,
da renovação dos bichos. Agora nesse período
de respeito dos animais, a gente pesca. (…)
Quando se ia no mato, e você orava: ‘São Bento
e Água benta, Jesus Cristo no altar, me livrai de
todas as cobras, todos os bichos peçonhentos
nos lugares onde eu vou passar’. Que é pra de-
Conhecimentos sobre caça
“Vamos dizer assim, é caça de cachorro. Para não estragar o faro do cachorro você não pode jogar o
osso para trás, mulher em certos dias de TPM, não pode passar por cima do pêlo do animal, do osso. É
esses cuidados, a recomendação, mas, como tudo sabia disso, a comunidade inteira sabe, então já toma
esse devido cuidado, né. Se você jogar o osso pela janela tanto o cachorro e a espingarda fica variado.
Você pode atirar daqui a ali não acerta nada. Aí você tem que fazer um tratamento para aquilo.? Se espingarda você passa pelos vão da perna, três vezes. Espingarda variada quando você dá um tiro ela tem
um cheiro ruim, cheiro de porva [pólvora? Pólvora queimada?] preta. Pegava fogo na bucha, saía dela.
O cachorro você colocava farinha para ele comer antes de ir para o mato. Para limpar o faro. Farinha
de mandioca, farinha branca. Ou você fazia bucha de ganguelo para a espingarda. Para limpar ela de
novo. Para o cachorro usava miolo de cabeça de gralha ou de corvo sei lá. Dependendo do tipo da carne
você colocava debaixo do pilão. Aí o cachorro ia lá e tirava ai ele voltava de novo a caçar. São tudo coisas
alternativas para engrenar de novo.” Seu Irácio Tavares, 68 anos, Cachoeira do Guilherme, atualmente
morador de Iguape, janeiro 2012.
Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape- Peruibe-SP
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fender de cobra. Tem uns lugar que a cobra
tava, mas tava quietinha, que não mexia com
nós não. Trovoada, formou-se uma trovoada
escura, aquilo vem que vem se embolando
aquilo da cor de enxofre com fé em Deus:
“Santa Barbara bendita, vosso nome foi escrito entre cálice e água benta, abrandai essa
tormenta.” três vezes. Começa a se desfazer a
trovoada.” Seu Irácio Tavares, 68 anos, Cachoeira do Guilherme, atualmente morador de
Iguape, janeiro 2012.
Transformações do cotidiano
“Hoje, ninguém mais vive como antes.
A gente depende do veranista. Limpa casa,
faz um servicinho, vende um peixe. Depende do veranista. Eles ajudam no dinheiro,
não é grande, mas é uma ajuda” Seu Walter
do Prado, Barra do Una, janeiro de 2012.
Estratégias de desmobilização:
moradores como guardasparque
“Foram colocando guarda-parque. As pessoas que tinham mais conhecimento da coisa,
que podiam estar interferindo, eles pegavam
um guarda-parque em cada comunidade. Então ficou aquele negocio de guarda-parque
assalariado, no meio daquele movimento
todo. Já começou a pressionar os próprios
amigos. Aquelas pessoas já não tinham um
olhar muito bom para aquele guarda-parque,
que na verdade era um sobrinho, era um parente dele. Porque subiu na cabeça, só por ser
um guarda-parque. Já começou tudo a balançar, tudo foi recuando, dando uma quebra
nas coisas, pra lá, pra cá. E foi tudo aos pouquinhos, e daí a gente sabe..." Nelio Gomes,
Grajauna, janeiro de 2012.
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“Eu sei que foi se degradando [a Jureia] de
uma forma e hoje... nós saímos de lá e quando a
gente morava tinha mais palmito, caça. E hoje
não tem mais passarinho, caça, nada. Pessoal de
fora invadiu e tirou tudo, porque não tem mais
morador que tome conta. Arrombaram as casas,
roubaram” Ciro Martins, ex-morador da Cachoeira do Guilherme e morador de Peruíbe.
“Porque hoje eles não deixam mais fazer
roça onde a gente fazia. E o que tem estragado na mata aqui? Nada. Eu não conheço nada
no mundo inteiro, mas acho que o único lugar
que a mata é preservada é aqui. E a gente nasceu e criou fazendo a roça. Minha avó morreu
com 57 anos, vai fazer 43 anos agora em fevereiro que ela morreu sempre fazendo a roça, a
família dela. Vai lá pra você ver, [tem] mais mata
do que aqui agora no Rio das Pedras lá! Tem
um pedaço de pau aqui, esse pedaço de pau,
eu queria até que aparecesse aqui, como é que
fala essas pessoas que procura as coisas velhas
para saber a idade que tem, queria que aparecesse um desse para mim dar esse pedaço de
pau para ele saber quantos anos foi que foi derrubado.” Dona Cleuza da Silva, antiga moradora
do Rio das Pedras, atual moradora do Despraiado, janeiro de 2012.
Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil
Impossibilidade do Retorno
“Hoje, para eu voltar, eu teria que pegar autorização. Hoje, eu não posso passar de moto para lá.
Tem que pegar uma autorização toda vez que vai. É uma luta terrível. Um lugar em que se nasceu,
se criou, com pais e avós, e hoje não pode levar nossas filhas para poder curtir lá”. Bernardino Prado, ex-morador do Rio Verde e morador de Peruíbe.
“Para mim, se hoje falasse que tinha um lugar para mim lá dentro, eu já tinha arrumado minhas
coisas pra ir. Mas, e meu filho? Onde vai estudar? Por isso que a gente precisa voltar para lá com legalidade, sabendo que tem uma escola pros nossos filhos e que também ensinasse o nosso modo de vida,
um ensino diferenciado. Isso seria muito importante. E eles conseguissem assimilar o que a gente viveu e
conseguiu passar lá dentro. Num era um modo de vida fácil, mas a gente vivia aquilo. Aqui [na cidade],
a gente sobrevive: tem muita coisa para gente pagar. Aqui não dá para sair sem dinheiro no bolso que
nossos filhos vão pedir alguma coisa. E lá, não. O máximo que ele vai pedir é uma fruta, um peixe”. Cleiton
Carneiro, mora atualmente na periferia de Peruíbe.
“Na época que entrou a Estação Ecológica,
tinham 16 famílias na Cachoeira do Guilherme. Depois, foi ficando menos. Teve um dia que
chegaram dois guardas-parque em casa, me
proibindo de fazer mundéu, cortar palmito, tirar
madeira. Eu falei: ‘é uma situação difícil, né? A
gente viver e não poder fazer um mundéu para
pear uma caça? Ou seja, caçar não pode. Cortar
madeira para reformar uma casa? Até hoje a
gente faz e não acabou e agora você vai proibir?’
E ele disse que era a lei. Eu quase que fui multado por ter feito uma roça lá. Meu irmão passou
difícil na polícia florestal por ter feito isso. Quase
todos os moradores. E isso acabou com tudo:
com o povo e a cultura. [...] Quem vive da cultura, da lavoura, do peixe, da carne... e o cara chega
e tira essa liberdade da gente, tira nosso direito
de viver”. Ciro Martins, ex-morador da Cachoeira
do Guilherme e morador de Peruíbe.
“De um jeito ou de outro tinha que fazer
roça. A partir do momento que a gente foi proibido, indiretamente foi obrigado a sair. Na época que a gente decidiu sair de lá, eu lembro que
minha mãe tinha que torrar e fazer “café” de arroz
com garapa para tomar. A gente fez isso um mês
direto porque meu pai saiu do serviço do palmito e teve que se virar para arrumar um dinheiro
para gente viver e chegou uma hora em que acabou tudo. Arroz torrado com garapa. É constrangedor falar, mas a gente passou por isso e é fato.
[...] A gente foi pra barra sem casa, sem paradeiro,
sem saber o que fazer. Dois dias depois conseguiu arrumar uma casa, aí foram 12 pessoas pra
uma casa de 2 cômodos”. Cleiton Carneiro, mora
atualmente na periferia de Peruíbe.
“Ficou só o pessoal que estava
empregado e aposentado, que puderam aguentar. Porque não tem
emprego, não tem aposentadoria,
saiu todo mundo, não tinha mais
o que fazer. Primeiro o pessoal
vivia da pesca, da roça, se mantido daquilo ali, depois foi proibido
tudo, não podia roçar, não podia
fazer nada.” Pedro, Grajaúna,
janeiro de 2012.
Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape- Peruibe-SP
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Proposta UMJ 2013
Discussão
do
projeto
de lei
A União dos Moradores da Jureia apresentou na Assembléia Legislativa do Estado de São
Paulo uma proposta para a recategorização do
Mosaico da Jureia. Propunha a a criação de quatro reservas de desenvolvimento sustentável
(RDS Marinha, RDS Despraiado, RDS Barra do
Una e RDS Grajaúna) nas áreas tradicionalmente ocupadas pelos moradores, a criação de dois
parques estaduais (PE Prelado e PE Itinguçu),
mantendo a maioria da área como Estação Ecológica Jureia-Itatins. Tal proposta fundamenta-se
na Convenção 169 da OIT, convenção internacional da qual o Brasil é signatário e que garante
os direitos fundamentais dos povos indígenas
e tradicionais, estabelecendo como princípio
fundamental a auto-declaração dos povos, dedicando especial atenção à relação desses povos
com a terra ou território que ocupam e utilizam.
Contudo no dia 6 de março de 2013 foi votado o Projeto de Lei nº 60/12 que prevê a reclassificação da Estação Ecológica para um Mosaico de Unidades de Conservação, prevendo a
criação de apenas duas reservas de desenvolvimento sustentável (RDS Barra do Uma e RDS
Despraiado) o que acarretará na expulsão dos
moradores das outras áreas tradicionalmente
ocupadas. Se mantido, o PL 60/12 concretizará
o processo de expulsão de uma grande parte
das famílias tradicionais da região.
Pontos históricos culturais importantes
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nome
descrição
Local de festas religiosas
localidade de festas religiosas e rezas
Centro espírita
Morada de seu Sátiro e centro espírita. Local sagrado onde as pessoas
eram guiadas pela liderança espiritual de seu sátiro. Ele era procurado
para aconselhar sobre casamentos, as melhores datas, quais seriam
os melhores locais para moradia, quais os locais de caça e pesca, e
principalmente era procurado como médico e curandeiro. Seu Sátiro
fazia e receitava remédios utilizando ervas e plantas da floresta. Lá
também se realizavam rezas e cerimônias numa religião que misturava
aspectos locais e espiritismo kardecista.
Cachoeira do saltinho
Nesse local existiu uma olaria de telhas. Localizava-se também a casa de
cura do Antônio Batista do Prado. Moradores e viajantes frequentavam
o local em busca de curas e remédios naturais, além de curas espirituais.
Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil
Comunidade
em Audiência
Pública
Cachoeira do senhor
Local onde foi lavada a imagem de Bom Jesus do Iguape antes de ser
levada à igreja da basílica.
Lagoa de itacolomy
Local de pesca coletiva das comunidades através do furo da lagoa, que
podia ser natural ou feito pelos moradores.
Ruínas do Pogoçá
Antiga casa dos escravos e casa do curandeiro Manuel Plácido Pereira.
Cemitério
Cemitério histórico da Juréia, onde foi encontrada a imagem de
Bom Jesus de Iguape antes da construção do cemitério. A imagem
foi encontrada em 1647. A imagem continua na igreja da basílica de
iguape e todo ano é feita uma festa em homenagem a esse santo que
é o padroeiro da cidade. Nesse cemitério estão enterrados todos os
antepassados dos atuais moradores e daqueles que foram expulsos.
Ruínas e casqueiro
Ruínas de antigas construções feitas pelos escravos.
Trilha do imperador e
cachoeira do pocinho
Trilha histórica e local onde se coletava a água que seria levada para o
centro espírita para ser benzida e distribuída para os frequentadores.
Cachoeira da Serra
Viviam ali dois curadores famosos: Venerando e Antonio Joao Franco,
local de festas religiosas, fandangos e folias.
Casqueira do Morrote
Local de empresa de cal. Os casqueiros são sambaquis.
Cachoeira do Engenho
Antigo engenho com ruínas de casas de escravos.
Casqueira da empresa
Outro sambaqui, local de antiga empresa de fabricação de cal.
Barra do Pogoçá
Acesso para a casa espírita de Manuel Plácido Pereira
Baiveira
moradia antiga
Cachoeira do Palhal
moradia antiga, com plantações antigas (pomar)
Acesso da Cachoeira do
Guilherme
Trilha utilizada pelas comunidades do litoral para frequentar o centro
espírita de seu Sátiro e para os mutirões de roça
Trilha do imperador
Trilha histórica e acesso do Rio Verde para a Praia do Uma.
Contato:
União dos moradores da Jureia e Associação dos Jovens da Jureia
email: [email protected] | site: http://ajjureia.wordpress.com
Al. dos Guaranis, 24 -Balneário Titanus/ Barra do Ribeira. CEP:11920-000 Iguape -SP
Tel: (13) 81456662 / 97752903
Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape- Peruibe-SP
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Projeto nova cartografia
social dos povos e comunidades
tradicionais do brasil
SÉRIE Povos e comunidades
tradicionais de São Paulo
1. Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia, Iguape- Peruibe-SP
Realização
UMJ - União dos Moradores da Jureia
LATA - Laboratório de Antropologia,
Territórios e Ambientes/CERES/UNICAMP
Apoio
Instituto Nova Cartografia
Social da Amazônia/UEA/
UFAM - FAPEAM/CNPq

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