A arte na construção da cidade.
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A arte na construção da cidade.
A arte na construção da cidade. Ana Estevens1 1) Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Portugal [email protected] Resumo As cidades criativas e os bairros artísticos tornaram-se conceitos recorrentes nos discursos e nas práticas hegemónicas de requalificação urbana. Aparecem, muitas vezes, como a panaceia para todos os males das cidades contemporâneas, tentando conciliar coesão e inclusão social com princípios de competitividade, de eficácia ou de eficiência. Contudo, em muitos casos, o que vemos são sobretudo simulacros da realidade que seguem um modelo global e nada têm a ver com o contexto local e com as suas expressões artísticas mais genuínas. Partindo desta ideia, de que forma é que a arte pode ter efectivamente um papel essencial na produção de cidade? De que modo é que as políticas neoliberais seguidas na produção da cidade atual estão a condicionar as produções artísticas? Neste artigo, a arte é entendida como um veículo de transformação da sociedade e alguns exemplos de uma cidade ‘desejável’ serão aqui considerados. Palavras chave: arte; criatividade; ilusão; transformação; cidade desejável. 1. Introdução A arte e a criatividade têm desempenhado um papel fundamental na transformação das cidades, permitindo o desenvolvimento de imagens que ficam marcadas na memória de cada indivíduo. Através deste processo, idealizam-se e produzem-se, ao mesmo tempo, cidades moldadas às formas de atingir cada vez mais lucro, cidades “prêt-à-porter, vazias e sem relevo, adaptáveis para o consumo, em qualquer ponto do planeta, e para a rápida aquisição de um reportório globalizado” (Rolnik, 2010: 21). Contudo, há outras visões sobre a relação da arte e da criatividade com a transformação da cidade. Para diversos autores (Sassen, 2009; Marcuse, 2007, p.e.) a arte e a criatividade são ‘motores’ de mudança e de transformação social. Saskia Sassen (2009: 2) refere que não pode “evitar pensar en la creación artística como parte de la respuesta – ya sea esta presentaciones o montajes públicos puntuales o tipos perenes de escultura Eixo VI - Cidade: diversidade e adversidade 430 correspondiente al arte ubicados en un sitio/comunidade específicos o del tipo itinerante que circula entre localidades” (Sassen, 2009: 2). Neste artigo, a arte é entendida como um veículo de transformação da sociedade que desencadeia um questionamento crítico, que acentua as particularidades de cada contexto e que estimula o diálogo entre diferentes perspectivas para a produção de uma cidade mais plural e colectiva. Assim, procurar-se-á olhar, num primeiro momento, criticamente, para a arte como uma ilusão intencional no processo de desenvolvimento urbano das cidades contemporâneas. Num segundo momento, a arte aparecerá como um motor para o desenvolvimento de uma cidade desejável (Borja, 2011; Harvey, 2000) e serão considerados alguns exemplos associados a este processo. Apesar das duas referências utilizadas se referirem a contextos temporais particulares, considera-se que a intensa crise financeira, económica e social que se vive actualmente, abre ainda maior possibilidade de pensar outras formas de produzir cidade. Deste modo, considera-se que as abordagens feitas por Jordi Borja (2011) no seu texto ‘Ciudades del mañana’ ou David Harvey (2000) no seu livro ‘Spaces of Hope’ se encontram bastante actuais e aplicáveis. 2. Uma ilusão intencional “ (…) art should be an affirmation of life - not an attempt to bring other (…) but simply a way is so excellent, once one gets one's mind one's desire out of the way and lets it act if its own accord”. John Cage Actualmente tem-se associado, com bastante frequência, a arte e a criatividade ao processo criativo, massificando, de certa forma, toda a actividade criativa e artística (Pasquinelli, 2008). Apesar de se adoptar um discurso institucional, que aparenta ser alternativo (os debates sobre as ‘indústrias criativas’ surgem no final dos anos 1990) a criatividade aparece, de certo modo, como a panaceia para muitos dos problemas da requalificação urbana. Rapidamente se assiste à internacionalização deste processo e as Eixo VI - Cidade: diversidade e adversidade 431 indústrias criativas começam a desenvolver-se um pouco por todo o mundo ocidental. Passou a associar-se este processo às políticas governamentais e desenvolveram-se plataformas para desenvolver indústrias criativas muito similares e sem terem, em devida conta, as diferenças culturais e políticas existentes entre os diferentes países (idem). A criatividade é hoje vendida como um símbolo de status (Pasquinelli, 2008) e as cidades criativas (Florida, 2003, 2005; Landry, 1995) entraram na moda das mais recentes transformações urbanas. Cria-se a ilusão de não haver diferença entre arte e criatividade numa retórica impregnada de símbolos e de elementos que direccionam gostos, preferências e necessidades. Joga-se, neste contexto, com o discurso para provocar uma ilusão intencional de um certo ambiente artístico, a que se associa um estatuto social privilegiado ou formas boémias de vida, para se desenvolverem estratégias urbanas. “Opera-se portanto, uma inversão e o conteúdo genuinamente cultural só aparece como conotação e função secundária” (Baudrillard, 2008: 136). Jean Baudrillard referia-se nesta citação às questões que a cultura levanta na sociedade de consumo. Contudo, a relação pode ser análoga quando nos debruçamos sobre a questão da arte e da criatividade nos processos de construção da cidade contemporânea, e o conteúdo verdadeiramente artístico pode aparecer, também e apenas, como conotação e função secundária para atingir outros objectivos. A ambiguidade entre arte e criatividade tornase, assim, cada vez mais clara, quando se faz crer que tanto a criatividade como a arte propõem transformação e mudança. Para Jean Baudrillard (2008: 146) a lógica do consumo “define-se como manipulação de signos. Encontram-se ausentes os valores simbólicos de criação e a relação simbólica de interioridade (…) o objecto perde a finalidade objectiva e a respectiva função, tornando-se o termo de uma combinatória muito mais vasta de conjuntos de objectos”. Neste contexto, também, há uma manipulação de simbolismos e a arte aparece associada à criatividade para criar a ilusão de ter a mesma função e o mesmo significado. Smith (2009: 130) refere que “el urbanismo de moda hoy en día, de falda negra y camisa de polo, que se extiende de Toronto a Sydney y de Sydney a Barcelona, utiliza el arte como si fuese una hipoteca de magnitud descomunal sobre el futuro de la urbe” (Smith, 2009: 130). É como se um modelo global se fosse multiplicando. Num Eixo VI - Cidade: diversidade e adversidade 432 período em que, mais uma vez, se definem estratégias e formas globais de criar arte para intervir nas cidades, encontramos modos diferentes de intervenção que permitem um maior questionamento e um pensamento colectivo que torna mais coesas as relações sociais e territoriais. 3. A cidade desejável No seu texto ‘Ciudades del mañana’ Jordi Borja (2011) refere doze pontos que considera essenciais para um ‘novo amanhecer’: ‘revalorización social de la ciudad’, ‘el valor ciudadano del espacio público’, ‘la ciudad compacta condición de la innovación y de la convivencia’, ‘las resistencias sociales frente a la crisis financiera’, ‘regiones metropolitanas y economía productiva’, ‘nueva economía y ciudad’, ‘la cuestión de la sostenibilidad en las grandes ciudades y regiones metropolitanas’, ‘gobiernos locales, identidades sociales y participación ciudadana’, ‘movilidad, centralidades y redes comunicacionales’, ‘rechazo de la segregación y de la exclusión: contra los espacios lacónicos’, ‘valoración de la especificidad de los paisajes físicos y sociales y de las identidades de lugares y poblaciones’ e ‘el derecho a la ciudad y las políticas urbanas’. No contexto desta reflexão, conciliando os aspectos referidos por Jordi Borja com o que David Harvey (2000) considera essencial para o desenvolvimento de espaços alternativos (espaços de esperança) dentro do processo hegemónico, optou-se por considerar seis dimensões de análise através das quais se pode compreender a importância da arte no processo de construção e de transformação da cidade: a valorização do espaço público, a cidade plural, a cidade compacta, a resistências face à crise, a cidade verde e a consciência ambiental e a participação cidadã. Por razões que se prendem com os limites de espaço para este artigo, as seis dimensões de análise serão referidas sucintamente, devendo ser analisadas em maior profundidade num artigo mais desenvolvido. A valorização do espaço público: “é nos espaços públicos que a vida urbana, e tudo o que a diferencia de outros tipos de existência colectiva, alcança a sua expressão máxima, juntamente com as suas alegrias e tristezas proverbiais e as suas esperanças” (Bauman, 2005: 43). É através da sua valorização, contrariamente à sua privatização, que se promoverá uma cidade mais colectiva, integradora, coesa, onde a existência de Eixo VI - Cidade: diversidade e adversidade 433 arte ‘pública’ possibilitará uma maior abertura e um simbolismo bastante vincado no território: o palco deixa de ser o local distante e institucionalizado que conhecemos e é transportado para a rua, para o espaço público. A cidade plural: actualmente, fala-se recorrentemente de mix sócio-cultural no contexto das cidades globais. A música cabo-verdiana escutada por todo o mundo, saiu da sua origem e tornou-se transnacional, possibilitando que através do sentido auditivo o mix cultural se espalhe abrindo fronteiras. A cidade compacta: o sentido de vizinhança torna-se mais próximo neste tipo de cidade, favorecendo o desenvolvimento das comunidades locais e as relações de proximidade. Neste sentido, a realização de eventos artísticos entre artistas e habitantes do bairro pode tornar-se uma possibilidade. A transformação das relações sociais faz-se pouco a pouco e diariamente, numa construção constante, onde os diversos indivíduos se cruzam, aparecendo, assim, uma nova forma de comunicar e de fazer arte. A resistências face à crise: “A arte não pode mudar o mundo, mas pode contribuir para a mudança da consciência e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo” refere Herbert Marcuse (2007: 36) no seu livro ‘A dimensão da estética’. Aqui, esta mudança de consciência através de formas de resistência pode aparecer na forma de street art. A street art é um reflexo visível da luta política que marca actualmente o território com sinais de uma crise económica e financeira profunda. A cidade verde e a consciência ambiental: a consciência ambiental reflecte-se em espaços mais acolhedores e tranquilos que proporcionam espaços de maior comunicação e diálogo. Os jardins vs as hortas urbanas, que cada vez mais encontramos nas cidades contemporâneas, são sinais de mudança de mentalidades e de novos hábitos. Nestes pequenos espaços, a arte pode ter um papel essencial na construção de um maior sentido de pertença e de memórias colectivas. A participação cidadã: num gesto político e de interrogação sobre as práticas existentes, a arte pode tomar forma enquanto espaço de partilha. Assim, através da vivência, da experiência e da crítica, as relações tornam-se mais fortes e contribuem Eixo VI - Cidade: diversidade e adversidade 434 para uma transformação da cidade. O Teatro do Oprimido reflecte estes aspectos enquanto expressão de arte social que politicamente introduz uma natureza instrumental na construção de uma cidadania socialmente reconhecida. Bibliografia Baudrillard, J. (2008). A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70. Bauman, Z. (2005). Confiança e medo na cidade. Lisboa: Relógio d'água. Bordieu, P. (1998). La Esencia Del Neoliberalismo. Obtido em Agosto de 2013, de http://www.curriqui.es/archivos_pdf/Decrecimiento/Neoliberalismo_Pierre_Bor dieu.pdf Borja, J. (2011). Ciudades del mañana. Derecho a la ciudad y democracia real. cafe de las ciudades. Florida, R. (2003). Cities and the Creative Clas. City & Community, 2(1), 3-19. Florida, R. (2005). The Flight of the Creative Class: The New Global Competition for Talent. New York: HarperCollins. Harvey, D. (2000). Spaces of hope. Edinburgh University Press: Edinburgh. Jeudy, H.-P. a. (2006). Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas culturais. Bahia: EDUFBA. Landry, C., & Bianchini, F. (1995). The Creative City. London: Demos. Marcuse, H. (2007). A dimensão estética. Lisboa: Edições 70. Marcuse, P., & Van Kempen, R. (2000). 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