as elites e o complexo processo de formação do estado e da nação
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as elites e o complexo processo de formação do estado e da nação
1 AS ELITES E O COMPLEXO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESTADO E DA NAÇÃO BRASILEIROS Pablo de Oliveira Andrade* Universidade Federal de Ouro Preto RESUMO: Nos últimos anos os estudos históricos sobre a formação do Estado e da Nação brasileiros na primeira metade do século XIX têm-se desenvolvido bastante, especialmente no que se refere à ampliação dos atores envolvidos nesta formação. Afinal, a sociedade brasileira passou, entre as antigas colônias da América, por um processo de formação de Estado e de Nação dos mais complexos. Não houve um rompimento claro e profundo entre o arcabouço institucional e societário colonial e o que se construiu após a emancipação política. Transformações ocorreram, e não foram poucas e nem superficiais, entretanto o caminho em direção ao Estado e à Nação brasileiros foi bastante lento, gradual, cheio de revezes e de continuidades. Nesta miríade de transformações e manutenções, de rupturas e continuidades, inumeráveis são as problemáticas a serem estudadas. Dentre estas problemáticas, talvez a mais intrincada seja iniciada pela pergunta: Quem construiu este processo de formação de um Estado e de uma Nação? Se antes praticamente toda a análise sobre os atores envolvidos neste processo estava centrada na atuação da elite política residente na Corte do Rio de Janeiro, atualmente tem havido uma valorização e uma ressignificação do papel desempenhado pelas elites regionais e locais neste processo. E o que pretendemos neste trabalho é justamente fazer um breve balanço sobre como a historiografia vem analisando o papel das elites neste processo de formação do Estado e da Nação brasileiros, especialmente através dos trabalhos clássicos de José Murilo de Carvalho (A construção da ordem e O teatro de sombras), Ilmar Rohloff de Mattos (O tempo saquarema) e Alcir Lenharo (As tropas da moderação). PALAVRAS-CHAVE: Construção do Estado e da Nação, elites, historiografia. A historiografia e as renovações no estudo da construção do Estado e da Nação brasileiros A primeira metade do século XIX no Brasil talvez seja um dos períodos históricos melhor analisados pela historiografia brasileira nos últimos anos, inúmeras são as pesquisas dedicadas a este período. Os objetos e problemas abordados são os mais variados, mas todos se subordinam direta ou indiretamente ao grande fato histórico ocorrido neste momento que foi a transformação do Brasil de colônia portuguesa a Estado independente. Várias foram as mudanças que este fato encetou, mudanças de ordem política, econômica, social, * Mestrando. E-mail do autor: [email protected]. 2 administrativa e cultural. Todas elas no encalço da formação de um novo Estado e de uma nova Nação, formação das mais complexas que uma sociedade pode passar. A sociedade brasileira passou, entre as antigas colônias da América, por um processo de formação de Estado e de Nação dos mais complexos. Não houve um rompimento claro e profundo entre o arcabouço institucional e societário colonial e o que se construiu após a emancipação política. Transformações ocorreram, e não foram poucas e nem superficiais, entretanto o caminho em direção ao Estado e à Nação brasileiros foi bastante lento, gradual, cheio de revezes e de continuidades. Nesta miríade de transformações e manutenções, de rupturas e continuidades, inumeráveis são as problemáticas a serem estudadas. Dentre estas problemáticas, talvez a mais intrincada seja iniciada pela pergunta: Quem construiu este processo de formação de um Estado e de uma Nação? Aparentemente esta é uma pergunta de resposta muito simples, qualquer manual de história política tradicional vem com uma lista dos homens que fizeram a Independência e o Estado Nacional, até os livros escolares vem com listas deste tipo. Ou seja, qualquer criança na escola primária sabe – ou, melhor dizendo levando-se em consideração as condições do ensino no Brasil, deveria saber. Então, qual é o segredo, o que há de intrincado nesta pergunta? Comecemos pela resposta inicial apontada acima. Estas listas dos homens que fizeram a Independência e o Estado Nacional são já bastante tradicionais entre nós e até hoje figuram na maioria dos livros escolares de História do Brasil, mas a simples descrição que acabamos de fazer já indica que elas estão para lá de ultrapassadas. Estas listas indicam os homens que fizeram, porém a pergunta não possui o verbo fazer e sim o verbo construir. O verbo fazer neste caso é característico de uma história política dos grandes homens, dos grandes feitos, dos heróis. Sob a ótica desta história política a resposta é simples e taxativa: foram os grandes homens, os grandes heróis da Pátria, que fizeram a Independência e o Estado Nacional, tais como Dom Pedro I, José Bonifácio de Andrada e Silva – também conhecido como o Patriarca da Independência – e, porque não, até o Tiradentes – herói da Inconfidência Mineira –, entre outros. Contudo, já não é mais esta a ótica adotada pela historiografia, a Independência e o Estado Nacional não são mais explicáveis em si mesmos como fatos isolados. Esses dois fatos são resultados de um longo e tortuoso processo que tinha como objetivo inicial a transformação de Portugal sob os auspícios da Ilustração e que acabou por diversos fatores históricos resultando na formação de um novo Estado Nacional independente na parte americana do Império Português. Ou seja, a Independência e o Estado Nacional brasileiros 3 são partes de um processo constituído e construído por incontáveis atores históricos. Obviamente que os grandes homens da história política tradicional tiveram participações mais decisivas neste processo, porém não estavam sós e agiram em comum acordo com os grupos de interesse que eles representavam ou lideravam. É neste sentido que a pergunta acima se torna intrincada. Afinal, a resposta não contempla pessoas isoladas, mas grupos de interesse formados por diversas pessoas com características as mais variadas e que tiveram pesos e participações bastante diferentes em todo e ao longo deste processo. E todas estas questões, quais são os grupos, quem os formam, quais as suas características, seus interesses, suas diferenças com relação aos outros grupos e quais as suas participações no processo, fazem parte da resposta. Foi tendo estas questões em vista que três autores produziram, nas décadas de 1970 e 1980, textos clássicos sobre a formação do Estado e da Nação brasileiros e sobre os grupos de elite que lideraram este processo. E serão estes textos que analisaremos neste trabalho. As elites imperiais brasileiras através da historiografia Como indicamos acima, textos clássicos foram produzidos nas décadas de 1970 e 1980 que tinham como tema a construção do Estado e da Nação brasileiros a partir da análise dos grupos políticos e sociais que deram forma a este Estado e a esta Nação. Tanto A construção da ordem e O teatro de sombras, ambos de José Murilo de Carvalho, quanto O tempo saquarema, de Ilmar Rohloff de Mattos, se dedicam a analisar que influência a elite política reunida, mas não originária exclusivamente, no Rio de Janeiro teve no modelo de Estado que foi implantado no Brasil logo após a Independência. Como disse José Murilo: Parte-se da idéia de que a decisão de fazer a independência com a monarquia representativa, de manter unida a ex-colônia, de evitar o predomínio militar, de centralizar as rendas públicas, foi uma opção política entre outras possíveis na época. [...] não havia nada de necessário em relação a várias decisões políticas importantes que foram tomadas, embora algumas pudessem ser mais viáveis do que outras. Sendo decisões políticas, escolhas entre alternativas, elas sugerem que se busque possível explicação no estudo daqueles que as tomaram, isto é, na elite política1. Tanto um autor quanto o outro entende que nada foi imposto, dado ou implantado sem nenhum tipo de crítica. Todas as decisões políticas foram escolhas tomadas em vista de 1 CARVALHO, A construção da ordem, p. 19-20. 4 interesses políticos, sociais e econômicos. A diferença entre estes dois autores está naquilo que mais nos interessa ver aqui: quem era essa tal elite política. O Estado foi construído por uma elite, mas uma elite muito diferente de um autor para o outro. Os dois livros de José Murilo são partes da tese de doutorado apresentada por ele em Stanford em 1974 e visavam expurgar da historiografia brasileira o heroísmo da história política tradicional, apontado acima, e o determinismo econômico marxista que classificava o Estado imperial como classista e dominado pelos grandes fazendeiros escravistas do baronato cafeeiro e da aristocracia açucareira. Para ele outro era o tipo de elite que construiu o Estado brasileiro. Seguindo as pegadas de Raymundo Faoro2, embora negando parte das teses deste autor, Carvalho afirma que o modelo de Estado adotado no Império foi resultante direta do tipo de elite política existente na época, uma elite derivada da burocracia estatal e dependente fortemente do Estado, fosse ele português ou brasileiro3. No caso brasileiro a burocracia do Estado foi a construtora deste Estado e graças as suas características peculiares impediu a fragmentação política e favoreceu a implantação de uma monarquia centralizada, escravista, civil e representativa. Portanto, o ator por excelência da construção do Estado Nacional para José Murilo não foi nenhum herói da Pátria, mas sim um grupo social: a elite política derivada da burocracia estatal. Esta elite política derivava da burocracia estatal porque para José Murilo a maior parte dela ocupava cargos dentro desta burocracia que era refúgio para os elementos mais dinâmicos que não encontravam espaço de atuação dentro da agricultura escravista de exportação, fosse sendo impedidos de entrar neste setor ou expulsos dele. E ao ser refúgio de membros alheios à agricultura de exportação, esta elite política tinha uma margem de liberdade de ação que permitia a ela não ser apenas porta-voz de interesses agrários, bem como tomar decisões contrárias a esses interesses. No entanto, esta liberdade não era muito ampla, uma vez que o Estado imperial tirava suas maiores receitas dos impostos sobre as exportações agrícolas. Ou seja, gerava-se neste contexto certa ambiguidade entre a dependência do Estado quanto aos fazendeiros e a liberdade de ação da elite política que não era dependente direta destes4. Dessa forma, José Murilo consegue evitar o determinismo econômico que afirmava que o Estado imperial era classista e dominado pelos grandes proprietários agrícolas 2 FAORO, Os donos do poder. CARVALHO, op. cit., p. 37. 4 Ibidem, p. 41. 3 5 escravistas. No entanto, ele não consegue eliminar por completo a relação da elite política com a agricultura escravista de exportação, como ficou explícito acima. Há uma relação que para ele, no âmbito apenas da elite política reunida no Rio de Janeiro, não influenciava de forma decisiva as ações e decisões desta elite política. Conforme ele mesmo afirma, o ponto não é negar a base classista da elite brasileira, ou de qualquer elite. O núcleo da questão é afirmar exatamente que origem de classe, mesmo quando razoavelmente homogênea, pode deixar em aberto uma série de cursos alternativos de ação sobre os quais a elite como um todo, e portanto o Estado, tem poder de decisão. E seria ilusório dizer que, por ser limitado pela estrutura de classe, esse poder seria de menor importância para o entendimento da evolução política de um país5. Portanto, para José Murilo no caso brasileiro a elite era classista, mas o Estado construído e dirigido por ela não era. A origem da elite política a partir em sua maior parte da classe dos grandes proprietários rurais não determinava a ação desta elite. O que influenciava a ação desta elite era mais a sua dependência com relação ao Estado, uma vez que ela era formada em sua maior parte por burocratas. Esta dependência também era econômica, porém ela não compunha um determinismo econômico uma vez que quem controlava o Estado era a própria burocracia. Ou seja, havia na relação entre a elite política e o Estado uma interdependência que não ocorre nas interpretações deterministas da relação entre o Estado e os donos de terras. Esta interpretação é bastante interessante e ressalta um ponto muito importante relativo à existência da autonomia do Estado. O Estado representativo é, sem dúvida, autônomo uma vez que ele é comandado pelos grupos representados em seu interior, no caso da Monarquia brasileira na Câmara dos Deputados e no Senado. E esses grupos são modificados constantemente por eleições. Não há um grupo que se perpetua no comando do Estado, de modo que o Estado tem que atender a todos os interesses passíveis de conseguirem representação e maioria dentro dos seus órgãos representativos. Portanto, o Estado imperial brasileiro era autônomo e não era classista. Todavia, José Murilo não esclarece muito a questão sobre quem era esta elite política. De fato, ela era bastante burocrática e magistrada, porém isto resulta do tipo de estrutura do Estado imperial e da educação superior nacional do que de um certo predomínio destes setores – burocracia e magistratura – sobre a sociedade. O que ocorria no Brasil era o predomínio de cursos de direito entre os cursos superiores, fazendo com que os indivíduos que pudessem estudar optassem por essa carreira. Depois obviamente estas pessoas entravam 5 Ibidem, p. 138-139. 6 na carreira da magistratura e da burocracia estatal, atingindo a carreira política em alguns casos. No entanto, estes indivíduos também estavam ligados a diversos setores da economia, especialmente aqueles que dominavam a economia do país e que propiciavam uma maior oportunidade de estudo, eram estes os setores relacionados com a agricultura de exportação. Portanto, magistratura e burocracia não são completamente independentes da agricultura de exportação, especialmente em regiões como o Rio de Janeiro e o Nordeste, como quer deixar transparecer José Murilo de Carvalho. De fato o Estado não era classista. No entanto, a constatação de que sendo a elite política dominante composta em grande parte de membros da burocracia estatal ela seria independente dos grandes proprietários de terras e não teria sua ação influenciada por esta base econômica, não é uma constatação válida. Ou seja, nestas duas obras de José Murilo foram determinadas algumas características do grupo político por ele analisados, tais como formado por magistrados e burocratas não vinculados diretamente ao setor agrário-exportador, dependentes do Estado e formação em uma educação comum. E estas características socioeconômicas comuns, segundo o autor, influenciavam sim as decisões tomadas por este grupo. Contudo, acreditamos que este grupo não era totalmente desvinculado ou independente do setor agrário-exportador ou de algum outro setor da agricultura. O outro autor talvez esteja muito mais próximo da realidade deste grupo do que José Murilo de Carvalho. Em O tempo saquarema Ilmar Rohloff de Mattos também procura entender quem foram os construtores do Estado Nacional brasileiro. Ele também procede a uma caracterização sistemática deste grupo denominado por ele de “classe senhorial”. Este grupo também estava reunido no Rio de Janeiro e passou a ser liderado a partir dos anos finais da Regência por um pequeno grupo sediado na província fluminense, a chamada “trindade saquarema”. E basicamente o grupo analisado por este autor é uma parte substantiva do grupo analisado por José Murilo. É uma parte porque José Murilo analisa tanto liberais quanto conservadores, enquanto que o estudo de Ilmar de Mattos é dedicado aos conservadores, embora para este autor os conservadores tenham dominado a ação dos liberais no sentido de que eram grupos diferentes mas que acabavam agindo politicamente da mesma forma6. Conquanto o grupo seja muito parecido e o objetivo da análise seja igual, entender quem foram os construtores do Estado Nacional e de que forma se deu esta relação entre 6 Como diria um ditado imperial, citado várias vezes pelo autor, “nada tão parecido com um saquarema como um luzia no poder”. 7 construtores e Estado, os resultados da análise são razoavelmente diferentes. Para começar Ilmar de Mattos tem como base teórica o marxismo, especialmente os estudos sobre a classe dirigente efetuados por Antonio Gramsci. De forma alguma isso significa que há um determinismo econômico n’O tempo saquarema. Há sim uma forte influência dos fatores econômicos na constituição da classe senhorial, mas não na construção do Estado imperial – não, ao menos, na forma de um economicismo determinista que vê os problemas do Estado e da esfera do político sempre como subprodutos de questões econômicas, como ocorreu em alguns estudos marxistas de meados do século passado7. Portanto, os fatores de ordem econômica aparecem neste texto como fatores muito importantes na constituição do grupo político que, para o autor, exerceu a direção da construção do Estado brasileiro. Diferentemente de José Murilo, para Ilmar de Mattos os construtores do Estado imperial não eram em sua maioria magistrados ou burocratas, esses grupos faziam parte sim do que ele chama de classe senhorial mas não a dominavam. A parte mais importante deste grupo eram os fazendeiros que se espalhavam por todo o território imperial, tendo apenas a liderança do grupo centralizada no Rio de Janeiro. Para o autor, não deixamos de “deslocar” ou “ampliar” o conceito de dirigentes (propriamente falando, de dirigentes saquaremas), os quais não mais se restringem aos “empregados públicos” encarregados da administração do Estado nos seus diferentes níveis. Por dirigentes saquaremas estamos entendendo um conjunto que engloba tanto a alta burocracia imperial [...] quanto os proprietários rurais localizados nas mais diversas regiões e nos mais distantes pontos do Império, mas que orientam suas ações pelo (sic) parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais, além dos professores, médicos, jornalistas, literatos e demais agentes “não públicos” – um conjunto unificado tanto pela adesão aos princípios de Ordem e Civilização quanto pela ação visando a sua difusão8. Portanto, o grupo que construiu o Estado Nacional brasileiro é muito mais amplo para Ilmar de Mattos do que o é para José Murilo de Carvalho. Pode-se concluir apressadamente por esta passagem que fatores de ordem econômica não influenciavam a ação de um grupo tão vasto e tão heterogêneo. Ainda mais se levarmos em consideração as últimas linhas desta citação em que o autor aponta a adesão aos princípios da Ordem e da Civilização como o fator de unificação deste grupo tão amplo. A questão seria de ideologia e não de interesses econômicos. Mas, esta é uma conclusão apressada e errônea. Como bom gramsciano que é, Ilmar de Mattos quer ir, como já dissemos, além do determinismo econômico puro e simples e 7 SILVA, “Desafiando o Leviatã: sociedade e elites políticas em interpretações do Estado imperial brasileiro”, p. 15-16. 8 MATTOS, O tempo saquarema, p. 15-16. 8 quer nos mostrar uma classe senhorial construída no seio de um Estado também em construção, afinal, como nos ensina Gramsci, “a unidade histórica das classes dirigentes é produzida no Estado, e a história dessas classes é essencialmente a história dos Estados e dos grupos de Estados”9. De fato foi a “Ordem” que uniu este grupo – como já diria o nome do partido constituído por ele nos anos iniciais da década de 1840, o “Partido da Ordem” –, porém não foi a ordem por ela mesma. Esta ordem tinha um significado muito maior, ela era a garantidora de que os interesses econômicos deste grupo não seriam abalados pelas desordens ocorridas em todo o Império no período regencial. Não se falava de questões ideológicas, mas sim de questões econômicas. Este grupo era, acima de tudo, um amálgama de experiências comuns. A vivência de experiências comuns, experiências essas que lhes possibilitavam sentir e identificar seus interesses como algo que lhes era comum, e dessa forma contrapor-se a outros grupos de homens cujos interesses eram diferentes e mesmo antagônicos aos seus constituía-se sem dúvida, na condição para uma transformação. Intimamente ligados ao aparelho de Estado, expandiam seus interesses. Procuravam exercitar uma direção e impunham uma dominação. No momento em que se propunham a tarefa de construção de um Estado soberano, levavam a cabo o seu próprio forjar como classe, transbordando da organização e direção da atividade econômica meramente para a organização e direção de toda a sociedade, gerando o conjunto de elementos indispensáveis à sua ação de classe dirigente dominante. Não se constituindo unicamente dos plantadores escravistas, mas também dos comerciantes que lhes viabilizavam e, por vezes, com eles se confundiam de maneira indiscernível, além dos setores burocráticos que tornavam possíveis as necessárias articulações entre política e negócios, a classe senhorial se distinguiria nesta trajetória por apresentar o processo no qual se forjava por meio do processo de construção do Estado imperial10. Pedimos desculpas pela longa citação, mas ela resume bem as relações que Ilmar de Mattos estabelece entre a constituição da classe senhorial e a construção do Estado Nacional. Esta classe era unida por fortes interesses econômicos ligados à agricultura escravista de exportação e tomou as rédeas da construção do Estado Nacional fazendo da Coroa a representante dos seus interesses econômicos. O Estado não era dominado pelos donos de terras, uma vez que a classe senhorial era constituída por uma ampla gama de sujeitos ligados às mais variadas atividades econômicas. Não era um Estado classista, mas sim, sem dúvida, um Estado dominado pelos interesses de um grupo político e econômico muito forte, ligado a 9 GRAMSCI. Apud. MATTOS, op. cit., p. 169. MATTOS, op. cit., p. 68-69. 10 9 um setor preponderante da economia. Enfim, este grupo era muito amplo para que se possa chamar este Estado de classista. O importante a ressaltar é que para Ilmar de Mattos a base socioeconômica do grupo político analisado influenciava decisivamente as suas posições políticas. Afinal, o objetivo principal da atuação política deste grupo era a manutenção dos monopólios a ele pertencentes: da mão-de-obra, da terra e do governo. Os dois primeiros tipicamente relacionados à agricultura escravista de exportação, base econômica comum deste grupo. E quando constituíram a Coroa em partido das suas causas este grupo a fez atuar na defesa destes interesses econômicos. Afinal, para eles política e negócios caminhavam juntos. Portanto, Ilmar Rohloff de Mattos chega a uma visão bastante diferente da visão de José Murilo de Carvalho acerca da influência que a agricultura escravista de exportação teve sobre a atuação política do grupo que direcionou a construção do Estado Nacional a partir da Corte do Rio de Janeiro. É bom lembrar que este grupo era quase o mesmo para os dois autores, mas existiam elementos diferenciados para os dois autores. No entanto, o núcleo principal era o mesmo nas duas análises. Contudo, uma outra obra clássica deste período que analisa alguns sujeitos em comum a estes dois autores, mas que tem a questão da atuação política do grupo pesquisado e a sua formação socioeconômica como seu objeto e a questão da construção do Estado Nacional apenas como contexto, valida mais a interpretação de Mattos do que a de Carvalho. Esta obra é o clássico, importantíssimo e, porque não, revolucionário livro de Alcir Lenharo As tropas da moderação. Este livro é resultado da dissertação de mestrado defendida por Alcir Lenharo na Universidade de São Paulo em 1977 e propõe algo novo na historiografia da época, analisar a temática do abastecimento como uma temática política escapando dos parâmetros da história econômica11. O objetivo é demonstrar como um grupo econômico, os tropeiros ligados à produção e ao comércio de abastecimento interno, alcançaram uma projeção política predominante na política nacional durante a Regência a partir da sua projeção econômica. Este grupo econômico se constituiu na esteira do fenômeno denominado pela historiografia como a “interiorização da Metrópole”, descrito por Maria Odila12, fenômeno ligado ao enraizamento de interesses econômicos da Corte portuguesa no interior da região Centro-Sul do Brasil após 1808 e que permitiu que se iniciasse o processo de constituição de 11 12 LENHARO, As tropas da moderação, p. 19. DIAS, “A interiorização da metrópole (1808-1853)”. 10 um Estado centralizado que após 1822 transmutou-se em Estado Nacional. Em meio a este processo este grupo se expandiu a partir da agricultura de subsistência logo transformada em abastecedora da Corte instalada no Rio de Janeiro. De início este era um grupo econômico isolado no Vale do Paraíba, tanto paulista quanto fluminense, e no Sul de Minas, porém com a expansão do comércio realizado por estes produtores através das tropas seus interesses começaram a se enraizar na Corte. O que antes eram interesses puramente econômicos foram se transformando em interesses políticos graças à abertura da participação política iniciada com a criação do Estado representativo, especialmente após 1826 com a abertura da Assembleia-Geral. Portanto, para Alcir Lenharo o grupo formado por estes produtores/comerciantes ligados a agricultura de abastecimento foi um grupo econômico que se transformou em grupo político graças à possibilidade de participação no Estado representativo. O interesse econômico estava vinculado diretamente ao interesse político. O envolvimento com a propriedade e com os negócios estava inserido na lógica da prática política desses homens. Políticos porque proprietários, somente através da garantia ou expansão de suas propriedades é que poderiam dar continuidade à atividade política. Disto provém a vinculação entre ambos os níveis da realidade – política e negócios – que, pelo visto, constituíam duas faces de uma mesma moeda13. A base socioeconômica deste grupo tinha uma relação direta com a atuação política de seus representantes. Este grupo era muito amplo e alcançou o poder em 1831 com a Abdicação de Dom Pedro I. Formavam um grupo bastante heterogêneo que se autodenominava liberal-moderado14 e que era composto por padres, burocratas, magistrados, fazendeiros – também ligados, em sua menor parte, à grande agricultura de exportação – e comerciantes. Basicamente um grupo muito parecido com o analisado por Ilmar de Mattos, a diferença é que este autor foca a sua análise no período imediatamente posterior à Regência em que o grupo dos liberal-moderados já se havia desfeito. Segundo Lenharo, o objetivo deste grupo era manter a ordem após a Abdicação e ter atendido pelo Estado os seus interesses políticos e econômicos mais imediatos. Não havia uma tentativa explícita de dominar o Estado e transformá-lo em um Estado classista, mesmo porque isto seria muito difícil de alcançar por um grupo que é descrito por Lúcia Maria Paschoal Guimarães como sendo uma facção [que] estava longe de se constituir num partido político, tal como hoje em dia se concebe um organismo desta natureza. Os adeptos da 13 14 LENHARO, op. cit., p. 100. Daí o título do livro As tropas da moderação. 11 “Moderação” [...] careciam de um programa definido, de documentos públicos sujeitos a verificação e registro. A par disso, não constituíam um grupo coeso, dotado de certa disciplina partidária, como os que existem nas formações contemporâneas15. Esta “facção” de fato não era um grupo coeso e diversas foram às vezes que estando no poder os seus membros não se entenderam entre si e tomaram decisões ambíguas. No quadro político da Regência se caracterizavam como sendo o partido do meio, adepto da moderação política e que buscava a reforma da Constituição Imperial respeitando as leis e sem medidas drásticas. Enquanto foi possível manter a ordem política e social do Império este grupo se manteve coeso e, segundo Lenharo, esta coesão também durou enquanto uma nova força econômica não se impôs à economia nacional – a agricultura cafeeira. Destarte, o que vemos na análise de Lenharo é uma íntima relação entre base socioeconômica e atuação política. O grupo dos liberal-moderados somente se manteve unido enquanto a principal força econômica do grupo era o setor abastecedor. Com o início do predomínio do setor cafeeiro dentro deste grupo ele se desfez, e uma nova força política se constituiu em torno do projeto político do Regresso. A expansão do café no Centro-Sul não só se encarregaria de trazer à tona outros problemas pendentes como forçaria a composição social dominante a um redimensionamento do equilíbrio de poder. Questões como a do tráfico escravo bem como a discussão das diretrizes institucionais do país agitaram o interior da classe proprietária, ativando novo alinhamento político concentrado no projeto conservador do Regresso16. E foi justamente neste momento que a agricultura escravista de exportação reassumiu, uma vez que foi ela quem dominou a política nacional antes de 1831, a direção da constituição do Estado Imperial através da construção do Partido Conservador e da hegemonia deste partido sobre o sistema partidário instituído no Império após 1840. Constituindo aquilo que Ilmar de Mattos chamou de “o tempo saquarema” e que ele analisa no seu livro acima citado. Analisando, pois, estas obras, fica patente que a construção do Estado Nacional brasileiro foi uma processo bastante complexo que envolveu diversos grupos políticos. Os três autores se dedicaram basicamente a área do Centro-Sul do Império e a análise de grupos fortemente ligados ao Rio de Janeiro e, mesmo assim, alcançaram resultados bastante diferenciados em suas pesquisas. É importante ressaltar, então, que estas obras abriram o 15 GUIMARÃES, “Liberalismo moderado: postulados ideológicos e práticas políticas no período regencial (1831-1837)”, p. 105. 16 LENHARO, op. cit., p. 107. 12 caminho para uma renovação historiográfica que abandonou a história dos Heróis da Independência e começou a entender todo o processo de emancipação política como um processo complexo, bastante ambíguo e construído por diversos grupos com interesses políticos e econômicos às vezes conflitantes às vezes convergentes. Dessas quatro obras se iniciou o debate historiográfico que permitiu a ampliação, tanto social quanto geográfica, das análises sobre os atores que construíram a Independência e o Estado Nacional brasileiros, fazendo dessas obras clássicos da historiografia nacional. Referências bibliográficas CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombra: a política imperial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. CASTRO, Paulo Pereira de. “A ‘experiência republicana’, 1831-1840”. In: História geral da civilização brasileira – o Brasil monárquico. São Paulo: Difel, 1985, v. 2. COSTA, Wilma Peres. “A Independência na historiografia brasileira”. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: HUCITEC / FAPESP, 2005, p. 53118. DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole (1808-1853)”. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822 dimensões. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 160-184. 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