Gil Vicente - dantas.pro.br

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Prof. Ismael Dantas
[11] 8517-1911
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Gil Vicente
O Teatro Popular......................................................................................................... 02
Gil Vicente................................................................................................................. 02
Julgamento Crítico.................................................................................................... 03
Resumo sucinto da obra Vicentina:........................................................................ 05
Farsa de Inês Pereira ................................................................................................. 05
Auto da Índia .............................................................................................................. 18
Auto da Alma .............................................................................................................. 25
Auto da Barca do Inferno ............................................................................................ 35
Auto da Feira .............................................................................................................. 43
Farsa do Velho da Horta...............................................................................................53
Auto da Lusitânia ....................................................................................................... 60
Auto de Mofina Mendes ..............................................................................................65
Romagem de Agravados ........................................................................................... 67
O Juiz da Beira.............................................................................................................70
Quem tem Farelos?.....................................................................................................73
Textos Complementares acerca do Teatro Vicentino:............................................76
Teatro pré-vicentino.....................................................................................................76
A vida de Gil Vicente .................................................................................................. 77
Gil Vicente, a Idade Média e o Renascimento........................................................... 79
Crítica Social ............................................................................................................ 80
Trilogia das Barcas ..................................................................................................... 84
A Sátira Social em Gil Vicente.................................................................................... 87
Características da obra vicentina................................................................................ 89
Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo Português............... 90
O Teatro ..................................................................................................................... 91
Atividades................................................................................................................... 95.
Fonte de Consulta ...................................................................................................100
1
O Teatro Popular
“Teatro Popular - Durante a Idade Média, a atividade
teatral em Portugal se resumiu aos momos, arremedilhos e
entremezes, breves representações de caráter religioso,
satírico ou burlesco. Teatro de índole popular, caracterizava-se
por uma linguagem, temas e forma de encenação acessíveis
ao povo, e às vezes com a sua direta participação. Na origem,
constituía o teatro profano, oposto aos mistérios e milagres,
manifestações do teatro religioso então predominante”.
(Massaud Moisés, in «Literatura Portuguesa através dos
textos»).
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Gil Vicente
Dramaturgo português que viveu pelos fins do século XV (Guimarães -1465? /
Lisboa? – 1536). É considerado criador do Teatro Português pela apresentação, em 1502,
com o «Monólogo do Vaqueiro» (também conhecido como «Auto da Visitação»). A obra
teatral de Gil Vicente faz parte da primitiva dramaturgia península, ao lado do espanhol
Juan Del Encina. Parte considerável de sua obra está escrita em língua castelhana, a
começar por sua primeira obra, o «Monólogo do Vaqueiro» (1502). Gil Vicente é
considero pela crítica literária a maior figura da literatura renascentista portuguesa antes
de Luís Vaz de Camões.
Há dois aspectos na sátira de Gil Vicente: divertir
o público e redimir o ser humano, conforme o lema da
comédia antiga: ridendo castigat mores (rindo, corrige os
costumes). Alguns dos seus versos valem apenas como
aforismo. Confira: “Mais quero asno que me leve que
cavalo que me derrube”. (Harold Ramanzini, in
«Literatura Gramática e Criatividade»)
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Quanto às modalidades do teatro vicentino:
- Moralidades: Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação), Auto do Pastoril
Castelhano, Auto dos Reis Magos, Auto da Fé, Auto da Mofina Mendes, a Trilogia das
Barcas (Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Auto da Barca da Glória),
Auto da Alma, Auto da Feira entre outras.
- Farsas: Auto da Índia, O Velho da Horta, Quem tem farelos?, Farsa de Inês
Pereira, O Juiz da Beira, Farsa dos Almocreves, Romagem dos Agravados entre outras.
- Comédias: Comédia de Rubena, Comédia do Viúvo, Floresta de Engano, Amadis
de Gaula, Auto da Lusitânia (tragicomédia) entre outras.
2
Julgamento Crítico
De José Maria D’Andrade Ferreira (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):
“Gil Vicente, reagindo contra a pressão clássica, funda o teatro nacional, em que o
espírito da sátira zomba dos dois grandes poderes do tempo, da fidalguia e do clero,
diante do próprio rei e de sua corte. (...)
O seu teatro, como expressão literária, é o espelho daqueles tempos, e os reinados
de Dom Manuel e Dom João III, refletem-se cheios de vida mais genuinamente em todas
as suas cenas do que nas crônicas de Garcia de Resende. A originalidade, que os
infamadores coevos tentaram negar-lhe,
o mais poderoso dote do seu talento. (...) Os chistes de que ele apimenta as falas de seus
personagens, a intenção moral que ele põe nas suas criações, são resultados fecundos
de seus dotes criadores.”
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De Carolina Michaёlis de Vasconcelos (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):
“Já enunciei, diversas vezes, a tese que Gil Vicente, otimamente dotado pela
natureza, ávido de aprender, apto a configurar, lendo o que antes e depois de 1502 lhe
era acessível, e tirando a cada leitura elementos para
a sua educação espiritual, se compenetrara, necessariamente, na infância e na
mocidade, de ideias medievais, adotando uma concepção escolástica – de filosofia
teologante ou teologia filosofante. Colocado nos umbrais do tempo moderno podia ser
influído todavia na idade viril pelas correntes caudalosas das ideações do Renascimento.”
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De Fidelino Figueiredo (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):
“... enquanto o teatro clássico ia caminhado para a concentração dos seus efeitos
emotivos pela pratica rigorosa da disciplina das unidades de ação, de tempo e de lugar,
de limitação do número de personagens, de eliminação de todos os elementos
antidramáticos e de unificação ou homogeneidade do seu tom – o auto de Gil Vicente
caminhava para ampliação dos seus temas, para o aumento da população do palco, para
uma duração cada vez maior da ação, não da representação, e para a mais audaciosa
justaposição dos lugares.”
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De Hernani Cidade (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):
“O que a sua obra patenteia é que era homem de bem extraordinários talentos,
altos e vários. Ao que se depreende das cartas de D. Manuel que lhe dizem respeito, era
ele a um tempo cenógrafo e músico, dramaturgo e poeta-poeta, sobretudo. (...)
Interessa em Gil Vicente o artista que soube surpreender todo o pinturesco do
espetáculo da vida; o psicólogo atento à intimidade das almas; o poeta capaz de
profundamente sentir e sugestivamente comunicar os sentimentos e as ideias de mais
íntima e funda ressonância: o homem, finalmente, no mais compreensivo sentido da
palavra, em simpatia comunhão com os seus contemporâneos, cujas aspirações,
entusiasmos, ideias encontram na sua obra, não apenas o eco nítido, senão também a
lúcida consciência diretiva.”
De I.S. Révah (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):
3
“A obra vicentina não é só uma esplendida realização literária; palpita nela de modo
espantosamente vivo a sociedade portuguesa do primeiro terço do século XVI, com as
suas classes, os seus vícios, os seus impulsos intelectuais e religiosos.”
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De S. Spina (Presença da Literatura Portuguesa – Era Medieval):
“A sua autonomia intelectual, a ortodoxia das suas ideias religiosas e a coragem
expressa no seu teatro de crítica social, explicam o parentesco do seu ideário com o
pensamento reformista do tempo; explicam, também o prestígio de que gozou na corte,
onde a proteção da Rainha Velha D. Leonor, viúva de D. João II, e logo a seguir a do
próprio rei D. João III, mantiveram o esplendor do teatro vicentino durante 34 anos.”
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De António José Saraiva (História da Cultura em Portugal vol. II Gil Vicente - Reflexão da
Crise):
“Gil Vicente não faz mais do que glosar o «Bem-aventurados» os pobres de
espírito, porque deles é o reino dos céus» do Sermão da Montanha. Mas esta frase
evangélica, repelida mecanicamente por outros, parece ter nele um conteúdo substancial.
Ora esta utopia dos simples e ignorantes, que imaginam o Céu como uma serra farta de
gado, que não sabem rezar, que desejam aos anjos, como recompensa, um bom
casamento, em talvez algum significado. Pelo menos acentua o caráter negativo da
ideologia vicentina na medida em que se opõe a um mundo real de mercadores, senhores
feudais e pregadores eruditos. Aqueles que nada têm, nem terra, nem sabedoria, nem
arte de viver, são os perfeitos, estão à porta do paraíso e deles é o reino dos céus. Uma
espécie de idade de ouro é sonhada por Gil Vicente no mundo pastoril”.
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De António José Saraiva (Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval):
“Gil Vicente não pode ser considerado independentemente, como um autor sem
antecedentes, um fenómeno miraculoso. Considera-o também um inovador que
transformou os antigos momos do Paço em comédias e tragicomédias”.
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NOTAS:
coevo [é] – coetâneo. (Coetâneo – que vive ou viveu na mesma época.)
chiste – dito gracioso; pilhéria.
ávido - que deseja com ânsia, com ardor.
ideação – ato ou efeito de idear; formação de ideias; idealização.
escolástico – escolar; modesto; despretensioso; relativo à escolástica; diz-se do método das escolas
medievais.
4
Resumo sucinto da obra vicentina
Farsa de Inês Pereira
A Farsa de Inês Pereira é o desenvolvimento
dramático do provérbio “mais quero asno que me
leve que cavalo que me derrube”. Gil Vicente
desenvolveu este dito popular que lhe foi dado por
alguns fidalgos que desconfiavam da sua
honestidade literária. O mote foi muito bem
trabalhado, provando assim Mestre Gil que a
calúnia não tinha razão de ser. Trata-se de uma
história com princípio, meio e fim, à maneira da
Farsa da Índia ou do Velho da Horta. É uma sátira
social, cuja ação dramática expõe uma história satírica. Foi o primeiro provérbio glosado
em teatro.
Em Gil Vicente a estrutura da “farsa” pode ser feita de quatro maneiras: poderá
constituir um episódio arrancado à vida real, como acontece na farsa Quem tem Farelos?
; pode ainda ser uma série de episódios sem ligação, como o Clérigo da Beira; ainda uma
série de episódios ligados a uma personagem principal como no Juiz da Beira, onde
intervém o mesmo Pero Marques, feito juiz, mas sem a noção dos processos jurídicos que
defende. Teremos, finalmente, uma ação dramática completamente desenvolvida. Esta
última estrutura é a que corresponde à Farsa de Inês Pereira. Todas as cenas se
desenrolam num contexto lógico.
Após uma introdução realizada por Inês que canta e põe de parte o trabalho que
estava fazendo, enquanto a mãe foi à missa, esta se zanga. Ter uma filha preguiçosa não
agrada a ninguém, muito pior quando ela só pensa em maridos e casamentos! Chega
uma alcoviteira – Lianor Vaz – que traz à jovem uma proposta de casamento de um certo
Pero Marques, rico, mas estúpido e boçal. Inês não o quer. Ela sonha com um bom
“tangedor de viola” e que seja bem falante. Ele irá aparecer trazido pelos Judeus
casamenteiros – Latão e Vidal – e esta Inês, fantasiosa e sonhadora logo se sente atraída
pelo escudeiro, aceitando casar com ele. O pior virá a seguir! Ele é cruel, egoísta e
autoritário. A vida de casada é um perfeito inferno. Felizmente que ele morre em Arzila. É
a libertação do cativeiro da pobre moça que nunca imaginou ser tão infeliz. Lianos Vaz
aparece de novo. Volta a falar-lhe no casamento com Pero Marques, agora que ele ainda
está muito mais rico. A experiência da vida conjugal foi para ela uma lição. Agora, aceitará
o moço estúpido que lhe proporcionará uma existência de liberdade. O amor não
interessa. Ela já não tem ilusões! E a farsa irá terminar pela ida de ambos, já casados, à
feira, onde Inês se encontrará com um antigo namorado, um falso Ermitão. Traído pela
mulher na sua fidelidade conjugal ele, o “asno”, de nada se apercebe. Assim Inês arranja
um marido que a “leva” e se livra do “cavalo” que a derrubara.
A Farsa de Inês Pereira é, pois, uma comédia de caráter e de costumes da vida
doméstica, com “tipos” bem definidos. Trata-se, igualmente, de um ótimo documento para
o conhecimento de ditados populares e cantigas, o que prova o interesse de Gil Vicente
pela poesia tradicional. (Maria Amélia Ortiz da Fonseca, in Gil Vicente Farsa de Inês
Pereira).
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5
A passagem que se vai ler corresponde ao delicioso diálogo em que Pero Marque
vem pedir a má de Inês em casamento.
Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz:
Mãe
Pêro
Inês
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá...
Eu vos escrevi de lá
a cartinha, senhora...
Assim ...que de maneira...
Tomai aquela cadeira.
E que val aqui uma destas? (31)
(Ó Jesus! Que Jão das Bestas!
Olhai aquela canseira!)
Assentou-se com as costas para elas, e diz:
Mãe
Pero
Mãe
Pero
Inês
Pero
Inês
Eu cuido que não estou bem...
Como vos chamais, amigo?
Eu Pero Marques me digo,
como meu pai, que Deus tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deus!
que fora bem escusado,
E ficamos dous eréus. (32)
Porém, meu é o morgado. (33)
De morgado é vosso estado?
Isso viria dos céus.
Mais gado tenho eu já quanto,
e o mor de todo o gado,
digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
prouguesesse ao Espírito Santos!,
com Inês, que eu me espanto
quem me fez seu namorado.
Parece moça de bem,
E eu de bem, er também.
Ora vós ide lá vendo
se lhe vem melhor ninguém,
a segundo o que eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
peras da minha pereira...
hão-de estar na derradeira. (34)
Tende ora, Inês, por i.
(35)
E isso hei-de ter na mão?
Deitai as peias no chão. (36)
As perlas para enfiar..
três chocalhos e um novelo...
e as peias no capelo... (37)
E as peras? onde estão?
6
Pero
Inês
Pero
Inês
Pero
Nunca tal me aconteceu...
Algum rapaz mas comeu,
que as meti no capelo,
eficou aqui o novelo,
e o pente não se perdeu.
Pois trazia-as de boa mente...
Fresco vinha o presente,
com folhinhas borrifadas!
Não, que elas vinham chentadas (38)
cá em fundo, no mais quente.
Vossa mãe foi-se? Ora bem!
Sós nosdeixou ela assi,
Cant'eu quero-me ir daqui, (39)
não diga algum demo alguém...
E Vós que, me havíeis de fazer?
Nem ninguém que há-de dizer?
(O galante despejado!)
Se eu fora já casado,
doutra arte havia de ser...
como homem de bom recado. (40)
(Quão desviado este está!
Todos andam por caçar
suas damas sem casar
e este... tomade-o lá!).
Pero Vossa mãe é lá no muro?
Inês Minha mãe eu vos seguro
que ela venha cá dormir.
Pero Pois, senhora, eu quero-me ir,
antes que venha o escuro.
Inês
Inês
Pero
Virá cá Lianor Vaz,
veremos que lhe dizeis...
Homem, não aporfieis,
que não quero, nem me apraz.
Ide casar a Cascais!
Não vos anojarei mais,
ainda que saiba estalar; (41)
e prometo não casar
até que vós não queirais.
7
Inês
Pero
(Estas vos são elas a vós! (42)
Anda homem a gastar calçado,
e quando cuida que é aviado,
escarnefucham de vós!) (43)
Não sei se fica lá a peia...
Pardeus! Bom ia ia eu à aldeia!
Senhora, cá fica o fato...
Olhai se o levou o gato...
Inda não tendes candeia!
Ponho por cajo que alguém (44)
vem como eu vim agora,
e vos acha só a tal hora.
Parece-vos que será bem?
Ficai-vos ora com Deus,
çarrai a porta sobre vós, (45)
com vossa candeazinha...
E sicais sereis vós minha: (46)
entonces veremos nós...
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NOTAS:
31)Pero Marques pergunta qual preço duma cadeira destas.
32)eréus: herdeiros.
33)morgado: filho primogênito, herdeiro por excelência dos bens vinculados.
34)Refere-se às últimas peras da planta.
35)Isto é: segure aí, Inês.
36)peias: arreios do animal (que Pero Marques levou consigo para a casa de Inês).
37)capelo: chapéu.
38)chentadas: metidas.
39)cant’eu: quanto a mim.
40)homem de recado: prudente.
41)Entenda-se: ainda que eu seja homem estourado, não vos aborrecerei mais.
42)Isto é: assim são vocês, mulheres!
43)escarnefucham: zombam.
44)Entenda-se: supúnhamos que alguém apareça
45)çarrai: fechai.
46)siquais: quem sabe, oxalá.
(*)SPINA, Segismundo. (Org.). Obras-primas do teatro vicentino. São Paulo: Difel, 1983. p.171-174
8
Personagens
Tipos
Caracterização
Linguagem
Comportamento
Inês
Monologada, irônica, crítica, Preguiçosa, leviana, alegre
revoltada.
namoradeira, vaidosa, infiel
vingativa, sabida, fingida,
teimosa.
Pero Marques
Monologada, tímida, afetiva, Ignorante, submisso, rude,
obsequiosa.
discreto, respeitador,
honesto, leal, generosos,
ingênuo, trabalhador.
Mãe
Lianor Vaz
Rude, proverbial, familiar,
vulgar.
Conselheira, amiga, sincera,
ajuizada.
Familiar, descontrolada,
epítetos.
Conselheira, amiga, cômica,
ajuizada.
9
Personagens
Tipos
Escudeiro
Latão e Vidal
Moço do Escudeiro
Ermitão
Caracterização
Linguagem
Comportamento
Monologada, galante,
irônica, epítetos.
Mentirosos, desleal,
preguiçoso, ambicioso,
vaidoso, cauteloso,
gabarola, gracejador.
Atabalhoada, trocadilhos,
convincente, desconexa,
exclamativa, interrogativa.
Interesseiros, mentirosos,
casamenteiros, fingidos,
artificiosos.
Refilona, revoltada.
Pobre, serviçal, leal.
Ambígua, castelhana,
galante, persuasiva.
Persistente, adulador, falso,
mentiroso, infeliz, parasita.
10
A Sátira Social na Farsa de Inês Pereira
Na Farsa de Inês Pereira as personagens constituem
«tipos» vicentinos. O papel da mulher no século XVI aí está
representado em Inês, a Mãe e Lianor Vaz. A sátira social
está presente, com maior ou menor intensidade, consoante
a intriga a requer. Analisemos, em primeiro lugar, o
desempenho de Inês. É uma rapariga solteira, com grande
pesar seu. Antes tivesse «filhos de três em três» pois não
estaria tão sozinha. Ela pretende casar-se com alguém que
pertença a um nível social superior ao seu. É natural que
levando a vida que levava, sempre fechada em casa (nem
sequer ia à missa!), sem poder ir à janela e sempre
obrigada às lides caseiras desejasse emancipar-se. A
autoridade e os conselhos da Mãe enfastiam-na. «Lavrar»
não é com ela! Embora quisesse casar-se depressa, em
boa verdade pretendia escolher marido do seu agrado. Não era ambiciosa em matéria de
riquezas. Um homem rico não lhe interessava. Queria-o instruído, elegante, educado,
bem falante, que a fizesse sentir-se orgulhosa da escolha que fizera. A sua presunção é
muito! O pobre Pêro Marques não lhe serve, campônio como é, tão deselegante, tão
boçal. Ele é um «simplório» e isso não agrada à moça, que se sente muito superior a ele.
Seria mal empregada em tal marido! Pêro Marques simboliza o homem do campo, o
lavrador honrado e bem intencionado, em oposição ao Escudeiro que é, ou parece ser,
ligado à corte. Este problema do antagonismo entre o camponês e o homem cortesão,
dois tipos tão antitéticos, irá ser bem desenvolvido por Sá de Miranda. A corte simbolizava
luxo e devassidão Temos, assim, a sátira social na pessoa de Inês.
Falemos, agora, do clérigo. A história que Lianor Vaz conta parece ser inventada
pelo menos, a Mãe de Inês não acredita nela. Um tal clérigo queria abusar dela e, uma
vez mais, Gil Vicente ataca a classe eclesiástica. Lianor conta a sua «história» com todos
os pormenores. Ele agarrou-a e rasgou-lhe o «cabeção da camisa», tal a fúria que dele se
apossara. Ela bem quis gritar mas estava rouca, «com tosse e catarro» e as palavras não
lhe saíam da garganta. O clérigo pretendia saber se ela era «macho ou fêmea». É
evidente que nada conseguiu porque Lianor fugiu salva por um tal Vasco de Fois, que era
alferes-mor da Ordem de Cristo, em Tomar, onde a farsa foi representada. Está, assim,
posto a nu o carácter dos clérigos, dos falsos religiosos, cuja vida se não coadunava com
a missão religiosa a que haviam devotado.
Quanto ao Escudeiro, outro «tipo» vicentino, ele é muito frequente na obra de
Mestre Gil. Dando-se ares de grande personalidade, sabendo, como ele próprio diz, «ler e
escrever», «tanger viola», e cantar, não passa de um «rascão», isto é, um vadio e um
vagabundo que vai vivendo de expedientes e pretende uma mulher de posses e que seja
«donzela». Claro que Inês só tinha a seu favor a beleza, a garridice e a frescura juvenil.
Quando o »Moço» se queixa deter os sapatos rotos, de dormir no chão «com o tecto por
manta» e de não ter que comer, ele tudo lhe promete para depois de casado. Parece-nos
que o dinheiro teria de vir de Inês! Fanfarrão e covarde irá mostrar-se tal como é ao
morrer às mãos de «um pastor mouro» quando ia a fugir de uma batalha,
enclausurada tivesse exclamado: «oh que nova tão suave»!
11
Lianor Vaz não chega a ser o «tipo» perfeito das alcoviteiras. Ela não pretende
lucros ao arranjar o casamento para Inês. Fá-lo por amizade. Bem diferente é das
verdadeiras «alcoviteiras» de Gil Vicente-Brizida Vaz, por exemplo, ou Ana Dias e Branca
Gil. Estas mulheres gozavam de grande prestigio na sociedade do tempo.
Em oposição a Lianor Vaz temos os «Judeus casamenteiros» que operam por
interesse. Eram igualmente bem conceituados e emprestavam dinheiro a juros.
São, pois, estes, os breves apontamentos que colhemos quanto à sátira social na
Farsa de Inês Pereira. (Maria Amália Ortiz da Fonseca, in «Gil Vicente Farsa de Inês
Pereira»).
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NOTAS:
lide – lida; canseira; combate.
campónio – camponês. [Campônio – port. Do Brasil]
boçal – estúpido,ignorante, rude, grosseiro.
cortesão – homem que freqüenta a corte. Home de maneiras distintas e amáveis.
sevassidão - qualidade ou conduta de devasso; libertinagem. Desregramento de costumes.
clérigo – pessoa que recebeu ordens sacras.
camisa – peça de vestuário feminino para dormir. [Camisola - Brasil]
alferes [é] – antigo posto do exercito brasileiro correspondente ao atual segundo–tenente.
coadunar - conformar(-se), combinar-(se), harmonizar-se).
tanger - tocar (instrumento musical). Tocar (gado).
garridice – qualidade do que garrido; elegância.
roto [ô] - que se rompeu; feito em pedaços; quebrado.
algoz [ó ou ô] – carrasco. Pessoa cruel, desumana.
12
ESTUDO DO TEXTO
«Farsa de Inês Pereira» (Leia a peça na integra)
01) Provão - 2002
Como é seca a velhice!
Leixai-me ouvir e folgar,
que não me hei-de contentar
de casar com parvoíce.
A protagonista de Inês Pereira profere as palavras acima pa-ra justificar à mãe a decisão
de não se casar com Pero Marques. Nas cenas finais, já viúva do escudeiro autoritário
com quem escolhera casar, a personagem decide aceitar o antigo pretendente, que lhe
parece talhado para ser marido traído. Com essa trajetória da personagem, Gil Vicente
comprova a máxima popular que é tomada como mote de seu texto: mais quero asno que
me leve que cavalo que me derrube.
As considerações acima, associadas ao contexto da obra, permitem a afirmação correta
de que o autor
(A) produziu a reviravolta no enredo da farsa humanística como manobra para garantir a
dignidade da heroína,representante dos valores sociais que emergiam.
(B) fez a protagonista viver a tragédia da inocência, e sua humilhação final mostra a
impossibilidade da preservação do pretendido registro idealista.
(C) escolheu o gênero que lhe permitisse tratar o amor e a estrutura social como forças
fatalisticamente irreconciliáveis, impondo o banimento da heroína do grupo social a que
pertence.
(D)) se preocupou, como é usual no gênero escolhido, em mostrar que a heroína se
ajustou a uma nova situação e à sociedade como um todo, recurso que permitiu a Gil
Vicente evidenciar a hipocrisia de seu tempo.
(E) deu à farsa o tratamento típico da tragédia – a heroína ao vencer uma série de provas
desafia o destino – recurso escolhido para criticar, pelo riso, costumes de seu tempo.
02) Leia as três afirmações abaixo a respeito da Farsa de Inês Pereira.
I – Pode ser colocada como representante do teatro de costumes vicentino.
II – Encaixa-se na tradição da farsa medieval sobre o adultério feminino desenvolvida por
Gil Vicente.
III – Inês Pereira é uma moça que vive na vila e pretende subir de condição.
a) Todas estão corretas.
c) Apenas a I e a II estão corretas.
e) Apenas a II e a III estão corretas.
b) Todas estão incorretas.
d) Apenas a I e a III estão corretas.
13
03) “Inês canta dois versos em castelhano. Levanta-se da
cadeira onde costurava. Finge estar trabalhando e inicia o seu
monólogo. Queixa-se da vida que leva, sempre fechada em
casa e obrigada a realizar as lides caseiras. Como poderá ela
viver toda a vida desse modo? Não é nenhum macaco nem
coruja para estar sempre encerrada «como panela sem
asa/que está num lugar». Se a vida são dois dias para que háde ela conformar-se? Como as outras moças também ela quer
rir, folgar e sair quando lhe apetecer. Pretende estar à janela
para se distrair.” Comente acerca da importância da
introdução do texto?
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04)Aponte a dicotomia entre Lianor Vaz e os Judeus casamenteiros
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05)Estabeleça a antítese entre Inês e a Mãe.
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14
06)Caracterize as atitudes de Inês ao longo de toda a Farsa.
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07)O diálogo final entre marido e mulher é bastante elucidativo. Como Gil Vicente retrata
esse diálogo?
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08) Indique a diferença entre Pêro Marques e o Escudeiro.
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09)Para responder à questão, leia os versos seguintes, da famosa Farsa de Inês Pereira,
escrita por Gil Vicente:
Andar! Pero Marques seja!
Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Meu desejo eu retempero:
asno que me leve quero,
não cavalo valentão:
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero.
Sobre a Farsa de Inês Pereira, é correto afirmar que é um texto de natureza:
(A) satírica, pertencente ao Humanismo português, em que se ridiculariza a ascensão
social de Inês Pereira por meio de um casamento de conveniências.
(B) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições humanas entre a
vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamentos complicados de Inês
Pereira.
(C) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o papel
moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações embaraçosas
vividas por Inês Pereira.
(D) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se apresenta
a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras.
(E) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma sutil e
irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores essencialmente
materialistas.
10)O argumento da peça A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, consiste na
demonstração do refrão popular “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me
derrube”. Identifique a alternativa que não corresponde ao provérbio, na construção da
farsa:
(A) A segunda parte do provérbio ilustra a experiência desastrosa do primeiro casamento.
(B) O escudeiro Brás da Mata corresponde ao cavalo, animal nobre, que a derruba.
(C) O segundo casamento exemplifica o primeiro termo, asno que a carrega.
(D) O asno corresponde a Pero Marques, primeiro pretendente e segundo marido de Inês.
(E) Cavalo e asno identificam a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida
conjugal.
16
11)Em Farsa de Inês Pereira (1523), Gil Vicente apresenta uma donzela casadoura que
se lamenta das canseiras do trabalho doméstico e imagina casar-se com um homem
discreto e elegante. O trecho a seguir é a fala de Latão, um dos judeus que foi em busca
do marido ideal para Inês, dirigindo-se a ela:
"Foi a coisa de maneira,
tal friúra e tal canseira,
que trago as tripas maçadas;
assim me fadem boas fadas
que me soltou caganeira...
para vossa mercê ver
o que nos encomendou."
friúra: frieza, estado de quem está frio
maçadas: surradas
fadem: predizem
Sobre o trecho, é correto afirmar:
a) Privilegia a visão racionalista da realidade por Gil Vicente, empregada pelo autor para
atender as necessidades do homem do Classicismo.
b) É escrito com perfeição formal e clareza de raciocínio, pelas quais Gil Vicente é
considerado um mestre renascentista.
c) Retrata uma cena grotesca em que se notam traços da cultura popular, o que não
invalida a inclusão de Gil Vicente entre os autores do Humanismo.
d) Sua linguagem é característica de um período já marcado pelo Renascimento, o que se
evidencia pela referência de Gil Vicente a figuras mitológicas clássicas, como as "boas
fadas".
e) Revela em Gil Vicente uma visão positiva do homem de fé que se liberta da doença
pelo recurso à divindade.
12) Prove que o mote «mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube» está
bem desenvolvido.
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17
Auto da Índia
“O Auto da Índia é a primeira farsa de Gil
Vicente, representada em 1509 perante a Rainha
D. Leonor, viúva de D. João II. A tentativa foi
magistralmente lograda. O poeta-ourives tomou
como tema um aspecto marginal da história da
expansão portuguesa no Ultramar: a sua
repercussão na fidelidade conjugal. A heroína do
auto aproveita a ausência do marido (que
embarcou para a Índia) para se divertir. O que a
põe em situação embaraçosa é a presença
simultânea, na sua casa, de dois admiradores,
Lemos e o Castelhano fanfarrão. O auto termina
com a chegada do marido, a quem a heroína
descreve, de modo bem diferente da realidade, a
vida que levara na sua ausência.” (1)
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Muito embora a obra se apresente como uma peça num só ato, à maneira da
época, ela mostra nitidamente a existência de partes. Assim, podemos ver nela três
momentos:
1º) A expectativa da partida – Revela-se aí toda a ansiedade da Ama e apreensão
pela demora do embarque.
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2º) O adultério – Longe do marido, Constança deixa-se conquistar facilmente por
um castelhano e antigo pretendente, chamado Lemos.
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3º) O regresso do marido – Aproxima-se o termo da viagem e o simples anúncio do
regresso do marido perturba a Ama. A chegada provoca nela certo desespero; no entanto,
disfarça, alude a promessas feitas, à aflição vivida durante a ausência e até à falta de
apetite.
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18
Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido. (2)
Moça
Ama
Moça
Ama
Moça
Ama
Moça
Ama
Jesu! Jesu! Que é ora isso?
É porque se parte a armada?
Olha de a mal estreada!
Eu hei de chorar por isso?
Por minh' alma que cuidei
e que sempre imaginei,
que choráveis por noss' amo.
Por qual demo ou por qual gamo
ali, má hora chorarei?
Como me leixa saudosa!
Toda eu fico amargurada!
Pois por que estais anojada?
Dizei-mo, por vida vossa.
Leixa-m' ora, era má,
que dizem que não vai já.
Quem diz esse desconcerto?
Disseram-mo por mui certo,
que é certo que fica cá.
10
15
Moça
Ama
O Concelos me faz isto.
S'eles já estão em Restelo,
como pode vir a pelo?
melhor veja eu Jesus Cristo;
isso é quem porcos há menos.
Certo é que bem pequenos
são meus desejos que fique.
A armada está muito a pique.
Arreceio al menos.
Moça
Ama
Andei na má hora e nela
a amassar e biscoutar
para o demo levar
à sua negra canela
e agora dizem que não.
Agasta-se-m'o coração
que quero sair de mim.
Eu irei saber s'é assim.
Hajas a minha benção.
Moça
Ama
5
20
25
30
35
19
Vai Moça e fica a Ama dizendo:
Ama
Moça
Ama
Moça
Ama
A Santo António rogo eu
que nunca mo cá depare:
não sinto quem não s'enfare
de um diabo Zebedeu.
Dormirei, dormirei,
boas novas acharei.
São João no ermo estava,
e a passarinha cantava.
Deus me cumpra o que sonhei.
Cantando vem ela e leda.
Dai-m' alvíssaras, senhora,
já vai lá de foz em fora.
Dou-te uma touca de seda.
Ou, quando ele vier,
dai-me do que vos trouxer.
Ali muitieramá!
agora há- de tornar cá?
que chegada e que prazer!
40
45
50
[...]
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NOTAS:
3)mal estreada: desastrada.
8)gamo: marido enganado
9)má hora: em má hora.
12)anojada: aborrecida, enfadada.
14)eramá: em má hora.
16)desconcerto: disparate, desproposito.
19)Concelos: Vasconcelos.
21)vir a pelo: vir a propósito.
26)a pique: a ponto (de partir).
27)al demenos: ao menos, pelo menos.
31) à sua negra canela: para a Índia.
36)benção: na época, bênção era vocábulo oxítono.
39)s’enfare: se aborreça.
40)Entenda-se: de um diabo como o meu (marido).
52)muitierama: em muito má hora
(1). COELHO, Jacinto do Prado (org.). Dicionário das literaturas portuguesa, brasileira e galega. 3º ed,
Porto, Figueirinhas, 1978. p. 76.
(2)MOURA, Gilberto (Org.). Teatro de Gil Vicente. Lisboa: Ulisseia, 1991.
20
Personagens
Tipos
Constança
Moça
Caracterização
Linguagem
Comportamento
Popular, realista, crítica,
Manhosa, leviana, infiel,
objetiva, dubitativa,
resmungona, exaltada,
exclamativa, irônica, figurada. vaidosa, vulnerável,
desonesta, sensual,
mentirosa, curiosa,
Popular,
proverbial,desarticulada,
crítica, objetiva, irônica.
Alegre, amiga, serviçal,
dissimulada, fingida,
ingênua, convincente,
observadora,resmungona,
confidente, conselheira.
Castelhana, disparatada,
objetiva, satírica, falsa,
galante, gabarolas, cômica,
denotativa, madrigalesca,
enfática, exagerada, teatral
Fanfarrão, palrador,
manhoso, atiradiço,
adulador, mentiroso,
teimoso, pretensioso,
vaidoso, cortejador.
Lemos
Popular, exagerada, teatral,
objetiva, realista, imaginativa,
desarticulada.
Megalômano, guloso,
fingido, apaixonado,
conquistador, pobre,
alegre.
Marido
Popular, comunicativa,
narrativa, objetiva, afetiva.
Ingênuo, confiante,
simples, bondoso, amigo.
Castelhano
21
A Sátira Social no Auto da Índia
O Auto da Índia é a primeira farsa de Gil Vicente, representada em 1509 perante a
rainha D. Leonor, viúva de D. João II. A tentativa foi magistralmente lograda. Mestre Gil
tomou como tema um aspecto marginal da história da expansão portuguesa no Ultramar:
a sua representação na fidelidade conjugal. A heroína aproveita a ausência do marido,
que embarcara para a Índia, para se divertir. O que a põe em situação embaraçosa é a
presença simultânea de dois admiradores – Lemos e o Castelhano fanfarrão.
Erradamente classificada de Auto, a obra em questão é, com efeito, uma farsa, com todos
os ingredientes que ela comporta. Etimologicamente, a palavra farsa significa entremeio,
recheio. É uma pequena peça, profana, acentuadamente cómica, que se entremeava nas
representações teatrais populares, em França, na Idade Média. Depois passou a designar
peça cómica e, finalmente, certa forma ou grau de comédia caracterizada pela
despreocupação quanto à verossimilhança e pela truculência dos processos. Na
compilação da obra de Gil Vicente, feita pelos seus filhos Luís Vicente e Paula Vicente,
em 1562, as farsa constituem o quarto livro. Os Autores eram, em geral, de caráter divino.
Ora o Auto da Índia nada tem que nos lembre religião. As personagens são todas
profanas, arrancadas à vida quotidiana, com seus defeitos e virtudes, muito embora as
personagens do Auto da Índia nos apareçam com as suas deficiências morais, muito
acima das «boas qualidades», se exceptuarmos o caso da Moça. Se Constança é uma
mulher infiel, uma adúltera, ela é-o, não apenas pela situação em que se encontra, pois o
marido está ausente, na Índia, mas sim porque ela é, por força do seu carácter, infiel em
qualquer circunstância. O facto de o marido estar longe, não explica nem desculpa a
atitude da mulher. Sabemos, porque ela própria se nos confessa que, quando ele ia à
pesca a poucos quilómetros de casa, a infidelidade já existia. Gil Vicente pretende pôr em
evidencia as consequencias nefastas da partida das armadas para longes terras.
Já o Velho do Rastelo, nos Lusíadas, nos diz que a “dura inquietação da alma e da vida”
é uma «fonte de desamparos e adultérios». Pretendia-se ganhar dinheiro, ganhar
honrarias, ganhar poder político. A ambição era desmedida. Os “fumos da Índia”
enfeitiçavam os homens mais crédulos. Todos se propunham partir. Todos alimentavam
ilusões que, na maior parte das vezes, se desfaziam perante a realidade. No Auto da
Índia está latente uma verdadeira comedia de costumes, de maus costumes,, verdade se
diga. Constança é retratada com todo o pormenor psicológico. Gilberto Moura, na
introdução à sua obra, Teatro de Gil Vicente, escreve: «A principal qualidade histórica
desta peça, cujo titulo lhe foi atribuído, é a de representar a introdução do real
contemporâneo no nosso teatro. Pela primeira vez m Portugal se contava no palco
qualquer coisa,e essa coisa era matéria de actualidade para o povo, objecto das
preocupações de uns e do riso incontido de outros. Preocupação, porque o adultério
representava o factor mais importante da desagregação das famílias, um perigo moral e
social. Riso, pelo cómico contrastante operado no comportamento da esposa leviana,
fulminando por um lado o marido de doestos cruéis durante a sua ausência, e desejando
a sua morte; e hiprocritamente solicita pelo outro, dulcerosa e interessada após a
chegada dele. » Se Constança é aquela mulher abominável que nos conhecemos, a
Moça é, pelo contrario,uma rapariguinha simples, honesta,brincalhona, que não concorda
com as infidelidades da Ama. Também aquela é um produto da sociedade da época, na
medida em que é obrigada a trabalhar para ganhar o pão de cada dia. Muito ela atura,
mas a necessidade a isso a obriga. O meio social de Constança não é dos piores.
Embora ela seja uma ignorante, uma fútil, parece-nos a ter quaisquer problemas
financeiros. A partir, o marido deixara-a bem recheada.
22
Por outro lado, a sua casa, embora pequena, tinha o necessário. Duas divisões, a
cozinha e o quarto, mas também isso era vulgar na época, nas classes médias. Era
quanto lhe bastava para receber garbo os seus “namorados!”. Como era o quarto
dependência apresentável , aí se passava tudo. A cama tinha de estar sempre presente,
por força das circunstancias. Isso facilitava os encontros amorosos. Se repararmos nos
comparsas do Auto – O Lemos e o Castelhano vinagreiro -, veremos que eles
correspondem a “tipos” da sociedade no tempo de Gil Vicente, o que não significa que os
não haja nos momentos presentes. O Castelhano é um produto da influência de Castela
no nosso país, onde imperava o castelhanismo. Ambos pretendentes são pobres, embora
alardeando uma riqueza que não possuem. São um produto da época. A sátira social
está em ambos representada. O próprio Marido de Constança, que seguira viagem para a
Índia na armada de Tristão da Cunha, corresponde aos anseios do mundo que rodeava
Gil Vicente. A infidelidade conjugal está também presente na Farsa de Inês Pereira
embora, quanto a nós, mais atenuada. Há que reparar que em ambos os casos os
maridos são ingénuos, simples, confiantes. Nem Pêro Marques nem o marido de
Constança desconfiam das suas mulheres. A sátira está presente em ambos os casos.
A obra vicentina, não obstante o seu medievalismo, não deixa de inspirar-se nas
realidades do momento e de ser uma pintura viva dos costumes e dos tipos
contemporâneos. Descreve e observa com realismo. Gil Vicente esteve sempre atento à
sociedade que o rodeava e às realidades imediatas. O seu teatro, embora quase sempre
cáustico e zombeteiro, adopta uma posição dignificante perante a família. Naquele tempo,
muito frequentemente o casamento era imposto à mulher, que nem sempre escolhia o
noivo. Os pais entregavam as filhas a maridos de que elas não gostavam. O caso de
Constança poderá bem ser um deles. Sabemos quanto ela detestava o pobre marido,
chegando a desejar-lhe a morte. Ele era, como a própria mulher afirma, “um fastio”. Não a
satisfazia. O amor era letra morta. E é essa insatisfação que decerto a atira para os
braços do Lemos e do Castelhano. Não que os amasse. Mas a necessidade física
impunha-se-lhe, tanto mais que se sentia «fermosa e jovem». (Maria Amália Ortiz da
Fonseca, in «Gil Vicente Auto da Índia»);
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NOTAS:
lograr –conseguir; alcançar.
entremear – colocar(-se) entre duas coisas; intercalar(-se).
verosimilhança - qualidade do que verosímil.
verosímil – que parece ser verdadeiro; em que não repugna acreditar; provável.
exceptuar - fazer exceção de; excluir. [ Brasil – excetuar]
nefasto – que causa desgraça; funesto.
doesto [ê] – insulto; injúria. [Doestar – dirigir doestos a; insultar]
solícito – diligente; cuidadoso.
garbo – elegância; distinção; donaire.
cáustico – que queima; que cauteriza; [fig.] importuno; mordaz; sarcástico.
23
ESTUDO DO TEXTO
«Auto da Índia » [Leia o texto integral]
01)A que se deve o título?
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02) Caracteriza as personagens femininas «Ama» e «Moça», física e psicologicamente.
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03) Estabeleça dicotomia entre «Lemos» e o «Castelhano».
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04) Quais os temas sociais que Gil Vicente expõe nesta peça. Explica-os.
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05) Prove que o Auto da Índia é uma Farsa e não um Auto, conforme o título.
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24
Auto da Alma
(1518)
Do ponto de vista teológico, o Auto da Alma é a expressão dramática do velho
tema do Peregrino – paradigma do destino do Homem. A existência humana é uma
contínua luta entre as forças do bem (na peça representadas pelo o Anjo) e as
solicitações do Mal (encarnadas na figura do Diabo.) São, pois, dois mundos que lutam
por impor a sua supremacia, articulados como estão à vontade do homem (livre-arbítrio).
Do ponto de vista social, a peça de Gil Vicente, depois da acusação e o castigo dos
crimes, com penas infernais, na Trilogia das Barcas, parece propor ao homem o caminho
seguro para redimir os seus pecados e atingir assim a glória eterna. A passagem que
vamos transcrever expressa um destes momentos antinômicos em que vive a Alma,
solicitada pelas forças contrárias do Bem e do Mal. (*)
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O ANJO À ALMA
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120
125
130
135
140
Andemos a estrada nossa;
olhai: não torneis atrás,
o imigo (1)
à vossa vida gloriosa,
porá grosa, (2)
Não creiais a Satanás,
vosso perigo!
Continuai ter o cuidado
no fim de vossa jornada,
e (3) a memória
que o espírito atalaiado (4)
do pecado
caminha sem temer nada
pera a Glória.
E nos laços infernais.
e nas redes de tristura
tenebrosas,
da carreira, que passais
não caiais:
siga vossa fermosura
as gloriosas. (5)
______
NOTAS:
1)imigo: inimigo; 2)grosa: obstáculos; 3)Subentende-se: continuai a ter; 4)atalaiado: acautelado; 5)as
gloriosas: isto é, as almas.
25
Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo e diz:
145
150
155
160
165
Alma
Diabo
170
175
Tão depressa, ó delicada,
alva pomba, para onde isso?
Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
por estrada,
que somente não sentis, (6)
se sois humana?
Não cureis de vos matar,
que ainda estais em idade
de crescer (7)
Tempo há i para folgar
e caminhar:
vivei à vossa vontade
e havei prazer.
Gozai, gozai dos bens da terra,
procurai por senhorios
e haveres.
Quem da vida vos desterra
à triste serra?
Quem vos fala em desvarios
Por (8) prazeres?
Esta vida é descanso,
doce e manso,
não cureis doutro paraíso:
Quem vos põe em vosso siso (9)
outro remanso?
Não me detenhais aqui;
deixa-me ir que e al (10) me fundo. (11)
Oh! descansai neste mundo,
que todos fazem assi.
Não são embalde os haveres,
não são embalde os deleites,
e fortunas;
não são debalde os prazeres
e comeres:
tudo são puros afeites (12)
das criaturas:
para os homens se criaram.
______
NOTAS:
6)Entenda-se: a ponto de não sentirdes que... ;7)crescer: engrandecer-se; 8)por: em vez de; 9)siso:
entendimento; 10)al: outra coisa; 11)me fundo: me firmo; 12)afeites: atributos
26
180
185
190
195
Anjo
200
205
210
215
Dai folga à vossa passagem
de hoje a mais; (13)
descansai, pois descansaram
os que passaram
por esta mesma romagem (14)
que levais.
O que a vontade quiser,
quanto o corpo desejar,
tudo se faça.
Zombai de quem vos quiser
Repreender,
querendo-vos marteirar (15)
tão de graça. (16)
Tornara-me, se a vós fora. (17)
Is tão triste, atribulada,
que é tormenta. (18)
Senhora, vós sois senhora
imperadora, (19)
não deveis a ninguém nada.
sede isenta. (20)
Oh! andai; Quem vos detém?
Como vindes para a glória
devagar!
Ó meu Deus! Ó sumo bem!
já ninguém
não se preza (21) da vitória
em se salvar
Já cansais, alma preciosa?
Tão asinha (22) desmaiais?
Sede esforçada! (23)
Oh! Como viríeis trigosa (24)
e desejosa,
se vísseis quanto ganhais
nesta jornada!
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Caminhemos, Caminhemos!
Esforçai ora, alma santa,
esclarecida!
______
NOTAS:
13)de hoje a mais: doravante; 14)romagem: peregrinação; 15)marteirar: martirizar; 16) tão de graça: tão
sem motivos; 17)Entenda-se: eu mudaria de rumo, se estivesse em seu lugar; 18)é tormenta: isto é, a vossa
vida; 19)imperadora: soberana, de vontade livre; 20)isenta: livre; 21)se preza: se orgulha; 22)asinha:
depressa; 23)sede esforçada: tende coragem; 24)trigosa: apressada, pressurosa.
27
Adianta-se o Anjo, e torna Satanás:
220
225
230
235
240
245
Que vaidades e que extremos (25)
tão supremos!
Para que é essa pressa tanta?
Tende vida! (26)
Is muito desautorizada, (27)
descalça, pobre, perdida,
de remate. (28)
Não levais de vosso nada,
Amargurada.
Assi passais esta vida
em disparate?
Vesti ora este brial; (29)
metei o braço por aqui:
rra esperai.
Oh! Como vem tão real!
Isto tal
me parece bem a mi:
ora andai.
Uns chapins (30) haveis mister
de Valença: ei-los aqui.
Agora estais vós mulher
de parecer. (31)
Ponde os braços presuntuosos: (32)
isso si!
Passeai-vos mui pomposa,
daqui para ali, e de lá para cá,
e fantasiai.
Agora estais vós formosa
como a rosa;
tudo vos mui bem está.
Descansai!
Torna o Anjo à Alma, dizendo:
Anjo
Alma
Que andais aqui fazendo?
Faço o que vejo fazer
pelo mundo.
Anjo 250
Ó Alma, is-vos perdendo!
Correndo vos is meter
no profundo! (33)
[Versos 120-252]
______
NOTAS:
25)extremos: excessos; 26)tende vida: gozai a vida; 27)Entenda-se: caminhais mui miserável; 28)de
remate: enfim; 29)brial: vestido de seda ou brocado fino; 30)chapins: sapatos elegantes, usados
antigamente pelas mulheres; 31)de parecer: digna de admiração; 32)presuntuosos: com vaidade;
33)profundo: inferno.
(*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa era medieval. São Paulo - Rio de Janeiro: Difel,
1977. p.165-170.
28
Personagens
Caracterização
Tipos
Linguagem
Anjo
Angélica, pura, afectiva,
convincente, sabedora,
objectiva, moralista, crítica,
combativa.
Conselheiro, paciente,
persistente, compreensivo,
esperançoso, preocupado,
generoso, constante,
solidário.
Alma
Implorativa, submissa,
exclamativa, interrogativa,
confessional.
Teimosa, influenciável,
corruptível, embaraçada,
cansada, fraca, ansiosa,
inquieta, angustiada,
fantasiosa, resistente,
insegura.
Diabo
Zombeteira, atacante,
opinosa, irritante,
interrogativa, exclamativa,
aliciante, instigadora,
manipuladora, contundente.
Adulador, perigoso, esperto,
obstinado, despeitado,
renitente, persistente,
teimoso, derrotista,
impaciente, mundanal,
insidioso,
Vulgar, exclamativa,
interrogativa, explicativa.
Conformista, resignado,
esperançoso.
2º Diabo
29
Comportamento
Personagens
Tipos
Santo Agostinho
Igreja
Caracterização
Linguagem
Comportamento
Mística, teológica, judiciosa, Humano, condoído,
esclarecida, digna, lírica,
exortativo, benévolo.
emotiva, respeitável,
eloquente, evangélica,
doutrinara.
Estimulante, exclamativa,
interrogativa, repreensiva,
redentora, afectiva,
doutrinaria, cristã.
Hospitaleira, acolhedora,
solidária, compreensiva,
misericordiosa.
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30
A Moralidade no Auto da Alma
O Auto da Alma é, na classificação da
edição organizada por Luís Vicente e Paula
Vicente, filhos do poeta, um Auto de Devoção e,
como Auto que é, as suas personagens são
hieráticas, isto é, tiradas da Bíblia. O Auto
começou por ser totalmente hierático, mas, com
o tempo, foi tomando aspecto diferente,
contendo partes profanas. A moralidade está
aqui bem exemplificada. A Alma joga a sua
salvação e a sua ascensão ao Céu, debatendose entre o Anjo e o Diabo. Sujeita ao pecado, ela
mal se pode arrastar até à santa Madre Igreja.
Insegura, perturba-se emocionalmente perante todas as ofertas e manhas do Diabo que
tão bem a sabe subornar. Que pode ele fazer? A sua «fraca natureza» embaraça-a e daí
não saber como caminhar, se para a frente, se para trás. Deixa-se finalmente seduzir
pelos «bens terrenos». A vaidade é, talvez, o seu principal pecado. Colocada
insistentemente entre o Bem e o Mal, começa por se deixar vencer, embora, por vezes,
ofereça alguma resistência. O Diabo poderá parecer mais poderoso que o Anjo, mas será
este que vencerá e a levará até à «santa estalajadeira».
Vemos a moral, mas esta vitória é cheia de problemas intermédios. As suas objecções
são ditadas pelo poder do pecado, a que ela, de início, não consegue reagir. Só a
persistência do Anjo poderá conduzi-la ao verdadeiro «estado de graça». Só ele não
desiste da batalha. Só ele, que simboliza o Bem, tem a força necessária para lhe garantir
a Eternidade, no seio de Deus, que a criou, lhe deu livre arbítrio, vontade libertada,
memória e entendimento. Colocada no mundo terreal, onde o mal tem um papel
predominante, ela é, afinal, o fruto desse mesmo mundo, porque não soube cuidar da sua
perfeição. Todos os bens pecaminosos se perdem na hora da morte. Para que servirão,
pois, este «brial», esses «chapins de Valença», esse colar, esse brincos e os dez anéis?
A moral católica pretende afastá-la dos perigos que assaltam toda a Humanidade. O ser
humano, frágil como é, só poderá salvar-se com o arrependimento e a fé e, daí, a
moralidade do todo o Auto da Alma. Na Igreja, lavando-se «com as suas próprias
lágrimas», a alma encontra a reabilitação desejada. Aprenderá o verdadeiro sentido da
Vida e aprenderá, também, os preceitos católicos a que deverá obedecer. A santa Madre
Igreja será, para ela, a «estalagem» onde se curará e onde lhe serão servidos os
mantimentos que voltarão a restituir-se as forças que havia perdido na sua tão longa
caminhada - «a triste carreira desta vida!» E a «guarida» aí está, pronta e recompensá-la,
a reconfortá-la, pronta a restituir-lhe a graça de Deus, pronta a perdoar-lhe os pecados.
(Maria Amália Ortiz da Fonseca, in «Gil Vicente Auto da Alma».)
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NOTAS:
chapim – antigo calçado de senhora; patim. [Do esp. chapín]
estalajadeira – Mulher que possue ou administra estalagem.
hierático - respeitante às coisas sagradas; religioso.[Do gr. hieratikós, «sacerdotal»]
brial – túnica feminina, presa na cintura. Espécie de camisola que usavam os antigos cavaleiros.
31
ESTUDO DO TEXTO
«Auto da Alma» [Leia o texto integral]
01)Metrifique os dois versos e justifique a metrificação.
Alma
Tende sempre mão em mim,
Porque hei de empeçar
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O2) Nos versos acima há o uso incessante de sons nasais. Comente acerca desses sons:
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03)O adjetivo é uma das classes morfológicas mais utilizadas no Auto da Alma, o que se
prende com uma estratégia discursiva que é, em muitos momentos, de persuasão.
Aparece quer antes, que depois do substantivo, que ainda e depois. E assume várias
funções. Quais são essas? Vejam os exemplos:
triste carreira v.2), perigosos perigos (v.4), preciosa riqueza (v.76), pousada
verdadeira (vv. 426 e 427), Alma santa (v. 340), laços infernais (v. 134) celestes flores
olorosas (vv. 51 e 52), diabólicas maldades violetas (vv. 448 e 449).
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04)Comentar acerca do uso recorrentes dos léxicos «caminho», «jornada», «viagem»,
«estrada» e «carreira».
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05)As metáforas e metonímias são recursos inseparáveis da obra literária. Gil Vicente
utiliza desses recursos: «este vale temeroso/e lacrimoso» (v.606 e 607 – metáforas);
«triste de Jerusalé /homecida (vv.688 e 607- metonímias ).
Comente acerca dos sentidos desenvolvidos.
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06)Justifique o uso pleonasmo no verso «perigoso perigos» (v.4).
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07)Identifique alguns verbos no presente do indicativo e no modo imperativo. E justifique o
seu emprego.
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08)Comente acerca do «ponto de exclamação» (!).
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09)A linguagem oscila entre o tom implorativo, exclamativo, interrogativo, apelativo
confessional e lírico. Transcreva algumas dessas linguagens no contexto.
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10)Comentar acerca do tema.
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11)Estabelecer a dicotomia entre o Anjo e o Diabo.
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12)Caracterizar o personagem Santo Agostinho
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13)Provar que o Auto é um de «moralidade»
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14)Qual a crítica fundamental deste Auto?
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15)Gil Vicente mostra-se profundo conhecedor dos textos bíblicos, em vários momentos
da sua produção dramática. O estudioso I.S. Révah defende que esta peça teatral, Auto
da Alma, é uma interpretação alegórica da parábola evangélica. Qual essa parábola?
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«Só o homem que viver na religião poderá chegar ao Céu, onde a morte e a dor não têm lugar»
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NOTAS:
alegórico: que encerra a alegoria.
alegoria: é uma figura de retórica pela qual uma figura concreta representa uma idéia, um conceito, uma
abstração. Em outras palavras: exposição dum pensamento sob forma figurada.
parábola [Lit.] – narrativa alegórica que envolve preceito moral: Jesus usava parábolas para ensinar certos
conceitos.
34
Inferno, painel português do século XVI
[Museu das Janelas Verdes, Lisboa]
Auto da Barca do Inferno
O Auto da Barca do Inferno, intitulado por G.V de Auto de Moralidade, foi o primeiro
a ser representado, e nele nada faz suspeitar que o poeta pretendesse segui-lo com duas
posteriores prefigurações, a do Purgatório e da Glória. Possivelmente por estimulo da
rainha D. Leonor, concebeu a sequência em mais dois autos que, embora compostos em
épocas e línguas diferentes, passariam a constituir juntamente com o primeiro um a
trilogia. Se G. V., entretanto, não seguiu um plano desde a Primeira Barca, a relação
entre elas, a partir do segundo Auto, é evidente, basicamente inspiradas na mesma
concepção religiosa, segundo a qual as almas sofrem a condenação ou merecem a
salvação de acordo com a vida terrena que levaram.
Na Primeira Barca, as almas chegam a um braço de mar, onde aportam dois
batéis: um tripulado por Diabos, que as conduzirá o inferno; outro, dirigindo por Anjos, que
as levará ao Paraíso, consoante os pecados que cometeram enquanto presas aos seus
corpos terrestres. Desfilam, assim diante de dois batéis uma galeria de personagens da
sociedade portuguesa, das quais se salvam apenas quatro Cavaleiros «por morrerem
pelejando por Cristo». (Massaud Moisés, in «Pequeno Dicionário de Literatura
Portuguesa»).
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35
Diabo
À barca, à barca, houlá!,
que temos gentil maré!
- Ora venha o carro a ré! (1)
Comp.
Diabo
Feito, feito!
Bem está!
Vai ali, muitieramá, (2)
e atesa aquele palanco (3)
e despeja aquele banco,
pera a gente que virá.
À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir! (4)
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
Comp.
Diabo
Comp.
Diabo
5
10
- Ora, sus! que fazes tu?!
Despeja todo esse leito!
Em bonora, logo é feito!
15
Abaixa aramá esse cu! (5)
Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça. (6)
Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, Iça!
20
Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
- Ó poderoso dom Anrique,
cá vindes vós?!...Que cousa é esta?... 25
Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Esta barca onde vai ora,
que assi `stá apercebida?
Vai para a ilha perdida, (7)
e há-de partir logo ess'ora.
Para lá vai a senhora?
Senhor, a vosso serviço.
Parece-me isso cortiço...
Porque a vedes lá de fora.
30
Porém, a que terra passais?
Para o inferno, senhor.
35
Terra é bem sem-sabor.
Quê?... E também cá zombais?
E passageiros achais
pera tal habitação?
Vejo-vos eu em feição
40
para ir ao nosso cais...
Parece-te a ti assi!...
Em que esperas ter guarida?
Que deixo na outra vida
36
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
Diabo
Fidalgo
quem reze sempre por mi.
Quem reze sempre por ti?! ..
Hi!, Hi!, Hi!, Hi!, Hi!, Hi!, Hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?!...
45
50
Embarca ! Ou embarcai!,
que haveis de ir à derradeira... (8)
Mandai meter a cadeira, (9)
que assim passou vosso pai. (10)
Quê? Quê? Quê? E assim lhe vai?! (11)
Vai ou vem, embarcai prestes.
Segundo lá escolhestes, (12)
assim cá vos contentai.
Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.
Não há aqui outro navio?
Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me tínheis dado sinal.
Que sinal foi esse tal?
Do que vós vos contentastes. (13)
55
60
65
A estoutra barca me vou.
- Hou da barca, para onde is?
Ah, barqueiros, não me ouvis?
Respondei-me! Hou-lá! Hou!...
-Por Deus, aviado estou! (14)
Quanto a isto é já pior.
Oue jericocins, salvanor! (15)
Cuidam cá que sou eu grou.
(*)
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NOTAS:
1)a caro: expressão enigmática. Seria o mesmo que a carom, termo náutico, com o valor de em frente?
2)muitierama: em hora muito má.
3)Entenda-se estica a corda (para içar a vela).
4)asinha: depressa.
5)aramá (ou eramá): em má hora; aqui com o significado de “infeliz”.
6)poja: corda que serve para virar a vela; driça: corda para levantar a vela.
7)ilha perdida: inferno
8)à derradeira: afinal.
9) O Fidalgo era seguido por um criado que lhe trazia uma cadeira.
10)Entenda-se: o pai do Fidalgo havia ido para o inferno nas mesmas circunstâncias.
11)Isto é: é este o teu desejo?
12)lá: na terra.
13)Quer dizer: de que vivestes uma vida de prazeres e pecados.
14)Como se dissesse: estou mal arranjado.
15)Isto é: estes asnos não me entendem; pensam que falo como grou.
(*)SPINA, Segismundo (Org.) Obras-primas do teatro vicentino. São Paulo: Difel, 1983. p.107-109.
37
Personagens
Caracterização
Tipos
Fidalgo
Onzeneiro
Parvo
Sapateiro
Frade
Alcoviteira
Judeu
Linguagem
Comportamento
Altiva, petulante.
Vaidoso, presunçoso,
soberbo, opressor.
Vulgar.
Avarento, usurário.
Chocarreira, desbragada.
Cômico, crítico, simples,
ingênuo.
Vulgar
Ladrão
Exuberante
Libertino, mundano
(dançarino esgrimista).
Dengosa
Inculcadeira.
Desbragada
Sacrílego.
Corregedor
Identificada com a profissão Corrupto, parcial.
(vocabulário e latim
tabeleónico)
Procurador
Vulgar.
Atrevido, convencido.
Enforcado
Coloquial.
Crédulo, ignorante.
Cavaleiros
Peremptória.
Decididos, seguros.
38
A Sátira Social no Auto da Barca do Inferno
O Auto da Barca do Inferno é exemplo acabado da sátira de Gil Vicente aos usos e
(maus costumes do seu tempo, em especial ao poder corruptor do dinheiro e ao
desregramento sexual. Ele faz desfilar os representantes da nobreza, do clero, da
magistratura, da burguesia e do povo com seus vícios (e virtudes, alguns), perante o juízo
do Anjo e do Diabo, que os vão condenando ou absolvendo, de acordo com o padrão
oficial de conduta moral.
A nobreza é representada pelo Fidalgo (D. Anrique), em quem se satiriza a
ostentação de grandeza, a soberba presunçosa e o desprezo pelos humildes.
O clero é representado pelo Frade (Frei Gabriel), criticado pela simonia e
dissolução de costumes.
A magistratura é representada pelo Corregedor e pelo Procurador, cujas corrupção,
venalidade e rapacidade são salientadas e tanto mais graves sendo eles «filhos da
ciência», isto é, homem cultos e responsáveis.
A burguesia comercial é representada pelo Onzeneiro, que usufrui de largos juros,
arrancados aos necessitados: pelo Sapateiro (João Anão), que explora os fregueses com
o seu comércio, e pela alcoviteira (Brízida Vaz), traficante de carne branca e inculcadeira.
O povo é representado pelo Enforcado, que revela a ignorância e a credulidade
manejável pelo Judeu (Jema Fará), que ninguém quer, e pelo criado do Fidalgo, a moça
do Frade (Florença e as moças da Alcoviteira, meros apêndices dos poderosos, sem voz
e sem vontade, mais objectos que pessoas.
Ao Diabo cabe a dissecação das mazelas morais dos réus, como principal
advogado de acusação. O contraste entre a sua intervenção e a do Anjo constitui também
uma apreciação crítica profunda. Às instantes solicitações do Diabo para que entrem os
passageiros na barca do Inferno (por si mesmos condenados) opõe o Anjo a recusa da
entrada na barca da Glória. À argumentação do Diabo, que procura convencer a vontade,
opõe-se a decisão irrevogável do Anjo, que a despreza.
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Sem ter conseguido a síntese entre as forças opostas que se defrontavam, Gil
Vicente:
1.Exaltou a expansão ultramarina prosseguida oficialmente, na cena final do Auto
da Barca do Inferno (Cavaleiros), como na Exortação da Guerra e no Auto da Fama, mas
escreveu também o Auto da Índia sobre os efeitos das longas viagens na estabilidade e
moralidade da vida familiar.
2.Escreveu o Auto da Alma, de um cristianismo ortodoxo e tradicional, mas no Auto
da Barca do Inferno criticou o clero menor –frades e cónegos – e no Auto da Barca da
Glória a sua crítica atingiu a própria Igreja, nas pessoas dos seus mais altos dignitários.
3.Satirizou fortemente o Judeu no Auto da Barca do Inferno (até no símbolo que
transportava), mas numa carta a D. João III, sobre os frades de Santarém, defendeu os
cristãos-novos de sectárias acusações.
4.No entanto, no Auto da Barca do Inferno (e mais abertamente no Auto da Barca
da Glória) defendeu que é pelas obras terrestres que cada um se salva ou se condena,
quando os protestantes afirmavam que só a Fé é salvadora, mostrando-se assim
obediente à crença oficial.
No dizer de André de Resende, contemporâneo de Gil Vicente, este era «autor e
actor muito hábil em dizer verdades disfarçadas em facécias e em criticar costumes entre
leves gracejos».
Essas verdades, apreciadas anos depois, pela censura inquisitorial, foram
castigadas:
1-Com a proibição da publicação de mais de uma dezena de autos, em todo ou em
parte.
2- Com a supressão de passagens várias.
3- Com a alteração de sentido de muitos versos. (*)
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NOTAS:
presunçoso [ô] - que tem presunção; pretensioso; vaidoso.
simonia – comércio ilícito de objetos sagrados, indulgência ou benefícios eclesiásticos .
venalidade - qualidade do que se vende, de quem é venal.
venal – que se pode vender. Venenoso.
rapacidade – qualidade de rapace; instinto ou gosto da rapina; [fig.] avidez.
rapace – que rouba; que rapina; rapinante; ávido de lucro.
inculcadeira - mulher que inculca; alcoviteira.
inculcar – dar indicações a respeito de; indicar; recomendar. Repetir com insistência para imprimir (algo)
na mente de alguém; repisar.
alcoviteiro – que alcovita. Corretor de prostituta.
alcovitar – servir de intermediário em relações amorosas; fazer intriga.
facécia - dito zombeteiro.
cônego – titulo do sacerdote secular que é membro de um cabido.[Cónego - Portugal]
cabido – corporação dos cônegos de uma catedral ou de uma colegiada.
(*)GONÇALVES, Maria José e EUSÉBIO, António. Gil Vivente Auto da Barca do Inferno. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1987.
40
ESTUDO DO TEXTO
«Auto da Barca do Inferno» [Leia o texto na integra]
01)Provão 1998
O Auto da Barca do Inferno pertence ao movimento literário do Humanismo, em Portugal,
porque Gil Vicente
(A)critica a Igreja pela venda indiscriminada de indulgências e pela vida desregrada dos
padres.
(B) preocupa-se somente com a salvação do homem após a morte, sem se voltar para os
problemas sociais da época.
(C) equilibra a concepção cristã da salvação após a morte com a visão crítica do homem
e da sociedade do seu tempo.
(D) tem como única preocupação criticar o homem e as mazelas sociais do momento
histórico em que está inserido.
(E) critica a Igreja, ao defender com entusiasmo os princípios reformistas disseminados
pela Reforma protestante.
02)O teatro, de suas origens ao século XIX, se serve do verso como forma de expressão.
Fiel à tradição, Gil Vicente fez uso das métricas mais utilizadas na poesia medieval. Faça
a escansão de alguns dos versos e classifique o tipo de verso.
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03)No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente critica três classes sociais. Quais são essas
classes?
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04)Indique as personagens que, no texto, representam a nobreza, o clero e o povo.
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05)Indique a afirmação correta sobre o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente:
a) É intricada a estruturação de suas cenas, que surpreendem o público com a
inesperado de cada situação.
b) O moralismo vicentino localiza os vícios, não nas instituições, mas nos indivíduos que
as fazem viciosas.
c) É complexa a critica aos costumes da época, já que o autor primeiro a relativizar a
distinção entre Bem e o Mal.
d) A ênfase desta sátira recai sobre as personagens populares mais ridicularizadas e as
mais severamente punidas.
e) A sátira é aqui demolidora e indiscriminada, não fazendo referência a qualquer exemplo
de valor positivo.
06)Fidalgo, Onzeneiro, Parvo, Sapateiro, Frade, Alcoviteira, Judeu, Corregedor,
Procurador, Enforcado e Cavaleiros são personagens do Auto da Barca do Inferno, de Gil
Vicente.
Analise as informações abaixo e selecione a alternativa incorreta cujas características
não descrevam adequadamente a personagem.
a) O Onzeneiro idolatra o dinheiro, é agiota e usurário; de tudo que juntara, nada leva
para a morte, ou melhor, leva a bolsa vazia.
b) O Frade representa o clero decadente e é subjugado por suas fraquezas: mulher e
esporte; leva a amante e as armas de esgrima.
c)Alcoviteira tem uma linguagem dengosa e melíflua.
d) O Corregedor representa a justiça e luta pela aplicação integra e exata das leis; leva
papéis e processos.
07) Considerando a peça Auto da Barca do Inferno como um todo, indique a alternativa
que melhor se adapta à proposta do teatro vicentino.
A) Preso aos valores cristãos, Gil Vicente tem como objetivo alcançar a consciência do
homem, lembrando-lhe que tem uma alma para salvar.
B) As figuras do Anjo e do Diabo, apesar de alegóricas, não estabelecem a divisão
maniqueísta do mundo entre o Bem e o Mal.
C) As personagens comparecem nesta peça de Gil Vicente com o perfil que
apresentavam na terra, porém apenas o Onzeneiro e o Parvo portam os instrumentos de
sua culpa.
D) Gil Vicente traça um quadro crítico da sociedade portuguesa da época, porém poupa,
por questões ideológicas e políticas, a Igreja e a Nobreza.
E) Entre as características próprias da dramaturgia de Gil Vicente, destaca-se o fato de
ele seguir rigorosamente as normas do teatro clássico.
42
Auto da Feira
Moralidade composta por Gil Vicente «nas matinas do Natal», cerca de 1527. O A.
representa o mundo sob a forma duma feira em que os principais vendedores são um
Serafim e o Diabo. O primeiro freguês é nem mais nem menos que Roma, símbolo do
Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende-nos, tendo em
atenção a data aproximada do auto. As outras personagens (maridos e mulheres
queixosos dos respectivos cônjuges, campônios e camponesas, as quais oferecem as
suas mercadorias a dois compradores que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo
pelas virtudes que o Serafim vende. O auto acaba com uma cantiga entoada pelas
camponesas em louvor da Natividade. (Jacinto do Prado Coelho, in «Dicionário de
Literatura Portuguesa»).
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Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:
MERCÚRIO
5
10
Para que me conheçais,
e entendais meus partidos, (1)
todos quantos aqui estais
afinai bem os sentidos,
mais que nunca, muito mais.
Eu sou estrela do céu,
e depois vos direi qual,
e quem me cá descendeu
e a que, e todo o al (2)
que me a mi aconteceu.
43
15
20
25
30
35
40
45
50
E porque a astronomia
anda agora mui maneira,
mal sabida e lisonjeira,
eu, à honra deste dia,
vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
as operações dos céus,
e que morte hão de morrer,
e o que há de acontecer
aos anjos e a Deus.
E ao mundo e ao diabo.
E que o sabem têm por fé;
e eles todos em cabo
terão um cão pelo rabo,
e não sabem cujo é.
E cada um sabe o que monta (3)
nas estrelas que olhou;
e ao moço que mandou,
não lhe sabe tomar conta
de um vintém que lhe entregou.
Porém, quero-vos pregar,
sem mentiras nem cautelas,
o que per curso de estrelas
se poderá adivinhar,
pois no céu nasci com elas.
E se Francisco de Melo (4)
que sabe ciência avondo, (5)
diz que o céu é redondo,
e o Sol sobre amarelo;
diz verdade, não lho escondo.
Que, se o céu fora quadrado,
não fora redondo, senhor.
E, se o Sol fora azulado,
d' azul fora a sua cor,
e não fora assi dourado.
E porque está governado
por seus cursos naturais,
neste mundo onde morais
nenhum homem aleijado,
se for manco e corcovado,
não corre por isso mais.
44
55
60
65
70
75
80
85
E assi os corpos celestes
vos trazem tão compassados,
que todos quantos nascestes,
se nascestes e crescestes,
primeiro fostes gerados.
E que faze [m] os poderes
dos sinos resplandecentes?
Fazem que todalas gentes
- ou são homens ou mulheres,
ou crianças inocentes.
E porque Saturno a nenhum
influi vida contina,
a morte de cada um
é aquela de que se fina,
e não de outro mal nenhum.
Outrossim o terremoto,
que às vezes causa perigo,
faz fazer ao morto voto
de não bulir mais consigo,
Cantá (6) de seu próprio moto.
E a claridade encendida
dos raios piramidais
causa sempre nesta vida
que quando a vista é perdida,
os olhos são por demais.
E que mais quereis saber
desses temporais e disso,
senão que, se quer chover,
está o céu para isso,
e a terra para a receber?
a Lua tem este jeito:
vê que clérigos e frades
já não têm ao céu respeito,
mingua-lhes as santidades,
e cresce-lhes o proveito.
(*)
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NOTAS:
1)partidos: expedientes; 2)o al: o mais; 3)monta: interessa, importa; 4)Francisco de Melo: célebre
matemático da época; 5)avondo: em abundância; 6)cantá: certamente.
(*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa era medieval. São Paulo: Difel, 1977. p.170-173.
45
Personagens
Tipos
Caracterização
Linguagem
Comportamento
Alatinada, desaticulada,
Trocista, observador,
palavroso, cômico,
galhofeira, paradoxal,
crítica, popular, materialista, conversador, conversador,
incisiva, direta, trocadilho,
Mercúrio
Exortativa, solene,
explicativa, judiciosa,
teológica,
Conselheiro, estimulante,
funcional, preocupado,
Séria, respeitável, elevada
angélica, invocativa,
exortativa, estimulante,
receptiva, informativa,
Conselheiro, crítico,
religioso, sensível, sincero,
confiante, moralista,
Tempo
Serafim
46
Personagens
Tipos
Diabo
Roma
Caracterização
Linguagem
Comportamento
Comparativa, ofensiva,
explicativa, arcaica,
interrogativa, dialogante,
livre, divertida, disparatada,
Judiciosa, afectada,
entusiástica, opinosa,
condenável, depreciativa,
intimativa, prepotente,
renitente, aliciante, cínica,
Comunicativo, irônico,
incrédulo, maldoso,
aliciante, negociante,
pretensioso, desonesto,
materialista, arrogante,
irresponsável, competitivo,
malífluo, decidido, perverso,
Irritante, conflituoso,
observador,
manhoso,inclemente,
tentador, comerciante,
enganador, ruim ,
censurável, agressivo,
impertinente, fanfarrão,
persistente,
Repetitiva, confessional,
informativa, implorativa,
interrogativa, explicativa,
documental, pessimista,
reflexiva, materialista, culta,
declarativa, conscienciosa,
apelativa,invocativa,
assisada,
Ansioso, desolado, crente,
Desiludido, esperançoso,
angustiado, arrependido,
inseguro, queixoso,
ambicioso, pecador,
Consternado,
47
Popular, recriminativa,
insidiosa, explicativa,
crítica, referencial, atacante,
Depreciativa,
Desiludido, queixoso,
infeliz, exagerado, invejoso,
Resmungão, cruel, esperto,
Inclemente, insatisfeito,,
duro, galhoteiro, alegre,
observador, irónico,
Recriminatória,incisiva,
explicativa, referencial,
atacante, depreciativa,
reprovativa,
Insofrida, queixoso, esperto,
insatisfeito, desiludido,
gafolheiro, alegre,
observador, irónico
Popular, recriminativa,
explicativa, inclemente,
atacante, depreciativa,
impiedosa, objectiva,
autoritária, injuriosa,
exagerada, disparatada,
Déspota, insatisfeita,
revoltada, censurável,
materialista, enérgica,
irrelevante, incisiva,
impetuosa, refilona, activa,
caturra, decidida, irascível,
Combativa, agressiva,
céptica,
Amâncio Vaz
Dinis Lourenço
Branca Annes
48
Popular, simples,
conformista,
Marta Dias
Nove moças dos montes Popular, graciosa, jovem,
rural, provérbios,
despretensiosa, directa,
incisiva, realista,
materialista, agressiva,
Mateus
Jovial, alegre, ajuizada,
feliz, galhofeira, honesta,
saudáveis, festivas, gentis,
travessas, simples,
Popular,
Galhofeiros, joviais,
Conversadores, alegres,
respeitadores, ingênuos,
Popular, epítetos,
interrogativa, exagerada,
sutil, intencional, coloquial,
objectiva,
Namorador, adulador,
descontraído, galanteador,
Alegre, observador,
atrevido, arrojado,
Popular, rural, epítetos,
interrogativa, intencional,
coloquial, exclamativa,
objectiva, desconcertante,
Cortejador, galhofeiro,
adulador, atrevido,
galanteador,
namorador,alegre,
observador, malicioso,
Três moços
Vicente
Materialista, mansa,
resignada, piedosa, crente,
conformada, calma,
.
49
Posted by Dantas
A Moralidade no «Auto da Feira»
Bem analisado, o Auto da Feira é uma «moralidade» em toda sua extensão. Se
bem repararmos, por exemplo, na introdução feita por Mercúrio, veremos que este, além
de criticar e ridicularizar a astronomia, se detém, igualmente, nas pessoas que tudo
julgam saber sobre todas as matérias. Mera vaidade! O homem supõe possuir «todo o
saber». Faz alarde dos seus conhecimentos, por vezes errados. É um defeito que abarca
toda a humanidade. Há que criticar e condenar semelhante atitude. Que o homem se
reduz à sua ignorância e não ambicione discutir assuntos que não entende. Mercúrio tem
razão, e com toda a sua sagacidade irónica e crítica, brinca com o espectador, eleva-o, no
fundo, a meditar. A personagem Tempo, que é alegórica, refere-se à Cristandade «que he
toda gastada / só em serviço da opinião», porque se consome em contendas doutrinárias.
Ele – o Tempo – só tem para trocar preceitos morais: virtudes, conselhos «maduros»,
justiça, verdade, paz e o temor de Deus, «que he já perdido em todos Estados». Segundo
ele, as virtudes foram-se dissipando «de dias em dias». Há que renová-las, há que voltar
a nelas acreditar e fugir às tentações demoníacas que arrastam o homem para o pecado.
E surge-nos, com especial destaque, a figura do Serafim. É ele o grande construtor
da Verdade. É ele o que rege o Bem e dá ao ser humano a sabedoria divina, que o deve
conduzir na «estrada da vida». Ele se esforça, bem pretende vender a sua mercadoria,
mas a verdade é que todo o mundo se perde em vãos desejos materiais. Ainda desta vez,
Gil Vicente condena a corrupção da Igreja, verbera os Papas por causa da venda das
indulgências e aponta-lhes a vida modelar dos primeiros pontífices. O Serafim chama
todos à «feira da Virgem, /Senhora do mundo/exemplo de paz, pastora dos anjos/luz das
estrelas!»/Será o Serafim quem se manterá em cena ao longo de todo o Auto. O Diabo
interpõe-se, como é de sua missão. Os dois não se entendem. Falam uma linguagem
antitética, pois o Demo consegue vender tudo quanto lhe apetece. Nunca ninguém «lhe
tolhe que não ganhe sua vida!» Que vende ele? Mentiras, manhas, pecados, «artes de
enganar». Coisas boas não interessam «porque não trazem proveito». Para ele, que ilude
os feirantes «ser ruim é o que importa». As boas pessoas nunca encontram a felicidade.
Ele «vende muito perigo», mas é esse mesmo perigo que atrai o ser humano! O Serafim
condena-o, chama-lhe «ladrão», mais isso não importa. Afinal, não é ele o senhor
absoluto nessa «feira das virtudes?». As pessoas procuram-no e ele a todos satisfaz.
50
A acção do Serafim manter-se-á até o final. É ele quem pretende «vender consciência»,
mas a verdade é que a própria Branca Annes e a Marta Dias declaram não saberem,
sequer, o «que isso é». Querem «um sombreiro», «uma pucarinha para mel» e um tecido
grosseiro e rústico.
A Roma pretende o Serafim vender «paz, verdade e fé», mas como conseguir? Ela
anda perdida em guerras sucessivas. A luxúria e a prepotência assolam a classe
eclesiástica. Só erros e pecados! Quanto daria o pobre Serafim para pôr termo à maldade
que é a perdição do mundo. Como se sentiria ele feliz se alcançasse dos homens a
bondade e o bom senso Nem Roma consegue entendê-lo. Ele propõe-lhe dar paz «em
troco de santa vida», mas para ela isso é impossível. Como poderá ela fugir às guerras?
Se os próprios cristãos a desbaratam, onde estará então o seu socorro?
A parte profana do Auto não deixa de ser uma «moralidade», pois se os dois
compadres – Amâncio Vaz e Dinis Lourenço- se queixam das mulheres, isso só revela a
sua pouca paciência e humanidade. Nunca ninguém está contente com o que tem e
inveja-se a sorte do vizinho. As duas mulheres – Branca e Marta – sofrem do mesmo mal.
São desumanas e não perdoam «as faltas» dos maridos. Só incompreensão e desamor!
Só a ausência do «temor a Deus» e a inconsciência dos seus próprios defeitos! O próprio
Serafim nada consegue delas. Até as moças do monte não lhes interessa «a virtude».
Segundo elas, não dá pão nem maridos, que é o que elas desejam. Uma vez mais, o
conflito entre o mundo espiritual e o material. É curioso o que sobre o Auto da Feira
escreve António José Saraiva na sua obra Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval: O
mundo contingente, limitado, acidental, buliçoso, o mundo dos casamentos, do pão , das
ladeiras da serra, dos «púcaros de mel», dos sombreiros, dos anéis, das estações e dos
perdões papais, dos jubileus e das mentiras, o mundo que é observável e descritível,
revela-se em irremediável antimonia com o tranquilo e infinito mundo da pastora dos
anjos, de que é mensageira a luz das estrelas, cujas mercadorias são Justiça, Paz,
Verdade, temor de Deus.
É a luta dos dois mundos. É a rebelião entre o Bem e o Mal. (Maria Amélia Ortiz da
Fonseca, in «Gil Vicente Auto da Feira»).
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NOTAS:
apetecer – causar apetite; interessar, agradar.
tolher – impedir de mover-se, de agir; pôr obstáculos.
púcaro – pequeno vaso com asa. [Var.: púcara.]
desbaratar – dissipar; vender por preço baixo; derrotar; desordenar-se.
antinomia - contradição entre duas leis ou princípios. Oposição recíproca de duas coisas ou pessoas. [Do
gr. antinomía, «contradição nas leis».]
irremediável – que não se pode remediar; que não tem conserto ou solução; irreparável.
51
ESTUDO DO TEXTO
«Auto da Feira» [Leia o texto na integra]
01)Estabelecer a dicotomia entre o Serafim e o Diabo.
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02)Comente acerca do ponto crucial do auto.
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03)Analisar a atitude das mulheres de ambos.
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04)Para maior facilidade de estudo podemos considerar o Auto da Feira constituído por
três partes. Quais são essas partes?
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52
Lucas Cranach (1472-1553), o Velho
Farsa do Velho da Horta
(1512)
“Gil Vicente, nesta farsa, relata as peripécias decorrentes de um frustrado amor
senil, cujo protagonista, um velho sessentão e proprietário de uma horta, se apaixona
subitamente por uma jovem compradora. Insensível às solicitações do Velho, zombando
mesmo das suas tontarias, o diálogo entre os dois sobe para o primeiro plano, poético
pelo lirismo romântico do Velho apaixonado, e altamente cômico pela ironia empolgante
com que a Moça responde ao pretendente. Após a cena que vamos transcrever, seguemse as astucias profissionais de uma alcoviteira que promete ao Velho a posse do objeto
amado, mas que, mediante promessas lisonjeiras e de próximo êxito, acaba por extorquir
toda a riqueza do Velho. Intervém finalmente a Justiça, que acaba por prender a
alcoviteira, dissipando-se assim, não só a doce miragem do pobre enamorado, como a
sua fortuna; e mais não lhe fica, como remate doloroso, senão ouvir de uma nova
freguesa a noticia de casamento daquela que lhe reacendera por alguns instantes o ardor
da juventude. (S, Spina, in «Presença da Literatura Portuguesa – Era Medieval»)
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53
Entra a Moça na horta e diz o Velho:
Velho
Moça
Velho
Moça
Velho
Moça
Velho
Moça
Velho
Moça
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho
Moça:
Velho:
Senhora, benza-vos Deus.
Deus vos mantenha, Senhor.
Onde se criou tal flor?
Eu diria que nos céus.
Mas no chão.
Pois damas se acharão
que não são vosso sapato (1)
Ai! como isso é tão vão,
e como as lisonjas são
de barato.
Que buscais vós cá, donzela,
senhora, meu coração?
Vinha ao vosso hortelão,
por cheiros para a panela.
E a isso
vinde vós, meu paraíso,
minha senhora, e não a al?
Vistes vós! Segundo isso,
nenhum Velho não tem siso
natural.
Ó meus olhinhos garridos!
Minha rosa! meu arminho!
Onde é o vosso ratinho?
(2)
Não tem os cheiros colhidos?
Tão depressa
vinde vós, minha condessa,
meu amor, meu coração!
Jesu! Jesu! que coisa é essa?
E que prática tão avessa
da razão!
Falai, falai doutra maneira:
mandai-me dar a hortaliça.
Grã fogo d’ amor me atiça,
ó minha alma verdadeira!
E essa tosse?
Amores de sobre-posse (3)
serão os da vossa idade:
o tempo vos tirou a posse. (4)
Mais amo, que se moço fosse
com a metade.
54
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
E qual será a desastrada,
que atende (5) vosso amor?
Ó minh’ alma e minha dor,
quem vos tivesse furtada! (6)
Que prazer!
Quem vos isso ouvir dizer
cuidará que estais vós vivo,
ou que sois para viver! (7)
Vivo não no quero ser,
mas cativo.
Vossa alma não é lembrada
que vos despede esta vida?
Vós sois minha despedida,
minha morte antecipada.
Que galante!
Que rosa! Que diamante!
Que preciosa perla fina!
Ó fortuna triunfante!
Quem meteu um velho amante
com menina!
O maior risco da vida,
e mais perigoso, é amar;
que morrer é acabar,
e amor não tem saída.
E pois (8) penado,
ainda que amado,
vive qualquer amador;
que fará o desamado,
e sendo desesperado
de favor? (9)
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Ora, dá-lhe lá favores!
Velhice, como te enganas! (10)
Essas palavras ufanas
acendem mais os amores.
Bom homem! Estais às escuras;
Não vos vedes como estais?
Vós me cegais com tristuras,
mas vejo as desaventuras
que me dais.
55
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Não vedes que sois já morto,
e andais contra a natura?
Ó flor da mor fermosura,
quem vos trouxe a este meu horto?
Ai de mim!
Porque, assi como vos vi,
cegou minha alma, e a vida;
e está tão fora de si
que em partindo vós daqui,
é partida.
Já perto sois de morrer:
donde nasce esta sandice,
que, quanto mais na velhice,
amais os velhos viver?
E mais querida,
quando estais mais de partida,
é a vida que leixais?
Tanto sois mais homicida,
que, quando amo mais a vida,
ma tirais.
Porque a minha hora dagora
val vinte anos dos passados;
que (11) os moços namorados
a mocidade os escora. (12)
Mas um velho,
em idade de conselho, (13)
de menina namorado...
Ó minha alma e meu espelho!
Ó miolo de coelho
mal assado!
Quanto for mais avisado
quem d’ amor vive penando,
terá menos siso amando,
porque é mais namorado.
Em conclusão,
que amor não quer razão,
nem contrato, nem cautela,
nem preito, nem condição,
mas penas de coração
sem querela.
(14)
56
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Velho:
Moça:
Hulos (15) esses namorados?
Desinçada (16) é a terra deles:
olho mau (17) se meteu neles:
namorados de cruzados, (18)
isso si.
Senhora, eis-me eu aqui,
que não sei senão amar.
Ó meu rosto d’alfeni!
Que em forte ponto vos vi (19)
neste pomar!
Que velho tão sem sossego!
Que garridice (20) me viste?
Mas dizei, que me sentiste,
remelado, meio cego?
Mas de todo,
por mui namorado modo
me tendes minha senhora
já cego de todo em todo.
Bem está quando tal lodo.
se namora.
Quanto mais estais avessa,
mais certo vos quero bem.
O vosso hortelão não vem?
Quero-me ir, que estou de pressa.
Ó formosa,
Toda minha horta é vossa.
Não quero tanta franqueza. (21)
Não por me serdes piedosa (22)
porque, quanto mais graciosa,
sois crueza.
Cortai tudo, sem partido
senhora, se sois servida,
seja a horta destruída,
pois seu dono é destruído.
Mana minha,
achastes vós a daninha,
porque não posso esperar,
Colherei alguma couisinha,
somente por ir asinha
(24)
e não tardar.
(23)
57
Velho:
Moça:
Velho:
Colhei, rosa, dessas rosas,
minhas flores, colhei flores,
Quisera que esses amores
foram pérlas preciosas
e de rubis
o caminho por onde is,
e a horta de ouro tal,
com lavores mui sutis,
pois Deus fazer-vos quis
angelical.
Ditoso é o jardim
que está em vosso poder:
podeis, senhora, fazer
dele o que fazeis de mim.
Que folgura!
Que pomar e que verdura!
Que fonte tão esmerada!
N’água olhai vossa figura:,
vereis minha sepultura
ser chegada.
[Versos 30-208.]
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Atenção! Leia o texto integral...
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NOTAS:
1)Entenda-se: que se igualam a vós.
2)ratinho: designação biroa do hortelão.
3)sobre-posse: forçados, artificiais.
4)posse: energia, vitalidade.
5)atende: dê atenção.
6)Entenda-se: olá pudesse casar-me convosco a furto, clandestinamente.
7)Entenda-as: ou que tendes longa vida
8)pois: visto que.
9)desesperado de favor: desesperançado de correspondência.
10)ufanas: presunçosas.
11)que: porque.
12)escora: ampara.
13)conselho: reflexão.
14)avisado: ajuizado.
15)Hulos: onde.
16)desinçada: livre.
17)olho mau: mau-olhado.
18)de cruzados: de dinheiro, de dotes.
19)em forte ponto: em má hora.
20)garridice: elegância.
21)franqueza: liberalidade.
22)Entenda-se: não sou liberal com o fim de que tenhais piedade de mim.
23)sem partido: à vontade;
24)asinha: depressa.
58
ESTUDO DO TEXTO
01)Faça um levantamento quanto ao aspecto formal.
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02)Comente acerca da temática do texto
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03)Estabeleça a dicotomia entre a linguagem do Velho e da Moça.
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04)Trace a característica da «Moça»
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05)Trace a característica da Alcoviteira.
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59
Auto da Lusitânia
Representada ao Rei D. João III em 1532, esta peça, como o próprio autor declara
a certa altura, gira em torno da origem de mitológica de Portugal: a ninfa Lisibea, de
magnificente beleza, após acender paixão no Sol, dele teve uma filha, Lusitânia, cuja
formosura chegara aos ouvidos de Portugal. Este, apaixonado perdidamente por ela,
desencadeia tal ciúme em Lisbea, que vem a falecer. Enterrada na montanha Feliz
Deserta, sobre ela se edificou uma cidade que, por causa do nome da ninfa, veio a
denominar-se Lisboa. Da lenda, Gil Vicente extrai o episódio do encontro entre Lusitânia e
Portugal, ao qual também concorrem Mercúrio e algumas deusas, cujo “capelães”, Dinato
e Berzebeu, se dispõem a relatar a Lúcifer “tudo quanto aqui se monta.” O diálogo em que
ambos se desincumbem de sua missão constitui a cena que a seguir se transcreve. Notase, ainda, que a primeira parte da peça contém a descrição duma família judaica ao
tempo de Gil Vicente. (*)
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Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu;
e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
60
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
(Berzebeu para Dinato)
Belzebu:
Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém:
(Ninguém para Todo Mundo)
E agora que buscas lá?
Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu:
Ninguém:
(Berzebeu para Dinato)
Outra adição nos acude:
escreve aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
(Ninguém para Todo o Mundo)
Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu:
(Berzebeu para Dinato)
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém:
Todo o Mundo:
Ninguém:
(Ninguém para Todo o Mundo)
Buscas mais, amigo meu?
Busco a vida a quem ma dê.
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
61
Belzebu:
(Berzebeu para Dinato)
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu:
Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo:
Ninguém:
(Todo Mundo para Ninguém)
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu:
(Berzebeu para Dinato)
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo:
Ninguém:
(Todo Mundo para Ninguém)
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
Belzebu:
(Berzebeu para Dinato)
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém:
(Ninguém pra Todo Mundo)
Que mais buscas?
Todo o Mundo:
Lisonjear.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
(Berzebeu para Dinato)
Escreve, ande lá mano!
Dinato:
Que me mandas assentar?
62
Belzebu:
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
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NOTAS:
perfiando = porfiando – insistindo, teimando.
perfiar = porfiar - procurar obter.
honra - respeito social.
ande la mano! – mãos à obra!
nisto me fundo – nisto me sustento; nisto me fundamento.
tope - encontre.
adição - ato de aditar, isto é acrescentar uma declaração; acrescentamento.
açude – ocorre.
mor bem qu’esse – bem maior que esse; outra coisa de valor.
grado – vontade.
garrida – elegante; bonita. Obviamente, é pura ironia de Berzebeu.
estorvar - incomodar; atrapalhar.
ma - me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto,
respectivamente.
mo - me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome demonstrativo
objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto a mim.
folgo - tenho prazer, gosto.
lisonjear - elogiar.
63
ESTUDO DO TEXTO
01)Comente acerca dos aspectos formais.
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02)Comente as figuras de «Todo o Mundo» e «Ninguém», caracterizando-as.
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03)Explique a ironia presente na escolha dos nomes das personagens Todo o Mundo e
Ninguém, tendo em vista o conteúdo de suas falas.
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04) O texto afirma que:
a)todo o mundo é mentiroso.
d)ninguém diz a verdade.
b)Ninguém é mentiroso.
e)Todo o Mundo é mentiroso.
c)todo o mundo diz a verdade
05) No fragmento do«Auto da Lusitânia», o autor utiliza um recurso estilístico que consiste
no emprego de vocábulos antônimos, estabelecendo contrastes, como "vida/morte",
"louvado/repreendido", e outros. Esse recurso é conhecido como:
[ ] eufemismo
[ ] apóstrofe
[ ] sinestesia
[ ] antítese
(*) MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2003. p.70-73.
64
Auto de Mofina Mendes
O Auto de Mofina Mendes tem originariamente o nome de Auto dos Mistérios da
Virgem. Foi representado em Êvora a 24 de Dezembro de 1534, perante o rei D. João III.
É constituído por três partes: a primeira é respeitante à Anunciação, a segunda
desenvolve o episódio profana de Mofina Mendes e a terceira com carácter religioso,
refere-se ao Nascimento de Jesus.
É precedido dum prólogo estranho, cujo conteúdo discorda da matéria do auto. As
donzelas que acompanham a virgem leem textos que profetizam o aparecimento duma
mulher eleita, da qual nascerá o redentor do género humano. O anjo Gabriel vem
anunciar-lhe essa mensagem de Deus. No entanto, no mundo a vida segue o seu curso.
Os pastores apascentam os seus rebanhos, mas o auto, para recrear o público durante o
tempo que ocorre da Anunciação ao Nascimento, dá especial relevo a um episódio
pastoril: o de Mofina Mendes, que perde os seus gados, é despedida, mas idealizas um
futuro com a venda de um pote de azeite. (1)
Figuras:
A Virgem
Prudência
Pobreza
Humildade
Fé
O Anjo Gabriel
S. José
Paio Vaz
Pessival
Mofina Mendes
Braz Carrasco
Barba Triste
Tibaldino
Anjo
[...]
Mofina:
Vou-me à feira de Trancoso
logo, nome de Jesu,
e farei dinheiro grosso.
Do que este azeite render
comprarei ovos de pata,
que é a coisa mais barata
que eu de lá posso trazer;
estes ovos chocarão;
cada ovo dará um pato,
e cada pato um tostão,
que passará de um milhão
e meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada
por estes ovos de pata,
e o dia que for casada
sairei ataviada
com um brial de escarlata,
e diante o desposado,
que me estará namorando:
virei de dentro bailando
assim dest'arte bailado,
esta cantiga cantando.
[...]
65
TUDO DO TEXTO
01)Quem narra aparentemente o texto?
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02)O texto apresenta uma espécie de devaneio da personagem principal. Quais são os
desejos revelados através desse devaneio?
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03)Como você entendeu a referência a Jesus relacionada com dinheiro grosso?
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04)Qual o verso que indica que o texto foi escrito para ser representado e cantado?
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05)A personagem principal valoriza os ideais religiosos da Idade Média ou valores
materiais?
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Atenção! Leia a peça na integra: «Auto de Mofina Mendes»
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NOTAS:
brial – vestido de carmesin de precioso tecido.
atavida - enfeitada
(1)RAMOS.
Feliciano. “Gil Vicente e o teatro do renascimento”. In: História da literatura Portuguesa. Braga:
Livraria Cruz, 1967, p. 232.
66
Romagem de Agravados
(1523)
Como no teatro de revistas de hoje, nesta peça Gil Vicente faz desfilar um
variadíssimo elenco de descontentes: duas religiosas que protestam contra as regras da
vida conventual; tipos que aspiram a títulos nobiliárquicos; frades que fingem piedade
para conseguir um bispado; meninas pretendentes a damas do Paço, e para isso tomam
lições de civilidade e etiqueta etc. Por bem - como já dissemos - o próprio gosto
petrarquista de exprimir os ardores passionais por meio de antíteses, imitado pelos
poetas quinhentistas, é satirizado por Gil Vicente: Colopêndio é um exemplo desse tipo
passional que vive estados sentimentais contraditórios gerados pelo amor. (*)
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(*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa - era medieval. São Paulo: Difel, s/d.
67
Vêm Colopêndio e Bereniso, e diz:
Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.
Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita nasci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.
Bernaert van Orley
(1491-1542)
Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.
Não sei se sei o que digo,
que (1) cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo. (2)
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.
Já não ouso de cuidar,
nem posso estar sem cuidado;
mato-me por me matar,
onde estou não posso estar
sem estar desesperado.
Parece-me quanto vejo
Tudo triste com razão:
cousas que não vem nem vão
essas são as que desejo,
e todas pena me dão.
68
(3)
Beroniso
Colopêndio
Bereniso
Colopêndio
Eu remédio não espero
porque aquela em que me fundo
para mi que tanto a quero
tem o coração de Nero (5)
para me tirar do mundo.
Quem sofrimentos vendesse
quanto ouro ganharia
que eu por um só lhe daria
a vida se a tivesse
como quando Deus queria.
Porque é tal meu padecer
sem ninguém de mi ter dó,
que as pragas de Faraó
não se houveram de escrever
nem os agravos de Jó.
Ai de mi que estou em tal risco
de penosa confusão
que tenho já o coração
feito pedra de corisco,
e meu espírito carvão.
Minha alma com tal perigo
deseja ser de animal,
porque de mi lhe vem mal,
meu bem pesa-lhe comigo,
e eu quero-lhe mal mortal.
Ó irmão, onde te vás?
Juro às dores que sustenho
que não sei se vou se venho.
Tu, senhor meu, mo dirás,
Que eu de mi novas não tenho.
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NOTAS:
(*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa - era medieval. São Paulo: Difel, s/d.
69
O Juiz da Beira
Figuras: Pêro Marques, Porteiro, Ferreiro, Vasco Afonso, Ana Dias, Sapateiro, Escudeiro,
Moço do Escudeiro, Preguiçoso, Bailador, Amador, Brioso.
Esta farsa que se adiante segue é o seu argumento desta maneira: diz o autor que
este Pêro Marques, como foi casado com Inês Pereira, se foram morar onde ele tinha sua
fazenda, que era lá na Beira, onde o fizeram juiz. E porque dava algumas sentenças
disformes por ser homem simples, foi chamado à corte e mandaram-lhe que fizesse uma
audiência diante de el-rei.
Foi representada ao mui nobre e cristianíssimo rei D. João, o terceiro em Portugal
deste nome, em Almeirim, na era do Senhor de 1525. (*)
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Entra Pêro Marques dizendo:
Olhai vós bem qu’este sou eu
homem de boa ventura,
empacho nunca me atura,
e he-de dizer o meu
coma qualquer criatura.
Pêro Marques sou da Beira
e juiz mexericado;
deram-me lá um julgado
por cajo de Inês Pereira
com que embora sou casado.
10
Passou-se cá um mandado
nega por me dar canseira
que logo em toda maneira
viesse e vim emprazado
bofá com fraca esmoleira.
15
5
70
E porque me tem tenção
Diogo Lopes de Carvalho
por me meter em trabalho
diz que não cumpro a Ordenação
e que para juiz não valho.
Que ele é muito de apertar
Com juízes de siqueiro
Ora eu, por não ser paceiro
vim cá para me amostrar
que sou eu homem inteiro.
Ora assi que de maneira
minha hóspeda Inês Pereira
Deus a benza sabe ler
e quanto me faz mister
para eu ir pela carreira
De que eu contente sam.
soma avonda que assi
lê-me ela o caderno ali
onde sê a Ordenação
de cabo a rabo em par de mi.
Do que pertence ao juiz;
e assi como ela diz
assi xe-mo faço eu;
e em terra de Viseu
ninguém não me contradiz.
20
25
30
35
40
Vem um porteiro apregoando:
Quem quiser vir arrendar
as charnecas de Coruche
antes que o lanço mais puxe
que se querem arrematar.
São terras novas guardadas
que nunca foram lavradas.
Oh que matos para pão!
que vales para açafrão
e canas açucaradas.!
45
[...]
______
NOTAS:
3 – Não tem papas na língua.
4 – Hei-de dizer a minha opinião.
7 – Juiz contra o qual foi movida sindicância ou processo.
9 – por cajo = por causa.
10 – embora = em boa hora, felizmente.
12 – nega por = apenas para.
14 – vim emprazado = vim com prazo fixado.
71
15 – bofá = pronúncia rústica de abofé = com boa-fé, isto é: sinceramente. Com fraca esmoleira = com
fracas ajudas de custo.
16 – Porque me tem má vontade.
17 – Desembargador do Paço com funções de inspetor judicial.
19 – A Ordenação era a compilação da legislação em vigor.
22 – siqueiro = soalheiro. Conversa de sequeiro: conversa ociosa. No teatro de Chiado e de Prestes
encontra-se madrugo de sequeiro, no sentido de vadio. Talvez juiz de sequeiro signifique juiz sem estudos,
juiz rural.
23 – paceiro = homem da corte. Que ou aquele que frequenta o paço real; palaciano; cortesão.
27 – minha hóspeda = minha esposa (forma arcaica já no século XVI).
29-30 – Sabe tudo quanto é preciso para eu seguir carreira.
32 – Soma e avonda tem o mesmo sentido: em suma, enfim.
33 – 34 – Lê a parte do caderno onde se encontra a lei referente ao caso a julgar.
37 – xe-me faço: arremedo da pronúncia beiro, que carrega o che.
41 – Todo o pregão do porteiro é humorístico e visa denunciar a corrupção da justiça na corte.
43 – antes que o lance mais puxe = antes de subir o lance. O pregoeiro tinha o dever de levar a almoeda ao
lanço mais alto, mas prometia não o fazer a quem se entendesse com ele na «alfândega da cortiçada»...
45-46 – terras guardadas: terras vedadas. Que nunca foram lavradas: o cultivo dos campos de Coruche é
antiquíssimo. Ambas as afirmações se destinavam, portanto, a provocar o riso.
47-49 – As terras, inundadas pelas cheias do Sorraia, não se prestam para pão. O açafrão e a cana-deaçúcar eram importados e não se cultivavam em nosso território.
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(*)SARAIVA, Maria de Lourdes (Org.). Gil Vicente sátiras sociais. Lisboa: Publicação Europa-América, 1988.
72
Quem Tem Farelos?
Apariço e Ordonho, moços de esporas de
dois escudeiros, perguntam em voz alta: Quem
Tem Farelos?, para prepararem a palhada para
as montadas de seus amos. Encontram-se,
reconhecem-se e trocam, entre si, as chufas
habituais. Passam depois a falar dos amos, aos
quais põem pelas ruas da amarguras, apodandoos de fanfarrões, covardes e pelintras que
aparentam de ricaços e de fidalgos e imaginam
bem trovar e tanger, quando, na verdade, não
são, afinal, mais que dois impostores sem mérito
nem préstimo algum.
Aires Rosado, amo de Apariço, não tarda a aparecer, justificando exuberantemente
as informações do moço: as trovas que faz à sua dama e as cantigas que lhe endereça,
debaixo da janela, bem como as palavras que com ela troca, revelam bem a sua
insensatez devendo notar-se, porém, que a cantiga Si dormis, doncella não é da autoria
de Gil Vicente, mas, com certeza, da tradição popular.
Isabel, moça leviana e presumida, dá-lhe atenção, talvez mais por vaidade do que
por outra causa. Da conversa entre os dois, apenas se ouve o que o escudeiro lhe diz, e é
esta, talvez, a parte mais cómoda da farsa, mas também a mais difícil de interpretar,
embora o autor declare que, «pelas palavras que ele responde, se pode conjecturar o que
lhe ela diz». A conversa do escudeiro é interrompida pelo ladrar dos cães e pelo miar dos
gatos; por fim, a mãe de Isabel acorda e desce a rua, crivando de invectivas e pragas o
escudeiro, que acaba por se retirar, corrido, cantando uma cantiga de despedida, tão
insulsa como as outras da sua convencional autoria.
A velha, ficando só com Isabel, começa a increpá-la pelo seu leviano
procedimento, respondendo-lhe esta malcriadamente e sustentando que a última
ocupação que lhe agrada e é a própria é alindar-se ao espelho, pintar-se, pentear-se,
morder os beicinhos, estudar sorrisos, aprender a responder de pronto aos galanteios e
outras coisas semelhantes. A mãe aconselha-a, então, a lavrar (costurar), fiar, tecer e até
amassar, ocupações estas que ela repete, com desdém, terminando por lhe dizer que,
como já vai amanhecendo, vai tratar, mas é de almoçar.
E assim termina a farsa. (*)
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(*)ANDRADA, Ernesto de Campos de (Org.). Quem tem Farelos? por Gil Vicente. Lisboa: Seara Nova,
1973.
73
Farsa de «Quem tem Farelos»
Figuras: Aires Rosado, Escudeiro; Apariço, Ordonho Criados; Velha, mãe de
Isabel.
Este nome da Farsa seguinte - «Quem Tem Farelos?» - pôs-lho o vulgo. É o seu
argumento que um escudeiro mancebo, por nome Aires Rosado, tangia viola e a esta
causa, ainda que sua moradia era muito fraca, continuamente era namorado. Trata-se
aqui duns amores seus, Foi representada na mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa ao
muito excelente e nobre Rei D. Manuel primeiro deste nome, nos Paços da Ribeira, era do
Senhor de 1515.
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Vêm Apariço e Ordonho, moços de esporas, a buscar farelos, e diz logo:
APARIÇO
Quem tem farelos?
ORDONHO
Quien tiene farelos?
(quem tem farelos?)
APARIÇO
Ordonho! Ordonho! espera mi.
Ó fideputa ruim!
(Ordonho! Espera por mim.)
(seu filho da puta!)
Sapatos tens amarelos,
já não falas a ninguém.
(estás tão bem)
(que já não falas com ninguém.)
ORDONHO
Como te va, compañero?
(como você vai, companheiro?)
APARIÇO
S'eu moro c'um escudeiro,
como e pode a mi ir bem?
(se eu moro junto com um escudeiro)
(como posso ir bem?)
ORDONHO
Quien es tu amo? di, hermano? (Quem é teu amo, quem é a pessoa que você serve, me
diga, meu irmão?)
APARIÇO
É o demo que me tome!
Morremos ambos de fome
e de lazeira todo ano
(é o diabo que vive comigo)
(morremos de fome)
(e de miséria o ano inteiro)
ORDONHO
Con quien vive?
(para quem ele serve?)
74
ESTUDO DO TEXTO
Quem tem farelos? [Leia a peça na integral]
Isabel –
Isto vai sendo de dia.
Eu quero, mãe, almoçar.
Mãe
– Eu te farei amassar...
Isabel – Esse é outra fantasia.
I)Quanto ao aspecto fônico:
01)Metrifique a estrofe acima.
02)Como se classificam os versos quanto ao número de sílabas? E justifique o seu
emprego.
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03)Qual o esquema rimático da estrofe?
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II)Síntese de características vicentinas.
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III)Qual a situação central da peça?
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NOTAS:
chufa - ação de chufar; zombaria.
apodar - dirigir a apodos a; motejar de; alcunhar, depreciando; comparar.
apodo [ô] – alcunha afrontosa; motejo; zombaria.
trovar – fazer ou cantar trovas; cantar em verso [Do prov. trobar, «achar» (as rimas)]
tanger – tocar (instrumento musicais); tocar (animais).
presumido – vaidoso; presunçoso; afetado.
insulso sem sal; insosso; [fig.] que não tem graça; desenxabido. [Do lat. insulsu-, «insípido»]
increpar – repreender; acusar; censura.
desdém – desprezo com orgulho; desafetação.
invectivo - que tem o carácter de invectica; injurioso; agressivo.
Moços de esporas – que serviam na cavalariça, para depois ascenderem na carreira.
palhada - mistura de palha, farelos e água.
Apariço – forma popular de Aparício.
75
Textos complementares acerca do teatro vicentino
Teatro pré-vicentino
O Teatro medieval, entre nós, revestiu sempre uma forma frustre e rudimentar. Os
jograis e jogralesas, com seus cânticos, recitativos e danças, foram os primeiros actores.
Das suas habilidades faziam parte, em alguns casos, os trejeitos, a imitação caricatural de
pessoas, as graças e ditos jocosos e chocarreiros. «Arremedavam», Isto é, faziam
«arremedilhos», nas praças públicas, nos templos e nos paços dos reis. Santa Rosa de
Viterbo, no Elucidário, cita um documento do século XII,que alude a dois jograis, Bonamis
e Acompaniado, da corte de D. Sancho I, e aos seus «arremedilhos”, que também se
podem chamar «arremedos». Os «arremedos» com aspectos licenciosos chegaram a
tomar cabimento nos próprios templos, o que moveu a Igreja e o Estado a intervir para
reprimir tais abusos.
Os «arremedilhos», também designados por «jogos de escarnho» dada a sua
tendência quase habitual para escarnecer e gracejar, eram ainda correntes em Portugal
nos fins do século XV. O rei D. João II, como consta de documento datado de 23 de Abril
de 1482, mandou tirar da cadeia, onde cumpria determinada pena, um escolar em artes
muito dado à prática de «arremedilhos». O jovem actor sabia «arremedar» os ofícios
divinos e pregar em italiano para dizer inconveniências. Dotado de bastante maleabilidade
dramática deu uma sessão de «arremedilhos», em que imitou um capelão, um rabino, um
tabelião e ainda outras personagens.
Além dos «arremedos», tiveram grande voga na Idade Média, os «momos» (por
alguns também denominados «entremezes»), espectaculosas figurações de animais e
pessoas. Tais reproduções, de natureza profana ou religiosa, revestiam, às vezes,
aspectos desproporcionados, cómicos e carnavalescos. Exibiam animais imaginários ou
reais, ou, por exemplo, naus e castelos. Também apresentavam homens sob a forma de
animais, graças ao recurso a uma apropriada indumentária animal.
Dão notícias de momos reais: Rui de Pina, na Crónica de Afonso V, e Garcia de
Resende, na Crónica de D. João II, o primeiro cronista, ao relatar a celebração do
casamento da Infanta D. Leonor com o imperador Frederico da Alemanha, o segundo a
propósito das festas realizadas em Évora, em 1492.
O gosto por estas diversões públicas, denominadas «momos» ou «entremezes»,
muito concorreu para o progresso cenográfico do teatro, porquanto tinha complicadas
exigências técnicas e reclamava uma grande variedade de trajes.
Existiu, portanto, um teatro profano pré-vicentino, mas dele não sobreviveu
qualquer monumento literário. Todavia, essa experiência dramática foi continuada e
desenvolvida por Gil Vicente. (*)
______
NOTAS:
frustre – de qualidade inferior; rude; escasso.
jogral – artista que, na Idade Média, ganhava a vida declamando poemas, cantando e tocando instrumentos
musicais; trovador. Em outras palavras: artista que tocava vários instrumentos e cantava versos alheios.
jocoso [ô] – que provoca riso; alegre, engraçado. (f. e pl.: [ó]).
chocarreiro - aquele que diz chocarrice. [Chocarrice – comentário zombeteiro; gracejo geralmente
desrespeitoso.]
arremedar – imitar grosseira ou ridiculamente. [Arremedava o teatro vicentino]
arremedilho – representação teatral curta e chistosa, de caráter popular; entremez, farsa.
momo – representação dramática por meio de mímica; momice; farsa satírica; ator dessa farsa; [fig.]
zombaria. Bras. Figura inspirada em momo, e que personifica o carnaval.
entremez – pequena composição dramática, jocosa ou burlesca; farsa.
76
A Vida de Gil Vicente
A biografia de Gil Vicente está cheia de mistérios e incertezas. Apenas se
conhecem com relativa segurança os incidentes biográficos que ilustram a actividade
artística e literária do dramaturgo.
Seria descendente de uma família de ourives e teria nascido em Guimarães (1),
porventura, à volta de 1465 ou 1466.
Teria partido muito novo para Lisboa, aí recebendo uma acurada educação moral e
intelectual, nos primeiros anos. Uma discriminação mais íntima do ideário vicentino
permitiu aventar a hipótese de que Gil Vicente se ilustrou em alguma das grandes
universidades do tempo. O Prof. Joaquim de Carvalho inclina-se a admitir estas duas
audaciosas proposições, contra o parecer tradicional (2): Gil Vicente foi indivíduo de
ilustração variada, Gil Vicente fez estudos regulares. «O estudo das fontes da sua obra
pode ajudar a esclarecer a extensão do seu saber e, talvez alcance inculcar a escola e o
país em que estudou: se só em Portugal, se em Portugal e em Salamanca, e ainda se,
após alguns anos em Salamanca, frequentou Paris, embora durante menos tempo e com
menor assiduidade.”(3).
Gil Vicente acusa o gosto pelas ciências teológicas e filosóficas do tempo.
Manifesta-se familiarizado com os intelectuais contemporâneos, e interessado por muitos
grandes anseios da época. É notável a sua independência de pensamento. No
julgamento e apreciação dos fenómenos humanos e das ocorrências do mundo, a sua
inteligência exerce-se, em geral, sem subordinação a ideias feitas e a superstições. É
nele forte a propensão para ver de frente as realidades, o que o integra no
experiencialismo do Renascimento.
Em janeiro de 1531, um forte abalo císmico atingiu o País, causando danos e
semeando o pânico. Outros tremores de terra se seguiram a este, com pequenos
intervalos. A quando do último, Gil Vicente estava de passagem em Santarém, onde
começou a correr insistentemente que os tremores de terra eram castigos da Providência,
determinados pela falta de fé dos judeus. Gil Vicente convocou então os elementos da
classe eclesiástica para uma reunião na crasta de São Francisco. Aí proferiu um sermão
célebre, em que afirma serem os tremores de terra «acontecimentos que precedem da
natureza», e não provem da cólera divina. E deplorando que se aceitasse de animo leve
tal suposição, assevera finalmente nesse sermão: «não é prudência dizerem-se tais
cousas publicamente, nem mesmo, nem menos serviço de Deus; porque pregar não háde ser praguejar. As vilas e cidades dos reinos de Portugal, principalmente Lisboa, se há
muitos pecados, há infindas esmolas e romarias, muitas missas e orações, e procissões,
jejuns, disciplinas e infindas obras pias, públicas e secretas. E se alguns há que são
ainda estrangeiros na nossa fé e se consentem, devemos imaginar que se faz porventura
com tão santo zelo, que Deus é disso muito servido, e parece mais justa virtude aos
servos de Deus e seus pregadores, animar a estes e confessá-los e procurá-los, que
escandalizá-los e corrê-los por contentar a desvairada opinião do vulgo». O clero e o
povo mudaram de parecer após as objurgatórias deste católico avisado e esclarecido. Gil
Vicente dá conhecimento a D. João III da sua intervenção pacifica e muito realista, numa
carta em que relata os acontecimentos.
As classes dominantes reconhecem o prestígio artístico deste cortesão. A Corte
admira-o e anima-o a prosseguir após a representação da sua primeira obra, em 1502. A
aura dramática de Gil Vicente chega aos conventos, e a abadessa do Convento de
Odivelas pede-lhe a representação de um auto no seu mosteiro, pedido que o dramaturgo
acolhe favoravelmente. E lá se representou em Odivelas o belíssimo Auto da Cananeia,
no ano de 1534. Ainda neste mesmo ano, D. João III assiste em Évora à exibição do Auto
de Mofina Mendes.
77
A sua carreira dramática termina com a representação da comedia de Floresta de
Enganos, em 1536, estando presente D. João III, o grande protector e assíduo admirador
de Gil Vicente.
Temendo certamente o Rei que se pudesse perder uma obra de tanto
merecimento, ou que se dispersasse em publicações que já circulava, ordenou a Gil
Vicente que coligisse as suas obras, tarefa a que o escritor se consagrou nos últimos
tempos da vida.
Sobre as circunstâncias da existência familiar de Gil Vicente, dispõe-se
ainda de parcas informações. Casou primeiramente com Branca Bezerra, nascendo deste
casamento Gaspar e Belchior Vicente. Em segundas núpcias, contraiu matrimônio com
Melícia Rodrigues. Nasceram então os filhos: Valéria, Paula e Luís Vicente. Estes dois
últimos defendem a glória literária do pai, levando a cabo e publicando a Compilação da
Obras de Gil Vicente.
Luís Vicente, no prólogo da Compilação, faz notar a D. Sebastião que as
obras do pai foram «algumas delas feitas por serviços de Deus, e todas em serviço de
vossos avós, e de que eles muito gostaram». Acrescenta mais que o próprio D.
Sebastião «gosta muito delas, e lê e folga de ouvir representadas». Esta afeição
intelectual dos reis e príncipes dedicada a Gil Vicente, teve seus começos com a Rainha
D. Leonor, viúva de D. João II, que pressentiu o génio do dramaturgo.
Este homem de letras, segundo parece definitivamente averiguado por
Braacamp Freire, era também artista consumado na arte de ourivesaria. (4) Ourives da
Rainha D. Leonor, que lhe encomendou várias obras, desempenhou também na Casa da
Moeda o cargo de «mestre da balança». Em casa, entregava-se, simultaneamente, ao
labor dramático e ao ofício de ourives. Teria sido o lavrante da Custódia de Belém, uma
obra-prima da ourivesaria nacional.
O rei D. Manuel, por alvará de 15 de Fevereiro de 1509, nomeia Gil Vicente «vedor
das obras de oiro e prata» que se venham a fazer no Convento de Tomar, Hospital de
Todos os Santos, e Mosteiro de Nossa Senhora de Belém. O cinzelador de metais
preciosos manifestou-se tão hábil como o dramaturgo.
Teve Gil Vicente uma existência gloriosa e cheia de trunfos. Viveu
apaixonadamente para a arte e para os mais nobres ideais. Morreu em Évora, por fins de
1536, ou já no início do de 1537, tendo previamente composto o epitáfio para a campa
onde, jaz, no mosteiro de S. Francisco daquela cidade. (*)
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NOTAS:
aventar – apresentar, lembrar, sugerir (ideia, proposição etc).
propensão – pendor, tendência, vocação para determinada coisa. (Ana Paula sempre mostrou propensão
para fazer pesquisas literárias.)
crasta – claustro [Do lat. claustra, pl. de claustrum, «lugar fechado»)
objurgatória - censura; repreensão áspea.
cortesão – homem que vive na corte; indivíduo cortês.
coligir – reunir em coleção; juntar.
parco – que é pouco, escasso. [É uma pessoa de hábitos parcos, mas de muita generosidade com os
outros.]
folgar - dar folga a; alargar; desapertar; divertir-se; ter prazer ou satisfação em alguma coisa; gostar.
ourivesaria - arte de ourives; loja ou oficina onde se vendem ou fazem objetos de ouro e prata.
(1)Feliciano Ramos, Gil Vicente e a sua Obra (in Auto da Alma de Gil Vicente, 1962).
(2) Caroline Michaelis de Vasconcelos, Notas Vicentinas, IV: Cultura: Cultura Intelectual e Nobreza
Literária.
(3) Joaquim de Carvalho, Os Sermões de Gil Vicente e a Arte de Pregar.
(4)Braancamp Freire, Gil Vicente Trovador e Mestre de Balança. 2ª edição, Lisboa, 1944.
78
Gil Vicente, a Idade Média e o Renascimento
Nos fins da Idade Média, o género artístico português entra em novo período
evolutivo. É precisamente nessa hora, em que uma longa idade histórica entra em
declínio, que se observa uma efervescência crescente do espírito artístico. Gil Vicente,
pelo seu temperamento religioso, continua a tradição da Idade Media. O povo, que tão
largamente se manifestara nas crónicas de Fernão Lopes, não cessa de incentivar a
imaginação artística de Gil Vicente e é um dos motivos mais freqüentes dos seus atos. As
suas fontes são essencialmente de índole mediévica: a cidade de Deus, de Santo
Agostinho, o uso de alegorias, o interesse pelos temas bíblicos na arte dramática
medieval, a imitação inicial de autores espanhóis, como Juan del Encina, etc. Os metros
do Cancioneiro também foram muito usados pelo dramaturgo. Esteticamente, o seu
pensamento está, em parte, subordinado aos cânones medievais, como ainda
recentemente o demonstrou o Prof. Joaquim de Carvalho a respeito do sermão.
A obra vicentina, não obstante o seu medievalismo, reage contra a mentalidade
supersticiosa e mítica da Idade Média; busca predominantemente, a inspiração nas
realidades do momento histórico ; e encerra uma pintura viva dos costumes e dos tipos
contemporâneos. Descreve e observa com vivacidades. Nenhum dos escritores latinos do
renascimento esteve mais atento do que Gil Vicente à sociedade que o rodeava e às
realidades imediatas. Ele conciliou superiormente, na sua arte, a concepção sobrenatural
do homem e o gosto pela existência material. Admira muito a Criação, a obra de Deus,
mas aspira ao Céu, sonho da alma humana. Esta admirável combinação do
transcendente e do sensível é um dos segredos da extraordinária originalidade de Gil
Vicente. A afeição ao mundo concreto, provectamente representada na obra vicentina,
marca bem a adesão do dramaturgo ao espírito do Renascimento .(*)
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NOTAS:
Encina – Juan Del Encina (1468/1529). Poeta e dramaturgo espanhol. Um dos pioneiros do teatro profano
em seu país. Embora de inspiração religiosa, sua produção dramática revela um espírito humanista ligado à
Renascença. Autor, entre outras, das peças: Auto do Natal; Plácido e Vitoriano; Cristino e Febea (esta
última uma écloga). Sua obra lírica mais importante é Cancioneiro (1496), coletânea de poemas.
79
Crítica Social
Os vivos aparecem frequentemente nos seus
autos. Às vezes, é irónico e sarcástico, como
sucede, por exemplo, no Velho da Horta, onde
verbera a fraqueza amorosa de um velho, que se
enamorou de «ua moça de muito bom parecer».
Depois, num passo da mesma obra, e só para rir,
resolve santificar algumas conhecidas damas do
Paço: Maria Anriques, Joana de Mendonça, Joana
Manuel, Catarina de Figueiró, D. beatriz da Silva,
Violante de Lima, Maria de Ataíde. A todas apelida
espirituosamente de santas.
Mas assiste-se bem depressa à quebra desta generosidade, pois severas
repreensões e censuras desfechou Gil Vicente contra a sociedade e contra a gente da
época em que viveu. Na sua mordacidade crítica, houve quase sempre justiça e
inteligência. A peça, por exemplo, Romagem dos Agravados, é uma sátira de flagrante
realismo e uma autêntica parada de descontentes. Desfila ante os espectadores uma
série de mulheres, que se não conforma com certos desaires da fortuna. O
descontentamento apossa-se também de duas religiosas, Dorósia e Domicília, as quais
protestam, com veemência, contra a regra conventual: elas abominam o silêncio, querem
falar à vontade e desejam sobretudo mais liberdade. Naquele tempo, muitas raparigas
eram lamentavelmente forçadas a ingressar nos conventos, embora sem vocação para a
vida religiosa. Que admira, portanto, que tais mulheres repelissem os rigores da clausura?
Ao lado do grupo feminino de insatisfeitas, figuravam os inadaptados. Sempre
houve por aqueles tempos uma grande procura de títulos nobiliárquicos. É lógico,
portanto, que um tal de Cerro Venturoso, sujeito com quatro mil cruzados de renda
ambicione, pelo menos, esta coisa simples: ser conde das Berlengas. Fr. Narciso, homem
desejoso de honrarias e cheio de «tartufismo», vai-se fingindo muito piedoso, de modo a
ver se alcança um bispado. Acha que lhe não escasseia a competência, por exemplo,
para ser bispo do «ilhéu de Peniche». E assim Gil Vicente vai anatematizando umas
tantas pessoas que não estavam à altura das aspirações que tinham.
Na Romagem dos Agravados, perpassa ainda a interessante personagem de Fr.
Paço, senhor de boas maneiras, que usava gorra de veludo, luvas e espada dourada. Foi
este vistoso cortesão que um dia examinou certo rapaz Bastião, que o pai, desgosto da
vida, destina à carreira eclesiástica. O exame oferece diferentes fases de imenso
interesse cômico. Começa aquele sacerdote por levar o examinando a ler uns
«versozinhos», convidando-o, ao mesmo tempo, a pegar «no papel na mão». Ante esta
ordem, o Bastião imagina que o assunto é todo respeitante a «cominhos» e a «açafrão».
Fr. Paço mando-o, a seguir, pronunciar A, B, C, D, E, e ele, com desembaraço,
repete:«Arre, arre, cedo é».O padre ainda insiste para que ele diga A, X, mas o mocinho
limita-se a declarar que «Assis era um alfaiate», que vivia junto da Sé. Desalentado Fr.
Paço com este insucesso, desvia o inquérito para a língua latina,e, dirigindo-se ao
pequeno, fala assim: «Dize ora Beatus vir». O moço, sem pestanejar, repete: «Vi ora três
ratos vir». Depois da prova de latim, segue-se a de canto mas Bastião estropia tudo. Fr.
Paço conclui então que o jovem é incapaz de apreender coisa alguma. É na presença do
pai que o rapaizinho é submetido a todas estas provas. Aquele, posto que tenha
presenciado a insuficiência mental da criança, insiste, muito a sério, em que seu filho
«pera tudo tem engenho». Nesta emergência, a mordacidade vicentina visava a cegueira
daqueles pais, que teimam em não reconhecer a incapacidade dos filhos e ousam
destiná-lo a carreiras incompatíveis com as aptidões que possuem.
80
O Fr. Paço também é professor de etiqueta e civilidade. Neste sentido, dá
instruções à menina Giralda, pretendente ao lugar de dama do paço. O frade ensina-a a
fazer uma «mesura», explica-lhe como deve «dar as passadas», como há-de olhar, e em
tudo vai ele próprio explicando. Recomenda-lhe mais: «corpo mui direito», riso sóbrio
composto, e falar alguma coisa, de vez em quando.
A actividade professoral de Fr. Paço é suficientemente objectiva para, quanto às
lições como matéria de cómico, podermos ver em Gil Vicente um precursor de D.
Francisco Manuel e de Molière.
Quer fazendo crítica dos actos pessoais, quer pondo em destaque o
descontentamento social, o grande dramaturgo, apesar do efeito cômico que procura tirar
das situações, e da regularidade com caricatura as pessoas e as coisas, está, acima de
tudo, empenhado numa alta campanha moralizadora. Sonha uma sociedade de mais
perfeita estrutura moral e religiosa. Desde modo, no Auto da Feira,(1527), onde alude à
degradação moral do Renascimento, repreende aqueles que «já não têm ao Céu
respeito», deplora que, por toda parte, se tenha perdido o «temor de Deus» e que o
dinheiro seja a máxima ambição de toda a agente.
É uma calamidade moral que Gil Vicente condena. O quadro mostra-se, às vezes,
sombrio: mentira, hipocrisia, devassidão, desdém pela honradez, luxuria, desastres e
desinteligências na família e a corrupção do clero. Gil Vicente, homem moralmente severo
e disciplinado, ergue no Auto da Feira, um vigoroso protesto contra o torpe materialista
dos tempos.
No Auto das Fadas troça das práticas da feitiçaria. Aparece em cena a feiticeira
Genebra Pereira, a qual não só frisa a inocência dos seus propósitos, como expõe a sua
acção humanitária, que consiste, por exemplo, em ter pena das mulheres mal-casadas,
em auxiliar o «namorado» desiludido, em patrocinar
traficâncias e tratar de casamentos. Estas operações executam-se às vezes com o
seguinte material de trabalho: fel de coruja, sangue de leão, «rabo» dum peixe chamado
«huja», coração de gato preto, etc.
Gil Vicente realiza com certa mestria a arte de ridicularizar baixas crendices.
Revela uma mentalidade saudável e avessa a preconceitos humilhantes, ao estigmatizar
as superstições do povo.
Apresenta-se sempre magistralmente familiarizado com a vida quotidiana. No
«Auto da Lusitânia», desvia a observação para os episódios da vida caseira. Assim, por
exemplo, nessa obra dramática, foca aspectos da vida doméstica dum casal que tinha
uma filha chamada Lediça, jovem descuidada e preguiçosa, que desobedecia à mãe e
trazia o cabelo mal penteado. O pai aplicava-lhe castigos corporais. Na mesma peça
referencia também trabalhos domésticos, como varrer a casa, costurar, lavar a louça. Há
alusão ainda ao fuso, à roca, ao dedal e ao menino «Saulinho», que pede um pente à
irmã. Tudo isso é muito simples e trivial, mas lembremo-nos de que Gil Vicente, com esse
realismo descritivo da vida domestica e com atenção dispensada às crianças, punha em
circulação temas que só mais tarde, no século XIX, teriam foros literários. Gil Vicente foi
dos primeiros, na Europa, a anunciar o romantismo e o realismo, que ainda vinham muito
distantes.
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A sua sátira não poupou as excentricidades dos poetas. Em Colopêndio (Romagem
dos Agravados) ridicularizou os poetas amorosos, especialmente os que, à maneira de
Petrarca, num soneto célebre, diziam experimentar estados de espírito contraditórios e
determinados pelo ardor passional. Este gosto das antíteses sentimentais, também depois
expresso num soneto de Camões, era, para Gil, uma extravagância inaceitável. Ora o
fidalgo Colopêndio, conturbado por grandes acessos amorosos, julga-se perdido e fora de
si, dizendo mesmo «eu de mi novas tenho». O mesmo apaixonado averigua, a seu
respeito, o seguinte: quando fala está calado, quando anda está quieto, quando dorme
está acordado, quando chora está a rir, ao queimar-se tem frio, e acordado está a
sonhar!.. É certo que logo a seguir esclarece: «Não sei se sei o que digo». Neste caso, a
tarefa vicentina consistiu em verberar os desvairos de enamorados e a poesia
petrarquista das antíteses, que, sem dúvida, conhecia.
Mas a galeria das vítimas vicentinas está completa? Não; faltam, pelo menos, os
curandeiros e médicos, aos quais Gil Vicente aplicou um correctivo histórico. Foi na Farsa
dos Físicos, representada pela primeira vez, provavelmente, 1524, que satirizou os
profissionais da arte hipocrática e a astrologia judiciária.
Aparece primeiramente em cena um homem bastante incomodado. Está de cama e
precisa urgentemente de ser tratado. A curandeira Brásia Dias abeira –se do doente e
diagnostica: «frialdade». Tratamento: aplicação de uma «telha quente», tomar um
suadouro com uma composição especial e esfregar com unto de coelho determinada
parte do corpo. É claro que o tratamento será outro, no caso de se tratar de «quebranto».
Nesta segunda hipótese, o enfermo untará simplesmente o cotovelo com um remédio feito
de favas da Guiné incenso e sumo de marmelo.
Em virtude da persistência da doença, quatro médicos examinam sucessivamente
o doente. Nenhum reconhece o tratamento despropositado de Brásia, e todos eles, com
uma regularidade desconcertante,se desmentem uns outros. E chega então o primeiro
físico: Mestre Felipe. Diagnostica: febre que «procede de cardíaca». Tratamento: tomar
um clister «d’água de cevada» misturada com farelo, comer «alface esparregada» e beber
água «cozida com rosmaninho».
Depois deste Galeno, pronuncia-se Mestre Fernando. Este entende, porém, que a
doença é toda de rins, desejoso de patentear os seus vastos conhecimentos, apressa-se,
logo de entrada, a fazer a exposição em latim, de vários preceitos médicos. Profere
alguns dislates. Quanto a dieta, o seguinte: «comer cousa leve», mas nunca lebre, coelho,
porco, congro, lampreia, tubarão etc.
O Terceiro físico, Mestre Anriques, diagnostica: «febre sincopal». E vem finalmente
o último médico. Trata-se do «Físico Torres», um engenho Esculápio, que buscava nos
astros a explicação de todas as doenças. Assim, mal se acha junto do enfermo, começa
imediatamente a dissertar sobre os planetas Júpiter, Saturno, Mercúrio, e após algumas
considerações astrológicas, chega à conclusão de que não existe «causa» alguma que
pudesse ter originado uma «febre verdadeira». Entretanto, com imperturbável gravidade,
faz notar que, para bem curar, é indispensável o conhecimento das doutrinas
astronómicas de Ptolomeu. Observa mais que as sangrias se devem fazer de harmonia
com o movimento das estrelas. Enfim, quanto ao diagnostico, encontra-se em absoluto
desacordo com os três físicos que o precederam. Na opinião de Torres, o enfermo sofre
do baço. Por consequência, preconiza o seguinte regime alimentar: comer lentilhas ou
abóbora cozida, caldo de ervilhas e beber água cozida com avenca. Recomenda também
que o padecente seja sangrado no dia imediato.
82
A situação dos físicos é sumamente humilhante, pois os espectadores sabem,
desde o início da peça, qual é o verdadeiro achaque do enfermo, e, por conseguinte,
surpreendem, com toda nitidez, a imperícia dos médicos . Neste arranjo especial,
orientado de modo a alcançar o Maximo efeito satírico, sobressai a habilidade do
comediógrafo. Um moço que assiste a toda esta comédia galénica, e que também
conhece o mal de que sofre o amo, um clérigo, vai presenciando, estupefacto, as
considerações dos médicos. E diz o criado, sorrindo: «Está a doença em Bilbau e vós
andais à procura dela por «Entre Douro e Minho». E tinha razão. Na verdade, o enfermo
não estava apoquentado por «frialdade», não tinha a febre que o terceiro físico apontou,
também não sofria dos rins, nem do baço: tratava-se apenas de um padecimento
amoroso. É que uma certa Branca Dinisa não correspondeu ao seu pretenso apaixonado,
e daí a doença sentimental deste, que os «físicos» se mostram incapazes de descobrir,
errando constantemente o diagnóstico.
Na Farsa dos Físicos lançou Gil Vicente o ridículo sobre a ciência médica do
tempo. Os médicos vicentinos são incapazes e ignorantes. Tentam encobrir a
incompetência técnica, pelo recurso a mero verbalismo e aos disparates médicos da
época. A ali se afirma a preocupação charlatanesca de ostentar saber e ludibriar o
doente e o público. A Farsa dos Físicos é uma das peças dramáticas em que mais
transluz a propensão trocista de Gil Vicente.
Ao escrever a Farsa dos Físicos, Gil Vicente tratou de documentar-se
medicamente. A própria Brásia Dias receitava mezinhas e remédios que se remendavam
em velhos tratamentos médicos, chegando alguns a ser estudados por Amato Lusitano e
Garcia de Orta. Ela receitava, como depois Amato, o incenso e o sumo de marmelo, por
exemplo. A terapêutica vicentina baseia-se no estudo de livros de medicina, como está
averiguado.
Os quatros médicos que, um a um, vão examinar o doente, são conhecidos
«físicos» contemporâneos. O primeiro a intervir, Mestre Filipe, é doutor em medicina e
catedrático de astronomia na Universidade de Lisboa. Este físico de prestígio tenha então
uns 55anos.
Mestre Fernando era medico do Marquês de Vila real e homem de raça judaica.
Mestre Anriques, o terceiro médico, parece que se doutorara em Paris, e talvez por ser de
origem espanhola, falava castelhano.
O Mestre Torres (chamava-se Tomás de Torres), médico,astrólogo e matemático.
Era muito consultado por D. Manuel e ensinou astrologia a D. João III, que lhe dispensava
a maior proteção. Então a Farsa dos Físicos demonstra, mais uma vez, como Gil Vicente,
em arte, copiava do vivo e do natural e era um espírito lido e ilustrado. (*)
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Trilogia das Barcas
Gil Vicente hauriu largamente na
sociedade em que vivia a matéria cómica dos
seus autos. Guiou, por vezes, uma intenção
meramente galhofeira. Casos há, porém, em que
Gil Vicente julga os homens e os invectiva por
virtude da sua repreensível conduta. A Trilogia
das Barcas documenta superiormente o
idealismo ético e combativo de Gil Vicente. A
acção destes três autos, Barca do Inferno, Barca
do Purgatório e Barca da Glória, decorre em
lugares extra-terrenos e no mundo do além do
túmulo.
O desenvolvimento da acção pressupõe a aceitação da imortalidade da alma e das
convicções doutrinarias que responsabilizam o homem depois da morte, pelo bem ou pelo
mal que praticou durante a existência terrena. Estamos em presença das crenças
católicas de Gil Vicente, e de uma preferência literária por temas respeitantes à
existência da vida futura, e aos lugares onde o homem viverá eternamente, em estado de
felicidade ou de perpétua condenação.
Conhece-se a circulação em Portugal dessa literatura, inspirada nos lugares em
que estacionará a alma após a morte. Na Idade Média esses temas inspiram outros
escritores como já sabemos, e impressionam agora também o dramaturgo Gil Vicente.
Havia o gosto de evocar a hipotética mansão em que decorre a existência futura, quer
fosse para fazer temer a Justiça de Deus, quer fosse para antegozar a felicidade que
prometia.
A Barca do Inferno «foi representada de câmara, para consolação da muito católica
rainha D. Maria, estando enferma do mal de que faleceu, em 1517; a Barca do Purgatório
foi representada, em 1518, perante a Rainha D. Leonor, no Hospital de Todos os Santos,
em Lisboa; a Barca da Glória teve a primeira representação em 1519, em Almeirim, com a
assistência de D. Manuel.
No primeiro auto, dos acima citados, são incriminadas, recebendo como sanção da
sua má conduta a condenação às penas do inferno, varias pessoas do povo e um fidalgo.
Apenas se salva um pobre de espírito, um ser irresponsável, assim como quatro
cavaleiros da Ordem de Cristo, que morreram pela Pátria «nas partes d’África». Gil
Vicente, integrado na mística expansionista da época, sentiu que as lutas contra o Mouro,
em África, eram de uma cruzada em defesa da Fé, e, por conseguinte, os que, por ela,
caíssem, na morte mereciam o prémio da vida eterna.
No Auto da Barca do Purgatório, mantêm-se os objectivos de crítica social da
primeira Barca e, em consequência disso, os delinquentes vão para o Purgatório expiar
as culpas que praticaram. Salva-se um “menino de tenra idade”. Os condenados são
pessoas de baixa categoria social.
Segue-se, cronologicamente, o Auto da Barca da Glória, onde são violentamente
acusadas personagens da mais elevada jerarquia social: um conde, um duque, um rei, um
bispo, um arcebispo, um cardeal, um papa, etc. Estes incriminados são, em parte,
informados do seu destino e das razões que os condenaram ao sofrimento eterno. Eles
afligem-se, entristecem-se, e até se desesperam. Um chega a escutar o ruído tenebroso
do “lago dos leões”, onde irá ser devorado por dragões. No entretanto, os afortunados
delinquentes só sofrem um tormento moral, pois que, à última hora, surge
inesperadamente Jesus, que os leva para o céu.
84
Apesar de ser bem maior do que a dos outros a sua culpabilidade, os tripulantes
da terceira Barca são arbitrariamente favorecidos, não padecendo mais que a tortura de
nervos. Quer dizer, à medida que caminhamos da primeira barca para a terceira, a
criminalidade aumenta, enquanto que as penalidades diminuem de severidade. Gil
Vicente faz depender as penalidades da hierarquia social: é complacente para os grandes
e severo para os pequenos. A parcialidade judiciária de Gil Vicente, nas condenações que
proferiu, tornam-se bem palpáveis. A complacência vicentina não é apenas louvável
compaixão cristã, mas advém da aceitação, por parte do dramaturgo, das limitações que
lhe impunham, tacitamente, as classes dirigentes e influentes. Além disso, os pecadores
usufruem um benefício que é conferido pelo dogma da Redenção. Há lógica teológica na
sentença proferida por Gil Vicente, mas nas duas primeiras Barcas é manifesta a
desigualdade de tratamento. (*)
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NOTAS
(*)RAMOS, Feliciano. História da literatura portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1967.
desaire –falta de elegância ou distinção.
nobiliárquico – relativo a nobiliarquia; que tem caráter de nobreza.
tartufismo ou tartufice – qualidade, ato ou dito de tartufo.
tartufo – indivíduo hipócrita; velhaco; devoto fingido. [Do it. Tartufo, antr., personagem da comédia italiana,
aproveitada por Molière]
escassear – tornar menos farto; faltar.
85
Berlengas – arquipélago das Berlengas está situado a 16 km a oeste de Peniche. O arquipélago é um
possante bloco granítico.
Peniche – cidade portuguesa no distrito de Leiria.
gorra [ô] - espécie de barrete. [Barrete – espécie de boné]
mesura – referência que se faz, cumprimentado; cortesia;vênia; salva.
verberar - repreender veemente; censurar.
desvairo – ato ou efeito de desvairar; loucura; desatino.
frialdade – qualidade do que é frio; frio.
unto – gordura. [Do lat. unctu-, «boa mesa; óleo perfumado»]
untar – esfregar com unto ou qualquer substância oleosa.
esparregado – guisado de ervas, depois de cozidas, picadas e espremidas. Lus. Creme de espinafre.
dislate- disparate; asneira.
congro – peixe robusto e longo, de pele lisa, da fam. dos Murenídeos, comum em Portugal.
lampreia – peixe ciclóstomo.
achaque – doença habitual mas sem gravidade; defeito moral; vício; pretexto; imputação sem fundamento
[Do ár. ax-xaqq, «dúvida; suspeita»]
galénico - relativo a Cláudio Geleno, médico grego muito afamado (131-201), ou à sua doutrina médica.
estupefacto – assombrado; pasmado; boquiaberto.
trocista – que ou aquele que faz troça ou gosta de fazer troça. (Troça – ato ou efeito de troçar; escárnio;
zombaria).
mezinha - líquido para clister; [fig.] remédio caseiro.
haurir – retirar para fora de lugar profundo; extrair. Esgotar, consumir. Aspirar.
invectivar – dizer ou lançar invectiva; insultar, injuriar.[Invectiva – injúria]
antegozar – gozar antecipadamente.
jerarquia – subordinação gradativa de poderes; hierarquia; classe
tenro – que se pode cortar, aprtir ou mastigar facilmente; mole; recente; [fig.] novo; delicado.
expiar – remir (uma culpa ou um crime) por meio de penitencia; sofrer as consequências de.
tácito – não expresso por palavras, subentendido, implícito
arcebispo – bispo responsável por uma determinado arquidiocese
D. Francisco Manuel – D. Francisco Manuel de Melo (1608/1666). Escritor, político e militar português.
Molière – Jean-Baptiste Poquelin Molière (1622/1673). Dramaturgo francês. Usou as suas obras para
criticar os costumes da época. As peças «Tartufo» (1664); «Don Juan» (1665) e «O Misantropo» (1666) são
consideras obras-primas da literatura universal. Molière é um dos mestres da comédia satírica.
Petrarca – Francesco Petrarca (1304/1374). Poeta e humanista italiano. Em 1327, conheceu Laura de
Noves, que lhe inspirou um amor platônico. Este amor durou até o fim de sua vida, sobrevivendo às virgens,
às pesquisas eruditas, à vida na corte e às honrarias. «a morte parecia bela no seu belo semblante».
Ptolomeu – Ptolomeu astrônomo, matemático e geógrafo grego (século II).
86
A sátira social em Gil Vicente
“A sátira tem uma intenção moralizadora. Mete a ridículo pessoas, instituições,
ideologias ou a própria sociedade, censurando vícios e defeitos, apontando erros e
incoerências. Pode ser em verso ou em prosa. Os Romanos e os Gregos cultivaram-na.
Ela foca as fraquezas humanas. Na Idade Média o Clero foi um dos alvos principais. No
Renascimento o gênero satírico foi muito popularizado. Entre nós a sátira foi cultivada
desde os primeiros documentos literários. Há que lembrar, por exemplos, as Cantigas de
Escárnio e Maldizer. Encontramo-la igualmente no Cancioneiro Geral, de Garcia de
Resende.
Em Gil Vicente deparamos com “tipos” bem característicos: alcoviteiras, criados,
pajens, escravos negros, judeus, pastores, serranas, feiticeiras, escudeiros, moças
namoradeiras, maridos atraiçoados, ciganas e muitos outros.
Em Gil Vicente não há só depravados. Nele encontramos as crianças, os amores
puros dos pastores, as mães conselheiras e até aquela figura admirável do Auto da
Cananeia que pede a Jesus lhe salve a filha endemoninhada!
André de Resende, o célebre humanista, de vasto saber e uma erudição sólida e
cujas obras se encontram dispersas pelas bibliotecas da Europa, em edições raras e de
difícil acesso, referindo-se a Gil Vicente, escreveu:
Gil, autor e também ator, eloquente e muito hábil em dizer verdades entre gracejos;
Gil, habituado a censurar maus costumes entre leves gracejos.
A sátira de Gil Vicente abrange as três classes sociais: clero, nobreza e povo.
Haverá, por vezes, exageros, mas estes são intencionais. As suas personagens
constituem caricaturas. São típicos na sua obra, os frades devassos, como o que
encontramos, por exemplo, no Auto da Barca do Inferno que traz pela mão a sua Florença
e que pretende entrar com ela na barca do Anjo. Há ainda o falso Ermitão da Farsa de
Inês Pereira que faz uma corte descarada à moça, conseguindo os seus intentos
desonestos. É o clero secular aquele que Mestre Gil melhor satiriza. A vida mundana que
levam não se coaduna com a missão religiosa a que se devotaram. A Igreja nunca foi
diretamente atacada como instituição mas várias circunstâncias nos aparecem, tais como
o negócio das indulgências, que, como sabemos, tão criticado foi por Lutero, o culto
supersticioso, a tendência para explicar os fenômenos naturais por intervenção direta de
Deus. Gil Vicente só alude ao alto clero no Auto da Barca da Glória (em castelhano) onde
um papa, um cardeal, um arcebispo e um bispo são salvos do Inferno por um milagre de
Jesus Cristo.
No que respeita à nobreza esta apresenta-se-nos decadente e ignorante. Os
fidalgos, embora cheios de prosápia, são pobres de espírito e de instrução. No mesmo
Auto da Barca da Glória a que já aludimos, participam um imperador, um rei, um duque e
um conde, salvos, igualmente, pelo poder de Jesus. O escudeiro é outro «tipo» alvejado
pela sátira vicentina. São pelintras e vadios (rascões) dão-se ares de grandes
personagens mas não pagam aos criados nem lhes dão que comer nem os vestem
decentemente como acontece na Farsa dos Almocreves, na Farsa de Inês Pereira e
Quem tem Farelos?. São como parasitas que vão vivendo de expedientes.
Gil Vicente não poupou, igualmente, as profissões liberais: o juiz, o corregedor, o
procurador, o meirinho e o oficial de justiça. Os próprios médicos – os físicos – não
escapam à crítica vicentina. Igualmente o povo não é esquecido. Alguns plebeus vaidosos
teimam em subir na escala social. Temos o onzeneiro que emprestava dinheiro a 11%, os
almocreves, os soldados, marinheiros, pastores, lavradores e todos os outros «tipos» a
que fizemos referência ao longo deste capítulo. A sua sátira não poupou os poetas. Em
Romagem dos Agravados ridicularizou os poetas amorosos, especialmente os que, à
87
maneira de Petrarca, num soneto célebre, diziam experimentar estados de espíritos
contraditórios e determinados pelo ardor passional. Bastante propenso a pôr à vista as
mazelas sociais, Gil Vicente insiste no relato da indiferença pela vida perfeita. As moças
da aldeia, no Auto da Feira, de cesto à cabeça, vão para a feira a cantar. Verifica-se, no
entanto, que estas raparigas se desinteressam muito da vida moral e alimentam mais
aspirações mundanas. Nestas almas femininas, tão indiferentes à pureza interior, esfusia,
no entanto, a alegria. Elas cantam animadamente. No Auto da Feira aparecem as
mulheres descontentes com o seu casamento. Há, também, duas freiras que se não
conformam com a vida de clausura. Elas querem falar à vontade e desejam, sobretudo,
mais liberdade. Vêmo-las na Romagem dos Agravados.
Ao lado do grupo feminino das insatisfeitas, alinham os inadaptados. Procuram-se
títulos nobiliárquicos, como acontece com uma das personagens da referida Romagem
dos Agravados, um tal Cerro Ventoso, sujeito com quatro mil cruzados de renda, que
pretende ser conde das Berlengas e Fr. Narciso, ambicioso e galhofeiro que pretende ser
eleito bispo do «ilhéu de Peniche».
A sátira social em Gil Vicente é, pois, muito vasta. Muito haveria ainda para
mencionar, o que não cabe no âmbito reduzido deste trabalho. (Maria Amélia Ortiz
Fonseca, in «Gil Vicente – Farsa de Inês Pereira»)
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NOTAS:
coadunar - conformar(-se), combinar-(se), harmonizar-se).
Indulgência - disposição para perdoar culpas ou pecados (próprios ou alheios); clemência, perdão.
prosápia – linhagem; ascendência. Vaidade; orgulho; bazófia.
aludir – fazer alusão a; referir-se a; mencionar.
pelintra – que não sente vergonha de seus atos condenáveis; sem-vergonha.
meirinho – antigo funcionário judicial correspondente ao Oficial de Justiça.
onzeneiro – onzenário. Intrigante, mexeriqueiro.
onzenário - relativo à onzena; que contém onzena. Usurário, agiota.
onzena – juro de onze por cento (11%); [fig.] juro exorbitante.
almocreve [é] – indivíduo que tem por profissão conduzir bestas de carga; carregador.
esfuziar – fazer zumbir ou sibilar. [Esfusiar ?]
Teatro Popular - “Durante a Idade Média, a atividade teatral em Portugal se resumiu aos momos,
arremedilhos e entremezes, breves representações de caráter religioso, satírico ou burlesco. Teatro de
índole popular, caracterizava-se por uma linguagem, temas e forma de encenação acessíveis ao povo, e às
vezes com a sua direta participação. Na origem, constituía o teatro profano, oposto aos mistérios e
milagres, manifestações do teatro religioso então predominante”. (Massaud Moisés, in «A literatura
Portuguesa através dos textos»)
88
Características da obra vicentina
“O teatro de Gil Vicente foi considerado, já na época do autor, um teatro rico e
original. Foi o primeiro a fazer o texto literário sobre a cenografia e o espetáculo.
A princípio buscou as ideias nas representações pastoris de Jun del Encina. Mas a
essa experiência integra outros elementos tipicamente populares, desenvolvidos na Idade
Média: as narrativas (de origens cavaleirescas), os milagres e misteriosa, as farsas
(gênero popular com finalidades satíricas), os entremezes, a mistura do cômico e
religioso, a crítica social e o mistério, o lirismo de cantigas etc.
De cultura teocêntrica numa época de nítidas transformações, acreditou na
necessidade de desnudar o homem, dizer das suas misérias e apontar o caminho para a
redenção.
O ser humano é seu objeto de preocupação. O homem de seu tempo, de qualquer
categoria social, emotivo de reflexão porque vive num contexto em que os costumes de
degradam.
Gil Vicente cria o retrato do cigano, do judeu, do camponês, da moça casadoura,
do papa, do médico, do fidalgo decadente, da alcoviteira, do marido traído e de outros
mais que compõem a realidade da época.
Ressalta as crenças, o artificialismo, a imoralidade, as superstições. Critica o
homem que abandona o campo e se entrega às aventuras do mar. Os costumes são
outros. Os novos valores se associam à decadência humana.
Criador de tipos sociais, consegue definir o personagem a partir do seu vestuário
característico, do tipo psicológico e mesmo de uma linguagem peculiar.
Não perdoou nada. Acreditando na função moralizadora do teatro, colocou em
cena fatos e situações que relevam a imoralidade dos frades, os religiosos são mais
atacados pelo autor. A ambição, a indisciplina e o utilitarismo são a contradição entre o
ideal e a prática religiosa.
Há críticos que o consideraram pré-reformista, como Teófilo Braga, no século XIX.
Mas Gil Vicente, crítico dos costumes, estava longe de expressar (ou propor) a rebelião
dos reformistas protestantes. Esses se opuseram à Igreja porque estavam imbuídos de
um espírito antropocêntrico fortalecidos e apoiados pela burguesia. Gil Vicente não se
identifica com os valores da burguesia. De espírito e formação medievais, ele esteve
enraizado numa concepção teológica.
A crítica ao homem tem como função abrir sua consciência e reaproximá-lo de
Deus. Nesse prisma, é fácil perceber que o autor expressa os valores sociais hierárquico
e tradicionais.
O pensamento cristão e a crítica aos costumes não chegam a se constituir uma
bipolarização: a crítica existe em função do pensamento cristão.
O paraíso está reservado ao simples e humilde, ao puro, e não ao frade que,
ambicionando a ascensão, utiliza de artifícios pra fingir a palidez do jejum (“Romagem
dos Agravados”, 1533).Ou então, os tracionais usurpadores e exploradores do povo:
meirinhos, corregedores, juízes – que representam uma justiça com bolsos cheios (“Barca
do Inferno”, 1515; “Floresta de Enganos”, 1536).
89
A esses personagens que são tipos sociais, opõe-se a figura do lavrador (“Barca do
Purgatório”, 1518; “Romagem dos Agravados”): é sugado pelo trabalho, pelos frades e
pelos e pelos cobradores de renda.
A corte, o clero, o homem do povo, tipos folclóricos (
a alcoviteira, o bobo, a beberrona, o judeu etc.) são somados à figura da moça da vila
(“Quem tem Farelos”, 1515; “Farsa de Inês Pereira”, 1523). Sinal dos novos tempos, elas
expressam a rebeldia contra o trabalho domestico, ou fidelidade conjugal.
E há a figura do soldado que, no “Auto da Índia (1509), parte para o Oriente com
propósito de se enriquecer. Além de voltar pobre foi traído pela mulher.” (B. Abdala Júnior,
in «História da Literatura Portuguesa»).
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Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo Português
“Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo português, foi
fundador do teatro em Portugal. Por isso tem sido cognominado “o Plauto Português”. A
sua carreira literária (teatral) vai de 1502 a 1536. Em 1502, na câmara da Rainha D. Maria
de Castela, no dia seguinte ao nascimento do futuro Rei D. João III, recitou o Monólogo
do Vaqueiro (ou Auto da Visitação). Era sua estreia. Tão brilhante, que se exigiu a
repetição da peça nas festas do Natal. Em 1536 encerrava a carreira com a
representação da Floresta de Enganos, na cidade de Évora. Antes dele, Portugal só
conhecia, em matéria de espetáculos cênicos, certo tipo de representações religiosas,
muito singelas, de inspiração bíblica ou litúrgica, ao lado de peças cômicas, estas mais
frequentes. Tudo isso improvisada, sem pretensões literárias. Assim, é verdadeiramente,
e magnificamente, em G. V. que começa o teatro literário português. Infelizmente a sua
obra não chegou à posteridade com a pureza textual que seria de desejar. Pouco antes
de falecer, iniciou G.V. a tarefa de compilar as peças, espalhadas em folhas volantes.
Apenas teve tempo de reunir algumas (folhas volantes impressas e manuscritas), e de
escrever a dedicatória ao Rei. Coube ao filho do escritor, Luís Vicente, levar a termo a
compilação. Fez-se a impressão em 1561-2. A comparação do texto impresso com a
única folha volante conservada evidencia a grave mutilação sofrida pelo original. O próprio
Luís Vicente confessa ter “ apurado” os textos recolhidos... Para essa atitude há de ter
influído preponderantemente a coação inquisitorial. Além dessa deturpação textual, o filho
de G. V. também omitiu algumas peças, alterou a cronologia e confundiu a classificação;
Assim sendo, não nos é possível por julgar hoje a autêntica e integral obra vicentina.
Apesar disso, na forma em que veio até nós é suficiente para fazer a gloria do maior
poeta teatral em língua portuguesa.” (Celso Pedro Luft, in «Dicionário de Literatura
Portuguesa e Brasileira»).
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O Teatro
O teatro. – Antes do aparecimento de Gil Vicente, não
podemos falar num teatro em Portugal, não obstante podemos
respigar algumas notícias de dramaturgia religiosa durante a
Idade Média e alguns documentos de teatro alegórico de D.
João II, um teatro à base de pura cenografia e em que a
palavra literária esteve quase inteiramente ausente. Henrique
da Mota, conquanto nos ajude a compreender alguma coisa da
dramaturgia vicentina, dissolve-se na vegetação da planície,
obscurecido pela figura
imponente do criador do teatro
português. Sem tradição dramática atrás de si, Gil Vicente
volta-se para a experiência espanhola de Juan del Encina
sobretudo, buscando aí as sugestões iniciais para o seu teatro
pastoril da primeira fase. O gênio criador de Gil Vicente,
apoiado numa extraordinária vocação poética e numa apreciável formação intelectual,
supera imediatamente a enformação estética espanhola e acabar por consolidar o gênero
em Portugal com a sua fecunda produção dramática. Vivendo em pleno Renascimento,
Gil Vicente não se deixa todavia impregnar daquela concepção horizontal da vida – em
que o homem é a medida de todas as coisas; não vibra o menor sopro de paganismo em
toda a sua obra, pelo contrário: nela está evidente uma concepção cristã da vida, e da
mais rigorosa ortodoxia. A sátira e as peças pias estão continuamente a serviço do
missionário, preocupado na edificação do homem e na sua subordinação à Providência.
Suas peças dão-nos a sensação de quem escreve num
inteiro à-vontade, com a mais franca autonomia. Gozando
naturalmente de uma liberdade de espírito na corte em que
vive, explica-se que Gil Vicente fustigue de forma impiedosa
toda a sociedade de seu tempo, desde o papa, o rei e o alto
clero, até à mais baixa classe social: feiticeiros, alcoviteira e
agiotas. A galeria de tipos é riquíssima e variada; os vícios
da época são incontáveis e de toda espécie: ridiculariza a
imperícia dos médicos (físicos) – na Farsa dos Físicos; as
práticas da feitiçaria – no Auto das Fadas; a bazófia
nobiliárquia – na Comédia Sobre a Divisa da Cidade de
Coimbra, na Farsa do Escudeiro e na Farsa dos Almocreves; o relaxamento dos
costumes clericais – no Clérigo da Beira, no Auto da Barca do Inferno, na Inês Pereira; a
simonia – no Auto da Feira e na Barca da Glória; a corrupção no seio da família – no Auto
da Índia; a nobreza a viver na sua fatuidade e à custa do trabalho alheio – na Farsa dos
Almocreves; os adeptos da astrologia – na figura de Mercúrio, logo no início do Auto da
Feira. Esta peça, aliás, é uma condenação total da degradação moral do Renascimento,
da época em que o Céu e Deus perdem o respeito e o temor dos homens, e em que o
dinheiro se torna a mola mestra da vida. Gil Vicente não perdoou também a galantaria
cortesã, e o próprio gosto petrarquista das antíteses foi por ele ridicularizada, na figura de
Colopêndio, que na Romagem de Agravados expressa os seus desencontrados estados
sentimentais ocasionados pelo ardor passional.
O que torna imorredouro o seu teatro é, não só esta visão total de uma época
complexa e grande na história da cultura ocidental, mas o tratamento de temas universais
e a presença dominante de um lirismo carregado dos valores mais legítimos da inspiração
poética. Foi a ausência desse lirismo e a consequente insistência nos aspectos cômicos
e grosseiros da representação, que levaram ao declínio o teatro que procurou seguir as
pegadas de Gil Vicente.
91
A compensar a penúria da montagem cênica, o arbitrário da estrutura interna de
suas peças, a incapacidade de transportar o drama para as suas criações novelescas,
está o alto poder de Gil Vicente na descrição dos tipos, na sucessão de extraordinários
quadros à maneira das novelas de cavalaria, e um sopro de lirismo autentico, num
testemunho eloqüente de senso artístico: um teatro montado segundo um formalismo
estético estaria fadado a não conseguir a colaboração do público, como realmente não
conseguiu o teatro renascentista que Sá de Miranda tentou em 1528.
O desprezo por aquelas categorias que deram a arquitetura e o equilíbrio do teatro
clássico, a sucessão das cenas como num teatro de revista, fazendo o público desfilar
com todos os seus vícios perante si mesmo, constituem todo o encanto da arte vicentina e
as condições necessárias para a perenidade.
O seu teatro não é apenas uma visão da sociedade de seu tempo em todos os
pormenores: é a visão da vida do homem na sua totalidade, desde os mais prosaicos
problemas da vida doméstica às mais dramáticas situações morais. Nesta peça é Gil
Vicente a focalizar a corrupção da família, o desprezo do trabalho e o abandono do
campo - ocasionados pelo espírito de aventura do homem de seu tempo: Gil Vicente
inclui-se no símbolo camoniano do Velho de Restelo, que encarna no Poema o
sentimento de oposição contra a febre obsessiva da aventura marítima; nesta outra
encontramo-lo a dar o devido corretivo para as alcoviteiras – figura que dá uma nota
pinturesca à baixa sociedade peninsular e adquire foros no temário da literatura
espanhola e portuguesa; mais além é o quadro realíssimo da corja de mulatos, mouros e
escravos negros, que, à custa de expedientes e rapina, estão a recolher os resíduos das
naus que aportam abarrotadas das especiarias do Oriente; agora a figura quixotesca do
nobre decadente, a viver de fantasia, inteiramente divorciado da realidade social; logo
mais é o clérigo pretensioso, que tudo faz para galgar melhor posição na hierarquia
religiosa; depois, o medico charlatão, a ostentar uma falsa erudição para impressionar a
sua clientela. E, para esse desenrolar contínuo, variado, flagrante, de quadros e de tipos,
a Renascença ofereceu a Gil Vicente a substância necessária com que animar o seu
teatro durante 34 anos. Mas não foram apenas caracteres e aspectos extraídos da
realidade que o rodeava: Gil Vicente intuiu situações, motivos e temas de interesse
universal, que vieram a ser explorados mais tarde pela literatura dos séculos XVII, XVIII e
XIX; o tema caracteristicamente barroco do homem na sua vida dilemática entre as forças
do Bem e as solicitações sedutoras do Mal; a própria consciência cristã do homem
ocidental, torturado pela ideia de que possui uma alma para salvar. O tema romântico da
“mésalliance” que ingressa um pouco tarde na novela passional camiliana, já tem seu
esboço no teatro vicentino, quando o dramaturgo censura os pais que destinam seus
filhos para o casamento, à revelia dos próprios interesses; em Camilo também proliferam
as freiras sem vocação, impostas à vida religiosa pela vontade paterna. Os pais que
surram os filhos, o desleixo da donzela que traz constantemente os cabelos em desalinho,
a costura de um travesseiro, a lavagem da louça e o trabalho com o fuso e a roca, estas
bagatelas da vida caseira que a literatura clássica desconheceu completamente e só os
escritores do século XIX conseguiram incluir no temário da literatura, são outras notas que
o realismo descritivo de Gil Vicente não se esqueceu de registrar.
É neste sentido que Gil Vicente é muito mais realista do que Camões. O poeta
épico, na glorificação da ufania heróica e da grandeza do homem do século VI, deixou-se
levar pela embriaguez géstica de seu tempo, de que foram vitima sobretudo os homens
do reinado manuelino, embriaguez essa que sublimava o poder dos homens e deformava
um pouco a realidade histórica, crescida e mitificada na imaginação coletiva. Gil Vicente,
ao contrário, preferiu o retrato vivo da sociedade de seu tempo, através das suas
misérias, mas em todos os seus recantos. Se Camões expressa a grandeza do homem
de Quinhentos, a aventura do espaço e a superação das forças adversas da Natureza, Gil
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Vicente procura exprimir as misérias da vida, o homem na sua pequenez, o homem preso
às realidades terrenas, o homem que precisa purificar-se para a salvação de sua alma. O
que os aproxima é o sentimento cristão no Épico, expresso pela consciência de cruzada a
que se destina seu povo na dilatação da fé; no dramaturgo, subentendido no efeito
purificador de sua arte,a ensinar a renúncia e propor o caminho que leva à salvação.
Se Gil Vicente procura, pois retratar ao vivo a sociedade de seu tempo, as misérias
morais e políticas de então, é perfeitamente explicável que, dentro deste programa
previamente traçado para o seu teatro, não se ajustava muito bem o elogio do homem
renascentista, a exaltação dos valores épicos, do heroísmo embriagador dos homens de
Quinhentos. Matéria dessa ordem brigava com a índole de seu teatro, pois Gil Vicente
trazia presente no espírito a função purgadora da dramaturgia. Isto não impediu,
entretanto, que chegasse a escrever o Auto da Fama, onde exalta os efeitos portugueses;
todavia, no prólogo mesmo está bem manifestado o espírito vicentino na exaltação da
fama lusitana: “principalmente pólo infinito dano que os mouros, imigos da nossa fé,
recebem dos portugueses na índica navegação”. (S. Spina, in «Presença da Literatura
Portuguesa Era Medieval» p. 84-88).
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NOTAS:
enformação – ato ou efeito de enformar.
enformar – dar forma a; tomar forma, corpo; encorpar; desenvolver-se. Meter na fôrma ou no molde.
Renascença (ou renascimento) – período de renovação científica, literária e artística, vulgarmente
considerado como iniciado no século XIV e prolongado através dos séculos XV e Xvi, e que se realizou, no
plano estético, com base na imitação dos modelos da Antiguidade clássica greco-romana.
paganismo - conjunto das ideias, costumes e cultos dos pagãos.
pagão – que não foi batizado. Que não pertence a nenhuma das religiões monoteístas (cristã, judia e
mulçumana).
ortodoxia [ks] – qualidade e condição do que é ortodoxo. Doutrina religiosa considerada legitima.
pio – que tem piedade; piedoso, devoto.
fustigar – bater repetidamente; açoitar. Castigar por qualquer modo, físico ou moral; maltratar.
bazófia - vaidade, ostentação, presunção. [«Cheio de bazófia, discordava de tudo e de todos»].
simonia – comércio ilícito de objetos sagrados, indulgências ou benefícios eclesiásticos.
fatuidade – qualidade de quem é fátuo; presunção; vaidade.
Galantaria ou galanteria – arte de galantear; galanteio. Fineza, graça, gracejo, delicadeza. [Do fr. galanterie
(galantəri) ]
imorredouro - que não é morredouro; que não acaba; imperecível; imortal; eterno.
Velho de Restelo - personagem criada por Luís de Camões no canto IV da sua obra Os Lusíadas. O Velho
de Restelo simboliza os pessimistas, os conservadores e os reacionários que não acreditavam no sucesso
da epopeia dos descobrimentos portugueses.
foro [ô] – uso ou privílegio garantido pelo tempo ou pela lei. Tribunal [Sin. , neta acepç.: fórum.]
prosaico – relativo ou pertencente à prosa. Trivial, comum; banal.
quixotesco [é] - relativo a Dom Quixote, personagem de Cervantes.
intuir – perceber ou apreender (algo) por intuição, sem intervenção do raciocínio; deduzi, concluir.
mésalliance [mêzalianç] – casamento desigual.
camiliano - relativo ao escritor português Camilo Castelo Branco, 1825-1890, ou à sua obra. («Amor de
Perdição», «Amor de Salvação» entre outras).
fuso – utensílio para fiar a roca. Peça onde se enrola a corda do relógio.
roca [ó] – instrumento que serve par afiar.
ufania - vaidade desmedida.
gesta
[є] – façanha; história; acontecimento histórico. [Do lat. gesta, «façanhas»]
mitificar - transforma em mito. Exaltar exageradamente qualidade ou atributos de (algo ou alguém).
purgação - ato ou efeito de purgar, limpar ou purificar.
mouro – indivíduo do povo árabe que ocupou a Península Ibérica durante o século sete séculos.
manuelino - relativo ao Rei D. Manuel I de Portugal (1469-1521) e à sua época.
Índico - da Índia; indiano. Relativo ao oceano Índico.
polo – antiga contr. da prep. por+o art. def. o.
imigo – forma arcaica de inimigo. [ Do lat. inimĩcu, «inimigo»]
94
Atividades
01)Estudo do texto
Oh! Deus te salve, Maria,
cheia de graça graciosa,
dos pecadores abrigo!
Goza-te com alegria,
humana e divina rosa,
porque o Senhor é contigo.
Ó Virgem, se ouvir me queres,
mais te quero inda dizer:
benta és tu em mereceres
mais que todas as mulheres,
nascidas e por nascer.
O fragmento acima pertence à peça:
[a] Farsa de Inês Pereira
[c] Auto da Alma
[b] O Velho da Horta
[d] Auto da Mofina Mendes
[e] Auto da Índia
02)A obra tem como tema o ditado popular "Mais quero asno que me carregue do que
cavalo que me derrube" e trata da questão do casamento por interesse, além de fornecer
um retrato fiel dos costumes da época, criticando seus valores superficiais e vazios.
O fragmento acima pertence à peça:
[a] Farsa de Inês Pereira
b] O Velho da Horta
[c] Auto da Alma
[d] Auto da Mofina Mendes
03) Caracteriza o teatro de Gil Vicente:
A)A revolta contra o Cristianismo.
B)A obra escrita em prosa.
C)A elaboração requintada.
D)A preocupação com o homem e com a religião.
E)A busca de conceitos universais.
04)Aponte a alternativa correta em relação a Gil Vicente:
A) Compôs peças de caráter sacro e satírico.
B) Introduziu a lírica trovadoresca em Portugal.
C)Escreveu a novela Amadis de Gaula.
D)Só escreveu peças e português.
E)Representa o melhor do teatro clássico português.
95
[e] Auto da Índia
05)Assinale a alternativa incorreta a respeito da obra de Gil Vicente;
[A]Embora servisse para o entretenimento da Corte, seu teatro caracterizava-se por ser
primitivo, rudimentar e popular.
[B]Algumas de suas peças têm caráter misto, de oscilante classificação como o Auto dos
quatro tempos.
[C]Apresenta-se como traço de união entre a Idade Média e a Renascença.
[D]Ao lado da sátira, encontra-se elevados valores cristãos.
[E]Aprofunda-se nos valores clássicos, seguindo rigidamente os padrões do teatro grego.
06)Em que circunstâncias Gil Vicente produziu sua obra?
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07)Qual a principal característica da obra de Gil Vicente?
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08)Qual a primeira obra de Gil Vicente?
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09)Estudo do texto
“- Para que é envelhecer
esperando pelo vento?
.......................................
Partiu em Maio daqui
Quando o sangue novo atiça.
Parece-te que é justiça?”
O fragmento acima pertence à peça:
[A] Farsa de Inês Pereira
[B] Quem tem Farelos?
[D] O Velho da Horta
[E] Auto da Mofina Mendes
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[C] Auto da Índia
10)”Nas peças religiosas o autor coloca sempre em relevo a oposição dos dois mundos:
material e sobrenatural, profano e divino, trevas e luzes”.
Assinala alternativa que justifica o enunciado acima:
[A] Auto da Índia
[B] Quem tem Farelos?
[D] O Velho da Horta
[E] Farsa de Inês Pereira.
[C] Auto da Alma
11)A Farsa de Inês Pereira é glosada a partir do provérbio «Antes burro que me leve que
cavalo que me derrube». Comente metaforicamente acerca desse provérbio.
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12)O texto denuncia a revolta da jovem confinada aos serviços domésticos, o que confere
atualidade à obra.Essa afirmação se refere à peça?
[A] Farsa de Inês Pereira
[B] o Velho da Horta
[D] O Velho da Horta
[E] Auto da Índia
[C] Quem tem Farelos ?
13)Qual a peça de Gil Vicente que tem por tema uma das conseqüências das viagens dos
descobrimentos: o adultério?
[A] O Velho da Horta
[B] Auto da Alma
[D] Auto da Feira
[E] Auto da Índia
[C] Farsa de Inês Pereira
14) Qual a peça que Gil Vicente termina a sua carreira dramática?
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15)A sátira de Gil Vicente abrange as três classes sociais. Quais são essas?
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16)Assinales alternativas corretas e some os valores:
01)Uma das características das obras de Gil Vicente é o recurso a personagens-tipo. As
suas personagens não são individuais, isto é, representam sempre um grupo, uma classe
social, uma profissão. Desta forma, são uma síntese dos defeitos e virtudes desses
grupos. Assim, Gil Vicente satirizava a sociedade, sem atacar diretamente alguma pessoa
em particular.
02)Vicente é considerado um poeta-dramaturgo . Dramaturgo por ser criador de teatro e
poeta, porque toda a sua obra é escrita em verso. Nas suas obras critica a sociedade do
seu tempo, pondo a descoberto muitos dos vícios e hábitos das várias classes sociais.
Por isso, se considera a sua obra como um espelho, porque reflete fielmente a sociedade
do séc. XV.
04)O teatro de Gil Vicente foi considerado, já na época do autor, um teatro rico e original.
Foi o primeiro a fazer valer o texto literário sobre a cenografia e o espetáculo.
08)Os vivos aparecem frequentemente nos seus autos. Às vezes é irônico e sarcástico,
como sucede, por exemplo, no Velho da Horta, onde verbera a fraqueza amorosa de um
velho, que se enamorou de moça de bom parecer.
16)Suas peças dão-se a sensação de quem escreve num inteiro à-vontade, com a mais
franca autonomia. Gozando naturalmente duma liberdade de espírito na corte em que
vive, explica-se que Gil Vicente fustigue de forma impiedosa toda sociedade de seu
tempo, desde o papa, o rei e o alto clero, até à mais baixa classe social.
32)O teatro medieval, entre nós, revestiu sempre uma forma frustre e rudimentar. Os
jograis e jogralesas, com seus cânticos, recitativos e danças, foram os primeiros atores.
64)A análise das personagens vicentinas e da sua importância relativa mostra-nos, em
resumo, que Gil Vicente desconheceu os problemas da burguesia urbana assim como os
do trabalho artesanal e do assalariados citadinos.
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17)Sintetize com suas palavras o teatro pré-vicentino.
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18)Comente acerca da Farsa dos Físicos.
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19)Assinales alternativas corretas e some os valores:
01)O seu teatro é apenas um visão da sociedade de seu tem pó em todos os pormenores.
02)Gil Vicente intuiu situações, motivos e temas de interesse universal a ser explorados
mais tarde pela literatura dos séculos XIII, XVIII e XIX.
04)Gil Vicente preferiu o retrato vivo da sociedade de seu tempo, através das suas
misérias, mas em todos os seus recantos.
08)Gil Vicente realiza com certa mestria a arte de ridicularizar baixas crendices.
16)A sátira tem uma intenção moralizadora. Mete a ridículo pessoas, instituições,
ideologias ou a própria sociedade, censurando vícios e defeitos, apontando erros e
incoerências
32) Gil, autor e também actor, elequente e muito hábil em dizer verdades entre gracejos;
Gil Vicente, não era habituado a censurar maus costumes entre leves gracejos.
64)Gil Vicente não poupou, igualmente, as profissões liberais: o juiz, o corregedor, o
procurador, o meirinho e o oficial de justiça.
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20)Caracterize as três fases do teatro vicentino.
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____________ . Os Autos das Barcas. Lisboa: Publicações Europa-América, 1991.
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NOTAS IMPORTANTES:
1)Leia todas as peças na integra.
2)Além dos textos complementares, pesquise outros textos que estão citados na
fonte de consulta.
3)Os textos complementares não foram fotocopiados, foram digitados. Entretanto,
poderá haver alguns deslizes ortográficos.
4)Espero que esse resumo sucinto do teatro vincetino, traga-lhe conhecimento do
teatro português da Idade Média.
«Dentro de você existe um Gênio, descubra-o!»
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