A recepção da ética epicurista na Utopia de Thomas Morus

Transcrição

A recepção da ética epicurista na Utopia de Thomas Morus
Os utopianos são epicuristas?
A recepção da ética epicurista na Utopia de Thomas Morus1
Sandra Schwartz
Universidade de Bonn
Traduzido por Julia Ciasca Brandão
Tradução dos trechos latinos da Utopia e revisão geral por Ana Cláudia Romano Ribeiro, com
colaboração de Isabella Tardin Cardoso
Revisão da tradução do alemão por Matheus Clemente De Pietro e Bruno Mendes dos Santos
Resumo
Este artigo analisa a recepção do epicurismo na Utopia, de Thomas Morus. Em uma primeira parte,
discute a ética dos utopianos, sua ideia de sumo bem (summum bonum), seus critérios para discernir
os prazeres verdadeiros dos falsos, bem como a especificidade de cada um deles. Em seguida,
investiga as possíveis relações entre a ilha de Utopia e o jardim de Epicuro. Por fim, identifica
alguns elementos antiepicuristas e conclui o trabalho com um balanço a respeito da transmissão do
epicurismo e sua reelaboração por Morus.
Palavras-chave
Thomas Morus, Utopia, epicurismo
1
Neste artigo, apresento uma versão sintetizada e revisada de minha monografia, escrita para o exame estatal
(Staatsexamen). Agradeço especialmente o professor Dr. R. F. Glei pela assistência profissional, como também pelo
acolhimento e publicação de meu texto neste volume.
[Observação dos editores da revista Morus e da tradutora: o artigo, traduzido com a gentil autorização da autora, a quem
agradecemos, foi publicado pela primeira vez em 2003 no quinto volume da revista Neulateinisches Jahrbuch. Journal
of Neo-Latin Language and Literature, v. 5. Hildensheim/ Zürich/ New York: Georg Olms Verlag, 2003. p. 245-295].
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Are the Utopians Epicureans?
The reception of Utopian ethics in Morus’ Utopia*
Sandra Schwartz
University of Bonn
Translated by Julia Ciasca Brandão
Translation of Utopia’s Latin excepts and general revision by Ana Cláudia Romano Ribeiro, with
the collaboration of Isabella Tardin Cardoso
Revision of German translation by Matheus Clemente De Pietro and Bruno Mendes dos Santos
Abstract
This article analyses the reception of epicureanism in Thomas Morus’ Utopia. Firstly, it discusses
the Utopian ethics, its idea of the highest good (summum bonum), its parameters for discerning the
true from the false pleasures as well as the specificity of each one of them. Next, it investigates the
possible relations between the Utopian island and the gardens of Epicure. Finally, it identifies some
antiepicurean elements and concludes with an account about the transmission of epicureanism and
its reelaboration by Morus.
Key words
Thomas More, Utopia, epicureanism
* In this article, I present an abridged version of my monography, written for the State exam (Staatsexamen). I am
especially grateful to professor Dr. R. F. Glei for his professional assistance, as well as by the reception and publication
of my text in this volume.
[Observation of Morus’ editors and the translator: the article, translated after the kind permission of the author, to whom
we thank, was firstly published in 2003, in the fifth volume of Neulateinisches Jahrbuch. Journal of Neo-Latin
Language and Literature, v. 5. Hildensheim/ Zürich/ New York: Georg Olms Verlag, 2003. p. 245-295].
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
1. Introdução
Desde a sua publicação em 1516, a Utopia de Thomas Morus é texto que ocupa
pesquisadores dos mais diversos ramos do conhecimento. Nos últimos tempos, a
observação de pontos de vista políticos deste projeto de Estado2 deram espaço à questão
do significado do texto para a literatura moderna3, bem como para o homem moderno4.
Não há consenso no entendimento do projeto da ilha de Utopia ou acerca dos propósitos
do autor. Morus poderia ter desejado criar um Estado “bom” ou “ruim” para os
utopianos, e a concepção de seu aparato utópico é avaliada em uma escala que varia do
ideal ao totalitário5, em relação ao significado do projeto. Também são divergentes as
opiniões a respeito do grau de seriedade com que Morus teria tratado seu projeto de
Estado6.
O fato é que Morus, com a obra Utopia, não apenas inventou uma palavra7,
como fundou um novo gênero literário8. Também é certo que o autor, para apresentar a
sociedade da ilha de Utopia, fez uso massivo de fontes da Antiguidade Clássica,
representando o espírito renascentista de sua época. Contudo, faltam análises filológicas
que observem detalhadamente as passagens da obra e analisem sua correspondência
com as fontes antigas.
2
Célebre é a afirmação de Kautsky - do ano de 1887! - que atribui a Thomas Morus o título de pai do
socialismo utópico (Kautsky, 1922, p. 320). No dia 18 de outubro de 1961 (XXII Parteitag do KPdSU),
Nikita Chratsschow afirmou em seu discurso que Thomas Morus era um grande socialista utópico
(Petermann, 1986, p. 14).
3
A respeito da definição do termo “utopia” e das características deste gênero literário, ver Schulte, 1960,
p. 3-15; Erzgräber, 1980, p. 13-18; Morson, 1981, p. 69-106; Glaser, 1996, p. 9-15; Gnüg, 1999, p.7-19; e
também a antologia de Claeys / Sargent, 1999.
4
A análise histórico-social tem conjuntura. Ver Schaer, 2000. Até mesmo a medicina acolhe temas da
Utopia. A respeito disso, ver Timmermann, 1993.
5
Hexter descreve a ilha de Utopia como um estado ideal: “(...) the Utopian commonwealth as he had
formed it was the Best Society” (Hexter, 1952, p. 57). Para Bejezy (p. 25), ao contrário, “o mal” estaria
sempre presente: “Evil lies in wait everywhere in Utopia and can reveal itself in all persons alike”
(Bejezy, 1995, p.17-30).
6
Vale a pena conferir um elenco de pesquisas mais detalhado, como as súmulas de pesquisa de Kreyssig,
1988, p. 8-62 e Glei, 2000, p. 39-55. Recomendo também os comentários ordenados alfabeticamente a
respeito das pesquisas sobre Utopia. In: Thomas More. An Annotated Bibliography of Citicien1935-1997,
1998, p. 215-309.
7
A respeito do termo “utopia” - ού-τόπος - ver Mölk, 1964, p. 309-320; em versão mais recente, p. 313315; Morisch, 2001, p. 119-130. Recomendo também Herbrüggen, 1960, p. 3-6.
8
Conhecida como “utopia” ou “romance utópico”, podemos apenas nos referir livremente a um novo
território, em que são observados os signos de um mundo estranho e fantástico. Podemos pensar na
Cidade do Sol, em Jâmbulo e nos seus diversos paralelos traçados com a Utopia (ver Süssmut, 1967, p.
61-67).
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Quando a sociedade ideal é assinalada na Utopia, como já sugere o título DE
OPTIMO REIPVBLICAE STATV DEQVE NOVA INSVLA VTOPIA (...)9, podemos
esperar que os habitantes deste Estado sejam felizes e plenos. Portanto, não é espantoso
que a ética dos utopianos, tratada no segundo livro em considerável extensão (160/13178/9)10, mesmo que contemplada superficialmente, evoque forte lembrança da ética de
Epicuro11. As escolas filosóficas do Helenismo, sendo a escolade Epicuro uma das mais
significativas, buscavam indicar o caminho do beate vivere [“viver de modo feliz”] e da
felicidade individual. A mesma função é atribuída a Epicuro na descrição de Torquato,
seu defensor, no diálogo de Cícero De finibus bonorum et malorum como sendo um
inventore veritatis et architetus beatae vitae [“descobridor da verdade e como que
arquiteto da vida feliz”]12 (Cíc., De fin. 1, 32). Budaeus, amigo de Morus, escreve uma
carta endereçada a Lupsetus, na qual declara que Thomas Morus concebeu o Estado
utopiano como um beatae uitae exemplar [“modelo de vida feliz”]13, um beatae uitae
argumentum [“demonstração de uma vida feliz”]14. Como para Epicuro a eudaimonia
consistia na voluptas [“prazer”], o mais elevado bem da vida, e os epicuristas
representavam a única escola que negava o exercício de um poder divino nas relações
humanas, a doutrina do prazer (Lustlehre) foi desaprovada no período da cristianizaçãoe
na Idade Média15. No entanto, com o uso das fontes da Antiguidade Clássica no
Humanismo, também Epicuro experimentou um “Renascimento”16 e, por esta razão,
9
Sylvester foi o primeiro a observar a ambiguidade do título: o primeiro livro trata do estado ideal e o
segundo livro da ilha de Utopia, ou o título deve ser entendido de modo exegético e a ilha de Utopia
representando o Estado ideal? Ver Sylvester, 1977, p. 290-302; ver também Glei, 2000, p. 54.
10
Todas as citações e referências remetem ao texto de E. Surtz e J. H. Hexter em edição latino-inglesa
comentada: Surtz/Hexter, 1965. Ao longo do texto, serão fornecidas as respectivas páginas e linhas.
11
Ver H. Oncken e sua introdução à tradução de G. Ritter (In. Morus. Utopia, 1922, p. 28): “(...) ein
Leben, das von einer eudäimonistischen, von Plato weit abweichend, wohl aber an Epikur erinnernden
Philosophie getragen wird (...)” [“(...) uma vida carregada de eudaimonia, distanciada de Platão, e
também carregada de uma filosofia que lembra Epicuro (...)”].
12
Todas as traduções do De finibus são de autoria de Sidney C. Lima e foram extraídas de sua tese de
doutorado, Aspectos do gênero dialógico no De finibus, de Cícero (Campinas: IEL/UNICAMP, 2009),
traduzidas do texto estabelecido por L. D. Reynolds (Oxford: Oxford University Press, 1998). [Nota da
Revisora]
13
As traduções dos trechos da Utopia, de Thomas Morus e de outros textos latinos – salvo quando
informado o uso de traduções já existentes – foram realizadas por Ana Cláudia Romano Ribeiro e
revisadas por Isabella Tardin Cardoso, a quem as tradutoras vivamente agradecem. [N. da R.]
14
Eius igitur insulae cognitionem THOMAE MORO debemus, qui beatae uitae exemplar, ac uiuendi
praescriptum aetate nostra promulgauit, (...) id est beatae uitae argumentum (...) (12/12-16) [“Portanto,
devemos a Thomas Morus o conhecimento dessa ilha, que em nosso tempo deu a conhecer um modelo de
vida feliz e uma prescrição para se viver, (...) isto é, a demonstração de uma vida feliz (...)”]. A carta
completa consta em Surtz/Hexter, 1965, p. 4-14.
15
Ver, por exemplo, Forschner, 1993, p. 41.
16
Ver Surtz, 1957, p. 12-26; Zinsen, 2000, p. 252-272. Para uma análise básica da relação entre o
Ocidente cristão e o Ocidente pagão e suas fontes antigas, ver Buck, 1998, p. 18-22.
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
não é surpreendente que Morus, cuja Utopia foi alimentada com diversas fontes da
Antiguidade, tenha acolhido também Epicuro.
Além disso, Morus foi possivelmente influenciado pelos relatos de viagem de
Américo Vespúcio, que descreve os primeiros povos indígenas descobertos no “Novo
Mundo”como epicuristas17.
Como a última análise minuciosa a respeito da ética dos utopianos data de
quase cinquenta anos18, este artigo pretende apresentar um estudo detalhado sobre a
recepção da ética de Epicuro na Utopia, baseando-se nas fontes da Antiguidade Clássica
disponíveis para Thomas Morus. Ao final, também serão observados outros aspectos da
sociedade utópica, que tratam da recepção da ética de Epicuro, e também de sua recusa.
Neste contexto, associado aos importantes resultados das pesquisas sobre a
Utopia, deverá ser desenvolvida, baseada nos estudos literários, uma abordagem
fundamental que poderá fornecer um modelo básico para esta interpretação da Utopia.
2. A Ética dos Utopianos
Antes de descrever as instituições, a moral e a ética utopiana, Hitlodeu assinala
a inclinação dos utopianos para os conhecimentos da Antiguidade no que concerne à
filosofia da natureza (partim eadem quae ueteres philosophi nostri disserunt; 160/10
[“em parte o mesmo que os nossos filósofos antigos discutiram”]). Em seguida, o
viajante trata da ética: ea philosophiae parte qua de moribus agitur (160/13-14)
[“aquela parte da filosofia que trata da moral”]. É inevitável que o leitor instruído e
familiarizado com o Humanismo considere os campos estabelecidos pela filosofia da
Anguidade Clássica: a ética, a física e a lógica.
2.1. O summum bonum [“sumo bem”] dos Utopianos
Em um primeiro momento, Hitlodeu informa os elementos principais da
discussão ética dos utopianos. Existem três tipos de bens: corporais, espirituais e bens
exteriores (de bonis animi quaerunt & corporis, & externis; 160/16 [“investigam os
bens da alma, do corpo e os externos”]19, além da virtus e da voluptas (160/17-18), já
17
horum vitam (quae omnino voluptuosa est) Epycuream existimo [“Considero a vida deles (que em tudo
é prazeirosa) epicurista”] (Vespucci, 1907, liii; citado por Surtz, 1957, p. 23 e p. 205).
18
É necessário pensar no trabalho de Surtz, 1957 (rever nota 16) e Logan, 1983, p. 144-218.
19
Este sistema tricategorial é apresentado por Aristóteles (Aristóletes, Ética a Nicômaco, 1098b;
Aristóteles, Política, 1323a; Cícero, De fin. 2, 68.) Hitlodeu destaca que os utopianos discutem as mesmas
questões quae nobis (160/14) [“que nós”], e isto se explica pelo fato de diversos escritos filosóficos
publicados neste período discutirem questões da Antiguidade (ver Surtz/Hexter, 160/14).
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referidas por três das quatro mais importantes escolas filosóficas da Antiguidade, a
Peripatética, Estoica e Epicurista, cuja questão principal (prima est ac princeps
controversia; 160/18-19 [“é a primeira e principal controvérsia”] é a dependência da
felicidade (felicitas) humana de um ou mais destes bens20. Hitlodeu não utiliza o termo
finis ou τέλος. Contudo, o leitor familiarizado com a filosofia antiga identifica de modo
imediato a aqui chamada felicitas com a eudaimonia, objetivo da vida humana21,
consensual entre as escolas filosóficas. Neste ponto todas as escolas estavam de acordo.
Divergente era apenas a resposta em relação à composição do summum bonum [“sumo
bem”]22. Como Morus tinha este conhecimento, sabia que seus leitores poderiam fazer
esta associação, e fez com que Hitlodeu descrevesse suas personagens utópicas
inclinadas para a posição defendida pelos epicuristas: At hac in re propensiores aequo
uidentur in factionem voluptatis assertricem, ut qua uel totam, uel potissimam felicitatis
humanae partem definiant (160/20-23) [“E nisso parecem ser propensos demais à
corrente que defende o prazer, no qual colocam se não toda, a principal parte da
felicidade humana”]. Ao mesmo tempo, esta inclinação é relativizada por duas
limitações (propensiores aequo uidentur [...] uel totam, uel potissimam partem). Deste
modo, os leitores são advertidos a não contemplarem os utopianos como “puros”
epicuristas. Hitlodeu descreve este posicionamento como sententiae tam delicatae
(160/25) [“pontos de vista tão delicados”], pois a ética favorável ao prazer era alvo de
muita desconfiança desde a Antiguidade23. Por esta razão, o viajante considera
surpreendente (et quo magis mireris, 160/23-24) [“e o que pode te surpreender ainda
mais”] que os utopianos justifiquem sua posição hedonista com auxílio da religião (ab
religione [...] petunt [...] patrocinum; 160/24-25) [“na religião [...] buscam [...] apoio”],
uma religião considerada grauis & severa [...] est fereque tristis & rigida (160/24-25)
[“grave e severa [...] e mesmo triste e rígida”] e, portanto, a correspondência entre
voluptas e summum bonum não pareceria correta. Podemos supor que o termo religio
represente perfeitamente uma religião no sentido cristão delimitada pela filosofia, que
lhe fornece reflexões racionais e estabelece o complemento necessário: Neque enim de
felicitate disceptant unquam, quin principia quaedam ex religione deprompta, cum
philosophia quae rationibus utitur coniungant (160/26-29) [“Pois nunca discutem
20
Segundo Aristóteles, a eudaimonia se encontra em todas as três linhas (ver Pol. 1323a).
A falta desta expressão é suprida pelo comentário marginal: fines bonorum (160) [“os fins dos bens”].
22
Hossenfelder, 1995, p. 23-24.
23
Cíc., De fin. 2, 68: multa sunt audienda etiam de obscenis voluptatibus, de quibus ab Epicuro
saepissime dicitur [“há que se ouvir muitas coisas até mesmo sobre prazeres obscenos, sobre os quais
muitíssimo amiúde fala Epicuro”].
21
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acerca da felicidade sem que conjuguem alguns princípios extraídos da religião à
filosofia, de cujos raciocínios se serve ”]24. É surpreendente que os utopianos, povo que
define sua comunidade pela razão, considerem a razão insuficiente para a conquista da
verdadeira felicidade: sine quibus [i.e. principia ex religione deprompta] ad uerae
felicitatis inuestigationem mancam, atque imbecillam per se rationem putant (160/2930) [“sem os quais (i.e. sem os princípios extraídos da religião) pensam que a razão é,
em si, claudicante e fraca para a investigação da verdadeira felicidade”]. Os princípios
desta religião são: 1. A imortalidade da alma (animam esse imortalem; 160/31-32) [“a
alma ser imortal”], 2. A admissão da vontade de Deus na destinação da alma humana à
felicidade (dei beneficentia ad felicitatem natam; 160/32-162/1) [“pela bondade de
Deus, nascida para a felicidade”], 3. A crença na recompensa e na punição dos atos
terrenos após a morte (uirtutibus ac bene factis nostris praemia post hanc uitam,
flagitijs destinata supplicia; 162/1-2) [“depois desta vida, recompensas nos são
destinadas por nossas virtudes e boas ações, e suplícios por nossas más ações”]. Os
princípios 1 e 3 referem-se ao Cristianismo, ainda que Platão já houvesse admitido a
imortalidade da alma25. De qualquer modo, ambos os princípios são certamente
antiepicuristas. Aos fundamentos epicuristas pertence a ideia do fim da sensação
humana após a morte26 e, assim, suspende-se o medo da punição após a morte pelos
deuses que, segundo Epicuro, não se preocupavam com os homens27. Esses princípios
tomados da religião e previamente desligados de modo explícito das bases da filosofia
racional são, então, explicados pela razão: Haec (i.e. principia) tametsi religionis sint,
ratione tamen censent ad ea credenda, & concedenda perduci, (...) (162/3-5) [“Embora
estes (i.e. princípios) sejam religiosos, eles (i.e. os utopianos) supõem que a razão os
leve a acreditar neles e a admiti-los”]. Surtz/Hexter explicam esta ligação entre razão e
fé, questão que parece ter muita importância para Morus28.
Esses três princípios são considerados pelos utopianos os mais importantes e
corretos fundamentos que assistem o homem no caminho da uoluptas. Sem eles, o
homem desejaria buscar a uoluptas “a qualquer custo” (quibus e medio sublatis, sine
24
Entendo cum philosophia no lugar de tum philosophia. A respeito de 160/28, ver Surtz/Hexter, 1965.
Ver também o comentário marginal: Animorum immortalitas de qua hodie non pauci etiam Christiani
dubitant (162) [“Imortalidade da alma, da qual não poucos cristãos chegam a duvidar nos dias de hoje”].
A questão da imortalidade da alma era, de fato, problema importante do século XVI. Por esta razão,
Pietro Pomponazzi publicou no ano de 1516 o livro sob o título Tractatus de immortalitate animae
(Pomponazzi, 1990). Ver Burke, 1968, p. 126.
26
Ver KD 2; ver também Diog. Laert. 10, 124.
27
Ver KD 1; vertambém Cíc. De nat. deor. 1, 45.
28
Ver Surtz/Hexter, 1965, 162/1-2 e 162/3.
25
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ulla cunctatione pronunciant neminem esse tam stupidum, qui non sentiat petendam sibi
per fas ac nefas voluptatem; 162/5-7) [“uma vez (tais princípios) retirados da vida
comum, declaram (os utopianos) sem nenhuma hesitação que ninguém seria tão
estúpido para não buscar, por fastos ou nefastos meios, o prazer desejado”]. A
consideração de uma prestação de contas póstuma e o peso das consequências das ações
humanas promovem, ao final, a conquista do prazer maior: hoc tantum caueret ne
minor uoluptas obstet maiori, aut eam persequatur quam inuicem retaliet dolor,
(162/7-10) [“por isso, ele deve cuidar para que um prazer menor não obste um maior,
nem persiga um que, por sua vez, retalie com dor”]. Esta acareação e esta prestação de
contas correspondem justamente ao cálculo epicurista do prazer, que inclui a cuidadosa
escolha do que, ao final, promete prazer, mesmo que haja antes a aceitação da dor29. No
epicurismo, o imediato contraste entre uoluptas e dolor é par antitético decisivo30. O
caminho estóico opõe-se ao epicurismo no que concerne à conquista da eudaimonia, ou
seja, uirtutem asperam, ac difficilem sequi (162/10-11) [“seguir a áspera e difícil
virtude”], e em sua rejeição ao prazer (abigere suavitatem vitae; 162/11-12) [“repudiar
a suavidade da vida”], considerado absurdo (id vero dementissimum ferunt; 162/15)
[“isso de fato consideram extremamente insensato”] se não houver crença na (futura)
recompensa dos atos terrenos (cuius nullum expectes frutum;162/12-13) [“de onde não
se deve esperar nenhum fruto”]. Contudo, os utopianos consideram que nem todo prazer
da eudaimonia seja proveitoso, e valorizam apenas as uoluptates que são bona atque
honesta (ver 162/15-16) [“boas e honestas”]. Também Epicuro nunca defendeu a prática
de hedonismos egoístas e radicais, apenas as práticas de qualidades morais, como
virtude e justiça, referidas em KD 5: “Uma vida de prazeres não é possível, se não for
uma vida de juízo, moral e justiça; e uma vida de juízo, moral e justiça não é possível
sem prazeres (...)”31. Também para os utopianos, a uoluptas não se separa em nenhum
momento da uirtus, (vislumbrada sozinha pelo “partido oposto” como o summum
bonum – oposição que existe na concepção estoica), pelo contrário, está ligada a ela: ad
29
Ver Cíc., De fin. 1, 32-36; Diog. Laert. 10, 129; Hossenfelder, 1965, p. 116; Müller, 1991, p. 46-47. Em
Cícero, as “sabedorias” epicuristas são resumidas, e ele as trata como ut aut reiciendis voluptatibus
maiores alias consequatur aut perferendis doloribus asperiores repellat (Cíc., De fin. 1, 33) [“que,
rejeitando os prazeres, outros maiores ele alcance ou, suportando até o fim as dores, repila as mais
ásperas”].
30
Ver Cíc., De fin. 1, 29: hoc Epicurus in voluptae ponit, quod summum bonum esse vult, summumque
malum dolorem (...) [“Esse, Epicuro o faz consistir no prazer, o que ele pretende que seja o sumo bem, e
o sumo mal, a dor”].
31
“Ein lustvolles Leben ist nicht möglich ohne ein einsichtvoles und sittliches und gerechtes Leben, und
ein einsichtvolles, sittliches und gerechtiges Leben nicht ohne ein lustvolles (...)”. Tradução para o
alemão de O. Apelt, 1990.
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eam (i.e. uoluptatem) enim uelut ad summum bonum, naturam nostram ab ipsa uirtute
pertrahi, cui sola aduersa factio felicitatem tribuit. (162/16-18) [“em direção a ele (i.e.
ao prazer), como sendo o sumo bem, a nossa natureza é puxada por essa mesma virtude,
a única à quala corrente oposta atribui a felicidade”]. Portanto, para os utopianos existe
uma união entre os dois caminhos de ambas as escolas concorrentes da Antiguidade:
enquanto para os epicuristas é a virtude que fornece a conquista da uoluptas32, e apenas
as uirtutes são os meios pelos quais se alcança a uoluptas33, para os estoicos, a virtude é
a própria eudaimonia34. Para os utopianos, o bem maior parece ser a correspondência
entre uoluptas e uirtus, mesmo que a união direta entre ambas as categorias seja
obscurecida pelo argumento circular35. Também a definição de virtude como secundum
naturam vivere (162/19-20.) [“viver segundo a natureza”] é estoica36, e um poder divino
destina o homem à virtude: ad id siquidem a deo institutos esse nos (162/20-21) [“visto
que para isso fomos criados por Deus”]. Comparar com o segundo princípio dos
principia ex religione deprompta [já referido, “princípios extraídos da religião”]). Viver
de acordo com a natureza significa saber o que se deve fazer e o que se deve deixar de
fazer (in appentendis fugiendisque rebus;162/21-22) [“quanto às coisas a serem
desejadas e àquelas de que se deve fugir”]37, e esta diferenciação apenas pode ser
32
Em Cíc., De fin 1, 42-b-53, Torquato tenta provar, baseando-se em diferentes exemplos, que cada uma
das virtudes, como sapientia, temperantia, fortitudo e iustitia, culmina em uoluptas. (Ver Müller, 1991, p.
78-80, cap. “Der instrumentale Charakter der Tugenden”). A discussão e a relação de dependência entre
uirtus e uoluptas são frequentes e paradoxais. (Ver Gigon/Staume-Zimmermann, 1988, p. 421; e Cíc., De
fin. 1, 25. A quinta carta de Kyriai Doxai (op. cit.), referida na carta a Meneceu (Diog. Laert. 10, 132b),
também trata do tema. O caráter instrumental da virtude é claro: “Um der Lust willen befreunde man sich
auch mit der Tugend, nicht um ihr selbst willen (...).”[“Devido à força do prazer, filiamo-nos à virtude, e
não devido à própria vontade”], Dio. Laert. 10, 138.
33
Ver Cíc., De fin. 1, 54: Quodsi ne ipsarum quidem virtutum laus, in qua maxime ceterorum
philosophorum exultat oratio, reperire exitum potest, nisi derigatur ad voluptatem (...). [“E se nem
mesmo o louvor às próprias virtudes, em que o discurso dos filósofos corre a rédeas soltas (especialmente
o dos demais filósofos), pode encontrar êxito, caso não seja dirigido ao prazer (...)”]
34
Para os estoicos, há a “identidade objetiva entre felicidade e virtude” [“sachlichen Identität von Glück
und Tugend”] (Hossenfelder, 1995, p. 56) e, ao mesmo tempo, “apenas a felicidade é o maior objetivo e
objetivo em si” [“höchster Zweck und damit Selbszweck (...) nur die Glückseligkeit”] (Hossenfelder,
1995, p. 54). Embora os estoicos e os epicuristas busquem a ataraxia, a virtude é, para os primeiros, o
único e verdadeiro bem. (“For the Stoics also, tranquillity is based on the knowledge that one has all the
goods one could desire, or rather, the only real good, namely virtue; (…)”, Striker, 1990, p. 100).
35
Ver Surtz, 1957, p. 20.
36
A respeito da definição estoica: Cíc., De fin. 3, 31: relinquitur ut summum bonum sit vivere scientiam
adhibentem earum rerum, quae natura eveniant, seligentem quae secundum naturam et quae contra
naturam sint reicientem, id est convenienter congruerque naturae vivere. [“resta que o sumo bem seja
aplicar à vida um conhecimento das coisas que ocorrem por natureza, escolhendo as que são segundo a
natureza e, as contrárias à natureza, rejeitando, isto é, viver em concordância e em conformidade com a
natureza.”]
37
Conferir a síntese do cálculo de prazer segundo Cíc., De fin. 1, 36 (constituto, ut aut voluptates
omittantur maiorum voluptatum adipiscendarum causa aut dolores suscipiantur maiorum dolorum
effugiendorum gratia) [“que se deixem prazeres de lado com vistas a adquirir prazeres maiores, ou que se
263
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
estabelecida pela razão: Eum uero naturae ductum sequi quisquis... obtemperat rationi
(162/21-22) [“De certo seguir o comando da natureza (...) quem quer que obedece à
razão”]. Também este aspecto é consensual entre as escolas filosóficas da
Antiguidade38. Logo em seguida, os principais pontos da ética utópica são sintetizados:
Vitam ergo incundam inquiunt, id est uoluptatem tanquam operationum omnium finem,
ipsa nobis natura praescribit, ex cuius praescripto uiuere, uirtutem definiunt (164/1013) [“Dizem, portanto, que a própria natureza nos prescreve uma vida feliz, ou seja, o
prazer como fim de toda atividade, e viver conforme o preceito da natureza é como
definem virtude”]. Mais uma vez, a definição de uoluptas como τέλος (finem omnium)
repete-se claramente como elemento epicurista, assim como a condução da vida de
acordo com a natureza (reminiscência estoica), vida essa colocada em correspondência
com a uirtus, de modo que parece finalmente chegar a uma identificação entre uoluptas
e uirtus (uitam iucundam [...] uirtutem definiunt) [“definem virtude (...) como sendo
uma vida feliz”].
A mesma razão que, em primeiro momento, guia os homens a seguirem os três
princípios religiosos citados, em seguida, leva-os a honrar a Deus (in amorem, ac
uenerationem diuinae maiestatis; 162/23) [“com amor e veneração da majestade
divina”], a quem o homem deve sua existência, em um terceiro momento, encoraja-os a
conduzir uma vida sem medos e com a maior quantidade possível de alegrias (excitat
nos ut uitam quam licet minime anxiam, ac maxime laetam ducamus ipsi; 162/25-26)
[“nos incita a conduzir a vida com o mínimo de ansiedade e o máximo de alegria
possível”]; e, em um quarto momento, leva-os a ajudarem-se uns aos outros, conforme a
suportem dores com o fim de evitar dores maiores”] e a definição estoica segundo Cíc., De fin. 3, 31
(rever nota 36).
38
Os epicuristas, assim como os estoicos (ver Hossenfelder, 1995, p. 54), atribuem o termo phronesis
(Φρόνησιη) a tudo o que é correto e valoroso. Ver Diog. Laert. 10,132: “Für alles dies ist Anfang und
wichtigstes Gut die vernünftige Einsicht, daher steht die Einsicht an Wert auch noch über Philosophie.
Aus ihr entspringen alle Tugenden“ [“Para tudo isto, o juízo sensato está em primeiro lugar e é o mais
importante bem, por esta razão, o juízo de valores recai também sobre a filosofia. Desta nascem todas as
virtudes”]; ver Cíc., De fin. 1, 32: nemo enim ipsam voluptatem, quia voluptas sit, aspernatur aut odit aut
fugit, sed quia conquuntur magni dolores eos, qui ratione voluptatem sequi nesciunt. [“Ninguém, de fato,
recusa, abomina ou evita o próprio prazer porque seja prazer, mas porque resultam grandes dores àqueles
que não sabem perseguir o prazer com cálculo”]. A diferença entre os estoicos e os epicuristas é que
Epicuro reconhece a percepção de prazer e desprazer como imediata e natural, e não como uma sensação
influenciada por nossa razão; ver Hossenfelder, 1995, p. 102. Como consta em Diog. Laert. 10, 34, a
imediata sensação de prazer e dor dos seres humanos revela “quais experiências, atividades e coisas são
de natureza medida (oikeion) ou desmedida (allotrion)“ [“(...) welche Widerfahrnisse, Tätigkeiten, Dinge
seiner besonderen Natur angemessen (oikeion) und unangemessen (allotrion) sind”] (Forschner, 1993, p.
32-33). Epicuro explicava a voluptas como summum bonum, o ímpeto de um recém-nascido que ainda
não foi influenciado pela cultura (depravada). Ver Diog. Laert., 10, 137; Cíc., De fin. 1, 30; Ver também
Cíc., De fin. 1, 55: nullus in ipsis error finibus bonorum et malorum, id est in voluptate aut in dolore (...)
[“Não há nenhum erro nos fins dos bens e dos males em si mesmos, isto é, no prazer ou na dor (...)”].
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
264
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
natureza da comunidade (caeterisque omnibus ad idem obtinendum adiutores nos pro
naturae societate praebeamus; 162/27-28) [“e para que todos os demais obtenham o
mesmo, que nos mostremos apoiadores, por nossa afinidade natural”]. A ueneratio dei
também é identificada como um elemento cristão, embora os deuses, no epicurismo,
ainda que não exercessem papel relevante na vida dos homens, não fossem negados, e
sim saudados devido à sua perfeição divina em relação à felicidade, conforme descreve
Vellenius em De natura deorum39.
A formulação minime anxiam ac maxime laetam se refere claramente a
Epicuro40, que enxerga a eudaimonia41 como sendo realizada na liberdade do espírito
dos (perturbadores) afetos (ἀταραξία) e na liberdade do corpo da dor (ἀπονία), o que
está em conformidade com uma vida de elevados prazeres.
O quarto ponto é ainda mais desenvolvido (até 164/10). Tanto a ratio, como a
uirtus humanitatis42 e a natureza43 abandonam a vida dos prazeres individuais e exigem
que se ajude o outro a fazer o mesmo, por exemplo: hominem homini saluti ac solatio
esse, (...) aliorum mitigare molestiam, & sublata tristitia uitae iucunditati, hoc est
uoluptati reddere (162/32-35) [“um homem ser para outro homem ventura e conforto,
(...) mitigar o sofrimento dos outros e, removidas as tristezas da vida, restaurar o
contentamento, isto é, o prazer”]44; At quum natura mortales inuitet ad hilarioris uitae
39
Si nihil aliud quareremus, nisi ut deos pie coleremus et ut supertitione liberaremur, satis erat dictum;
nam et praestans deorum natura hominum pietate coleretur, cum et aeterna esset et beatissima (habet
enim venerationem iustam, quicquid excellit) (...) (Cíc., De nat. deo. 1, 45) [“Se nenhuma outra coisa
procurávamos senão que honrássemos piamente os deuses e que nos desprendêssemos da superstição,
então basta o que foi dito, pois não só a natureza superior dos deuses, sendo eterna e felicíssima, seria
venerada pela piedade dos homens (ora, tudo o que sobressai tem justa veneração) (...)”. Todas as
traduções de trechos do De nat. deo. são de autoria de Leandro A. Vendemiatti e foram extraídas de seu
trabalho de mestrado Sobre a natureza dos deuses de Cícero, Campinas: Unicamp, 2003. (N. da R.)]
40
Epicuro define uoluptas como estado de libertação da dor; não haveria avanço para além desta
condição: maximam uoluptatem illam habemus, quae percipitur omni dolore detracto (...) doloris omnis
privatio recte nominate est voluptas (Cíc., De fin., 1, 37) [“o máximo prazer reputamos ser aquele que é
percebido quando toda dor é subtraída (...) a privação de toda dor foi corretamente denominada prazer”].
41
“For Epicurus, (...) tranquillity is itself a pleasure, and it consists in being free from all troubles or
anxiety“, Striker, 1990, p. 100. “Wenn wir also die Lust als das Endziel hinstellen, so meinen wir (…) das
Freisein von körperlichen Schmerz und von Störung der Seelenruhe” [“Se então definirmos o prazer
como objetivo final, estamos nos referindo à liberdade corporal da dor e das perturbações da alma”],
Diog. Laert.10, 131.Ver também Diog.Laert. 10, 128 e a síntese de Sêneca: apud Epicurum duo bona
sunt, ex quibus summum illud beantumque componitur, ut corpus sine dolore sit, animus sine
perturbatione (Sen. Ep. 66, 45 = fr. 434 Us.) Ver também Erler, 1997, p. 1136.
42
si humanum est maxime (quae uirtute nulla est homini magis propria); Surtz/Hexter, 162/33-34 [“se é
particularmente humana (pois nenhuma virtude é mais própria ao homem do que essa)”].
43
Ver Surtz/Hexter, 1965, 162/36; 164/9; 164/13.
44
A respeito de 152/35, Surtz/Hexter (1965) destacam a expressão uita iucunda, id est, uoluptaria [“vida
alegre, ou seja, prazerosa”]: “The Utopians here begin to juggle the synonyms of uoluptas with results
advantageous to their position”. Contudo, ver Cíc., De fin. 1, 67: quod quia nullo modo sine amicitia
firmam et perpetuam incunditatem vitae tenere possumus (...) [“uma vez que de nenhum modo podemos,
sem a amizade, manter de forma sólida e duradoura uma vida agradável (...)” e Cíc., De fin. 1, 42: (...)
265
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
mutuum subsidium (164/13-14) [“Mas, uma vez que a natureza convida os mortais à
mútua colaboração para uma vida mais alegre”]. A exigência de uma uita iucunda se
justifica, entre outros fatores, porque o que é bom para o outro e a ele deve ser oferecido
também para si mesmo deve ser bom e passível de aprovação: neque enim quum te
natura moneat uti in alios bonus sis, eadem te rursus iubet, in temet saeuum atque
inclementem esse (164/8) [“Isso porque, quando a natureza te exorta a ser bom para com
os outros, não te ordena, com isso, que sejas cruel e inclemente contigo mesmo”]. Esta
“assistência” prestada ao outro e o cuidado consigo mesmo (aut si conciliare alijs eam,
ut bonam non licet modo, sed etiam debes, cur non tibi in primis ipsi?; 164/6-8) [“ou, se
a ti não apenas é lícito, como também um dever procurar obtê-la (i.e., uma vida
prazerosa) para os outros, por que não também para ti mesmo, em primeiro lugar?”] são
explicados pelo mandamento cristão de amor ao próximo (e a si mesmo). Por outro
lado, a teoria epicurista da amizade, inserida na ética, também exerce importante papel e
poderia servir como fonte de influência45, pois também Epicuro recomenda à ratio
travar amizade com os outros (ratio ipsa monet amicitias comparare; Cíc., De fin. 1, 66
[“a própria razão nos adverte a granjear amizades”]), porque a amizade é parte
fundamental da eudaimonia: “De tudo o que a sabedoria da felicidade fornece ao
homem, a amizade é, de longe, a maior conquista” (KD 27)46. O ponto de conflito na
teoria da amizade de Epicuro é, no entanto, a hipótese de que a exigência da amizade
poderia significar a promoção do egoísmo na doutrina do prazer (Lustlehre)47. Grosso
modo, existem a respeito do epicurismo opiniões que defendem sua posição altruísta e
fatendum est summum esse bonum incude vivere [“(...) deve-se reconhecer que o sumo bem é viver
agradavelmente”].
45
Na literatura secundária quase não são encontradas referências da relação entre a “assistência” dos
utopianos para os seus companheiros e a teoria epicurista da amizade. Apenas Grace faz referência a esta
correspondência: “Like Epicureanism, Utopian ethies place friendship high on the listo of true pleasures
(…)” (Grace, 1989, p. 279). Contudo, Grace não segue com o desenvolvimento da ideia.
46
“Von allem, was die Weisheit für die Glückselligkeit des ganzen Lebens bereitstellt, ist bei weitem das
Größte die Gewinnung der Freundschaft”. Na exposição de Torquato se encontram diferentes variantes
da fórmula “o amigo como você mesmo”: quod quia nullo modo sine amicitia firmam et perpetuam
incunditatem vitae tenere possumus neque vero ipsam amicitiam tueri, nisi aeque amicos et nosmet ipsos
diligamus, idcirco et hoc ipsum efficitur in amicitia, et amicitia cum voluptate conectitur (Cíc., De fin., 1,
67) [“E uma vez que de nenhum modo podemos, sem a amizade, manter de forma sólida e duradoura uma
vida agradável, é certo, nem mesmo guardar a própria amizade a não ser que estimemos nossos amigos
assim como a nós mesmos, por essa mesma razão, também isso se produz na amizade, e a amizade está
atada ao prazer.”]; também relacionado ao epicurismo: quocirca eodem modo sapiens erit affectus erga
amicum, quo in se ipsum (Cíc., De fin. 1, 68) [“Por causa disso, o sábio será afetado com relação ao
amigo do mesmo modo que para consigo próprio”].
47
Ver Müller: “Welcher Weg konnte von dieser radikalen Subjektivität und Egozentrik zum
epikureischen Kult der Freundschaft führen (...)?” [“Qual caminho poderia guiar esta radical
subjetividade e egocentrismo para o culto da amizade epicurista (...)?”], Müller, 1991, p. 113.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
266
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
outras que defendem sua posição puramente egoísta48. As fontes são contraditórias,
embora a maioria dos documentos pareça pressupor uma motivação claramente
utilitária: [dicit Epicurus] nullam esse societatem humanam; sibi quemque consulere;
neminem esse, qui alterum diligat nisi sua causa;49 [“(diz Epicuro) que não existe a
sociedade humana, qualquer que seja a que se considere, e que não existe ninguém que
não estime o outro exceto em causa própria”]. Também Cícero trata do problema50: na
primeira apresentação da teoria da amizade (Cíc., De fin. 1, 65-70), Torquato se refere a
três diferentes opiniões matizadas da Escola que espelham esta questão, e a crítica de
Cícero em De fin. 2, 78-85 retoma a mesma acusação da possível conduta egoístautilitária51. Na ética utópica, a assistência recíproca prestada aos indivíduos está
relacionada à uoluptas (hominem homini... uoluptati reddere) e este cuidado se reverte
de modo positivo em direção ao indivíduo (quod ipsum numquam tantum aufert
commodi, quantum refert; 164/28-30 [“pois o dever nunca aufere tantas vantagens para
si quanto as que oferta”], consequência que pode ser explicada por três princípios. (Os
dois primeiros adotam interpretações divergentes a respeito da amizade no epicurismo):
1. A expectativa de uma futura recompensação é legítima (Nam & beneficiorum
uicissitudine pensatur; 164/30) [“Pois também é compensada com o retorno dos
benefícios”], aspecto que corresponde claramente à posição utilitária e egoísta. 2. É a
própria consciência limpa, além da consideração pelo outro, que tem o poder de
promover a uoluptas nos indivíduos (& ipsa benefacti conscientia, ac recordatio
charitatis eorum & beneuolentiae quibus benefeceris, plus uoluptatis affert animo,
164/30-32) [“e a própria consciência das boas ações, a recordação da afeição e
benevolência por parte daqueles a quem tiveres feito um bemconferemmais prazer ao
espírito”]. Consequentemente, promove um modo bem sutil de ganho de uoluptas que
se pode obter do relacionamento “amigável” entre as pessoas52. 3. Baseando-se
completamente na religião, o terceiro princípio afirma a insuficiência dos anteriores:
48
Ver Müller 1991, especialmente p. 112 e p. 114.
Fr. 540 Us.; exposto por Lactantius, Divinae institutiones 3, 17 e, por esta razão, acessível a Morus.
50
Ver Müller 1991, p. 113-116 e Mitsis, 1987, p. 139-144.
51
Müller, após cuidadosa análise de diferentes fontes, conclui: “(...) die Freundschaft [erscheint] im
Idealbild als ein Selbstwert, jenseits aller Utilität“ [“(...) a amizade (aparece) em sua imagem ideal como
um valor próprio, a par de toda utilidade”] (Müller, 1991, p. 125). Ao contrário, Mitsis considera que a
contradição entre as motivações egoístas e as motivações altruístas se mantém: “We have seen the various
tensions in Epicurus’ ethical thinking which force him into insconsistencies” (Mitsis, 1987, p. 153).
52
Surtz traz à questão um fragmento de Plutarco atribuído a Epicuro (1957, p. 40): ϰαίτοι Επίκουρος (...)
τοῠ εὺ πάοχειν τὀ εὺ ποιείν οὺ μόνον κάλλιον άλλά ἣδιον εῖναί ϕησι (mor. 778c), que explica esta “sutil
conquista de prazer” (Lustgewinn). Müller estabelece a conquista de prazer do próprio eu como sucessão
da conquista de prazer do amigo, que é uma “extensão do próprio eu” [“erweiterung des eigenen Ich”],
Müller, 1991, p. 114.
49
267
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Postremo (quod facile persuadetanimo libenter assetienti religio) breuis & exiguae
uoluptatis uicem, ingenti ac nunquam interituro gaudio rependit deus (166/1-3) [“Por
fim (porque a religião facilmente persuade o espírito disposto a assentir), Deus
recompensa com, ao invés de um breve e exíguo prazer, ingente e imperecível gáudio”].
Por estas razões, é estabelecida uma relação entre o cálculo hedonista do prazer e a
esperança religiosa na recompensa divina.
Para os utopianos também existe a ligação entre o amor ao próximo,
especificamente a amizade, e a utilidade53, que coincide, mesmo com sutis diferenças,
com o núcleo fundamental do epicurismo, mesmo que o termo amizade (ou seja,
amicitia ou amicus, etc) não seja encontrado no texto. Também as justificativas quanto
a isso diferem das dos epicuristas, que justificama exigência da amizade com a ratio,
associada à humanitas e à natura, sendo que o termo humanitas designa uma qualidade
humana, que pode ser descrita como “consideração filantrópica” e de “inclinação
natural para a união entre os homens”54 e que é aqui muito bem utilizada com esse
sentido.
A natureza, por sua vez, leva os utopianos ad hilarioris vitae mutuum
subsidium (164/13-14)55 [“à mútua colaboração para uma vida mais alegre”], visto que
o homem só pode existir como membro de uma comunidade56 e, por esta razão, sente-se
obrigado a obedecer ao princípio da proteção de todos os indivíduos, o que corresponde
a uma vantagem para ele mesmo: eadem [i.e. natura] te nimirum iubet etiam atque
etiam obseruare, ne sic tuis commodis obsecundes: ut aliorum procures incommoda
(164/17-18) [“a mesma (i.e. natureza) certamente te ordena repetidas vezes observar que
não cedas às tuas comodidades a ponto de provocar incômodos aos outros”]. A isto
conflui o estabelecimento do “contrato social” pelos utopianos e, neste caso, misturamse conceitos estoicos com epicuristas, no que concerne à defesa estoica da vida em
53
Ver Logan: “For them, the first and most obvious fact about that nature is that man is completely selfinterested” (Logan, 1983, p. 148).
54
Storch, 1897, p. 752. Storch nos dá outras nuances de compreensão. O significado de “humanitas [no
sentido] de comunhão de todos os homens (...)” [“Humanitas als (Sinn für) Gemeinschaftlichkeit aller
Menschen (...)”] já havia sido utilizado por Cícero em seus escritos filosóficos, como Cíc., De fin. 3,6265; De off. 1, 50-56; Storch, 1897, p. 753; e também por Sêneca (ep. 5, 4; 95; 52). A respeito da societas
generis humani no sentido estoico, ver nota 55.
55
Ver a versão epicurista: scientia (...) perspexit in hoc ipso vitae spatio amicitiae praesidium esse
firmissimum (Cíc., De fin. 1, 68) [“Pois Epicuro, brilhantemente, com estas palavras, mais ou menos, diz:
‘O mesmo pensamento que deu firmeza à alma para que não temesse algum mal eterno ou duradouro,
percebeu que, neste curso mesmo da vida, a mais firme fortaleza é a amizade’”].
56
neque enim tam supra generis humani sortem quisquam est, ut solus naturae curae sit, quae uniuersus
ex aequo fouet, quos eiusdem formae communione complectitur (164/14-17) [“ninguém está tão acima do
destino do gênero humano que, sozinho, seja a preocupação da natureza, a qual favorece igualmente
aqueles a quem abarca em comunhão da mesma forma”].
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
268
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
comunidade sem prejuízo simultâneo da lei natural57, e à exigência epicurista (na
opinião da maioria dos pesquisadores)58 do contrato de direitos. Assim, a ideia da
“assistência mútua”, que tem bases na natureza, é uma reminiscência estoica, ainda que
para os estoicos a societas naturae (162/27-28) [“sociedade natural”] ou ainda a
amicitia não tenham sido colocadas em relação com a uoluptas como para utopianos e
epicuristas. Portanto, não é coincidência que em relação a essa discussão a respeito da
assistência mútua sejam mencionados os contratos privados e sociais dos utopianos:
Seruanda igitur censent non inita solum inter priuatos pacta, sed publicas etiam leges
(164/19-21)59 [“Por conseguinte, recomendam que sejam observados não só contratos
assumidos entre privados, mas também as leis públicas”]. Os últimos existem
precisamente no princípio do bem comum determinado para a comunidade utópica:
[publicas leges] de partiendis uitae commodis (164/22-23) [“(leis públicas) sobre a
distribuição de bens vitais”], que em seguida é definido como materia uoluptatis
(164/23) [“matéria dos prazeres”] e, assim, coloca a filosofia moral dos utopianos em
relação direta com o seu sistema econômico. Este sistema se baseia justamente no
consenso (publicas leges/communi consenso), relativamente independente da estrutura
57
Como para Aristóteles o homem é um ϐώον πολιτικόν, assim também é o homem para os estoicos. O
homem é, em todas as circunstâncias, um ser que vive em comunidade: itaque natura sumus apti ad
coetus, concilia civitates (Cíc., De fin. 3, 63) [“Dessa forma, somos por natureza dispostos a
agrupamentos, assembléias e cidades”]; ex quo illud natura consequi, ut communem utilitatem nostrae
anteponamus (Cíc., De fin. 3, 64) [“donde se segue, por natureza, que o interesse comum nós
anteponhamos ao nosso”]; sic inter nos natura ad civilem communitatem coniuncti et consociati sumus
(Cíc., De fin.,3, 66) [“assim, por natureza, fomos reunidos e associados para formar uma comunidade
civil”]. Ver Hossenfelder, 1995, p. 66.
58
Por exemplo, Müller, 1972 e 1988; e Sprute, 1989. Contrária é a afirmação de Mitsis: “(...) Epicurus,
since we know that he does not hold a contractual theory” (Mitsis, 1987, p. 141). Hossenfelder estabelece
uma síntese de ambas as posições: “Nach neuerer Diferenzierung könnte man vielleicht sagen, daß
Epikur, was die Geltung des Rechts betrifft, Positivist ist, was aber den Inhalt angeht, Naturrechtler”
[“Segundo nova diferenciação, seria possível talvez dizer que Epicuro, no que se refere à validade do
direito, é positivista, no que se refere ao conteúdo, seguidor da lei na natureza”], Hossenfeder, 1995, p.
122. Até onde posso julgar, os documentos (especialmente KD 6, 31-33; 35; 39-40 e Lucrécio, De rer.
nat. 5, 1019-1027: tunc et amicitiem coeperunt iungere auentes / finitimi inter se nec laedete nec violari,
[...] nec tamen omnimodis poterat concordia gigni, / sed bona magnaque pars servabat foedera caste; /
aut genus humanum iam tum foret omne peremptum / nec potuisset adhuc perducere saecle propago) [Na
tradução de Agostinho da Silva: “Foi também por esta altura que a amizade começou a juntar os vizinhos
entre si, pelo desejo que tinham de não se prejudicar nem de usar de violência uns contra os outros [...]
Não é que a concórdia pudesse nascer em todos os casos, mas uma boa e grande parte conservava
fielmente os seus tratados; caso contrário, já todo o gênero humano teria desaparecido nem poderia a
descendência ter-se propagado até hoje.”] estabelecem uma teoria do contrato certamente próxima à
abordagem positivista do direito.
59
A menção aos contratos privados parece aqui um pouco inesperada, como também notam Surtz/Hexter
(1965): “Why the emphasis on privat contracts?”. A adoção do contrato pelos utopianos talvez possa ser
explicada pela relação construída entre a amizade epicurista e a teoria do contrato, se considerarmos que o
terceiro grupo da escola epicurista de Torquato concebe a amicitia como contrato: Stunt autem, qui sicant
foedus esse quoddam sapientium, us ne minus amicos quam se ipsos diligant (Cíc., De fin. 1, 70) [“Há,
porém, quem diga haver entre os sábios um pacto: não estimar os amigos menos do que a si próprios”].
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social, dos membros da comunidade, que se declaram peças livres dentro dela: aut
bonus princeps iuste promulgauit, aut populus, nec oppresus tyrannide, nec dolo
circumscriptus (164/21-22)60 [“ou um bom príncipe promulgou justamente, ou o povo,
nem oprimido pela tirania, nem obrigado por um engano, sancionou”], o que neste
contexto corresponde a um fechamento de contrato.
O problema que reside em uma doutrina dos prazeres radicalmente egoístas, a
saber, provenientes do prejuízo de outrem em busca do benefício ou do prazer próprio,
os utopianos solucionam, de um lado, com o conceito de contrato: se suas leis não são
violadas, prevalece o uso da sabedoria de se proporcionar o benefício próprio (Hijs
inoffensis legibus tuum curare commodum, prudentia est; 164/24)61 [“é inteligente
cuidar do teu interesse desde que essas leis não sejam violadas”]; de outro, o conceito da
pietas62, que promove o pensamento do bem estar coletivo: publicum [commodum
curare] praeterea pietatis: (...) (164/25) [“além disso, é lealdade (cuidar do interesse)
público”], que estabelece, deste modo, uma qualidade que está além de um pensamento
egoísta do benefício próprio, quenão encontra lugar no sistema epicurista63. Além disso,
recorre-se aos termos iniuria e officium, centrais em toda a filosofia ética e a filosofia de
Estado. Aqui, no entanto, para justificarmais uma vez a mesma ideia (em detrimento
dos interesses próprios em benefício do funcionamento da comunidade): 1. Sed alienam
uoluptatem praereptum ire, dum consequare tuam: ea uero iniuria est (164/25-26)
[“Mas dispor-se a roubar o prazer a outrem para alcançar o próprio, isso é certamente
injustiça”]. Ver o ensinamento epicurista em Cíc., De fin. 1, 53: quae enim cupiditates
a natura proficiscuntur, facile explentur sine ulla iniura [“Pois os desejos que provêm
60
Surtz/Hexter (1965) observam corretamente: “Utopus was such a legislator” (Surtz/Hexter, 1965,
164/21).
61
Ver Cíc., De off. 3, 63: (...) sapientis esse nihil contra mores, leges, instituta facientem habere rationem
rei familiaris.
62
Hijs inoffensis legibus tuum curare commodum, prudentia est: publicum praeterea, pietatis. O termo
pietas é de difícil tradução para línguas modernas, especialmente considerando-se o conceito antigo. G.
C. Richards, na versão inglesa publicada nas Complete Works (Yale), optou por “devotion”; Aires
Nascimento (Morvs, 2009, p. 333), por “solidariedade”, lembrando, em nota, que o conceito de pietas
“envolve na cultura tradicional o respeito e a dedicação do homem nas suas relações para com todas as
instâncias da existência – divinas, humanas, naturais”; na versão de Luiz de Andrade (Moore, 1937, p.
117), que se afasta bastante do original, o termo parece ter sido entendido como “religião”: “A religião é
trabalhar pelo bem geral”; Clarence Miller (More, 2001, p. 83) optou por “pious”; Dominic Baker-Smith
More, 2012, p. 81), por “a high sense of duty”. Sidney Calheiros, em sua tradução do De fin., traduz
pietas por “piedade” em passagem citada adiante. (N. da R.)
63
Epicuro desenvolve a teoria do contrato (e também a teoria da amizade) com o objetivo de conquistar a
tranquilidade e suprimir o medo, perturbações e danos prejudiciais. Ver Hossenfelder, 1965, p. 121: “Da
man aber unter Menschen bleibt, ist es nötig sich noch auf andere Weise vor Übergriffen und Schaden zu
bewahren. Dem dient im engeren Kreise die Freundschaft und im größeren die staatliche Organisation“
[“Visto que, caso se permaneça entre os homens, faz-se necessário preservar-se de usurpações e danos. A
amizade está a serviço disso em um círculo pequeno, e em círculo grande está a organização estatal”].
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
270
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
da natureza são facilmente satisfeitos sem qualquer injustiça”], onde é claramente
enfatizado que apenas os desejos corretos e naturais devem ser satisfeitos, e estes são
identificados como aqueles que não prejudicam o próximo (...)64. 2. Um sentimento
humano de responsabilidade: contra tibi aliquid ipsi demere, quod addas alijis id
demum est humanitatis ac benignitatis officium (...) (164/26-28)65 [“subtrair algo de si
mesmo para dá-lo aos outros, isso é tão-somente um dever da natureza humana e da
gentileza”].
Toda esta discussão teve o objetivo de esclarecer que não se trata da busca
ilimitada de prazeres (per fas ac nefas [“por fastos ou nefastos meios”]), mas de uma
busca por prazeres “bem-medidos”, que não tem a intenção de prejudicar o próximo,
que deve também participar e ser assistido: a comunidade não pode, sob nenhuma
circunstância, sofrer em decorrência de interesses individuais. Os utopianos claramente
reconheceram e dissolveram os conflitos de interesse entre comunidade e indivíduo
tanto em sua filosofia, como em seu sistema econômico. A evidência de que a uoluptas
é o mais elevado bem para a conquista da felicidade é clara: Itaque (...) censent, (...)
omnes actiones nostras, atque in his uirtutes etiam ipsas, uoluptatem tandem uelut
finem, felicitatemque respicere (166/3-6)66 [“Assim (...) concluem, (...) cada uma de
nossas ações e,quanto a isso, mesmo as próprias virtudes, visam afinal o prazer como
sendo fim e felicidade”].
2.2. Critérios dos Verdadeiros e dos Falsos Prazeres
Depois de evidenciar que a uoluptas corresponde ao summum bonum
especificaremos, como é usual nas discussões filosóficas, mais detalhadamente a
uoluptas, que consiste na felicitas67. Acima, foi determinado que ela deveria ser bona
64
Certamente não podemos nos esquecer de que Epicuro, em todos os âmbitos, como iustitiam,
aequitatem, fidem (Cíc., De fin. 1, 52) [“Convida, pois, o raciocínio verdadeiro, os muito sensatos à
justiça, à equidade e à boa-fé”], não busca nas boas ações atingir um objetivo moral, mas a imperturbação
da ataraxia individual.
65
Surtz/Hexter (1965) referem-se justamente a Cíc., De off. 3, 21: Detrahere igitur alteri aliquid et
hominem hominis incommodo suum commodum augere magis est contra naturam quam mors, quam
paupertas, quam dolor, quam cetera, quae possunt aut corpori accidere aut rebus externis. Nam
principio tollit convictum humanum et societatem. Si enim sic erimus adecti, ut propter suum quisque
emolumentum spoliet aut violet alterum, disrumpi necesse est eam, quae maxime est secundum naturam,
humani generis societatem.
66
Ver Cíc., De fin. 1, 41: quodsi vita doloribus referta maxime fugienda est, summum profecto malum est
vivere cum dolore, cui sententiae consentaneum est ultimum esse bonorum cum voluptate vivere. [“E se a
vida repleta de dores é a que mais se deve evitar, o sumo mal, com certeza, é viver com dor. É
conseqüente com esse modo de pensar que o último dos bens seja viver com prazer”].
67
Ver, por exemplo, Cíc., De fin. 1, 37: nunc autem explicabo, voluptas ipsa quae qualisque sit (...)
[“Agora, porém, tornarei explícito o que em si próprio e de que tipo é o prazer (...)”].
271
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
atque honesta, a fim de impedir de chofre qualquer busca desenfreada pelo prazer. Os
utopianos determinam como prazer omnem corporis animiue motum statumque (166/78) [“todo movimento e estado do corpo ou do espírito”]. Em decorrência disso, são
referidas, de modo superficialmente conciso, quatro categorias principais da uoluptas no
sentido epicurista, ainda que não desenvolvidas neste momento. Em primeiro lugar, há a
diferenciação entre os prazeres sensório-corporais (ἡδονὴ έντῆ οαρκί) e os prazeres
anímico-espirituais (ἡδονὴ τῆϛδιανοίαϛ)68, como entre a dor/sofrimento sensóriocorporal e a anímica-espiritual. As sensações anímico-espirituais, segundo Epicuro, têm
maior significado para a felicidade humana69. Em segundo lugar, há diferenciação entre
“prazer em movimento” e prazer “da circunstância”, que remetem claramente, para o
leitor familiarizado com a filosofia Antiga, à diferenciação entre o prazer catastemático
(ἡδονὴ καταστηματική) e o prazer cinético (ἡδονὴ ἐν κινήσει)70. A diferenciação destes
dois tipos de prazer aparece pela primeira vez na passagem que trata dos verdadeiros
prazeres (127/7-174/29). Aqui se menciona rapidamente que as sensações devem ser
naturais (natura duce; natura iucundum est; 166/9-10) [“sendo a natureza a
condutora;agradável por natureza”], e que um impulso natural leva os homens a desejá-
68
Ver KD 18.
Esta conclusão é tirada de Diog. Laert. 10, 137 (“Diese [i.e. Kyrenaiker] halten körperliche Schmerzen
für schlimmer als seelische [...], er [i.e. Epikur] dagegen die seelischen“ [“Estes (os cirenaicos)
consideram as dores corporais piores que as espirituais, ele (i.e. Epicuro), as espirituais”]) e de Cíc., De
fin. 1, 56: Iam illud quidem perspicuum est, maximam animi aut voluptatem aut molestiam plus aut ad
beatam aut ad miseram vitam afferre momenti quam eorum utrumuis, si aeque diu sit in corpore.
[“Torna-se evidente, então, que o maior prazer ou a maior inquietação da alma tem mais peso para uma
vida feliz ou infeliz do que qualquer um dentre esses dois que esteja no corpo durante um mesmo
tempo”].Contudo, a relação entre as sensações corporais e espirituais parecem não ser explicadas até o
final por Epicuro; ver Müller, 1991, p.71-78; Ver nota 96. Incorreta é a afirmação de Logan: “Uoluptas
(...) normally means bodily pleasure [thought, to be sure, Epicurus also stressed mental pleasures]”,
Logan, p. 145. Ver Cíc., De fin. 2, 13: huic verbo (i.e. uoluptatis) omnes, qui ubique sunt, qui Latine
sciunt, duas res subiciunt, laetitiam in animo commotionem suavem iucunditatis in corpore [“A essa
palavra, todos, venham eles de qualquer parte, que sabem falar latim fazem subjazer duas coisas, alegria
na alma, doce agitação de deleite no corpo”].
70
Ver Diog. Laert. 10, 136 (= ft. 1. Us.). Epicuro desenvolve estes termos inclinando-se para Aristóteles,
Ét. a Nic.. 1154b27-28 Diog. Laert. cita Epicuro em 10, 136: “Die Seelenruhe und die Schmerzlosigkeit
sing ruhige Lustempfindungen; für Freude dagegen und Fröhlichkeit ist Bewegung das charakteristische
Kennzeichen” [“A tranquilidade da alma e a ausência de dor são percepções calmas de prazer. A alegria e
o contentamento têm como característica o movimento”]. Torquato refere-se a esta diferenciação: Non
placet autem detracte voluptate aegritudinem statim consequi, nisi in voluptatis locum dolor forte
successerit, at contra gaudere nosmet omittendis doloribus, etiamsi voluptas ea, quae sensum moueat,
nulla successerit (Cíc., De fin., 1, 56) [“Não pensamos, no entanto, que, subtraído o prazer, a aflição
segue-se imediatamente, a não ser que em lugar do prazer suceda talvez a dor, mas, pelo contrário, que
nós próprios gozamos, quando as dores são deixadas de lado, ainda que aquele prazer, que move o
sentido, não suceda, e por isso pode-se entender quão grande prazer seja o não-sofrer”]; a clara
determinação de ambas as significações de prazer permanece aberta em Cícero (ver Gigon/StraumeZimmermann, 1988, p. 435-436), que tratam de Cíc., De fin. 1, 56) e o incitavam a fazer grandes críticas
(ver Cíc., De fin.2, 28-30).
69
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
272
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
las (appetitionem naturae; 166/971) [“tendência natural”]. Como Surtz nota
devidamente, da definição daquilo que é agradável por natureza (natura incundum est,
ad quod [...]) [“é agradável por natureza, conquanto que (...)”] decorrem três critérios
negativos:72 1. (...) neque per iniuriam tenditur [“nem se inclina mediante injustiça”]; 2.
(...) nec incundius aliud amittitur [“nem algo mais agradável é perdido”]; 3. (...) nec
labor succedit (166/10-12) [“nem é seguido por sofrimento”]. O primeiro critério
retoma a já aludida relação entre o indivíduo e sua contraparte, i.e., a comunidade73; os
dois últimos são entendidos como a concretização do referido cálculo hedonista do
prazer: hoc tantum caueret ne minor uoluptas obstet maiori, auteam persequatur quam
inuicent retaliet dolor (162/2-10)74 [“por isso, ele deve cuidar para que um prazer menor
não obste um maior, nem persiga um que, por sua vez, retalie com dor”]. Portanto,
prazeres também são percepções sensoriais (motum statumque corporis; sensus) [“o
movimento e estado do corpo; os sentidos”], a satisfaçãodestas percepções sensoriais,
entretanto, só pode ocorrer dentro dos limites de três fronteiras prenunciadas pela razão:
non sensus modo, sed recta quoque ratio persequitur (166/12-13) [“segue não apenas os
sentidos, mas também a reta razão”]. Indiretamente, podemos concluir que apenas as
uoluptates em harmonia com os três critérios são qualificadas como uerae uoluptates.
Assim, a seguir são mencionadas aquelas coisas que se situam praeter naturam [“além
da natureza”], portanto, exteriores aos limites definidos; sua apreciação se baseia em
falsa valorização (dulcia sibi mortales uanissima conspiratione confingunt) [“que, por
mui vão consenso, os mortais têm para si como doçuras”], pois na verdade não
acrescentam nada à eudaimonia: ea omnia statuunt adeo nihil ad felicitatem facere75
[“estabelecem inclusive que todas essas coisas em nada contribuem para a felicidade”].
Também Epicuro classifica o “entendimento racional” dos verdadeiros valores como a
71
Surtz/Hexter (1965) referem-se a Cíc., De fin.: appetitio animi, quae όρμή Graece vocatur (De fin., 3,
23) [“a tendência da alma, que em grego se chama όρμή”]; Naturalem enim appetitionem, quam vocant
όρμήν (De fin. 4, 39) [“a tendência natural, que eles chamam όρμή”]; Voluptatis alii primum appetitum
putant et primam depulsionem doloris (De fin. 5, 17) [“Em direção ao prazer alguns pensam ser a
primeira tendência; a primeira repulsa, da dor”].
72
Ver Surtz, 1957, p. 36. Surtz define como o quarto critério – e único critério positivo – a uoluptas como
bona atque honesta. No entanto, esta definição é menos que um quarto critério, e mais que uma síntese do
entendimento dos três critérios anteriores. Todos são significativamente concretos e definem bona atque
honesta.
73
Ver Surtz: “The third negative norm is social in character” (1959, p. 38; nesta afirmação, o estudioso se
refere ao primeiro critério). Surtz entende que esse critério está “directed with special force againsed the
masters of England and Europe: (...)” (Surtz, 1959, p. 38).
74
Surtz/Hexter (1965, 166/10) se referem ao cálculo do prazer e acrescentam que também Erasmus, no
texto De contempto mundi e no diálogo Epicurus, tratou do tema.
75
Toda a passagem: 166/13-16.
273
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
mais importante virtude para conquista daeudaimonia76. Falsas classificações estão
relacionadas ao falso entendimento ou, como Torquato expressa, às doenças da alma
(Cíc., De fin. 1, 59; ver abaixo). Os utopianos imaginam que os falsos julgamentos, por
assim dizer, “ocupariam” a alma e não deixariam mais espaço para os julgamentos
corretos: quibus semel insederunt, ne ueris ac genuinis oblectamentis usquam uacet
locus, totum prorsus animum falsa uoluptatis opinione praeccupant (166/17-19) [“uma
vez infiltrados, não deixam lugar algum para verdadeiros e genuínos deleites, ocupam
completamente todo o espírito com falsa opinião acerca do prazer”]. Segundo eles,
existem muitas coisas que em sua própria natureza não promovem prazer 77 e, apenas
devido a “falsas seduções” são consideradas de modo incorreto: peruersa tum
improbarum
cupiditatum
illecebra
(166/21)
[“perversos
encantosdos
desejos
ímprobos”]. De modo semelhante formula Torquato: animi autem morbi sunt
eupiditates inmensae et inanes (Cíc., De fin. 1, 59) [“as doenças da alma são os desejos
desmesurados e vãos”]. Ao final desta passagem, são mencionadas ainda as razões deste
falso julgamento, como uma peruersa consuetudo [“hábito perverso”] ou uma doença
(morbus)78 da pessoa em questão, pois o “erro” pode estar apenas no indivíduo, mais
especificamente no seu julgamento, e não na natureza própria das coisas: non enim
ipsius rei natura, sed ipsorum peruersa consuentudo in causa est. (...) Nec cuiusquam
tamen aut morbo, aut consuentudine deprauatum iudicium, mutare naturam, ut non
aliarum rerum, ita nec uoluptatis potest (172/1-2; 5-7) [“pois está em causa não a
natureza da própria coisa, mas o perverso hábito deles. (...) E o juízo de alguém,
pervertido por doença ou hábito, não pode mudar a natureza do prazer, nem de outras
coisas”]. Este falso julgamento é ilustrado (de modo exagerado) no exemplo das
mulheres grávidas, cujas papilas gustativas durante a gravidez funcionam de modo
76
Ver Diog. Laert. 10, 132 (rever nota 34) e Cíc., De fin.,1, 43: sapientia est adhibenda, quae et
terroribus cupiditatibuque detractis et amnium falsarum opinionum temeritate derepta certissimam se
nobis ducem praebeast ad voluptatem [“deve-se acolher a sabedoria, pois que, tendo sido subtraídos os
terrores e os desejos, e tolhido o desatino das falsas opiniões, ela se nos apresenta como a mais segura
condutora ao prazer”].
77
Sunt enim perquam multa, quae quum suapte natura nihil contineant suauitatis, imo bona pars
amaritudinis etiam plurimum (...) (166/19-21) [“Pois há, em abundância, muitas coisas que, por sua
natureza, nada contêm de suave, mas sim, e em grande parte, muito de amargor”]. Também ao final da
passagem: Haec igitur & quicquid est eiusmodi (sint enim innumera) quamquam pro uoluptatibus
mortalium uulgus habeat, illi tamem quum natura nihil insit suaue (...) (170/28-30) [“Portanto, essas
coisas e quaisquer semelhantes (pois são inúmeras), ainda que a massa dos mortais as tenha por prazeres,
a olhos deles [os utopianos] nada de suave, por natureza, nelas reside”].
78
Também Aristóteles considera os “defeitos” do corpo, os hábitos e as (más) inclinações naturais como
possíveis causas para as inclinações não naturais. (Ver Ética a Nic. 148b15-18). No entanto, afirma em
seguida (Ética a Nic. 1149a) a existência de comportamentos completamente diferentes dos adotados
posteriormente pelos utopianos.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
diferente: (...) uitio fit, ut amara pro dulcibus amplectantur. Non aliter ac mulieres
grauidae picem & seuum, corrupto gustu, melle mellitius arbitrantur (172/2-5) [“(...) o
vício faz com que coisas amargas sejam tomadas por doces. Não diferentemente, as
mulheres grávidas, por causa de seu paladar corrompido, julgam que a pez e o sebo
sejam mais doces que o mel”]. O leitor instruído também se lembrará da postulação de
Epicuro sobre a verdade das percepções sensoriais79 que, neste exemplo, é conduzida ad
absurdum. Mesmo que Hitlodeu não relate nada concreto a respeito das reflexões dos
utopianos sobre as percepções sensoriais e sua apropriação do mundo (como nos
cânones de Epicuro80), é evidente o paralelo entre a premissa de uma natureza genuína
das coisas (ou seja, do mundo), pela sua perceptibilidade inalterada81 e por uma falsa
percepção decorrente das falhas da razão.
2.3. Falsos Prazeres
Enquanto Torquato descreve as “doenças da alma” como cupidatis (...)
divitiarum, gloriae, dominationis, libidinosarum etiam voluptatum (isto é, falsos
desejos) (Cíc., De fin. 1, 59) [“os desejos desmesurados e vãos de riquezas, de glória, de
poder, e ainda, de prazeres libidinosos”], e a isso adiciona accedunt aegritudines
molestiae maerores (... ) [“Vêm acrescentar-se as aflições, as inquietações, as tristezas”]
bem como acceditetiam mors (...) tum superstitio (...) (Cíc., De fin. 1, 60)82 [“Vem
ainda se acrescentar a morte (...) e também a superstição”], os utopianos definem as
seguintes adulterinae uoluptates (166/23) [“prazeres adulterados”]: 1. Valorização da
vestimenta custosa como fonte de reputação (ver 166/26-33); 2. Orgulho por títulos e
reputação, principalmente de nobreza, dentro da qual se nasce por acaso (ver 166/33168/12); 3.1. Deleite causado por pedras preciosas (verdadeiras) (ver 168/13-168/27) e
3.2. Deleite causado por artigos de ouro (que também são inúteis quando são apenas
acumulados) (168/27 – 170/5); 4. Perda de tempo com atividades inúteis, como 4.1.
79
Ver Hossenfelder, 1995, p. 127.
Justamente porque o texto não estabelece referência clara com o cânone epicurista, não é possível
desenvolver estes aspectos. Ver, por exemplo: Diog. Laert. 10, 32-34, 46-53, Cíc., De nat. deor. 1, 43-44.;
Hossenfelder, 1995, p. 124-133.
81
Assim afirma Torquato, no que se refere à evidenciação do impulso natural em busca da uoluptas:
idque facere nondum depravatum ipsa natura incorrupte atque integre iudicante (Cíc., De fin. 1, 30) [“o
faz enquanto ainda não foi pervertido e estando sua própria natureza a julgar de maneira não corrompida e
íntegra”]. Isto implica que o juízo pode ser corrompido, o que também ocorre com os utopianos.
82
Como em Cíc., De fin. 1, 60 é mais extensamente desenvolvido, o fator decisivo de ambos os últimos é
o (infundado) medo da morte, não a própria morte como também o (infundado) medo de uma penalização
divina, e da não realização dos desejos (cupiditates) de glória, riquezas, etc: cum sero sentiunt frustra se
aut pecuniae studuisse aut imperiis aut opibus aut gloriae (Cíc., De fin. 1, 60) [“atormentam-se quando,
já tarde, percebem que em vão ao dinheiro aspiraram, ou ao poder, ou às riquezas, ou à glória”].
80
275
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
Jogos de dado, 4.2. Caça (ver 170/5-28). Na terminologia dos antigos, estes tópicos se
referem aos bens superficiais (bona externa), para os estoicos, adiaphora, e para os
epicuristas, bens irrelevantes para a conquista da uoluptas no sentido de libertação das
dores e das perturbações da alma. Epicuro estabelece a divisão dos desejos em duas ou
três classes: 1. Diferencia os desejos em naturais e não-naturais; 2. Diferencia os bens
naturais em necessários e não-necessários83. Também no sistema epicurista, as referidas
adulterinae uoluptates seriam enquadradas nos desejos não-naturais. Já a justificativa
utilizada pelos utopianos para a rejeição de certas características e ocupações não
corresponde à justificativa das escolas da Antiguidade84. Como Surtz nota, por exemplo,
os utopianos rejeitam a valorização das roupas custosas, “because honor should be paid
to personal merit, not to external appearance”85. Toda a passagem é essencialmente mais
forte que a anterior e está diretamente relacionada aos temas contemporâneos ao
Humanismo86. Um paralelo ao pensamento epicurista consiste, no entanto, na avaliação
das coisas, considerando, em primeiro lugar, a sua utilidade, como é possível apreender
no trecho a respeito da vestimenta: Cur enim si uestis usum spectes, tenuioris fili lana
praestet crassiori? (166/28-29)87 [“Por que, se considerarmos o uso das vestimentas, os
fios de lã mais finos seriam preferíveis aos mais grossos?”]. Todos os pontos aqui
mencionados reaparecem, contudo, em outros momentos do relato sobre a ilha de
Utopia88 que o próprio Hitlodeu89 indica e com que demonstra que as considerações
83
Diog. Laert. 10, 127b, KD 29 e Cíc., De fin. 45-46 definem que estes não são desejos necessários e
naturais, mas são “produtos da verdadeira insanidade” [“Erzeugnisse richtigen Wahnes”]. Nisto
acentuam-se este (e outros) sinais de diferentes maneiras. Ver Müller, 1991, p. 83-84.
84
Todo o pensamento da ética epicurista trata, principalmente, da desvalorização de tudo o que é
indisponível (“Entwertung aller Unverfügbaren”, Hossenfelder, 1965, p. 102) e da rejeição da apatia
individualista e sua busca da riqueza, fama, doença (ver morbi animi em Cíc., De fin. 1, 59-60 [op. cit.]) e
não comprometimento com a ataraxia.
85
Surtz, 1957, p. 44. Por exemplo, na passagem sobre a escolha dos sifograntes e dos protofilarcas: (...)
quem maxime censent utilem, suffragijs occultis renunciant principem (...) (122/14-15) [“após votação
secreta anunciam como príncipe, aquele que julgam útil ao máximo”].
86
No capítulo “False Pleasures in Europe” (Surtz, 1957, p.44-60), Surtz trata deste complexo e o põe de
forma clara, estabelecendo diversos paralelos com outros textos, fontes e outros escritos de Morus. Por
exemplo: “Many contemporary references reveal that gambling, whether by dice or by cards, was a
serious evil of the time” (Surtz, 1957, p. 56).
87
É oportuna a observação de Epicuro no sentido de que a alimentação simples gera tanto prazer quanto
uma alimentação luxuosa (ver Diog. Laert. 10, 130). Os documentos a respeito do posicionamento de
Epicuro (formulados pontualmente) sobre o ascetismo e o luxo não são completamente claros (ver Müller,
1991, p. 84-91), pois Epicuro parece não rejeitar fundamentalmente todo o “luxo”, embora a
independência do indivíduo seja sua maior máxima (ver Hossenfelder, 1965, p. 120). Os utopianos, de
qualquer modo, rejeitam completamente todas as desmedidas e excessos. Para ambos os textos, vigora a
ideia de que “autossuficiência” [“Selbstgenügsamkeit (αὺτάρκεια)”] leva a “um valor ético fundamental”
[“(...) einem wesenlichen ethischen Wert“] (Hossenfelder, 1965, p. 120).
88
A respeito da simplicidade da vestimenta: ver 126/2-7; o desprezo das vaidades e das joias é explícito
nos distintivos dos escravos: 152/27-156/10. A respeito dos jogos (128/16-17): Aleam atque id genus
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
éticas dos utopianos encontram sua concretização na instituição de sua sociedade e da
sua vida coletiva.
2.4. Verdadeiros Prazeres
Diferente dos falsos prazeres, os verdadeiros prazeres são mais essencialmente
orientados para a teoria epicurista. Como Epicuro, os utopianos diferenciam
explicitamente as uoluptates, categoricamente, entre espirituais e corporais90. Como o
leitor saberá em seguida, os utopianos dão mais valor aos prazeres espirituais
(Amplectuntur ergo in primis animi uoluptates, [eas enim primas omnium principesque
ducunt]; 174/29-30) [“Estimam, portanto, os prazeres do espírito em primeiro lugar
(porquanto os consideram os primeiros de todos e os principais)”]. Portanto, é de se
esperar que estes prazeres sejam tratados mais profundamente pelo autor. No entanto,
ocorre o inverso: das 102 linhas que tratam das uerae uoluptates (127/7-178/9)
[“verdadeiros prazeres”], apenas 5,5 tratam das uoluptates animi91 [“prazeres do
espírito”]
e
reúnem:
1.
intellectum
[“inteligência”];
2.
dulcedinem
quam
uericontemplatio pepererit [“a doçura que nasce da contemplação da verdade”]; 3.
suauis [...] bene actae uitae memoria [“a suave memória de uma vida bem vivida”]; 4.
spes non dubia futuri boni (172/10-12) [“a esperança não duvidosa nos bens por vir”];
5. conscientia bonae uitae [“a consciência de uma vida boa”]. O último elemento
corresponde à mais elevada uoluptas para os utopianos92. Como sugerido por Surtz, os
últimos três se deixam resumir no chamado exercitium uirtutum93 [“exercício das
virtudes”], que corresponde à posição estoica94. Erzgräber considera que “a noção de
ineptos ac perniciosos ludos ne cognoscunt quidem, (...) etc. [“não conhecem dados, nem este gênero de
jogos frívolos e perniciosos, (...) ”]
89
His adnumerant eos qui gemmis ac lapillis (ut dixi) capiuntur, (...). (168/12-13) [“Entre esses, como eu
disse, constam também os que se deixam levar por gemas ou pedras preciosas (...)”]
90
Voluptatum quas ueras fatentur, species diuersas faciunt. Siquidem alias animo, corpori alias tribuunt
(172/7-9) [“Dentre os prazeres que eles admitem como verdadeiros, identificam espécies diversas. Alguns
eles designamcomo próprios do espírito, outros, como próprios do corpo”].
91
Um fato também notado por Surtz, mas que não parece tê-lo surpreendido muito: “(...) for in spite of
the repeated emphasis laid upon these as the supreme pleasures, they merit no systematic and detailed
development as do the pleasures of the body” (Surtz, 1957, p. 62). “But, in his report of the Utopian
views on pleasure as the end of man, Hythloday has few words to say on the delights of the soul” (Surtz,
1957, p.63).
92
Amplectuntur ergo in primis animi uoluptates, (...) quarum potissimam partem censent ab exercitio
uirtutum bonaeque uitae conscientia proficisci (174/29-32) [“Estimam, portanto, os prazeres do espírito
em primeiro lugar (...), cuja parte principal pensam decorrer do exercício das virtudes e da consciência de
uma vida boa”].
93
Rever nota anterior.
94
“More (...) echoes the views of the Roman Stoics in regarding the highest mental pleasure as deriving
from virtuous action rather than from philosophic contemplation (…)” (Logan, 1983, p. 180).
277
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
que também a esperança de uma futura salvação (no sentido transcendental), pertence
ao momento de prazer do tipo espiritual”, é uma prova de que “nós não podemos
relacionar a doutrina moral dos utopianos com uma ética absolutamente autônoma e
humanista, mas com uma ética que tem bases religiosas”95, e classifica as fontes
espirituais da uoluptas96 “em motivos filosófico-teorico, ético-prático e claramente
religioso”97. As spes futuri boni [“esperanças nos bens por vir”] podem ser entendidas
neste sentido. Entretanto, é necessário pensar que não são estabelecidas relações com
uma inclinação divina, como acontece em outros pontos. Em vez disso, chama atenção a
dissociação do prazer estar em uma uita bene acta [“vida bem vivida”], ou seja, uita
bona [“vida boa”] no passado (3. memoria); no presente (4. conscientia) e no futuro (5.
spes futuri boni), estabelecendo claro paralelo com a ética epicurista. Justamente este
aspecto é levantado por Epicuro, em relação à preferência pelo prazer espiritual. Seu
benefício especifico98 é resultado da extensão da percepção, que tem o objetivo de
reduzir dores passadas e futuras e elevar o prazer99, como descreve Torquato em Cíc.,
De fin. 1, 55:
nec ob eam causam non multo maiores esse et voluptates et dolores animi quam
corporis, nam corpore nihil nisi praesens et quod adest sentire possumus, animo
autem et praeterita et futura, ut enim aeque doleamus animo, cum corpore dolemus,
fieri tamem permagna accessio potest, si aliquod aeternum et infinitum impendere
malum nobis opinemur.quod idem licet transferre in voluptatem, ut ea maior sit, si
nihil tale metuamus.
[“nem, por causa disso, deixam de ser muito maiores os prazeres e dores da alma do
que os do corpo. Pois com o corpo, nada podemos sentir senão o presente e o que está
próximo, já com a alma, tanto o que passou, quanto o que virá. Pois ainda que, ao
95
Erzgräber (1980) nota “daß zu den Lustmomenten seelischer Art auch die Hoffnung auf ein zukünftiges
Heil (im transzendenten Sinne) gehöre“, como uma prova “daß wir es bei der Sittenlehre der Utopier
nicht mit einer absolut autonomen, humanistischen Ethik zu tun haben, sondern mit einer Ethik, die auf
einer religiösen Basis ruht” (Erzgräber, 1980, p. 38).
96
Erzgräber observa aqui a presença dos seguintes componentes: “Die Quellen seelischen Wohlbefindens
sind nach ihrer Auffassung der kontemplative Schau des Wahren, das Bewußtseins stets ein gutes Leben
geführt zu haben, und die feste Hoffnung auf ein zukünftiges Heil” [“As fontes do bem estar espiritual
são, segundo o entendimento dos utopianos, a observação contemplativa da verdade, a consciência de se
ter levado uma boa vida e a esperança segura em uma savação futura”] (Erzgräber, 1980, p. 38).
97
“(...) philosophisch-theoretische, ethisch-praktische und eindeutig religiöse Motive” (Erzgräber, 1980,
p. 38).
98
Ver Müller, 1991, p. 76-77.
99
Por esta razão, Hossenfelder faz a distinção entre qualidade e quantidade de percepção: “[Der] Vorzug
[der geistigen Lust] besteht nicht darin, daß sie ein qualitativ höherwertiges Gefühl darstellte, sondern er
ist quantitativ begründet, denn der Geist ist, anders als die Sinnlichkeit, nicht auf die unmittelbar
gegenwärtigen Empfindungen eingeschränkt...“ [“A preferência (pelo prazer espiritual) não acontece
devido à produção de um sentimento qualitativamente maior, mas se justifica de modo quantitativo, pois a
alma não é, diferentemente da sensibilidade, limitada às sensações do presente”] (Hossenfelder, 1965, p.
109).
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
sofrermos com o corpo, igualmente sintamos dor na alma, pode, contudo, ocorrer um
acréscimo muito grande, caso algum mal eterno e infinito consideremos pairar sobre
nós. O que igualmente se pode transferir ao prazer: que tanto maior seja, caso não
temamos nada desse tipo.”]
As duas primeiras uoluptates animi referem-se à valorização que os utopianos
atribuem ao conhecimento adquirido a partir dos estudos do intelecto e sobre o ganho
do prazer (dulcedo) [“doçura”] que pode ser adquirido a partir deles. O conhecimento da
“verdade” também é, para Epicuro, meio eficiente para conquistar a eudaimonia100. Por
esta razão, os utopianos e epicuristas propõem a instrumentalização do saber 101. A
ausência de maior desenvolvimento desta ideia pode ser justificada pelo frequente
destaque da estima dos estudos do intelecto e da conquista de prazer (por exemplo,
128/2-12), mas o texto carece de explicações argumentativas, ao contrário daquelas a
respeito dos prazeres corporais.
Também as uoluptates corporis são divididas pelos utopianos em dois grupos:
1. Uma sensação agradável que flui pelos sentidos (prima sit ea, quae sensum perspicua
suauitate perfundit, 172/13-14) [“primeiramente há este (prazer), que inunda os sentidos
com uma nítida suavidade”]; 2. Um estado do corpo marcado pela tranquilidade e pela
estabilidade (Alteram corporae uoluptatis formam, eam uolunt esse, quae in quieto,
atque aequabili corporis statu consistat; 172/23-25) [“Outra forma de prazer corporal
querem que seja esta, que consiste em um estado de quietude e tranquilidade docorpo”]
e, em decorrência disso, chamado simplesmente de“saúde”102 (id est nimirum sua
cuiusque nullo interpellata malo sanitas; 172/25-26) [“é certamente isso: a saúde de
cada um por nada de ruim prejudicada”]. Em seguida, a saúde será considerada o mais
elevado prazer corporal (Earum uoluptatum quas corpus suggerit palmam sanitati
deferunt, 174/32-176/1) [“Dentre os prazeres que o corpo proporciona, conferem a
palma à saúde”]. Podemos perceber que os utopianos constroem uma hierarquia em
todos os âmbitos relevantes de sua filosofia. Como nota Logan, é encontrada uma
hierarquia semelhante na Ética a Nicômaco103 de Aristóteles, que também concorda
100
Ver Diog. Laert. 10, 132 e Cíc., De fin.1, 43. Rever notas 34 e 76.
Que o saber, segundo Epicuro, não seja um valor, mas esteja em função de uma vida sem medo e de
uma vida livre, é conclusão tirada de KD 11 e 18, e também de GV 27. “(...) Bei der Philosophie dagegen
ist die Erkenntnis unmittelbar von Freude begleitet. Denn der Genuß folgt nicht erst nach dem Lernen,
sondern Lernen und Genuß gleichzeitig” [“Na filosofia, ao contrário, a descoberta é iminente à alegria.
Pois o prazer não sucede o estudo, mas estudo e prazer são simultâneos”] (Müller, 1991, p. 76).
102
“This second, of course, is nothing else than physical health” (Surtz, 1957, 63).
103
“Finally, More derives from Plato and Aristotle the important idea that the various pleasures can be
ranked; (…)”, Logan, 1983, p. 170; “Aristotle constructs a similar hierarchy of pleasures” (Logan, 1983,
p. 172; ver Arist., Ét. a Nic. 1175b-1177a).
101
279
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
claramente com a avaliação de Epicuro na valorização maior dos prazeres espirituais.
Uma hierarquização dos bens corporais precisa estar associada à classificação dos
prazeres nas categorias catastemática e cinética, o que ainda será explicado.
O primeiro tipo de percepção do prazer se baseia na sensibilidade sensorial
especificamente na provisão de matérias elementares, como alimento e água (quod alias
earum instauratione partium fit, quas insitus nobis calor exhauserit. Nam hae cibo
potuque redduntur, [...] [172/14-16]) [“que muitas vezes age no revigoramento
daquelas partes que o calor em nós sediado exauriu. Pois são restauradas pela comida e
pela bebida (...)”] ou na eliminação de matérias igualmente elementares, como
excrementos, fluidos seminais ou escamas superficiais e cutâneas ([...] alias dum
egeruntur illa, quorum copia corpus exuberat. haec suggeritur, dum excrementis
intestina purgamus, aut opera liberis datur, aut ullius prurigo partis frictu scalptuue
lenitur, 172/16-19) [“outras vezes quando são expelidas aquelas coisas que o corpo
produz em abundância, ele (o prazer) é produzido quando purgamos do intestino os
excrementos, ou quando se fazem filhos, ou ainda se alivia, friccionando ou coçando,
um comichão em qualquer parte”], ou ainda, no estímulo sensorial, sem que haja
necessidade vital como, por exemplo, ouvir música (caeterumquae sensus nostros
tamen ui quadam occulta, sed illustri motu titillet afficiatque, & in se conuertat, qualis
ex musica nascitur, 172/21-23) [“porém algo que titila, afeta e atrai os nossos sentidos
por uma força oculta, mas perceptível pela comoção que provoca – tal como o que brota
da música”]. A fim de prevenir a ideia de que os (profanos) “prazeres” trazem mais
benefícios, e sejam, portanto, melhores104, os utopianos acentuam que os verdadeiros
prazeres não devem ser apenas por si só desejáveis, mas devem ser valorizados, porque
beneficiam a saúde: Nam edendi, bibendique suauitatem, & quicquid eandem
oblectamenti rationem habet, appetenda quidem, sed non nisi sanitatis gratia statuunt.
Neque enim per se iucunda esse talia, sed quatenus aduersae ualitudini clanculum
surrepenti resistunt (176/1-4) [“Pois estatuem ser mesmo desejável a delícia de comer e
beber, ou algum deleite de mesmo teor, mas tão somente por motivo de saúde. Tais
coisas não são por si agradáveis, mas enquanto resistem secretamente ao avanço da má
104
(…) ita hoc quoque uoluptatis genere non egere quam deliniri praestiterit, quo uoluptatis genere si
quisquam se beatum putet, is necesse est fateatur, se tum demum fore felicissimum, si ea uita contigerit,
quae in perpetua fame, siti, pruritu, esu, potatione, scalptu, frictuque, traducatur: quae quam non foeda
solum, sed misera etiam sit, quis non uidet? (176/7-12) [“(...) assim, seria preferível não carecer desse
gênero de prazeres, mas ser por ele abrandado. Se alguém se imagina feliz devido a esse gênero de
prazeres, é preciso que admita que, se consideraria completamente feliz somente caso vivesse essa vida, a
transcorrida em perpétua fome, sede, comichão, comendo, bebendo, se coçando e esfregando: essas
coisas, quem não as vê como não só indignas, mas também deploráveis?”].
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
280
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
saúde”]. A saúde (sanitas ou ualetudo) é, para maioria dos utopistas, base para uma vida
feliz (nihilo tamen secius multi eam statuunt uoluptatum maximam, omnes fere
Vtopienses magnam & uelut fundamentum omnium ac basim fatentur, [...] [172/29-31])
[“muitos, entretanto, consideram-na o maior dos prazeres. Quase todos os utopianos
têm-na por mais importante e como que fundamento e base de tudo”], mesmo sem a
excitação de prazeres sensoriais exteriores: Haec siquidem, (...), per se ipsa delectat,
etiam si nulla extrinsecus adhibita uoluptate moueatur. Quamquam enim sese minus
effert, minusque offert sensui, quam tumida illa edendi bibendique libido,(...) (172/2629) [“Ela (a saúde) deleita por si mesma, ainda que o prazer não seja motivado por nada
vindo de fora, mesmo queapareça menos e transpareça menos aos sentidos do que a
inflamada vontade de comer e beber.”]. Aqui, um prazer da circunstância (corporeae
uoluptatis formam (...), corporis statu consistat [“forma de prazer corporal (...) que
consiste em um estado do corpo”]) é evidente, caracterizado pela tranquilidade (in
quieto, atque aequalibi [“na quietude e tranquilidade”]) e delimitado pela indução por
movimento de um prazer (sensorial) (nulla (...) uoluptate moueatur [“o prazer não seja
motivado por nada”]). Ao mesmo tempo, é acentuado que um “prazer em movimento”
não é necessário para a percepção do prazer circunstancial (per se ipsa delectat [“deleita
por si mesma”]). Em decorrência disso, concluímos que há uma menor valorização dos
prazeres sensoriais (em toda a hierarquia, estes prazeres se encontram na posição mais
baixa) perante a valorização do estado de saúde do corpo e de sua necessária ligação
com a “dor”105: Infimae profecto omnium hae uoluptates sunt, ut minime syncerae,
neque enim unquam subeunt, nisi contrarijs coniunctae doloribus. Nempe cum edendi
uoluptate copulatur esuries (...) (176/12-15) [“Esses prazeres são, sem dúvida, os mais
ínfimos de todos, pois são minimamente puros, já que nunca ocorrem, a não ser na
conjunção com as dores que lhes são contrárias. De fato, o prazer de comer se conjuga à
fome (...)”]. Além disso, a fome termina justamente após a ingestão de alimentos, e
prolonga-se por mais tempo, visto que ela começa antes ainda do prazer da ingestão de
alimentos: ita longior quoque dolor est. quippe & ante uoluptatem nascitur (176/16)
[“do mesmo modo, também a dor é mais duradoura, uma vez que também ela nasce
antes do prazer”]. Portanto, o procedimento, por exemplo, da alimentação (como
também da ingestão de bebida e recebimento de calor) envolve dois movimentos
simultâneos: 1. A redução da dor, antes causada pela fome; 2. O crescimento do
105
Logan (1983, p.171-172) reconduz esta definição diretamente a Platão, Philebos 46c-d. De fato, em
Philebos 46d também é desenvolvido o exemplo do comichão, utilizado também por Morus.
281
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
sentimento de prazer através da ingestão do alimento. Os utopianos comparam este
procedimento à imagem da luta106: Praeterea dum uescimur, inquiunt, quid aliud quam
sanitas quae labefactari coeperat, aduersus esuriem (cibo commilitone) depugnat, in
qua dum paulatim inualescit, ille ipse profectus ad solitum uigorem suggerit illam, qua
sic reficimur, uoluptatem (174/17-20) [“Além do mais, que é comer a não ser, dizem, o
momento em que a saúde começa a enfraquecer-se, lutar contra a fome (a comida por
companheira de batalha)? Enquanto paulatinamente a pessoa se fortalece e, recuperado
o consueto vigor, aquele prazer, que assim restauramos, ressurge.”]. No instante da
sensação de saciedade, extingue-se a dor e também a vontade de ingerir alimentos:
dolor (...) nisi uoluptate una commoriente, non extinguitur. (176/16-17) [“a dor (...) não
é extinta a não ser que o prazer morra com ela.”]. O estado então atingido é, contudo,
definido como uoluptas, e os utopianos parecem diferenciar o prazer advindo da
ingestão do alimento do prazer decorrente do estado de saúde do corpo. Esta
diferenciação só pode ser entendida, se contempladas as distinções feitas na
Antiguidade entre o prazer catastemático e o prazer cinético107. Portando, poderíamos
identificar o prazer da ingestão de alimentos dos utopianos com o prazer cinético, que
após a satisfação da fome, transforma-se em prazer catastemático108. Essa diferença só
pode ser compreendida caso se tenha em mente a distinção, encontrada nos antigos,
entre “prazer do estado” e “prazer em movimento”. Só seria possível dizer que o prazer
da ingestão de alimentos, entre os utopianos, deve ser identificado com o prazer
cinético, que após a eliminação da fome se converte em prazer catastemático. A
diferenciação (não apenas devido à ausência da terminologia) não é exposta no texto de
106
Uma simbolização da luta é encontrada também em outros momentos: os utopianos conhecem apenas
dois jogos, dentre eles, a luta dos vícios contra as virtudes: duos habent in usu ludos, (...). Alterum in quo
collata acie cum uirtutibus uitia confligunt (128/18-21) [“praticam dois jogos, (...). O outro, no qual os
vícios lutam dispondo-se em batalha contra as virtudes” ].
107
Ver comentário de Müller a respeito do “prazer estático”epicurista: “Die physischen Grundbedürfnisse
entstehen durch den Substanzverlust, den der Körper durch den natürlichen Lebensprozeß erleidet. Durch
die Nahrungsaufnahme wird der durch Mangel bedingte körperliche Schmerz beseitigt und der
Normalzustand wiederhergestellt. Denn dann entstehenden Status körperlicher Intaktheit nennt Epikur
‘katastematische‘ Lust, d.h. Lust des Zustands” [“As necessidades fisiológicas básicas são consequência
da perda de substâncias que o corpo sofre pelo processo natural da vida. Através da ingestão de alimentos,
a necessidade de um corpo é suprida, a dor é eliminada e o estado normal é reestabelecido. O então status
estabelecido de intatilidade corporal é chamado por Epicuro de prazer ‘catastemático’, ou seja, prazer do
estado”] (Müller 1991, p. 64-65). Naturalmente, o prazer catastemático preserva a condição do espírito,
que deve ser livre de perturbações e tumulto (ver Forschner, 1993, p. 37).
108
Ver Müller, 1991, p.66.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
282
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
modo claro, mas possivelmente devido à falta de transparência já presente na origem
antiga desta diferenciação109.
Neste contexto, podemos entender a argumentação dos utopianos que considera
o estado de saúde conquistado um prazer: Sanitas ergo quae in conflictu laetatur,
eadem non gaudebit adepta uictoriam? Sed pristinum robur, quod solum toto conflictu
petiuerat, tandem feliciter assecuta, protinus obstupescet? nec bona sua cognoscet
atque amplexabitur? (174/20-24) [“A saúde, portanto, que se alegra com o embate, não
folgaria igualmente por ter obtido a vitória? Mas a robustez, outrora único objeto de
todo o embate, por fim felizmente adquirida, agora entorpecerá? Não a reconhecerá e
aceitará como um bem seu?”]. Esta apologia da imagem da luta só adquire sentido,
quando pensamos também no seu contra-argumento, ou seja, o fato de que o prazer só
vale quando intrínseco ao “movimento”110. Esta questão é discutida pelos utopianos,
como relata Hitlodeu, e a conclusão é favorável à opinião dominante já referida:
Iamdudum explosum est apud eos decretum illorum, qui stabilem & tranquillam
sanitatem (nam haec quoque quaestio gnauiter apud eos agitata est) ideo non
habendam pro uoluptate censebant, quod praesentem non posse dicerent, nisi motu
109
Os documentos a respeito dos dois tipos diferentes de prazer não são completamente claros, as
inclinações diversas propagaram o prazer catastemático da alimentação identificando-o com o prazer
cinético (ver Müller, 1991, p. 66). Assim parece também definir Forschner, que define o prazer cinético
como “processo da suspensão de um estado de necessidade-dolorosa, que ocorre devido ao cumprimento
das necessidades referidas“ [“Prozeβ der Aufhebung eines bedürftig-schmerzhaften Zustandes begleitet
und das mit der Erfüllung des entsprechenden Begehrens endet”], Forschner, 1993, p. 38. De modo
semelhante define Hossenfelder: “Lust ist demnach der Übergang vom Zustand der Unlust in den der
Unlustfreiheit, sie ist eine Kinesis, eine Bewegung oder Veränderung” [“Prazer é, portanto, a passagem
do estado de dor para o estado de liberdade da dor, é uma cinesia, um movimento ou mudança”],
Hossenfelder, 1965, p. 106. KD 18 e Cíc., De fin. 1, 38 parecem, contudo, sugerir que o prazer cinético é
uma variação do prazer catastemático, e que aquele se apresenta após a ocorrência deste, e deste modo
deve ser entendido. Também a representação de Lucrécio em De rer nat. 4, 615-25 não traz conclusões
claras, pois trata de um caso especial (ver Müller, 1991, p. 67-69). O fato de se tratar de uma questão
complicada já havia sido notado na Antiguidade. Prova disso é a crítica de Cícero in De fin. 2, 10 e 2, 75
(também referida por Rosenbaum, 1992, p. 24-25). Por esta razão, é necessário analisar como Morus
desejou interpretar o problema. Obviamente permanece, contudo, a oposição entre um “prazer estático” e
um “prazer cinético”. A orientação para ambas as categorias tem significado central na ética de Epicuro.
110
Logan nota que Platão, em Philebos,“several times denies the mere absence of pain can be regarded as
a pleasure, on the ground that pleasure must involve motion. (32E-22B; 24C-44B; 51A; 54B-55Am; …)”
(Logan, 1983, p. 169). Esta também era a opinião de Aristipo e Diógenes Laércio 2, 89: “Denn die
Bedingung für beide sei Bewegung” [“Pois a condição de ambos é o movimento”]. Logan introduz a
possibilidade de que as opiniões opostas dos utopianos possam se referir ao ensinamento epicurista.
Contudo, esta é apenas uma suposição, pois a afirmação é apresentada como uma vaga possibilidade.
(Ver Logan, 1983, p. 170; rever nota 42). Seu argumento “Cicero himself refuses to grant that freedom
from pain is a pleasure” não é concreto, pois Logan reconhece que Cícero, em De fin. 2, 9-10, faz crítica
ao ensinamento de Epicuro. Epicuro afirma que a liberdade da dor é o mais alto prazer possível de ser
alcançado (KD 3 e Cíc., De fin. 1, 38: cum omni dolore careret, non modo voluptatem esse,verum etiam
summam voluptatem), assim como Platão e a escola hedonista de Aristipo (ver Diog. Laert. v.a. 2,86b93a).
283
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
quopiam extrario sentiri. Verum contra nunc in hoc prope uniuersi conspirant,
sanitatem uel in primis uoluptati esse (174/5-9).
[“Há muito foi rejeitado entre eles o decreto daqueles que pensavam que uma saúde
estável e tranquila (pois essa questão também foi diligentemente discutida entre eles)
por essa razão não seria tida por um prazer, porque sua presença não pode, diziam, ser
sentida a não ser por um movimento vindo de fora. Mas agora, na verdade,
contrariamente, quase concordam por unanimidade:a saúde, de fato, é a principal
causa do prazer.”]
O fato de que a saúde é equivalente ao prazer baseia-se na seguinte
argumentação: o contrário da saúde é a doença (morbus), inseparável da dor; dor é, por
sua vez, o contrário do prazer; e, por conseguinte, a libertação da dor corresponde ao
prazer e à saúde: Etenim quum in morbo, inquiunt, dolor sit, qui uoluptati inplacabilis
hostis est, non aliter, ac sanitati morbus, quid ni uicissim insit sanitatis tranquillitati
uoluptas? (174/9-11)111 (...) efficitur, ut quibus immota sanitas adest his uoluptas
abesse non possit. (174/15-16) [“Porquanto como na doença, dizem, há dor, que é o
inimigo implacável do prazer não menos que a doença o é para a saúde – por que o
prazer não residiria, por sua vez, na tranquilidade da saúde? (...) resulta que àqueles a
quem a saúde se apresenta imutável, o prazer não pode ausentar-se”]. A argumentação
se conclui em si mesma e corresponde à máxima epicurista que identifica a libertação da
dor com o prazer circunstancial112. Uma circunstância intermediária, ou seja, uma
mistura de dor e prazer113, não parece estar prevista no sistema utópico ou no sistema
epicurista114.
Epicuro é acusado de ter definido o bem maior, precisamente a libertação da
dor, de modo exclusivamente negativo115. Os utopianos parecem combater exatamente
esta acusação, pois consideram absurda (id uero (...) procul a uero [174/24-25] [“isso,
na verdade (...) está longe da verdade”]) a ideia que a saúde não possa ser algo
diretamente sentido: Nam quod non sentiri sanitas dicta est (...) (174/24-25) [“Pois o
que se diz a respeito de a saúde não ser sentida (...)”]. Em decorrência disso, há a
recusa, por um lado, da afirmação de que somente pudesse ser sentido o prazer em
conexão com o movimento como tal116. Por outro lado, contudo, a até então considerada
111
Ver Surtz, 1957, 67.
Ver KD 3; Cíc., De fin 1, 38 (rever nota 110).
113
É específico do ensinamento epicurista, em oposição aos cirenaicos (ver Diog. Laert. 2, 90) ou Platão
(ver. v.a. Philebos 46a-48c), que não existe a condição mediana (ver Müller, 1991, p. 55-56)
114
Ver Surtz, 1957, p. 66-67.
115
Como também o peripatético Hieronymus von Rhodos: cf. fr. 8 (et passim) Wehrli; ver Müller 1991,
p. 56; Hossenfelder, 1995, p. 105-106; Rosenbaum, 1992, p.22.
116
Ver também Surtz, 1967, p. 66.
112
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
284
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
identificação entre saúde e libertação da dor, bem como a afirmação de que a libertação
da dor significa, em si, prazer, é suspensa: Nam dolore prorsusuacare, nisi adsit
sanitas, stuporem certe non uoluptatem uocant. (174/1-3)117 [“Pois ao fato de estar
completamente livre de dor sem que haja saúde, eles chamam estupor, certamente não
prazer.”]. A ideia de que a pura ausência da dor não pode ser equiparada ao prazer, mas
corresponde a um tipo de “estado de semiconsciência”, é ponto de vista de Aristipo,
segundo Diógenes Laércio: “Pois a condição para ambos é o movimento, uma condição
que não se refere à ausência de dor ou à ausência de prazer, pois a ausência de dor é
condição da suspensão da percepção, como ocorre no sono”118. Também para os
utopianos não é a mera ausência de dor que significa o estado de completa saúde e,
assim sendo, tampouco corresponde ao prazer, mas ao “estado de semiconsciência”
(stupor) e, por assim dizer, negativo. Considerando a imagem do sono de Aristipo,
podemos entender melhor a identificação dos utopianos entre saúde e prazer:
Quis enim uigilans, inquiunt sanum esse se non sentit, nisi qui non est? quemne
tantus, aut stupor, aut lethargus adstringit, ut sanitatem non iucundam sibi fateatur ac
delectabilem? at delectatio quid aliud quam alio nomine uoluptas est? (174/25-29).
[“Quem, acordado, perguntam, não sente que está são, a não ser quem não está?
Quem, constrangido por tamanho estupor ou letargia, não admitiria para si que a saúde
é prazerosa e deleitável? Por outra parte, o deleite, que outra coisa é senão um outro
nome para o prazer?”]
Contudo, para Epicuro, a completa libertação da dor é o mais elevado prazer e
não pode ser superado na hierarquia119. Os utopianos parecem, então, desviar-se um
pouco disso, embora fique indeterminado como a sanitas realmente se caracteriza em
oposição à libertação da dor120.
A seguinte passagem da ética sublinha a demanda ditada pela natureza das já
referidas necessidades, cujas satisfações também são fornecidas aos homens pela
natureza:
117
Que a saúde não se caracteriza pela ausência de dor já havia sido constatado anteriormente: id est
nimirum sua cuiusque nullo interpellata malo sanitas. Haec siquidem, si nihil eam doloris oppugnet, per
se ipsa delectat, (...) (172/25-27) [“isto é, cuja saúde não é prejudicada por nada de ruim, visto que ela, se
nenhuma dor a ataca, deleita por si mesma, (...)”].
118
“Denn die Bedingung für beide sei Bewegung, eine Bedingung, die weder auf die Schmerzlosigkeit
noch auf die Lustlosigkeit zutreffe, denn die Schmerzlosigkeit sei ein Zustand der Empfindungslosigkeit
wie im Schlafe.”(Diógenes Laércio 2, 89) .
119
Cíc., De fin.1, 38 (rever nota 110).
120
Embora a saúde tenha sido definida anteriormente como quietus atque aequabilis status corporis, não
é explícita a sua pura libertação da dor. Esta falta de clareza inserida no sistema filosófico permanece.
Surtz e Logan tratam intensivamente da ética epicurista e preterem este problema.
285
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Gaudent tamen etiam his, gratique agnoscunt naturae parentis indulgentiam, quae
foetus suos ad id quod necessitatis causa tam assidue faciundum erat, etiam
blandissima suauitate pelliceat. (176/19-22)
[“Gozam até mesmo destes (prazeres), e reconhecem com gratidão a bondade da mãe
natureza, que induz seus filhos com brandíssima suavidade àquilo que, por causa da
necessidade, tão assiduamente deve ser feito.”]
Também Platão, n’A República (558d-559b), registra a diferenciação
estabelecida por Sócrates entre os desejos necessários e os não-necessários, e destaca o
apetite por alimentos fundamentais, como o pão, para a sobrevivência, como
necessidade indispensável e útil. A relação entre naturalidade e necessidade se encontra
em Epicuro, para quem ela é a categoria central, a partir da qual se dividem as
necessidades:
Genus possuit earum cupiditatum, quae essent et naturales et necessariae, alterum,
quae naturales essent nec tamen necessariae, tertium, quae nec naturales nec
necessariae (Cíc., De fin. 1,45).
[“Que propôs um gênero de desejos que seriam naturais e necessários; outro, os que
seriam naturais, mas não necessários; e um terceiro, os que não seriam nem naturais,
nem necessários.”]
Que a satisfação de necessidades elementares, isto é, naturais e necessárias,
como alimento, água e calor, está ligada ao prazer, é, para Epicuro, uma condição
fundamental121.
Estes desejos elementares são descritos pelos utopianos como cotidiani morbi
[“aflições do cotidiano”], que precisam ser continuamente satisfeitos, todos os dias. Se
não estivessem ligados ao prazer, o comer e beber diários se tornariam uma medicina
amarga que, diariamente, o homem teria que suportar. (Quanto enim in tedio uiuendum
erat, si ut caeterae aegritudines quae nos infestant rarius, ita hij quoque cotidiani famis
ac sitis morbi, uenenis ac pharmacis amaris essent abigendi? 176/22-24) [“Com quanto
desconforto viveríamos se, assim como as doenças que mais raramente nos acometem, a
fome e a sede, essas aflições de cada dia, também precisarem ser aplacadas com drogas
e fármacos amargos?]. Em decorrência disso, a percepção do prazer nestas elementares
121
Surtz constrói relações entre textos exteriores à Antiguidade Clássica: “The truth that nature has
surrounded man’s necessary vital functions with pleasure in order to induce him to perform them has
often found expression in philosophical literature” (Surtz, 1957, p. 71). O autor, por exemplo, analisa De
civitate Dei de Santo Agostinho e De voluptate de Ficino, e constata: “The similarity of the doctrine in
these selections to that in the Utopia is so evident as to need no comment” (Surtz, 1957, p. 72).
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
286
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
satisfações das necessidades é justificada122; e a satisfação além da necessária é rejeitada
pelos utopianos: Huiusmodi ergo uoluptates, nisi quatenus expetit necessitas, haud
magni habendas putant. (176/17-19) [“Pensam que deste modo, portanto, os prazeres, a
não ser caso a necessidade urja, não devem ser tidos em alta conta.”] A afirmação
também pode ser entendida no sentido epicurista, pois se esforça na demarcação de sua
doutrina contrariamente a outras doutrinas hedonistas: “Ao colocarmos o prazer como
objetivo final, não nos referimos aos prazeres de um glutão (...). Pois a vida de prazeres
não se caracteriza pelas sessões de bebidas, pelos desfiles divertidos, pelo
relacionamento entre belos moços e belas moças, nem pelo gozo por peixes e outras
maravilhas disponíveis num faustoso cardápio” (Diog. Laert. 10, 131-132)123. Epicuro
viu satisfeito o maior prazer na supressão da dor (no caso, da fome).
A respeito da saúde e dos meios para mantê-la, os utopianos consideram a
beleza corporal, a força corporal e a mobilidade como presentes dados ao homem pela
natureza e que são, ao mesmo tempo, agradáveis: At formam, uires, agilitatem, haec ut
propria, incundaque naturae dona libenter fouent. (176/24-26) [“Mas a forma, a força,
a agilidade, eles cultivam de bom grado, como sendo dons agradáveis e próprios da
natureza.”] A eles acrescentam ainda os estímulos visuais, olfativos e auditivos da
percepção sensorial (Quineas quoque uoluptates, quae per aures, oculos, ac nares
admittuntur; 176/26-27) [“E também estes prazeres que entram pelos ouvidos, olhos e
narinas”], como a beleza do meio ambiente, cheiros agradáveis ou música124. Estes
elementos destacam-se portanto, em sua qualidade, das outras necessidades (baixas),
pois são, por natureza, própiros somente ao ser humano (quas natura proprias ac
122
A valorização da refeição e sua consideração como prazer (mesmo que pequeno) se refere ao
significado que a alimentação tem na vida social dos utopianos, que é uma cerimônia: o toque de uma
trombeta os chama para comer (aeneae tubae clangore commonefacta; 140/18) [“(os sifograntes são)
convocados pelo toque de uma trombeta de bronze”]; a posição ordenada à mesa e a sequência da
distribuição dos alimentos segue regras rigorosas e pré-estabelecidas (ver 140/26-144/14); as refeições
são ricas (lautum atque opiparum praesto apud aulam [140/25]) [“lauta e suntuosa (refeição) está à
disposição no salão”]; e também é servida sobremesa (nec ullis caret secunda mensa bellarijs [144/1718]) [“nem a sobremesa carece de quaisquer guloseimas” ].
123
“Wenn wir also die Lust als das Endziel hinstellen, so meinen wir damit nicht die Lüste der
Schlemmer, (...). Denn nicht Trinkgelage mit daran sich anschlieβenden tollen Umzügen machen das
lustvolle Leben aus, auch nicht der Umgang mit schönen Knaben und Weibern, auch nicht der Genuβ von
Fischen und sonstigen Herrlichkeiten, die eine prunkvolle Tafel bietet (...)“. O procedimento é finalizado
com uma variação do cálculo do prazer: “(...) eine nüchterne Verständigkeit, die sorgfältig den Gründen
für Wählen und Meiden in jedem Falle nachgeht(...)“ [(...) uma sensatez sóbria, que segue
cuidadosamente as bases da escolha e do evitamento (...)]. Diog. Laert. 10,132. Também o Sócrates
platônico recusa a vontade que vai além das simples refeições; vontade submetida à educação adequada.
(Ver Platão, A República 559b).
124
mundi formam pulchritudinemque (...); aut odorum (...); consonas inter se discordesque sonorum
distantias internoscit (176/29-32) [“a forma e a beleza do mundo (...); e dos odores (...); distingue
intervalos harmônicos e desarmônicos dos sons”].
287
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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peculiares esse homini uoluit; 176/27-28) [“(prazeres) cuja natureza quer ser própria e
peculiar ao homem”], e o caracteriza em oposição aos animais (neque enim aliud
animantium genus; 176/28) [“nenhum outro gênero de seres vivos”] Os prazeres
olfativos e auditivos mencionados neste capítulo aparecem em diferentes âmbitos da
vida dos utopianos: durante suas refeições soa música (Nulla coena sine musica
transigitur; 144/16-17) [“Nenhum jantar transcorre sem música”], e sentem-se
perfumes agradáveis (odores incendunt, & unguenta spargunt, 144/18-19) [“queimam
incensos e espargem perfumes”], a fim de promover o summum bonum, a uoluptas:
nihilque non faciunt quod exhilarare convivas possit (144/19-20) [“e não deixam de
fazer nada que possa alegrar os convivas”]. Também aqui se encontra referência ao
princípio do cálculo hedonista do prazer: sunt enim hanc in partem aliquanto
procliuiores, ut nullum uoluptatis genus (ex quo nihil sequatur incommodi) censeat
interdictum (144/20-23) [“quanto a isso são em grande parte mais inclinados a pensar
que nenhum gênero de prazer (do qual nenhum prejuízo decorra) está proibido”]. As
uoluptates aqui mencionadas são bonae atque honestae, pois promovem prazer aos
indivíduos, mas em nenhum momento prejudicam ao próximo, correspondendo, deste
modo, à máxima epicurista. Estes prazeres sensoriais também estão presentes nas
cerimônias religiosas: Thus incendunt & alia item odoramenta, ad haec cereos
numerosos praeferunt (...) hijs odoribus luminibusque (...) sentiunt homines erigi (...)
(234/10-15); tum laudes deo canunt, quas musicis instrumentis inserstringunt (234/3031) [“Queimam incenso e outras substâncias odoríferas, e oferecem numerosas velas
(...) por meio dos odores e luzes (...) os homens sentem-se elevados (...); então cantam
louvores a Deus, os quais acompanham com instrumentos musicais”].
A seguinte hierarquia dos prazeres corporais dos utopianos é estabelecida por
Surtz125:
1.
Saúde (sanitas)
2.
Beleza (forma), força (uis), agilidade (agilis)
3.
Prazeres sensoriais visuais, olfativos e auditivos
4.
Ingestão de alimentos, excreção, alívio do prurido, sexualidade.
Ao final desta passagem, Hitlodeu formula novamente o princípio fundamental
dos utopianos: todas as referidas percepções de prazer dos indivíduos devem garantir o
125
Ver Surtz, 1957, p. 73.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
288
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
bom funcionamento da comunidade: In omnibus autem hunc habent modum ne maiorem
minor impediat, neu dolorem aliquando uoluptas pariat, quod necessario sequi censent,
si inhonesta sit. (176/32-35) [“Em tudo, porém, têm este limite: que o menor não
impeça o maior, nem, em nenhum momento, do prazer nasça dor, a qual julgam
necessariamente seguir-se, caso seja desonesto o prazer.”] Esta ideia corresponde
claramente ao cálculo epicurista do prazer, que (como vimos)126 foi formulado diversas
vezes na apresentação da ética utópica. Como os utopianos defendem como ética o que
é orientado pela vantagem, eles consideram banais os comportamentos que se opõem
aos já referidos prazeres corporais: At certe formae decus contemnere: uires deterere,
agilitatem in pigritiam uertere, corpus exhaurire ieiunijs, sanitati iniuriam facere: &
caetera naturae blandimenta respuere: (...) hoc uero putant esse dementissimum, (...)
(176/35-178/7) [“Mas desprezar a beleza da forma, minar as forças, transformar
agilidade em preguiça, exaurir o corpo com jejuns, fazer mal à saúde e rejeitar outros
favores da natureza: (...) isso, pensam ser de fato muito insensato, (...)”], e “virtude
vazia” (alioquin ob inanem uirtutis umbram nullius bono; 178/4-5) [“por outro lado,em
vista de uma inane sombra de virtude nada é bom”], quando de tal comportamento não
se possa resultar qualquer utilidade para a comunidade ou para seus membros (nisi quis
haec sua commoda negligat, dum aliorum publicamue ardentius procurat; 178/2-3) [“a
não ser que alguém negligencie essas suas vantagens, enquanto cuida com mais
empenho dos outros ou do público”] ou esperar uma recompensa de Deus, que através
de um prazer maior compense o desgosto e privação (cuius laboris uice maiorem a deo
uoluptatem expectet; 178/4)127 [“em troca desses sofrimentos, espera de Deus um prazer
maior”]. Isso implica que eles estariam em tal caso permitindo uma abdicação do
próprio prazer
128
. Em contrapartida, todo o restante é compreendido como “crueldade
126
Ver Logan (1983): “But since the Utopians prove that officia equal utilia equal [true] pleasures, the
Epicurean criteria for choosing between competing pleasures become the general principles needed for
the solution of Cicero’s problems” (Logan, 1983, p. 180). Logan deseja se referir à discussão do utile e
dos officia presente em De officiis de Cícero.
127
A passagem lembra fortemente a declarada rejeição dos caminhos que negam os prazeres e o início da
ética: Nam uirtutem asperam, ac difficilem sequi, ac non abigere modo suauitatem uitae, sed dolorem
etiam sponte perpeti, cuius nullum expectes fructum (...) id uero dementissimum ferunt. (162/10-15)
[“Pois seguir a áspera e difícil virtude e não apenas abandonar a brandura da vida, mas até mesmo
voluntariamente padecer de dor, da qual nenhum recompensa se possa esperar (…), isso com toda certeza
consideram muita insensatez.”]
128
Ver Surtz (1957): “If the man neglects his own interests in order to look after the interests of his
neighbors and his country with a view to receiving greater pleasure (uoluptas) from God in compensation
for his pains, he acts reasonably – and all is well” (Surtz, 1957, p. 74).
289
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
em relação à própria pessoa” e “ingratidão para com a natureza”129. O sentimento de
gratidão à natureza é de grande importância para os utopianos e se encontra também no
pensamento de Epicuro130. A gratidão nasce da segura consciência de que a natureza
satisfaz os anseios naturais e necessários do homem131 e, deste modo, exerce importante
contribuição para conquista da eudaimonia. Todo o capítulo sobre a ética é constituído
partindo-se do princípio de que o homem deve ser agradecido à natureza: (...) naturam
(...): cui tanquam debere quicquam dedignetur; omnibus eius beneficijs renunciat
(178/8-9)132 [“(...) aquele que não não reconhece dever algo à natureza renuncia a todos
os seus benefícios”].
Naturalmente, a consideração da sanidade do corpo como um elevado bem não
é apenas epicurista, mas se encontra também, por exemplo, em Platão133. Segundo
Epicuro, no entanto, a integridade do corpo é um bem fundamental para a conquista da
eudaimonia134, embora a sabedoria epicurista resida em, pela força do seu
espírito, fazer-se tão independente de um estado corporal que as dores corporais não
exerçam influência sobre seu prazer135. Os estoicos, por outro lado, valorizam
exclusivamente os prazeres espirituais, considerando os interesses corporais
adiáforas136. O fato de a ética dos utopianos ceder tanto espaço para discutir os
interesses corporais (elementares) somente pode ser explicado por sua fundamentação
em Epicuro.
129
animique & in se crudelis: & erga naturam ingratissimi (…) (178/7-8) [“e um espírito não apenas
cruel para consigo mesmo como também muito ingrato para com a natureza”].
130
Ver Fr. 469 Us.: publicado por Stobaeus, Florilegium 17, 23.
131
Ver Diog. Laert. 10, 130.
132
A ideia de que a natureza prepara tudo o que é necessário também é apresentada em outro momento:
quin contra, uelut parens [i.e. natura] indulgentissima optima quaeque in propatulo posuerit, ut aerem,
aquam, ac tellurem ipsam, longissime uero uana ac nihil profutura semouerit. (150/23-26) [“Por outro
lado, tal como a mais indulgente e boa mãe, ela colocou à vista ar, água e a própria terra, mas afastou para
muito longe as coisas vãs e em nada avantajosas.”]
133
Ver Surtz, 1957, p. 64; e em oposição, ver Logan (1983): “As for bodily pleasures, the Utopians
disagree with Plato in that ‘they give the palm to health’” (Logan, 1983, p. 171).
134
Ver Diog. Laert. 10, 128: 10, 131 e a síntese de Sen., Ep. 66, 45 (rever nota 43).
135
Ver Cíc., De fin.1, 62.
136
“But the main reason for the Stoic sage’s imperturbability lies in his complete indifference to
everything bodily or external (…)”, Striker, 1990, p. 101; “Daraus ergab sich, daß (…) weder (…) noch
die körperlichen Güters wie Leben, Gesundheit, Kraft, usw. als echte Werte, die Glückseligkeit
verschaffen, begehrt werden durften. Das wahrhaft Wertvolle war allein in der Seele zu finden (...)”
[“Disso resultou que (...) nem (...) os bens corporais como vida, saúde, força, etc são reais valores que
devem ser buscados para se conquistar a felicidade. O verdadeiramente valioso deve ser apenas buscado
na alma”] (Hossenfelder, 1995, p. 53). “Er [der Stoiker] nimmt das Körpergeschehen zwar wahr, jedoch
läßt es ihn gleichgültig, es löst keinerlei wertende Gefühle bei ihm aus” [“Ele (o estoico) toma os
acontecimentos corporais como verdadeiros, mas mantém-se indiferente a estes, visto que não resultam
em nenhum sentimento valioso”], Hossenfelder, 1995, p. 52.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
290
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
Hitlodeu conclui a questão ao nomear, mais uma vez, os dois principais termos
da discussão ética dos utopianos: Haec est eorum de uirtute ac uoluptate sententia
(178/9-11) [“Esse é o pensamento deles acerca da virtude e do prazer”]. A ética dos
utopianos, com a qual a maioria dos habitantes da ilha concorda, a despeito de
controvérsias (e os leitores devem compreender deste modo), é a melhor solução
possível da pura razão humana (nullam inuestigari credunt humana ratione ueriorem,
178/12) [“acreditam quenada mais verdadeiro (que a religião) poderia ser alcançado
pela razão humana”] – “More than any other statement, this passage furnishes the
foundation for the interpretation that Utopia represents the highest form of
commonwealth that can be created by the reason of the philosopher”137. Contudo, os
próprios utopianos crêem abertamente na incompletude da razão humana, uma vez que
agregam não somente alguns argumentos tirados da religião, conforme vimos138, como
também fica explicito que “the Utopians believe in the possibility and in the actuality of
divine revelation”139 ([...] sententia: qua nisi sanctius aliquid inspiret homini: caelitus
immissa religio [...]178/11-12) [“(…) pensamento (deles): que nada de mais santo
inspira o homem senão a religião enviada dos céus (...)”]. Neste momento é dado o mais
bem marcado confronto entre uma fé carregada pela doutrina cristã da revelação e a
dimensão real da filosofia140. Muitos pesquisadores afirmaram que Morus desejava
mostrar, através do Estado dos utopianos, quão boa uma sociedade poderia ser se
baseada na pura razão, e não no fundamento da fé cristã – boa, mas não excelente141.
Nesta passagem, Hitlodeu parece se afastar, pela primeira e única vez, dos utopianos142:
137
Surtz/Hexter, 1965, 178/11-12.
“As noted earlier (160/23-162/5), even philosophy borrows certain corroboratory principles from
religion and in turn lends support to it”, Surtz/Hexter, 1965, 178/11-12.
139
Surtz, 1957, p. 76.
140
Ver Surtz/Hexter, 1965, 178/11-12: “The difference between a religion revealed by God and a
hedonistic philosophy reached by reason is the difference between holiness and human prudence (…)”.
141
Ver Adams (1941): “(…) in Utopia every free citizen is a philosopher whose life perfectly exemplifies
his conceptions that, for uncorrupted men, the good life can be only that led strictly ‘according to nature’
or ‘reason’, even if the aid of divine revelation be lacking.” (Adams, 1941, p. 50). Ver Jäckel, para quem
Morus foi “um perfeito humanista cristão, que nunca estabeleceu um valor absoluto para a razão humana,
apenas um valor relativo” [“ein solcher durchaus christlicher Humanist gewesen ist, für den die
menschliche Vernunft nie einen absoluten, sondern immer nur einen relativen Wert darstellte; (...)”]
(Jäckel, 1955, p. 99). Também para Hexter, a religião e a filosofia dos utopianos são “the best possible
ones within the limits that his literary problem imposed on him” (Hexter, 1952, p. 57); “More’s
reconstruction of a philosophy and a religion for his Utopians based on natural reasons, and attaining
what was probably to his mind highest perfection that natural reason could reach (…)” (Hexter, 1952, p.
51).
142
“(…) at the end of the discussion (…) he [Hythlodaeus] refuses, for the only time in the Discourse, to
defend the Utopians.” (Johnson, 1969, p. 92) Johnson prossegue e afirma que Hitlodeu diz falsidades:
“This is patently untrue. Raphael undertook the narrative to defend, and not simply to defend but to
praise, Utopian institutions.” (Johnson, 1969, p. 93). Johnson explica que esta discrepância ocorre, pois
138
291
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
qua in re rectene an secus sentiant, excutere nos, neque tempus patitur, neque necesse
est. quippe qui narranda eorum instituta, non etiam tuenda suscepimus. 178/12-15)
[“que, quanto a essas coisas, para examinar se pensam corretamente ou ao contrário,
nem o tempo nos permite, nem é necessário. Pusemo-nos a descrever as instituições
deles, não a defendê-las” ].
2.5. Síntese
Concluímos, com esta análise, que a ética dos utopianos, tanto em relação aos
seus termos como às suas categorias e métodos, inspira-se no modelo da Antiguidade.
Quase todos os elementos permitem que se estabeleçam claras relações (mesmo na
ausência de correspondências literais) com os textos correspondentes da Antiguidade.
Como princípios definidores ressaltam-se as inalduteradas ratio e natura143 humanas.
Também não deve ser desconsiderado que através da assimilação de argumentos
expressamente retirados do campo da religião utopiana, (como vimos), “a busca pela
felicidade dos utopianos alcança uma dignidade religiosa”144 que, apesar da ausência
dos fundamentos cristãos, coloca-se em completa harmonia com ele, tal como formula
Bruce: “faith and reason walk hand in hand”145.
Hitlodeu fala na primeira pessoa do plural (suscepimus) e deve-se estar preparado para uma “quebra da
perspectiva da narração”. Então, Morus se revela o autor: “Thus, while Hythlodaeus using the ‘we’ to
dissociate himself from the ethical theory of the Utopians in favor of their rationalized institutionalism,
the author may be using the ‘we’ to suggest that it is here, with the Utopian means for ordering their lifes,
that he wishes to begin his true defense of Utopia” (Johnson, 1969, p. 92; rever nota 10).
143
Ver Adams (1941): “The ruling ideas in this philosophy [are] the essential concepts, concerning
‘nature’ of ‘reason’, from which all important aspects of Utopian life appear to have been developed.”
(Adams, 1941, p. 51). Em determinados momentos, ao utilizar a palavra natura, Adams demonstra a
tentativa de especificar as perspectivas de significado desta palavra (“Several senses of ‘nature’ seem to
be used” [Adams, 1941, p. 53; rever nota 22). Bruce (1996): “Utopia, it has frequently been claimed,
defines itself by and through the category of reason” (Bruce, 1996, p. 267).
144
“das Glückstreben der Utopier eine religiöse Dignität erlangt“ (Erzgräber, 1980, p. 39).
145
Bruce, 1996, p. 278. Ver Erzgräber, 1980, p. 39: “Da Morus bei der Schilderung des Staates eines
(weithin) heidnischen Volkes und insbesondere der utopischen Ethik nicht mit dem Begriff Gnade
operieren konnte, stützte er sich auf Sätze, die sowohl mit seinem orthodoxen Glauben gegeben waren,
aber auch in der antiken Philosophie (etwa bei Platon) angetroffen werden konnten” [“Como Morus não
podia operar com o termo graça ao descrever o estado de um povo (inteiramente) pagão e especialmente a
sua ética utópica, ele se apoiou em frases dadas por sua crença ortodoxa, e que também podem ser
encontradas na filosofia antiga (por exemplo, Platão)”]. Do mesmo modo, Surtz, 1957, p. 35: “The author
of Utopia borrows from religion the fundamental truths which Erasmus had used to correct Epicurus, and
then the whole question of happiness and pleasure, independently of revelation and Christianity, on the
basis of pure reason (…) In the final analysis, More’s Epicureanism thus becomes as noble in theory and
fruitful in practice as Stoicism or Platonism. Far from being radical, subversive, and corrupting, the
Utopian philosophy is revealed underneath to be conservative, beneficial, moral and salutary – a
triumphant tribute to More’s powers of rhetoric”.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
292
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
Enquanto Logan evidencia a dependência de Platão e Aristóteles, e aborda as
relações com o epicurismo apenas marginalmente, devemos destacar que a relação com
o epicurismo é fundamentalmente mais forte.
A doutrina do prazer utopiano consiste em elementos típicos do epicurismo: a
valorização da integridade corporal como um bem; a “qualificação adicional” da saúde
como tranquilidade e equilíbrio (quae in quieto, atque aequabili corporis statu
consistat; insit sanitatis tranquillitati uoluptas, stabilem & tranquillam sanitatem146
[“que consiste em um estado de quietude e tranquilidade do corpo; o prazer reside na
tranquilidade da saúde, saúde estável e tranquila”]); a diferenciação entre o prazer
catastemático e o prazer cinético; a maior valorização do prazer estático147; a recusa da
ideia de existência de um estado intermediário; a gratidão à natureza pelo fato de que
ela garante a satisfação dos anseios necessários e naturais; a orientação pelo cálculo
epicurista do prazer como medida de todas as trocas”148.
Apesar de todos esses importantes consensos, um epicurismo “puro” não foi
estabelecido, o que no entanto também não era de se esperar, dada a evidência atenuante
no início da passagem já referida: os utopianos apenas “parecem se inclinar para este
partido” (como vimos no início)149.
Se os utopianos aderem a uma ética orientada pelo epicurismo, como o texto
claramente revela, e mais intensamente do que em relação às outras escolas filosóficas
146
Ao lado da libertação da dor corporal, a tranquillitas animi é apresentadacomo a mais importante
qualificação da eudaimonia epicurista (“Epicurus was probably the first philosopher who tried to bring
tranquility into the framework of an eudaimonist theory” [Striker, 1990, p. 99]). Os utopistas confundem
aqui as categorias, e afirmam que o estado de tranquilidade se refere apenas ao corpo.
147
Como Müller nota, “antigos observadores (...) teriam constatado que Epicuro tem relação ambivalente
em relação ao prazer cinético. Nós observamos uma tendência clara para avaliar o prazer cinético como
mera ‘excitação dos sentidos’ e oposta ao prazer catastemático, que seria uma atitude elementar da vida”
[“antike Beobachter (...) konstatiert daß Epikur zur kinetischen Lust des Körpers ein ambivalentes
Verhätnis hat. Wir beobachten eine ausgesprochene Tendenz, die kinetische Lust als bloßen
‘Sinnenkitzel‘ gegenüber der katastemathischen als einer elementaren Lebensgrundhaltung abzuwerten”],
(Müller, 1991, p. 70). Esta “tendência” se deixa explicar pela revogação do prazer catastemático em
Epicuro, que poderia estar a serviço da revogação do prazer cinético (ver Diog. Laert.10,136; e Müller,
1991, p. 70, ver nota 192) e, por esta razão, poderia ser relativizada. Rosenbaum, ao contrário, vê em
Epicuro maior valorização do prazer catastemático: “Epicurus somehow subordinates kinetic pleasure to
the ‘pleasure’ of natural human functioning, without disturbing needs or desires” (Rosenbaum, 1992, p.
24); “The highest good, for Epicurus, is static pleasure (...)” (Rosenbaum, 1992, p. 25).
148
Ver Logan (1983): “More is keenly aware, like Cicero and unlike Plato and Aristotle, of the potential
for conflict between goods (pleasures) that are in themselves legitimated, an awareness that is reflected in
the heavy emphasis he places on the importance of the Epicurean calculus as a means of determining
which of competing pleasures should be chosen.” (Logan, 1983, p.180-181).
149
Aqui também se deixam reconhecer reminiscências de Cícero, referidas ao final de De nat. deor.:
Haec cum essent dicta, ita discessimus, ut Velleio Cottae disputatio verior, mihi Balbi ad veritatis
similitudinem videretur esse propensior (De nat. deor. 3, 95).
293
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
da Antiguidade, podemos aceitar que seria possível encontrar outros traços de
epicurismo na ilha de Utopia.
3. A Ilha de Utopos – um Jardim de Epicuro?
Antes do relato a respeito da ética dos utopianos, o texto já sinaliza que os
utopianos têm algo em comum com os antigos epicuristas. No relato sobre suas cidades
é mencionado que os utopianos, apesar de não possuírem direito de propriedade sobre
suas casas e serem obrigados a deixá-las a cada dez anos (ver 120/12-13), valorizam o
cuidado com os seus jardins, cujas plantas não apenas têm utilidade, mas também
trazem alegria devido a sua beleza150. Não há uma única casa na cidade que não possua
um jardim (ver 120/9-10), mais ainda, a área do jardim ocupa todo o quarteirão das
casas (ver 120/6-9). A Utopos, o fundador da ilha, é atribuído o arranjo da cidade e
também, por conseguinte, dos jardins: Nam totam hanc urbis figuram, iam inde ab initio
descriptam ab ipso Vtopo ferunt. (120/23-24) [“Pois todo este traçado da cidade,
contam, foi, desde o início, desenhado pelo próprio Utopos”]. Ele teria dedicado
cuidados especiais ao arranjo dos jardins: eoque nullius rei, quam huiusmodi hortorum,
maiorem habuisse curam uidetur isqui condidit. (120/21-23) [“com nenhuma outra
coisa quanto como com estes jardins ele, que os criou, parece ter tido mais cuidado”].
Também Epicuro ficou conhecido como fundador de um jardim, que ele havia alugado
junto com sua casa na cidade de Atenas. Ali se relacionava amigavelmente com seus
primeiros seguidores. Sua escola ficou conhecida como κῆπος (jardim)151. O jardim está
tão inseparavelmente ligado ao pensamento acerca da escola de Epicuro, que os jardins
dos utopianos precisam ser entendidos como clara alusão à inclinação para o
ensinamento epicurista. Não se deve chegar ao ponto de querer identificar Utopus com
Epicuro, porém, é evidente que há um certo paralelismo: desde a instituição da ordem
social na ilha de Utopia (que, se seguirmos a lógica da ficção, calculamos ter
acontecido, segundo o calendário europeu, entre os anos de 245 e 255 a.C.152), não
150
Ver 120/13-19. Aqui também é explícita a relação entre a utilidade e o prazer: & certe non aliud
quicquam temere urbe tota reperias, siue ad usum ciuium, siue ad uoluptatem commodius. (120/19-21)
[“e certamente não se encontra facilmente nada mais vantajoso, em toda a cidade, seja visando à utilidade
dos cidadãos, seja visando ao prazer”]., Também os jardins utopianos são, então, (como a obra Utopia)
salutares et festivi [“salutares e divertidos”] (Ver o título da Utopia: De optimo(...) libellus uere aureus,
nec minus salutaris quam festivus (...) [“Sobre a melhor (...) livrinho realmente de ouro, não menos
salutar que divertido (...)”]). Ambas concordam com o sentido horaciano de delectare et prodesse
[“deleitar e ser útil”].
151
Ver Dorandi, 1997, p. 1126; Erler, 1997, p. 1130.
152
Pôde-se concluir, a partir de registros dos anais (ver 120/26-28), que Utopos fundoua ilha há 1170
anos. Assume-se que Hitlodeu tenha vivido entre os anos de 1505 e 1515 na ilha de Utopia, devido à data
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
ocorreu mudança fundamental em seus princípios ou estruturas153. Tudo permaneceu
como estabelecido por Utopus. Também Epicuro foi honrado como “mestre”154 por seus
seguidores, e suas doutrinas seguiram inalteradas por muito tempo155. Na Antiguidade,
apenas os epicuristas eram caracterizados pela afeição dos seguidores da escola pela
figura fundadora156. Também na Utopia, Utopus se torna figura superpoderosa.
Evidência disso é o fato de ser o único morador da ilha chamado pelo nome157.
Grace traça paralelos que colocam toda a sociedade da ilha de Utopia em
analogia com o jardim de Epicuro: “Hythlodaeus’ utopianism is wholly consonant with
Epicurean ideals. It posits a largely apolitical life of tranquility, with limited needs, and
as few changes as are necessary to the conduct of the community. The Utopians are
mencionada. O cálculo de Schoeck (1956) chega à bela conclusão de que o ano de formação da ilha, 244
a.C., corresponde coincidentemente ao ano de nomeação do rei espartano Agis. No entanto, esta sincronia
é falsa, mesmo se a operação não tivesse como objetivo o período em que Hitlodeu se encontrasse na ilha,
pois Schoeck realiza a operação a partir de 1516. No período em que o diálogo é travado, nós nos
encontraríamos no ano de 1515 em Flandres. Além disso, o único argumento sustentável é o fato de que
Morus escreveu o relato a respeito da ilha no ano de 1515 (ver Surtz/Hexter, 1965, p. xx-xxi). O cálculo
de Schoeck e suas conclusões são, por esta razão, insustentáveis.
153
Os desenvolvimentos não englobam mudanças estruturais, mas apenas variam a ordem já existente.
Deste modo, a estrutura da cidade não sofre alteração, apenas a qualidade dos materiais da sua construção
(ver 120/24-122/7). Mudam as formas de designação atribuídas aos funcionários, não as suas funções
(Triginta quaeque familiae magistratum sibi quotannis eligunt, quem sua prisca lingua Syphograntum
uocant, recentiore phylarchum, (...); 122/9-11) [“Cada trinta famílias elegem anualmente um magistrado,
que chamam, em sua antiga língua, de sifogrante, e, na língua mais recente, de filarca (..)”]; também na
discussão filosófica as diferenças são limitadas (ver parte 2).
154
“Die Epikureer betrachten die Einführung neuer Elemente in die Grundstrukturen 6der Lehre des
Meisters (...) als Pietätslosigkeit (...)” [“Os epicuristas consideram a introdução de novos elementos nas
estruturas fundamentais do ensimaneto do mestre (...) como falta de respeito (...)”] (Dorandi, 1997, p.
1128).
155
Isto se refere à elaboração da representação de pensamentos em teoremas tão úteis como aqueles que
descrevem a Kyriai Doxai: “Diesem Dogmatismus verdankt die Schule eine relative Geschlossenheit.
Obwohl es auch unter Epikureern Streitfragen gegeben hat, ist doch die Lehre über die ganze Zeit ihres
Bestehens im wesentlichen unverändert tradiert worden, so daß sich im Epikureismus, anders als in der
Stoa, keine Epochen unterscheiden lassen” [“Este dogmatismo se deve à relativa coesãoda escola. Mesmo
que também houvesse pontos de controvérsia entre os epicuristas, o ensinamento se manteve todo o
tempo de sua existência fundamentalmente inalterado, de modo que os epicuristas, ao contrário dos
estoicos, não se deixam diferenciar entre as épocas”] (Hossenfelder, 1995, p.101). Dorandi (1997, p.
1126-1129) aponta, ainda desenvolvimentos muito diferentes dentro da escola após a morte de Epicuro:
“Von einer Einheit des Gedankenguts kann man nur zu Beginn des Epikureismus (von Epikur bis
Hermachos) sprechen” [“pode-se apenas falar de unidade na filosofia no início do epicurismo (de Epicuro
até Hermaco)”] (Dorandi, 1997, p. 1128).
156
Die Schulmitglieder schwören, Epikur zu gehorchen und nach seinen Vorschriften zu leben” [“Os
membros da escola juram obedecer a epicuro e viver segundo seus princípios”] (Hossenfelder, 1995, p.
101); “Als geistiges Zentrum seiner Schule erfuhr E. nach seinem Tode beinahe göttliche Verehrung”
[“Como centro espiritual de sua escola, E. experimenta quase veneração divina após sua morte”] (Erler,
1997, p. 1131); Celebrava-se anualmente não apenas Epicuro, mas o nascimento de seus irmãos e de seus
amigos mais próximos (ver Dorandi, 1997, p. 1130); essa “supervalorização” do fundador da escola é
expressa também nas exposições epicuristas de Cícero (De fin. e De nat. deor.)
157
Ver Herbrüggen, 1960, p. 21: “Es ist beachtenswert, daß der utopische Staat außer König Utopus, der
zu Anfang des Berichtes einmal schemenhaft im Dunkel der Vorzeit auftaucht, keine weiteren Figuren
kennt” [É importante notar que o estado utópico, com excessão do rei Utopos, que aparece ao início do
relato uma vez e nebulosamente na escuridão do primórdio, não conhece outras figuras”].
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isolated from their neighbors – almost in an Epicurean garden with large – removed
from influence which could foster irrational passions, and being similar mind (despite
the provision for pluralistic beliefs) support each other in their spiritual journey”158. Os
elementos aqui referidos (apoliptical life/ tranquility/ limited needs/ isolation) exigem
especificação.
É evidente a segregação utopiana do mundo externo através da estrutura
insular. No entanto, não se pode falar de um isolamento rigoroso uma vez que os
utopianos de modo algum vivem completamente separados do mundo à sua volta:
fazem contatos de teor econômico e político regularmente com outros povos – isto é
comprovado com a existência da embaixada dos anemolianos na ilha (ver 152/27156/18) – travam guerras159 e fundam colônias em terra firme (ver 136/3-22). Os
utopianos são colocados a todo o tempo em contato com a influência de outras culturas
e, contudo, permanecem completamente intocados. É justamente esta fronteira com os
outros povos que eleva a sua consciênciade de que são uma comunidade ideal160, e os
utopianos tomam todas as providências para protegerem-na do exterior. A delimitação
do seu território é documentada logo ao início do relato de Hitlodeu no ato simbólico de
“separação” da terra firme, e sua transformação na ilha de Utopia: Caeterum uti fertur,
utique ipsa loci facies prae se fert, ea tellus olim non ambiebatur mari. Sed Vtopus
cuius utpote uictoris nomen refert insula, (...) passuum milia quindecim, qua parte tellus
continenti adhaesit, excindendum curauit, acmare circum terram duxit. (110/29-112/9)
[“Além disso, como é referido, e a que refere por si o próprio aspecto da região, essa
terra, em outros tempos, não era cincundada por mar. Mas Utopos, porquanto vencedor,
cujo nome a ilha leva, (...) ordenou que aquela parte do continente à qual a terra se
ligava fosse separada por quinze mil passos e levou o mar a circundá-la”]. Antes da
vitória de Utopus, o país se chamava Abraxa e sua terra era rude e inculta – semelhante
a um estado de bellum omnium contra omnes161 [“guerra de todos contra todos”].
158
Grace, 1989, p. 280.
A política de guerra é apresentada na seguinte passagem: 195/29-216-5.
160
Ver Bejezy, 1995, p. 21: “The separation of Utopian civilization in space is equally ineffective. The
Utopians cannot escape their barbarous neighbors, since their cultural self-esteem relies upon the contrast
with the uncivilized outer world”.
161
Segundo Müller (1972, p. 38), uma questão importante e muito discutida é se “os epicuristas
pressupõem um bellum omnium contra omnes no sentido da teoria de Hobbes” [“die Epikureer ein bellum
omnium contra omnes im Sinne der Hobbeschen Theorie voraussetzen”]. Müller segue adiante, e afirma
que a “descrição de Lucrécio não dá nenhuma resposta direta a isso” [“Darstellung des Lukrez (...) darauf
keine direkte Antwort”], mas conclui que “o estado anterior era pensado como um estado de violência”
[“der fruhe Zustand als ein Zustand der Gewalttätigkeit gedacht war”] (Müller, 1972, p. 38). Ver
Lucrécio, Rer. nat. 5, 1019-1027; rever nota 58).
159
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
Apenas com Utopus é instituída a civilização: Nam ante id temporis Abraxa dicebatur,
quique rudem atque agrestem turbam ad id quo nunc caeteros prope mortales antecellit
cultus, humanitatisque perduxit (112/2-5) [“– pois, antes daquele tempo, era chamada
Abraxa – e que elevou a rude e agreste turba a esse grau de civilização, por meio de que
sua cultura supera praticamente a todos os mortais”]. Então, os utopianos se isolam
conscientemente do mundo à sua volta, constroem uma espécie de exclave, para o qual
está garantido um máximo de segurança contra ataques externos por causa da
configuração natural da forma de ilha e, especialmente, do porto da enseada162. Seria
possível fazer uma correlação com o Epicurismo, na medida em que, para os epicuristas,
a
proteção do indivíduo contra prejuízos vindos de fora é considerada um bem
importante163, que deve ser garantido, por um lado, pelo estabelecimento do direito
positivo (as leis) e, por outro, pelos laços de amizade164. Diferente dos estóicos, que
tinham o homem por “cidadão do mundo”, os epicuristas formavam um círculo elitista
162
fauces hinc uadis, inde saxis formidolosae. (...) Canales solis ipsis noti, atque ideo non temere accidit,
uti exterus quisquam hunc in sinum, nisi Vtopiano duce, penetret, (...) His in diuersa translatis loca,
hostium quamlibet numerosam classem facile in perniciem traherent. (110/17-26) [“Seus acessos são
perigosos, ora por causa dos bancos de areia, ora dos escolhos. (...) Os canais são conhecidos apenas pelos
próprios (utopianos) e por este motivo não acontece facilmente que algum estrangeiro penetre nessa baía
a não ser guiado por um utopiano, (...) Esses sinais nas margens, se movidos para locais diversos,
levariam ao aniquilamento de uma frota de inimigos, ainda que numerosa].
163
Apesar do objetivo dos epicuristas, similar ao objetivo dos estoicos, ser o afastamento das
perturbações da alma, a “segurança exterior” [“äussere Sicherheit”] é uma “condição essencial para
possibilitar a ataraxia” [“notwendige Bedingung für die Möglichkeit der Ataraxie”] (Sprute, p. 79).
“Dennoch braucht auch er [der Weise] die Gesetze, weil sie als gesellschaftliche allgemeinverbindliche
Regeln seine Sicherheit garantieren” [“No entanto, ele (o sábio) precisa também de leis, pois estas,
enquanto regras comuns, obrigatórias para todos, garantem sua segurança”] (Müller, 1988, p. 120).
164
“Die größtmögliche Sicherheit wird nach Epikur jedoch nicht allein durch den Schutz der Gesetze
erreicht, sondern darüber hinaus durch das Leben in einem nach außen relativ abgeschlossenen Kreis von
epikureischen Freunden, die, falls erforderlich, einander Beistand leisten” [“A maior segurança possível
é, segundo Epicuro, não apenas garantida com a proteção das leis, mas principalmente por uma vida
relativamente fechada no círculo de amigos epicuristas que, se necessário, prestam auxílio uns aos
outros”] (Sprute, p. 80). A informação é tirada de KD 28 e 40: “Wer aber die Möglichkeit hat, sich
Sicherheit an erster Stelle durch die Beziehungen zu seinen Nachbarn zu verschaffen, der lebt in
Gemeinschaft mit ihnen in heiterster Stimmung unter der sichersten Bürgerschaft (...)”[“Aquele que tem a
possibilidade de providenciar em primeiro lugar segurança do seu relacionamento com seus vizinhos,
aquele vive em comunidade com estes em ambiente feliz e na mais segura cidadania (...)”]. Müller, 1988,
p. 115: “Epikur hatte die Frage zu beantworten: Wie kann sich das der alten Polisbildungen beraubte
Individuum so verhalten, daß ihm die Erlangung des zentralen Wettes der Eudaimnie, (...) möglich wird?
In der Tat lautet die Antwort: erstens durch Einordnung in das vorhandene Gefüge von Staat und Recht,
das nach epikureischer Auffassung auf der Basis des Gesellschaftsvertrags beruhte; zweitens die
Gewinnung neuer, haltbarer Bindungen, fundiert in der philosophischen Lebensform der Schule, die als
Freundschaft charakterisiert wird” [“Epicuro tinha de responder a seguinte questão: como é possível
conquistar os principais objetivos da eudaimonia em uma formação antiga de polis na qual os indivíduos
se comportam de modo depravado? De fato, esta é a resposta: primeiro, através da organização da
estrutura existente de estado e direito que, segundo a visão epicurista se baseia no contrato social; em
segundo, na conquista de novos e duradouros vínculos defendidos pelaforma de vida filosófica da escola
e caracterizados como a amizade”].
297
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(“[...] we are to think of Epicurus’s garden, [...] as enclosed and exclusive”165 – os
epicuristas assumiam uma “rigorosa separação entre o “interior” e o “exterior”) 166, que
eles interpretavam como uma comunidade de amigos e cuja proteção eles promoviam.
Os utopianos também vivem em um círculo relativamente fechado (embora a relação
entre o Estado da Utopia e os Estados vizinhos não estabeleça completa analogia com o
comportamento da comunidade de amigos epicuristas e a polis), e entendem-se como
uma comunidade homogênea – Respublica nihil aliud quam magna quaedam familia
est167 [“A república não é outra coisa a não ser uma espécie de grande família”]. Esta
pode ser compreendida como uma comunidade de direito no sentido teórico contractual
do direito positivo, (como vimos), como também defendia Epicuro. Os utopianos não
apenas se protegem internamente, mas também da parte exterior de seu território, por
meio das relações de amizade168. Os ideais da amizade, da pietas e da humanitas valem
tanto internamente quanto para os povos que se misturam com eles (como no caso da
formação de colônias)169 ou com os quais estabelecem aliança170.
Segundo Epicuro, o direito (e deste modo, também a justiça) 171 apenas tem
vigência onde foi estabelecido o contrato, e enquanto ambas as partes o mantiverem172.
Os utopianos parecem representar uma ideia semelhante, pois são extremamente
intransigentes e indiferentes em relação aos povos que não querem optar por suas leis:
Renuentes ipsorum legibus uiuere, propellunt his finibus quos sibi ipsi describunt.
Aduersus repugnantes, bello confligunt. (136/12-13) [“Os que se recusam a viver
165
Earle, 1988, p.93.
Müller, 1991, p. 127.
167
O texto ao lado da nota marginal é o seguinte: Ita tota insula uelut una família est (148/2-3) [“Assim, a
ilha inteira é como uma família”]. Esse elemento é importante. Por esta razão, seu registro na nota
marginal.
168
Uma congruência entre o amor ao próximo utopiano e a teoria da amizade epicurista já foi construída
na parte 2. A ausência do termo amicus, que desfine tipo de relação na comunidade, diferente das relações
públicas, encontra sua equivalência na designação do termo familia (rever nota 166).
169
Cum uolentibus coniuncti in idem uitae institutum: eosdemque mores, facile coalescunt idque
utriusque populi bono (136/8-10) [“Quando de bom grado convivem e se estabelecem em uma vida em
comum, e com os mesmos costumes, facilmente tornam-se unidos, e isso é bom para ambos os povos”].
170
Aqui se diferenciam ainda entre socii e amici: Hos Vtopiani populos, quibus qui imperent ab ipsis
petuntur, appellant socios, caeteros quos beneficijs auxerunt amicos uocant. (196/12-14) [“Os utopianos
chamam de aliados os povos entre os quais os que comandam são desejados por eles mesmos; aos
restantes, a quem tenham favorecido com benefícios, chamam de amigos”]. Ver também 200/4-9 e 202/13.
171
Esta é a frequente interpretação atribuída a KD 32 e KD 33: “Der Gerechtigkeit kommt an sich kein
Sein zu, vielmehr ist sie nur ein im gegenseitigen Verkehr in beliebigen Erdgegenden getroffenes
Abkommen zur Verhütung gegenseitiger Schädigung” [“A justiça não traz para si outra existência, mas é
muito mais um acordo feito em regiões da terra que preferem encontrar um contrato a fim de evitar danos
mútuos ”] (ver Müller, 1988, p. 117-118; Sprute, 1989, p. 77). Diferente é a interpretação de Armstrong
(1997) em sua redação “Epicurean Justice” que defende a tese de que para Epicuro haveria “justice (...)
independent of law” (Armstrong, 1997, p. 324).
172
A informação pode ser encontrada em KD 31-33 e 36-38. Ver Müller, 1988, p. 116-120.
166
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
segundo as suas leis eles expulsam para longe das fronteiras que eles mesmos delimitam
para si. Contra os oponentes, declaram guerra.”] A proteção concedida às partes
concordantes não é de forma alguma fornecida aos indivíduos externos a essa
comunidade – “Apparently the Utopians wish to maintain their cultural purity outside
the borders of their island (...)”173. Com certa arrogância, que parece fazer com que se
esqueçam os prezados valores da pietas e da humanitas, os utopianos diferenciam muito
bem os seus concidadãos dos outros homens, potissimum quo milites externos (quos
libentius quam suos ciues obijciunt discrimini) (148/31-33) [“principalmente soldados
externos (preferem colocá-los em perigo, ao invés dos seus cidadãos)”], e consideram a
eliminação (aos seus olhos) de homens inferiores um favor prestado à humanidade,
como veio a ser expresso na passagem sobre o recrutamento dos zapoletas para o
serviço bélico: Neque enim pensi quicquam habent, quam multus ex eis perdant. rati de
genere humano maximam merituros gratiam se, si tota illa colluuie populi tam tetri, ac
nepharij orbem terrarum purgare possent. (208/10-23)174 [“Nem são pagos, pois
perdem muitos dentre eles. Acreditam serem merecedores da maior gratidão do gênero
humano se puderem purgar o orbe da terra de toda essa decadência desse povo tão
abominável e perverso.”]
Evidente é a prioridade do benefício “de todas as uniões para alianças sociais e
Estados, que, segundo a concepção epicurista, consiste essencialmente na proteção de
algumas pessoas contra outras”175, ainda que ela não seja expressa de forma tão clara
por utopianos e epicuristas. Além disso, o epicurista não desejaria imiscuir-se nas
relações com o exterior para não ameaçar sua ataraxia176. Análoga é, entretanto, a
concepção da própria comunidade (em seu espaço fechado), como círculo de amizade e
conceito de salvaguarda mediante as relações de amizade, que em Epicuro estava
173
Bejecty, 1995, p. 21.
A respeito da política de guerra peculiar dos utopianos há ainda muito a dizer: a interpretação abstrusa
de Onckens trata do tema de maneira aprofundada (ver Onckens, 1922).
175
“(...) aller Vereinigungen zu gesellschaftlichen Verbünden und Staaten, (die) nach epikureischer
Auffassung in erster Linie im Schutz der Menschen voreinander (...)” (Sprute, 1989, p. 81); “The security
of the community conduces to the security of the individual” (Armstrong, 1997, p. 329).
176
KD 14: “Wenn auch die Sicherheit vor den Menschen bis zu einem gewissen Grade erreicht wird
durch die Macht, andere zu vertreiben, sowie durch Benutzung der durch den Reichtum gebotenen Mittel,
so erwächst doch die echteste Sicherheit daraus, daß man ein stilles und der großen Menge
ausweichendes Dasein führt” [“Se a segurança em relação à humanidade atinge, em certa medida, o poder
de afastamento de outros, também pelo uso dos meios de abundância disponíveis, então cresce a
verdadeira segurança, que leva ao afastamento das grandes massas e à existência tranquila”].
174
299
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relacionada a cada indivíduo177 e que, para os utopianos, é estabelecida em uma escala
muito maior.
Um dos mais importantes resultados da ordem econômica utópica é que o
sustento elementar da vida, isto é, o fornecimento de alimentos à população, é garantido
mediante uma quantidade relativamente baixa de trabalho. Os utopianos buscam não o
aumento da produção ou a obtenção de lucro, mas apenas o “necessário”, o
fornecimento de alimentos com o menor custo possível de tempo para todos: (...) ut id
temporis ad omnium rerum copiam quae quidem ad uitae uel necessitatem requirantur
uel commoditatem non sufficiat modo, sed supersit etiam, (...) (128/31-33) [“pois este
tempo, para a abundância de todas as coisas requeridas tanto pelas necessidades da vida
quanto ao conforto, não apenas basta, mas também sobra, (...)”]. Também o fato de que
o consumo necessário de alimentos está ligado ao prazer é muitas vezes indicado no
texto: (...) facile animaduertis: quantulum temporis ad suppeditanta omnia: quae uel
necessitatis ratio: uel commoditatis efflagitet (adde uoluptatis etiam quae quidem uera
sit ac naturalis) abunde satis superque foret. (130/22-25) [“perceberias facilmente quão
pouco tempo seria suficiente para suprir, com abundância e mais ainda, com todas as
coisas que a razão, por necessidade ou conforto, vivamente solicite (acrescente-se
também por prazer, desde que verdadeiro e natural).”] Mais uma vez, as categorias
referidas na Ética são assinaladas: consumo de alimento como “verdadeiro” (em
contraposição ao “falso”) e “natural”. Seu sistema econômico tem como primeiro
objetivo assegurar o fornecimento de necessidades básicas e, em segundo lugar, poupar
tempo que será, então, dedicado às atividades de elevação do espírito: quandoquidem
eius reipublicae institutio hunc unum scopum in primis respicit: ut quoad per publicas
necessitates licet: quam plurimum temporis ab seruitio corporis ad animi libertatem
cultumque ciuibus uniuersis asseratur. In eo enim sitam vitae felicitatem putant
(134/16-26) [“considerando que os princípios de sua república zelam em primeiro lugar
por este único escopo: enquanto as necessidades públicas permitirem, que a maior parte
do tempo seja dispensada dos serviços físicos, em proveito da liberdade e cultura do
espírito, para todos os cidadãos. Julgam que nisso reside a felicidade da vida”]. O trecho
177
Poderíamos perguntar se Epicuro buscava ampliar seu círculo, visando o número máximo possível de
pessoas. Müller afirma: “Ihre Illusionslosigkeit hält die Epikureer davon ab, ein Reformprogramm zu
entwickeln, das darauf abzielt, für eine ganze Polis neue Normen und Regeln des Zusammenlebens zu
begründen, geschweige denn eine Utopie, die eine Neuorientierung im gesamtmenschheitlichen Rahmen
proklamiert” [“A sua falta de ilusão faz com que Epicuro não desenvolva um programa de reformas que
tenha como objetivo fundar novas normas e regras da vida em conjunto para toda a polis, ainda mais uma
utopia, que proclama uma nova orientação no quadro inteiro da humanidade”] (Müller, 1991, p. 127).
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300
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
antecipa o que será discutido no trecho sobre a ética: para os utopianos, o objetivo mais
elevado é a felicitas, que se encontra preferencialmente na edificação do espírito.
Relacionando a ordem econômica dos utopianos à hierarquia de bens descrita no
capítulo a respeito da ética (rever capítulo 2), o cálculo hedonista do prazer se aplica,
em maior dimensão, a toda concepção do Estado: o aparato estatal dos utopianos é
regido pelo conceito de propriedade comum e pelo sistema econômico a ele
relacionado, base para uma vida que garante um máximo possível de tempo livre para as
atividades espirituais, com um mínimo de trabalho. Surtz também observa a relação
direta entre o princípio do bem comum e o ensinamento epicurista: “Communism, not
private property, therefore, is the answer of the Utopians to the division of goods among
their citizens – so that all might attain a maximum of pleasure and a minimum of pain
during their earthly life”178. Além disso, o cidadão utópico pode viver com a certeza de
que seu sustento não está ameaçado, pois é garantido pela produção e divisão regradas
dos alimentos e pelo estabelecimento de estoques: At postquam satis prouisum ipsis est,
(quod non antea factum censent, quam in biennium propter anni sequentis euentum
prospexerint) (...) (148/3-6) [“Mas, depois de terem feito provisões suficientes para si
mesmos (que não estimam feitas antes que tenham abastecido para dois anos para o caso
de uma eventualidade)”]. Apenas o medo de uma futura escassez motivam no homem
(como em qualquer ser vivo) a ganância e o comportamento predatório: Nam cur
superuacua petiturus putetur is, qui certum habeat, nihil sibi unquam defuturum?
Nempe auidum ac rapacem aut timor carendi facit, in omni animantuum genere, (...)
(138/3-6) [“Pois por que se acreditaria que alguém, que tem a certeza de que nada nunca
lhe faltará, iria atrás de algo de supérfluo? Em todo o gênero das criaturas vivas, sem
dúvida, o que torna alguém ávido e rapaz é o receio da carestia, (...)”]. Como para os
utopianos o timor carendi não é fundado em seu sistema econômico, as formas
negativas de comportamento ligados a ele também são suspensas. Novamente pode ser
traçado um paralelo com a filosofia epicurista, pois, segundo Epicuro, não apenas o
presente deve ser considerado, mas também as expectativas para o futuro, “pois a
segurança em relação ao futuro é indispensável à felicidade”179. Assim como, por
exemplo, a amizade promove a garantia de futura segurança180; também a certeza de que
178
Surtz, 1957, p. 155.
“denn die Sicherheit der Zukunft ist das Glück unabdingbar” (Hossenfelder, 1995, p. 113).
180
Ver Cíc., De fin. 1,67; e Müller, 1991, p. 122-123.
179
301
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
“as riquezas naturais (...) [são] limitadas e fáceis de serem alcançadas” 181 elimina o
medo do não suprimento das necessidades no presente e no futuro. A organização do
Estado utópico garante a satisfação das necessidades elementares, como a ingestão dos
alimentos (no sentido epicurista da exigência mínima de satisfação dos desejos naturais
e necessários), e deste modo elimina o medo da escassez futura.
No capítulo que trata da ética, é insistentemente enfatizado que um estado de
tranquilidade – certamente em relação ao corpo –, é considerado o bem mais desejável
pelos utopianos. Um estado de absoluta paz de espírito, que Epicuro expressava como o
termo ataraxia, não é mencionado em momento algum no texto. Características que
constituem o Estado utópico são “ordem” e uniformidade182, que precisam ser
preservadas constantemente. À mesa, no salão público de refeições, observa-se que as
mulheres grávidas podem se levantar e deixar a comunidade no salão, sem que isto
perturbe a ordem durante a refeição: Viri ad parietem, foeminae exterius collocantur, ut
si quid his subiti oboriatur mali, quod uterum gerentibus interdum solet accidere,
imperturbatis ordinibus exurgant, atque inde ad nutrices abeant. (140/31-142/2) [“Os
homens são colocados junto à parede, as mulheres, na parte voltada para fora, para que,
se acometidas por algum mal súbito, como é por vezes comum acontecer com as que se
encontram grávidas, possam se levantare dirigir-se às amas sem que a ordem seja
perturbada.”] Além disso, é notável que Hitlodeu discorra sobre um utopiano, tão
impressionado com a nova fé (cristã), que tentou apaixonadamente impressionar seus
concidadãos, e foi rigorosamente punido com o exílio. O motivo da penalização não foi
o embate por causa da religião, seu crime foi tentar excitar o povo e causar agitação:
Talia diu concionantem comprehendunt, ac reum non spretae religionis, sed excitati in
populo tumultus agunt, peraguntque, damnatum, exilio mulctant, (...) (218/25-29)183
[“Tendo ele expressado publicamente, por muito tempo, tais opiniões, prenderam-no e
julgaram-no culpado não de menosprezo da religião, mas de ter causado tumulto entre o
povo; condenado, foi punido com o exílio, (...)”]. Mesmo que não possa ser feita
nenhuma relação direta com o epicurismo, tumultus e turbatio surgem como estados
indesejados na sociedade utópica. Para Epicuro, uma turbatio animi valia como a
181
“der naturgemäße Reichtum (...) begrenzt und leicht zu gewinnen [ist]”.KD 15. Ver também KD 21;
Diog. Laert. 10,131,133; e Hossenfelder, 1995, p. 113-114.
182
Exemplo célebre é a uniformidade das vestimentas (ver 126/2-6).
183
Com efeito, Surtz/Hexter (1995) notam em 218/25-30 que “the Utopian view is curiously similar to
that taken by Elizabeth and her advisers”, e referem-se à literatura que analisa o desenvolvimento da
tolerância religiosa na Inglaterra. No entanto, trata-se de desenvolvimentos tardios, que podem aqui ser
pensados, mas não são elementos principais.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
302
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
condição que mais intensamente ameaçava a eudaimonia, que se manifesta na procura
pela ataraxia e aponia184.
Segundo Grace, a tranquillitas utópica se caracteriza por sua posição apolítica.
Apesar da instituição do Estado utópico e de um sistema jurídico e administrativo, os
utopianos a) apresentam poucas leis (Leges habent perquam paucas. sufficiunt enim sic
institutis paucissimae; 194/6-7)185 [“Têm extremamente poucas leis, já que, deste modo
instituídas, bastam pouquíssimas”] e b) não deixam transparecer qualquer indício de que
a ação política teria um grande papel na vida dos indivíduos, embora figuras
autoritárias, como os filarcas e os sifograntes, sejam tidas em alto prestígio.
Frequentemente se vislumbra a valorização do tempo destinado a estudos espirituais,
isto é, a atividades científicas que ocupam alto grau na hierarquia dos bens desejáveis –
essa é também a principal motivação da rigorosa divisão do trabalho na ilha. No mundo
antigo, a participação dos indivíduos na política da comunidade era característica
constitutiva desta, algo de que os epicuristas afastavam-se fortemente, na medida em
que procuravam evitar ao máximo a atividade política. Não pela razão de serem
inimigos do Estado, mas devido ao “posicionamento de Epicuro, que tinha como
impossível a união entre política e ataraxia186, pois a exigência mais alta, a tranquillitas
animi [“tranquilidade do espírito”], era mais fácil de ser alcançada sem um
envolvimento no cotidiano. Os epicuristas sintetizavam seu afastamento de tais
atividades na fórmula λάθε βιώσαϛ (fr.551 Us.). Em Atenas, eles se “escondiam” em
seu jardim187 e deixavam para os outros a tarefa de proteger a comunidade estatal . O
engajamento político era considerado por Epicuro “correto apenas em algumas
exceções”188. Neste ponto, a situação da escola de Epicuro em relação à polis ateniense
não é completamente análoga à situação dos utopianos, mas o objetivo de vida dos três
184
Na teoria epicurista, tudo o que está ligado ao termo turbatio é considerado ameaça à tranquilidade da
alma: ut enim mortis metu omnis quietae vitae status perturbatur (...) (Cíc., De fin. 1, 49) [“Pois assim
como, pelo medo da morte, perturba-se todo repouso de uma vida de quietude, (...)”]; <Et>quem ad
modum temeritas et libido et ignavia semper animum axcruciant et semper sollicitant turbulentaeque
sint, sic<improbitas si>cuius in mente consedit, hoc ipso, quod adest, turbulenta est; si vero molita
quippiam est, quamvis occulte fecerit, numquam tamen id confidet fore semper occultum (Cíc., De fin.1,
50) [“E do mesmo modo que tanto a temeridade quanto o desejo frívolo e a covardia sempre torturam a
alma e sempre a atormentam e são tempestuosos, da mesma forma a improbidade, se se assenta na alma
de alguém, precisamente por isto, porque lá se encontra, é tempestuosa. Se, com efeito, ela maquinou
algo, por mais que tenha agido às ocultas, jamais, contudo, confiará que isso ficará para sempre oculto.”]
185
Também o comentário nota isto: Leges paucae (194) [“Poucas leis”].
186
“Epikurs Ansicht von der Unvereinbarkeit der Politik mit der Ataraxie” (Sprute, 1989, p. 86).
187
“This enclosure, exclusivity, and – what isalso implied – abstentionof its inmates from participation in
the affairs of state are given apopgthegmatic expression in ‘Live hidden’” (Earle, 1988, p. 93).
188
“in Ausnahmefällen (...) für richtig gehalten” (ver Sprute, 1989, p. 86; v.a. idem; ver nota 265).
303
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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– atingir a eudaimonia – é idêntico, e este objetivo não depende do engajamento
político, pois encontra realização no engajamento espiritual.
Das escolas relevantes da Antiguidade, apenas os epicuristas respondiam com
um “não” categórico189 à pergunta que indagava se um homem instruído na filosofia
deveria se ocupar dos negócios do Estado. A questão é elemento central do Primeiro
Livro da Utopia. Quando Hitlodeu é requisitado por Morus e Gil a colocar sua formação
filosófica e experiência com outras culturas a serviço de um monarca, Hitlodeu se
recusa (ver 54/13-58/15). A própia persona Morus190 admite que a atuação nos negócios
políticos faz com que parte do sentimento pessoal de bem-estar seja perdido (ut uel cum
aliquo priuatim incommodo; 56/10)191 [“Ainda que com algum incômodo na vida
privada”]. No entanto, commoditas, mais especificamente commodum, é qualidade que
ocupa uma posição privilegiada no sistema dos utopianos (ver Cap. 2.1), que é na
medida do possível conforme ao (sistema) de Hitlodeu. Pouco antes, Gil pede que
Hitlodeu ofereça seus serviços a um monarca (inquit Petrus, [...] non ut servias regibus,
sed ut inseruias; 54/27-28) [“(...) disse Pieter. O que vislumbro em relação aos reis não
seria servidão, mas serviço”] com a justificativa de que Hitlodeu poderia não somente
favorecer a outrem, mas também beneficiar a si mesmo: eam tamen ipsam esse viam,
qua non alijs modo & privatim, & publice possis conducere, sed tuam quoque ipsius
conditionem reddere feliciorem. (54/30-32) [“ela é, contudo, o próprio caminho pelo
qual poderias conquistar benefícios não apenas para os outros, na vida privada e na vida
pública, mas também tornar tua própria condição mais feliz.”]. Porém, justamente, essa
escolha não é o que Hitlodeu caracterizaria como felix, pelo contrário: Felicioremne
inquit Raphaël, ea via facere, a qua abhorret animus? (54/32-56/1) [“Acaso seria mais
feliz, disse Rafael, percorrer esse caminho, que meu espírito abomina?”]. Ele recusa
trocar seu otium por este negotium, pois considera inútil fazê-lo dentro da realidade
política da época (ver 56/19-28). Como os epicuristas, Hitlodeu realiza sua felicitas
189
Observação dos editores da revista Morus e da tradutora: os cínicos também se posicionavam contra a
atuação política, e de modo ainda mais radical.
190
Desde Sylvester, a figura ficcional de Thomas Morus, que encontramos no texto, é designada como
“persona Morus” para que possamos diferenciá-la claramente do autor Thomas Morus. (Ver Sylvester,
1977, p. 293; Erzgräber, 1980, p. 49; Gnüg, 1999, p. 31; Bejczy, 1995, p. 18, etc.).
191
Assim parece ter concebido o próprio Morus (ao menos parcialmente): em dezembro do ano de 1516,
Morus escreve a Erasmus que sonhou ter sido eleito regente da Utopia: “For in my daydreams I have been
marked out by my Utopiens to be their king forever; (...) I was going to continue with this fascinating
vision, but the rising Dawn has shattered my dream – poor me! – and shaken me off my throne and
summons me back to the drudgery of the courts” (in Rogers, 1961, p. 85).
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
304
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
pessoal em uma vida livre dos negotia192, pelo menos na Europa de seu tempo. No
entanto, caracterizar Hitlodeu como seguidor do epicurismo seria desmedido. Além
disso, Hitlodeu destaca, ao tratar da ética dos utopianos, que na ilha de Utopia encontrase o Estado mais feliz: nusquam neque praestantiorem populum, neque feliciorem esse
rempublicam (178/16-18) [“em nenhum lugar há povo mais excelente, nem república
mais feliz”], o que permite compreender que, aos olhos de Hitlodeu, em Utopia, a
eudaimonia concretizou-se. Ao término de seu relato sobre a ilha de Utopia, segue a
definição da melhor vida possível, que claramente representa o entendimento epicurista
do beate uiuere [“viver feliz”]: Nam quid ditius esse potest, quam adempta prorsus
omni solicitudine, laeto ac tranquilo animo uiuere? (238/11-12) [“Pois o que pode ser
mais precioso que, subtraídos completamente todas as preocupações, viver com o
espírito alegre e tranquilo?]. Ao final, Hitlodeu menciona novamente a segurança
social193, base para a tranquillitas animi [“tranquilidade de espírito”], que assim é
garantida no Estado utópico. Mesmo que, segundo Epicuro, a segurança social seja um
entre outros aspectos da eudaimonia194, Hitlodeu e os utopianos concordam
evidentemente com a exigência de uma vida minime anxiam, ac maxime laetam e laeto
ac tranquilo animo, como Cícero prova ser também exigência de Epicuro: (...) ut omnes
bene sanos in viam placatae, tranquillae, quietae, beatae vitae deduceret? (Cíc., De fin.
1, 71) [“(...) que todos os sensatos trouxesse para o caminho plácido, tranquilo,quieto
da vida feliz?” ]; [iustitia], quae non modo numquam nocet cuiquam, sed contra semper
afficit cum vi sua atque natura, quod tranquillitas animos, tum (...) (Cíc., De fin. 1, 50)
[“(justiça) a qual não apenas nunca causa dano a ninguém, mas, pelo contrário, sempre,
por sua força e natureza própria, proporciona algo que tranquiliza as almas, (...)”]. No
Estado da Utopia Hitlodeu vê concretizar o ideal de uma vida feliz. Por esta razão,
192
Cícero traduz o termo negotia pelo termo grego πράγματα, que Epicuro em KD 1 define como
prejudicial à eudaimonia divina: τὀ μακάριον καὶ ᾂϕθαρτον οὒτε αὐτὀ πράγματα ἒχει οὒτε ᾶλλῳ παρἑχει
ὣστε οὒτε ὀργαῖς οὒτε χάρισι συνἑχεται ἑν άσθενεῖ γἀρ πᾶν τὀ τοιοὒτν (KD 1); (…) vere exposita illa
sententia est ab Epicuro, quod beatum aeternumque sit, id nec habere ipsum negotii quicquam nec
exhibere alteri (…) (Cíc., De nat. deor. 1, 45). [“(...) foi verdadeiramente exposta por Epicuro aquela
famosa ideia: aquilo que é feliz e eterno não tem ele mesmo nenhuma preocupação, nem a causa a outro
(...)”]
193
non de suo uictu trepidum, non uxoris querula flagitatione uexatum, non paupertatem filio metuentem,
non de filiae dote anxium, sed de suo, suorumque omnium, uxoris, filiorum, nepotum, pronepotum,
abnepotum, & quam longam posterorum seriem suorum, generosi praesumunt, uictu esse, ac felicitate
securum. (238/12-17) [“Não ser preocupado com seu sustento, não ser aborrecido pelas importunas
reclamações da esposa, não temer a pobreza para seu filho, não ficar ansioso com o dote da filha, mas
seguro quanto ao sustento e à felicidade seus e de todos os seus – das esposas, dos filhos, dos netos,
bisnetos, trinetos e toda a lon ga série de seus descendentes, que serão, presume-se, pessoas bem
nascidas.”]
194
As fontes sobre epicurismo tratam amplamente da supressão da sensibilidade corporal para dor, assim
como da supressão do medo da morte e da não intervenção divina.
305
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
Grace pôde julgar que “Hythlodaeuus’ upianism is wholly consonant with Epicurean
ideals”.
4. Antiepicuristas
Apesar dos diversos paralelos traçados até aqui entre a Utopia e o epicurismo,
há na sociedade utópica alguns momentos que não apenas não se relacionam ao
ensinamento epicurista, como são claramente contrários a este. Tais elementos se
referem primeiramente aos fundamentos religiosos dos utopianos referidos no capítulo
sobre a ética. Utopos, que permitiu algumas liberdades na construção da religião utópica
também estabeleceu três fundamentos: 1. A imortalidade da alma; 2. A providência
divina; 3. A avaliação dos atos terrenos de cada indivíduo pela recompensa ou punição
após a morte. Aquele que recusa estes três importantes princípios não pode ser
considerado um homem ou um cidadão na Utopia.
Nisi quod sancte ac seuere uetuit [i.e. Vtopus], ne quis usque adeo ab humanae
naturae dignitate degeneret, ut animas quoque interire cumcorpore, aut mundum
temere ferri, sublata prouidentia putet. atque ideo post hanc uitam supplicia uitijs
decreta, uirtuti praemia constituta credunt. contra sentientem, ne in hominum quidem
ducunt numero, ut qui sublimem animae suae naturam, ad pecuini corpusculi
utilitatem deiecerit, tantum abest ut inter ciues ponant (...) (220/21-28).
[“A não ser o que santa eseveramente ele (Utopos) proíbe, para que ninguém
degenerare tanto em dignidade da natureza humana a ponto de acreditar que a alma
pereça junto com o corpo, e que o mundo tenha surgido acidentalmente, tendo sido
removida a divina providência. E por isso, após esta vida, creem que aos vícios se
decretem castigos e às virtudes sejam atribuídas recompensas. Quem pensa ao
contrário, de sorte que rebaixa a natureza sublime de sua alma à vileza dos
corpúsculos dos animais, nem mesmo o contam entre os homens. Está longe de que o
ponham entre os cidadãos (...)”]
Por esta razão, todos os utopianos, apesar de diferenças em determinadas
particularidades de sua prática religiosa, a) possuem uma concepção de fé monoteísta e
b) acreditam em que o poder divino criou o mundo e segue guiando e os destinos: Quin
caeteris quoque omnibus, quamquam diuersa credentibus, hoc tamen cum istis
conuenit, quod esse quidem unum censent summum, cui & uniuersitatis opificium,
&prouidentia debeatur, (...) (216/17-20) [“Quanto ao restante, todos, ainda que de
credos diversos, também concordam com isso, porque estimam haver de fato um ser
supremo, a quem é devida a criação do mundo e a providência”]. Surtz observa com
razão que os utopianos, assim como Epicuro, para cuja ética eles se orientam em outros
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
306
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
casos, só poderiam podem punir com o desprezo195. Que a percepção espititual se
extingue com a morte e que os deuses não intervêm nos acontecimentos temporais são
condições prévias do ensinamento epicurista196. De ambos resulta a impossibilidade de
punição ou recompensa após a morte. Para Epicuro, estes pressupostos básicos estão a
serviço da luta contra o medo, como também contra uma sensação dolorosa da morte e
de uma punição pelos deuses. O medo é, no sistema epicurista, uma das três fontes (ao
lado dos desejos irrealizáveis e da dor) do “desprazer”197 e, portanto, um dos mais
importantes sentimentos negativos que deve ser domado para que não ameace a
tranquilidade da alma. Para os utopianos, contudo, é exatamente o medo de uma
punição, não apenas temporal, mas também de uma força divina198, que deve garantir o
bom funcionamento da comunidade:
(...) quorum instituta, moresque (si per metum liceat) omnes, floccifacturus sit. Cui
enim dubium esse potest, quin is publicas patriae leges, aut arte clam eludere, aut ui
nitatur infringere, dum suae priuatim cupiditati seruiat, cui nullus ultra leges metus,
nihil ultra corpus spei superest amplius. (220/28-222/3).
[“todas as leis e costumes deles, caso se avalie pelo medo [que poderiam provocar],
seriam consideradas sem importância. Quem poderia duvidar que alguém fraudaria às
escondidas, por artifícios, as leis públicas da pátria ou, pela força, procuraria infringilas, conquanto que atendesse aos seus desejos particulares, alguém que não teme nada
além das leis, a quem nenhuma esperança maior resta além do corpo?”]
Este aspecto, que seria inconcebível no capítulo sobre a ética, apresenta-se aqui
com o significado elementar da lealdade predominante dos utopianos às suas leis.
Glaser afirma: “a ordem social na ilha de Utopia baseia-se portanto menos no juízo que
no medo da penalização pelo ser supremo”199 – um argumento incompatível com o de
Schulte Herbruggen, que observa que os utopianos “[obedecem] às normas do Estado
devido à vontade interior e, por esta razão, não se faz necessária uma autoridade exterior
que os obrigue a isto”200. Surtz/Hexter buscam uma síntese do ser maior e da autoridade
195
Ver Surtz, 1957, p. 26.
Ver KD 2, Diog. Laert. 10,124; KD 1; Cíc., De nat. deor. 1, 45.
197
Ver Hossenfelder, 1995, p. 111 e p.114-116.
198
Para os epicuristas, seguir rigorosamente as leis é resultado do medo da punição pelo poder estatal (ver
Sprute, 1989, p. 85). Isso se deixa concluir do discurso de Torquato, quando este trata do comportamento
desordeiro (isto é, de um comportamento contrário à lei vigente) hoc ipso, quod adest, turbulenta est (Cic
De fin.1,50). A respeito, ver Armstrong, 1997, p. 330: “The Epicurean wants no part of this troubled life,
and so neither commits injustice nor hatches plots to commit it”.
199
“Die gesellschaftliche Ordnung auf der Insel Utopia beruht also weniger auf Einsicht denn auf der
Furcht vor Strafe durch das höchste Wesen” (Glaser, 1996, p. 47).
200
“(...) von innen her die Normen des Staates [erfüllen], der sie ihnen deshalb nicht mit äußere Gewalt
aufzwingen muß” (Herbrüggen, 1960, p. 26).
196
307
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
maior: “The Utopians evidently believe in a natural connection between religious faith
and public morality”201.
Como é possível que aquele filósofo, cujo ensinamento pode ter sido colocado
como base em muitas áreas da vida utópica, fosse considerado na própria ilha como
desumano? Esta contradição pode ser facilmente enfraquecida quando pensamos que os
utopianos de forma alguma se orientavam por uma pessoa chamada Epicuro, a respeito
do qual nada sabiam antes da chegada de Hitlodeu202, e que todas as suas concepções
filosóficas são genuinamente utópicas. E chegamos mais uma vez à ambiguidade
utópica: a filosofia e a religião dos utopianos são 1. Utópicas, como adjetivo do Estado
da Utopia; 2. Utópicas, no sentido de exteriores à realidade. O mesmo pode ser
atribuído à extinção da propriedade privada, princípio fundamental para o sistema
econômico utópico. Sabe-se que Epicuro não era defensor da propriedade comum,
apesar de que a concepção da sua escola filosófica e do culto à amizade o poderia supor:
“E Epicuro, disse ele, não queria saber nada a respeito da união entre os bens
individuais e o bem coletivo, como exigia Pitágoras com seu mote ‘os bens do amigo
são bens coletivos’ pois isso sinalizaria desconfiança, e desconfiança e amizade não
poderiam tolerar-se”203. Assim sendo, dois princípios básicos da Utopia, a eliminação
201
Ver Surtz/Hexter, 1995, 220/28-29. Esta reflexão também é feita por Cícero: cum qua [i.e. pietate]
simul sanctitatem et religionem tolli necesse est, quibus sublatis perturbatio vitae sequitur et magna
confusio; atque haut scio, na pietate adversus deos sublata fides etiam et societas generis humani et uma
excellentissuma virtus iustitia tollatur. (Cíc., De nat. deor.,1, 3-4) [“com ela (a piedade) juntamente, é
necessário que se destruam a santidade e a religião; e com a destruição desssas, seguem-se desordem e
grande confusão na vida civil e, talvez, desaparecida a piedade para com os deuses, também se acabem a
boa-fé, a sociedade do gênero humano e, ao mesmo tempo, a justiça, a mais eminente virtude.”] Reflexão
similar também é feita por Platão: Nomoi 612b-614a.
202
Ex omnibus his philosophis, quorum nomina sunt in hoc noto nobis orbe celebria, ante nostrum
aduentum ne fama quidem cuiusquam eo peruenerat, & tamen in musica, dialecticaque, ac numerandi &
metiendi scientia, eadem fere quae nostri illi ueteres inuenere. (158/15-20) [“De todos esses filósofos,
cujos nomes são célebres neste mundo que nos é conhecido, nem sua fama chegara até eles antes da nossa
chegada, e, no entanto, em música, dialética, nas ciências dos números e das medições, descobriram
praticamente o mesmo que aqueles nossos antigos”]. A suposição que os utopianos não tenham ouvido
nada dos antigos se opõe ao relato de Hitlodeu sobre o seu encontro com os romanos e com os egípcios
(ver 108/5-6), dos quais os utopianos fizeram bom proveito: Nihil artis erat intra Romanum imperium,
unde possit aliquis esse usus, quod non illi aut ab expositis hospitibus didicerint, aud acceptis quaerendi
seminibus adinuenerint. (108/7-10) [“Não havia arte do império romano da qual pudessem tirar alguma
utilidade que eles não tenham aprendido com os náufragos estrangeiros, ou, recebidas as sementes, não
tenham procurado descobrir”]. A lógica do texto estabelece, devido a poucas informações, uma
cronologia (naturalmente fictícia), de que o encontro ocorreu em torno do ano 315 d.C. (ver 108/3), ou
seja, tempo em que os visitantes muito bem poderiam ter transmitido todo o conhecimento da
Antiguidade. É notória a ausência dos gregos, povo muito valorizado por Hitlodeu (ver 48/32-50/3). A
Antiguidade Grega é apresentada aos utopianos pela visita (em torno de 1505) de Hitlodeu (ver p. 180182).
203
“Und Epikur, sagt er, wollte nichts wissen von Vereinigung des Einzelvermögens zum Gesamtbesitz,
wie es Pythagoras verlangte nach seinem Spruch: ‘Freundesgut ist gemeinsam’; denn das sei ein Zeichen
von Mißtrauen; Mißtrauen aber und Freundschaft vertrügen sich nicht miteinander” (Diog. Laert. 10, 11).
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
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Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
da propriedade privada e os fundamentos religiosos, são antiepicuristas. Portanto, o
Estado utópico pode ser assinalado como 1. Uma fusão entre o mote pitagórico 204 e a
comunidade de amigos praticada na escola de Epicuro e 2. Correspondente a uma
unificação da teoria com contraditórios princípios cristãos, o que seria inconcebível na
Antiguidade, mas possível na Utopia205.
Conclusão e incorporação dos resultados em uma abordagem ampla e
interpretativa
Sobretudo no âmbito da ética, a inclinação dos utopianos para a escola
filosófica epicurista da antiguidade é tão forte que é quase inconcebível o fato de este
aspecto ter sido ignorado até o momento na história da crítica. Além disso, é evidente
que Morus empenhou-se em uma adequada compreensão do Epicuro “hedonista”, que
de fato não desenvolveu uma teoria da maximização do prazer objetivando luxúria ou
gula desmedidas. Evidências claras disso são o destaque às ações equilibradas que
expressam diversas variações do cálculo epicurista do prazer, e a adoção dos valores da
pietas e da humanitas. Semelhante a Lorenzo Valla206, podemos notar na Utopia a
tentativa de tornar profícuo o cálculo epicurista do prazer como princípio das ações
humanas, caso se entenda realmente assim, como apresentado na Utopia.
Os utopianos são epicuristas? O segundo capítulo tratou de claras influências
da teoria do prazer epicurista, e o terceiro capítulo traçou paralelos (um pouco menos
claros) com o epicurismo, enquanto o quarto capítulo, por outro lado, explicitou
elementos antiepicuristas, e evidenciou a mistura de pensamentos filosóficos de outras
escolas, sobretudo estoicas. Por essas razões, a resposta não pode ser um “sim”
definitivo. Este balanço não deve ser tido de modo algum como insatisfatório; muito
pelo contrário, a pesquisa aqui conduzida pretende exemplificar os relacionamentos de
Morus com os padrões literários.
204
Ver a interpretação de Olin, 1994, p. 57-69.
O fato de ambos os componentes constarem no Livro X de Diógenes Laércio fortalece a impressão de
que Morus tenha adotadoa síntese de dois conceitos inconciliáveis da Antiguidade de modo intencional.
206
No texto De vero falsoque bono, também em De voluptate (ca. 1490), Valla tentou conciliar o antigo
epicurismo com a religião cristã, e fazer do termo Voluptas um meio útil de medição para as ações
terrenas (ver Blum, 1999, p. 35-36). Uma comparação entre a De Voluptate de Valla e a ética dos
utopianos é realizada por Logan (ver Logan, 1983, p. 157-163). Este chega à conclusão que existem tanto
elementos comuns (ver Logan, 1983, p.161-162.), como elementos díspares: “The closeness of the
relationship between Valla’s arguments and those of the Utopians is obvious, both where the Utopian’s
conclusions agree with his and where they do not.” Logan, 1983, p.160-161.
205
309
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
Por um lado, não é surpreendente que encontremos em textos do Renascimento
idéias evidentes da Antiguidade, contudo também descobrimos inconsistências e mesmo
e contradições em relação aos conceitos antigos originais. Rüdiger prega a este processo
de incorporação da Antiguidade o termo Recepção, que consegue descrever “da melhor
maneira a relação entre a tradição e a criação contemporânea”207. Nesse processo não se
trata somente de conservação passiva, mas de deformação criativa208. Por esta razão,
Burke caracteriza a época com o termo “recepção criativa”209, que deve expressar “que
tudo o que é transferido se modifica no processo da transmissão (...). Do ponto de vista
dos teóricos da recepção, o Renascimento criou a Antiguidade tanto quanto a
Antiguidade gerou o Renascimento. Artistas e escritores não buscavam imitar, mas
reformular.”210
Tudo o que era recebido ou reformulado é descrito pelos estudos literários
como “folie”. Se contemplarmos o antigo epicurismo como uma folie, como acontece
neste ensaio, então esse processo de reformulação, de nova criação, tendo em vista a
Utopia, deve ser caracterizado como “filtragem”
211
de elementos particulares de uma
folie. Morus filtra, primeiro, elementos da folie do epicurismo e os une a elementos das
folies de outras escolas filosóficas. Em segundo lugar, ele relaciona o paganismo antigo
(isto é, as considerações dilosoficas dos utopianos baseadas na razão) aos elementos de
uma folie religiosa cristã, em que argumentos religiosos são englobados no sistema ético
de valores (rever capítulo 2) e na qual dois fundamentos da fé cristã (capítulo 4) são
representados. Por esta razão, na Utopia não estão apenas reunidas a razão e a fé, mas
também duas folies diferentes e que não poderiam ser mais antitéticas, quando se pensa
207
“(...) das Verhältnis von Tradition und schöpferische Gegenwart am besten” (Rüdiger, 2001, p. 576).
“Wir verstehen darunter nicht die passive Bewahrung, sondern die tätig-umgestaltene Aufnahme
überlieferten Kulturgutes in die eigene geistige Welt. (...) Die große Leistung seiner Blütezeit aber ist eine
echte Rezeption: das Umschaffen des Geschaffenen, (...)”[“Nós não entendemos isso como a passiva
preservação, mas como uma deformação-ativa da recepção de bens culturais reentregues para o próprio
mundo intelectual. (...) A maior realização deste tempo de apogeu é a verdadeira recepção: a deformação
da criação, (...)”] (Rüdiger, 2001, p.576).
209 “
kreativen Rezeption” (Burke, 1998, p. 21).
210
“daß sich alles, was auch immer übergeben wird, durch den Prozeß der Übermittlung verändert. (...)
Vom Standpunkt der Rezeptionstheoretiker betrachtet, schuf die Renaissance genausosehr die Antike wie
die Renaissance hervorbrachte. Künstler und Schriftsteller ahmten nicht so sehr nach, sondern formten
um (...)” (Burke, 1998, p. 19-20).
211
Ver aqui também o termo “filtro” utilizado por Burke (1998, p. 22), que tem em vista todo o processo
humanista da recepção: “Eine der zentralen Ideen oder Metaphern in modernen Untersuchungen über die
Rezeption ist die Vorstellung von einem ‘Sieb‘ oder ‘Filter‘ das manches, aber nich alles durchläßt. Was
ausgewählt wird, muß der Kultur ‘kongruent’ sein, in die das Ausgewählte eingebracht wird” [“Uma das
ideias centrais ou metáfora nas análises modernas sobre a recepção é a imagem de uma ‘peneira’ ou
‘filtro’, que deixa passar algo, mas não tudo. O que é escolhido, precisa ser ‘congruente’ com a cultura, na
qual o escolhido será introduzido”].
208
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
310
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
que, de todas as escolas da Antiguidade, somente as epicuristas contestavam crenças
fundamentais como a imortalidade da alma e a intervenção divina na vida humana. Em
terceiro lugar, pode-se falar de uma relação entre uma folie e os elementos exatamente
contrários a esta mesma folie, praticamente “antielementos”.
Não é a única vez na Utopia que conceitos aparentemente inconciliáveis são
ainda integrados em um todo. Se observarmos outras folies, reiteradamente tratadas na
pesquisa, resulta então do processamento dessas folies um esquema de (+) folie e (-)
folie, que podem ser representados da seguinte forma em uma tabela:
Religião cristã
Comunismo
A República platônica212
(+) folie
(-) folie
(+) Cristão
(-) Cristão
Crença em Deus e na
imortalidade da alma, casamento
único, punição da relação extraconjugal
Possibilidade de separação dos
cônjuges, certa liberdade de
crença, Eutanásia
(+) Comunismo
(-) Comunismo
Fim da propriedade privada,
trabalho obrigatório, extinção do
dinheiro
Religiosidade obrigatória,
obrigação de crer em um único
Deus.
(+) A República
(-) A República
Propriedade comum, rigorosa
vigilância dos cidadãos
Propriedade comum para todos,
casamento único
212
Muitas vezes é apresentada a comparação entre a A Repúblicae a Utopia. Ver, por exemplo, Mölk, p.
310-312; Logan, 1983, p. 133-138; Starnes, 1990. p. 86/16, 102/13-15 e 104/4, nas quais constam
referências diretas a Platão.
311
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Sandra Schwartz
Idealidade
Luciano214
A cidade do sol
de Jâmbulos215
Descrição de
Vespúcio
Epicurismo
(+) Ideal
(-) Ideal
Excedência de víveres, seguridade
social, etc.
Ausência de individualidade e de liberdade
pessoal213
(+) Luciano
(-) Luciano
O estilo da sátira
[conteúdos específicos]
(+) Cidade do Sol
(-) Cidade do Sol
[elementos variados]
O chamado princípio da necessidade e da
razão
(+) Vespúcio
(-) Vespúcio
Ausência de propriedade privada,
desprezo pelo ouro216
O chamado princípio da necessidade e da
razão
(+) Epicurismo
(-) Epicurismo
Voluptas como o maior bem,
orientação pelo cálculo do prazer (para
detalhes, ver Süssmut, 1967, p. 276).
Crença na imortalidade da alma,
Crença na influência dos deuses na vida
humana
Na descrição da ilha de Utopia, Morus unifica os modelos mais distintos,
principalmente da Antiguidade e, ao fazer isso, os reformula de modo tão criativo, que
não encontramos dificuldades em relacioná-los a outros elementos e também a
antielementos de mesmas folies. Morus filtra apenas os elementos das folies que
harmonizam com o todo, e os reúne em uma mistura única. Diante do fato que o autor
aplica este princípio em relação a seus modelos de modo integrado, pode-se falar de um
princípio estrutural especifico de (+) folie e (-) folie214 da Utopia. As discrepâncias
observadas se aplicarmos “regras” da realidade não são importantes na ficção Utopia.
Justamente porque a ilha de Utopia é fictícia, ela pode ultrapassar as fronteiras que lhe
são estipuladas através da sua realidade histórico-cultural e do conhecimento dos que
213
Como a crítica aos “distopistas” (Glei, 1998, p. 44). Ver Glaser, 1996, p. 38-48 e Berger, 1988, p. 229248). O último caracteriza os utopistas como “walking statues” (Berger, 1988, p. 237).
214
Ver Dorsch, 1970, p. 16-35; Branham, 1985, p. 23-43.
215
Ver Süssmut, 1967, p. 61-67.
216
Ver Vespucci, 1916, p. 6-8. Ver também Süssmut, 1967, p. 37-43; Surtz, 1989, p. 22-24; Adams,
1941, p. 48.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
312
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia
fazem a sua recepção, e nela pode ser esboçada uma sociedade, na qual podem ser
unificados os modelos da Antiguidade, amados pelo aplicado e culto humanista.
Portanto, os utopianos não podem ser indiscriminadamente coarctados a cristãos,
comunistas ou epicuristas, e nem devem ser, pois eles são, precisamente, utopianos.
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