Veja por dentro

Transcrição

Veja por dentro
ÍNDICE
O que é o mutismo seletivo?............................................
9
Prólogo: Sobre uma gata................................................... 13
Capítulo 1: Um novo começo........................................... 17
Capítulo 2: O Lorcan, a Lily e as gargalhadas.................. 29
Capítulo 3: Nervos do infantário...................................... 47
Capítulo 4: O silêncio na escola....................................... 65
Capítulo 5: Encantado com a gata.................................... 95
Capítulo 6: Laço inquebrável............................................ 109
Capítulo 7: Uma pequena palavra................................... 125
Capítulo 8: Uma nova estrela........................................... 141
Capítulo 9: A fama felina.................................................. 155
Capítulo 10: Um dia de cada vez .................................... 183
Epílogo: Sobre um menino .............................................. 211
Fama para a Gata Jessi e para o Lorcan............................ 215
Agradecimentos................................................................ 221
A Minha Gata Jessi.indd 7
8/26/14 10:16 AM
O QUE É O MUTISMO SELETIVO?
O
mutismo seletivo é uma perturbação de ansiedade caraterística da infância que leva as crianças
afetadas a falar fluentemente em algumas situ-
ações, mantendo-se caladas noutras. Sabe-se que o distúrbio
começa nos primeiros anos de vida e pode ser transitório,
como, por exemplo, no período da entrada das crianças para
a escola ou quando são internadas num hospital, mas, em
casos raros, pode persistir ao longo da vida escolar.
Estas crianças normalmente não falam com os professores e também é possível que não falem com os colegas,
apesar de comunicarem não verbalmente. Podem ocorrer
outras combinações de não-linguagem, afetando membros
específicos da família da criança. Muitas vezes a criança
não tem outros problemas identificáveis e conversa sem res­
trições em casa ou com os melhores amigos. Normalmente,
a criança progride na escola ao ritmo esperado em áreas nas
quais não é necessário falar.
9
A Minha Gata Jessi.indd 9
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
A caraterística essencial do mutismo seletivo é a incapacidade contínua de falar em situações sociais específicas (por
exemplo, na escola, com os colegas e/ou com o professor),
apesar de conseguir falar noutras situações mais familiares.
As crianças com mutismo seletivo, muitas vezes:
• Têm dificuldade em olhar o interlocutor de frente quando estão ansiosas — podem virar a cabeça e parecer que
o ignoram. Pode pensar que estão a ser antipáticas, mas
não estão — simplesmente não conseguem responder;
• Não sorriem, ou olham inexpressivamente quando ansiosas — na escola, sentem-se agitadas a maior parte do
tempo e é por isso que lhes é difícil sorrirem, rirem ou
demonstrarem os seus sentimentos verdadeiros;
• Movem-se de forma rígida ou desajeitada quando ansiosas, ou se acham que estão a ser observadas;
• Sentem enorme dificuldade em responder no mesmo
registo ou dizer olá, adeus ou obrigado — podem pare­
cer mal-educadas ou agressivas, mas não é propositado;
• São lentas a responder a uma pergunta — de qualquer
natureza;
• Ficam mais ansiosas quando são pressionadas a falar;
• Preocupam-se mais do que as outras pessoas;
• São emocionalmente sensíveis;
• São fisicamente sensíveis, como por exemplo ao ruído,
a odores, ao toque, às multidões;
• São muito sensíveis às reações dos outros — podem
desvirtuar estas reações;
10
A Minha Gata Jessi.indd 10
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
• Têm dificuldades em expressar os seus próprios sentimentos — porque é doloroso.
SMIRA
(Selective Mutism Information & Research Association)1
www.selectivemutism.co.uk
1
Associação de investigação e informação sobre o Mutismo Seletivo.
11
A Minha Gata Jessi.indd 11
8/26/14 10:16 AM
Prólogo
SOBRE UMA GATA
O
Lorcan estava de pé, em frente a toda a turma,
com trinta pequenos rostos entusiasmados a fitarem-no das suas mesas. Ao seu lado, numa cai-
xa transportadora, estava um milagre pequeno e fofo — a
razão pela qual ele conseguia enfrentar esta tarefa decisiva.
Com oito anos, estava prestes a começar a sua primeira
apresentação em público e o tópico que escolhera foi o seu
querido animal de estimação, a nossa Jessi, uma linda gata
birmanesa.
Antes de a Jessi ter entrado nas nossas vidas, há dois anos,
falar em público não seria apenas intimidante: seria impossível. O Lorcan sofre de mutismo seletivo, uma perturbação
de ansiedade que o impede de conversar com os colegas e
professores, e que o manteve mudo durante a maior parte dos primeiros anos escolares. Desde a chegada da Jess,
ele melhorou rapidamente e, em dezembro de 2012, quando chegou a vez dele no Hot Spot — um projeto no qual
13
A Minha Gata Jessi.indd 13
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
as crianças dão uma curta palestra sobre um tópico que
lhes interesse — a professora do Lorcan perguntou-lhe se
ele queria participar. Para surpresa dela e minha, ele aceitou
o desafio.
Era expetável que o Lorcan escolhesse falar sobre a Gata
Jessi e, assim, perguntámos à professora se autorizava a entrada da gata na escola e ela anuiu. Optámos por manter a
apresentação oral simples, mas ter muitas coisas para mostrar. O Lorcan escolheu o que queria incluir e apontámos
algumas frases sobre o Prémio Gato do Ano da instituição
Cats Protection que, no verão, tinha sido ganho pela Jess.
O Lorcan preparou-se bem, e na manhã do Hot Spot parecia calmo. Foi para a escola como habitualmente, levando
consigo uma mochila com as coisas da gata, e eu fui a casa
buscar a Jessi. Quando chegámos à escola, ela estava deitada
numa manta confortável na sua caixa transportadora e parecia bastante descontraída e, assim, entreguei-a à professora
e esperei, ansiosamente, na entrada.
Sabíamos que podia acontecer uma de duas coisas: o Lorcan
podia sentir-se confiante e a apresentação correr muito bem
ou ter dificuldades e bloquear. Felizmente, o melhor amigo
dele oferecera-se para ajudar com a apresentação e, assim,
reconfortei-me pensando que, se ele tivesse dificuldades,
o George o ajudaria.
Como o Lorcan tinha feito grandes progressos na escola,
ao nível da comunicação, eu estava ansiosa por que o grande
momento dele corresse mesmo bem.
14
A Minha Gata Jessi.indd 14
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
Depois de uns dez minutos enervantes, o meu coração
saltou quando o Lorcan saiu da sala de aula. Depois, o alívio afluiu-me ao vê-lo esboçar um sorriso rasgado. Quando
voltou para a sala, a professora disse-me que o Lorcan fora
brilhante. Não tinha precisado da ajuda do George e até respondera às perguntas dos colegas, que tinham adorado ter
um gato na escola. Ele falou sobre os prémios que ela ganhou e mostrou várias lembranças, incluindo o programa
da cerimónia dos Prémios Gato do Ano no hotel Savoy, um
brinquedo da Jess e as bonitas gravuras que Simon Tofield,
o criador da série animada britânica Simon’s Cat, amavelmente desenhara para ele.
A professora mostrou-me uma fotografia do Lorcan a falar
para os colegas e estava encantada por ele ter superado este
obstáculo, tal como eu. Para o Lorcan, falar perante a turma
de cerca de trinta alunos e ser o centro das atenções tinha
sido uma grande proeza.
Sentindo-me eufórica e sem palavras, levei a Jess para casa
e mal podia esperar para partilhar as novidades com os meus
amigos e família. Na minha página do Facebook escrevi:
Hoje, o Lorcan levou a Gata Jessi para a escola e deu uma
aula para toda a turma! Falou sobre os Prémios Gato do Ano
e respondeu a perguntas. Não acredito que ele tivesse conseguido fazer isto se a gata não estivesse ali. Ela é uma bênção
preciosa, estando à altura do nome extravagante [de pedigree]
de Bluegenes Angel.
15
A Minha Gata Jessi.indd 15
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
Toda a gente ficou muito entusiasmada e eu recebi imensas mensagens de apoio das pessoas mais próximas que
acompanhavam a luta dele com o mutismo seletivo. Percebiam a grande importância disto para todos nós. E para mim
e para a minha família foi mais um motivo para nos sentirmos agradecidos por esta maravilhosa gata ter entrado nas
nossas vidas. Tem sido um verdadeiro anjo.
16
A Minha Gata Jessi.indd 16
8/26/14 10:16 AM
Capítulo 1
UM NOVO COMEÇO
A
lgumas semanas antes do Natal de 2003, levei
o meu filho de dois anos, o Luke, a uma festa de
aniversário de um rapaz da mesma idade. Enquan-
to as crianças brincavam e se divertiam ruidosamente, eu
conversava com uma amiga que estava grávida e prestes
a dar à luz a qualquer momento, e com mais outra grávida.
Com toda aquela conversa sobre bebés, comecei a sentir-me
estranha, mas depressa afastei a sensação quando o ritmo da
festa se tornou frenético.
Nesse ano, à semelhança da maioria dos anos, planeámos um Natal sossegado em família, em casa, comigo,
com o meu marido, David, os nossos dois filhos, Adam
e Luke, e com a minha mãe, Pauline, que vive mesmo ao
pé de nós em Manchester. Na noite de Natal comecei de
novo a sentir-me estranha e disse ao David, que por acaso
é médico:
— Estou grávida. Tenho a certeza de que estou grávida.
17
A Minha Gata Jessi.indd 17
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
— Não sejas tonta — respondeu-me com uma risada.
— Estás sempre a pensar que estás grávida. — Como não
estávamos a tentar ter outro filho, ele estava convencido de
que era apenas fruto da minha imaginação, mas eu sabia
que não.
No dia a seguir ao dia de Natal, fui aos saldos no Trafford
Centre — a grande Meca das compras, que fica perigosamente perto da nossa casa — e escolhi imensas pechinchas
adoráveis. Enquanto me dirigia para a caixa e pagava a pilha
de roupas novas, lembro-me de pensar «Que palermice estar
a comprar estas roupas se não as vou conseguir vestir dentro
de poucos meses».
Quando cheguei a casa, falei de novo com o David.
— Estou grávida — disse. — Não tenho dúvidas. Não te
sei explicar, apenas sei que estou!
Para me calar e não por acreditar em mim, o David saiu
imediatamente para ir comprar um teste de gravidez.
Fechei-me na casa de banho para fazer o teste e a estreita
linha azul depressa confirmou o que eu já sabia. Não disse
nada. Apenas mostrei o teste positivo ao David e ele disse «Oh,
afinal estás.» Não tinha sido planeado, mas foi uma surpresa
maravilhosa e ficámos ambos encantados.
O meu filho mais velho, o Adam, nasceu antes de eu
conhecer o David e tinha agora dezasseis anos, e o Luke, dois,
pelo que o novo bebé ia completar a família na perfeição.
Assim que soube que vinha a caminho um terceiro bebé,
pensei «Que nome damos a esta criança?» O meu marido
18
A Minha Gata Jessi.indd 18
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
é irlandês e pensei em muitos nomes de rapariga, mas quando passei para os nomes de rapaz bloqueei, pelo que comecei instantaneamente à procura de nomes. Quando estava
grávida do Luke, pensámos em George, mas não lhe ficava
bem e assim optámos por Luke. Desta vez imaginei algo um
pouco diferente. Procurei em sites da Internet por nomes
de bebé e estava sempre a encontrar Lorcan, pelo que fiquei
fixada nesse nome. Significa «guerreiro destemido».
Às vinte semanas, fomos fazer a ecografia de rotina e eu
disse à médica que não queria saber o sexo do bebé. Ela não
nos disse mas, embora tenha avançado pela ecografia rapidamente, conseguimos ver que era um rapaz. Para uma parteira e para um médico, não era difícil identificar!
Durante três anos após o nascimento do meu primeiro
filho, o Adam, formei-me como parteira. Percebi que era
um emprego muito recompensador e profundamente gratificante e adorei o facto de ter ajudado a trazer ao mundo
todos aqueles bebés.
Antes do nascimento do Luke, trabalhava numa mater­
nidade no Trafford General, mesmo ao pé da nossa atual
casa, mas quando engravidei do Lorcan reduzi as horas de
19
A Minha Gata Jessi.indd 19
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
trabalho até passar a trabalhar apenas uma noite por semana. Mesmo assim, a minha experiência passada e a minha
familiaridade com a unidade fizeram com que o nascimento do Lorcan não fosse complicado. O trabalho de parto foi
muito rápido. Depois da primeira contração, já estava ao telefone a dizer às parteiras que ele vinha a caminho. O parto
foi assistido pela minha grande amiga Natalie Webb-Riley
e correu tudo muito bem.
O Lorcan parecia em choque depois de nascer — talvez
a velocidade com que dei à luz tenha sido alarmante para ele
— mas a cara dele descontraiu-se depressa e transformou-se num lindo bebé. O Dave estava presente no parto e ambos lhe pegámos assim que ele nasceu. Tivemos de esperar que o pediatra o viesse examinar antes de eu poder sair,
pelo que o Dave foi buscar o Luke a casa para conhecer
o novo irmão. Consegui ouvir o Luke muito antes de o poder
ver, uma vez que veio a correr pelo corredor do hospital a
gritar «Mamã, mamã!» o mais alto que conseguia. Tenho
a certeza de que as outras parturientes ficaram emocionadas.
O Luke espreitou o bebé mas ficou mais interessado na
minha camisa de noite porque tinha uma imagem da Betty
Boop na parte da frente! Comprámos um presente como se
fosse do bebé para o Luke para que não se sentisse de parte.
Era o boneco do Peter Pan que ele queria.
Estive no hospital apenas algumas horas. Como parteira, sabia que estava bem, sabia o que esperar e não queria
que as outras parteiras andassem a correr atrás de mim.
20
A Minha Gata Jessi.indd 20
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
Acreditem em mim, elas têm mais que fazer. Nem sequer
me deram uma cama porque, embora estivesse cansada,
parecia que tudo tinha corrido às mil maravilhas, o Lorcan
tinha um peso saudável — cerca de 2900 kg — e eu estava
pronta para ir para casa.
Quando o trouxe para casa, o Luke ainda não estava com
uma boa impressão. Espreitou o seu irmãozinho, mas depressa decidiu que não estava interessado. O Adam já tinha
passado por isto uma vez, por isso um bebé recém-nascido
também não o fascinava.
A minha mãe veio ver-nos assim que chegámos a casa,
quando eu já me estava a sentir bem. Mais tarde nessa semana, o meu irmão e os filhos dele também nos vieram visitar
e depressa estabelecemos uma rotina e continuámos a nossa
vida.
O Lorcan era um bebé adorável, mas chorava muito, o que
assustava o Luke. Para uma coisa tão pequenina, tinha muita garganta e sempre que começava num pranto, o Luke
sentava-se com os dedos enfiados nos ouvidos para não
o ouvir. Uma vez foi tão cansativo para o Luke que ele até me
perguntou «Podemos devolver o bebé?»
As noites eram um pesadelo. O Luke foi um bebé normal.
Púnhamo-lo no berço e ele adormecia, mas com o Lorcan
era mais difícil. Ele era muito querido e muito bom durante
o dia, mas durante a noite era um terror.
Quando o Luke ainda era bebé, o David tinha de se levantar cedo para viajar uma distância razoável para o trabalho,
21
A Minha Gata Jessi.indd 21
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
por isso alimentava-o antes de sair. Mas ter duas crianças
pequenas é um exercício de paciência e quando o Lorcan
nasceu, o David tratava mais do Luke, que então tinha três
anos, enquanto eu tratava do bebé. Ele continuava a levantar-se cedo para ir para o trabalho, por isso habituou-se
a adormecer no meio de choradeiras.
Contrariamente ao que acontecia de noite, o Lorcan era
bastante calmo durante o dia, especialmente se não estivéssemos em casa. A minha mãe e eu levávamo-lo frequentemente ao Trafford Centre quando chovia, porque era uma
excelente forma de sairmos de casa e também podíamos
levar o carrinho de bebé.
Quando o Luke era pequenino, era terrível em passeios
pelo centro comercial. Queria tudo, estava sempre a fazer
birras e estávamos constantemente a tirá-lo das lojas aos gritos. Por sua vez, o Lorcan era maravilhoso. Quando já não
era tão pequeno até nos ajudava a fazer compras. A minha
mãe perguntava «Podes ajudar-me a escolher?» e ele apontava para as coisas a partir do seu carrinho. Ele podia passar
o dia todo em lojas de roupa aborrecidas, continuando sentado e com um sorriso, sem dizer um pio.
Quando o bebé começou a andar e a gatinhar, o Luke mostrou um pouco mais de interesse e até se deitava no chão
para brincar com ele, o que era um alívio. Andava preocupada com a possibilidade de o Luke nunca vir a gostar do bebé.
A primeira vez que o Luke mostrou um verdadeiro interesse
foi quando convertemos a garagem num quarto de brincar.
22
A Minha Gata Jessi.indd 22
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
O Lorcan tinha sete meses e o Luke chegou do infantário,
encontrando o novo quarto de brincar alcatifado e decorado.
— Posso brincar no quarto de brincar? Com o Lorcan? —
perguntou.
Eu estava encantada, porque esta foi realmente a primeira vez que ele quis fazer algo com o bebé. Até se tornou um
pouco protetor. Um dia, quando o Lorcan tinha oito meses
e o Luke quase quatro anos, levei-os a um parque de diversões com insufláveis perto de casa. Estavam os dois sentados
numa piscina de bolas quando uma menina tocou de raspão
no Lorcan com um dedo do pé por acidente. Não se magoou
nem sequer chorou, mas o Luke não gostou da situação.
Parecia muito zangado e disse à pobre rapariga sem rodeios
«Deste um pontapé ao meu bebé!» Desde então que olha
pelo irmão das mais variadas formas.
A Maternidade do Trafford General — que lamentavelmente foi fechada depois de o Lorcan ter nascido — teve um
papel muito importante nas nossas vidas. Além de ter sido
o local de nascimento do Lorcan, também foi onde eu e o
David nos conhecemos, em 2000. Não houve logo uma
faísca intensa — na verdade, nem me consigo lembrar
23
A Minha Gata Jessi.indd 23
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
da primeira vez que nos cruzámos — e as minhas primeiras
palavras para ele provavelmente foram «Pode assinar esta
receita?» ou, então, «Pode ir consultar um paciente?»
Mas trabalhámos lado a lado na clínica todas as semanas
e demo-nos bem.
O David e alguns dos outros médicos estavam a estagiar
durante seis meses na clínica e, quando o estágio chegou
ao fim, fez-se uma grande festa de despedida para todos.
Foi uma noite muito alegre e divertimo-nos ao máximo.
No fim da noite, como ele vivia no hospital e eu mesmo ao pé,
acabámos por ir para casa juntos e a nossa relação cresceu
a partir daí. Começámos a ver-nos com mais frequência.
Ele não era exatamente o que eu pensava ser o meu género,
para ser sincera, mas demo-nos incrivelmente bem e houve
um clique. A relação ainda era recente quando já sabíamos
que íamos ficar juntos.
O Adam nasceu quando eu tinha vinte anos e fui mãe
solteira durante doze até o David aparecer na minha vida.
Nem tudo foi perfeito, mas vivia com a minha mãe e o meu
pai e eles sempre me apoiaram. Não teria conseguido tirar
o curso de obstetrícia ou permanecer num emprego com
turnos se não tivessem sido eles. A obstetrícia é uma profissão imprevisível e se a mulher de quem estamos a cuidar dá à luz no fim do turno não vamos para casa quando
estávamos à espera, pelo que é importante ter bons apoios
para a criança. Também fazia noites a tempo inteiro sempre
que podia, o que se traduzia em mais tempo com o Adam
24
A Minha Gata Jessi.indd 24
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
durante o dia. Usava o carro da minha mãe e não precisava
de me preocupar com a criança, por isso era uma boa situa­ção para mim. O meu pai faleceu quando o Adam tinha
cinco anos e, como a minha mãe ficou viúva tão nova, também lhe fizemos companhia.
O Adam era um rapaz muito bem comportado. Apesar de
só ter sido diagnosticado quando tinha dezoito anos, sofria
de síndrome de Asperger, o que geralmente leva as crianças
a comportarem-se melhor do que o normal porque gostam
de seguir regras.
O David deu-se bem com o Adam desde o início. O Adam
tinha cerca de doze anos quando se conheceram, mas ele
era sempre muito descontraído e calmo, por isso não dava
problemas a ninguém, o que fez com que fosse mais fácil
que ambos se dessem bem.
Quase morri de choque quando descobri que estava grávida do Luke. Não estávamos juntos há muito tempo e não
tínhamos planeado ter filhos naquela altura. Sentia-me doente e indisposta e, nessa altura, o Dave e eu tínhamos uma
relação muito próxima, pelo que simplesmente lhe disse que
achava que estava grávida. Ele sempre quis constituir uma
família e assim que lhe contei ele disse que esperava que
eu estivesse mesmo grávida. Comprou um teste de gravidez
e quando viu o resultado positivo não parava de sorrir.
Eu estava mais apreensiva — não pelo bebé, mas pelo
trabalho de parto. Tal como muitas mulheres, tive uma má
experiência com o meu primeiro parto e, enquanto parteira,
25
A Minha Gata Jessi.indd 25
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
vi algumas mulheres passarem por situações complicadas.
Também houve uma grande distância temporal entre cada
gravidez e sentia-me ansiosa pela hipótese de ocorrerem
problemas. Mas o David estava emocionado e muito excitado, de tal modo que deixei os meus medos de lado. Nessa
altura, estávamos na casa dos trinta e, embora eu tivesse um
filho e ficasse bastante satisfeita com o facto de ficar apenas com um, qualquer bebé é sempre uma pequena bênção.
Quando o temos, tenha sido planeado ou não, é fantástico.
É o nosso bebé e amamo-lo incondicionalmente.
Quando estava grávida de três meses, alugámos um bungalow perto da casa da minha mãe. O Dave mudou de emprego na altura e estava a trabalhar mais longe, sendo que só
podia passar os fins de semana em casa.
O Luke nasceu em maio de 2001. O parto foi fácil e ele
era um bebé de sonho, do género que todas as mães adorariam ter. Sorriu às três semanas, sentou-se antes do tempo
e fez tudo um pouco mais cedo do que seria de esperar.
Nenhum de nós é muito convencional nem tradicional,
pelo que não senti a necessidade de nos casarmos, mesmo
com a chegada iminente do Luke. Mas ficámos noivos quando eu estava grávida e, em 2003, demos finalmente o nó,
principalmente porque os nossos pais continuavam a perguntar-nos quando é que o faríamos. Não houve um pedido de casamento romântico, apenas uma decisão de ambas
as partes para oficializar a relação, e definitivamente não
que­ríamos um casamento grande e caro.
26
A Minha Gata Jessi.indd 26
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
No primeiro dia soalheiro do ano, em março, fomos ao
cartório em Sale, Trafford, com a minha amiga, o marido
dela e os nossos filhos e depois regressámos a casa e festejámos com alguns amigos e a família. O Dave vestiu um fato
que já tinha e o meu vestido de casamento foi uma compra
de impulso feita algum tempo antes. Já tínhamos decidido
que íamos casar, apesar de não termos tratado de nada, mas,
numa das minhas habituais idas às compras com a minha
mãe, encontrei um vestido de seda rosa escuro pelo joelho.
A minha mãe disse que daria um lindo vestido de noiva
— uma dica que não passou despercebida — por isso comprámo-lo. Assim, o Dave e eu decidimos avançar, liguei para
o cartório e ficámos com a seguinte data disponível. Foi tudo
muito prático — tal como nós somos.
A cerimónia foi bastante memorável porque escolhemos
a mais curta possível e porque o Luke, que tinha quinze
meses na altura, passou o tempo todo a andar para a frente
e para trás no cartório e tentou abrir a porta de emergência
nas traseiras da sala. No caminho para casa, ligámos para um
pub da zona, o Jackson’s Boat em Sale, para tomarmos uma
bebida comemorativa com a Julie e o Kieran, os nossos padrinhos, e o seu pequeno Daniel, que era poucos meses mais
velho do que o Luke. Depois da primeira bebida, pediram-nos para sair porque os bebés estavam a rir demasiado e a
perturbar os clientes! Pareceu-nos justo, visto que toda a gente estava à nossa espera em casa e a minha mãe e a tia Vera
tinham-se esforçado imenso para preparar um buffet fabuloso.
27
A Minha Gata Jessi.indd 27
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
Nada foi planeado e tudo se preparou em cima da hora,
mas foi fantástico. Infelizmente, a família do Dave vive na
Irlanda e não conseguiu um voo tão em cima da hora, mas
passámos uma tarde bastante descontraída com os amigos e
os vizinhos. Ainda tenho o meu vestido de casamento pendurado lá em cima — com uma visível nódoa de vinho mesmo à frente!
28
A Minha Gata Jessi.indd 28
8/26/14 10:16 AM
Capítulo 2
O LORCAN, A LILY
E AS GARGALHADAS
O
Lorcan nasceu a 12 de setembro de 2004, no primeiro dia do infantário do Luke. O infantário fica
ao lado da escola Woodhouse Primary e, por isso,
seguem o calendário do ano letivo, mas amavelmente aceitaram que a data de início do Luke fosse adiada algumas
semanas por causa do bebé recém-chegado. No dia acordado, deixei o bebé com a minha mãe para poder levar o Luke
sozinho e fomos a pé até à escola, que fica perto da nossa
casa. Naturalmente, o Luke estava nervoso ao início e agarrou-me a mão durante uns minutos mas, quando viu todos
os outros meninos a brincar, descontraiu de imediato. Mal
via a hora de se juntar aos outros e, pouco depois, estava sentado no chão, a brincar com os carrinhos e os blocos Duplo
— que são brinquedos de construção parecidos com os da
Lego, mas com peças maiores.
O Luke ficava no infantário apenas duas horas e meia por
dia, às vezes de manhã, outras vezes à tarde, e, por isso, era
29
A Minha Gata Jessi.indd 29
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
complicado sair. Tinha de o ir buscar às 11h30 ou tê-lo pronto
para a sessão da tarde às 13h, para além de tomar conta do
bebé. Mas ele adaptou-se bem, o que foi excelente porque
teve de lidar com a chegada do bebé.
A minha mãe está reformada e vive no mesmo quarteirão, perto da entrada do infantário e, por isso, passávamos
muito tempo com ela. Eu deixava muitas vezes o bebé na
casa da minha mãe quando ia buscar o Luke à escola. E voltá­
vamos para almoçar.
Ainda trabalhava uma noite por semana e fazia alguns
turnos extra quando a maternidade tinha falta de pessoal,
e a minha mãe tomava conta das crianças quando o Dave
estava a trabalhar. Durante o resto do tempo, com o Luke
no infantário, eu ficava em casa com o Lorcan, mas ele não
precisava de muita atenção durante o dia, desde que pudesse
andar de um lado para o outro. Foi um bebé muito calmo
e não reclamava por estar sentado no carrinho de bebé
durante horas a fio. Num fim de semana, fomos até ao País
de Gales e enquanto o Luke brincava na praia um par de
horas, a construir castelos de areia e a chapinhar no mar,
o Lorcan ficava sentado no carrinho a ver o mundo a passar.
Nunca gritou para o tirarem de lá.
Mas as noites más não paravam. O Lorcan, enquanto
bebé, nunca dormiu uma noite inteira seguida — praticamente ainda não o faz hoje. Adormecê-lo era uma batalha
e, depois, acordava durante a noite e gritava porque simplesmente odiava o berço. Quando fez dez meses, tentei pô-lo
30
A Minha Gata Jessi.indd 30
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
no quarto com o Luke, que dormia numa daquelas camas
altas com escadas e gavetas por baixo. Alguns dias depois,
entrei no quarto de manhã e o Lorcan estava a subir as escadas da cama do Luke! Corri e apanhei-o mesmo a tempo.
Depois disso passou a dormir na nossa cama durante algum
tempo — uma situação longe da ideal. Melhorou um pouco
na cama, mas sempre foi terrível para dormir.
Quando era pequenino, ensinei ao Lorcan linguagem
gestual para bebés. Não havia aulas perto de mim e, por isso,
comprei um livro e ensinei-lhe alguns sinais elementares.
Ele aprendeu rapidamente e foi uma excelente ajuda porque, assim, conseguia dizer-me quando estava cansado ou
tinha fome ou quando queria leite.
O Lorcan começou a falar muito cedo. Não me lembro da
primeira palavra que disse de forma clara, mas foi o habitual
— começando com ma-ma, pa-pa, da-da. Eram apenas sons
e experiências e nada fora do vulgar; um discurso bastante normal. Aos dois anos, já construía frases inteiras, quase
ao mesmo nível das do irmão, que tinha mais três anos.
Uma vez, atendeu uma chamada da Natalie, a minha amiga parteira que o ajudou a nascer, e quando ele me passou
31
A Minha Gata Jessi.indd 31
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
o telefone e ela perguntou se era o Luke, ao dizer-lhe que era
o Lorcan ela ficou bastante entusiasmada porque ele tinha
um discurso muito certinho e precoce.
Quando o Lorcan tinha um ano e meio, a minha mãe
fechou, acidentalmente, a porta do carro no dedo indicador
dele e esmagou a ponta do dedo. A pobre da minha mãe
ficou tão perturbada que nem foi connosco ao hospital. Como podem imaginar, também estava bastante abalada, porque ele era tão pequenino. Fomos a correr até às
Urgências do Trafford General e, quando lá chegámos,
a enfermeira perguntou-me a data de nascimento dele. Esta­
va num estado tal que não me conseguia lembrar e a única
coisa que conseguia fazer era soluçar: «Oh, meu Deus,
eu não sei.»
Foi apenas a ponta e não fora nada irremediável, e por
isso podia ter sido muito pior, mas o pobrezito do Lorcan
estava claramente com dores e gritava até mais não, o que
tornou ainda mais dolorosa a longa espera na sala apinhada de gente. Por fim, fomos fazer a radiografia e ele conti­
nuava aos berros. Já depois, quando fomos consultados
pela médica, estranhamente, assim que ela mostrou o exame, o Lorcan calou-se para observar. Até àquele momento, todo o hospital — e, muito provavelmente, metade de
Manchester — o tinham ouvido e, assim que ele viu a imagem da mão dele contra a luz, ficou atónito. Fiquei tão aliviada — principalmente porque ele ia ficar bem, mas também
porque se tinha finalmente calado!
32
A Minha Gata Jessi.indd 32
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
O Lorcan era um bebé querido e, assim, sempre que
íamos às compras, ou quando o David o levava ao quiosque para comprar o jornal, os adultos sorriam e faziam todo
um alarido. Mas se alguém falasse com ele, ele escondia-se
atrás do balcão. Em casa, com a família, era um típico fala-barato e adorava aprender novas palavras, e com um e dois
anos eu achava que era perfeitamente normal ele ser tímido
e esconder-se dos desconhecidos. Não achávamos nada de
estranho — apenas a reação normal de um bebé às caras
que não conhecia. Hoje, olhando para trás, penso que se
calhar havia outros sinais nos primeiros anos, mas quando são tão pequenos não nos parece que seja um comportamento fora do comum.
A questão é que o Lorcan nunca foi tímido no sentido
habitual. Ele não tinha problemas em sorrir para um desconhecido ou atirar-lhe um brinquedo e, mesmo quando
muito pequeno, nunca se escondeu nas roupas ou atrás das
minhas pernas. Simplesmente ignorava as pessoas. Sempre
que alguém falava com ele, ele olhava mas nunca respondia.
Quando o Lorcan tinha cerca de dezoito meses, era um
tagarela em ponto pequeno. Um dia, ao almoço, o Dave deixou-me a mim e à Natalie no Trafford Centre onde íamos
almoçar com algumas parteiras amigas. O Lorcan não parava de falar durante todo o caminho desde a nossa casa à casa
da Natalie, mas assim que a minha amiga entrou no carro
ele calou-se. Ficou sentado na cadeira dele e não proferiu
uma palavra.
33
A Minha Gata Jessi.indd 33
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
Para um bebé, isso nem é estranho. O que provavelmente
é mais esquisito é que não era apenas com adultos. O silêncio também se alargava às outras crianças.
Num dia, quando o Lorcan tinha dois anos, a minha tia
Vera veio visitar a minha mãe com o neto, Jacob, prati­
camente da mesma idade do Lorcan. A minha mãe estava
habituada a que o Lorcan falasse pelos cotovelos e pensou
que os dois se iam dar muitíssimo bem e, assim, ficou
com o Lorcan enquanto eu descansava em casa depois de
um turno da noite. Ele ficou lá durante duas horas — nem
uma única palavra. Tinha falado normalmente em casa
mas, naquelas duas horas, o Jacob falou e brincou durante todo o tempo — e o meu filho nem um pio. Mais uma
vez, pensámos apenas que era normal que as crianças
fossem um pouco tímidas ou caladas em determinadas
situa­ções, em especial antes de entrarem para a escola ou
no infantário. Como mãe, não pensamos nessas coisas.
Só quando se repete ao longo do tempo é que se torna num
problema.
No aniversário do Luke, em maio de 2007, fizemos uma
festa Mad Science em casa com cerca de nove miúdos da
escola, a maior parte dos quais o Lorcan conhecia. O animador da festa mostrou aos miúdos várias experiências
científicas e deixou-os participar em algumas e divertiram-se imenso. Mas lembro-me de ficar muito intrigada quando
me apercebi de que o Lorcan se recusava a participar e, mais
uma vez, não falara durante toda a festa.
34
A Minha Gata Jessi.indd 34
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
Uns meses mais tarde, numa terça-feira, pouco tempo
depois de ele fazer três anos, estávamos no Early Learning
Centre e as educadoras estavam a trazer vários brinquedos
para as crianças brincarem. Um rapaz pequeno da idade
do Lorcan apareceu, de repente, e o Lorcan saltou e fugiu,
o que me pareceu estranho.
Quando o Lorcan acha que estamos sozinhos, é e sempre
foi um rapaz barulhento, animado e travesso. Com dois anos,
levámos toda a família à Disneyland, em Paris. O Lorcan gritou durante o voo inteiro de cinquenta minutos, mas quando
chegámos ao aeroporto, algo esgotados, ele estava bem.
Enquanto esperávamos pela nossa bagagem, fomos até
um canto para ele usar o bacio portátil dele — uma engenhoca de plástico com um saco dentro para ser facilmente
deitado no lixo. No final, atei o saco de urina e pedi-lhe para
o segurar durante um pouco enquanto guardava o bacio.
O pestinha, com toda a calma, pegou no saco e colocou-o na
passadeira e, depois, observou-o com algum deleite enquanto deslizava para longe. Perguntei-lhe onde o tinha colocado
e ele apontou, sorrindo docemente durante todo o tempo.
Tive de correr para apanhar o saco, tentando disfarçar o embaraço perante os outros passageiros.
A loja do nosso hotel estava cheia de artigos da Disney
e o Lorcan adorava tudo, por isso, comprámos uma caneta
gigante para o deixarmos feliz. Ao sairmos da loja, ele fez
uma pequena dança e começou a cantar o mais alto que conseguia: «Esta é a minha caneta gigante.» Ele pensava que
35
A Minha Gata Jessi.indd 35
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
estava sozinho connosco. Não se apercebeu de que estava
a ser observado por uma grande multidão de cerca de vinte
pessoas que começaram a rir, encantadas.
Como os que já foram à Disneyland sabem, as personagens famosas — o Rato Mickey, a Minnie, o Pluto, o Pateta
e os restantes — não se passeiam apenas nos parques temáticos: são frequentemente vistos nos hotéis e nas suas imediações. Os miúdos aglomeram-se para tirarem fotos com eles
e o Luke queria sempre tirar uma foto, mas o Lorcan não se
queria aproximar. Não tinha medo, mas recusava-se a chegar
perto para tirar uma fotografia. Ao almoço, ele não se importava que eles se aproximassem, mas se o chamassem, ele não
ia. Mas, mais uma vez, dizemos aos miúdos para não falarem
com estranhos e, por isso, parecia completamente normal.
Em maio de 2006, viajámos todos até à Irlanda para
visitar a família do David e para ir ao casamento da tia
Caela. A mãe, o pai do Dave e a sua irmã Stephanie tinham-nos visitado pouco tempo depois de o Lorcan nascer, mas
a maior parte da família ainda não o tinha conhecido, tendo apenas dezoito meses. Estávamos a entrar na igreja para
a cerimónia e fomos encaminhados para a segunda fila, mas
o Lorcan estava muito travesso. Não parava de correr até
ao altar e tentava subi-lo, e nós não parávamos de nos levantar e de o arrastar de novo até ao nosso lugar, onde ele se
contorcia até se libertar de novo.
Foi uma cerimónia linda e fora pedido a uma amiga da
noiva, com uma voz realmente bonita, para cantar. Ela ainda
36
A Minha Gata Jessi.indd 36
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
não tinha chegado ao refrão da sua melódica atuação quando
o Lorcan começou uma versão aguda do seu próprio hino
de casamento. A igreja cheia de convidados riu abafadamente por detrás das suas pautas enquanto o Lorcan subia
cada vez mais o tom, realmente entusiasmado, e eu e o Dave
sentíamo-nos completamente envergonhados.
Por fim, já começava a exagerar e o Dave levou-o para fora
da igreja, seguido rapidamente pelo Luke. Mas os dois tinham
agora entrado no modo malandrices. Houve um momento
estranho no qual algumas pessoas entraram no cemitério
para deixar algumas flores e encontraram o Luke e o Lorcan
literalmente a dançar em cima de sepulturas. Escusado será
dizer que depois disso voltámos rapidamente para o hotel.
Na manhã seguinte, o Dave ia tomar o pequeno-almoço
com o Lorcan quando este reparou no letreiro pendurado
na porta do quarto a dizer «Não incomodar».
— O que é aquilo? — perguntou ele. O Dave explicou que
aquelas pessoas não queriam que ninguém as incomodasse, provavelmente porque ainda estavam a dormir. O Lorcan
olhou para o Dave, a sorrir, bateu na porta e fugiu pelo corredor a correr, rapidamente seguido pelo pai envergonhado.
Ao voltarmos para casa de ferry, o Lorcan começou a gritar com todas as suas forças. Parecia não gostar do barulho
dos motores e não conseguíamos fazer nada para o acalmar.
Os gritos aumentavam e perturbavam as outras pessoas
e, por isso, sentíamo-nos claramente envergonhados por
não o conseguirmos sossegar. Em desespero de causa, corri
37
A Minha Gata Jessi.indd 37
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
até à loja das recordações e comprei qualquer coisa para
o distrair. Um pequeno macaco de peluche chamou-me
a aten­ção. Paguei rapidamente enquanto ouvia os berros
ensurdece­dores do Lorcan. Dei-lhe o boneco e ele calou-se
de imediato. Toda a gente ficou aliviada!
O Lorcan adora macacos. Tem imensos no quarto e, muitas vezes, coloca-os todos em volta da cama quando se está
a preparar para deitar.
— Estão ali para me proteger — diz ele.
— De quê, Lorcan? — perguntei-lhe uma vez, mas ele
não soube explicar.
Tivemos sempre animais de estimação. Quando os miú­
dos nasceram tínhamos uma gata chamada Flo, que já
era entradota e não se mexia muito. Apesar de os miúdos
a adorarem, ela não demonstrava muito interesse por eles
e já era bastante velhinha, com cerca de oito ou nove anos,
quando o Lorcan nasceu. Ela habituara-se a viver numa casa
bastante sossegada, comigo, com o David e o Adam.
Quando os dois rapazes já tinham idade suficiente para
começarem a brincar e corriam para a frente e para trás aos
berros, ela passava muito tempo no andar de cima!
38
A Minha Gata Jessi.indd 38
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
Quando o Lorcan fez três anos, decidimos adotar um cão,
principalmente por causa do Adam. Ele tinha sido, por fim,
diagnosticado com a síndrome de Asperger e estava a passar por uma fase complicada. Tínhamos ouvido e lido muito
sobre animais e cães e como eles podiam ajudar as pessoas
com este distúrbio e, assim, comecei a pesquisar mais sobre
o assunto. Nunca tínhamos tido um cão antes e eu não sabia
praticamente nada sobre cães. Comecei a ler sobre as diferentes raças e deparava-me muitas vezes com os terriers
tibetanos, mas não tinha a certeza absoluta. Depois, por sorte, estávamos a passear num parque e vimos um pequeno
e lindo cachorro, com manchas castanhas. Perguntei à dona
de que raça era.
— Uma terrier tibetana — respondeu ela. E fiquei encantada.
Procurei por todo o lado e tivemos dificuldades em encontrar uma fêmea, que era o que queríamos — principalmente
porque já tínhamos decidido dar-lhe o nome de Lily como
a Lily Potter dos livros do Harry Potter! Também queria que
fosse branca. Também há terriers tibetanos pretos e dourados, mas eu preferia os brancos. Passei horas na Internet
e a ligar para todo o lado e encontrava muitos cães machos
e cães pretos, mas as únicas fêmeas que encontrava estavam a 320 quilómetros de distância, em Dagenham. Sem
desistir, fizemos os quilómetros para a ir buscar e demorámos quatro horas, mas não ficámos desapontados. Quando
lá chegámos, encontrámos a cachorrinha branca mais linda
39
A Minha Gata Jessi.indd 39
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
e apaixonámo-nos de imediato. A decisão estava tomada
e trouxemo-la logo para casa.
Todos os miúdos simpatizaram, instantaneamente, com
ela e ela era muito fofinha. O Lorcan adorou-a, mas foi
bruto desde o início com ela de uma forma brincalhona.
Felizmente, ela demonstrou ser uma cadela extremamente tolerante. Ele segurava-a pela cabeça e arrastava-a de um
lado para o outro, brincava ao jogo da corda e perseguia-a
pela casa. Nunca a magoou, mas era sempre muito bruto.
Como a Lily tem duas camadas de pelo, é muito importante escová-la para evitar os emaranhados e entrelaçados
e, por isso, ela vai regularmente a um «cabeleireiro» para
cães, onde é tratada pela simpática Gill. De dois em dois meses vai ao «cabeleireiro» e tem sempre alguma relutância
em atravessar a porta e eu penso que é por não gostar que
eu a deixe em vez de não querer tomar banho. Mas como
é um animal de estimação e uma cadela muito brincalhona, realmente precisa de banhos regulares. É bastante caro
e depende do estado do pelo dela, mas vale todos os cêntimos. Eu lavo-a em casa quando ela se suja muito, mas
nunca fica tão bonita como quando vai à tosquia.
Um dia, quando o Lorcan tinha cinco anos, tinha acabado
de chegar a casa com a Lily após a sua sessão de «cabeleireiro» e ela estava imaculadamente branca e limpa. Na verdade,
ela estava tão branca que o Lorcan deve ter pensado que ela
era uma tela em branco, porque no minuto seguinte desenhara três lindas riscas rosa e lilás ao longo do corpo com
40
A Minha Gata Jessi.indd 40
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
uma caneta de feltro. A Lily, sendo uma cadela calma, ficou
durante todo o tempo sentada, deixando-o fazer o que queria. Eu não o vi efetivamente a desenhar, mas calculei logo
quem era o responsável e, quando lhe perguntei, ele desatou às risadas marotas. Quando ia passear com a Lily à rua,
olhavam-nos de modo divertido e ainda ouvi alguns comentários, mas as pessoas que conheciam a nossa família não
precisavam de perguntar quem tinha sido o autor daquela
obra-prima. Felizmente, dissipou-se passados alguns dias.
Quando os miúdos eram pequenos, todos tinham as vacinas obrigatórias, apesar do susto da VASPR. Se se lembram,
a publicação de um artigo na revista de medicina Lancet , em
fevereiro de 1998, sugerindo que a vacina combinada contra
o sarampo, a papeira e a rubéola (ou VASPR) podia causar
autismo, deu origem a uma controvérsia. Entretanto, o artigo foi desacreditado.
Ponderámos os riscos e lemos os estudos e achámos pessoalmente que preferíamos que os nossos filhos fossem vacinados do que corressem o risco de contrair as doenças.
Tanto o Adam como o Lorcan demonstraram indícios da
síndrome de Asperger em bebés, antes da injeção. Sejam
41
A Minha Gata Jessi.indd 41
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
quais forem os problemas que eles têm, já lá estavam desde
o início — tenho a certeza disso.
O livro preferido do Lorcan, quando ele era pequenino,
era Beijinhos não dou, de Julia Jarman. É um livro ilustrado
realmente divertido sobre um menino chamado Jack que
detesta mimos e beijos, e não é de admirar que o Lorcan
se tenha identificado. Desde muito pequeno que detestava
ser tocado ou abraçado. Se perguntava ao Luke se o podia
mimar ele respondia sempre: «Claro que sim.» Agora já não
o mimo tanto, porque ele já é um pouco mais velho, mas se
lhe pedisse, ele deixava.
Com o Lorcan foi sempre impensável. De vez em quando, se ele estivesse chateado, ou se o Luke tivesse sido mau
para ele, ou se ele se tivesse aleijado, podia roubar um abraço e ele suportava-me durante alguns minutos, mas ele não
gostava e continua a não gostar. Mesmo agora, eu às vezes
roubo um beijinho quando ele está a dormir, mas nunca tentaria com ele acordado porque sei que o transtorna. Nunca
o agarraria nem o beijaria durante o dia, mesmo que fosse
de forma brincalhona, porque isso o iria afligir — a reação
seria muito mais forte do que a habitual brincalhona entre
mãe e filho, em que poderia dizer: «Blhec, larga-me, mãe!»
Ele detestava principalmente que lhe tocássemos no pescoço e a pele dele parece ser especialmente sensível nessa
zona. Mesmo quando era pequenino, lavava sempre o seu
próprio pescoço e eu não o secava, porque isso deixava-o
louco.
42
A Minha Gata Jessi.indd 42
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
Como o Lorcan dormiu sempre mal, mesmo na primeira
infância, adotámos uma rotina depois de o Luke entrar para
a escola e enquanto aprendia a ler. O Dave dava banho aos
rapazes e, depois, eu lia com o Luke enquanto o Dave deitava
o Lorcan. Ele não adormecia sozinho no quarto e, por isso,
o Dave ficava com ele até adormecer, sentado ou deitado
no quarto. Às vezes, o Lorcan segurava o David pelo pescoço para ter a certeza de que ele não se ia embora e adormecia com os braços assim, e foi assim que o Dave recebeu
muitos abraços — por descuido. Nunca deixámos o Lorcan
a chorar na cama. Algumas crianças têm realmente medo
e eu acho que é muito nocivo deixá-las a chorar. Não sabemos do que ele tinha medo à noite em bebé e ele não nos
podia dizer.
Até a avó teve um encontro inesperado com o Lorcan
numa dada noite, quando fomos a uma festa de Natal. Ela
não estava muito familiarizada com a rotina dele à hora de
dormir e, assim, ela pô-lo na cama e desejou as boas noites.
Quando se virou para sair do quarto, ele afastou o edredão
e bateu levemente na cama convidando-a e a sorrir afetuosamente. Apercebeu-se rapidamente de que ele estava habi­
tuado a que um de nós se deitasse com ele. Ela teve de ficar
ali deitada até ele adormecer e, depois, a pobrezinha da minha mãe descobriu que não se conseguia levantar. Por fim,
ela teve de rebolar para o chão para se conseguir libertar.
Como ele não dá abraços nem beijos, esses momentos
de intimidade tornam-se mais importantes quando uma
43
A Minha Gata Jessi.indd 43
8/26/14 10:16 AM
J ayn e D i l l o n
criança se sente desconfortável com a grande maioria do
contacto físico.
Pelo menos numa circunstância, fiquei feliz por já ter
passado por tudo isto antes. Não gostar de ser tocado nem
abraçado é uma caraterística comum em muitas — ainda que
não em todas — crianças que sofrem de autismo, em algum
grau, e o Adam também nunca gostou de ser abra­çado.
O Lorcan rejeitava qualquer demonstração de afeto. Se eu
dissesse «Amo-te», não recebia nenhuma reação. Nada. Mas
como já tinha passado por isto antes, não me perturbou tanto como poderia. Eu sei que se não tivesse passado por isto
antes, pensava que ele não gostava de mim. Perguntar-me-ia
por que razão ele não me amava. Seria uma reação natural.
Tenho a certeza de que muitas mães se perguntam o que
fizeram de errado e questionam-se se se terão relacionado devidamente com o seu bebé. Se eu não soubesse que
o Lorcan realmente me amava, podia ficar muito magoada.
Pode parecer que ele está a ser distante e não se preocupa,
mas eu sei que não é assim.
O Dave também não se deixou desmoralizar. Ele é muito
calmo e nunca força a situação, mas é capaz de dizer algo
como «Lorcan, vem ver esta fotografia no jornal» e o Lorcan
senta-se ao nosso lado. Ou se estivermos a ler, deixa-se cair
no sofá perto de nós. Não é de se aninhar e, mesmo quando
era mais novo, ele não se queria sentar no nosso colo, mas
sentava-se ao nosso lado e isso dá-nos aquela boa sensação
de proximidade.
44
A Minha Gata Jessi.indd 44
8/26/14 10:16 AM
A Minha Gata Jessi
Claro que há momentos em que sentia saudades que ele
me abraçasse ou que me dissesse que me amava. Seria maravilhoso, mas ele não o vai fazer e essa é a realidade.
45
A Minha Gata Jessi.indd 45
8/26/14 10:16 AM
s
A Jessi era apenas uma bola de pelo minúscula quando entrou nas nossas vidas,
em 2010…
t
O meu «macaquinho» atrevido,
t
… mas o Lorcan e ela apaixonaram-se
de imediato.
A Minha Gata Jessi extratexto.indd 1
com o uniforme de escoteiro, no dia
do Prémio.
8/22/14 12:10 PM
s
O atrevimento! A Jessi pode parecer um pouco irritada nesta fotografia, mas está
sempre desejosa por mais uma brincadeira.
t
Então, quem é o vermelho e quem é o azul? Brincam juntos horas a fio
e é maravilhoso ouvir o Lorcan a falar pelos cotovelos com a amiga.
A Minha Gata Jessi extratexto.indd 2
8/22/14 12:10 PM

Documentos relacionados