Marina Carmello Cunha - Laboratório Urbano

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Marina Carmello Cunha - Laboratório Urbano
 cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo 1 U N IV E RSID A D E F E D E R A L D A B A H IA
F A C U LD A D E D E A R Q UI T E TUR A
PR O G R A M A PÓS-G R A D U A Ç Ã O E M A R Q UI T E TUR A E UR B A N ISM O
M A R IN A C A R M E L L O C UN H A
C ID A D E R EST O :
O E SP A Ç O (D A) R O UP A E O Q U E [S O B R E ]V I V E E N T R E B A I X A
D OS S AP A T E IR OS E P A R Q U E N O V O M UN D O
SALVADOR - B A
2014
M A R IN A C A R M E L L O C UN H A
C ID A D E R EST O :
O E SP A Ç O (D A) R O UP A E O Q U E [S O B R E ]V I V E E N T R E B A I X A
D OS S AP A T E IR OS E P A R Q U E N O V O M UN D O
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em
Arquitetura em Urbanismo. Área de concentração: Urbanismo.
Linha de pesquisa: Processos Urbanos Contemporâneos.
Orientadora: Profª. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela
Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berestein Jacques
SALVADOR - B A
2014
C972 Cunha, Marina Carmello.
Cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos
Sapateiros e Parque Novo Mundo / Marina Carmello Cunha. 2014. 114 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela. Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berestein Jacques Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Arquitetura, 2014. 1. Sociologia urbana - Cidades e vilas. I. Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Arquitetura. II. Portela, Thais de Bhanthumchinda. III. Jacques,
Paola Berestein. IV. Título. CDU: 711.4:316 [Para minha amiga , e os tantos outros que falam através dela, eternizada nessa costura de palavras. Com o amor e a dor que cabem ao encontro] Agradecimentos Agradeço a todos com quem me emaranhei por esses caminhos. Por me oferecerem almoços e cafés, abrirem a porta de suas casas, doarem tempo, história e vida à esse trajeto. À tudo que cabe dentro desse texto torto, como disse certo dia minha Mana Preta, Pri: todos os afetos, ebós, choros e risos, todas as urgências, atrasos e o que mais couber. Aos distantes, mas sempre presentes, Dé, Fabis e Nan. Ao meu mestre e boss Cassio Brasil, que eu vi trabalhar lindamente costurando vida e arte. Que me apresentou o Parque Novo Mundo e toda sua magia invisível. À Paty, mulher iluminada a quem devo muito, principalmente por colocar meus pés no chão algumas vezes quando precisei. Aos Borean, minha família porteña, que me transmitem força e carinho por todos os lados. Ao querido Zé, companheiro dos momentos mais difíceis e divertidos. Meu amor e gratidão infinitos. Aos amigos‐irmãos caipiras: Mama, Za, Du, Fe e Bidi que tem o dom de transformar a vida em felicidade. Obrigada por serem tudo o que são! Quanto amor! À pequena família que tive a alegria de construir em Salvador: Nini, Rê, Pri, TT, Jana, Marcelo, Sara, Lu, Jujuba e o Barrigo, Gus, Tia Thai, Pablito, Clarita, OzLindo, Tai, Titi e vovó Suda. Seria impossível sem vocês! À minha amiga Lis, pelas descobertas, as trocas e o amor todo. E à sua família, que virou um pouco minha. À Carol Bierrenbach e Cris Mesquita, pela amizade, confiança e os caminhos abertos com delicadeza. À Paola por caminhar junto, apontar caminhos e fazer comentários certeiros. À Tai por aceitar remar comigo e fazer isso da maneira mais leve e bonita que poderia acontecer. Muito amor e gratidão. Ao Guigo, por ter chegado a tempo de dar alegria à reta final de fechamento da dissertação. Ao Gag, que entrou na minha vida no dia da defesa, de forma linda e avassaladora. E desde então tem sido o maior estimulador das minhas vontades, realizações e amor. Muita alegria e aprendizado em sua companhia. Aos dois pequenos que alegram minha vida e dão sentido aos esforços há um ano e alguns meses, Leonardo e Gabriel, meus sobrinhos e pontinhos de alegria diários. Às minhas avós, pelas linhas todas. À minha família, de poucos membros e alguns agregados (Mami, Papi, Tite, Osma, Rafa, Rô, Paulinha e Ana), essa ilha para onde remo o barquinho sempre que preciso de terra firme. Sem vocês perderia o prumo! À CAPES, por ter sido uma boa mãe financiadora deste trabalho. E à cidade do Salvador, que me transformou infinitamente. CUNHA, Marina Carmello. Cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo. 2014. 114 f. il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. RESUMO No contexto dessa pesquisa, acreditamos que está nos restos, no que é quase invisível, uma resistência potente a uma certa hegemonia de valores. Nesse sentido, nos perguntamos: aonde vão parar as coisas que já não servem mais à cidade formal, esta que é regida pelo poder hegemônico? O que acontece com elas? Como sobrevivem? Na intenção de trazer à tona pistas que nos levem a possíveis respostas a essas perguntas, nos encaminhamos através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores e do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg. É assim que este trabalho se faz, se utilizando de uma metodologia de catação de rastros, sobras, trapos, conceitos e restos de roupa, de cidade e de gente; vestígios tais que encontramos entre a Baixa dos Sapateiros, em Salvador e o Parque Novo Mundo, em São Paulo. Essa costura invisível nos leva a conhecer o que chamamos cidade resto, um lugar agenciado por sujeitos que vivem dos restos de outros sujeitos. Palavras‐chave: restos; cidade; roupas; corpo; catação. CUNHA, Marina Carmello. City of Remains: the space (of) clothes and what survives between Baixa dos Sapateiros and Parque Novo Mundo. 2014. 114 f. il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In the context of this search, we believe that the remain is, as it is almost invisible, strong resistence to certain dominance values. In this sense, we ask: where will stop things that no longer serve more the formal city, which is governed by the hegemonic power? What happens to them? How they survive? Intending to bring up possible clues to answer these questions, we headed through concepts such as the man in rags, from Flávio de Carvalho, the ragpicker, from Walter Benjamin, the five skins, from Hundertwasser, the anthropophagy in Oswald de Andrade and other authors and the evidential paradigm, by Carlos Ginzburg. This is how this work is done, using a metodology of scavenging of traces, wastes, rags and clothing remains, city and people; this traces we can find between Baixa dos Sapateiros, in Salvador and Parque Novo Mundo, in São Paulo. This invisible sewing leads us to comprehend what we call the city of remains, a place intermediated by subjects who live within the remains of other subjects. Key‐words: remain; city; clothes; body; scavenging. Lista de figuras Fig.1, 2 e 3 {30} Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções Primavera­
Verão 2007, Outono­Inverno 2005 e Primavera­Verão 2008, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_arc
hives/01_coll_­artisanal­/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013. Fig.4, 5 e 6 {31} Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções Outono­
Inverno 2008, Primavera­Verão 2007 e Outono­Inverno 2006, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_arc
hives/01_coll_­artisanal­/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013. Fig.7 {32} Imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie, 2012. Fig.8 {36} Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh. Fonte: arquivo pessoal. Fig.9 {40} Imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda, 2000. Fig.10 {44} Loja da Baixa dos Sapateiros, em Salvador, onde a primeira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.11 {48} Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Foto retirada do Google Maps, em setembro de 2012. Fig.12 {49} Ilustração de Hundertwasser representando as cinco peles. Fonte: RESTANY, 2003, p.15. Fig.13 {54} Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.14 {58} Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Fonte: Google Maps, setembro de 2012. Fig.15 {60} Entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.16 {61} Misterioso corredor de entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.17 e 18 {67} Local de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus muitos truques: a tesoura imantada que atrai alfinetes, em Salvador / BA. Fotos de arquivo pessoal, 2012. Fig.19 {67} Corredor do ateliê da Costureirinha cheio de bolsas e mochilas consertadas por ela, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.20 e 21 {69} O Catador mostra peça de roupa ainda sem uso e etiquetada, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.22 {70} Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de lixo da Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.23 e 24 {77} Local de trabalho da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.25 {93} Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a Costureirinha baseada em sua concepção temporal. Foto de acervo pessoal. Fig.26 {94} Leitura das localidades da Costureirinha aos moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa retirado do site: http://www.meuclub.net/wp­content/uploads/2012/03/mapa­de­
salvador­veja­aqui.jpg, com alterações e marcações nossas. Fig.27 {99} Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal. Fig.28 {101} Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações do Catador. Foto de arquivo pessoal. SOBRE A ESCRITA Sumário o início {15} “canteiro de obras a céu aberto” {16} GUIA DE LEITURA {22} capítulo I PUXANDO FIOS EMARANHADOS: CATAÇÃO DE CONCEITOS {23} a catação {24} Desalinhavo#1 {30} puxando fios: Martin Margiela nos apresenta à moda {32} Desalinhavo#2 {35} quando moda e cidade se encontram {36} A beirada {38} o resto {38} Desalinhavo#3 {39} o corpo e o resto ou o “corpo­resto” {41} Desalinhavo#4 {42} o espaço (da) roupa {46} capítulo II ALINHAVANDO TRAPOS: QUANDO SE VAI À RUA {54} vestígios e vínculos: primeiras pistas {56} memória {58} das desculpas e táticas {61} Desalinhavo#5 {64} os aliados {66} fardo de miudezas ou o “dia­a­dia da roupa usada” {67} Desalinhavo#6 {68} vão­se os dedos, ficam os anéis {74} Desalinhavo#sem número {75} o lugar e o tempo {77} Desalinhavo#7 {79} o Rueiro e suas múltiplas facetas {80} capítulo III COSTURAS: QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA {86} Desalinhavo#8 {88} ferramentas e ofícios {89} o clarão da morte {94} o mapa e o mapeado {98} em outro canto, o mesmo conto? {102} O ARREMATE FINAL: CIDADE RESTO OU RESTO DE CIDADE? {107} referências bibliográficas {110} “Vale a pena em certas horas do dia ou da noite observar objetos úteis em repouso: rodas que atravessaram empoeiradas e longas distâncias, com sua enorme carga de plantações ou minério; sacos de carvão; barris; cestas; os cabos e as alças das ferramentas de carpinteiro...As superfícies gastas, o gasto infligido por mãos humanas, as emanações às vezes trágicas, sempre patéticas, desses objetos dão à realidade um magnetismo que não deveria ser ridicularizado. Podemos perceber neles nossa nebulosa impureza, a afinidade por grupos, o uso e a obsolescência dos materiais, a marca de uma mão ou de um pé, a constância de uma presença humana que permeia toda a superfície. Esta é a poesia que nós buscamos.” (NERUDA, 1983 apud STALYBRASS, 2008, p. 31)
SOBRE A ESCRITA o início Porque alguém com formação em Design de Moda busca investigar suas questões em uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo? Em 2006, visitando a 27ª Bienal de São Paulo pela segunda vez das quatro em que fui, assisti a um vídeo chamado “Olive Green”, de uma artista peruana chamada Narda Alvarado. No vídeo, uma fila de homens vestidos com fardas militares levava um prato nas mãos e caminhava como se fosse atravessar uma rua pela faixa de pedestres. Quando o primeiro homem da fila chegava ao outro lado da rua, todos eles paravam em cima da faixa, se viravam de frente para os motoristas dos carros parados na via, tiravam do prato uma azeitona verde e a comiam lentamente, roçando o caroço com os dentes até não sobrar nada comestível da iguaria. Quando o último dos homens fardados colocava o caroço no prato, eles seguiam seu caminho e terminavam de atravessar a rua. Os motoristas, por sua vez, assistindo a tal cena que bloqueava sua passagem, buzinavam e gritavam indignados. Não havia paciência para esperar nem mesmo o tempo de se saborear uma azeitona. A Bienal, que tinha como tema: “Como viver junto?”, provocava meu primeiro ano morando na grande capital do estado de São Paulo. Naquela tarde foi que percebi o quanto vivíamos acelerados e eu, uma estudante de primeiro ano de Design de Moda, entrei em crise com a cidade e, consequentemente com meu objeto de estudo, a roupa e seus modos de fazer. Somente alguns anos depois fui entender o que era o urbanismo em sua constituição, sua base modernista, sua faceta mais desenvolvida e qual era a relação dele com aquele vídeo de militares e azeitonas. O tempo do mastigar lento está fora dos contornos espaciais e temporais propostos pelo urbano planejado nos moldes desse urbanismo citado acima. A faixa de pedestres é feita para se atravessar, a rua é feita para que os carros possam seguir um fluxo corrente e tudo deve se encaixar harmonicamente para que a cidade funcione sem problemas. Mas a questão “Como viver junto?” nos traz outras perguntas, que passam por lugares mais subjetivos e profundos em relação à organização social e o cotidiano dos sujeitos na cidade. 15 Questões estas que, por vezes, nos dão pistas da existência de lugares e acontecimentos inalcançáveis por esse pensamento linear e formal. Foram essas questões, levadas a diante nessa dissertação, que me fizeram chegar a um mestrado em Urbanismo. Minha crise com a cidade se desdobrou em perguntas e curiosidades que passeiam por uma questão principal: o que cabe e o que não cabe nos moldes desse urbanismo? Como não poderia deixar de ser, um dos objetos fundamentais da pesquisa é a roupa, porém ela não está sozinha, vem acompanhada de suas duas camadas mais próximas, o corpo e o espaço por onde circula, nesse caso, a cidade. Através da roupa, suas camadas e dos fios teóricos e experienciais que nos permite puxar é que pensamos o urbanismo e seu alcance espacial, temporal e cotidiano. Ao contrário dos caminhos lineares ou radiais pensados por essa disciplina, essa pesquisa segue tortuosa e sem limites determinados. “canteiro de obras a céu aberto” “eu acreditava entrar no porto, mas... fui jogado novamente em pleno mar” 1 Buscar um porto se faz desafio no viver. Quando se encontra um, a felicidade da estabilidade, contrária ao marear das ondas, parece não durar muito tempo. Em um diálogo virtual entre Piracicaba/SP e Barcelona/ES se encontram, no tatear da conversa, algumas interpretações empíricas da frase com a qual decidimos introduzir esse texto: ‐ parece que ando assim o tempo todo...no fazer campo, na vida, em tudo...(risos) ‐ mas o que você acha disso? tá sendo bom ser jogada em pleno mar o tempo todo? ‐ por enquanto tô achando bom sim. meio cansativo né? mas bom...eu interpretei como se fosse assim, a cada porto, um monte de outras coisas a serem descobertas....um mar de coisas... ‐ humm...essa é uma boa interpretação...e dá pra pensar que ser jogado no mar é também questionar tudo que a gente vê como base pra gente, né? ‐ é, essa também é uma boa interpretação...duvidar do porto.. 1 LEIBNIZ, Gottfried. Novo sistema da natureza, par.12 In DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.30. 16 ‐ mas acho que são interpretações complementares. e também pensar na transitoriedade das coisas, e como a gente não pode controlar nada. ‐ sim, complementares...exatamente...nada, nossa! nada mesmo! 2 Duvidar do porto, ter ciência do descontrole das coisas, ver em cada atraque uma nova perspectiva para olhar o mar. Assim se tentou levar esta pesquisa o tempo todo. A pesquisadora, mareada, tateando com os pés a linha onde se equilibra, sem medo da queda (cair em pleno mar pode ser delicioso ou extremamente perigoso), pois, enquanto pesquisadora é sempre preciso assumir o risco. O chão estável do porto, que poucas vezes esteve sob os pés desta pesquisa, teve o tempo todo o papel de lançador do olhar para o horizonte3. Pelo trajeto da investigação, o resultado não poderia ser outro: esse oscilar entre solo firme e mar aberto. A escrita não poderia se fazer diferente: cambiável, mutante, mareada, em vai‐e‐vem. Por isso, é necessário introduzir esse texto dando destaque principalmente à falta de eixo ou cronologia nesta escrita. Os fatos dos quais aqui falamos não necessariamente aconteceram na ordem tal em que foram organizados, os mergulhos se confundem e as linhas dão nós. Nem mesmo os conceitos foram encontrados na ordem que estão postos, pois a escrita quase sempre não tem fim, está em processo, em movimento, é este porto que te lança o tempo todo de volta ao mar. É, muitas vezes, um texto fragmentado, que desacredita da totalidade das coisas e prefere fazer a tentativa de trazer as partes diversas de um todo heterogêneo que é a própria pesquisa. Portanto, encarando esse trajeto fragmentado, enredado por desvios e rotas de fuga, conclui‐se que, se houvesse mais tempo (ou menos), a escrita seria outra, a dissertação diferente. É então, um processo vivo e sem fim, que não acaba mesmo depois da ilusória finalização da escrita. Deste modo, esta, configurada aqui, neste momento, é um resultado de inúmeros afetos que permitiram vir à tona diversas questões sobre a 2 Este diálogo foi feito em novembro de 2013 via Skype entre duas amigas pesquisadoras, as duas se interessam pelos restos urbanos e veem na pesquisa um lugar tão des afiante quanto a vida. 3
Aqui preferimos conceber o horizonte pelas palavras de Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?: “Não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria” (1992, p.46). 17 vivência numa cidade, sobre o sistema da moda, o cotidiano, o capitalismo, a hegemonia e a micropolítica. Essas questões postas culminaram no encontro de um prumo, mesmo que nunca certeiro, mas um prumo para onde mirar: o resto urbano. Apesar de usarmos como recurso de escrita a criação de personagens que nos ajudam a dissertar, este texto não é uma ficção. Porém, seguindo os pensamentos de Foucault, para criar esse discurso na tentativa de desvendar uma suposta cidade resto, a qual, imaginamos, pode possibilitar a descoberta de outros modos 4 de existir no espaço urbano, decidimos “ficcionar”. Essa é, então, uma discussão acadêmica, baseada em acontecimentos e descobertas reais, abordados de forma a configurar um discurso, uma cartografia e levantar questões possíveis sobre as cidades. Segundo Araújo, “Em 1977, sendo entrevistado por Lucette Finas para La Quinzaine Littéraire, Foucault é inquirido sobre o aspecto ficcional frequentemente associado a seus textos. Sua resposta: ‘Quanto ao problema da ficção, ele é para mim um problema muito importante; eu me dou conta claramente que nunca escrevi nada senão ficções. Eu não quero dizer por isso que estas estejam fora da verdade. Me parece que é possível aí fazer trabalhar a ficção na verdade, induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, e de fazê‐lo de tal forma que o discurso de verdade suscite, fabrique qualquer coisa que não existe ainda, e assim ‘ficcione’’”. (2011, p.58) Foi nesse sentido então, que “ficcionar”, virou nossa estratégia de escrita. Criar um discurso “na fronteira entre o dado e o criado” (PINTO, 2012, p.198), utilizando‐se de recursos como a memória, a fotografia e o registro escrito, entendendo que ciência e ficção, como pensadas por Certeau, não existem em suas “formas ‘puras’, mas tão somente nessa estranha mistura” (PINTO, 2012, p.198), nessa existência não delimitada e contaminada a todo o tempo. O “ficcionar” deve ser entendido aqui como atitude literária que acontece com o intuito de favorecer a experiência de leitura, é um modo de “opor‐se a totalizar” (ARAÚJO, 2011, p. 61), “afinal, a ficção enquanto geradora de efeitos de verdade é uma 4 Outros modos estes que possivelmente burlariam, desviariam e se diferenciariam do modo padronizado e ideal imposto pelo pensamento hegemônico, higienizado e linear desencadeado a partir do capitalismo e do pensamento moderno. 18 intervenção na ‘política do pensamento’” (ARAÚJO, 2011, p. 61). “Ficcionar” é então “produzir efeitos de verdade”, é a tentativa de provocar no leitor uma “experiência de liberdade, de autogoverno” (ARAÚJO, 2011, p. 70). É um ato processual, experimental e indefinido. Com o qual se pretende dar ao leitor a possibilidade de outras formas de leitura e entendimento da verdade. É através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores, do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg e de outros conceitos desenvolvidos pelo próprio trabalho como o da cidade resto, do espaço da roupa e do espaço­
roupa, que esta pesquisa e esse texto se pretendem fazer, enquanto uma catação de rastros, sobras, trapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de trazer a tona um alinhavo entre Salvador e São Paulo. Alinhavar se diz do ato de se costurar com pontos largos e à mão o que depois deve ser costurado com pontos mais estreitos. É fazer uma costura “temporária” que depois deve ser reforçada por outra. Alinhavar a escrita ou o mapa é ainda rascunhar o pensamento e a experiência. É juntar acontecimentos a pontos largos, pontos tais que após serem feitos, observados e aprovados podem ser reforçados por uma costura definitiva de pensamento, uma reflexão mais madura, um traçado mais certeiro. Esse processo de construção de dissertação é uma tentativa incessante de que “os procedimentos de pesquisar/produzir/escrever não se separem do próprio objeto e configurem uma viva tessitura, uma pesquisa como ‘canteiro de obras a céu aberto’” 5. No entanto, a forma como se apresenta o texto, foi pensada de maneira que facilite o entendimento de nosso assunto, metodologia e objeto. Por isso, iniciamos a dissertação a partir de uma catação de conceitos teóricos que nos ajudarão a 5 Trecho retirado do parecer de Cristiane Mesquita para nossa primeira banca de qualificação. A frase “canteiro de obras a céu aberto” teria sido dita por Rosane Preciosa em referência a alguém que Cristiane não se lembrava. Ficamos com a “imagem” da frase de Preciosa, como pretendia Cristiane em seu parecer. Para conhecer mais de Mesquita, ver: MESQUITA, Cristiane [tese]. Políticas do vestir: recortes em viés. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. Para conhecer mais de Preciosa, ver: PRECIOSA, Rosane. Produção Estética – notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005. 19 entender o segundo capítulo, que consiste na escrita de nossa prática pela cidade, o fazer campo. Porém, por serem indomados os fios dessa pesquisa, algumas vezes o primeiro capítulo é atravessado por questões a serem desenvolvidas mais a diante, no capítulo seguinte e no segundo, questões tratadas no primeiro atravessam o texto como se quisessem puxar à memória o que já foi trazido ao leitor. Mais ao final, como se o primeiro capítulo fosse um puxar de fios emaranhados e o segundo um processo de alinhavar retalhos, chegamos ao terceiro com o intuito de costurar mais firmemente os alinhavos com os fios conceituais desemaranhados, conscientes de que, por serem os conceitos e a vivência em campo lugares sem limite definido, essa costura se faz tortuosa, um tortuoso estabelecer de conexões entre conceitos e prática, numa possível cartografia dessa cidade resto. São apresentados no decorrer do texto, principalmente a partir do segundo capítulo, alguns personagens conceituais que nos ajudam a puxar os fios emaranhados dessa trama, num entendimento quase rizomático6 dos bairros em questão. Esses personagens conceituais dialogam com os fios de conceito puxados no primeiro capítulo e nos ajudam a encontrar e desvendar as pistas que nos levam em direção à descoberta de uma possível cidade resto. Entre tantos alinhavos que vamos tentando fazer destes retalhos e fios recolhidos pela cidade, há ainda desalinhavos que não poderiam deixar de aparecer, são questões, acontecimentos ou curiosidades que podem levar o leitor a outros caminhos, dentro ou fora desta dissertação. Os desalinhavos aparecem algumas vezes no decorrer do texto, como apareceram durante a pesquisa de campo e incitaram a vontade do pesquisador de mudar a direção: são entrelinhas, dados marginais. Aqui, os desalinhavos se tornam pequenas tentações para o leitor espiar por esta fresta, este buraco na costura que permite ver algo além da parte exterior da roupa, se configuram 6
O pensamento rizomático proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro Mil Platôs, vol.1, diz de um sistema de pensamento não hierárquico, não‐ significante e heterogêneo, onde não há uma força coordenadora dos movimentos e cujos resultados não se pode prever ou organizar. O rizoma, “(...) é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar” (PELBART, 2003, p. 216), portanto, “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê‐lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.22). É um pensamento sem eixo. 20 como pistas que o leitor escolhe ler ou não, seguir ou não. Estas pistas são retalhos catados durante a pesquisa, que não tivemos tempo de continuar costurando a esse patchwork tentacular (mas que fazem sentido no processo desta dissertação), fica apenas a vontade de desenvolver, de se enveredar por cada novo emaranhado, cada novo trapo, que possivelmente nos levaria a outros, nessa rede infinita de fios e tramas onde personagens se conectam e enlaçam através dos restos urbanos. 21 GUIA DE LEITURA Para ler esta costura/dissertação/cartografia é preciso entender algumas regras e os termos englobados por elas. Segue abaixo um diagrama que facilitará a leitura do texto, tire‐a da página e boa leitura! Conceitos: homem em farrapos, trapeiro, cinco peles, antropofagia, paradigma indiciário, espaço da roupa, espaço­roupa e cidade resto. Palavras­chave: catação, o fazer campo, sobrevivência, memória, corpografia, personagem conceitual/figura estética, desculpa, brecha. Desalinhavos# Costuras e descosturas abertas ao leitor. Notas do fazer campo. 22 capítulo I PUXANDO FIOS EMARANHADOS: CATAÇÃO DE CONCEITOS Qual é a relação do corpo com o espaço urbano? E quais são as interferências e influências das roupas nessa relação? Esta pesquisa começou com essas questões principais, uma simples inquietação nossa. Logo do fazer dessas questões, a imagem que surgiu foi a do morador de rua, esse corpo que vagueia pelas cidades e geralmente constrói seu espaço apenas com o corpo e os tecidos que o recobrem, as amarrações que juntam seus objetos e seus cobertores à sua pele. Mas foi a mudança de São Paulo para Salvador para frequentar as aulas na UFBA que fez nossos olhos perceberem outras coisas. A necessidade de criar espaços através de poucos objetos e tecidos nessa vivência na rua se fazia muito mais clara em São Paulo, onde possivelmente o clima e as condições de sobrevivência na cidade favoreciam tais práticas. Percebeu‐se que o morador de rua em São Paulo se fixava, o de Salvador caminhava e, quase sempre, levava pouca roupa e nenhum objeto. A construção do espaço era outra e as roupas e objetos quase não estavam implicados nessa construção. Nosso olhar estava atento para encontrar um corpo que pudesse dizer desse espaço construído na cidade, mas eis que durante algumas caminhadas pelo centro da capital baiana, fomos atravessados por outras questões e essas percepções nos levaram a fazer um desvio de rota. O encontro com a Baixa dos Sapateiros, em Salvador, e suas lojas de roupas usadas nos levou a acionar antigas memórias e descobrir ligações deste bairro com o Parque Novo Mundo, um bairro da periferia de São Paulo, onde anos atrás estivemos diversas vezes com o intuito de selecionar e comprar roupas usadas para serem utilizadas em figurinos 23 de teatro e cinema. Os encontros desse trajeto investigativo nos deram a possibilidade de pensar estes dois bairros de cidades distintas através de uma matéria que resulta da própria cidade: o resto. É então seguindo pistas que perpassam por esse estado de matéria que a pesquisa vai se fazendo. O resto se torna objeto principal da investigação, fio condutor do alinhavo. a catação Para encontrar o caminho da pesquisa foi preciso caminhar. Queremos dizer com isso, que foi no decorrer da pesquisa que a metodologia (ou a catação de métodos) usada em campo (aqui o campo inclui também a pesquisa teórica) se fez entender. Sem estabelecer regras primárias, logo a relação entre pesquisador e cidade impulsionou uma maneira particular de estar no espaço urbano. Tal maneira acabou sendo levada também para nossas buscas conceituais e teóricas. Esse conjunto de métodos descobertos e catados, se apresenta aqui em um modo de escrita alegórico. Para Walter Benjamin (1984), o alegórico se aproxima do simbólico, mas é diferente dele por acompanhar o fluxo do tempo, estar em constante progressão e revelar a todo momento novas possibilidades de significação. Em seu texto “Origem do drama barroco alemão”, Benjamin destaca a alegoria enquanto uma expressão de múltiplos sentidos e a relaciona com o Barroco. Ele define tal período artístico e a expressão alegórica como efêmeros, inacabados e fragmentários. A arte barroca lhe parece sempre aberta, tumultuada diversa e confusa, uma arte que deixa aberta a possibilidade de continuação, não tem fim, assim como a alegoria. Nesse sentido, assumir um texto alegórico é deixar o caminho aberto, certo de que “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra” (BENJAMIN, 1984, p.196). A alegoria, segundo Benjamin, tem uma “tendência destrutiva”, no sentido de que desconstrói qualquer “falsa totalidade” (1984, p.246), apresentando os acontecimentos em fragmentos. Portanto, a própria pesquisa se mostra como uma expressão fragmentada, aberta, cheia de nuances e camadas – máscaras cambiáveis. Tomando a alegoria como processo de constituição de sentido, preconizamos uma essência fragmentária e selecionamos frações de acontecimentos que talvez, fora desse 24 texto, não fizessem sentido. As organizamos de forma a constituir um todo fragmentado, não totalitário, porém significante. Para além da escrita, encontramos em nosso caminho diversas posturas metodológicas que nos tornaram em certos momentos, devoradores da história 7. Engolimos pistas e fragmentos e os devolvemos em uma possível cartografia de afetos, memórias e restos da efemeridade urbana. Descobrindo modos de relacionar pistas e acontecimentos, tentamos fazer o encontro e a costura entre os retalhos conceituais e o campo da pesquisa, agenciando‐os nessa descoberta de uma suposta cidade resto. Assim vai se fazendo nossa pesquisa, percebendo em tudo a possibilidade de costura, não deixamos passar os trapos encontrados pelas ruas: uma catação de rastros, sobras, farrapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de fazer um alinhavo entre trechos de cidades e seus usos através de nossas descobertas. Caminhamos entre bairros de Salvador e São Paulo, em busca de pistas para continuar a perseguir os restos, possíveis reveladores de um existir na cidade que transgrida o padrão hegemônico8 de pensamento. Em nosso trajeto, descobrimos as perguntas que levarão a pesquisa adiante: onde vão parar as coisas que já não servem mais à cidade formal, esta que é regida pelo pensar hegemônico? O que acontece com elas? Como sobrevivem? Seguindo um percurso delimitado pelo processo da própria pesquisa, é na perseguição dos restos que encontramos os personagens que poderão colaborar para o desvendar dessas questões no âmbito urbano. Percebemos então, que nos serão valiosas as características da “noivinha‐
antropófaga”, uma das noivinhas cartografadas por Suely Rolnik (2011), que “se guia pelas causas estimulantes (afetos de um corpo que estimulam os afetos do outro corpo) 7 Questionamentos de historiadores como Aby Warburg e mais posteriormente Carlo Ginzburg, nos fazem pensar sobre a história e s ua maneira linear e cronológica de ser contada. Os esforços destes dois estudiosos e de alguns outros para tentar encontrar outra maneira de narrar a história que passe por lugares mais subjetivos dos acontecimentos, como a memória, nos induzem a questiona r tudo o que já parece estabelecido em nossa sociedade. Quando devorada a história pode ser experienciada, virando outra coisa, fragmentando‐se. 8 No decorrer do texto definiremos melhor o “hegemônico” de que falamos. 25 e não pelas causas finais ou determinantes” (ROLNIK, 2011, p.193), “embarca no movimento (de desterritorialização e reterritorialização) e, de dentro dele, deixa que seus afetos se atualizem na invenção de um território” (ROLNIK, 2011, p. 195). Através dela chegamos à antropofagia que é, então, o artifício que utilizamos enquanto postura metodológica. Essa postura é inspirada no Movimento Antropofágico que ocorreu nas artes durante as décadas de 1920 e 1930 e foi consolidado pelo Manifesto antropófago, escrito por Oswald de Andrade, em 1928. Os artistas envolvidos no movimento tinham por objetivo reagir contra a dominação artística estrangeira, mas sem negá‐la ou copiá‐
la. Eles “preconizavam devorar suas ideias (...), comer a arte europeia, ruminá‐la com um molho nativo e popular e, finalmente vomitar a arte antropofágica, tipicamente brasileira, com toda sua ironia e crítica subversiva” (JACQUES, 2012, p.98). Neste sentido, usar a antropofagia enquanto postura metódica poderia ser devorar o que o “outro” encontrado no fazer campo nos dá, ruminar esse material com nosso repertório teórico e vomitar de outra forma. Esse outro de que se fala é a alteridade que está relacionada às roupas e aos restos urbanos. Sujeitos que, encontrados durante a pesquisa, se tornaram importantes em relação ao contexto dos restos e dessa suposta “cidade resto”, agentes de ressignificação desses objetos, espaços, ideias e corpos que sobram. Nesse sentido, não é toda e qualquer alteridade, ou todo “outro” que é devorado por nós, mas sim os que, como os índios antropófagos faziam, podem permitir a absorção de alguma qualidade, convivência ou informação desejada. Nosso então assumido estado antropofágico, faz pensar em que sentido essa condição pode influenciar na apreensão desta cidade supostamente regida pelos restos. Em sua tese denominada Exercícios de Leitoria, Jorge Menna Barreto9 (2012) faz uma leitura interessante do livro de Hélio Oiticica, Aspiro ao Grande Labirinto, considerando seu texto uma construção gerada a partir de uma prática antropofágica. Para Barreto, no texto de Oiticica é perceptível a “deglutição, o engolir, os movimentos peristálticos, 9 Jorge Menna Barreto é Formado em Artes Plásticas pela UFRGS, mestre e doutor em Poéticas Visuais pela USP. 26 os ácidos críticos da saliva e do estômago que transformam a matéria e a preparam para a absorção” (2012, p.114). Ele percebe no artista esse devorar do outro e faz um paralelo entre deglutir e ver, duas maneiras de capturar a alteridade que se diferem principalmente pela temporalidade do processo de captura. “A apreensão do outro pelo sistema digestório é lenta. Envolve uma extensa jornada que atravessa o corpo e aciona intensos processos químicos e mecânicos de decomposição. Cada pedaço de alteridade tem que ser mastigado e vigorosamente modificado, quebrado em moléculas. (...) É muito diferente dos processos de incorporação pela visão, nos quais há uma imediaticidade enganosa (...). O olho acelera o processo de captura. Sua função não é de absorver a alteridade, mas de detectá‐la e reconhecê‐la. A alteridade só pode ser absorvida lentamente, mastigadamente, engolidamente, digestivamente, antropofagicamente. A radicalidade maior da antropofagia está na mudança, no desvio de modo e temporalidade na percepção do outro. Deixa‐se de usar o mecanismo ótico para usar o digestivo, que também envolve órgãos de leitura, mas não da imagem, e sim do valor nutritivo da matéria‐outro, reconhecendo o que deve ser ou não absorvido” (BARRETO, 2012, p.114, grifo nosso). Foi inspirada na prática dos índios tupis que a antropofagia se consolidou nas ideias dos artistas e nas palavras de Oswald de Andrade, fazendo migrar para a cultura a relação com o outro, identificada no ritual do canibalismo. Os índios tupis devoravam seus inimigos, não todos, apenas aqueles que, selecionados por suas virtudes, pudessem favorecer o próprio devorador. É assim que, no chamado Movimento Antropofágico, essa “fórmula de produção cultural” ganha visibilidade (ROLNIK, 1998). Pode parecer que, justamente por enaltecer o “não europeu”, tal movimento apenas persistiu na posição subalterna da cultura produzida nacionalmente, mas não se pode deixar de lado que “a força da Antropofagia é justamente a afirmação irreverente da mistura que não respeita qualquer espécie de hierarquia cultural a priori, já que para esse modo de produção de cultura todos os repertórios são potencialmente equivalentes enquanto fornecedores de recursos para produzir sentido” (ROLNIK, 1998, p.133, grifo nosso). 27 Portanto, esta pesquisa só pode existir em relação ao outro, aos sujeitos que encontramos em nosso trajeto, bem como o outro só existe aqui em relação a nós 10. Somos devorados o tempo todo por cada um dos sujeitos encontrados no fazer campo que aqui são retirados da sua condição de sujeito para serem empregados enquanto conceito que nos ajuda a pensar o que chamaremos de espaço­roupa. A temporalidade, que sempre questionamos em nosso trajeto à cata de conceitos, é subvertida também na maneira encontrada para se estar na cidade. Assim, o leitor verá adiante em nossa prática de campo, a vontade de simplesmente estar, pois acreditamos (metodologicamente) que é o tempo, e só ele, que pode fazer emergir do campo nossas desejadas pistas, que nos permitirão seguir em frente. É o resto na (ou da) cidade que se faz fio condutor das reflexões aqui estabelecidas e é na perseguição deste estado de matéria que encontramos nossas pistas. A intenção desobstinada é tratar a cidade e suas fronteiras por meio de um fazer campo que vai acontecendo rizomaticamente, a princípio sem regras. Portanto, a percepção da metodologia só acontece no meio do processo: basicamente encontra‐se um composto, uma catação de métodos que poderiam ser úteis, cada um a sua maneira, para o entendimento desta trama dos restos. O que devoramos em nosso caminho são pistas encontradas na cidade. É partindo do encontro com o paradigma indiciário, método proposto pelo historiador Carlos Ginzburg 11, que se decide efetivamente perseguir os detalhes, os dados marginais. Aí se estabelece, através das descobertas da própria pesquisa, uma primeira regra: nossos olhos e ouvidos devem estar atentos às pequenas coisas, dicas, fatos e encontros pelo caminho. A primeira regra diz de uma maneira de estar em 10 A escolha pela escrita na 1ª pessoa do plural (nós) se deu pela percepção de que a escrita, justamente por ser alegórica, se faz como se a pesquisadora pudesse vestir e desvestir diferentes máscaras no decorrer do texto e da pesquisa. Assim, a pesquisadora é modista, cartógrafa, catadora de pistas e escritora, além de ser afetada a todo o tempo pelo outro encontrado em campo, esse que também fala através dela. 11 Apesar de citarmos com maior importância o trabalho intelectual de Carlo Ginzburg, estamos cientes da influência que ele teve do historiador de arte Aby Wasburg. Ginzburg teria estudado no Warburg Institute de Londres e aprendido através dos estudos de Aby a pensar a História de uma forma diferente, não linear e possibilitadora de diálogos interdisciplinares. Para aprofundamento nas pesquisas de Warburg ver: DIDI‐HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013. 28 campo. Essas pequenas fontes, então, devem ser tomadas enquanto pistas, indícios, sinais e vestígios sobre os quais muitas vezes devemos fazer uso de nossa intuição e sensibilidade para encontrar o caminho da pesquisa (GINZBURG, 1990). Método investigativo de produção de conhecimento, o paradigma indiciário é colocado a serviço da história por Ginzburg, sendo usado para descobrir e escrever a história do lugar, partindo do pressuposto de que as pistas são necessárias para levantar dados que existiam no passado e não existem mais. Nos textos em que fala dessa metodologia, Ginzburg utiliza fatos históricos para “justificar” sua eficácia, trazendo para a discussão o Paradigma Venatório e o Divinatório. O primeiro, relativo aos caçadores do Neolítico, tinha como instrumento de investigação pistas como esterco, pelos, pegadas e plumas, o segundo trata dos adivinhos da Mesopotâmia que observavam entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros e movimentos involuntários do corpo para decifrar o que viria a diante. Ambos os métodos eram usados para descobrir pistas de eventos dos quais o observador não pôde participar ou experimentar, seja porque ocorreu no passado ou porque ainda virá a acontecer no futuro. Nos dois casos, o exercício de descoberta das pistas envolvia operações semelhantes, como análises, comparações e classificações (GINZBURG, 1990). Ginzburg questiona o papel e os modos de fazer da história, se pergunta sobre o que é a verdade, principalmente em relação às interpretações e usos de documentos e busca demonstrar que as provas visíveis e palpáveis não são as únicas possíveis de serem averiguadas pela narrativa histórica. Ele afirma que os historiadores deveriam se lembrar que todo ponto de vista pode ser seletivo e parcial (RODRIGUES, 2005). Para ele “o historiador é, por definição, um investigador para quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas. Reproduzir uma revolução é impossível, não só na prática, como em princípio, para uma disciplina que estuda fenômenos temporalmente irreversíveis enquanto tais” (GINZBURG, 1991, p.180). Por isso, ele insiste numa maneira de fazer história que leve em consideração pequenas pistas e fatos que poderiam revelar muita coisa. Segundo ele, essas pequenos vestígios “são frutos do acaso e não da curiosidade deliberada. Surgem em algum momento da pesquisa onde a sensação é de ter encontrado uma pista relevante e ao 29 mesmo tempo a consciência aguda da ignorância sobre o que é ou significa” (Ginzburg, 2004, p.11). Nesse sentido, se há o recurso da memória, se há esse “estalo”, esse lampejo do encontro entre o passado e o presente, esse “fruto do acaso”, será mesmo que a experiência está vedada ao historiador? Desalinhavo#1 “[...] num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo­me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. [...] E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine. [...] Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. [...] E de súbito a lembrança me apareceu [...]”. (PROUST, 2002, p.50) Para seguir essa pista leia PROUST, Marcel. No caminho de Swamm ; À sombra das moças em flor. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Ou vá até a página 55 dessa dissertação. A memória, muitas vezes involuntária, se apresenta como uma pista para a conexão de situações diversas e é caracterizada pela clara ligação entre linguagem, história e tempo. Portanto, essas fontes involuntárias que atravessam a pesquisa devem, segundo ele, ser questionadas com intuição e sensibilidade, já que a imagem gerada pela memória é de extrema importância para indicar uma outra possibilidade de contar a história, de uma maneira que nem sempre se valha do tempo linear12. Sobre a narrativa histórica, o autor ainda afirma que teria sido feita pela primeira vez por um 12 Essas informações sobre a memória foram obtidas através de uma entrevista com Jeanne Marie Gagnebin. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU 30 caçador, sendo este “o único capaz de ler, nas pistas mudas uma série coerente de eventos” (Ginzburg, 1990, p.152) e, portanto, o primeiro capaz de transmitir tal leitura para seu grupo. É este passado da caça que teria contribuído para o desenvolvimento de inúmeras capacidades humanas, como o raciocínio lógico, a abstração, a percepção e a imaginação. Ginzburg afirma que “por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio cognoscitivo”. (GINZBURG, 1990, p.151) Por outro lado, encontramos em Rolnik a elucubração do que seria uma subjetividade antropofágica (1998), onde a autora afirma que a antropofagia está intrínseca na existência social dos indivíduos brasileiros. Seria uma característica enraizada em nossa sociedade. Então, ser brasileiro é ter um “quê” antropofágico e ser humano é ter um “quê” de caçador. Nós, enquanto caçadores de pistas e trapos que falem sobre o tempo presente, não temos a pretensão de contar a História oficial de uma localidade, por isso as pistas são devoradas e deglutidas com conceitos e informações alheias ao fazer campo. É através dos indícios e das pistas capturadas pelo tempo lento de deglutição antropofágico que inventamos nossas hipóteses e buscamos desvendá‐las. Antropofagia e paradigma indiciário interferem metodologicamente o tempo todo, ora a pista é encontrada e devorada, ora a deglutição acontece primeiro para depois permitir que novos vestígios surjam em campo. A segunda regra é então estabelecida: não fazer perguntas. Se a catação de metodologias até então fala da temporalidade, da espera digestiva e do encontro de pistas que não se buscam, perguntar estaria fora do que se acredita para este caminho investigativo. É claro que perguntas diretas poderiam esclarecer dúvidas, mas nos levariam para um caminho quase pré‐estabelecido, enquanto que as informações obtidas metodologicamente através do silêncio, em que escutamos a resposta para depois formular a pergunta, nos levam na direção de novas descobertas 31 surpreendentes, mesmo que isso custe o “deixar de lado” de algumas informações. A pesquisa se faz como uma escolha de caminhos, a escolha de que pistas seguir. puxando fios: Martin Margiela nos apresenta à moda Levados pelas roupas, encontramos nossos pares: estilistas, costureiras, separadores de roupa. Encontramos na maneira de olhar do outro, desvios surpreendentes, a capacidade de ver no que resta alguma forma de transformação. Uma pista dada a nós, nos leva a encontrar os restos reorganizados de Martin Margiela e a puxar o que decidimos serem os primeiros fios deste emaranhado13 para, enfim, refletir sobre a cidade. Mas como um designer pode colaborar para essas reflexões sobre o urbano? O designer belga que questiona o sistema e a configuração da moda, mesmo inserido nele, faz de sua marca de roupas, a Maison Martin Margiela, um espaço de problematização e transgressão do sistema da moda. Desde sua fundação, em 1988, Margiela não se deixa fotografar, não aparece no final dos desfiles como é de praxe no meio da moda, em todo material de divulgação usa o pronome “nós”, implicando toda sua equipe no processo de desenvolvimento das roupas e usa etiquetas, caixas e sacolas brancas, sem logotipo. Ele “faz uma ode ao anonimato” (RABELLO, 2011, p.82). Sempre provocativo, Margiela questiona a velocidade da produção das roupas através do inacabamento e da precariedade das peças. As costuras de algumas roupas, bem como suas marcações de corte, fios, sobras de tecido e pespontos, que segundo a tradição na confecção, ficam escondidos do lado avesso da peça, em muitas de suas roupas estão do lado de fora (RABELLO, 2011). Tal atitude faz pensar a temporalidade da produção de moda, em que muitas indústrias sacrificam seus funcionários e 13 Como dito anteriormente, os conceitos e fatos não seguem aqui uma ordem cronológica. Nossa escolha foi montar o patchwork de trapos encontrados da maneira que nos pareceu mais compreensível para o leitor. 32 maquinário para produzir uma quantidade exorbitante de peças em tempo recorde. Como produzir roupas bem acabadas, com qualidade e desenvolvidas com delicadeza se o sistema da moda impõe essa velocidade de produção extravagante? A velocidade e volume de peças lançadas no mercado se somam a efemeridade do uso das roupas e, em Margiela, estes três fatores são arguidos principalmente através de uma linha de produtos de sua marca, a linha artesanal chamada oficialmente de linha ‘0’. Nesta linha, o estilista e sua equipe usam roupas, acessórios e diversos objetos de “segunda mão”, desenvolvidos a princípio para funções diversas, para serem transformados manualmente em peças de vestir. Uma das características principais dessa proposta é que cada peça seja feita completamente à mão. Fi g. 1, 2 e 3: peça s da l i nha ‘0’, da s col eções Pri ma vera ‐Verã o 2007, Outono‐Inverno 2005 e Primavera‐Verão 2008, res pecti va mente. Fonte: http://ma i s onma rti nma rgi el a .tumbl r.com/col l ecti ons #/en_US/10_archives/01_coll_‐
a rti s a na l ‐/09_2008_pe/ Aces s o em: 29 de out. de 2013. Por conta disso, o tempo se torna um elemento importante para a valorização das roupas e, nas etiquetas desta linha, a Maison Martin Margiela coloca as horas de trabalho para a concepção da peça como informação tão importante quanto o tamanho ou a composição do produto (RABELLO, 2011). Ao usar materiais simples, de baixo valor de mercado, o estilista desconstrói alguns padrões da indústria da moda, transformando matérias‐primas ordinárias na confecção de produtos luxuosos. Sua crítica vai em direção “ao princípio de descarte e a efemeridade dos itens produzidos em massa pela cadeia de moda e à submissão do público às tendências estilísticas do vestuário” 33 (RABELLO, 2011, p.122). Seria então, segundo Margiela (2009, p.360.1‐360.b In RABELLO, 2011, p.122), esta submissão dos consumidores que distorceria a percepção de valores das roupas e acessórios no sistema da moda. Uma hegemonia de valores, construída subjetivamente pela própria cadeia produtiva da moda e sua necessidade de produção em larga escala. Fi g. 4, 5 e 6: peça s da l i nha ‘0’, da s col eções Outono‐Inverno 2008, Pri ma vera ‐Verã o 2007, e Outono‐Inverno 2006, res pecti va mente. Fonte: http://ma i s onma rti nma rgi el a .tumbl r.com/col l ecti o ns #/en_US/10_archives/01_coll_‐
a rti s a na l ‐/09_2008_pe/ Aces s o em: 29 de out. de 2013. É refletindo sobre o processo criativo de Margiela que nos sentimos provocados a pensar a velocidade produtiva e a efemeridade do sistema da moda, fatores que começam a parecer bastante importantes no processo de descarte de qualquer objeto no espaço urbano. Temporalidade, descarte, autoria, desvio, transformação, modos de usar e modos de produzir. O encontro com a roupa de Margiela traz inúmeras questões que aparecerão em diversos contextos durante nossa trajetória, tais questões colaboram para que o resto comece a se configurar diante de nossos olhos enquanto estado de matéria que tem a capacidade de subverter e burlar o sistema através da 34 transformação consentida por mãos como as dos profissionais da Maison Martin Margiela. Desalinhavo#2 O filme “Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise” (2002), que em português é traduzido para “Balzac e a Costureirinha Chinesa”, de Dai Sijie, se passa na China dos anos 1960, sob a Revolução Cultural de Mao Tse­Tung, quando as universidades foram fechadas e muitos livros proibidos. Dois jovens mandados para o campo a fim de serem reeducados pelos camponeses encontram uma costureirinha e uma maleta cheia de livros proibidos e juntos descobrem uma realidade desconhecida além das fronteiras da China. Através de escritores como Balzac, Dostoievsky, Dumas e outros autores estrangeiros, a costureirinha conhece um mundo para além de sua aldeia apresentado pelos dois jovens. As influências de suas leituras acabam sendo vistas claramente nas roupas que ela e seu avô, o alfaiate, costuram para as moças da aldeia. No sentido contrário, os dois jovens que tinham a intenção de abrir os horizontes para os moradores do campo, acabam por conhecer e entender outros valores, diferentes dos que trouxeram da cidade. Fig. 7: imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie. Para seguir esta pista vá para a página 63 desta dissertação. 35 quando moda e cidade se encontram Esta condição de matéria (o resto) é resultado de uma temporalidade cada vez mais efêmera, do desejo pelo novo, pela renovação, o consumo e o desprendimento material (LIPOVETSKY, 2009). Foi a partir da Revolução Industrial que o acelerar da produção fez mudar a relação das pessoas com os objetos e espaços; a facilidade, os preços, as novidades, tudo passou a favorecer o crescimento do consumo de roupas, de objetos decorativos, de utensílios para casa, de carros, espaços, tecnologias, serviços e ideias. A facilidade crescente de comunicação e transporte fez promover ainda mais essa temporalidade apressada e “a sedução e o efêmero tornaram‐se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna” (LIPOVETSKY, 2009, p.13). Esse sistema produtivo insano e polarizado em poucos pontos do globo, ganha potência quando se trata especialmente de um objeto: a roupa 14. Afinal, “o que poderia ser mais efêmero e mutante que a moda?” (JACQUES, 2012, p.132). Na moda, como por nós descoberto anteriormente através da Maison Martin Margiela, essa lógica é bastante importante e aparente. É na cidade e sobre os corpos que as vestimentas têm seu ponto auge, o qual acaba bastante rápido. As roupas, espaços vestíveis, cambiáveis e móveis, que podem ser intervalo entre corpo e ambiente estão talvez entre os objetos mais efêmeros 15 desta cidade contemporânea que “ordena‐se sob a lei da renovação imperativa, do desuso orquestrado, da imagem, da solicitação espetacular, da diferenciação marginal” (LIPOVETSKY, 2009, p. 182). 14
Entre 1998 e 2005, a China investiu 800 bilhões de dólares em estruturas produtivas (JABBOUR, 2006), desde então a fabricação de diversos produtos, inclusive roupas, acabou sendo transferida e polarizada para este país, bem como para a Índia e a Tailândia. “A China já responde por 60% das confecções e 35% dos produtos têxteis importados vendidos no Brasil”. (MAWAKDIYE, 2010). De acordo com estimativa da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), o custo da mão de obra brasileira na indústria têxtil é 367% superior ao da chinesa e nossos direitos trabalhistas bem mais rígidos quanto ao tempo de trabalho e volume de produção, o que faz com que o país não seja capaz de competir financeiramente, temporalmente e em volume com países como a China (MAWAKDIYE, 2010). 15
Uma ressalva deve ser feita neste ponto, onde incluímos na “lista da efemeridade”, em primeiro lugar, os gadgets. Uma palavra inglesa que significa dispositivo, aparelho, engenhoca, é o termo usado para definir aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, pagers, tablets e smartphones. Para Marcela Antelo, os gadgets são “produtos do casamento da ciência e do capital” e “marcam com inutilidade o excesso da produção capitalista”. São objetos extremamente desejados, mas descartados frente à sua primeira atualização tecnológica. Para se aprofundar no tema ver: ANTELO, Marcela. Os Gadgets. Rev. Estud. Lacan, 2008, vol.1, n. 1, p.1‐16. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v1n1/v1n1a14.pdf 36 A hegemonia de valores que identificamos na moda se repete e amplifica quando falamos de cidade. Sob esses valores e poderes hegemônicos, a cidade contemporânea é entendida como este local de caráter descartável onde, “por natureza, o novo é superior ao antigo” (LIPOVETSKY, 2009, p.185). A produção atual permite ver cada vez com mais clareza o volume exagerado não só de objetos, mas de edifícios, espaços e até ideias lançadas e descartadas a todo o momento. As diversas mudanças produtivas que vem ocorrendo desde a Revolução Industrial e principalmente o caráter não controlável deste processo, interferem intensamente no uso e na produção do espaço urbano. Neste sentido, a partir do acontecimento do processo de urbanização dessa cidade desordenada que estava a se formar, novos limites são determinados e os excessos produtivos acabam por sobrar por suas beiradas. Eletrodomésticos, comida, edifícios, espaços, ruínas, móveis, bairros, pessoas e roupas. Tudo que não cabe dentro dos limites urbanos, sobra. Escolhemos seguir e refletir sobre o que resta à beira da cidade, o que sobra e ainda assim sobrevive, porque acreditamos que está nos restos, no que é quase invisível, uma resistência potente à essa hegemonia de valores. Está dentro dessa lógica hegemônica o desejo pelo novo, pela novidade e, portanto, o descarte do que já parece ultrapassado. A lógica econômica atual deixou de lado o ideal de permanência e durabilidade, sendo a produção e o consumo dominados pelo efêmero (LIPOVETSKY, 2009). A necessidade de se individualizar dos sujeitos encontra no crescente aumento de modelos das mercadorias esta possibilidade, mesmo que os produtos sejam fabricados em série e em monstruosa quantidade. A clara separação do trabalhador, tanto do produto resultante de seu próprio trabalho, quanto do processo de produção de mercadorias como um todo, vem promovendo mais rapidamente a cultura do efêmero, pois sem o conhecimento dos processos de fabricação dos objetos, estes acabam se tornando alienados e sem valor. A roupa, este artefato que se encontra entre a necessidade e o desejo dos indivíduos, acaba se tornando só mais um produto para o descarte. Para nós, que caminhamos na tentativa de entender e seguir essa lógica do que já passou do prazo e é deixado de lado, o lugar do resto vai parecendo suspeito: ele reside nas beiradas?
37 A beirada 16 Estar à beira, à margem é estar fora? A fronteira é entendida aqui enquanto espaço poroso, por onde se pode entrar e sair, onde se pode estar, viver, sobreviver. É ainda um espaço móvel, que transita e se modifica. Seguimos vestígios que nos levam a ultrapassar fronteiras, caminhar por elas, sair e entrar. A beirada seria então a fronteira enquanto emaranhado de relações porosas e permeáveis, mesmo que não lineares ou contínuas. A fronteira permite passagem, deixa entrar e não se fixa (HISSA, 2006). Na cidade a fronteira pode se tornar invisível, já que ela margeia geralmente ilhas “luminosas” 17, bairros espetaculares e sobrevive nessa condição de invisibilidade. O resto, estado de matéria que está entre o novo e o lixo18 é beiradeiro e invisível. É, portanto, fronteiriço. Enquanto beirada e fronteira, o lugar do resto é sem limites lineares, poroso, permite o entrar e sair, o transitar pelos espaços outros e ainda assim é capaz de delimitar lugares. O resto seria então aquilo que não coube dentro dos limites da cidade e foi sobreviver na fronteira, na beirada? o resto Este caráter efêmero identificado na cidade, necessário para a existência de nosso objeto, o resto, é uma propriedade importante para a configuração do macro sistema que incorpora a cidade contemporânea. A renovação constante de paradigmas sociais e estéticos faz com que os antigos padrões desapareçam neste espaço, a partir 16 No ano de 2012, nos juntamos a alguns amigos e seguimos por uma deriva pelo sertão baiano. Essa ideia de deriva partiu dos estudos de duas mestrandas do PPGAU‐UFBA, Jurema Moreira e Priscila Risi. A viagem resultou em uma grande aventura pelas cidades inundadas pela represa de Sobradinho / BA e em inúmeros encontros e conversas entre amigos pesquisadores. Jurema nos apresentou certa vez o conceito de territórios de beirada e seus “beradeiros”, que queria dizer dos moradores da beirada do lago de Sobradinho. Nos utilizando de nosso método antropofágico, digerimos os termo s trazidos por Jurema e os juntamos a nossas novas experiências. 17
Conforme termo de Milton Santos: “chamaremos de espaços luminosos aqueles que mais acumulam densidades técnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior conteúdo em capital, tecnologia e organização. Por oposição, os subespaços onde tais características estão ausentes seriam os espaços opacos” (SANTOS; SILVEIRA, 2002, p.264). 18 Gostaríamos de deixar claro que não consideramos resto e lixo a mesma categoria de matéria. Entendemos o resto enquanto objeto que ainda pode ter uso, mas foi descartado pelos fatores de efemeridade dos quais já falamos no texto. O lixo, para nosso entendimento, é uma categoria de matéria que já não tem nenhuma possibilidade de retorno s ocialmente falando, chegou ao seu fim extremo (aqui entram possibilidades de fim como incineração e aterro sanitário, que, a depender da maneira que são feitas, ainda podem permitir o retorno da matéria de alguma forma – energia, adubo, etc.). 38 de uma suposta necessidade e do desejo das pessoas pelo novo; o espaço, as vontades, as crenças, tudo pode ser renovado. O resto é o resultado material e concreto deste processo, mas mesmo sendo palpável é de alguma forma invisível. E é este “estado de eminente desaparecimento” do antigo que dá ao cotidiano sua “potência de estranhamento” (JACQUES, 2012, p.131). Mas tudo que desaparece deve residir em algum lugar e neste lugar fica até que possa ser percebido e explorado seu potencial desviante dentro desta cadeia de processos molares 19 (GUATTARI, 1985). Será este lugar uma possível cidade resto onde os valores hegemônicos podem ser, de certa forma, transgredidos? E essa cidade resto existe enquanto beirada do sistema? É porosa, tortuosa e não se fixa? Desalinhavo#3 Fig. 8: Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh. O ticket foi encontrado no bolso de um casaco usado do Parque Novo Mundo. Siga esta pista indo para a página 70. De certa forma, o que nos intriga é o fato de ser o resto quase sempre um corpo escondido, na tentativa de ser invisível, perambulando pelas fronteiras da cidade, fazendo da invisibilidade uma tática de sobrevivência, sendo a própria fronteira. Se o que é promovido pelo sistema é o gosto pelo novo, o limpo, o esteticamente padronizado, o resto seria matéria desgostosa de se ver, tortuosa, deformada e suja, por isso, para que sobreviva, deve se esconder. Resto pode então falar de diversos tipos de 19 Processos molares e moleculares são termos tratados por Guattari em seu livro Revolução Molecular (1985) para falar de processos macro e micro políticos, processos grandiosos e pequeninos, que não são dicotômicos ou binários, mas existem em função um do outro; permeando, atravessando e penetrando um ao outro. 39 matéria: eletrodomésticos, gadgets, roupas, embalagens, alimentos e espaços urbanos. Tudo que parece não ter mais serventia funcional ou social, ou o que simplesmente não é mais novo, e é descartado. Mas é preciso então frisar que o descarte não é a transformação da matéria diretamente em lixo. Muitas mãos passam pelos objetos fazendo a triagem do que ainda pode ser útil e do que parece não ter serventia antes que possa chegar efetivamente ao fim. Enquanto os artefatos não são escolhidos para serem transformados ou efetivamente descartados, são o que chamamos aqui de resto. O resto se configura então enquanto uma matéria em espera? A espera parece definir um tempo lento e de ócio, um tempo de desperdício, onde o olhar e o gesto do outro é necessário para que ela acabe ou se modifique. Ao perceber o resto enquanto matéria que sobra e espera, que sobrevive à beira do sistema e da cidade, questionamos: não seria então o morador de rua um “corpo‐resto”? Das primeiras indagações desta pesquisa, interpeladas pelos desvios que a cidade impôs, ele volta à nossa história, esse corpo moldado pelas calçadas das cidades. Volta como o primeiro personagem dessa trama de restos, o . Cabe ao termo “resto” englobar, nesta pesquisa, a situação do homem enquanto morador de rua. Um corpo que vagueia pela cidade, ocupando fronteiras, tentando sobreviver em sua camuflagem diária, na lentidão da busca pela sobrevivência e no ócio cotidiano. Um corpo que resta do sistema, que não segue padrões, e que, através de seus caminhos tortuosos e desregrados se insere na cidade formal e urbanizada. Mas que fio puxamos para pensar o corpo do enquanto corpo‐
resto? O multifacetado Flávio de Carvalho, engenheiro, artista e provocador, traz à tona em sua coluna “Casa, homem, paisagem”, no jornal Diário de São Paulo, em um conjunto de textos denominados “A moda e o novo homem”, um corpo‐resto, vestido de resto que ele chama de homem em farrapos. Ele enxerga este corpo que está à margem e vê nele um sujeito capaz de imaginar e criar para além do que seria a subjetividade capitalística trazida por Guattari (2005) 20 devido a sua condição de “pária social” e sua 20 Para Félix Guattari, o capitalismo, apoiado por uma série de equipamentos coletivos ‐ a escola, a igreja, a família, a mídia, os partidos políticos, as empresas, sindicatos, revistas, programas de televisão, c entros de saúde, etc – produz uma certa subjetividade que é hegemônica em nossa sociedade. Ou seja, essa 40 necessidade de inventar outros modos de sobrevivência na cidade (JACQUES, 2012). Flávio de Carvalho, ao falar do homem em farrapos, fala do morador de rua, dos loucos, deste “Outro urbano radical” (JACQUES, 2012, p. 135) onde reside o extremo, a necessidade de inventar por sobrevivência; o homem em farrapos, enquanto morador de rua, ou inventa uma maneira de estar no espaço urbano ou é engolido por ele. “De tempos imemoráveis o homem em farrapos é um desclassificado, um posto de lado pela sociedade. Ele é o totalmente sem classe e sem hierarquia por ser o último, é o homem para o qual todas as portas se fecham. É ele um ser submetido permanentemente à dor, à miséria e ao desprezo. O homem em farrapos é o contrário do homem investido de autoridade, pela disciplina. A sua situação de último dos últimos o concede uma forma de libertação da disciplina hierárquica e por ser o último, está em estado semelhante a um estado anti‐hierárquico de começo” (CARVALHO, 2010, p.85, grifo nosso). É este corpo em farrapos que lida diariamente com os restos da cidade, sobrevive entre eles e tira deles seu alimento, sustento e, portanto, sobrevivência. Uma pergunta nos intriga: será somente o o que trata dos restos na cidade diariamente? o corpo e o resto ou o “corpo‐resto” Para Flávio de Carvalho, “é pelo movimento que se processam as alterações nas formas fundamentais da moda. As formas fundamentais seriam forças latentes e adormecidas dentro da eternidade que conhecemos. O movimento desperta o homem do seu sono filogenérico, coloca‐o frente às exigências conscientes; é só pelo movimento que ele percebe e compreende a necessidade de mudar” (apud JACQUES, 2012, p. 136). produção de subjetividade capitalística, pretende o assujeitamento dos desejos dos sujeitos aos valores intrínsecos ao capitalismo, padronizando esses desejos. 41 Movimento tal que pode ser a errância do ou o movimento insistente do corpo de um catador ou até de uma costureira para permanecer. Enquanto o morador de rua erra para encontrar sobrevivência, os outros trabalhadores insistem pelo mesmo objetivo. Entendemos então que devemos aceitar o desafio que a pesquisa coloca, o de encontrar no corpo do trabalhador informal, do lumpemproletário21, o que seleciona os farrapos e vive deles, essa corpografia dos restos, do corpo que se implica na seleção ou na renovação principalmente de tecidos e vestimentas através da catação ou da costura. Para Jacques (2007, p.95), “a cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos passar a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta”. (Grifos nossos) É através do trabalho não normatizado com os restos que o corpo se insere nessa cadeia maior e se coloca no desvio, na produção de outro sentido para estar na cidade, de uma ressignificação do corpo, do objeto e do lugar. Desalinhavo#4 Agnès Varda: “Les Glaneurs et la Glaneuse” (2000), que em português se traduz como “Os Catadores e Eu”; um documentário onde a diretora encontra vários catadores e catadoras que por necessidade, acaso ou escolha, vivem de catar e recuperar os restos de outras pessoas. Na verdade, a palavra glaneur significa respigar, que é um ato muito comum na França, o de recolher as espigas que 21 O termo lumpemproletariado foi trazido por Karl Marx para definir pejorativamente uma categoria de trabalhadores que estaria abaixo dos operários assalariados, para ele esses trabalhadores eram danosos às intenções socialistas, já que ao invés de lutarem pela causa encontravam desvios para conseguir sobreviver na cidade. Este mesmo termo relido por Walter Benjamin é tomado enquanto desvio, potência positiva diante da monotonia do trabalho produtivo e burocrático. Para aprofundamento no termo ler BENJAMIN, W. “Paris do Segundo Império. Obras Escolhidas III ”. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.9‐101 e RAMIREZ, P. N. “A revolução vagabunda: Baudelaire, Walter Benjamin e o fim da história”. Revista eletrônica Ponto e Vírgula, São Paulo: PPGCS PUC‐SP, 2010, n.8, disponível em: http://www.pucsp.br/ponto‐e‐virgula/n8/artigos/htm/pv8‐15‐pauloramirez.htm 42 sobram após a colheita no campo. Ou seja, é o ato de recolher as sobras, os restos. O próprio filme parece uma compilação de diversos personagens e situações encontradas pela diretora que trabalha a partir de associações e deslocamentos onde uma descoberta leva a outra e, mesmo que distantes, quando colocadas lado a lado, dão sentido a um discurso construído por ela. Fig. 9: imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda. Para encontrar vínculos com esta pista vá para a página 63. O resto é ressignificado através desses sujeitos que selecionam, usam o corpo como ferramenta de trabalho, quase numa coreografia de catar e restaurar. Assim como uma costureira transforma a roupa que seria jogada fora para que seja usada novamente, sobrevivendo deste trabalho diariamente, o vê no que sobra às margens da cidade, nos farrapos, uma possibilidade de transformação e sobrevivência. A imagem do homem em farrapos vai então se confundindo com a do trapeiro, de Baudelaire, trazida por Walter Benjamin. Figura que mesmo mergulhada na fugacidade do espaço urbano consegue ver nos trapos, nas sobras, nos restos da cidade, algo de valor. “Tudo que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as 43 coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis” (BAUDELAIRE, apud BENJAMIN, 1989, p. 78). Este corpo configurado a partir do gesto diário de quem “compila os anais da devassidão” (BENJAMIN, 1989, p.78), num ato quase heróico dentro da cidade grande (PIGNATON, 2011), reúne, seleciona e classifica tudo o que cata. A figura do trapeiro, do e até mesmo da costureira nos remetem à imagem do trabalhador que se move pelo objeto que separa, cata ou costura. Em movimentos repetitivos, o atrofiar dos músculos e dos tendões modifica a postura do corpo do sujeito. O corpo se molda através do trabalho. O separar e tratar dos restos imprime uma corpografia particular em cada um, a corpografia gerada a partir dos restos urbanos. Mas também se modifica no contato com a cidade. O corpo do andarilho, do , do homem em farrapos deixa clara a transformação que ele faz na cidade e que a cidade faz nele. O corpo que afeta o espaço, geograficamente ou socialmente, com suas vestes improvisadas, suas amarrações e trocas. Seus usos fora de padrão. É também a transformação do corpo pela cidade. A cor da pele que vai se acinzentando pelo ar poluído, a poeira das calçadas, a estrutura do corpo que vai perdendo gordura, enrijecendo os músculos, mudando a postura. Os hábitos que se tornam públicos: o sexo, o banheiro, o sono. As táticas de sobrevivência – caixas de papelão, sacos de lixo, jornais 22. O corpo transforma a matéria, mas a matéria também transforma o corpo. E mais, essa transformação pode ser percebida também socialmente: “(...) as coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas” (MILLER, 2013, p.200). E é socialmente que Flávio de Carvalho coloca a transformação do homem em farrapos através dos objetos. Para ele, é “nos estados agudos do individuo que alcança o limiar de um mundo próprio, [que] aparecem as sobrevivências compensadoras graciosamente apoiadas no ornamento e no desejo de criação. 22 Para se aprofundar sobre os corpos que restam na cidade, em um texto cheio de analogias muito interessantes do corpo modificado na rua com o corpo modificado a partir de intervenções corporais como piercings, tatuagens e todo tipo de body modification; um “compilar” de histórias de corpos na rua, com reflexões profundas sobre a materialidade e a sobrevivência na cidade, ler: BORGES, Fabiane Moraes [dissertação]. Domínios do Demasiado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. 44 Encontramos pateticamente, nas ruas de toda parte, exemplares de homens e mulheres que perderam o controle dos seus desejos e das suas angustias e que se apresentam vagando pela rua, discursando histericamente para um publico, às vezes imaginário. Exibem profuso aparato e ornamento, cobrem‐se com flores e fitas, e cores e panos diversos que se desdobram, agradavelmente. Marginais descontrolados que falam a um mundo próprio, o mundo da loucura e do sonho. São estes os detentores da grande imaginação e da grande moda. São os supremos criadores da fantasia humana...e tão desprezados pelo povo que passa...” (CARVALHO, 2010, p.16, grifo nosso) O desprezo de que fala Flávio de Carvalho nos remete novamente a invisibilidade desse estado resto, invisibilidade que, veremos ao longo de nosso trajeto, permite a sobrevivência dos corpos e matérias que se encontram enquanto sobra. Se pudéssemos classificar o resto em uma linha categórica de diferentes nuances, o estaria em um ponto extremo dessa categorização, sendo ele o que lida com as sobras no intuito de sobreviver diretamente delas na cidade. Isso quer dizer que depois dele, após o uso e reinvento da matéria o resto encontra um fim, vira lixo. Veremos adiante (principalmente no desenrolar do fazer campo), que os outros personagens dessa trama, que se aproximam do trapeiro ou da costureira, trabalham com o resto enquanto mercadoria, moeda de troca. Na maioria das vezes revalidam os objetos no intuito de tirar dele seu sustento23. O , ao contrário, vive dos trapos, é um homem em farrapos, come e veste restos, sendo ele por isso possivelmente categorizado socialmente enquanto o próprio resto. Para além das questões sociais imbricadas nessa condição de sobrevivência através do resto, o que nos encanta neste pequeno mundo encontrado até agora é a possibilidade de ter essa matéria transformada e trazida de volta, neste jogo entre macro e micropolítica. O resto articulado aos corpos e ao que é novo, nessa zona fronteiriça porosa, onde nada é fixo. Outras perguntas surgem frente aos restos: se eles estão à espera, estão à espera do que ou de quem? Quem os agencia? Onde estão? Porque são descartados? Porque perdem ou ganham valor? 23 Veremos adiante, que em algumas situações nossos outros personagens também vestem os restos, mas fica clara a diferença de sua relação com eles. Enquanto o morador de rua trata esta matéria como sua, os outros personagens a tratam como mercadoria. 45 o espaço (da) roupa Esta hipotética cidade resto, imperada pela espera e o tempo lento, é aqui buscada através das roupas usadas, estas que aguardam para serem vendidas, utilizadas, catadas, separadas ou reformadas. Estes lugares resto poderiam ser categorizados enquanto espaços opacos (SANTOS, 1994), “espaços do aproximativo, da criatividade, da lentidão, abertos, movediços e compartilhados, as zonas opacas dos habitantes ordinários, os anônimos da cidade, considerados, pela lógica do espetáculo, ‘perdedores’” (OLIVIERI, 2011). Habitantes estes que podem ser “homens lentos” (SANTOS, 1994), esses que vivem uma temporalidade substancialmente diferente da imposta pelo poder hegemônico, diferente do pensamento que domina a lógica das grandes cidades: a da velocidade, da higiene, das formas e caminhos determinados. Por isso, quando assumimos a postura de digerir o campo antropofagicamente, em um tempo não maquinal ou virtual, permitimos que nosso olhar fosse atravessado pela cidade e seus restos. Restos estes que, como nosso olhar, tentam sobreviver na subversão do hegemônico, mesmo impregnados por ele e somente existindo dentro e por causa dele. Quando nosso olhar foi atravessado pela cidade e seus restos, caminhávamos por um bairro chamado Baixa dos Sapateiros, que fica em Salvador, na Bahia. No momento em que viu uma loja que não tinha placa, apenas uma faixa com os dizeres: “QUASE TODA A LOJA de 1 à 5 Reais”, tivemos estalada nossa curiosidade, seguimos o que nos pareceu uma primeira pista e entramos. Dentro da loja vimos sacos cheios de roupas com inscrições feitas à caneta piloto. Era a segunda pista, que levou nossa memória a viajar alguns quilômetros e anos, até chegar ao Parque Novo Mundo, em meados de 2009. 46 Fi g. 10: Loja da Ba i xa dos Sa pa tei ros , em Sa l va dor, onde a pri meira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pes s oa l , 2012. Este bairro, que beira a Rodovia Presidente Dutra e está localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, se faz espaço de trabalho para algumas pessoas que sobrevivem fazendo a “triagem” de roupas usadas. Estas roupas que se empilham em montes de 2 a 3 metros de altura chegam ao bairro quase diariamente, vindas de diversas instituições de caridade que recebem mais doações do que podem cuidar e colocar em seus bazares ou distribuir para os que estão sob seus cuidados. Os separadores das roupas as selecionam por tipo e estado de conservação, as colocam em fardos que serão levados por caminhões para a distribuição em pequenas lojas de itens usados espalhadas pelo país e em fazendas, nas quais as roupas são utilizadas pelos trabalhadores rurais para proteção do próprio corpo e o não desgaste de suas roupas pessoais 24. Os sacos vistos por nós na loja de roupas usadas da Baixa dos Sapateiros chegaram até ali de caminhão, vindos de São Paulo, embalados pelas mãos dos separadores do Parque Novo Mundo25. Estes lugares, de certa forma beiradiços, possibilitam o trafegar da roupa resto pela cidade. Enquanto responsáveis pelo fim da espera do resto, os dois bairros e seus 24 Baseado em conversa com um separador, em uma ida ao Parque Novo Mundo, em 2011 . 25 Informação obtida em conversa com a dona de uma loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros, em 2012. 47 trabalhadores são a ligação dessa matéria que sobra com a cidade formal, regida pelo novo e pelos padrões de poder hegemônico discutidos aqui anteriormente. Estes lugares, associados a outros, onde a roupa também está, como shoppings e lojas de departamentos, são lugares que chamamos aqui de espaços da roupa. A Baixa dos Sapateiros, bairro que abriga muitos desses espaços, é basicamente formada pela longa Avenida J. J. Seabra, rua esta que está localizada ao lado do Centro Histórico da cidade e é um local de grande importância histórica para Salvador. Já no século XVI, esta área, localizada em ponto estratégico da cidade, teve importante função defensiva, já que sua geografia configurava‐se numa vala acompanhada por um rio que volteava por trás a colina do alto da Bahia de Todos os Santos. Este rio era chamado rio das Tripas e servia principalmente como esgoto e local de descarte dos restos gerados por um matadouro que se encontrava no bairro de São Bento, próximo ao local onde hoje se encontrar o terminal da Barroquinha. A rua, que beirava o rio foi chamada primeiramente de Rua das Hortas, já que era nela que grande parte da cidade se abastecia de frutas e legumes. Mas foi somente a partir da drenagem do rio, feita na primeira metade do século XIX, que a rua pôde ser realmente habitada. Passou a ser então chamada Rua da Vala e pode ser considerada a primeira das ainda futuras avenidas de vale da cidade (NASCIMENTO, 2007). As casas construídas nesse momento eram “casas modestas e pobres, térreas geralmente, raramente com um andar, moradia de artesãos, principalmente sapateiros, que terminaram por transferir à rua o nome que ela possui atualmente (…)” (SANTOS, 1959, p. 171). O nome popular desta área associa a geografia e a profissão mais exercida por ali durante muitos anos: Baixa dos Sapateiros. Oficialmente, depois das mudanças urbanas propostas por José Joaquim Seabra para a cidade de Salvador, a rua passa a ter seu nome. O homem que dá nome a rua foi governador do estado da Bahia por duas vezes, de 1912 a 1916 e de 1920 a 1924, mas foi em sua primeira gestão que desenvolveu os projetos que marcaram seu governo. Influenciado pela urbanização do Rio de Janeiro de Pereira Passos, o então governador fez importantes intervenções urbanas na capital. Na Cidade Baixa, o projeto constituía na construção de uma nova urbanização e na Cidade Alta na inauguração de “largas avenidas, numa tentativa de romper com seu passado” (PINHEIRO, 2011, p.213). 48 É na Avenida J. J. Seabra, que se tornou importante centro comercial para a cidade, que encontramos então os primeiros espaços da roupa desta investigação. Tendo sido local de grande movimento no passado, foi através dos processos de revitalização do seu bairro vizinho26, da instalação do terminal de ônibus da Lapa, que desviou o trajeto de muita gente, da abertura de Shoppings como o Piedade aos arredores da região, nos anos 1980, que o bairro passou a ser uma localidade que sobrevive do que remanesce dessa revitalização e dos poucos transeuntes que ainda se aventuram pelas ruas vazias da Baixa. A queda da frequência de transeuntes fica clara com o passar dos anos 27. Desde sempre enquanto beirada, primeiro de um rio que se fazia fronteira da cidade antiga, depois de um Centro Histórico que, ao mesmo tempo em que ofusca sua existência, permite que muitos processos aconteçam livremente por suas ruas, não seria a Baixa dos Sapateiros um bairro resto? Suas lojas, que vendem desde artigos importados da China a artigos para festas, incluem araras cheias de roupas novas e iguais, vendidas por preços baixos; prateleiras cheias de bolsas e mochilas; calçados de plástico, borracha ou lona; camisetas esportivas penduradas nos toldos; manequins vestidos com roupas justas ocupando as calçadas; nichos de madeira cheios de roupas usadas vendidas a 1 ou 2 reais; e muitas outras coisas que vão configurando este espaço onde a roupa está à espera. O espaço da roupa se estabelece enquanto lugar que abriga a roupa. Espaço que também é encontrado, de outra forma, no Parque Novo Mundo. Este trecho de bairro, que está entre dois subdistritos que oficialmente se chamam Vila Maria Baixa e Jardim Andaraí, ficou conhecido por esse nome e é assim chamado pelos moradores há muito tempo28. O bairro começou a se formar na década de 70, quando ainda era um lugar cheio de chácaras, pequenas lagoas e terrenos alagadiços. À beira das lagoas aconteceram as primeiras ocupações informais, de barracos feitos de 26 Reconhecido como patrimônio histórico pela UNESCO em 1985, o Centro Histórico de Salvador, mais conhecido como Pelourinho, começou a receber recursos financeiros para revitalização, reformas e investimento em turismo a partir da década de 1990, o que acarretou em inúmeras mudanças que transformaram muitas das casas coloniais do bairro em empreendimentos de cultura e lazer. 27 Baseado em conversa com a uma trabalhadora do local, em 2012. 28 Oficialmente, segundo mapeamento do plano diretor da cidade de São Paulo, o bairro com nome de Parque Novo Mundo fica a algumas quadras das ruas aqui utilizadas enquanto lugar de fazer campo. 49 madeira, papelão e todo material estruturante que pudesse ser encontrado na rua. Ali, em 1972, podia‐se comprar um barraco construído em palafita por mais ou menos 4 mil reais 29. Mas foi no fim da década de 80, quando o bairro já estava densamente ocupado, que o governo de Luiza Erundina urbanizou algumas ruas, soterrou áreas alagadiças e deu estruturas de alvenaria aos barracos 30. O bairro, que beira a Rodovia Presidente Dutra, está localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo. Os espaços da roupa encontrados ali estão principalmente em um trecho de bairro delimitado pela Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau. São pequenas garagens cheias de roupas usadas, amontoadas, que estão ali para serem separadas por inúmeros trabalhadores. Quando se está passando pelas vias próximas ao bairro é muito difícil conseguir vislumbrá‐lo, ele está escondido entre fronteiras, invisível – tática de sobrevivência. O espaço da roupa está protegido. Se configuram então, estes espaços, enquanto lugar de espera, de comércio, de transformação do resto em mercadoria. É o entre, uma fronteira porosa e sem limites claros onde se encontra a possibilidade de que agenciamentos micropolíticos aconteçam a partir do encontro dos corpos – dos personagens a serem apresentados a seguir – com essas roupas. A vestimenta descartada, que volta à tona, está fora de moda, já despadronizada e por isso pode ser desviante, um artifício de desterritorialização. É um objeto que permite ao sujeito, nos conceitos de Guattari (1986, p.45) o “atrevimento de se singularizar” (apud PRECIOSA, 2012). É quando a roupa reencontra o corpo que entendemos sua nova função, a de espaço. Temos então o que chamamos aqui de espaço­roupa. 29 Informação obtida em conversa com trabalhador do bairro, em 2013. 30 Idem. 50 Fi g. 11: Ga ra gem de roupa s no Pa rque Novo Mundo e s eus tra ba l ha dores . Foto reti ra da do Googl e Ma ps , em s etembro de 2012. Pensando sobre o espaço como uma sobreposição de camadas, platôs (ROLNIK, 2011) ou até mesmo peles, encontramos o conceito das cinco peles, sobre o qual trabalhou o artista austríaco Hundertwasser. Para ele cada corpo é cercado por cinco peles: a epiderme, a roupa, a casa, a identidade social e o meio global – incluindo aí fatores como ecologia e humanidade. A primeira pele, a epiderme, é invólucro, camada sensível, viva, constituinte do corpo, inspira e expira as necessidades mais básicas do ser humano. É a ligação entre o “Eu” e o mundo (RESTANY, 2003). É a camada que coloca o sujeito em contato com os espaços que o envolvem. A epiderme tem ligação direta com a segunda pele, a vestimenta. Para Hundertwasser, o vestuário é um meio de expressar a criatividade e deve ultrapassar as barreiras da “uniformidade, da simetria e da tirania da moda” (RESTANY, 2003, p.38). A segunda pele cobre, protege e abriga a primeira e é diretamente ligada a quarta pele, o meio social. Podemos considerar nesse estudo o meio social como a cidade por onde o corpo vagueia, onde a roupa é fronteira 51 delimitadora de espaços que ora se expandem, ora contraem, regulando o vínculo entre o corpo e seu entorno. Cada tecido e forma transmite para o corpo e para o mundo alguma coisa. A roupa torna‐se um ambiente duplo, que se projeta para dentro e para fora. Para dentro, é o primeiro e mais próximo contato da epiderme, provocando os sentidos e, para fora, ilude os olhos do observador, revela ou esconde o corpo, cria estruturas e sensações visuais (SALTZMAN, 2007). Fi g. 12 ‐ Il us tra çã o de Hundertwa s s er repres enta ndo a s ci nco pel es . Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser: o Pintor‐
Rei das Cinco Peles. Köl n: Ta s chen, 2003, p.15. Para Jacques, “a diferença entre prédio e vestimenta estaria nos diferentes níveis da ideia de habitar, e sobretudo do abrigar, em todos os envolvimentos possíveis da interioridade, da pele às fronteiras” (2008, p.162). A roupa é abrigo, a proteção mais simples, envolvimento têxtil do corpo. Objeto que se difere do edifício, para além do “nível da ideia de habitar”, através do tempo: é mais efêmera, se sugere passageira, cambiante, tem uma temporalidade diferente do “habitar”. E, se a roupa é abrigo, é também um espaço móvel, movido pelo corpo que cobre. É então afetada e modificada a cada mudança de entorno e, dependendo do contexto – paisagem, ambiente, temperatura, luz, cultura, sociedade, tecnologia, recursos e economia ‐ tem a capacidade de adaptar‐se e desempenhar funções distintas (SALTZMAN, 2007). Enquanto espaço e objeto, a roupa também se deixa afetar e modificar pelos corpos. 52 Traça caminhos, é levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de carregar o corpo ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso). “As roupas recebem a marca humana e (...) duradouras, elas ridicularizam nossa mortalidade” (STALYBRASS, 2008, p.11), porque continuam, duram mesmo após a morte do corpo que a carrega. “Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10). E essa sobrevivência é carregada de marcas e histórias, o espaço­roupa é, portanto, abrigo temporário dos corpos e, como casas, se desgastam, sujam e fissuram através do tempo e do sujeito que a habita. No mesmo sentido, são modificadas e transformadas para abrigar o corpo da maneira que melhor o agrade. As casas são pequenos mundos particulares fixos, as roupas, um tanto mais efêmeras, são este espaço particular que se carrega diariamente. “As roupas são, pois, uma forma de memória” (STALYBRASS, 2008, p.33). Um local onde se sedimentam camadas de acontecimentos. O espaço­roupa se configura a partir da roupa vestida, da união entre corpo, vestimenta e cidade, fato que só é possível de acontecer através de mãos como as do , do trapeiro, do homem em farrapos e dos outros personagens conceituais ainda a serem descobertos nessa trama (no caso dos restos), que trabalham em lugares como o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros, aqui entendidos como espaços da roupa. Assim, através dos usos e descartes, a trama do resto urbano vai se complexificando, outros corpos e locais se ligam a ela, numa construção tentacular, especialmente em se tratando, neste caso, dos restos das roupas. Vamos descobrindo então, percorrendo esses espaços, que ao fazê‐lo transitamos por uma “(...) sociedade da roupa, pois a roupa é tanto uma moeda quanto um meio de incorporação. À medida em que muda de mãos, ela prende as pessoas em rede de obrigações. O poder particular da roupa para efetivar essas redes está estreitamente associado a dois aspectos quase contraditórios de sua materialidade: sua capacidade para ser permeada e transformada tanto pelo fabricante quanto por quem a veste; e sua capacidade para durar no tempo”. (STALYBRASS, 2008, p.13) E é a partir deste entendimento, que nos infiltramos nesta rede de relações, descobrindo seus personagens conceituais, seus segredos e suas pistas. Vamos à rua. 53 capítulo II ALINHAVANDO TRAPOS: QUANDO SE VAI À RUA “Para conhecer os vaga‐lumes, é preciso observá‐los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê‐los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil vaga‐lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela”. (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p. 52, grifo nosso) Não seria nas ruas que a cidade acontece efetivamente? No encontro e na troca? Não seriam as pessoas as responsáveis por “fazer a cidade” a cada passo que dão por suas vias tortuosas ou planejadas? E nesse sentido, quais seriam as “possibilidades de experiência da alteridade urbana” (JACQUES, p. 11, 2012)? Como essas possibilidades de experiência podem se tornar potentes “na construção e na (contra)produção de subjetividades, de sonhos e de desejos” (JACQUES, p. 11, 2012) na cidade? Em nosso caminho trapeiro, encontramos diversos sujeitos que retiramos de sua condição de sujeito para serem aqui personagens conceituais, alguns dos quais já apareceram anteriormente neste texto, que nos encaminham, através das trocas, da abertura de seus pequenos mundos aos nossos dentes devoradores, ao encontro de nossas questões centrais e à possível descoberta de outras formas de estar na cidade e produzir subjetividades, sonhos e desejos. Antes de serem claramente apresentados tais personagens conceituais, é preciso fazer algumas observações sobre eles e sobre sua relação conosco. Primeiro, em nosso trajeto investigatório, uma questão aflora e é 54 reforçada pelas palavras de Gilles Deleuze e Félix Guattari: seria o “outrem (...) necessariamente segundo em relação a um eu?” (2010, p.23). O outrem, “sempre percebido como um outro”, se faz condição para que o eu passe do mundo em que se encontra a um distinto (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.26). É o outro que se faz condição para a percepção de si e do meio e, consequentemente, é necessário para a mudança e o movimento destes. Os “outrens” encontrados por nosso caminho estão aqui colocados enquanto condição de nossa existência (enquanto autor / pesquisador) e movimento. Esses personagens podem ser configurados enquanto “personagem conceitual” e “figura estética” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010), em um possível “lugar de encontro entre” (MESQUITA, 2008, p.31) os dois conceitos. Ambos se diferem por ser o primeiro “potência de conceitos” e o segundo “potência de afectos e perceptos” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.80). Para Deleuze e Guattari, o personagem conceitual não é histórico, é sim um acontecimento, existe em trânsito e tem contornos irregulares (MESQUITA, 2008). Ele tem ainda o papel de “manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.84). Enquanto que as figuras estéticas, “são sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Devires tais que também se encontram nos personagens conceituais. No entanto, “o devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não para de devir‐outro (continuando a ser o que é), (...) enquanto que o devir conceitual é o ato pelo qual o acontecimento comum, ele mesmo, esquiva o que é” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Os personagens desta dissertação ora são sensações, ora acontecimentos. Ora são personagens conceituais, ora figura estética. Ora são algo entre os dois conceitos, como se fosse possível que se produzissem entre eles “não somente alianças, mas bifurcações e substituições” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.81). 55 Os personagens 31 encontrados não pretendem aqui ser explicados ou categorizados. Eles não são metáforas nem a generalização de pessoas reais. Eles acontecem, portanto, enquanto conceito e sensação. Não falamos então dos sujeitos em si, mas sim da potência conceitual encontrada neles ou através deles e que nos aproximou do que é para nós o espaço­roupa. Apresentamos a seguir os encontros urbanos pelos quais nos deixamos levar, os sujeitos que vieram a ser personagens e que afetaram nossas reflexões e caminhos nessa jornada. Através das posturas metodológicas descobertas durante o próprio trajeto, uma suposta cartografia vai se fazendo e parece não ter fim. É a partir daqui que nossos caminhos vão para além dos livros e conceitos, é entre ruas e múltiplos encontros que nos deparamos com nossos aliados e ganhamos nossas valiosas pistas. É através de nossos cadernos de campo que seguimos com essas reflexões. vestígios e vínculos primeiras pistas Algumas páginas de nosso caderno de campo serão transcritas a seguir a fim de trazer ao leitor uma proximidade dos acontecimentos da pesquisa. A primeira página apresentada fala do momento em que o caminho da pesquisa mudou, através de algumas conexões entre acontecimentos do presente e do passado. Caminho por um dos quarteirões da Avenida J.J. Seabra, na Baixa dos Sapateiros, em Salvador, vejo pelo menos três lojas de roupas usadas. A descoberta dessas lojas resulta na imediata vontade de entrar, tocar as 31 Deve‐se deixar claro que a palavra personagens a partir daqui pode querer dizer de personagem conceitual e/ou figura estética, já que os dois conceitos se apresentam imbricados nesse texto. 56 roupas, sentir o cheiro gasto, desvendar os mistérios daqueles estabelecimentos; continuar a perseguir a roupa – ato este inevitável e recorrente mim. Com as memórias ativadas, passam por meus olhos anos passados, em que roupas usadas eram meu objeto de trabalho e se transformavam em figurinos para personagens de filmes e peças de teatro. Passados alguns minutos dentro de uma dessas lojas, uma atendente chega mais perto e oferece seus serviços. A pergunta que eu faço, desconcerta‐a: “Essas roupas são usadas?”. Ela, uma senhora que imagino ser uma das donas da loja, dá voltas nas palavras e responde que parte delas é usada, mas a maioria é nova, justifica que isso só acontece pelo fato de comprarem as peças pelo telefone, de um lugar em São Paulo, que lhes envia sem escolherem o que vem. É visível pelos puídos, as cores e as formas que todas as roupas são usadas. Eu sei! Caminhando mais um pouco pela loja, meus pés quase tropeçam em grandes fardos de roupas escondidos debaixo das araras. Neles se pode ler uma inscrição em caneta piloto: “NOME DO DESTINATÁRIO SALVADOR – BA SSA MULHER” Fi g. 13: Ma nequi ns da loja de roupas usadas na Baixa dos Sa pa tei ros , em Sa l va dor – BA, onde a vimos os fa rdos de roupa pel a pri mei ra vez. Atrá s dos ma nequi ns s e l ê: não efetuamos troca. Foto de a rqui vo pes s oa l , 2012. 57 Memória “Tudo que não invento é falso” (BARROS, 1996) Um lampejo aceso a partir do encontro do passado e do presente, a memória é estratégia de investigação, atividade intelectual. É uma faculdade paradoxal que é, ao mesmo tempo, ligada a um acontecimento voluntário do lembrar e a algo involuntário: lembranças, imagens que afetam quem lembra. Portanto, quando se lembra voluntariamente de algo, outras lembranças surgem, coisas que talvez não se pretendia lembrar. Assim sendo, muitas vezes “o lembrar e a lembrança se contradizem” 32. A lembrança é capaz de trazer de volta sensações e acontecimentos passados, produz imagens, imaginação. Possibilita uma transformação do passado, uma vez que a lembrança ocorre num momento presente e é, de certa forma, influenciada por esse momento. Esse encontro do “Outrora” com o “Agora” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.62) configurado em imagens mentais involuntárias, transforma a lembrança do passado e pode colaborar para a mudança do presente (GAGNEBIN, 2006). Nesse sentido, “se a imaginação – esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento – nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p. 62). É decisivo, pois é através desse encontro, desse acontecimento mental, que se passa à narrativa, ao discurso, seja ele histórico ou não. Para Gagnebin, a memória é acaso, não enquanto “irrupção estatística de coincidências”, mas por ser algo que “não depende de nossa vontade ou de nossa inteligência, algo que surge e se impõe a nós e nos obriga, nos força a parar, a dar um tempo, a pensar” ( GAGNEBIN, 2006, p.153). “Não se trata de um resgate voluntário do passado, senão um passado que se apossa involuntariamente de nosso presente e de nossos atos” (RAMIREZ, 2011, p. 120), nos fazendo reconhecer no presente elementos remanescentes do já acontecido. 32 Frase retirada de entrevista com Jeanne Marie Gagnebin sobre a memória. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU 58 Trazendo outra vez a discussão já posta anteriormente, quando falávamos da metodologia de Ginzburg, o paradigma indiciário, esse acaso “só pode ser percebido se há como um treino, uma ascese da disponibilidade, uma “seleção”, umas “provas” que tornam o espírito mais flexível, mais apto a acolhê‐lo, esse imprevisto, essa ocasião – kairosl – que, geralmente, não percebemos, jogamos fora, rechaçamos e recalcamos” (GAGNEBIN, 2006, p.153). Como diz Ginzburg, é necessário prestar atenção e “ouvir” as pistas com cuidado, aflorando a intuição e aguçando os sentidos. Talvez as pistas só funcionem quando, de alguma forma, causam esse lampejo de memória. A ocasião é então aproveitada, não criada (CERTEAU, 1994). A memória traz para o momento a pequena peça de encaixe que faltava, “como os pássaros que só põe seus ovos no ninho de outras espécies, a memória produz num lugar que não lhe é próprio” (CERTEAU, 1994, p. 162), realoca imagens do passado no presente, obtém sua força de intervenção de “sua própria capacidade de ser alterada – deslocável, móvel, sem lugar fixo” (CERTEAU, 1994, p. 162). “Longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos possíveis, e de esperá‐los, vigilante, à espreita” (CERTEAU, 1994, p. 163). Ela fica a espera da ocasião, do momento em que aparecerá em forma de lembrança para trazer a tona o acaso, o lampejo, o “clique”. Sem se limitar ao passado, essa capacidade intelectual vive em uma pluralidade de tempos não lineares (CERTEAU, 1994), por isso, essa memória involuntária seria capaz de anular distâncias temporais entre o passado e o presente, como se fez em nós. É por meio da lembrança estalada através de um acontecimento presente que a Salvador de 2012 e a São Paulo de 2008 se encontram. Voltando ao questionamento de Guinzburg sobre a impossibilidade do historiador reviver um momento histórico, nos deparamos com o pensamento de Walter Benjamin sobre o manejar do passado através da história. Para ele, "articular historicamente o passado não significa conhecê‐lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar‐se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo" (In GAGNEBIN, 2006, p.40), assim sendo, a memória nos parece outra vez intrinsecamente ligada à narrativa histórica. Novamente afirmando, porém, que não nos interessa fazer um levantamento histórico dos dois bairros em questão ou até mesmo criar uma narrativa histórica, falar sobre a memória e sua narrativa pode colaborar para o maior 59 entendimento do próprio fazer campo e da maneira como ele é colocado para o leitor. Afinal, o que garante a fidelidade das imagens lembradas? E da narrativa criada? Voltamos aqui a pensar no estado ficcional do texto, no encontro com os personagens, na criação de um discurso a partir de acontecimentos verdadeiros. A memória ajuda a preencher nossos cadernos de campo e a articular nossas vivências do presente com acontecimentos do passado. Ela nos ajuda a “ficcionar” (FOUCAULT, 1977 apud. ARAÚJO, 2011, p.58). (Sobre São Paulo, se não me falha a memória, em meados de 2008) A primeira vez que fui ao Parque Novo Mundo, fui de carro, por um caminho que não se poderia errar (o erro me daria alguns quilômetros de pista até o próximo retorno). Fui até lá para selecionar roupas para o figurino de um longa‐metragem. Beirando a Rodovia Presidente Dutra, o bairro localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, tem apenas um acesso pela Marginal Tietê que, se fosse perdido, faria com que eu desse uma grande volta de alguns quilômetros de Rodovia. É preciso estar atento para encontrar o bairro. Se fosse conhecedora da área, poderia ter chegado também por dentro de outros bairros, ou de ônibus, por uma linha que me deixaria em uma de suas ruas internas. Me lembro que quando cheguei ao bairro pensei: “se são tantos caminhos, como nunca passei por aqui”? Mas foi caminhando por suas pequenas vias deterioradas e passando entre a Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau que eu realmente me surpreendi. Em um quadrado de ruas que abriga vários quarteirões, estão os vestígios do processo de industrialização, vestígios dos restos que a urbanização preferiu tirar das vistas. Eu estremeci surpresa: garagens e cômodos inteiros cheios de montes de roupa, com 2 ou 3 metros de altura, onde imagino que 40 ou 50 pessoas trabalham separando as peças por qualidade e tipo. Vi o Catador pela primeira vez, 60 ele escrevia nos fardos com uma caneta piloto, sinalando da seguinte forma: “NOME DO DESTINATÁRIO “ABREVEATURA DA CIDADE CIDADE – ESTADO” CATEGORIA DA ROUPA” Fi g. 14: Ga ra gem de roupas no Pa rque Novo Mundo e seus tra balhadores. Foto reti rada do Google Maps, em setembro de 2012. das desculpas e táticas Nos vemos sozinhos na Baixa dos Sapateiros, um território desconhecido, mas temos vontade de estar ali, de descobrir os segredos dessa trama que começa a se apresentar diante de nosso estômago33. Queremos correr o risco e pagar o preço da descoberta de novas pistas que possivelmente nos levarão a descobrir outras ligações entre Salvador e São Paulo além dos fardos de roupas usadas. Nos lembramos então de uma longa conversa com outros pesquisadores 34 e da necessidade de todos, ao chegar em um local desconhecido, de criar uma tática, descobrir uma desculpa 33 Brincando com as palavras: Já que nossa metodologia é antropófa ga e não visual, tudo se devora, tudo se digere, nada simplesmente se vê ou se apresenta diante dos olhos. 34 Conversa ocorrida em outubro de 2012 com pesquisadores do Laboratório Urbano, grupo de pesquisa do Programa de Pós ‐graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, sobre trabalhos de campo. 61 possível para se estar neste lugar. Se lembra que “criar é resistir” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.133) e vai em busca da brecha necessária para essa invenção que, espera, possibilitará sua efetiva entrada na Baixa dos Sapateiros. A tática, segundo Michel de Certeau, está presente e diversas camadas estruturais de nossas cidades e opera em diversas situações enquanto instrumento de sobrevivência social, principalmente enquanto ferramenta para os “fracos” e está mais ligada ao tempo que ao lugar. É como o lampejo da memória, trabalha sobre ocasiões, brechas, chances de ação, associações que podem ser capazes de gerar outra coisa. “(...) Ela (a tática) opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não‐lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia” (CERTEAU, 1994, p. 100). A tática que encontramos para frequentar o bairro está baseada nos mesmo princípios táticos cotidianos de convívio na cidade. “Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo tática” (CERTEAU, 1994, p. 47). Quando a memória entra na história, vem com ela a necessidade da investigação. Como ligar os vestígios? Como estabelecer vínculos entre memórias e pistas? Eu preciso encontrar uma maneira de manter minha presença na Baixa dos Sapateiros. Preciso chegar mais fundo. Preciso estar ali para continuar a investigar a roupa usada. 62 Saindo da loja em que estava e continuando meu trajeto, atento o paladar e algumas lojas depois encontro meu passe de entrada. Vejo duas placas penduradas em uma pequena porta que dá para um corredor bem fundo: VENDE­SE DUAS MÁQUINAS INDUSTRIAL E COSTUREIRA ACEITA­SE ENCOMENDAS CONSERTOS DE BOLSAS EM GERAL Fi g. 15: Entra da do a tel i ê da Cos turei ri nha na Ba i xa dos Sa pa tei ros, em Sa l va dor – BA. Foto de a rqui vo pes s oa l , 2012. No fim do corredor vejo uma mulher séria sentada em frente a uma máquina de costura. A desculpa se apresenta: “quero comprar uma máquina de costura”, parece funcionar. Percebo então que sem a desculpa não poderia estar ali, porque não tenho a permissão de ultrapassar essa fronteira, de conversar com aquela mulher. A desculpa me deixa entrar, depois dela a conversa toma outros rumos. A me abre as portas da Baixa dos Sapateiros. 63 Fi g. 16: Mi s teri os o corredor de entra da do a tel i ê da Costureirinha na Ba i xa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal , 2012. Desalinhavo#5 “Na Baixa do Sapateiro”, música de Ary Barroso Na Baixa do Sapateiro eu encontrei um dia A morena mais frajola da Bahia Pedi­lhe um beijo, não deu Um abraço, sorriu Pedi­lhe a mão, não quis dar, fugiu Bahia, terra da felicidade [...] Ô Bahia Bahia que não me sai do pensamento... Para seguir esta pista vá para a página 94. Ou procure escutar a canção de Ary Barroso. 64 A brecha se apresenta em forma de placa, indicando um caminho escuro por um pequeno corredor onde, no fundo, se encontra a luz: a . A associação feita para chegar ao impulso da desculpa passa pela memória e pela tática. Para se usar da tática tem‐se “constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’” (CERTEAU, 1994, p. 46), jogo este que não pretende configurar um “discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’” (CERTEAU, 1994, p.46). É a partir de então que passamos a frequentar esse trecho da Avenida J. J. Seabra algumas vezes por semana, com a desculpa de visitar a e conhecer seu trabalho e seu dia‐a‐dia. Todos os dias, antes de chegar ao ateliê de nossa álibi, passamos pelas lojas de roupas usadas para descobrir qualquer novidade e levamos conosco um pequeno caderno para anotações e uma câmera fotográfica analógica 35 para registrar eventuais situações. Peço para passar algumas tardes com ela durante um tempo, para vê‐la trabalhar, aprender com ela. Conto que faço um trabalho nessa região para a faculdade, uma pesquisa de campo. Ela parece não se importar, o que a interessa é ter minha companhia, alguém para conversar. Não me pergunta nada sobre a pesquisa, mas conversamos sobre igreja, televisão e o pé de Araxá na casa dela. Desta vez decido conversar com o , contar que estou fazendo uma investigação sobre a roupa usada e pedir para ficar ali convivendo com ele durante alguns dias. Sua esposa está na loja, mas ele não. Converso primeiro com ela, conto meu interesse sobre a roupa usada, 35 A escolha pelo sistema analógico se dá exatamente pelo tempo de maturação deste material. Só se vai rever a fotografia muito tempo depois do momento fotografado, o que traz novas reflexões e reaviva certas memórias. É o tempo de deglutição da antropofagia. Um registro lento e que possibilita diferentes ponderações sobre o momento. 65 aqui a desculpa é a própria investigação, a Universidade, as orientadoras, a bolsa Capes. O chega no meio da conversa, volto ao início e lhe conto a mesma coisa que contei à sua esposa. Ele me olha com ares de dúvida e me diz que pode me contar tudo: preços, como chegam e como saem as roupas, como separam, quem traz, quem leva, quem compra. Eu lhe digo que isso tudo me interessa, mas me interessa mais estar ali, convivendo com eles, vendo o trabalho que eles fazem diariamente e é então que sua esposa me ajuda a definir a pesquisa e resume em uma pequena frase tudo que eu mesma queria dizer: “ela quer conhecer o dia‐a‐dia da roupa usada”. É isso! Quero conhecer o dia‐
a‐dia desse resto urbano que se reinventa através das mãos desses trabalhadores. O se dispõe a me ajudar. Qual a diferença de se estar em campo com a certeza da desculpa? Que segurança ela pode trazer à pesquisa? Vivemos situações diferentes nos dois bairros: um é bastante central e, por isso, parece comum que alguém passe por ali todos os dias, mesmo que sem se relacionar com ninguém, ao contrário, ficar parado ali poderia parecer estranho para os trabalhadores e moradores locais. O outro bairro, periférico, não é passagem comum para pedestres e qualquer pessoa desconhecida que passe por ali é notada e, possivelmente, corre riscos. Ter aliados, os protetores de nosso portal de entrada aos bairros, nos garantem a segurança da pesquisa e a possibilidade de seguir a diante e conhecer outros personagens participantes dessa trama. os aliados Estamos agora seguros ao lado de nossos personagens. É preciso então explica‐
los. A , o e o , principais agenciadores dessa trama, podem ser a costureira de qualquer bairro, o catador de qualquer rua, o rueiro da praça de qualquer cidade. Eles são o nosso encontro com os restos urbanos, eles são os principais agentes dessa trama complexa, são a profusão de acontecimentos do fazer campo, que não necessariamente aconteceram do nosso contato com um único sujeito. Enquanto acontecimento e sensação, esses personagens podem ocorrer em qualquer 66 sujeito que esteja imbricado na rede dessa suposta “cidade resto”. São personagens criados para traduzir e levantar questões, conceitos, “afectos”. A , como a de Balzac (veja desalinhavo#2, na página 26 desta dissertação), costura de forma a modificar o entorno, a desviar das imposições do sistema, do poder hegemônico, porém com o propósito de sobreviver e resistir na cidade. Costura para contar histórias de livros revolucionários ou para fazer sua própria história revolucionária. O separa o que são para ele pequenos tesouros que a cidade deixou de lado, como o trapeiro, ou como os próprios Catadores de Vardá (ver desalinhavo#4, na página 34 desta dissertação), que veem nos restos uma possibilidade de recomeço, desvio ou construção de uma outra forma de estar na cidade. fardo de miudezas ou o “dia‐a‐dia da roupa usada” Ele termina de colar um coturno, se levanta e me chama para entrar. Vai explicando cada monte de roupa já separada e dobrada. Calças sociais de primeira, calças sociais de segunda, camisas masculinas, lençóis, roupas femininas, ‘fardo de miudezas’. Ele me explica que as roupas de primeira ele vende mais caro, geralmente para lojas, as de segunda ele vende mais barato e até onde sabe são roupas usadas por trabalhadores de lavoura. As roupas de segunda tem bastante aceitação também no Paraguai. As camisas masculinas tem boa saída e geralmente são vendidas em um saco que vai metade calça social, metade camisa. Mas as camisas brancas geralmente saem bem pouco, pouca gente quer. As roupas femininas também saem menos e geralmente vão organizadas em um ‘fardo misto’ que leva 300 peças e custa R$100, também podem ser classificadas como de primeira ou de segunda. O ‘fardo das miudezas’ é um saco menor que 67 é cheio de peças miúdas: roupas de bebe, meias, roupa intima. Esses fardos não tem quantidade de peça certa, o preço é dado no fardo cheio, ‘socado’ como diz o . Esta catação de trapos, acontecimentos fragmentados pela memória e configurados em ficção é como o fardo de miudezas do Pequenos fatos (meias, sutiãs, cuecas) ‘socados’ em um saco que, quando aberto, é desencadeador de surpresas e desterritorializações. Não se sabe que peça será tirada do fardo, não se sabe a cor, o estado de conservação, a matéria prima, o valor comercial. Mas cada peça traz consigo uma história, um possível desencadear da memória, um possível “acaso”, um puxar de fios. Desalinhavo#6 Receita de moqueca de peixe, feijão de leite e peixe frito. Presente da Costureirinha para nós, escrita por sua sobrinha. Para seguir esta pista, compre os ingredientes e vá para a cozinha. Ou siga para a página 103 dessa dissertação. 68 A está encurtando algumas calças jeans, transformando‐
as em bermudas. ‐ Nossa, mas essas calças são novas, não são? Porque te pediram para fazer isso? ‐ Aqui faz muito calor, eles compram essas calças baratas e vale a pena pra eles me pedirem pra reformar. Assim vende mais. Eu faço um preço pelo pacote e fica bom pra eles. Pergunto ao qual é o preço de uma bota de couro marrom. Ela está praticamente nova. Ele me olha com certa desconfiança e me responde: ‐ Essa bota é boa, por isso é mais cara. Tá conservada. Custa R$2,50. No solado e na palmilha da bota posso ler sua marca, que provavelmente ele desconhece. Essa mesma bota deve custar em torno de R$300,00 na loja oficial. Compro‐a. Chego e encontro a remendando e colocando etiquetas de diferentes marcas nas roupas usadas que são vendidas na loja ao lado. A está colocando zíperes novos e trocando cursores de zíperes de mochilas da loja de bolsas chinesas da rua. Muitas delas já chegam na loja quebradas, outras estouram na primeira vez que são abertas. 69 Fi g. 17 e 18: Loca l de tra ba l ho da Costureirinha e el a mos tra ndo um de s eus muitos truques: a tesoura imantada que a tra i a l fi netes , em Sa l va dor / BA. Fotos de a rqui vo pes s oa l , 2012. Fi g. 19: Corredor do a tel i ê da Costureirinha chei o de bol s a s e mochi l a s cons erta da s por el a , em Salvador / BA. Foto de arquivo pes s oa l , 2012. As ações executadas pela e pelo passam pela necessidade de estar na cidade, é preciso resistir e sobreviver diariamente, para isso aprendem, apreendem, desenvolvem e se utilizam de táticas e truques. Através do trabalho, do remendo, do uso de retalhos e da invenção de uma nova categoria de objeto essa maneira de estar na cidade vai contra o caminho normatizado do trabalho formal. Se a vida urbana impõe a pergunta: “que possibilidades restam de criar laço, de tecer um território existencial e subjetivo na contramão da serialização e das reterritorializações propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual” (PELBART, 2003, p. 22), o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros com seus sujeitos agentes, aqui trazidos enquanto personagens, exibem sorrateiramente uma resposta, e é essa própria trama de cidade resto uma das possibilidades, 70 “em que o desperdício, longe de figurar como resíduo irracional, recebe uma função positiva, substituindo a utilidade racional numa funcionalidade social superior e se revela, no limite, como a função essencial – tornando‐se o aumento da despesa, o supérfluo, a inutilidade ritual do “gasto para nada”, o lugar de produção de valores, das diferenças e do sentido – tanto no plano individual como no plano social”. (BAUDRILLARD, 2008, p. 40) Estes espaços e corpos resistem, resistem por serem resto? Muitas vezes aparentam ser como um morador de rua: estão em ruínas, escondidos por uma parede social e invisível, são homens lentos, errantes, em farrapos, vagabundos 36. Habitam uma beirada e configuram sua existência em outro tempo, que não o fugaz e efêmero da cidade hegemônica. Há tempo para olhar, esperar, analisar, investigar e catalogar. Ali onde as regras são ditadas mais vezes pela sobrevivência que por outros fatores de natureza mais normativa, essas roupas resto são então objetos desterritorializados e desviantes, pois instigam outros universos de referência, estão permeando o sistema, quase invisíveis, mas com muita potência. Micro potência. O que está em voga é o desvio, pois quando a roupa, o espaço e o corpo são resto, as regras que se configurem enquanto macropolítica nem sempre são seguidas. Por isso ao perguntar ao sobre o preço da bota ele categoriza‐a como “boa” e por isso justifica seu alto preço de R$2,50, não sabendo ele, que a mesma bota, no shopping mais próximo deve custar em torno de R$300,00, devido à marca que leva impressa em seu solado. Da mesma forma, em Salvador, a é contratada pelo dono da loja de roupas usadas para costurar etiquetas nas roupas na tentativa de referenciá‐las como novas ou importantes dentro da lógica capitalista, o dono da loja subverte e boicota o sistema, se inserindo nele, de uma maneira quase contraditória. Tudo é reapropriado e ressignificado rapidamente. O mesmo se dá quando alguém decide vestir uma roupa que era resto, pois ao vesti‐la deve adaptá‐la ao corpo, agir de improviso usando os recursos que estiverem à mão; assim, estará de alguma forma indo contra os padrões estabelecidos pelo sistema, provocando os olhos alheios pelas ruas 36
Termos utilizados respectivamente por Milton Santos, Paola Berenstein Jacques, Flávio de Carvalho e João do Rio para falar de homens e mulheres que vagueiam pela cidade sem compromisso com a velocidade e as imposições da contemporaneidade. 71 da cidade e possibilitando que a partir de seu improviso criado aconteça o estranhamento e, consequentemente, o desvio. O espaço­roupa vai se apresentando para nós em todas estas situações: é fazer corpo, fazer vestimenta e fazer cidade, acontece em diversas camadas. Assim como pensado por Hundertwasser, várias peles se sobrepõe neste nosso conceito, peles do espaço­roupa resto. Reformulação dos desejos, inversão de valores, possibilidade de resistência, invisibilidade, desvio, ressignificação. Micro fatores que funcionam para despistar a cidade como sistema capitalista, de macro acontecimentos. O que incide entre Parque Novo Mundo e Baixa dos Sapateiros é uma sorrateira ação micropolítica, mesmo que não consciente, uma ação de “microcombate” ao hegemônico, ao pré‐estabelecido. É a construção de outros modos de existir na cidade. Ele me mostra um dos sacos que chegaram hoje com roupas novas, ainda dentro do saco transparente da loja, com etiqueta de preço e tudo. Vejo uma blusa feminina: R$27. Fi g. 20 e 21: O Catador mos tra peça de roupa a i nda s em us o e eti queta da , Sã o Pa ul o / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. 72 Eu pergunto se ele usa as roupas que aparecem ali, ele me diz que sim, que sempre aparece roupa boa e ele pega pra usar. Tem muita roupa que chega nova e ele pega. Começa a contar que tem gente que tem medo de usar roupa usada (se diverte com isso, ri) porque pensa que a pessoa que era dona da roupa já morreu. Ele ri e diz que temos que ter medo de gente viva, gente morta não faz mal pra ninguém. A única coisa é que tem que lavar a roupa direitinho, porque vai que a pessoa tinha uma doença transmissível? Aí é só lavar e passar bem e pronto, pode usar.
Ajudo o a arrumar algumas roupas. Uma das funções é olhar dentro dos bolsos. Em um deles encontro um pequeno papel que parece um ingresso para museu de algum país do oriente. Mostro o papel para ele com surpresa, ele não se importa tanto com a descoberta, pergunto então se ele encontra muita coisa nos bolsos, ele conta que antes encontravam mais, mas que ele próprio nunca encontrou muita coisa, que um parente já encontrou uma joia que vendeu por 3 mil reais. Ele acha que agora as próprias instituições já olham os bolsos, a roupa passa por muitas mãos antes de chegar ali. Fi g. 22: Em frente à l oja do Catador roupa s s ã o joga das na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pel o caminhão de l ixo da Prefeitura, São Pa ulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. 73 vão‐se os dedos, ficam os anéis Qual seria, afinal, a lógica dessa relação que se constrói diariamente com os objetos? O desapego, o desconhecimento de seus processos e origens, a carga sentimental que depositamos sobre eles. As coisas carregam em si camadas e camadas de acontecimentos, que persistem desde o início de sua existência ou até mesmo antes de se tornarem matéria, quando ainda eram apenas ideias. Depois de serem separadas pelas mãos de gente como o , o que seria resto é revertido e mandado de volta para ser comercializado e reutilizado. O , o motorista do caminhão, o lojista ou o trabalhador que recebe as roupas, a , o futuro usuário, o figurinista e os atores do filme que usarão o figurino, o que pegou na rua as roupas que o considerou ruins a roupa e os corpos formam uma rede de relações. A roupa é um objeto que traça caminhos, é levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de carregar o corpo ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso) (não só ela, mas o mapa, a cartografia, a dissertação e até mesmo a cidade) A roupa vai alinhavando e desalinhavando territórios através de pessoas. Territorializa o espaço‐roupa que, por sua vez, territorializa os espaços das cidades. É através da roupa, dos corpos e espaços com os quais ela interage, sendo vestida ou não, que uma série de tramas urbanas se revelam, ou o avesso delas. E é passeando por essas tramas, tocando as roupas, vestindo‐as ou colocando as mãos em seus bolsos, encontrando vestígios e pistas do passado que se pode tocar a memória da matéria, imaginar a história da roupa e dos corpos que já passaram por ela. As roupas (ou as coisas) são também uma forma de memória (STALYBRASS, 2008). Peter Stalybrass, em seu livro O casaco de Marx: roupas, memória, dor, fala sobre a experiência de vestir o casaco de um velho amigo que faleceu: “Eu vesti a jaqueta de Allon. Não importa quão gasta estivesse, ela sobreviveu àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a mim. Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia‐verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10). 74 Esse é, segundo ele, o “terror do traço material”, essa capacidade da matéria de carregar em si estes extratos da existência. Essa capacidade de ser, ela mesma, memória. Memória que carrega os traços de quem lidou com ela. Desalinhavo#sem número (ou ‘escolhe‐se não categorizar a morte’) Há um momento em que o desvio e o burlar diário não são suficientes para garantir a sobrevivência na cidade. A Costureirinha adoece. Tem o corpo mais magro, a barriga inchada e não consegue se alimentar. Ela vai ao pronto socorro, nós
a acompanhamos. Vamos de ônibus e ao desembarcar temos que andar uma certa distância, pela qual a pede nosso braço
como apoio. Chegamos ao pronto socorro e as portas estão fechadas, um guarda informa que o hospital está em reforma e não está fazendo atendimentos de urgência. Indica outro pronto socorro pertencente a um posto de saúde distante umas duas quadras dali. A se sente fraca e quer desistir, mas insistimos e seguimos a diante. Chegando ao outro pronto socorro há uma fila de aproximadamente 30 pessoas que esperam da maneira que podem, sentadas nas poucas cadeiras da sala de espera, em pé, sentadas no chão ou na sarjeta do lado de fora. As que sentem ânsia, vomitam, as que salivam, escarram. Uma situação constrangedora em uma sala de espera pequena e escura. Depois de uma espera de 3h a Costureirinha é atendida. ________ Descobrimos que a Costureirinha está internada e decidimos visitá­la para saber os detalhes da sua situação. Ela está no Hospital do Subúrbio, um hospital novo e bem equipado, porém muito distante. Para chegar do centro da cidade é necessário tomar dois ônibus e o trajeto leva aproximadamente 2h. A Costureirinha está deitada 75 em uma maca no corredor. Parece melhor, mas ainda não consegue comer. ________ A Costureirinha não resiste. Sai de cena. ________ Para seguir esta pista vá para a p. 90 dessa dissertação. Começa então a analisar ternos pretos, separa‐os e dobra‐os com muito capricho. Olha dentro dos bolsos, coloca a calça dobrada ao meio dentro do paletó e fecha os botões do paletó. Dobra os braços do paletó em ‘X’ e então o dobra ao meio. Antes de separar e dobrar as peças elas estão amontoadas em uma grande caixa de madeira, as calças estão enfiadas nas mangas de seu respectivo paletó. O corpo de quem lida com a matéria, dos trabalhadores, está completamente ligado a essa estratificação de acontecimentos sobreposta nos objetos. O do Parque Novo Mundo, que separa, organiza e cataloga as roupas que antes eram resto é como o trapeiro e, enquanto lida com os trapos, seu próprio corpo se estende a eles e vira trapo. Da mesma forma, a da Baixa dos Sapateiros, ao remendar e renovar os trapos têm seu corpo estendido à máquina, ao tecido e à roupa. Nossos personagens trabalham com farrapos e assim se tornam o próprio farrapo? Lidando com restos, estas profissões, corpos e finalmente essa cidade construída para além das fronteiras formais poderiam ser também consideradas resto? 76 o lugar e o tempo Um bairro formado por ocupações irregulares bastante recentes e densas, o outro com uma história antiga, a cada dia tem mais edifícios abandonados, ruindo. Bairros bastante diferentes e com uma dinâmica cotidiana bastante parecida. A convivência diária entre moradores e trabalhadores dá às duas localidades um ar parecido, onde vizinhos de trabalho ou de moradia, compartem as necessidades e se ajudam dentro do possível. É o tempo o fator crucial para a percepção dessa dinâmica. É ele também o que propicia a existência da mesma. Costureirinha e Catador, por exemplo, construíram amizades, parcerias e relações de vizinhança vivendo e convivendo durante muitos anos nesses bairros. De um lado um lugar que, por sobrar à beira da cidade, possibilitou a densa ocupação de suas ruas com edificações irregulares; do outro, um lugar que sobrevive na invisibilidade de suas ruínas, moradias abandonadas por diversos fatores. Seriam esses bairros restos de uma cidade formal? Quando ele chegou ali onde hoje é a R. dos Figos tinha uma lagoa onde se jogava muito lixo, era como um lixão mesmo. Chegou e comprou um barraco por mais ou menos R$4 mil. O barraco ficava em cima do lago e era bem simples, construído com madeira e papelão. Depois de um tempo ele mudou para um barraco melhor, com chão de cimento, construído com Madeirit. Em 1980, ele comprou o terreno onde hoje é sua loja e sua casa e em 1981 já tinha terminado de construir a casa e se mudou, tudo com o dinheiro das roupas. Ele diz que ganhou muito dinheiro com as roupas. 77 A me conta que tem 65 anos e trabalha na Baixa dos Sapateiros há pelo menos 50. Primeiro foi vendedora, depois ajudante em um ateliê que trabalhava com couro, do outro lado da rua. O mesmo ateliê se mudou para onde ela trabalha hoje, ali ela aprendeu algumas coisas sobre costura, mas não trabalhou como costureira. Foi a morte de seu patrão, que tinha como pai, que a possibilitou aprender a costurar para permanecer ali. A família dele deixou o espaço e as máquinas para que ela cuidasse e ela teve que aprender de tudo para ganhar a vida. Costura desde sapatos até roupas delicadas, passando por mochilas, barras de calças jeans, troca de zíperes e ajustes em geral. O que não sabe fazer tenta mesmo assim. Improvisa. Pede ajuda aos vizinhos e à sobrinha, que a ajuda com alguns ajustes mais delicados em casa. Uma mulher sai da portinha que fica ao lado da loja e vem conversar com o , ela pede dinheiro emprestado para colocar crédito no celular, precisa de R$13, o diz que só tem R$10, que foi o que ele vendeu no dia, mas empresta pra moça e diz pra ela pedir o resto do dinheiro para outra mulher. Ela vai pedir. O me conta que ela é sua inquilina e que paga tudo direitinho. Entrando naquele corredor ele tem 11 aluguéis, o que lhe rende 5mil reais por mês. Ele construiu vários apartamentinhos no terreno para poder alugar. 78 Desalinhavo#7 O me conta que existe um projeto para demolir algumas casas naquela rua para fazer a ligação direta do Viaduto Curuça com a Marginal Tietê, cortando o bairro ao meio. Então, quem comprar essas casas corre o risco de ter que sair depois e a prefeitura paga mais ou menos R$5 mil por andar. Sua vizinha, por exemplo, que poderia vender a casa agora por 150 mil, ganharia da prefeitura cerca de 15 mil reais sem indenização, porque o terreno já é da prefeitura e a construção irregular. Para seguir esta pista vá para a página 97 dessa dissertação. Dentre as funções que ela me dá, encomendo o lanche ou a marmita para o almoço, vou comprar botões na loja da Ladeira da Praça, busco mochilas na loja do chinês, entrego as reformas já feitas e a acompanho no fim do dia até o ponto de ônibus, quando no caminho, ela vai me apresentando para os funcionários das lojas vizinhas: ‐ sua sobrinha? ‐ não, não, ela é minha amiga. A vizinha veio tirar satisfação com a esposa do porque ela disse para um amigo que ela estava pedindo 250 mil pela casa dela, mas ela está pedindo 150. Depois da intriga resolvida, a esposa mostra uma planta para ela pelo celular e ela diz que acha que tem uma planta dessas, 79 vai até sua casa, que fica bem na frente da loja, para buscar a planta. Enquanto isso a esposa me fala da vizinha, que ela sabe que dessa casa não sai escritura, por isso não pode vender mais caro (a casa tem 3 andares e está completamente reformada, com varanda e porta comercial de aço no térreo). Porque ali as únicas casas que tem escritura são as casas “de Cohab” que ficam “pra lá da R. dos Figos”, porque ali foi a prefeitura que construiu. O resto é ocupação irregular. A vizinha volta com a planta e ambas vibram por ser a mesma. Trocam informações sobre o cuidado da planta. A vizinha vai embora. Fi g. 23 e 24: Loca l de tra ba l ho da Costureirinha na Ba i xa dos Sa pa tei ros , em Sa l va dor / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013. o e suas múltiplas facetas O , em sua existência ambulante, se desdobra em múltiplas facetas que vão se revelando a depender da necessidade momentânea de seu estar na cidade. O seu corpo resto, que caminha pelas brechas e beiradas da cidade formal redesenhado pelas próprias ruas, nos aparece algumas vezes, sempre transformado. Como numa brincadeira sobre sua própria vida, ele troca de máscaras a todo o tempo, desvia, se esconde em suas próprias aparições. É como se ele se configurasse enquanto múltiplos espectros dos quais, mesmo os olhos mais atentos, poderiam duvidar. É ele mesmo a imagem do “ficcionar”. 80 Enquanto conversamos chega um e pede uma calça. O fala que não tem, que já conhece ele e que ele pede ali todo dia, que não vai dar nada. O insiste e ele continua negando. Entra na loja e se aproxima de mim procurando alguma coisa por traz, como se fosse pegar algo e correr. Não faz isso. Pergunta pela última vez: ‐ não tem não, né? ‐ não rapaz, eu te conheço, não vou te dar nada. Ele sai e vai pedir na loja da rua em frente. O me conta que o pede roupas para trocar por droga. ‐ Pega a roupa e vai lá trocar por pedra. Conheço ele. Logo um rapaz sai da portinha que fica ao lado da loja com um saco nas mãos, entrega ao sem falar nada e vai embora. Ele deixa o saco ali enquanto conversamos mais um pouco. Depois resolve abrir o saco e me explicar: ‐ esse é o rapaz do quintal, ele morava na rua, agora ele mora ai atrás. Eu comecei pedindo pra ele me dar 150 reais em roupas por mês, ele faz direitinho e ainda ajuda a varrer, botar o lixo. Essas roupas as pessoas dão pra ele e ele me vende em troca da moradia. Mas as roupas dele eu já nem conto mais, ele traz e eu aceito. Ele come na casa dos outros, porque ai não tem nem fogão. Eu acolhi ele da rua, sabe? 81 Chega um com uma sacola na mão, o , sempre muito direto: ‐ fala meu rapaz! ‐ bom dia. ‐ ah! Que bom que ele falou! Bom dia! O tira da sacola uma colcha vermelha com escritos japoneses, oferece ao e ele diz que paga R$3. Tira então outro tecido da sacola. É um lençol de solteiro. O se adianta: ‐ dá R$5? ‐ olha! Já está por dentro dos preços, né? (para mim) Nesse aqui eu pago R$2 porque é de solteiro. O tira os R$5 da carteira para dar para ele, que tira do bolso duas notas de 4 e uma moeda de 1 e coloca sobre o : ‐ tem nota de R$10? O O dá a nota e fica com os trocados. vai embora e o duas pedras”. Segundo ele o diz que com aquele dinheiro já “dá é um usuário de crack e no ponto de venda não se aceita moeda, por isso queria a nota de R$10. Assim que eles conseguem algumas peças que dão R$5 eles correm pra vender. ‐ eu não tô vendendo droga, nem me drogando, tô fazendo meu trabalho. Quer se matar, se mata. 82 Caminho pelas ruas do Parque Novo Mundo, muitos montes de roupas estão nas calçadas, os lançam das portas de suas garagens as peças que não lhes interessa. O lixeiro passa e leva tudo. Os continuam na mesma função mesmo depois do caminhão passar. Vejo então alguns selecionando roupas e acessórios. É ele que nos dá então essa clareza da percepção do resto enquanto moeda de troca clandestina. Ao utilizar dessa matéria para financiar seu consumo de drogas ou simplesmente para conseguir algum dinheiro, ele se alinha com o e com a nessa possível categoria de agenciador do resto. Se antes ele se apresentava enquanto usuário, explorador da matéria para vestir o próprio corpo, agora faz às vezes de negociador, do que tem a necessidade de utilizar o resto para o seu sobreviver dentro do sistema capitalista. Suas ações de troca se caracterizam enquanto táticas de sobrevivência, ou até mesmo táticas do consumo, o que para Certeau são “engenhosidades do fraco para tirar partido do forte” (CERTEAU, 1994, p. 45). Tais artifícios são capazes, então, de provocar uma certa “politização das práticas cotidianas” (CERTEAU, 1994, p. 45). Estas práticas acontecem diariamente, de diversas formas, agenciando diversas situações, porém, elas estão invisíveis diante dos olhos do poder hegemônico, pois tudo o que ele contabiliza é “aquilo que é usado, não as maneiras de utilizá‐lo” (CERTEAU, 1994, p.98). É por isso que, para Certeau, essas práticas cotidianas se tornam invisíveis, já que as ferramentas utilizadas para “mapear” as ações cotidianas são do universo da codificação e da estatística. Para ele, “a enquete estatística só encontra o homogêneo. Ela reproduz o sistema ao qual pertence e deixa fora do seu campo a proliferação das histórias e operações heterogêneas que compõe o patchwork do cotidiano” (1994, p.46). Em se tratando dos restos, matéria que já nos parece bastante invisível diante da configuração urbana que encontramos, essa negociação, de certo modo clandestina e de valores diversos, acontece de forma bastante heterogênea. Os valores dados à matéria tem parâmetros divergentes daqueles com os quais o poder hegemônico está acostumado a tratar. Nesta economia da roupa usada, “as coisas adquirem vida própria, isto é, somos 83 pagos não na moeda neutra do dinheiro, mas em material que é ricamente absorvente de significado simbólico e no qual as memórias e as relações sociais são literalmente corporificadas” (STALYBRASS, 2008, p.15). Neste caso, o tempo, a estratificação de acontecimentos, o gosto e o afeto podem ser também fatores de influência na negociação. A me conta que só tem R$4,00 na carteira, que espera que no dia seguinte o pagamento (aposentadoria?) caia, se não vai ficar sem dinheiro. Estou pronta a oferecer alguma coisa quando um cliente entra. Ele é muito simpático com a , parece ser cliente antigo. Tira uma calça de dentro de uma sacola e pede para que ela faça a barra na medida que ela sempre faz. Não prova a calça para que ela meça. Diz que quer pagar adiantado (vibro por ela!), tira R$10,00 da carteira e pergunta se o serviço ainda custa R$5,00 ou se subiu. Ela reponde rápido que agora subiu para R$6,00. Ele paga, ela dá os R$4,00 que tinha. Esperta, varia o preço do serviço a depender dos trocos que traz na carteira. Ele me fala que as roupas que ele vende ali vão com transportadora e levam nota de um imposto bem baixinho, já que, segundo ele, essas roupas já tiveram seu imposto pago e o governo deve achar até bom que se pague duas vezes pelo mesmo produto. E a negociação acontece também enquanto tática, pois vai influenciar a resistência do “fraco” para estar em seu lugar. Assim, a Costureirinha modifica o preço de seu serviço devido a sua disponibilidade de troco e o Catador paga menos impostos do que deveria para poder manter‐se trabalhando. “Em suma, a tática é a arte do fraco” (CERTEAU, 1994, p.101), que se utiliza dela para continuar e persistir. 84 É perpassando tais táticas, costuras diárias de resistência, que nossos personagens insistem, desejam sobreviver na cidade através dos restos que agenciam e parecem ser eles próprios. Permanecer em seu lugar ou em seu nomadismo37 é questão de sobrevivência. 37 Ser nômade é não ter habitação fixa, viver frequentemente mudando de lugar. Mesmo depois da formação das cidades e das sociedades sedentárias, ainda existem sujeitos que vivem o nomadismo, como o , dentro do contexto de nossa pesquisa. Pode‐se ler mais sobre o nomadismo no espaço urbano em JACQUES, Paola. Elogio aos errantes: breve histórico das errâncias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2012. 85 capítulo III COSTURAS: QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA “Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito” BARROS, Manoel de. As coisas e os espaços parecem perder o mistério e o interesse a medida em que os usamos. Os espaços sem gente parecem mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto, ao ideal desenhado por um sujeito. Ao ser ocupado, ao ter as paredes manchadas, o piso desgastado, os móveis improvisados, os aparatos diários fora de seus lugares certos, o espaço parece perder valor. As rachaduras nas paredes, golas puídas, as manchas dos vazamentos e dos suores, a pele suja do asfalto, o bolso furado, o cinto inventado, o ventilador empoeirado, a panela furada, as unhas sujas. “[...] Em meio à avalanche de propósitos, à avareza minuciosa incrustada na fracção circular de cada dia” (RAMOS, 2008, p.170), o desgaste, a poeira, o desuso e o tempo são elementos perturbadores. O uso, esse relacionar de corpo‐objeto, corpo‐espaço, corpo‐corpo, objeto‐
espaço, é o que define a cidade. A cidade resto é resto, portanto, pelo seu uso. É esse lugar subjetivo da existência de objetos, pessoas e espaços que levam consigo o peso de uma temporalidade que muitas vezes transgride o proposto ou imposto pela vivência nas grandes cidades. Ela existe no vazio do interesse urbanístico hegemônico, político e capitalístico e carrega em si o questionamento desse modo de existir nesses espaços, o questionamento da própria existência e da vida enquanto ciclo. A cidade resto sobrevive entre os interesses que regem o urbanismo e é também uma das forças que age sobre ele. Existe dentro e fora dessa camada invisível que se instaura 86 sobre todos os sujeitos e domina pensamentos e vontades, é às vezes agente dessa camada, outras vezes infringe suas regras. Os caminhos irregulares ou tortuosos, a falta de calçada, a cusparada dada no chão ao lado do banco onde se senta diariamente, outra noção de higiene que não priva o corpo de experiências necessárias, como separar roupas de pessoas completamente desconhecidas, muitas vezes já mortas, ou revirar sacos de lixo na rua. E ao mesmo tempo a transformação de sua existência na cidade resto em uma possibilidade de transgredir esse viver, de acompanhar os desejos capitalísticos comuns, uma possibilidade de, através dos agenciamentos que faz na cidade resto, poder participar de um consumo pacificado, se inserindo de alguma forma na sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) na qual o resto não é bem‐vindo. A cidade resto possibilita a sobrevivência de sujeito resto de formas capitalísticas, assim, apesar de usarem as roupas que separam ou costuram, os sujeitos agentes da cidade resto que encontramos pelo caminho, consomem televisores de última geração, celulares touch, câmeras fotográficas, assistem filmes da sessão da tarde e não leem livros, a não ser a bíblia. Fazem de seu trabalho resto, a possibilidade de estarem inseridos na esfera do pensamento hegemônico. É, portanto, um lugar transgressor, que carrega em si valores outros que não os padronizados pelo pensamento hegemônico. Apesar disso, é esse pensamento dominante que possibilita sua existência; e é essa existência que, por sua vez, possibilita a sobrevivência de espaços, objetos e indivíduos “descartados”, garantindo através deles a sobrevivência da própria cidade resto, a qual possibilita à esses sujeitos, espaços e objetos uma certa participação renovada nesse lugar do que predomina, nessa cidade formal, hegemônica, formatada para satisfazer as vontades de um poder dominante. A constatação da existência dessa cidade resto é a percepção da existência de muitas camadas porosas que compõe nossas cidades e de um ciclo que não se encerra na transgressão nem na participação do hegemônico, é contínuo e sem fronteiras delimitadoras. Nesse sentido, o resto se configura, em meio a esse desejo de “não‐vida” (RAMOS, 2008, p.160), de esterilidade do espaço e das coisas, de repetição simultânea, enquanto um intervalo, “pequenas células de inutilidade ou de utilidade 87 incompreensível” (RAMOS, 2008, p.170), capaz de trazer a memória à tona, tornando sua própria sobrevivência única e singular, transformando o meio onde está e logo sendo absorvido novamente pelo ciclo do qual faz parte. Como o pão, que embolora aleatoriamente, em diversas partes de seu “corpo”, sem ordem ou lógica perceptível, o resto vai se alojando e sobrevivendo dentro dos limites desse hegemônico, e é o próprio hegemônico que embolorou. Não existe delimitação ou corte entre esses retalhos, eles se tocam, são costurados lado a lado e sobrepostos, suas tramas se confundem, se misturam. Desalinhavo#8 “Manifesto do Mofo contra o racionalismo em Arquitetura”, Hundertwasser (1958) “Quando a ferrugem ataca a lâmina de barbear, quando o mofo forma­se num muro, quando o musgo nasce num canto e atenua os ângulos, nós deveríamos nos alegar de que a vida microbiótica entra na casa e nos damos conta que somos testemunhas das mudanças arquitetônicas em que temos muito a aprender. [...] Para salvar a arquitetura funcionalista da ruína moral uma substância corrosiva deveria ser jogada nos muros de vidro e superfícies de concreto liso para permitir ao mofo que se fixe sobre eles. É tempo de que a indústria reconheça que a missão fundamental é a produção do mofo criativo!”. Para seguir essa pista continue lendo o Manifesto no livro Hundertwasser Architecture: for a more human architecture in harmony with nature. Alemanha: Taschen, 1997. p. 46­48. Ou acesse (traduzido) em: http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresen
tacao.php?idVerbete=41&langVerbete=pt 88 ferramentas e ofícios As tesouras e agulhas da e de Margiela são ferramentas para cortar, alinhavar, desalinhavar, alinhavar outra vez e, por fim, costurar uma roupa ou um tecido que venha a se reconfigurar a partir dessas ações listadas acima. Como uma cartografia em movimento, nas mãos desses costureiros, a roupa pode traçar diversos e inúmeros caminhos, pode ser desfeita e refeita, costurada e descosturada, mas cada decisão e movimento realizado neste processo pode deixar marcas sobre o material costurado, marcas estas que afetam o todo da peça, que ferem o tecido, que ficam como cicatrizes sobre a matéria. O urbanismo se faz ferramenta feito as tesouras e agulhas de nossos aliados e é através do urbanista, de outros profissionais que pensam a cidade e do Estado que se pronuncia sobre a cidade: cortando, alinhavando, desalinhavando, alinhavando outra vez e, por fim, costurando. Porém, ao pensarmos sobre o poder dessa ferramenta e o que ela possibilita a quem a utiliza, encontramos outros fatores e camadas que podem vir a influenciar o peso da mão de quem a emprega. Vemos como o grande desafio na gestão de nossas cidades a sua ordenação “por parâmetros socialmente mais justos” (WHITAKER, 2014), a necessidade urgente de modificar a “dinâmica segregadora de produção de cidade” (WHITAKER, 2014) dentro da qual nos encontramos hoje. Em forma de projeto ou de planejamento, o urbanismo no Brasil acontece a princípio e principalmente como forma de controle de uso do solo urbano. A maneira segregadora de crescimento das grandes cidades é resultado de um problema que, pode se dizer, se resume à falta de terra. Ou melhor, a falta de terra com valor acessível. Esse problema, por sua vez, é resultado de um conflito de interesses: “de um lado, a cidade, o espaço urbano da maioria e, de outro, os interesses imobiliários” (VILLAÇA, 1995, p.50), turísticos ou comerciais, ou seja, capitalísticos. Esses interesses divergentes acabam por fazer do urbanismo uma ferramenta contraditória, já que, quando é utilizada, acaba sendo para “favorecer a ordem atual das coisas” (WHITAKER, 2014). Assim, quem tem poder, seja ele financeiro ou político, acaba impondo seus interesses para favorecer suas próprias necessidades. Desse modo, se uma cidade já está dividida em zonas elitizadas e não elitizadas, industriais e não industrias, de interesse social e de interesse do capital imobiliário, a 89 tendência é que essas zonas sejam cada vez mais bem definidas e separadas, primeiro pelo valor agregado a cada zona, possibilitando a moradia em certas áreas apenas para quem “pode pagar”, depois pelos próprios interesses dos quais já falamos acima, que parecem querer construir uma cidade ainda mais valorizada do ponto de vista imobiliário. Nosso trajeto de campo nos possibilitou vivenciar essa segregação que acontece tanto em São Paulo, pela valorização imobiliária de certos pontos da cidade, quanto em Salvador, pelo mesmo motivo, mas somado aí um interesse turístico de supervalorização de algumas áreas históricas ou privilegiadas pela natureza. Assim, esses espaços produzidos pela racionalização do urbano, resultado desses interesses dominadores, tem o intuito de manter separados elementos centrais e marginais, ou seja, os espaços luminosos e opacos (SANTOS, 1997), os espetacularizados e os invisíveis. Porém, como temos visto aqui, são as práticas ordinárias e cotidianas dos sujeitos (SANTOS,1997; CERTEAU,1994) que possibilitam essa articulação não desejada por esse urbanismo e, o tempo e a vivência dessas pessoas no espaço, dão a ele uma outra atmosfera, construindo nele um sentido de lugar. Para Certeau (1994), o lugar só passa a sê‐lo pela multiplicidade de pessoas e acontecimentos que o habitam e pelo tempo que possibilita a segmentação de camadas de história e memória num espaço. A articulação entre espaço e tempo nos parece ser a responsável por essa construção de sentido. Para entender essa produção de espaço urbano, voltamos a olhar para as roupas e a costura e percebemos que o arremate da costura, seu ponto final, representa o estágio no qual ela, aparentemente, persistirá. Porém, a roupa desafia os moldes em que foi feita e até mesmo o sistema ao qual pertence e se modifica através do uso. Com as cidades é a mesma coisa. Elas se apresentam como a água que se diz ser Manoel de Barros no trecho que citamos no início do capítulo, escorrem pelos espaços que lhes sobram e constroem seus próprios caminhos através do tempo e das intervenções de uso dos sujeitos. Essas interligações entre a costura e esse urbanismo nos levam a pensar sobre seus moldes, que passados pelos ares de um racionalismo modernista, ligado a industrialização e ao capitalismo, se esforçam por padronizar corpos e espaços. 90 O sistema da moda deseja facilitar e acelerar a produção, desenvolvendo modos e moldes de padronizar tamanhos e cortes. O urbanismo tenta encontrar a fórmula espacial perfeita para abrigar estes corpos padronizados, estabelecer limites e descobrir maneiras de construir cidades coerentes com os modos de produção que se desenvolveram, mais acelerados e ambiciosos, permitindo seu funcionamento sem interrupções. Atuando entre isso tudo, o espaço­roupa, principalmente em seu estado resto, se mostra como potente possibilidade de desvio a esses moldes intrínsecos ao sistema da moda, ao urbanismo e a outras diversas disciplinas com bases no pensamento moderno. Ao abrigar corpos, o espaço­roupa é capaz de desconstruir tendências de moda, transformar os modos de interação nas cidades, tensionar a temporalidade imposta por elas e questionar suas regras se utilizando de ferramentas próprias do sistema capitalista. Como já falamos acima, os espaços sem gente parecem mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto. Assim, o encontro do espaço com o corpo, já é transgressão, pois sendo o corpo uma superfície que não tem padrões e varia de sujeito a sujeito, tudo o que é projetado segundo generalizações deve ser adaptado, principalmente se a matéria de construção do espaço­roupa é o resto. Nesse sentido, qual seria o alcance desses moldes urbanistas nessa “cidade resto”? Seriam capazes de atingir os micro acontecimentos percebidos e encontrados através dessa pesquisa? E essa “cidade resto”, configurada através de uma temporalidade mais lenta, como cabe e se adapta a esse urbanismo de tempo rápido, de planejamento imponente e padronizado? O tempo lento e antropofágico descoberto no decorrer desta pesquisa passa a ser uma reflexão que deve ser considerada em diversos âmbitos e que, em nosso caso, é uma brecha para pensar o urbanismo. Está claro que o tempo se apresenta para nós enquanto uma questão de enorme importância. Levando em consideração algumas das palavras‐chave trazidas nesse texto, entendemos que muitas delas dependem do tempo para se configurarem de uma maneira ou outra. A sobrevivência, a memória, a desculpa e a brecha só acontecem da maneira que propomos aqui devido a ação 91 de um tempo que difere do tempo capitalístico (GUATTARI, 1985) e que, portanto, não é linear nem cronológico. A memória se apresenta enquanto uma artimanha do tempo para nos propor associações, acasos e descobertas, é construída em camadas móveis, que se sobrepõe, se acumulam e comparecem aparentemente sem coerência. A desculpa é sempre apresentada para que o tempo se estenda e que o jogo do fazer campo tenha seu fim adiado. E a brecha nos parece ser um intervalo de tempo que segue outra velocidade, um buraco que nos permite ver acontecimentos e coisas que durante um tempo linear e rápido estariam invisíveis. Estas três pequenas palavras estariam ligadas à sobrevivência, enquanto instância temporal e espacial de continuidade. Sobreviver quer dizer de um corpo ou um fator subjetivo que persiste em um lugar e um tempo, muitas vezes, como vimos em toda a pesquisa, a depender da ajuda dessas pequenas palavras: memória, desculpa e brecha. A “cidade resto” sobrevive feito vaga‐lume. Sendo o resto um estado de matéria errático por não ter local delimitado ou fixo, é muitas vezes intocável e, por isso, resistente. Se mostra a uma luz fraca, emanada de sua própria existência. E é esse intervalo vazio, essa falta de intervenção e de vislumbre em meio às estruturas vigentes. Sua sobrevivência, assim como a dos vaga‐lumes, está garantida por seu pequeno lampejo, visto apenas em um certo momento do dia ou da noite, por sujeitos que devem estar atentos às minúcias do momento. Didi‐Huberman, em seu livro Sobrevivência dos vaga‐lumes, traz, através do cinema e dos escritos de Pier Paolo Pasolini, questões bastante importantes sobre o domínio cultural e político na época do fascismo italiano. Diante dos holofotes iluminados desse pensamento que se fez hegemônico e persistente, a sobrevivência dos pequenos pirilampos, apesar de “fugaz e frágil”, se fazia potente: “[...] ainda era possível, nos tempos do fascismo histórico, resistir, ou seja, iluminar a noite com alguns lampejos de pensamento, por exemplo, relendo o Inferno de Dante, mas também descobrindo a poesia dialetal ou simplesmente observando a dança dos vaga‐lumes em Bolonha, em 1941” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.28) 92 Diante dos holofotes que iluminam amplas áreas das nossas grandes cidades, da experiência de espaço e troca que nos é dada como única, baseada em moldes modernos, arriscamos dizer que os restos são esses pequenos lampejos que, diariamente, assombram nossos olhos com sua existência e, principalmente, com sua capacidade de sobrevivência. A poeira, o mofo, o desgastado, o engordurado e tantas das qualidades naturais do tempo que age sobre os objetos e corpos são definidas como inaceitáveis dentro desses moldes iluminados do espetacular. Porém, é quando nos deparamos com essas condições que, muitas vezes, somos atingidos pela reflexão de nossa própria existência na cidade, porque vislumbrando o tempo que age sobre as coisas temos a possibilidade de perceber o tempo da própria vida e nos encontramos, por alguns instantes enquanto dentro desse pensamento, resistentes às imposições desse poder político, midiático e mercadológico que muitas vezes nos toma por inteiro. Assim como Didi‐Huberman, não podemos nos conformar com o desaparecimento dos vaga‐lumes “na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.30), porque isso seria “[...] agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”. DIDI‐
HUBERMAN, 2011, p.42) O resto é para nós, “aquilo que aparece apesar de tudo” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.65) diante dos olhos atentos, enquanto uma pequena contemplação diária, feito vaga‐
lumes, e que revela um mundo. Por isso, nossas reflexões feitas aqui sobre esse urbanismo dominado por diversos interesses e baseado em moldes modernos nascem a partir do vivido, desse fraco cintilar luminoso que os restos nos possibilitaram ver mesmo sob a ofuscante luz desse cotidiano não inventivo. O urbanismo, assim como a moda e outras disciplinas com bases na racionalização moderna, desejam transformar o tempo em algo acelerado, 93 linear, controlado e estabilizado, produzindo subjetividade nesse sentido e não prevendo nem desejando intervalos, brechas ou lentidão; afetando (de muitas formas) a experiência cotidiana, a memória coletiva, a estratificação dos acontecimentos e subjetividades dos diversos segmentos sociais. Esse pensamento, não deseja conviver com surpresas, mas projeta para desenvolver espaços controlados e normatizados. Em uma cidade fragmentada como Salvador, por exemplo, utilizar a ferramenta do urbanismo na tentativa que construir um espaço totalitário e luminoso pode ser, de certa forma, agressivo com seus moradores. Foi através da morte da que nos deparamos com reflexões importantes neste sentido, na descoberta de um urbanismo segregador, já que a morte é o retrato mais palpável do tempo e nos faz pensar as condições da própria sobrevivência. o clarão da morte A morte apareceu no meio do caminho para mostrar que o descontrole do campo e da vida é completo. Ela é um acontecimento que faz parte do trajeto da pesquisa, do caminho trilhado por nós e que, surpreendentemente, nos esclarece muitas coisas. Trazer à tona a morte de um personagem é uma escolha como todas as outras. Aqui esse evento nos permite vislumbrar um universo de questões ainda não discutidas, que estão envolvidas com o urbanismo e sua maneira de agir nas cidades. A , moradora de um bairro periférico chamado Mussurunga, todos os dias pegava duas conduções para chegar ao seu trabalho, um ateliê na Baixa dos Sapateiros, área central da cidade de Salvador. Certo dia, já bastante doente, chegou em casa, depois de pegar suas duas conduções diárias e achou que deveria chamar uma ambulância. A ambulância veio, socorreu‐a e levou‐a para a internação. Devido aos poucos leitos vagos e as condições ruins de muitos hospitais, a foi levada ao Hospital do Subúrbio que é um ótimo e novo hospital, porém está do outro lado da cidade em relação à casa dela e de seus familiares, que também moram em Mussurunga. 94 A foi morar em Mussurunga por ter se inscrito em um programa habitacional da prefeitura, em meados da década de 1970. Havia um escritório na Avenida Sete, no centro da cidade, onde a população podia se inscrever no programa para ter sua casa no conjunto habitacional. A antes morava na Baixa dos Sapateiros, de aluguel, a algumas quadras do trabalho. Logo que se mudou para Mussurunga, a cidade se modificou para ela. O trajeto casa‐trabalho, que antes fazia a pé, tomou outra dimensão: duas conduções diárias para ir e duas para voltar, o que lhe tomava em torno de 4 ou 5 horas diárias. Próximo a sua casa, que tem um grande quintal com árvores como Araxá, das quais ela tira frutas para o lanche da tarde, não havia nenhum ponto de ônibus, por isso ela e os outros trabalhadores do bairro caminhavam aproximadamente dois quilômetros até chegar ao lugar onde a condução passava. Com os anos, a estrutura do bairro se modificou e por isso, de alguma forma, acabou se aproximando do centro da cidade, o transporte chegou até mais perto, o comércio do bairro se desenvolveu, escolas e hospitais foram sendo construídos 38. Porém, mesmo com o desenvolvimento do bairro, quando uma de suas moradoras necessita, ela precisa ser internada no outro extremo da cidade. Para facilitar a compreensão espacial do cotidiano da após sua mudança para Mussurunga, achamos interessante mapear tais distâncias. A princípio a melhor forma que encontramos foi utilizar um mapa, localizando os pontos principais de seu convívio: sua casa e seu trabalho, bem como o hospital onde foi internada quando doente. Logo percebemos que assim fazíamos uma abordagem segundo os moldes desenvolvidos pelo urbanismo, já que uma de suas principais ferramentas é o mapa, que distancia o observador da realidade da localidade, colocando seu olhar de maneira verticalizada. Dessa forma, todo o nosso esforço para que os acontecimentos emergissem do fazer campo através de fatores como tempo, convivência e memória, se esvaiam ao localizarmos por pequenos pontos uma estrutura muito mais complexa de vivência. Outro motivador de duvidarmos do mapa foi lembrar que a nunca nos dava dados de distâncias espaciais, mas sempre temporais ou relativas à 38 Estas informações sobre o bairro de Mussurunga foram obtidas em conversa com a Costureirinha, em 2012. 95 quantidade de ônibus que utilizava para realizar tais distâncias. Dessa forma, o mapa que trazemos abaixo é aqui colocado para tensionar os modos de fazer de disciplinas como o urbanismo. Fi g. 25: Lei tura da s l oca l i da des da a os moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Ma pa reti ra do do s i te: http://www.meucl ub.net/wp‐content/upl oa ds /2012/03/mapa‐de‐salvador‐veja‐aqui.jpg, com a l tera ções e ma rca ções nos s a s . 96 Ao nos depararmos com essa dúvida, e entendermos que uma atitude cartográfica de outro tipo poderia se fazer muito mais coerente com nossa abordagem teórica e conceitual, decidimos utilizar materiais e técnicas encontrados em nosso fazer campo traduzindo as distâncias espaciais em distâncias temporais. A feitura da cartografia com a técnica do bordado se faz também com a intenção de trazer o questionamento sobre a velocidade com que se levantam diagnósticos e resultados sobre a população e suas necessidades. Toda essa reflexão sobre o encontro do tempo com o espaço e o que emerge disso resulta em algumas cartografias que serão apresentadas ao longo do texto. Fi g. 26: Ca rtogra fia bordada da dimensão da cidade de Salva dor para a Costureirinha bas ea da em s ua concepçã o tempora l . Foto de a cervo pes s oa l . Munidos dessas ponderações, nos questionamos sobre o que deseja atingir esse urbanismo que constrói conjuntos habitacionais distantes do centro da cidade, de uma infraestrutura básica e do transporte, afastando as pessoas de suas realidades, sua vizinhança e atingindo sua memória e sua produção de subjetividade. Em nossas cartografias inventadas a partir da busca de pistas, percebemos algo importante em nosso trajeto logo após a morte da . A reflexão mais 97 pertinente que nos veio, caminhando pela Baixa dos Sapateiros foi principalmente sobre a quantidade de edifícios em ruinas ou abandonados nas cercanias do Centro Histórico de Salvador. Não é difícil chegar à pergunta que chegamos: porque escolas, hospitais e moradias não são estruturadas nesses edifícios à espera? E estes edifícios estão à espera de que? Serão estes espaços, espaços resto? Da mesma forma que nosso conceito de espaço­roupa somente se mostra e se configura quando abriga um corpo ou é por ele agenciado, as outras camadas, as outras peles de Hundertwasser, só acontecem em relação ao corpo, à primeira pele, à epiderme. Nesse sentido falar de objetos e espaços à espera é também falar do vazio. E vazio não somente pela falta de preenchimento, mas também pela falta da relação da qual falamos acima: corpo‐objeto, corpo‐espaço, corpo‐corpo, objeto‐espaço, relação tal que é um agenciamento social e político, o qual só pode acontecer através de sujeitos. Esse vazio é onde sobrevive a cidade resto, que muitas vezes é o vazio do interesse urbanístico hegemônico. o mapa e o mapeado “Mas os vaga‐lumes desapareceram nessa época de ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo como se fosse uma mercadoria em sua vitrine, uma forma justamente de não aparecer. Uma forma de trocar a dignidade civil por um espetáculo indefinidamente comercializável”. (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.37) Em junho de 2013, o então governador do estado da Bahia, Jaques Wagner, assinou a ordem de serviço para o início de obras de requalificação da Baixa dos Sapateiros. A obra, que foi orçada em R$13,8 milhões para a primeira fase e R$12,8 para a segunda, visa, a princípio fazer uma “vala única, por onde passarão redes de infraestrutura subterrâneas (energia elétrica, telefonia, operadoras de internet), a pavimentação das vias, recuperação de praças e passeios” (CONDER, 2013), fazendo melhorias na iluminação e limpeza pública. A ação pretende valorizar o comércio local e preservar o patrimônio histórico, já que a Baixa dos Sapateiros também faz parte do Centro Antigo da cidade e tem grande importância histórica. A segunda parte do projeto almeja fazer melhorias nas fachadas dos antigos casarões, “serviços de limpeza, pintura 98 e recuperação das coberturas da edificações, remoção de estruturas, revestimentos e demolição de marquises” que, supostamente, “contribuem para a degradação da área” (CONDER, 2013). O projeto prevê ainda a criação de uma praça a ser nomeada Ary Barroso, em homenagem ao compositor de música popular que fez uma canção em homenagem à Baixa. Além disso, o Governo do Estado vai reformar o prédio do Quartel dos Bombeiros, que fica na esquina da Avenida J. J. Seabra com a Ladeira da Praça e o Mercado de São Miguel. Para a Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia), responsável pelas obras, e o governador do estado, o novo aspecto urbanístico a ser trazido para a Baixa, já atrai investimentos privados e vai melhorar as vendas de todo o comércio local. Segundo reportagem da Tribuna da Bahia (2012), a falta de infraestrutura, limpeza urbana, iluminação e o transporte público precário fizeram com que muitos comerciantes deixassem o local onde, na década de 1990, ainda tinha as ruas disputadas pelos transeuntes e consumidores principalmente perto de datas festivas, como São João e Natal. Ainda segundo a mesma reportagem, a Baixa dos Sapateiros gera cerca de 3 mil empregos diretos e 2 mil indiretos e há a preocupação em mantê‐los. Além disso, outra grande preocupação que estimula a efetivação do projeto é a J. J. Seabra ser “uma importante artéria do Centro Histórico, que pode servir inclusive como entreposto durante a Copa do Mundo de 2014”, já que a avenida dá acesso à Arena Fonte Nova, ao Pelourinho, à Praça da Sé e adjacências. Todos os esforços demonstrados para olhar em direção a essa região não parecem conseguir ver o potencial do que já existe ali. Muitos projetos de revitalização do Centro Antigo e das cercanias do já revitalizado Centro Histórico, mais conhecido como Pelourinho, tem sido divulgados, propostos e inicializados nos últimos meses. Suas intenções são de melhorar a visão que os próprios moradores da cidade e os turistas tem desses locais, estimulando o crescimento do comércio e do turismo. Para isso, algumas desapropriações devem ser feitas e algumas lojas, moradores, empresas e escritórios terão de deixar seus locais a pedido da Conder. Na Avenida J. J. Seabra, por exemplo, segundo reportagem do Correio 24 Horas (2013), 27 imóveis serão esvaziados para que possam ser reformados. Segundo Nilson Sarti, Presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado 99 Imobiliário da Bahia (ADEMI‐BA), a “arrecadação desses imóveis é um grande benefício” (2014) para a cidade de Salvador, já que a maioria deles estão “abandonados por falta de pagamento dos tributos ou não cumprimento da função social”. Ainda segundo Sarti, esses edifícios tendem a ser utilizados para a instalação de órgãos municipais que ainda não tem sedes próprias, para a instituição de parcerias na utilização do espaço e para a venda dos mesmos. “Ocupar uma região hoje abandonada é uma maneira de gerar movimentação financeira e estímulo ao desenvolvimento do mercado imobiliário e do setor de serviços local” (SARTI, 2014) e, principalmente, fazer crescer o valor do solo na região, limitando o uso da área para aqueles “que podem pagar”. Nesta “região abandonada” uma série de acontecimentos enchem as ruas todos os dias. Os moradores das localidades próximas confiam a ida dos filhos à escola aos amigos que trabalham nas lojas da Avenida; os lojistas, passam mais tempo ali do que em suas próprias casas, dividem almoços, conversas e afetos; entre um ônibus e outro que passa pela rua alguém grita de uma calçada para que do outro lado outra pessoa continue a conversa. Ali, os trabalhadores das lojas vizinhas viam a Costureirinha chegar e ir embora, o rapaz da padaria já sabia qual era o lanche diário dela e o morador da vila de casas próxima ao seu ateliê confiava seu cágado aos cuidados dela. Na loja de roupas usadas, onde alguns fiéis clientes passam pelo menos uma vez por semana, as vendedoras dão conselhos de moda, de como vestir‐se bem para uma festa ou de que sapato combinar com a roupa provada. Este trecho aparentemente abandonado está apenas configurado, de certa forma, fora dos padrões desejados para que possa ser considerado espetacularizado, para que possa atender os interesses de uma minoria. Suas lojas de roupas baratas vindas da China, suas fachadas tradicionais escondidas por letreiros e placas já gastos, os manequins que ocupam as ruas, os moradores de rua e consumidores de crack que circulam por ali pedindo dinheiro ou alguma mercadoria: tudo colabora para que, diante dos olhos do hegemônico, esse lugar seja resto. E resto, apesar de sua capacidade de burlar regras e transgredir fronteiras, não tem lugar pensado diante dos holofotes. 100 Em nenhum momento as propostas citadas acima parecem privilegiar melhorias habitacionais e de transporte ou a implementação de hospitais, pronto socorros e escolas, iniciativas estas que poderiam fazer aumentar a frequência de pessoas no bairro, principalmente se houvesse o estímulo da chegada de novos moradores na região. Nesse caso, se as propostas não tocam nesses pontos e parecem apenas ter a intenção de espetacularizar a área e privilegiar alguns, qual seria o propósito de “revitalizar” um local que, nos parece, já tem vida? O espaço­roupa, agenciado pela na Baixa dos Sapateiros se faz interlocutor dos corpos dos sujeitos. É, portanto, um fazer corpo, fazer vestimenta e fazer cidade. É ele o responsável pela vida que nos foi possível conhecer e vivenciar ali, mas que existe de outras formas em todos os lugares. Ali o espaço­roupa era resto ou vinha da China, em outros lugares é importado, de luxo ou sustentável. De qualquer forma, quando o espaço­roupa está ativo e presente, existe para os sujeitos a possibilidade de se transformar, socializar e dar vida a uma série de acontecimentos, pois o simples ato de vestir uma roupa possibilita sua própria (re)invenção e, apesar de parecer contraditório quando se pensa na produção em massa da indústria, potencializa a possibilidade do sujeito de se singularizar. Outra vez, a necessidade de cartografar o agenciamento desse espaço­roupa pelas mãos da nos levam, como antes nos levou a necessidade de dimensionar seus espaços, a pensar um modo de trazer as relações de nossa personagem com os outros trabalhadores e espaços da Baixa dos Sapateiros e seus arredores. Outra vez o bordado se apresentou como técnica mais coerente para tal narrativa, a qual trazemos abaixo: 101 Fi g. 27: Ca rtogra fia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Cos tureirinha. Foto de a rquivo pessoal . em outro canto, o mesmo conto? Cabe ao urbanismo ser ferramenta, instrumento a ser usado nesse fazer cidade. Porém, como toda ferramenta, ele está a serviço de quem o carrega, a serviço da força que rege sobre ele. Nesse sentido, de certa forma, o urbanismo corre o risco de ser ele próprio o responsável por “engessar” o espaço urbano. Empunhado pelo poder dos grandes investidores do mercado imobiliário, o urbanismo está a serviço de interesses financeiros. Enquanto que a dinâmica da cidade, o quanto ela é para todos ou não, o quanto ela é democrática ou não fica comprometida, levada a diante com preocupações tão especificas que impossibilitam a visualização do espaço urbano como um todo. Nas estreitas ruas do Parque Novo Mundo por onde circulamos, onde carros passam lentamente e com cuidado por causa do pouco espaço, o tempo da cidade de São Paulo parece parar, ou pelo menos desacelerar. No miolo do bairro, a vida acontece nas ruas, entre vizinhos, nas trocas diárias e cotidianas. Porém, o bairro parece estar como um obstáculo que dificulta a passagem dos carros que vêm do viaduto Curuçá para 102 a Marginal Pinheiros. Pela Rua Queirós Veloso, os carros e caminhões passam um pouco mais rápido, por ser a via de acesso principal, porém em relação a grandes vias expressas, é ainda muito lenta e segue os padrões do bairro. Acontece que o , em uma conversa casual, nos contou que essa rua está visada para virar uma via expressa que conduziria os carros da Vila Maria para a Marginal Pinheiros. Para que essa via exista é preciso que um dos lados da rua seja desapropriado, demolido e asfaltado. Tal projeto, que circula boca‐a‐boca pelo bairro, assusta alguns moradores que, como a vizinha do , decidem se desfazer do imóvel onde vivem antes que tenham que ser desapropriados, o que os daria bem menos retorno financeiro, já que, segundo ele, o valor da indenização por desapropriação pagaria bem menos do que realmente vale o imóvel. A via expressa que cortaria o bairro, cortaria também as relações já estabelecidas ali e transformaria a área onde antes era uma lagoa, em uma espécie de ilha de ocupações irregulares, porém atenderia as necessidades de grandes empresas que almejam facilitar a saída de seus produtos da cidade de São Paulo. Por outro lado, outros projetos também estão sendo planejados para a área, através de um programa de urbanização de favelas chamado Renova SP, da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) de São Paulo. Segundo o diagnóstico desse projeto, a área onde está o e seus espaços da roupa usada está dentro de um perímetro chamado Jardim Japão e nos documentos do levantamento está nomeada “Marconi Curuçá / Vila Maria III”, tendo como área de assentamento 18675m² e comportando 700 domicílios. Metade dessa área está categorizada como “Favela” e a outra metade como “Empreendimento”. Dentre as propostas do projeto em relação a nossa área de maior interesse, está a “qualificação dos assentos habitacionais precários através da inserção de áreas livres associadas à implantação de equipamentos públicos de pequeno porte; novas conexões e percursos entre pontos e centralidades identificados.” (SEHAB, 2012) Para a realização das propostas, o pequeno trecho de bairro teria cerca de 140 remoções, ou seja, 20% dos domicílios. Essas famílias retiradas provavelmente receberiam da Prefeitura o seguro aluguel que, segundo o
, vale mais ou menos R$500, até que conseguissem ser privilegiadas por algum programa de habitação social do governo. Novamente algumas 103 questões nos surgem. Imaginando para onde iriam tais famílias que vivem ali há pelo menos alguns anos, não conseguimos encontrar algum local próximo ao bairro onde pudessem alugar uma moradia em boas condições por esse valor, levando em conta o suposto interesse em melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, já que as famílias retiradas, imaginamos, devem ser compostas em média por, pelo menos, quatro pessoas. Suponhamos então, que essas famílias logo consigam sua moradia própria através de algum programa do governo. Nos perguntamos: onde estão sendo construídas as habitações de interesse social para onde serão destinadas essas pessoas? Quem serão seus futuros vizinhos? Onde comprarão pão, pegarão ônibus para ir ao trabalho ou beberão cerveja no fim da tarde? Essas relações sócio espaciais, muitas vezes desconsideradas pelos levantamentos urbanísticos, emergiram de nosso fazer campo e a maneira cartográfica que encontramos de apresenta‐las segue a baixo: Fi g. 28: Ca rtogra fia bordada do Pa rque Novo Mundo a partir das rela ções do Ca ta dor. Foto de a rqui vo pes s oa l . 104 Nesse sentido, o espaço­roupa vem a ser um conceito que direciona nosso olhar para outros tipos de acontecimentos na cidade, que ocorrem de forma espraiada, pequena e nômade, possibilitando o exercício de olhar para o que também existe na cidade além do que se pode ver à primeira vista. O espaço­roupa nos leva a enxergar a cidade através de suas tramas e desvia nossos olhos do espetacular, surpreendendo nossa percepção de cidade. A construção desse espaço se faz em relação ao corpo que abriga e a seu entorno, a sua casa, ao bairro onde vive, as ruas pelas quais caminha. Por isso o espaço­roupa do morador de rua é acinzentado, sujo, desgastado, por que se constrói diariamente nas ruas. Por isso o espaço­roupa de um morador do Parque Novo Mundo quando deslocado ou removido da área onde se configurou, sofre alterações muitas vezes violentas. Ao servir aos interesses de uma minoria que tem o poder em mãos, o urbanismo fica cego às necessidades reais da maioria da população da cidade e ai é que sobram pelas beiradas trechos de cidade, sacos de roupas, grupos de gente. Essas sobras, que em toda sua potência não se deixam vitimizar, se configuram enquanto resto e driblam fronteiras e regras para sobreviver de alguma forma. O urbanismo deixa escapar as sobras e, uma vez que permite isso, já não as pode alcançar para inseri‐las nessa cidade que utopicamente deseja construir, uma cidade que seja para todos por direito. Desse modo, o urbanismo que vem regido por esse poder hegemônico, permite que um sujeito viaje 4 horas por dia em transporte público para servir a alguém que mora ou tem sua empresa em localidades centrais ou elitizadas. Ao servir ao capitalístico, esse fazer cidade cai em uma emboscada: perde entre seus limites temporais, espaciais e sociais um tanto de matéria que poderia lhe servir na construção dessa cidade. Todo nosso trajeto de catação de conceitos, descobertas de pistas, encontro com sujeitos que transformamos aqui em personagens conceituais, alinhavos, desalinhavos e costuras nos fazem refletir sobre as condições das dinâmicas em locais como Salvador ou São Paulo que, mesmo muito diferentes entre si, sofrem com as mesmas questões que envolvem o urbanismo e a construção de cidade. Nas duas cidades, conversando apenas com as pessoas dos bairros em questão, vivenciando seu cotidiano, flagrando suas táticas de sobrevivência, experimentando um pouco de 105 sua maneira de existir na cidade em relação ao espaço­roupa, percebemos que questões muito maiores do que as que podem alcançar esses sujeitos é que controlam a ferramenta do urbanismo. Questões maiores não em importância, mas em influência e poder. Questões que privilegiam os interesses de poucos e com isso levam o urbanismo a deturpar toda uma cidade. O espaço­roupa resto se mostra para nós o tempo todo enquanto matéria potencializadora do existir no espaço urbano, transgredindo a cidade resto e, até mesmo, essa construção de cidade segregadora. Através das mãos de nossos personagens conceituais, que nos ajudaram o tempo todo a encontrar o caminho dessa pesquisa e de tantos outros sujeitos que poderiam ser inseridos nessa configuração da cidade resto, entendemos a importância dessa micro resistência na cidade que, ao infringir certas regras e desejos hegemônicos garante a sobrevivência de pequenos vaga‐lumes que vagueiam ao anoitecer pelas ruas, deixando persistir a magia da vida nas grandes cidades. 106 O ARREMATE FINAL: cidade resto ou resto de cidade? “Se não formos capazes de enlouquecer o ocorrido – entendê‐lo como louco (não incompreensível, mas louco) –, de injetar variantes nele, mostra‐los sempre à beira do apagamento, sempre à borda de outra interpretação, se o que ficar de um fato não for a borra de múltiplos fatos possíveis, se o efetivo não prestar homenagem a tudo que não subiu à superfície, se não cantar o réquiem dos acontecimentos que morreram, as notas inaudíveis de seus berros, bem, então será melhor recitar alto, todos os dias, as manchetes que a gente lê nos jornais, porque isso vai se resumir a nossa vida.” (RAMOS, 2008, p.167) Talvez ainda estejamos em processo. Um processo longo e lento em busca de uma maneira de fazer cidade, urbanismo e roupa. Maneira essa que talvez dependa do aprender a ver e sentir o espaço e sua temporalidade, que precise do olhar para o que sobra por suas beiradas não como sobra, mas como parte desse todo fragmentado, como possibilidade de existência, como uma outra maneira, diferente apenas, não errada ou subversiva. Talvez ainda estejamos em busca de entender esse corpo que habita o espaço e que o constrói e o modifica, em busca de perceber novas e velhas necessidades que podem ser atendidas em prol da construção de um lugar mais articulado e que preze pelo tempo da própria existência e da memória. Esse tempo que é lento, como o tempo da vida, que fica visível quando se planta em uma horta ou se vive do tempo da natureza. Talvez estejamos em uma crise de velocidade e na rapidez em que andamos não damos brecha para que as coisas que estão à nossa volta emerjam e nos mostrem as reais necessidades das cidades, dos corpos e da própria vida. É como se houvesse na cidade espaços que sobram. Como terrenos baldios. Lugares que restam mesmo não sendo vazios. Eles tem um motivo qualquer para estarem ali. Especulação, esquecimento, abandono, descaso, desgaste ou simplesmente falta de uso. A cidade resto existe às beiradas desse urbanismo orgânico (OLIVIERI, 2011) porque ele não deseja vê‐la, não pode alcançá‐la. Quando o faz, é ainda deixando 107 rebarbas, refugos espalhados pelos cantos. O urbanismo, que guiado por mãos poderosas, tenta construir uma cidade totalitária, acaba por fragmentar territórios, segregar pessoas, deixa escapar pedaços. Nesse caminho nos ocorreu diversas vezes acabar esse texto de outras formas além da escrita, nos deu vontade de sair do papel, virar tecido, roupa. Deu vontade de que a dissertação seguisse esse seu tempo antropofágico, ruminante, do deglutir do boi que passa os dentes sobre o alimento muitas vezes antes de realmente engoli‐lo, em outras plataformas. Ruminar. Essa palavra é o resumo desse processo todo. Um vai e vem, um mastiga e engole e mastiga de novo. E esse processo todo, que se fez na lentidão necessária para sua concretude nos fez refletir sobre o fazer roupa e as linhas que possibilitam esse processo. Linhas não enquanto categorias, mas enquanto matéria que costura, que junta retalhos, que dá nó, se emaranha, arrebenta e borda. Linhas que são como as relações entre pessoas e espaços, que vão se embolando, entrecruzando, cada qual continuando a ser ela mesma, mas em função da outra, amarrada nela, sendo apoio ou dependendo dela. Costurar, esse ato milenar de construir o abrigo diário se transforma diariamente e, o tempo lento que antes se abrigava nesta prática, vai se distanciando dela. As costureiras recebem por quantidade de peças produzidas e isso faz com que precisem aumentar a velocidade da produção. Os alfaiates, aqueles que se encontravam em todo centro de cidade, vão virando uma lenda escondida entre as camadas dos ternos industrializados vendidos a cada esquina. Mas apesar de toda mudança estrutural, de velocidade e de valores, ainda persistem algumas mãos lentas. Essas como a da Costureirinha, do Catador ou do Rueiro, que fazem a vida como se faz o espaço­roupa: abrigo, fronteira, espaço e ainda pode ser outras coisas. Pode ser potência política de transformação cotidiana, pode ser a possibilidade do sujeito de se singularizar e de modificar seu modo de existir. Esses fios encontrados através dessas mãos lentas e emaranhados, configurações provisórias do se relacionar, foram nos dando as pistas, táticas de pesquisa, para encontrar caminho por onde seguir. Como se um fio puxasse o outro, essa pesquisa se fez em um tricotar conjunto, de muitas mãos, que guiaram a escrita em busca do compreender desse espaço urbano por vias vestíveis e espaços têxteis. Não falamos apenas de espacialidades, mas de tempo, como se um não pudesse existir sem 108 o outro, já que não há construção de espaço sem estratificação de acontecimentos e memória. Pelas mãos do , do e da , personagens conceituais extraídos de sujeitos encontrados por nosso caminho, encontramos os restos, sua potência transformadora do cotidiano e algumas reflexões sobre uso da ferramenta do urbanismo. Costurando essas reflexões aos conceitos do homem em farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores, do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg, chegamos ao encontro da cidade resto, onde pudemos notar que, pelas mãos de diversos sujeitos e sua maneira de inventar o cotidiano (CERTEAU, 1994), é possível tensionar os limites impostos pelo poder e pensamento hegemônico. Seguimos puxando os fios dessa costura tentacular e sem fim e descobrindo diariamente potenciais transformadores da cidade que, mesmo sem formação ou estudo, sabem como fazê‐lo, como construir algo em sua micro potência, dentro do raio de seu alcance: uma cidade mais justa e aberta, quase sem fronteiras, cidade esta que encontramos a cada porta aberta, café servido e história de família compartilhada durante esse fazer campo. Cada um revolucionando sua existência e seu entorno dentro da pequenez de sua capacidade política, de sua potência humana. Afinal, qual deve ser o tamanho das ações que realmente vão transformar as cidades? Quem será que empunha realmente a ferramenta do urbanismo? 109 referências bibliográficas AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. ARAÚJO, Guaracy. Ficção e Experiência, ou Foucault Reconta a História. Revista AISTHE. Rio de Janeiro: UFRJ, p. 58‐72, volume V, número 8, 2011. BARRETO, Jorge M. M. Exercícios de Leitoria. Tese de Doutorado, Programa de Pós‐Graduação em Artes Visuais da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012. BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995. BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989. __________. Passagens. 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