cruor arte contemporânea: reverberações contraculturalistas
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cruor arte contemporânea: reverberações contraculturalistas
66 CRUOR ARTE CONTEMPORÂNEA: REVERBERAÇÕES CONTRACULTURALISTAS NA CENA PÓS-DRAMÁTICA BRASILEIRA Felipe Henrique Monteiro Oliveira1 RESUMO Este artigo tem como objetivo refletir sobre os processos criativos colaborativos das instaurações cênicas e encenações, realizadas pela coligação potiguar, Cruor Arte Contemporânea, a qual vem logrando fascínio na cena pós-dramática brasileira, devido principalmente ao seu fazer cênico de caráter contracultural. Palavras-chave: Cruor Arte Contemporânea. Cena Pós-Dramática Brasileira. Corpo Livre. Contracultura. ABSTRACT This article aims to reflect about the collaborative creative processes of scenic instaurations and sketches performed by coalition Cruor Arte Contemporânea, which is managing to charm the brazilian post-dramatic scene mainly due to its do scenic countercultural. Keywords: Cruor Arte Contemporânea. Post-Dramatic Scene Brazilian. Body Free. Counterculture. “Nós não somos livres. E o céu ainda pode cair sobre nossas cabeças. O teatro foi criado, antes de tudo, para nos revelar essas verdades” Antonin Artaud 1 Doutorando em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de Alagoas. Instaurador de Cena do Cruor Arte Contemporânea e pesquisador do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares/NACE. E-mail: [email protected] ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 67 Este artigo tem como objetivo refletir sobre as ideias e os processos criativos contraculturalistas produzidos pela coligação potiguar Cruor Arte Contemporânea, a qual vem despontando na cena pós-dramática brasileira através de seu pensar-fazer cênico que procura questionar, subverter e transgredir os desafiadores e instigantes preceitos defendidos pelo establishment da racionalidade totalitária e tecnocrata de nosso tempo. Pois, na compreensão de que o establishment tenta invalidar a arte como um fenômeno que pretende conectar o presente com a vontade de um futuro não alienado e alienante, essa coligação brasileira proclama que a arte “[...] permanece linguagem de desafio, de acusação e protesto.” (MARCUSE, 2000: 261), na qual “[...] a realização da arte como princípio de reconstrução social pressupõe mudanças sociais fundamentais. O que está em jogo não é o embelezamento do que existe, mas sim a reorientação total da vida em uma nova sociedade.” (MARCUSE, 2000: 266). O Cruor Arte Contemporânea surgiu em 2011, a partir do estabelecimento do projeto de pesquisa de iniciação científica, intitulado “Almodóvar e Kahlo: Estéticas Constituintes Para Processos Criativos”, e do projeto de extensão e pesquisa de ação integrada acadêmica, denominada “Processos de Criação em Arte: Vivenciando e Apreendendo Cinema, Dança Flamenca, Cultura Espanhola e Teatro”. No mesmo ano a coligação foi premiada com o Edital PROEXT para realizar a pesquisa integrada “Arte Contemporânea e Cultura Investigadas Para Conhecer, Apreender e Transformar”, a qual congrega ações em nível de graduação e pós-graduação no Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nas dimensões de extensão, ensino e pesquisa, que unem seis áreas artísticas: Teatro, Dança, Performance, Cinema, Artes Visuais, Música. Os referidos projetos são coordenados pela Prof.a Dr.a Nara Salles no grupo de pesquisa Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares da universidade já mencionada. É nesse contexto que o Cruor Arte Contemporânea estrutura-se como coligação de artistas, sem e com corpos diferenciados2, de diferentes linguagens, à qual pertenço, que atuam e residem no estado do Rio Grande do Norte3.Esses artistas pretendem desenvolver 2 Termo que cunhei com a Prof.a Dr.a Nara Salles para designar as pessoas com alguma chamada “deficiência” corpóreo/mental. 3 Exceto o autor deste artigo. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 68 uma arte política de viés contracultural, não partidária, e compreendem que – no seu fazer teatral pós-dramático – está em pauta não mais a representação de personagem, mas a experiência do real pelo e no corpo do artista, tendo o corpo como força motriz da ação; e dessa forma a sua cena caracteriza-se não mais como a interpretação do real como ele é, mas sua utilização autorreflexiva, ou seja, ela é aquilo que é comunicado por aqueles que a comunicam, e as provocações e questionamentos gerados a partir das ações propostas, o que dessa forma permite refutar o conceito de arte que esteve alicerçada, principalmente no Ocidente, nos pressupostos aristotélicos de totalidade, ilusão e reprodução do mundo. O Cruor Arte Contemporânea passa a assumir posição política na cena pósdramática, isto é, afirma posição de recusa, de repulsa e de protesto diante do establishment da sociedade brasileira, pois coaduna com Marcuse (2000: 262-3) que: [...] a arte hoje responde à crise de nossa sociedade. Encontram-se em jogo não só alguns aspectos e formas do sistema de vida estabelecido, mas o sistema como totalidade, e a emergência de necessidades e satisfações qualitativamente diferentes, de novos objetivos. A construção de uma ambiência técnica e natural qualitativamente nova, por parte de um tipo essencialmente novo de ser humano, parece necessária; a era da barbárie e da brutalidade avançada não deve continuar para sempre. [...] Isso significa que a arte deve encontrar a linguagem e as imagens capazes de comunicar essa necessidade como sua própria. Pois é impossível imaginar que novas relações entre homens e coisas jamais possam surgir se os homens continuam a ver as imagens e a falar a linguagem da repressão, da exploração e da mistificação. [...] Em suas investigações, o Cruor Arte Contemporânea pesquisa as técnicas corpóreo/ vocais apontadas por teorias e práticas do teatrólogo francês Antonin Artaud, em seu Teatro da Crueldade; da diretora norteamericana Anne Bogart, nas técnicas de Viewpoints; do pesquisador chileno, Amilcar Barros, em seus estudos sobre a Dramaturgia Corporal; da coreógrafa pós-moderna alemã, Pina Bausch, em sua Dança-Teatro; do teórico alemão Hans-Thies Lehmann, em seu postulado sobre Teatro Pós Dramático; do antropólogo e psicólogo chileno, Rolando Toro, e a prática da Biodança; da filosofia-dança japonesa Butho, dos estudos de performance e técnicas orientais, como o Tai Sabaki e o conceito de instaurações cênicas desenvolvido pela encenadora da coligação. No que concerne ao conceito de instaurações cênicas, é importante ressaltar que ele foi desenvolvido pela Prof.a Dr.a Nara Salles na sua pesquisa de doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, na ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 69 tese intitulada: “Sentidos: uma instauração cênica - Processos criativos a partir da poética de Antonin Artaud”. A princípio, instauração foi o termo utilizado pela curadora de arte Lisette Lagnado, e de acordo com ela esse é um dos conceitos principais da arte contemporânea e que, conseguintemente, foi o artista Tunga que o promoveu a partir de sua obra “Xipófagas Capilares”, apresentada em 1985, na qual duas adolescentes se movimentam unidas pelos seus cabelos (SALLES, 2004). “Xipófagas Capilares” Dessa forma, levando o conceito de instauração para o paradigma das artes cênicas, ele passa a ser um híbrido que transita entre a linguagem da instalação e a da performance, modo pelo qual traz para a cena, respectivamente, o estático e o dinâmico, pois de acordo com Salles (2004) a instauração cênica supera a efemeridade da performance e a contemplação estática da instalação, posto que intenta deixar resíduos nas ações e nos espaços cênicos, e principalmente perpetuar ações na memória do espectador, haja vista que etimologicamente a palavra instauração deriva do latim instaurare que significa estabelecer, formar, fundar. Nessa perspectiva, os artistas do Cruor Arte Contemporânea, assim como os sujeitos da beat generation4 e seus afilhados contraculturalistas, (hippies, homossexuais, artistas pós-modernos, pacifistas, ecologistas, tropicalistas, negros, feministas, punk, folk, underground), são em seus fazeres artísticos 4 Nascidos e/ou filhos da era pós-guerras mundiais, os beats viram a ascensão dos EUA enquanto potência política, cultural, bélica, tecnológica, social e econômica, e o declínio socialista da União Soviética – URSS. Não desejando se enquadrarem no padrão burguês do american way of life os beats acabaram sendo estigmatizados como vagabundos que beiravam a rebeldia sem causa. Entretanto, sendo o primeiro movimento contracultural, os beats lutaram, a partir de seus valores libertários, veementemente contra qualquer tipo de autoridade, especialmente aos diálogos e às ações estigmatizadoras de relevância racista, sexista, homofóbica, a indústria bélica e cultural, a opressão, a pobreza advinda da distribuição desigual da riqueza e das leis injustas do Estado, aos cânones estéticos da/na arte, as instituições, dentre outros. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 70 [...] Fiéis à plataforma vanguardista de abolição das fronteiras entre arte e vida e de introdução da criatividade, imaginação, do jogo e do prazer no projeto revolucionário [...] [que] ambicionam tornar as demandas utópicas momentaneamente concretas, palpáveis. Em oposição ao livremercado, brota das ruas, parques e praças reconquistadas a prefiguração de uma sociedade livre e solidária, baseada na expansão, revitalização e recriação do espaço público como lugar de interação (não mediada pelo consumo de mercadoria) e camaradagem entre cidadãos conscientes e participativos. (FREIRE FILHO; CABRAL, 2007: 224) Estendendo essa valiosa assertiva para a sua cena pós-dramática, o Cruor Arte Contemporânea revitaliza as noções que se deram essencialmente, a partir dos anos 1960, com o surgimento e o contato com as práticas artísticas experimentais dispostas a ultrapassar as fronteiras entre as artes e a vida. O que está por trás dessas práticas artísticas, que reverberaram os ideais da contracultura nas décadas seguintes, tanto no sentido ideológico como no formal, é a tentativa de romper com o que se chamava de arte pura e, por conseguinte, a descoberta e a valorização de elementos e procedimentos considerados não artísticos. Portanto, a cena pós-dramática do Cruor Arte Contemporânea é fundamentalmente uma arte de fronteira que penetra e influencia-se nos díspares territórios artísticos, no seu contínuo movimento de ruptura com a arte estabelecida; assim, adentra por caminhos e situações antes não valorizadas como arte e propõe esmiuçar as fronteiras tênues que separam vida e arte. Desse modo, a cena pós-dramática e, concomitantemente, a arte contemporânea estão diretamente relacionadas a uma nova maneira de encarar a arte: live art (OLIVEIRA, 2013). A live art é a arte ao vivo, no aqui e agora, e também é a arte viva que oportuniza aproximação direta com a vida, em que se preconiza o espontâneo, em detrimento do que é ensaiado. Essa perspectiva de não separar o que é arte e o que é vida, sobretudo no patamar da configuração cênica, baseia-se na oposição da cena pós-dramática que se estabelece como poiesis em contraposição à cena da mimesis do teatro tradicional. Poiesis entendida como cena gerativa, primária nos acontecimentos, abstrata, sem contraponto com o estatuto próprio em relação à realidade. Mimesis como cena reprodutiva de realidade, dos seres humanos e das coisas. Assim, a cena pós-dramática do Cruor Arte Contemporânea não enseja a representação do real, mas a reelaboração do real, na qual a obra de arte tem vida própria e não se limita a representar o objeto mimeticamente, como ocorre no teatro ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 71 dramático. Influenciada pelas ideias da NÃO-ARTE5 e da arte de contestação6, a cena pósdramática propõe a intenção de considerar o fato de que qualquer ato é um ato artístico, desde que seja contextualizado como tal. A live art é um movimento de ruptura da arte contemporânea que objetiva dessacralizar a arte e tirá-la de sua função elitista. A ideia é trazer à tona a característica ritual da arte, ou seja, fazer com que a arte saia de espaços institucionais e passe a assumir posição viva na sociedade, como bem desejou/praticou Artaud, Jerzy Grotowski, Teatro da Vertigem, Living Theater7, Teatro Experimental de Cali, Teatro La Candelaria, Théâtre du Soleil, Ói Nóis Aqui Traveiz, Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, Los Lobos, Open Theater, San Francisco Mime Troupe, Grupo Galpão, Bread and Puppet Theater e mais recentemente no nordeste do Brasil, o Cruor Arte Contemporânea. Esse movimento é dialético na arte contemporânea, pois tira a arte de uma posição sacra e busca a ritualização dos atos cotidianos da vida (COHEN, 2009). Igualmente inspirado pelos já mencionados artistas e coletivos contraculturalistas, reconhecidos internacionalmente, os quais tinham a preocupação em produzir uma arte contestadora de discursos e práticas que visavam homogeneizar e coisificar os indivíduos e as sociedades, o Cruor Arte Contemporânea configura também seus processos criativos como colaborativos, ou seja, o diálogo estabelecido é colaborativo, pois mesmo quando é oposto, trata-se sempre de tecer uma via de encontro, uma nova possibilidade de compreensão, uma nova síntese não hierárquica. Não se trata da busca de via de consenso ao contrário, luta-se para preservar e perseverar na diferença, como condição para emergir novas ideias. De acordo com Araújo (2008: 1), o processo colaborativo [...] pressupõe a participação criativa coletivizada de todos os envolvidos no trabalho. A referida dinâmica - numa definição sucinta - se constitui num modo de criação em que cada um dos integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, tem espaço propositivo garantido. Além 5 Allan Kaprow estabeleceu a diferença entre ARTE-arte e NÃO-ARTE. A primeira se fundamenta como uma arte herdeira da arte institucionalizada que aspira expressar-se em uma série de formas e espaços sagrados, como: exposições, monumentos, filmes e livros. Enquanto a segunda engloba tudo o que não tenha sido aceito ou classificado como arte, mas que haja atraído a atenção de um artista com essa possibilidade de expressão em arte. 6 Arte que dá o estatuto de arte às expressões marginalizadas. 7 Atualmente o Cruor Arte Contemporânea trabalha com o Living Theater no projeto “Homens Libertemse!/Men Get Free!”. Para informações sobre a parceria ver o site http://www.homenslibertemse.com/. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 72 disso, ela não se estrutura sobre hierarquias rígidas, produzindo, ao final, uma obra cuja autoria é dividida por todos. Assim, pode-se perceber que o que une esses artistas e coletivos contraculturalistas, na qual o Cruor Arte Contemporânea se enquadra, é o que Lehmann (2014) corrobora como política, no caso deste escrito a contracultura, no campo da estética, pois Na ‘estética da revolta’, a ação estética é diretamente ação política, quando, por exemplo, é ligada a uma infração, transgressão de leis ou de proibições. Na estética da resistência, a consciência política reflete suas dúvidas artisticamente, sua história, seu possível fracasso, as perguntas não respondidas com as quais todo fazer político se ocupa. Na estética da revolta, a arte participa diretamente de um movimento político. (LEHMANN, 2014: 17) É nessa seara que o Cruor Arte Contemporânea elabora suas instaurações cênicas e encenações, sobretudo através da apropriação antropofágica dos filmes do cineasta espanhol Pedro Almodóvar e do universo biográfico-pictórico da artista visual Frida Kahlo. Logo, ao realizar o “[...] processo de apropriação das idéias encontra-se no ato criador a expressão da vontade do artista, enfatizando e excluindo os elementos constitutivos da sua obra. Aqueles inscritos nas hostes contraculturais vão potencializar essa premissa.” (LEAO, 2009: 33) O interesse em pesquisar Almodóvar surge da vontade do cineasta mostrar-nos em seus filmes a experiência do fazer cinema como algo inteiramente pessoal, e principalmente porque ele fez parte do movimento de contracultura espanhola Movida Madrilleña, o qual ressaltava o desejo de liberdade, política, social, ideológica e sexual da juventude espanhola da época pós-ditadura de Franco. Esses estudos deram-se a partir dos filmes estudados: “Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas da Turma” (1980); “Labirinto de Paixões” (1982); “Maus Hábitos” (1983); “O Que Eu Fiz Para Merecer Isto?” (1884); “Matador” (1986); “A Lei do Desejo” (1987); “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988); “Ata-me” (1990); “De Salto Alto” (1991); “Kika” (1993), “A Flor do Meu Segredo” (1995); “Carne Trêmula” (1997), “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999). ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 73 Quanto ao desejo pela artista mexicana vem do fato de que ao observar minuciosamente as suas obras, é possível afirmar que essas aludem a aspectos intrinsecamente ligados a sua intimidade, e isso fica mais evidente em seus autorretratos. Kahlo dizia em seus escritos que pintava a si porque cotidianamente estava quase sempre sozinha, bem como era o assunto que mais conhecia. A esse respeito observa-se a seguinte constatação: Os autorretratos feridos de Frida eram uma espécie de grito silencioso. Em imagens de si mesma descalça, sem cabeça, rachada, aberta, sangrando, ela transformava a dor nas imagens mais dramáticas possíveis, de modo a imprimir nos outros a intensidade de seu próprio sofrimento. E, ao projetar para fora de si e para dentro das telas a sua dor, ela também a extirpava de seu corpo. Os autorretratos eram réplicas fixas e imutáveis de sua imagem refletida, e nem os reflexos nem as telas sentiam dor. [...] Como antídoto para a dor, os autorretratos feridos podem ter tido outra função. Podemos pensar na experiência de vislumbrar um reflexo num momento de angústia física ou emocional. A imagem do espelho é assombrosa – ela se parece conosco, mas não partilha da nossa dor. A disjunção entre a nossa percepção de nós mesmos sentindo dor (percebida de dentro para fora) e a evidência superficial, oferecida pelo espelho, de um eu aparentemente desprovido de dor (visto de fora para dentro), pode funcionar como influência estabilizadora. A imagem refletida faz com que evoquemos nosso eu físico, a instância íntima com que estamos familiarizados, proporcionando uma sensação de continuidade. Se Frida se sentia atraída pelos espelhos é porque eles a comportavam dessa maneira de tornar permanente essa imagem tranquilizadora. Assim, os autorretratos podiam servir como instrumentos para amparar a objetividade ou a dissociação. Ademais, contemplando seu próprio eu ferido em suas pinturas, Frida podia sustentar a ilusão de ser a observadora forte e objetiva de seu próprio infortúnio. (HERRERA, 2011: 420-21) E, ao adentrar em seu universo pictórico, percebemos que sua arte traduz enfaticamente as circunstâncias e as experiências vividas que estão estreitamente relacionadas ao seu corpo diferenciado, por exemplo: 1) aos seis anos de idade contraiu poliomielite, a qual a enclausurou por nove meses em casa e deixou-a com sequela na perna direita que ficou atrofiada; 2) acidente de ônibus, o qual escamoteou seu corpo - três fraturas na região lombar da coluna, fraturas na terceira e quarta vértebras, clavícula quebrada, luxação no cotovelo esquerdo, onze fraturas no pé esquerdo, pélvis quebrada em três lugares, peritonite aguda, cistite e ferimento profundo no abdômen, devido à barra de ferro que entrou no quadril esquerdo e saiu pela vagina, dilacerando o lábio esquerdo - por isso ficou um mês hospitalizada, imobilizada numa estrutura em formato de caixa, deitada ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 74 de costas e com um colete de gesso colocado na região torácica; 3) três abortos sofridos no decorrer da vida, causados, segundo prognóstico dos médicos, devido às sequelas do acidente, pois ela dificilmente conseguiria manter qualquer bebê em seu útero, e essa é considerada a pior dor de toda sua vida; 4) uso contínuo de aparelhos e tratamentos ortopédicos – cadeira de rodas, sessões de tração, perna mecânica e coletes de aço, couro e gesso; 5) constantes crises depressivas, vício em drogas lícitas e ilícitas e alcoolismo; 6) episódios intensos de convalescença e solidão; 7) sucessivas cirurgias desnecessárias, como no caso em que – devido às fortes dores que sentia na cabeça e na coluna em consequência do uso prolongado de coletes e outros aparelhos ortopédicos, e de um erro médico ocorrido durante uma punção lombar -, algum tempo depois foi submetida a uma cirurgia na coluna, pela qual parte pedaço do osso pélvico foi incorporado a quatro vértebras da coluna fixado por uma haste de metal de quinze centímetros de comprimento, mas mesmo permanecendo acamada por cerca de oito meses, as dores na coluna continuaram, e isso fez com que os médicos observassem que a fusão espinhal não fora feita de forma correta, pois a haste de metal foi colocada em vértebras saudáveis; 8) amputação da perna direita na altura do joelho, a qual potencializou a diminuição da autoestima, provocou profunda depressão e incitou ideias suicidas. A arte de Kahlo, segundo Fuentes (2010), transforma-nos testemunhas da própria realidade dolorosa, leva-nos ao autoconhecimento verdadeiro, pois adquire algo de belo pelo simples fato que possibilita a identificação do próprio ser; assim, ilumina qualidades e angústias mais elementares e mostra-nos sucessivas identidades de um indivíduo com corpo diferenciado que não se finaliza em si, mas que ainda está sendo. E essa circunstância torna-se evidente em seus autorretratos feridos, espécies de gritos silenciosos, com imagens de si descalça, sem cabeça, rachada, aberta, sangrando, possibilitam a apreciação das transformações da dor em imagens mais dramáticas possíveis, de modo a imprimir nos outros a intensidade e a veracidade do próprio sofrimento. Apesar de suas obras enfatizarem seu sofrimento, características sentimentalistas ou de autopiedade não demonstradas, pelo contrário, retratam o ser humano que foi capaz de deslocar, aprontar e subverter suas variadas e intensas dores. Assim, as pinturas e os desenhos que mais expressam suas dores, lista extensa e importante citar para conferência do leitor, são: Pajera Extraña del País del Punto y la Raya; Retrato de Neferúnico; Danza al Sol; Yo soy la DESINTEGRACIÓN....; Desenho; ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 75 que fea es la << gente >>!; Movimiento al danzar; El cielo la tierra yo y Diego; NO ME LLORES! ; SI, TE LLORO; MUERTES EN RELAJO; Te vas? No. ALAS ROTAS; Pies para qué los quiero Si tengo alas pa’ volar; Apoyo numero 1. apoyo numero dos. 2; con mi amor a mi niño Diego Diego; Retrato de mi hermana Cristina (1928); Frieda y Diego Rivera (1931); Retrato de Luther Burbank (1931); Frida y la operación cesárea (1932); Henry Ford Hospital (1932); Mi nacimiento (1932); Unos cuantos piquetitos (1935); Yo y Mi Muñeca (1937); Recuerdo (1937); Mi Nana y Yo (1937); Retrato de Diego Rivera (1937); Recuerdo de la herida abierta (1938); Lo Que el Agua Me Dio (1938); Las Dos Fridas (1939); Dos Desnudos en un Bosque (1939); El Sueno (1940); Autorretrato como Tehuana (1943); Raíces (1943); Pensando en la Muerte (1943); La Columna Rota (1944); Sin Esperanza (1945); Arbol de la Esperanza, Mantente Frirme (1946); El Venado Herica (1946); Diego y Yo (1949) e Autorretrato con el Retrato del Dr Farill (1951). A partir da apropriação antropofágica dos filmes de Almodóvar e do universo biográfico-pictórico de Kahlo, o Cruor Arte Contemporânea regurgitou em cena as seguintes instaurações cênicas: 1) “Carmin Experimento Água”, que consistiu em uma série de ações criadas a partir da observação dos líquidos presentes nas pinturas e desenhos de Kahlo e Almodóvar e suas reminiscências a partir das memórias presentes no corpo dos artistas e que, apresentadas concomitantemente, promovem interação com os transeuntes; 2) “Unissex”, intervenção política que enfocou e questionou os direitos das pessoas transexuais ao uso de banheiros para seu gênero escolhido, e não para o de seu nascimento, e que teve como objetivo transformar alguns banheiros, separados por gêneros na universidade, em banheiros unissex, principalmente após fato ocorrido no Departamento de Artes da UFRN – no qual, durante festa realizada nas dependências da instituição, a Prof.a Dr.a Leilane Assunção, que é transgênero, isto é, nasceu no sexo masculino, mudou para o gênero feminino, assumiu-se como mulher e para tanto adotou postura e imagem femininas, teve acesso negado por uma funcionária de utilizar o banheiro; 3) “Segredo”, criada a partir do filme “A Flor do Meu Segredo”, de Almodóvar, consistiu na seguinte ação: duplas de artistas(um com os olhos vendados) colocaram-se em determinado lugar da cidade e, no momento em que o artista vendado tocava o corpo de alguém no espaço, abraçava-lhe e estabelecia vínculo de comunicação tátil e verbal e/ou sonora acerca de segredos e solicitava que o transeunte escrevesse e/ou desenhasse em sua roupa branca palavras e memórias de seus segredos. Essa roupa fez parte dos figurinos da encenação ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 76 “Carmin”; 4) “Corpo Livre”, essa instauração cênica urbana consistiu em convidar artistas da cidade para que, em determinado local e hora, dançassem ou executassem partitura de três minutos, com o corpo nu pintado com pasta d’água. O desenvolvimento ocorreu da seguinte maneira: em cortejo, acompanhado por músicos e musicistas, ainda com roupas, o grupo sai de determinado local da cidade e vai a um ponto onde tenha acontecido algum tipo de repressão ao corpo; quando os participantes chegam, sentam-se e formam uma mandala.Aqueles que têm o corpo nu, pintado de branco, entram na mandala, tiram as roupas e executam a partitura de três minutos; logo após, colocam as roupas e vão embora da mesma forma que chegaram: em cortejo. Assim, a coligação propõe uma discussão sobre o corpo do artista, o nu na cena, a liberdade em nossas criações e que um corpo nu em cena não seja motivo para estabelecer o indicativo de idade. Logo, o artista deve ter liberdade total para usar seu corpo nu apenas como obra artística; 5) “Tai”, criado a partir das aulas e do treinamento com o professor Sol das Oliveiras Leão, da técnica Tai Sabaki, que é um conjunto de técnicas de movimentação corporal, praticado por várias artes marciais japonesas, sendo sua maior finalidade evitar o enfrentamento direto, ou seja, um ataque, bem como aborda as dores de Kahlo e sua reverberação no corpo dos artistas da instauração cênica; 6) “Cartas do México Brasil”, realizada durante o Festival Escena Mazatlan 2012 que consistiu em convidar os mexicanos que passavam pela Plazuela Machado a escreverem cartas sobre seus cotidianos para que, a partir desses escritos, pudéssemos construir dramaturgias para a encenação “Carmin”; 7) “Exposição Peitos”, investigação das transparências presentes nos filmes de Almodóvar em relação às pinturas e aos desenhos de Kahlo, criando imagens a partir de jogos de luz e sombra e desconstruindo gêneros; 8) “Bazar Cult” foi uma instauração cênica festiva criada e constituída através da análise de personagens dos filmes de Almodóvar; 9) “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo” configurou-se como a parte prática da minha dissertação, sob a orientação da Prof.a Dr.a Nara Salles, no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na qual propôs um diálogo entre as dores do corpo da artista plástica mexicana em relação ao meu próprio corpo diferenciado. Em “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo”, além de estarem inseridos aspectos relevantes da biografia e da arte de Kahlo, outra influência importante é o enfoque na instauração do estigma dos corpos diferenciados no acontecimento cênico e seus desdobramentos nas relações interpessoais na sociedade contemporânea; 10) “(DES)VITRUVIANDO” tem a ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 77 intenção de afirmar que o processo de estigmatização, a qual os artistas com corpos diferenciados sofrem, está relacionado, sobretudo, à maneira como seus corpos são e se apresentam, já que suas diferenciações corporais fazem surgir corporeidade peculiar em cena, em especial porque - considerados fora de padrões de corpo e de beleza estabelecidos, baseados principalmente no ideário renascentista do Homem Vitruviando de Leonardo da Vinci, ainda que não seja de sua vontade - interferem e provocam reações de cunho social e estético que se opõem aos cânones cênicos tradicionais. As instaurações cênicas foram procedimento metodológico utilizado para se chegar a “Carmin”, que se trata de uma encenação não linear com dramaturgia construída colaborativamente. Não conta uma história, mas cria uma atmosfera sensitiva que permeia aqueles que assistem/bebem/comem e sã vistos. É composta pela montagem de partes das várias instaurações cênicas construídas pela coligação estabelecidas por novos elementos. “Carmin Experimento Água”. Foto: Fernando Siviero “Unissex”. Foto: Nathalia Santana “Segredo”. Foto: Nara Salles “Corpo Livre”. Foto: Nara Salles ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 78 “Tai”. Foto: João Pedro Tavares “Cartas do México Brasil”. Foto: Nara Salles “Exposição Peitos”. Fotos: Nara Salles “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo” Leão “Bazar Cult”. Foto: Nara Salles “(DES)VITRUVIANDO”. Foto: Luís Carneiro “Carmin”. Foto: Nara Salles ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 79 Desafiando os cânones cênicos tradicionais e a moral e os bons costumes da sociedade hipócrita em que vivemos, o Cruor Arte Contemporânea foi várias vezes “censurado”, devido ao seu fazer teatral pós-dramático de caráter contracultural na dinâmica do mostrar silenciando-se, no entanto a mais explícita foi acerca da instauração cênica “Corpo Livre”, por cuja nudez de seus artistas a encenadora da coligação teve de responder a uma sindicância na instituição de ensino superior da qual faz parte. Essas reverberações contraculturalistas, provocadas pela cena pós-dramática, demonstram o preconceito e a alienação do público: sobre esse fato Flaszen (2010: 86) diz: O teatro, feito por “cultos” e para a “cultura”, divide-se em essência e aparência. É um híbrido, uma criatura monstruosa, deformada no seu desenvolvimento natural. Eis que dou a vocês a verdade sobre o mundo, ideias, pensamentos – diz. E a sala aplaude, imersa no atordoamento coletivo. Eis o belo, a lei, a história, o bom gosto e a boa educação. E a sala ofega e excita-se, quase abandonando-se à dança. Assim acontece pelo menos quando o espetáculo consegue convencer o público. Na esteira da política na arte, Lehmann (2014: 13) postula: Na realidade, um teatro só é profundamente condenável moral e politicamente quando é inofensivo. Quando não causa dor. Quando nos satisfaz como pessoas cultivadas. Pois essa “cultura” é a que quer esquecer a catástrofe na qual quase todos os corpos desse mundo se encontram objetivamente. Cabe à arte assumir o risco de fazer algo nos tocar – de forma dolorosa, embaraçosa, assustadora, perturbadora – algo esquecido, desmentido, que não emergiu na superfície da consciência. Contudo, acusações “morais” (na verdade profundamente amorais) são constantemente lançadas justamente contra aqueles artistas que querem sair da superfície e provocar inquietações nos porões da cultura. Isso porque o nu em cena acaba provocando e subvertendo as convenções socioculturais e educativas que tanto domesticam as manifestações corporais às quais os espectadores estão submetidos e com as quais estão acostumados na sociedade contemporânea. A exposição da nudez em cena passa a adquirir caráter político, pois o corpo (expressão artística) passa a ser o espetáculo em si, e propõe “a dialética entre os padrões da conduta humana e as estruturas nas quais se apóia entram em crise” (GLUSBERG, 2003: 90). Ou seja, o corpo passa a ser considerado na cena pós-dramática ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 80 [...] antes de tudo, um corpo carnal, visceral, em cores, tempos, lugares e temperaturas constrangedoramente reais. Corpo em suas culpas, medos, máscaras, transtornos de necessidades físicas que o acompanharão toda a vida, interrompendo um poema, impedindo um pôr do sol no mar, invadindo o palco e a platéia com sua impune e devassada existência. Existência deixada sem a proteção concreta da máscara, sem sua cômoda praticidade de vestires e tirares. (AZEVEDO, 2008: 128) O corpo, então, passa a ser Corpo morada dos outros, reserva de histórias que foram sendo armazenadas em pontos tão resguardados, tudo o que de nós mesmos nos protegemos, nossos fantasmas, todos os nossos medos, culpas, repressões, fantasias, desejos mais ocultos, falta de carinho e aconchego, pedidos mudo de ajuda. [...] O corpo que protege e abriga a morte, destino de todos, fabrica sumos, suores, salivas, sons, relacionamentos de proximidade e distância, desenhos de gestos e suas trajetórias nos diversos espaços que o contém. E lança em tudo os vestígios tênues ou densos de sua própria presença. Esse corpo que aprendeu a esconder o desejo de ser único [...] tem, nos espaços pós-dramáticos, uma presença que se revela diferente de todas as outras presenças que o teatro, até então, apresentara. ((AZEVEDO, 2008: 128-29) Nesse viés, Artaud (apud SALLES, 2010: 6) afirma que [...] o corpo tem um imenso “fundo falso” [...] O corpo é o relicário de um espaço infinito, de revelação e desvendamentos. O corpo é atravessado por pensamentos, impulsos, desejos, sensações, paisagens internas. [...]. O corpo no estado sem órgãos permite uma reconstrução do exercício da vida cotidiana, pois uma transformação interna ocorre. O Corpo Sem Órgãos provoca novas formas de interação com o mundo e é um espaço infinito que se desdobra sobre si mesmo, está dentro e fora ao mesmo tempo. As instaurações cênicas e encenação do Cruor Arte Contemporânea enquadram-se no paradigma do teatro pós-dramático da cena como work in progress, ou seja, trabalhos artísticos que não ensejam tornar-se simples produtos de processos criativos, mas que pretendem constituir-se na processualidade, no qual o espectador é compelido a perceber a obra de arte no próprio processo constituinte, o qual culmina na necessidade desse sujeito participar ativamente do ato artístico e permitir que sua percepção se torne aberta, sobrecarregada e não acabada. Isso porque é oferecido ao espectador da cena o reconhecimento de sua presença, já que os artistas propõem diferentes maneiras de experimentar, estimular, provocar, convidar, desafiar e vivenciar a experiência artística, e não mais consideram o público como apenas um receptáculo silenciado passivamente durante o processo de fruição. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 81 Dessa forma, o work in progress abre espaços para dramaturgias multiformes, desprovidas intencionalmente de significados referenciais, no sentido estrito de representações miméticas, que conclamam a instituição de textos polifônicos construídos pela e para a cena, seus elementos constituintes e por seus artistas. E isso realiza o postulado artaudiano de que O diálogo – coisa escrita e falada – não pertence especificamente à cena, pertence ao livro; a prova é que nos manuais de história literária reservase um lugar para o teatro considerado como ramo acessório da história da linguagem articulada. [...] Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se faça com que ela fale sua linguagem concreta. (ARTAUD, 2006: 36) No entanto, é importante alertar que, tanto Artaud quanto os conceitos de teatro pós-dramático, defendem a destituição do texto como elemento soberano na configuração cênica e a elaboração de uma dramaturgia da cena que propicie o desenvolvimento do sistema corpóreo-motor-perceptivo dos participantes. Logo, a cena pós-dramática, praticada pelo Cruor Arte Contemporânea, ao desmantelar as dinâmicas dramáticas, abdica da categoria de ação em favor do estado ou situação de dinâmica cênica. Desse modo, substitui a ação dramática aristotélica pela cerimônia e perfaz na dimensão que adere diversos procedimentos teatrais, conduzidos sem referencial no processo criativo. Uma vez submetido à dinâmica ambígua, plurivalente e simultânea da cena, possibilita a supressão da síntese em prol de nova dramaturgia que cultiva estruturas construídas, na processualidade do acontecimento artístico, da qual a priori propicia ao espectador a oportunidade de vivenciar experiência real que prioriza percepção aberta e fragmentada no lugar de percepção padronizada. É por isso que se pode estabelecer a predominância do texto da instauração cênica para além da performance, pois “se torna mais presença do que representação, mais experiência partilhada do que comunicada, mais processo do que resultado, mais manifestação do que significação, mais energia do que informação.” (LEHMANN, 2007: 143). Em suma, o Cruor Arte Contemporânea tem-se estabelecido na cena pósdramática, brasileira e internacional, pois participa do Festival Escena Mazatlan desde 2012, de forma intempestiva e contracultural, porque sabe que não pode fugir do anacronismo irrevogável de seu tempo, pois ao delatar as premissas da sociedade e da arte ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 66 - 84 82 tradicionais reporta-se, de forma singular, à acepção de que o artista na contemporaneidade percebe e experimenta, diante da luz, a obscuridade da sua vida e da arte, haja vista que ele [...] não é somente aquele que, percebendo o escuro do presente, capta a sua luz invendável; é também alguém que, dividindo e interpolando o tempo, está em condições de o transformar e de o pôr em relação com os outros tempos, de ler de modo inédito a sua história, de a <<citar>> segundo uma necessidade que não provém de modo algum do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode resolver. É como se essa indivisível luz que é o escuro do presente projectasse a sua sobra sobre o passado e este, tocado por esse feixe de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas da hora. (AGAMBEM, 2010: 28) Portanto as reverberações contraculturalistas do Cruor Arte Contemporânea permitem compreender que as artes cênicas na contemporaneidade não impõem juízos de valor sobre quais são os corpos que devem ou não participar e estar presente em cena, pois traz à tona, na cena pós-dramática brasileira, os momentos que modificam perenemente o modo crítico de pensar e lidar com e sobre a marginalização dos artistas, a transgressão dos estigmas impostos a esses indivíduos, tanto social quanto artisticamente, e a reflexão de que qualquer artista pode e é capaz de fazer arte. BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2010. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. AZEVEDO, Sônia Machado de. 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