Esperança e Diálogo Intercultural
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Esperança e Diálogo Intercultural
Para Pensar Fora do “Quadrilátero”: Esperança Responsável, Abertura InterCultural e Murmúrio de Alteridade §1 – Tomando como ponto de partida a obra do pensador norte-americano Alphonso Lingis, obra essa que não pode ser definida nem como ensaio filosófico (no sentido canónico do termo), nem como literatura de viagens, nem como denúncia política, nem como epistolário, sendo tudo isso ao mesmo tempo, pretendemos chegar a uma análise global dos mecanismos de construção da violência ontológica, na forma como ela se apresenta em termos de um discurso global unívoco – unidimensional – e, nesse preciso sentido, inviabilizador de modernidades plurais, geradoras de discursos diferenciados e possibilitadores de um diálogo inter-cultural fecundo. É exactamente tendo como pano de fundo a promoção desse diálogo inter-cultural que tentaremos identificar barreiras ontológicas, sociais e políticas que – do ponto de vista da narrativa dominante (a do norte ocidental) – impedem que ele se concretize. §2 – Existe, assim, uma violência inviabilizadora do diálogo inter-cultural e que – enquanto violência – “domestica” o “outro” no sentido de que este se manifeste como “ricochete” dentro desse mesmo discurso da violência, cuja primazia é a afirmação da técnica 1. Nesse sentido, a obra de Lingis é uma obra de “denúncia reflexiva epistolária e ontológica”. Partindo da constatação de uma humanidade primordial comunitária2, Lingis constata que tal comunidade é uma “comunidade dos que não têm nada em comum”, exactamente porque os processos de racionalização que conduzem à modernidade ocidental carecem de instrumentos para a criação de plataformas de entendimento com esses discursos necessariamente “outros” 3. A “positividade” racional, científica e tecnológica foi/é um reducionismo no sentido em que torna impossível ouvir o “outro” sem o apropriar – de forma domesticada – dentro do discurso do “mesmo” 4. Embora existam trabalhos que lidam com a questão da criação de plataformas de diálogo intercultural (por exemplo, as reflexões em torno da linearidade do pensamento ocidental contrapostas ao holismo oriental5, as reflexões que ligam Derrida e a desconstrução ao pensador Nagarjuna, ou, ainda, as reflexões contemporâneas do pós-estruturalismo ao budismo 6), não é de negligenciar o ponto de partida de Lingis: Lingis foi tradutor de Emmanuel Levinas para inglês e, nesse sentido, é bastante influenciado pela noção levinasiana de irreconciliabilidade entre a “face” e o “rosto” no sentido do discurso como traição necessária, e logocêntrica, e da ética como respeito (não tolerância) parcimonioso perante a ignorância em relação ao que o discurso não pode abarcar 7. No entanto, Lingis 1 John Gray, Al Qaeda and what it means to be modern (London: Faber and Faber, 2003). Uma desmontage m axiológica da “Carta Universal dos Direitos Humanos” torna-se aqui essencial. 3 Alphonso Lingis, The Community of Those Who Have Nothing in Common (Bloomington and Indianapolis: IUP, 1994). 4 Para Lingis, aquilo que une, aquilo que comunitariza a possibilidade da esperança colectiva, é algo que está além do discurso comum baseado nas lógicas do binarismo racionalista: Alphonso Lingis, Abuses (Berkeley and Los Angeles: UCP, 1994). 5 Richard E. Nisbett, The Geography of Thought: How Asians and Westerners Think Differently and Why (London: Nicholas Brealey Publishing, 2003). 6 Estes são filões que nos propomos investigar. Adianta mos, desde já, que as referências a Levinas, Deleuze, Derrida, Nietzsche e Foucault raramente aparece m anotadas, uma vez que são figuras tutelares deste pensamento em processo. 7 Temas recorrentes numa obra por sinal não traduzida por Lingis: Emmanuel Levinas, Alterity & Transcendence (London: The Athlone Press, 1999). 2 1 supera esse convite à paragem pela ideia de um reequacionar da ética kantiana num sentido não teleológico nem universalista, ou seja, para Lingis, o imperativo kantiano não é um universal abstracto mas um convite ao diálogo que acontece, necessariamente, do ponto de vista da ética relacional, no diálogo entre culturas no sentido em que este – embora não esteja a acontecer – só pode acontecer no momento em que nos situamos em posição de abertura, isto é, numa posição capaz de pôr em causa a rigidez dos nossos conceitos para aprender com a fluidez de uma alteridade absoluta, que procuramos incessantemente, mas que é incessantemente inabarcável8. Pensamos que aqui é de recuperar o que se disse atrás: ou seja, os debates sobre a diferença entre holismo/linearidade, sobre a semelhança Derrida/Nagarjuna, sobre a relação budismo/pós-estruturalismo, se vistos numa perspectiva deleuziana relacionada com a construção de “nodos” (“rizomas” na linguagem de Gilles Deleuze) que aceitem a precariedade do discurso (“errância”) e a sua necessária incoerência no plano da rigidez inerente à metafísica positivista e moderna (que, ao recusar a indissociabilidade entre corpo/espírito se situa num solipsismo idealista que não aceita o fluxo como estado de permanente impermanência9), permitem a possível construção de uma plataforma de diálogo inter-cultural que esteja, não em superação da metafísica tradicional (o que seria outra teleologia utópica), mas em lateralidade quanto a esta. Ou seja: um discurso “outro” (necessariamente precário) que pretenda abrir espaços de diálogo inter-cultural com os “outros” (outros discursos, outras modernidades, outras “multitudes” - aqui o conceito de António Negri e Michael Hardt (devedores de Paolo Virno) pode ajudar 10) que desejam ser ouvidos sem terem que o fazer dentro da racionalidade técnica do “Império”11. §3 – Isto supõe, no entanto, uma crítica dessa mesma racionalidade técnica cuja visibilidade é a violência produzida por uma “metafísica de casulo” 12. Tal violência não se tem revelado criativa, exactamente pela incapacidade que “nós” temos demonstrado para aprender com ela 13. Tudo isto se relaciona com uma modernidade de 500 anos, geradora de mecanismos opressivos de controlo, sob a forma de uma multiplicidade de “agressores/agredidos” 14 situados num contexto unívoco de afunilamento reflexivo consensual15. Aliás, o conceito de violência em si – tomado em abstracto e em função da nossa tradição ocidental de “razão” – é o mal absoluto, ou seja, deve ser combatido enquanto conceito independentemente do ponto de vista prático e tendo em conta, exactamente, o facto de que a aplicação prática de qualquer conceito abstracto é já em si uma violência. No entanto, não somos aqui – e resguardando a simples ideia de 8 Alphonso Lingis, The Imperative (Bloomington and Indianapolis: IUP, 1998). Lingis também tem uma análise da problemática do corpo, que pode ser relacionada com a recuperação deleuziana da problemática do corpo em Espinoza: Alphonso Lingis, Foreign Bodies (London: Routledge, 1994). 10 Michael Hardt and António Negri, Multitude: War and Democracy in the Age of Empire (New York: The Penguin Press, 2004). 11 Michael Hardt and António Negri, Empire (Cambridge MA: HUP, 2000). 12 Do inglês “cocoon”. 13 O “mega-evento” que constituiu o 11 de Setembro e o belicismo posterior são disso exemplo. 14 Ou “vigilantes/vigiados” que se constituem em simultâneo como verdugos do “outro” e de “nós” próprios, sendo, por isso mesmo, “vítimas” de nós próprios no mesmo processo de vitimação do “outro”. Uma reflexão sobre esta questão – do ponto de vista da denúncia – supõe um redimensionamento da mesma do ponto de vista de uma ética da relacionalidade, assente numa perspectiva de responsabilidade colectiva. 15 Sophie Bessis, Western Supremacy: The Triumph of an Idea? (London: Zed Books, 2003). 9 2 perspectiva, isto é, de ponto de vista – contra a violência de um ponto de vista cristão. Por outras palavras, não nos situamos dentro de uma escatologia do “perdão” e da “dádiva” (caritativa) 16. Para tal efeito, consideramos fundador o debate – a propósito do império espanhol – travado por Sepúlveda e Las Casas17. A tese vencedora (na prática), a de Sepúlveda, foi a de que o “novo mundo”, na sua virgindade selvagem, deveria ser subjugado para os propósitos do império: extracção (de bens, de conhecimento, de força vital). A tese perdedora, a de Las Casas, não é menos imperialista: trata-se da futuramente reformulada ideia de Rousseau, isto é, do “bom selvagem” que deve ser abandonado ao seu desígnio sem intromissões externas. Tal tese é imperialista exactamente no seu sentido confinador, isto é, na sua negação da interacção inter-cultural e na proposição de uma utopia virada “ao contrário” (o que depois se tornou comum nas críticas pastoralistas à civilização 18). Mas concentremo-nos na narrativa vencedora: a de Sepúlveda. Ela marca toda a história do ocidente na modernidade e resiste nos actuais discursos de legitimação dos poderes vigentes. Aqui vai: - “Nós” somos os civilizados; temos, por isso, o direito – de acordo com a nossa fé (na razão, por um lado, um lado mais recente; no nosso deus, por outro, um lado abandonado com o laicismo da revolução francesa) – de subjugar o “outro”, ou seja, a natureza em função da necessidade de dela extrair matérias primas e conhecimento (a “verdade”); o selvagem, em ordem a iluminá-lo com o nosso progresso científico, as nossas instituições e – nesse sentido – domesticar o seu corpo para nosso serviço, de modo a integrá-lo funcionalmente enquanto “objecto” natural descontrolado; o “novo mundo”, cuja alteridade espacial e continental é integrada na lógica linear da marcha do “progresso”, isto é, uma seta que avança, do centro para a periferia, do núcleo para a margem: note-se como esta imagem subsiste nas nossas concepções de espaço, inclusivamente no modo como concebemos a percepção do turismo (a produção do “exótico”) e na maneira como ordenamos os nossos espaços urbanos (a descentralização do “subúrbio”), assuntos que desenvolverei a seguir. - O “outro”, enquanto natureza é um espaço “positivamente” à espera da nossa descoberta. Nesse sentido, nada mais há a fazer do que chegar lá e “desenterrar” os segredos que ela encerra. Assim, o conhecimento é como que um balde: as dádivas da 16 Nesse sentido, considera mos aqui que a tradição ocidental dos últimos 500 anos é uma tradição de violência. Poder-se-ia ir mais atrás (ao “platonismo elitista”, ou ao segregacionismo “estratificador” do direito romano, por exe mplo). Acrescentamos ainda, que essa tradição de violência não é, como é óbvio, exclusiva do ocidente. No entanto, como pretendemos criticar a “violência” dentro da tradição da razão abstracta e teleológica (utópica, finalista, universalista), é a violência enquanto tradição ocidental que deve mos criticar porque é a que nos é dado “conhecer” enquanto narrativa constituinte. Trata-se de criticar a violência enquanto associada ao princípio do lucro organizado e, por isso, associada à génese do capitalismo, do qual a última fase não se associa apenas ao estado-nação, mas cada vez mais às cidadesglobais (os trabalhos de Saskia Sassen são, nesse sentido, significativos) e à descentração do trabalho e das marcas: Naomi Klein, No Logo (London: Flamingo, 2001). 17 Embora do ponto de vista jurídico a tese vencedora tenha sido a de Las Casas e Francisco de Vitoria, na prática colonial a tese de Sepúlveda foi a mais marcante: Armand Mattelart, História da Utopia Planetária: Da Cidade Profética à Sociedade Global (Lisboa: Bizâncio, 2000), pp. 27/9. 18 Muito comuns dentro do modernismo literário na sua ambígua relação com a cidade: uma relação que combina o êxtase com a fuga solipsista. 3 natureza vão sendo retiradas, esventradas, colocadas dentro do formato que para elas destinámos; embora a ciência contemporânea venha colocar em causa este modelo (substituindo-o pelo da incerteza) é ele que ainda domina o nosso discurso do senso comum. A “verdade” está lá, no real, parada, disponível, e os grandes pioneiros (uma imagem ideológica constante na forma histórica como, por exemplo, a América se concebe a si própria 19) estão a desenterrá-la para nós; enquanto selvagem, o “outro” nada mais é que um receptáculo do nosso saber e – por outro lado – um repositório perigoso de energia vital que urge “controlar”; é que essa energia vital, se não for controlada, torna-se perigosa, uma vez que produz “barbárie”, ou seja, ainda não foi iluminada pelas nossas civilizadas e cinzentas instituições de adestramento; do ponto de vista dos continentes espaciais esta noção alarga-se, criando um fosso dicotómico difícil de ultrapassar: existe o ocidente do norte (civilizado, branco, limpo) e o resto (a barbárie, a diversidade, a sujidade) que, exactamente porque insiste em ser tudo o que nós não somos (a arrogância desta perspectiva é terrível, exactamente porque incorpora no conhecimento o paradoxo do desconhecimento, ou seja, aquilo que é desconhecido, que não se consegue abarcar, é “naturalmente” nomeado, linguarejado, como perigoso), tem que ser “domesticado” dentro dos nossos mecanismos de “controlo” institucional, que Michel Foucault tão bem descreveu e que Deleuze fortemente criticou. Daí que nos questionemos: não terá o “outro” (não terão os outros – plurais) descoberto que – para se fazer ouvir – tem que se manifestar “dentro” da “nossa” linguagem (a tecnologia)? Não estaremos a assistir a uma época de ricochete (ou “boomerang”, uma vez que a Austrália fez parte da “coligação da vontade” que atacou o Iraque!)? Não se terá a fé exagerada na razão transformado no tipo de racionalismo calculado que os positivistas transformaram em cartilha e que domina hoje a nossa atitude “exacticista” perante o conhecimento? É que, depois, tal concepção de conhecimento corresponde à produção de uma ideia de ignorância como estando “fora” (espacial e vivencialmente) de nós. Ou seja, são aqueles que assolam as nossas costas – os tais ignorantes do “progresso” e das benesses do ocidente que para cá desejam imigrar – que são vistos (na sua maioria dentro do cliché “muçulmano”: hordas de “bárbaros defensores da “burka” e da ablação do clítoris!) como tais. Esquece-se aí que derivam de sociedades eminentemente espoliadas pelas mesmas atrocidades já mencionadas (num mundo crescentemente desigual) e que foram sancionadas, no seu devido tempo, por justificações derivadas quer da fé na igreja, quer da fé na ciência (aliás, não conheço nada mais racionalmente bem calculado do que os campos nazis, tanto na cartilha do “evolucionismo” e da “vontade de poder” que lhes dá origem, como na própria indústria da vitimação de que hoje o mundo judaico se serve para perpetrar outros genocídios) 20. Vivemos num mundo onde a fé no laicismo (que substituiu a fé eclesiástica) se tornou dogma, ao ponto de não aceitarmos a diferença. Os bárbaros são sempre “outros”. Parece-nos que o grande problema de tais perspectivas passa por uma tentação inevitável na reflexão ocidental: a do universalismo teleológico já mencionado. Não conseguimos escapar – no nosso discurso comum (narrado também como prática do “usage du corps”) – à tentação da abstracção (modelos de beleza, arquétipos de civilização, etc.) e ao julgamento do “todo” por padrões concebidos como “aceitáveis” por “todos” (e portanto universais) nos quais se concretiza o “reino dos fins” de toda a 19 Para uma visão alternativa a este mito progressista: Howard Zinn, A People’s History of the United States (New York: Perennial Classics, 2003). 20 Ziauddin Sardar & Merryl Wyn Davies, Why do People Hate America? (Ca mbridge: Icon Books, 2002). 4 humanidade (teleologicamente concebida a partir do nosso modelo e não como humanidade plural). Deve salientar-se no entanto que um universalismo proposto a partir do imperativo da vida, da existência viva de um corpo necessariamente contextualizado, é necessário: até porque sem vida, sem a possibilidade da narração corpórea, originária, não existem definições – necessariamente plurais, diversas, contextuais – de vida; a ausência de vida é o nada, a violência absoluta, a total ausência de ser. Isto é diferente da habitual proposta que coloca como conceito fundador, por outro lado, a questão em relação à liberdade: há – ou não há – o direito a interpretar essa liberdade de acordo com contextos (que formam as próprias susceptibilidades dos corpos)? Se não houver, não estaremos a construir a violência paradoxal de não haver liberdade perante o próprio conceito de liberdade (ou seja, negando-se a igualdade de oportunidades perante diferentes conceitos de liberdade)? Nesse sentido, a “nossa” liberdade (a liberdade republicana, laica) apenas concede uma liberdade cinzenta, unidimensional, porque – ao basear-se num universalismo abstracto (a suposição de que todos querem o mesmo conceito universal de liberdade) – não concede o direito à diferença, ao debate, à comunicação inter-cultural que, ela sim, permitiria um conceito de liberdade construído “de baixo para cima” (das pessoas, das culturas, para as instituições) em vez de “de cima para baixo” (do universalismo dos poderosos para o “resto”). §4 – Importa agora dizer que, embora seja construída por multi-camadas, a narrativa dominante – e, nesse sentido, neo-colonial – tem como postura principal a axiologia anglo-saxónica e sócio-darwinista da dominação. Ela é perfeitamente visível em vários aspectos inerentes à “metafísica do casulo” como, por exemplo, a produção do espaço (subúrbios, centros, núcleos, margens, e periferias) o que envolve um estudo sobre a forma como o urbanismo contemporâneo produz, exactamente, esse “encapsulamento ontológico” de que se falava antes. De facto, o subúrbio (com estigma da contemporaneidade anglo-saxónica mas que se vem alastrando a outras ocidentalidades incluindo a portuguesa) é o domínio da modernidade nos seus aspectos mais “quadriláteros” (que vão dos formatos das casas aos planos de ordenamento urbano), isto é, de colocação da pessoa naquilo a que Heidegger chamava “o quadro mundial”. Na sua dicotomia com o “centro” (e, portanto, no seu perpetuar de um dualismo cartesiano) o subúrbio pode ser analisado nos seus diversos murmúrios, que vão do cinema (Hal Hartley, Todd Solontdz, Rosie Bardot, Pedro Costa) à literatura (Christos Tsiolkas, Douglas Coupland, Bret Easton Ellis, Luís Soares), passando pela música (por exemplo, o “hip-hop” como estética de resistência e denúncia da solidão) e pelas práticas artísticas que o denunciam (por exemplo, a instalação quando desafia e subverte a “quadratura” do museu, ou a fotografia da desolação, conforme ela surge em Nuno Cera). O subúrbio e o encapsulamento não podem, também, ser separados das suas condições históricas de surgimento (que passam claramente pela Inglaterra vitoriana e pela “taylorização” do trabalho que tem como consequência a longo prazo a “mediocratização” espiritual da classe média assente no conforto como medida da existência). Nesse sentido – e antecipando uma questão subsequente – o subúrbio é inseparável de um plano psicosomático: a obesidade e a paranóia não podem ser vistas fora da ligação com o trabalho, uma vez que este estende a mecânica do “quadrilátero”: do “aido de engorda” onde se trabalha ao cubículo onde se dorme e ao “quadrilátero” onde se vê o mundo (a TV) é toda uma “mecânica do quadrado” que se estende e que “passa” – literalmente – pelo “quadrilátero” automóvel. Os "media" entram por isso aqui, uma vez que a erosão da 5 democracia reside paredes-meias com a suburbanização da opinião, com a perda de civismo e com a crise da cidadania (associados à mitologia progressista e competitiva de base sócio-darwinista). A própria divisão do tempo sofre com essa mecânica e liga o subúrbio a outra questão que abordaremos: o turismo de massas; é que a viagem e a divisão férias/trabalho são parte de uma extensão imperialista da mesmidade moderna (onde se vive em plena narrativa galaico-newtoniana “espraiada” num conceito mecanicista da saúde como divisão entre espírito e matéria, lazer e trabalho). A própria educação sofre com isso: o espírito da produção do visível e do palpável leva à crise das humanidades e à burocratização da educação. Nesse sentido, a “metafísica do casulo” corresponde eminentemente à “cidade dualista” (acesso/negação, isolamento/cosmopolitismo, ricos/pobres, urbe/franja, privado/público, educação/escolarização, cultura/informação) 21. §5 – Outra área de referência para “apalpar o pulso” à modernidade unívoca é a questão do turismo de massas, não só no sentido de se analisar quem viaja (o que liga directamente esta questão à problemática do subúrbio, aos “fetiches” 22 do crescimento insustentável e à comodificação da classe média) – do ponto de vista da “viagem de pacote” – mas também o modo como se viaja e a sua produção do “exótico”, não só em termos de horizonte de expectativas produzidos pelos media23, mas também com base numa nostalgia da autenticidade perdida pelo mundo artificializado do dia-a-dia modernizado e tecnológico. Nesse sentido, a ontologia do turismo contemporâneo deixa muito a desejar em termos de respeito pelo “outro”, uma vez que o avanço de uma narrativa uniformizada pela globalização unívoca “empacota” a diversidade do mundo num modelo comercializável – e, sobretudo, consumível – por uma unidimensionalidade que é a nossa, a da civilização ocidental , sobretudo a que se manifesta sob a sua forma mais arrogante, que é a do “império” anglo-saxónico. Esse império, produto – na sequência do que foi dito antes – de uma vivência televisiva e suburbana completamente anti-cosmopolita, isolacionista, monadológica, cartesiana e automobilística, vê, no “outro exótico”, um escape ainda imperializável, ainda a corroer e, portanto, não respeitável na sua diferença (uma vez que sócio-darwinisticamente “sub-desenvolvido”). Além de Lingis escrever também sobre esta questão (isto é, sobre o modo corrupto dentro do qual essa ilusão de autenticidade é mantida pelo “turismo de pacote” no qual a exploração desse outro inapreensível se dá), são de destacar enquanto denúncias críticas as obras literárias de Alex Garland e Michel Houellebecq. Por outro lado, esta matriz cultural automatiza-se em discurso enquanto racionalização lógica mediada pelo espelho convexo do mundo chamado TV (a televisão também produz o turista e o turismo reproduz-se nela enquanto estereótipo). Oscilando entre o paradisíaco e o violento (ou o paradisíaco como “escape” do violento) a TV produz um simulacro visível desse fim indizível que levanta o discurso da culpa e da razão (os gregos e os judeus que falam em nós de modo coisificado). Nessa espiral de violência nada resta senão a própria violência, a imagem pura do mal em si, da morte espelhada – e espalhada – disseminada por uma tecnologia 21 O conjunto de referências para estas questões é bastante vasto. Para alé m dos estudos de Mike Davis, Saskia Sassen e Richard Sennett sobre ontologia urbana, cidade e globalização e, ainda, a crise da esfera pública, existe m também os trabalhos específicos sobre o subúrbio escritos por Howard Kunstler: Howard Kunstler, The Geography of Nowhere (New York: Touchstone, 1993). 22 Clive Hamilton, The Growth Fetish (Sydney: Allen & Unwin, 2003). 23 Edward Said, Covering Islam: How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the World (London: Vintage, 1997). 6 que a soube tornar abstracta, universal, analítica e metódica24. A técnica engordou as escalas, faz-nos viajar, mas faz-nos também pensar que o soldado desconhecido não tem, de facto, rosto. O século vinte (o "nosso", de um quinto da população mundial, convém dizer) - o culminar dessa modernidade de método, técnica, análise, universalismo e anonimato - trouxe-nos, de facto, a morte em "massa" (excepto, claro, se não contarmos as chacinas de nativos que perpetrámos nos lugares colonizados que hoje visitamos ... mas isso, como é óbvio, é um pormenor de somenos importância que não gostamos de lembrar "dentro" da história dos "vencedores"): hoje convivemos com bolas de carne putrefacta que fermentam o seu cheiro no nosso passado, mas cujo "perfume" de terror não passa pelo ecrã de TV. Os supostos "terroristas", que ninguém sabe muito bem quem são, mas a quem toda a gente aponta o dedo, desejosa (no seu horizonte cultural de expectativas) de lá ver as barbas de Rodolfo Valentino mascarado de Ali Babá no harém ... esse tal de "Bin Laden" hollywoodesco e simbólico, são imaginados nas nossas “transiências de pacote”, nas imagens de um outro inacessível para o qual temos uma resposta pré-fabricada pelas noções que antecedem a nossa partida física. O mesmo acontece com o “bom selvagem” que nos serve um “cocktail” em qualquer bar de uma praia possuidora de um mar paradisíaco: mas aqui a dicotomia maniqueísta funciona ao contrário. Assim, vivemos num universo de violência generalizada em cuja ÚNICA linguagem de encenação sabemos nadar. Condenamos hoje a linguagem da violência porque é exactamente ela a que nós entendemos melhor, isto é, a linguagem canibalesca, devoradora da alteridade, da diferença, do “outro”, em nome do ÚNICO, do “mesmo”, do monolinguismo redutor. É por isso que não toleramos que o outro se nos revele na nossa 24 Tanto na imagem televisiva da violência como na do paraíso, lembremos a tese de Huntington: a) o ocidente é superior ao resto; b) dentro do ocidente os “anglo-protestantes” são superiores aos outros. Tudo isto nos faz pensar num episódio que presenciámos quando visitámos a cidade fronteiriça mexicana de Tijuana. Se não houvesse pelo meio uma fronteira – aliás das mais restritas do mundo (uma vez que simbolicamente separa os que nada têm dos que, aparentemente, têm tudo) – Tijuana quase poderia ser vista como extensão suburbana de San Diego. Só que, ao contrário da simples passagem de uma linha de comboio (como é representada em “Touch of Evil” de Orson Welles … a representação contemporânea que consideramos mais próxima do que vimos é a de “Traffic” de Steven Soderberg) trata-se de toda uma mudança de mundo que ocorre. Ora, quando voltávamos de Tijuana para San Diego, e esperávamos na fila para que o passaporte fosse carimbado, presenciámos uma cena que guarda mos na memória como uma das maiores simbólicas da globalização racionalista do poder de que te mos memória: um mexicano desesperado, que tentava entrar a correr co mo ilegal por essa América dentro (pátria do "el-dorado" invertido onde, suposta mente, iria encontrar tudo aquilo de que foi espoliado na sua própria terra por séculos de imperialismo), é aprisionado por um guarda mexicano. Ao mesmo tempo que lhe colocava as algemas, o guarda virou-se para o seu "colega" louro do outro lado e disse: "três a dois: hoje ganho eu!". Para além da óbvia referência a cinco tentativas desgraçadas ocorridas nesse mesmo dia, o que fica deste episódio é a angustiante extensão do poder racional institucional. De facto, todo o sentido que é construído como membrana global (à maneira de Wittgnestein ao conceber a linguage m) é um sentido que exclui na sua dualidade, uma vez que só é concebido como integração num discurso comum. Assim, o discurso "aceite" corresponde à produção de um mecanismo de poder institucionalizado e de uma verdade estabelecida de modo unidimensional, exactamente porque é uma verdade que informa e representa no mesmo passo em que convoca e domina. É nesse sentido que, na tradição ocidental do discurso racional - da qual Huntington e o seu novo Who Are We? The Challenges to America’s National Identity (New York: Simon & Schuster, 2004) são um exe mplo actual - a produção do discurso sobre o "selvagem" e o "outro" (como o "chicano") é também a produção de um discurso sobre o que "não cabe", isto é, o inaceitável, o incomensurável (não é à toa que Huntington, em livros antigos, chegou a legitimar o "apartheid" sul-africano). 7 linguagem. Não toleramos que ele nos fale como nós entendemos: nem conseguimos, exactamente porque não podemos tolerar em nós a continuidade dessa mesma fala ÚNICA. Acabar com a violência tecnológica em massa (essa tal que generalizámos, uma vez que violência - enquanto tal - existe em todas as culturas) começa exactamente aí: no momento em que reconhecermos aquela que cometemos. Só na abertura a linguagens diferentes poderemos perceber que em Hiroshima, em Nagasáki, no Vietname, na Coreia, no Afeganistão, em Nova Iorque, nos "Gulags" sovieto-chineses, no Cambodja, em Bali25 ou em Madrid (por outro lado, também, nas versões domadas, adestradas, hibridizadas, encarceradas e “new-age” do “bom selvagem” que vemos no holismo indiano, na fluidez tailandesa, no orgulho malaio, no sorriso fugidio do Pacífico polinésio, no ritmo africano ou no nomadismo dos aborígenes australianos26) se falou sempre da MESMA maneira, de uma ÚNICA maneira. O que é grave é que - na linguagem da culpa e da razão - se continua a falar. Afinal, continuamos a perder oportunidades para tornar a violência criativa: para, a partir dela, repensarmos o modo de apresentação pelo qual situamos perante o mundo aquilo a que arrogantemente decidimos chamar "civilização". §6 – Outra área que estaria intimamente relacionada com a produção urbana do turista enquanto agente de uma “metafísica de casulo” é a dicotomia entre “segurança” e “insegurança”: ela revela mecanismos de controlo geradores – mediaticamente – de uma noção rígida de “terror” e barbarismo que se torna patológica. Nesse sentido, a educação paralela nas sociedades mediáticas reduz o afecto em função do poder, produzindo um esquecimento da espontaneidade que conduz a um primado do real enquanto real artificializado. A imagem gere assim a espontaneidade enquanto adestramento. Somos “vigilantes/vigiados” e essa utilização do controlo visual é reproduzida como insegurança pelo discurso mediático que vê o mal como estando sempre “fora”, mas pronto a invadir, isto é, a entrar-nos pela casa a dentro, a violar o que é “nosso” 27. Nesse sentido, o trabalhador mediano, residente no subúrbio e possuidor de uma televisão e de um automóvel28, esquece a autonomia em função de um sucesso no qual delega poder em 25 Aliás, Bali é um bom exemplo dos dois lados do “terror”: não só porque lá aconteceu um momento de “terror” bélico, mas porque há muito que lá acontece o “terror” escravizante da prostituição inerente ao turismo sexual. 26 Damos estes exemplos porque correspondem ao nosso próprio nomadismo de viagem que teve oportunidade de tentar “ler” tais “locais”, na consciência de que, em alguns momentos, o nosso olhar terá sido também imperialista, apesar da mestiçagem que o constitui, isto é, o não se considerar apenas português, brasileiro ou moçambicano, mas sim um olhar nómada que tem como casa a língua portuguesa, lugar heideggeriano do riso, do choro, do pensamento, da emoção. Temos consciência que tal leitura corresponde a um real que não conhecemos, mas que temos necessidade de reproduzir enquanto sentido. O grande erro seria pensar que a nossa linguagem que reproduz tal sentido é única (uma proto-imperialidade que negaria qualquer semiótica alternativa da realidade cuja face vemos, mas cujo rosto desconhecemos). É por isso que nós, quando nos ve mos confrontados com sociedades que têm nomes para as pequenas subtilezas da natureza, para os caprichos das paixões humanas (o tétum, por exemplo, tem 5 expressões para vingança, ou mais, e pelo menos 3 ou 4 para o miolo de uma palmeira) para o dealbar das estações, ou para as simulações divinizadas, não somos capazes de mais que um simples esforço metonímico. É por isso que esses eventos produtores de sentido, essas transiências que a maioria dos seres “normais” da nossa civilização qualificaria de “irracionais”, precisam de uma racionalidade “outra”, aberta, porque não cabe nos espaços da logomaquia rígida que foi criada pela racionalidade geográfico-contextual com a qual nos habituámos a conviver. 27 É esta a ideologia da paranóia que surge nos discursos sobre as migrações. 28 Por vezes, dada a desafectação da política, també m eleitor. 8 troco de uma segurança feita de hetero-domínio29 abstracto (concretizado em dispositivos como telemóveis, câmaras de segurança, cartões electrónicos, etc.). Há, por isso, um desligamento por delegação, um alheamento por cristalização: o padrão do sistema (e isto é cada vez mais verdade na esfera pública, tanto quanto na privada) reside em domesticar focos de discurso resistente em troca de um cárcere securitário. Negando a vitalidade, o enquadramento (“quadrilátero”) do sistema obriga os seus “funcionários” a fugirem de si próprios, a serem geometrizados e a entrarem num esvaziamento de emoção que, ao ser reinvestido como poder, toca os laivos da psicopatia. Somos, em certo sentido, mortos aos poucos na nossa vitalidade interior para podermos – apenas – sobreviver seguros porque soubemos delegar nos poderes vigentes a “guarda” perante nós próprios (é por isso que a maioria dos funcionários só “ladra” à voz do “dono” que os alimenta e protege, perpetuando as vozes institucionais e com elas um poder sem rosto). É este esvaziamento da autonomia que produz inveja, a ânsia do “ter” para substituir o “ser” que perpetua o mercado. O indivíduo normal (homem30 branco heterossexual ocidental) corresponde a uma identidade “macdonaldizada” 31, controlada, psicopatologicamente civilizada como ânsia de posse, de apropriação. É o medo32 – induzido mediaticamente e reproduzido patologicamente – que gera a identificação com o poder, com a necessidade de liderança que desfaça o caos da dúvida33. É esse medo, esse poder de disciplina social que invade a esfera do trabalho, da habitação, do próprio lazer, em nome da “segurança”, que aqui se denuncia 34. §7 – Por fim, também mencionada em relação orgânica com as áreas anteriores, surge a questão do trabalho. Também esta esfera contribui para uma mentalidade de confinamento na qual somos “vítimas” e “verdugos” de modo simultâneo (disseminadores de mecanismos de vigilância panóptica induzidos de forma mediática). Na área do trabalho, assistimos hoje à substituição da ética pela competitividade, da estabilidade (por mais alienante que esta fosse, no domínio da divisão “fordista”) pela flexibilização. Isto alterou os mecanismos de estabilidade relacional, fazendo com que haja uma profunda mentalidade de desligamento em relação à comunidade, ao próximo, ao “outro”, à relacionalidade e à construção de valores públicos. Nesse sentido, assiste-se a uma privatização dos comportamentos que contribui não só para uma crise da cidadania, mas também para um esvaziamento das noções de responsabilidade e compromisso com o respeito, o que, obviamente, produz desigualdade 35. Em certo sentido, o mecanismo de produção do carácter em função do trabalho no capitalismo tardio é – em consonância com a anterior referência à mediatização da segurança – um 29 É curiosa a frequência – entre os agentes do poder (privados ou públicos) de expressões como “estou a cumprir o meu dever”, “as coisas não são como a gente quer”, etc., que evidenciam o descartar da responsabilidade autónoma em função da institucionalização da vontade. 30 A descriminação deste modelo do único é também uma questão de género. 31 O trabalho de George Ritzer continua a ser actual: George Ritzer, The Macdonaldization of Society (London: Pine Forge Press, 1993). 32 Só a construção de laços éticos, enquanto actos de responsabilidade colectiva para com a alteridade, recria a esperança e a possibilidade da alegria contra o medo. 33 Estes processos de idealização, frequentes nas ditaduras, surgem nas sociedades contemporâneas como formas disseminadas pelos bens materiais, pelos líderes políticos, ou pela produção do exótico. 34 Um bom ponto de partida: Michel Onfray, A Política do Rebelde: Tratado de Resistência e Insubmissão (Lisboa: Instituto Piaget, 1999). 35 Nesta área são bastante importantes os trabalhos de Richard Sennett. 9 mecanismo produtor de doença. Resta saber, no entanto, o que entendemos por isto, uma vez que tal é relativo ao nosso conceito contextual de normalidade e loucura, isto é dos mecanismos racionais que regem a nossa modernidade enquanto tradição de pensamento que define: isto é, que encerra dentro de um logocentrismo agrilhoante e que, por isso, exclui (no mesmo passo). A dobra – a possibilidade para escutar alteridades – é assim algo que nos escapa, na nossa velocidade, na nossa pressa de uma vida controlada por horários, por ciclos (contas para pagar, ordenados, semanas, consumo, etc.), isto é, modos pelos quais o sistema da racionalização nos aprisiona numa rede de referências absolutamente inescapável. É aí que surge a interrogação: de onde poderá vir a estrutura para reaprender a escutar um silêncio no qual se gere a esperança de poder dar voz ao murmúrio do “outro”? §8 – Porque, após a crítica dos processos de enquadramento do pensamento (“quadriláteros” da razão) terá que ficar a esperança, marca de um desejo desse diálogo inter-cultural que, da parte do ocidente, me parece não existir. Vítimas do sóciodarwinismo dominante de matriz anglófona, não tomamos por vezes atenção às vozes outras que, de dentro de uma exterioridade que se interioriza para se fazer escutar por nós, clama por ser ouvida 36. Num livro intitulado "O Harém e o Ocidente" 37, a intelectual marroquina Fatema Mernissi traça uma parábola retirada das "Mil e Uma Noites" sobre as "asas" das mulheres e que lhe fora ensinada pela sua avó, ela mesma prisioneira de um harém (semelhante, em termos de escravatura, àqueles que temos hoje nas nossas cidades e nos quais bons "homens de família" esvaem desejos de exotismo com escravas brasileiras e ucranianas ... tudo bem guardado "debaixo da carpete"). Segundo tal parábola, a avó de Fatema dizia-lhe que o harém era um atribuir de "asas" às mulheres, uma vez que os homens as fechavam lá por terem medo dos seus poderes. Quando confrontada com jornalistas ocidentais que a interrogavam, obviamente trocistas, sobre esta situação - muitas vezes dada como adquirida pelas mulheres da sua cultura - Fatema consciencializou-se (viajar tem destas coisas ... ajuda a romper complexos, intolerâncias e preconceitos) da sua ignorância: percebeu o muito pouco que sabia sobre os homens ocidentais e os seus hábitos, isto é, entendeu que o seu juízo não era universalizável, não lhe possibilitava abarcar o estrangeiro, o diferente; apenas permitia vesti-lo com "roupagens" suas, representações familiares e apressadas. Ora é exactamente essa ambição de universalismo discursivo - própria do linguarejar europeu e comum tanto à direita como à esquerda "fantasmaticamente" marxista e herdeira da tradição das luzes que é incapaz de abandonar o sindroma teleológico da generalização “orientalista”. É nesse sentido que Mernissi nos deixa uma esperança de diálogo que parte do “outro”, ou seja, uma esperança de que seja possível ter uma suspensão daquilo que nos faz ver no mesmo saco (ou no saco do "mesmo") um processo de múltiplas vozes que nós mesmos transformámos em único, uma vez que utilizador assíduo das nossas armas, armas com as quais o armámos para que o pudéssemos entender, isto é, abarcar. De facto - e permanentemente de forma lamentável - só autorizamos que o outro se revele num discurso que seja por nós apropriável e passível de entendimento solipsista. É por isso que às múltiplas vozes da dissidência temos que chamar "proletários" ou 36 Edward Said pode ser um bom exemplo, embora a maior parte da sua obra seja uma denúncia do nosso imperialismo. Fá-lo, contudo, de um ponto de vista “outro” com a linguagem do “mesmo”. 37 Fatema Mernissi, O Harém e o Ocidente (Porto: ASA, 2001). 10 "trabalhadores" 38. Na ânsia de um verbo que abarque, usamos o que nos resta da tradição metafísica vazia (os proletários são hoje a acefalia do consumo pacificado sob a forma de uma carta branca de totalitarismo chamada "voto") sem sermos capazes de escutar o silêncio. É nessa incapacidade de escutar o silêncio que investimos de poder os tais "líderes corruptos" que - na nossa ausência mascarada - vão sendo agentes da contínua colonização que vamos mantendo e aos quais damos lautos banquetes de casamento como prémio pela sua cumplicidade "bem comportada". Tal não acontece apenas no caso de Angola. Existem imagens televisivas - para não me alargar em exemplos - de um tal Rumsfeld a entregar uma encomenda de armas a um tal Hussein durante a guerra IrãoIraque. Contra isto, a parábola de Mernissi é de esperança, a mesma esperança de Lingis que, em entrevista 39, se situava ainda no plano de uma combinação da esperança com a coragem para ter essa esperança. É na coragem que somos capazes de continuar um caminho quando somos confrontados com o desespero da morte (e ele abunda). A vida é por isso um fluxo para lá do desespero, um movimento em direcção à dádiva, uma errância que busca o que é comum ao sorriso do “outro” (mas também à sua lágrima, a essa angústia de morte que sentimos como comum). Tal experiência de vida enquanto esperança corajosa não é, portanto, uma experiência normal, comum, “quadrilátera”: ela é uma experiência da sensibilidade em direcção à existência, uma experiência da responsabilidade para connosco no EXACTO E PRECISO momento em que a sentimos para com o “outro” (responsabilidade para com o outro em mim, para o que de mim está no “outro”). Experiência da esperança, da coragem, da responsabilidade, essa experiência é nómada, isto é, é uma viajante 40 do encontro permanente da alteridade que escapa à definição. É assim – em outra metamorfose – a experiência da sensibilidade hospitaleira 41, da profunda ligação da vida com a compaixão e com a dádiva que é possível fora do “quadrilátero” da alienação quotidiana que tendencialmente exportamos. Nesse sentido, a esperança da abertura do diálogo inter-cultural só é possível num plano que o pense enquanto ética do encontro com o “outro”, isto é, no plano de uma ética relacional que subjaz ao diálogo inter-cultural. Tal ética não pode, ainda, ser vista como condicionalismo uma vez que todo o condicionalismo é premeditação. Ela é uma ética de laços, isto é, uma ética que rompe com a artificialidade quotidiana (a mesma que produz a reificação da linguagem e a crença absoluta de que o discurso “espelha” o mundo) para propor partilha e paz (porque a paz só é possível na partilha). O laço é, por isso, um acto de responsabilidade hospitaleira, uma sensibilidade aberta um princípio de confiança, um responder incondicional por essa vida que se me apresenta, por vezes, apenas como um espaço de sorriso que antecede a linguagem. Lingis, na sua busca da comunidade com 38 Não concordamos por isso com a ideia de António Negri de que contra a metafísica da soberania, seja necessário um discurso do limite, da relacionalidade, da CLASSE: Porquê classe? À ideia de Negri de que a revolução global é um êxodo voluntarista do sistema, preferimos aquilo que Deleuze propôs: desestabilizações, crises locais, subversão intra e inter-institucional, fugas e fluxos imanentes, migrações e nomadismos que tê m em conta a linguagem do sistema POR DENTRO enquanto fugas involuntárias que não precisam de qualquer consciência de classe (no plano da esperança, classe somos todos nós). 39 Murmurs of Life: A Conversation With Alphonso Lingis, Mary Zournazi, Hope: New Philosophies for Change (Sydney: Pluto Press, 2002), pp. 22-41. 40 Não é uma turista. 41 Uma hospitalidade que desidentifique o “mesmo” pela aceitação do “outro” sem a tentação do assimilacionismo: Jacques Derrida, O Outro Cabo (Coimbra: A Mar Arte, 1995). 11 aqueles em relação aos quais nada temos de comum, fala em determinado momento no sol: o sol é uma fonte de vida, mas não sabemos (antes ainda de contribuirmos para que ele nos destrua através das grandes “luzes” industriais do nosso “progresso”) como os vários contextos o interpretam, isto é, isso é uma barreira inultrapassável. No entanto, sabemos que ele é comum, que ele é uma dádiva sem troca (sem a mecânica da troca) que está perante nós. Nesse momento, no momento em que nos confrontamos com essa realidade inamovível, estabelecemos uma descontinuidade, uma ruptura com os nossos mecanismos alienantes, e percebemos a imensidão da alegria da partilha: talvez sejam estes laços que ajudem a erguer uma lateralidade inter-cultural ligada à esperança. Francisco Nazareth 12