Narrativa na Prática e na Investigação sobre as

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Narrativa na Prática e na Investigação sobre as
Narrativa na Prática e na Investigação sobre as Investigações
Matemáticas dos Alunos 1
Hélia Margarida Oliveira
Introdução
Este texto pretende descrever um estudo com duas professoras do 3º ciclo que
trabalharam com investigações matemáticas nas suas aulas. Estas professoras,
possuindo formação e experiências profissionais distintas, apresentaram, sob a forma de
narrativas, algumas das suas perspectivas sobre a natureza das investigações
matemáticas e sobre o seu próprio papel, assim como do tipo de interacções que
tentaram promover na aula.
As investigações matemáticas incluem numerosas situações novas para os
professores (Mason, 1991). Elas podem ser bastante desafiadoras no que respeita à
organização da sala de aula e à sua dinâmica, especialmente porque há poucos materiais
disponíveis e a estrutura do currículo é muito centrada em torno dos conteúdos (Ponte
et al., 1997). Esta investigação procurou também analisar como os professores lidam
com estas situações.
A metodologia adoptada neste estudo facilitou uma reflexão profunda por parte
dos professores sobre a sua prática e criou uma base para a comunicação entre as suas
ideias e as da investigadora. Esta experiência levanta possíveis questões quanto à
relação entre a prática e a investigação.
Porquê narrativas?
As histórias e as narrativas são lugar comum na nossa vida diária. Em épocas
recentes elas transformaram-se também em objecto de interesse na educação. De acordo
com Bruner, “organizamos a nossa experiência e a nossa memória dos acontecimentos
humanos sob a forma de narrativas - histórias, desculpas, mitos...” (1991, p. 4). As
narrativas ajudam-nos a colocar ordem e coerência à nossa experiência e a dar
significado aos incidentes e aos acontecimentos na nossa vida.
Nos estudos da literatura as histórias são vistas como um tipo especial de
narrativa (Scholes, 1981). Além da existência de uma sequência temporal de eventos
que possuem alguma relação entre si, é também possível identificar uma projecção de
valores pessoais nas histórias. De acordo com Carter (1993), a história:
i) envolve uma situação significativa difícil, um conflito ou uma
contenda;
ii) inclui um ou mais protagonistas animados que tomam parte na
situação com um objectivo;
iii) é uma sequência com causalidade durante a qual o protagonista
resolve, bem ou mal, a situação difícil. (p. 6)
As histórias constituem uma forma apropriada de representar e de interpretar a
acção. Uma vez que esta é, geralmente, complexa e imprevisível, condicionada por
muitos factores, as histórias captam-na eficazmente por causa da sua multiplicidade de
significados. Mas as histórias são " também um modo de conhecimento que provém da
acção " (Love, 1994, p. 144), consequentemente, podem mostrar-nos como as ideias se
apresentam na acção.
Estas características das histórias fazem com que se apresentem como um meio
interessante e poderoso para ter acesso ao pensamento e ao conhecimento dos
professores, considerando como Carter que este “contrasta fortemente com as estruturas
conceptuais exemplificadas nas disciplinas académicas formais, isto é, no modo
paradigmático de saber” (1993, p. 8). O conhecimento dos professores é não-linear,
holístico, impregnado de significado pessoal, e em boa medida tácito (Elbaz, 1991).
Esta autora afirma que:
a história é a verdadeira essência do ensino, a paisagem na qual vivemos
como professores e investigadores e na qual o trabalho dos professores
pode ser encarado como fazendo sentido (...) o conhecimento dos
professores é nos seus próprios termos ordenado pela história e pode ser
melhor entendido desta forma. (p. 3)
A investigação narrativa pode facilitar a aproximação à opinião, ideias,
experiência e prática dos professores, a partir das suas próprias percepções. Na
verdade, as descrições que os professores fazem do seu ensino estão, a maioria das
vezes, repletas de informações que provêm da prática, frequentemente, assumindo a
forma de histórias.
Metodologia
Este trabalho insere-se num projecto colaborativo mais amplo que integra
professores e investigadores trabalhando conjuntamente na criação e realização de
tarefas que envolvem os alunos em investigações matemáticas (Ponte et al., 1997). Este
estudo particular foi conduzido pela autora que propôs o desenvolvimento de algumas
aulas com investigações matemáticas, a duas professoras, Isabel e Teresa, ensinando em
escolas secundárias diferentes, nos subúrbios de Lisboa. A investigadora apresentoulhes diversas tarefas que as professoras, individualmente, escolheram e adaptaram.
Isabel ensinava há 17 anos e não tinha experiência neste tipo de actividade.
Teresa era professora há 12 anos e considerava ter experiência neste campo. Cada uma
delas escolheu uma turma do 8º ano para desenvolver as tarefas. Ambas as turmas
tinham, aproximadamente, 30 alunos e, em ambos os casos, as professoras decidiram-se
pelo trabalho de grupo nesta experiência. As investigações matemáticas foram
realizadas em duas ou três aulas de 50 minutos.
A metodologia da investigação inseriu-se no paradigma interpretativo e
envolveu a construção de dois estudos de caso. A recolha dos dados incluiu a
observação de aulas, com gravações audio e vídeo, a realização de entrevistas e de
reflexões após as aulas. Entre outras, foi desenvolvida uma análise narrativa, seguindo
o modelo de avaliação de Labov (Cortazzi, 1993). Trata-se de uma abordagem sociolinguística, tendo em conta as propriedades formais da estrutura das narrativas em
relação com as suas funções sociais. Em termos de estrutura, Labov considera seis
partes em certas narrativas orais, que podem ser encaradas como respostas a questões
formuladas pela audiência:
Estrutura
Resumo
Orientação
Complicação da acção
Avaliação
Resolução
Coda
Questão
Sobre o que é?
Quem? Quando? O quê? Onde?
Então o que aconteceu?
E então?
O que aconteceu finalmente?
(transporta o ouvinte para o presente)
Estas histórias envolvem algum tipo de conflito (complicação) que deve ser
resolvido de alguma forma (resolução). Durante as reflexões sobre as aulas com as
investigações matemáticas, Isabel e Teresa contaram diversas histórias, embora
dispersas pelo seu discurso. A investigadora reconstruiu cada história, unindo os
elementos de um mesmo tema, mostrando-a de seguida às professoras para que
manifestassem a sua opinião sobre essa versão.
Histórias de professores: dois exemplos
As duas histórias seguintes expressam alguns dos dilemas que estas professoras
enfrentaram ao realizar investigações matemáticas nas suas salas de aula. Estas
histórias dizem respeito a duas tarefas diferentes, ambas envolvendo, porém, a
identificação de regularidades numa sequência de números construída pelos alunos.
Num segundo momento, relatado na história 2, os alunos procuraram escrever a
expressão geral da sequência.
História 1 - Isabel
A maior dificuldade que eu senti foi desempenhar o papel a que me
propus: não ser tão directa como habitualmente. É que às vezes dá
mesmo vontade de dar um empurrãozinho, sobretudo àqueles que têm
mais dificuldades. Esses estão sempre à espera do ponto, que eu sirva de
ponto. [ Resumo ]
Isso aconteceu no grupo do Tiaguinho, quando estava analisar as
questões acerca da diagonal. [ Orientação ]
Ele às vezes mexia a boca, mexia a boca ... mas eu quando o vejo mexer
a boca já sei que ele está à espera que seja eu a dar a resposta.
[ Complicação da acção ]
De maneira que aí tive que me controlar e colocar questões mais
orientadoras e não dar respostas, como às vezes me estava mesmo a
apetecer. [ Resolução da acção ]
Penso que essa é a parte mais difícil na coordenação dos trabalhos.
[ Avaliação ]
Mas nas fichas de investigação se sou eu a dar a resposta acabo por ser
eu a investigar e não eles. [ Coda ]
Isabel fala sobre a sua dificuldade em desempenhar um papel diferente com que
não estava familiarizada. Pretendia que os alunos encontrassem as regularidades por
eles próprios mas estes, por sua vez, esperavam pela ajuda da profesora. Nesta história
Isabel dá o exemplo do Tiaguinho, um dos alunos, que frequentemente mostrava que
necessitava de apoio por mexer os lábios mas sem dizer nada. Esta acção foi
compreendida facilmente pela professora que não quis agir da maneira que o aluno
esperava (complicação). Procurou agir de acordo com um novo papel fazendo
perguntas, apesar de um forte apelo para ser mais directiva e para dar as respostas
(resolução). Esta história expressa um sentimento de sucesso por parte da professora
embora tenha vindo a enfrentar este tipo de problema em diversas ocasiões. Refere que
não é fácil para ela integrar todos os aspectos deste novo papel na sua prática.
História 2 - Teresa
Houve uma altura que eu achei que eles não iam conseguir lá chegar (à
expressão geradora) porque estavam muito agarrados a isto, à expressão
dos números. Então, houve alguns grupos em que eu fui dizendo
“Vejam como é que contam os fósforos. Arranjem uma maneira
sistemática de contar” e não sei quê. [ Resumo ]
Porque, como foi assim que eu lá cheguei, achei que era a melhor
maneira. [ Orientação ]
Mas depois pensei assim, “quem é que me diz que os miúdos não
chegam lá de outra maneira?” [ Complicação da acção ]
Então deixei de dizer isto. Pensei, “Não digo nada, absolutamente nada,
nem que eles não descubram nada a aula inteira.” E fiquei realmente
com a sensação que eles não iam descobrir nada a aula inteira, que não
iam descobrir a expressão geradora. [ Resolução da acção ]
E ao fim e ao cabo aqueles outros dois grupos conseguiram lá chegar
por outro processo. De maneira que não sei se não é melhor não lhes
dizer nada e deixá-los a desenvencilharem-se e depois logo se vê.
[ Avaliação/Coda ]
Neste caso, a tarefa em que os alunos estavam a trabalhar envolvia uma
sequência de quadrados formados por fósforos. Teresa decidiu ajudar os alunos a fazer
uma generalização do número de fósforos para cada quadrado. Através da sua sugestão
pretendia conduzi-los para o processo que ela utilizou para abordar esta questão. Mas
então interroga-se a si própria sobre esta forma de actuação (complicação). Decide não
fazer mais sugestões daquele tipo ainda que os alunos tenham grande dificuldade em
conseguir atingir os objectivos desta tarefa (resolução). Como existiram dois grupos
que encontraram a expressão geral pretendida de uma maneira diferente, a professora
julga ter tomado a decisão certa (avaliação). Noutras histórias, porém, expressa
novamente dúvidas sobre o não ser directiva quando os alunos não são bem sucedidos.
A partir da análise de dados, em geral, e da análise narrativa, em particular, foi
possível distinguir cinco características principais a respeito do papel das professoras:
(1) criar condições para o desenvolvimento da actividade, (2) predispor para a
actividade, (3) sustentar a actividade, (4) promover o desenvolvimento do processo
investigativo e (5) promover a comunicação e o desenvolvimento de conceitos e
procedimentos. As professoras descreveram os diversos dilemas que enfrentaram ao
desempenharem o seu papel nas investigações matemáticas, a saber, apoiar os alunos
sem dar as respostas, fornecer sugestões sem desviá-los do percurso que tomaram e
pedir justificações até um grau razoável.
Reflexão sobre o estudo
Com este estudo pretendia-se conhecer as perspectives das professoras sobre a
natureza das investigações matemáticas e o papel do professor e dos alunos. As
histórias, em especial, ajudaram-nos a compreender as dificuldades e os dilemas que as
professoras enfrentaram. Além disso, a análise narrativa permitiu aceder às histórias
que estruturam a experiência das professoras com as investigações matemáticas. Por
exemplo, Teresa contou algumas histórias sobre outras situações quando quis expressar
as suas perspectivas ou justificar algumas das suas acções. Isabel contou algumas
histórias muito expressivas sobre esta experiência a outros colegas.
Estas professoras encararam este estudo como uma oportunidade de alargar e
melhorar a sua prática. Mostraram-se muito interessadas em experimentar novas tarefas
e em fornecer um contexto rico para a actividade. Também valorizaram a possibilidade
que surgiu de reflectirem sobre a sua prática de uma maneira sistemática. Esta curta
experiência sugere que as histórias são um campo prometedor para promover a reflexão
dos professores. Estas histórias podem ser pessoais ou de um outro professor e
constituir um começo para a reflexão pessoal.
Apesar de todas as vantagens identificadas nesta metodologia de investigação,
existem alguns pontos críticos. O facto da investigadora estar presente na sala de aula
pode ter contido as professoras de falarem mais, contando mais histórias, supondo que
são relatos conhecidos. Este obstáculo será menos importante quando o professor já tem
outras experiências com estas actividades, tal como era o caso de Teresa. A observação
das gravações vídeo das aulas pode facilitar a reflexão sobre a prática e o surgimento de
histórias. Porém, há que ter em conta que esta metodologia exige muito em termos de
tempo dispendido, dado que exige a realização de reuniões com uma certa regularidade
e a subsequente escrita das histórias para garantir o feedback do professor, num curto
espaço de tempo.
A concluir
2
Duas das ideias principais discutidas neste Grupo de Trabalho foram:
• Como pode o investigador transmitir os resultados da investigação numa
linguagem e num modo de comunicação que sejam acessíveis ao
professor? Existe uma "didáctica da comunicação”?
• Quais são as circunstâncias que permitem um confronto positivo e
complementar entre as perspectivas do observador e do actor?
Este estudo sugere que dado que as histórias são constituídas pelas palavras do
próprio professor, torna-se mais fácil para este compreender a mensagem do
investigador e sentir-se envolvido na investigação. Curiosamente, quando estas
professoras leram o material ficaram surpreendidas porque não se recordavam de ter
contado a maior parte das histórias. Contudo, manifestaram o seu agrado por
considerarem que elas expressavam os seus sentimentos. O material escrito foi
assumido pelas professoras como tendo significado para elas e não apenas como sendo
a construção da investigadora.
Para a professora Teresa, por exemplo, esta metodologia ajudou-a a recordar os
acontecimentos significativos que estruturam a sua maneira de ver e de tratar as
investigações matemáticas na sala de aula. Isto, provavelmente, teria sido mais difícil
de alcançar se se tivessem colocado perguntas directas sobre as suas perspectivas. De
facto, Teresa referiu, diversas vezes, à investigadora a sua dificuldade em falar
abstractamente sobre as suas ideias e sobre a sua prática.
A investigadora tinha um bom grau de familiaridade com as duas professoras, o
que ajudou muito. Havia um bom relacionamento e confiança mútua que facilitaram
que as professoras fossem genuínas nas suas afirmações e que se sentissem à vontade
para expressar os seus sentimentos e ideias. Considero que a minha disposição para
aprender com esta experiência foi, igualmente, determinante: pretendia, de facto,
aprender sobre investigações matemáticas, o que fui permanentemente recordando às
professoras.
Deste estudo, realça-se ainda que o confronto entre as perspectivas
complementares do observador e do actor pode ser enriquecido pela constituição de
equipas mistas, observando e reflectindo sobre a prática. Mas detectam-se, ainda,
alguns obstáculos ao trabalho colaborativo, nomeadamente, porque não é fácil para
muitos professores abrir as suas salas de aula a outros. Devemos tentar compreender
mais profundamente as razões por detrás desta resistência (Hargreaves, 1993). Por
outro lado, devemos ser cuidadosos para não nos apropriarmos indevidamente das
histórias dos professores.
Referências
Bruner, J. (1991). The Narrative Construction of Reality. Critical Inquiry, 18, 1-21.
Carter, K. (1993). The Place of Story in the Study of Teaching and Teacher Education.
Educational Researcher, 22 (1), 5-12,18.
Cortazzi, M. (1993). Narrative Analysis. London: The Falmer Press.
Elbaz, F. (1991). Research on Teachers’ Knowledge: The Evolution of a Discourse.
Journal of Curriculum Studies, 23, 1-19.
Hargreaves, A. (1993). Individualism and Individuality: Reinterpreting the Teacher
Culture. In J. Little & M. McLaughlin (Eds.), Teachers’ work, individuals,
colleagues and contexts (p. 51-76). New York: Teachers College Press.
Love, E. (1994). Mathematics Teachers' Accounts Seen as Narratives. In L. Bazzini
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Mason, J. (1991). Mathematical Problem Solving: Open, Closed and Exploratory in the
UK. ZDM 91/1, 14-19.
Ponte, J. P., Ferreira, C., Brunheira, L., Oliveira, H. & Varandas, J. (1997).
Investigating Mathematical Investigations. In P. Abrantes, J. Porfírio & M. Baía
(Eds.), Proceedings of CIEAEM 49 (pp. 3-14). Setúbal, Portugal.
Scholes, R. (1981). Language, Narrative, and Anti-narrative. In W. J. T. Mitchell (Ed.),
On Narrative (pp. 200-208). Chicago: University of Chicago Press.
Notas
1
Tradução do texto original, em inglês, “Narrative in Practice and in Research on
Students’ Mathematical Investigations” incluído nas actas do CIEAEM 50 (Neuchâtel,
1998)
2
Este Grupo de Trabalho dedicou-se à discussão das ligações entre a investigação e a
prática.

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