Por que precisamos falar de gênero e educação?

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Por que precisamos falar de gênero e educação?
Por que precisamos falar de gênero e educação?
Júlia Oliveira
Nos últimos anos, não apenas no Brasil, temos assistido a um intenso e
controverso debate sobre o conceito de “gênero” na educação1. A categoria gênero tem
sido abordada, sobretudo por setores políticos conservadores e religiosos ortodoxos,
como uma ideologia que é capaz de provocar uma “confusão mental” nas crianças e
levá-las “escolher” sua orientação sexual. Assim, a “ideologia de gênero” é apresentada
por estes como um “mal” a ser combatido pelos pais, pois contraria os princípios morais
e religiosos da família. A educação, aqui, não é compreendida como os conhecimentos
adquiridos em uma escola, mas sim, exclusivamente, como o conjunto de valores
morais instituídos no núcleo familiar. A escola, de acordo com estes princípios, tem
função como um espaço de transmissão de conhecimentos, sendo que a(o)s docentes
não podem discutir com a(o)s educandos temas atuais ou contribuir para a formação
ética e cidadã da(o)s educandos, bem como não podem tratar de temas que confrontem
os princípios morais e religiosos de sua família. Lembrando que as salas de aula
brasileiras são compostas por jovens de diferentes níveis sociais, religiões, núcleos
familiares, etnia, etc. Mas, notoriamente, a família defendida neste discurso trata,
exclusivamente, dos núcleos compostos por um casal heterossexual e seus filhos; do
mesmo modo que ao enfatizar o respeito à religião, refere-se às Igrejas católicas,
protestantes e neopentecostais, excluindo as religiões de matrizes africanas; haja vista os
processos de intolerância que estas têm enfrentado em nosso país2.
Essas argumentações apresentam uma visão equivocada do conceito, porém, a
censura à palavra “gênero” na educação tem ganhado espaço cada vez maior no cenário
político institucional. Na cidade de São Paulo, em 2015, por exemplo, a Câmara
Joan Scott no artigo “Usos e abusos do conceito de gênero” aborda essa questão no cenário francês, em
2008, a partir do uso da palavra gênero em um manual de biologia do Ministério da Educação Francês.
No entanto, na França o projeto que tentou censurar o uso da palavra gênero foi vetado, diferentemente do
que tem acontecido no Brasil. SCOTT, Joan Wallach. "Os usos e os abusos do gênero". Projeto História,
São Paulo, n. 45, pp. 327-351, Dez. 2012.
2
Cabe lembrar que, em 2014, um juiz federal do Rio de Janeiro indeferiu um pedido do Ministério
Público Federal a respeito de vídeos que expressavam preconceito religioso, postados por uma igreja
neopentecostal. Ele justificou sua decisão afirmando que os cultos de matrizes africanas não se
caracterizavam como religião. A pressão social fez com que voltasse atrás em sua afirmação, porém, não
em
sua
decisão
e
os
vídeos
não
foram
retirados.
(http://nelcisgomes.jusbrasil.com.br/noticias/119874570/oab-critica-decisao-de-juiz-que-disse-queumbanda-e-candomble-nao-sao-religioes)
1
Municipal aprovou a retirada das referências à palavra “gênero” do Plano Municipal de
Educação, indo na contramão das orientações contidas nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), do Ministério da Educação, da Lei Orgânica do Munícipio e do Plano
Nacional de Direitos Humanos. A aprovação da Câmara Municipal atendeu à pressão
promovida por grupos conservadores e líderes religiosos que defendem a preservação da
“família” e afirmam que a palavra gênero atenta contra uma suposta “essência”
feminina e masculina. Partem, portanto, de uma lógica biologizante do que é uma
mulher ou um homem.
Essas tensões em torno da palavra e, ainda, das temáticas envolvendo a
igualdade entre homens e mulheres não se encerraram na censura ao conceito de gênero
nos planos municipais e estaduais de ensino, ao contrário, se estendeu em críticas ao
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Ainda em 2015, uma questão da área de
Ciências Humanas apresentou um trecho do livro O Segundo Sexo, de Simone de
Beauvoir, e perguntou sobre as características de um movimento social expressivo nos
anos de 1960. Enquanto muitos comemoraram o avanço do exame ao tratar sobre a luta
das mulheres pela igualdade de direitos; outros criticaram a questão afirmando que a
mesma era feminista e ideológica. Do mesmo modo, o tema da redação – “a persistência
da violência contra a mulher na sociedade brasileira" – foi celebrado por professora/es,
pesquisadoras e educandos, dada à relevância e pertinência do tema; enquanto outros
argumentaram que @s discente não poderia ter uma opinião contrária à temática,
argumentando que a proposta partia de uma concepção ideológica sobre o assunto.
Essas distorções e censuras tiveram ainda outros desdobramentos envolvendo
pesquisadoras, eventos e grupos de trabalho sobre o tema. Em 2015, um setor religioso,
defensores dos projetos “pró-família”, fizeram uma pequena manifestação em frente ao
SESC Vila Mariana, em São Paulo, onde a filósofa americana Judith Butler proferiu
uma palestra. Alegam que Butler é uma das teóricas feministas “mais radicais” e que
sua ideologia de gênero fortalece o movimento homossexual, implicando em grandes
riscos à família. Em abril deste ano, um grupo religioso conservador promoveu um
ataque verbal à antropóloga e professora da Universidade de Brasília, Rita Segato, por
sua palestra sobre feminismo descolonial, na Pontifica Universidade Católica, em Belo
Horizonte.
Enfim, visivelmente, está sendo feito um uso equivocado e político do conceito
de gênero e que tem encontrado eco nas esferas institucionais do poder. Deste modo,
temos que levantar algumas questões e procurar, ainda que de forma sumária, tentar dar
algumas repostas a estes problemas que cercam a luta dos movimentos feministas e
LGBTS. Primeiramente, qual o histórico do uso do conceito de gênero e dos debates
sobre tais relações? Segundo, afinal, do que trata a categoria de gênero? E, por fim, qual
a importância de falar de gênero nas escolas?
A invisibilidade feminina
Nos anos de 1960 e 1970, o movimento feminista ressurgiu na esfera pública, a
intitulada “segunda onda”, tanto na Europa, como na América. Na França, o Movimento
de Libertação das Mulheres (MLF) colocou o corpo no centro dos debates e reivindicou
o direito ao próprio corpo como um dos pontos centrais para a autonomia feminina; nos
EUA, a luta das mulheres intensificou-se nos anos de 1960, ampliando a crítica sobre os
direitos femininos, incluindo o direito ao próprio corpo; em diversos países da América
Latina, a exemplo do Brasil e da Argentina, as feministas conciliaram à militância pelo
direito à igualdade entre homens e mulheres, às lutas pelo retorno da vida democrática.
Apesar da especificidade de cada região, as feministas criaram grupos de
consciência sobre as assimetrias que recortavam suas vidas, questionaram as
representações femininas associadas ao lar, enfatizaram que o privado também era
político. No que tange, especificamente às latino-americanas, levantaram a bandeira que
a democracia deveria ocorrer no apenas no país, mas também na própria casa. Deste
modo, lançaram luz sobre as desigualdades existentes na educação, no mercado de
trabalho e nos relacionamentos; interrogaram os cânones científicos e artísticos e
procuraram compreender o porquê da ausência das mulheres nestes campos3. Logo, a
luta dos movimentos feministas que eclodiram naquele período, evidenciou as
diferentes formas de opressão, violência e assimetria que entrecruzavam a vida das
mulheres, bem como estendeu visibilidade à questão feminina na sociedade4.
É neste contexto que a categoria “mulher”, no que concerne à historiografia,
passa a compor o espaço acadêmico. A aproximação da terceira geração da Escola dos
Annales, de forma mais contundente, a outros campos científicos, em especial a
3
Recomendo a leitura dos livros: PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Editora
Contexto, 2008; WOLLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2°edição,
1985.
4
Ver: RAGO, Margareth. Feminizar é preciso, ou por uma cultura filógina. Revista do SEADE, São
Paulo, 2002;
Antropologia, trouxe novos olhares para os aspectos culturais, permitindo uma
ampliação das problematizações e, logo, das fontes. Ao mesmo tempo, na História
Social, o revisionismo marxista centrou suas preocupações em grupos que, até então,
haviam sido excluídos das análises historiográficas. Assim, o cotidiano dos operários,
camponeses, entre outros, tornaram-se foco e objeto das investigações históricas, porém,
ainda pensando de forma universal.
No entanto, como advoga a historiadora Louise Tilly, a história das mulheres
emerge junto à eclosão do movimento feminista. Como afirma:
Certamente toda história é herdeira de um contexto político, mas
relativamente poucas histórias têm uma ligação tão forte com um programa
de transformação e de ação como a história das mulheres. Quer as
historiadoras tenham sido ou não membros de organizações feministas ou de
grupos de conscientização, quer elas se definissem ou não como feministas,
seus trabalhos não foram menos marcados pelo movimento feminista de 1970
e 19805.
Sendo assim, as análises historiográficas que se debruçaram sobre a história das
mulheres, tinham como objetivo resgatar a experiência feminina nos passado e lançar
uma interpretação crítica acerca do imaginário construído em outros tempos e espaços.
O intuito, então, era estender visibilidade à presença mulheres na história, pois, como
enfatiza a historiadora francesa, Michele Perrot, “(...) Uma história ‘sem as mulheres’
parece impossível. Entretanto, isso não existia6”.
A da ausência das mulheres já havia sido problematizada por outras autoras, a
exemplo de Virginia Woolf que, em 1929, indagou a cerca da presença das mulheres na
arte e na literatura. Porém, se elas não escreviam livros ou compunham músicas e peças
de teatro, eram alvos constantes do interesse e das análises masculinas, as quais, de
acordo com Woolf, não apresenta um consenso sobre o que eram as mulheres.
“(...) o azar é que os sábios nunca pensam a mesma coisa sobre as mulheres.
Veja-se Pope: “A maioria das mulheres não tem nenhum caráter”. E La
Bruyère: “As mulheres são o extremo: elas são melhores ou piores que os
homens”, uma contradição clara entre dois observadores mordazes que eram
contemporâneos. Elas são capazes de aprender ou incapazes? Napoleão
achava que eram incapazes. O doutor Johsnon pensava o contrário. Teriam
alma ou não? Alguns selvagens dizem que elas não têm. Outros, por outro
lado, afirmam que as mulheres são metade divinas e as idolatram por isso.
5
6
TILLY, Louise. Gênero, História das Mulheres e História Social. Cadernos Pagu, nº3, 1994, p.31.
PERROT, Michele. Minha História das Mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p.13.
Alguns sábios declaram que o cérebro delas é mais superficial; outros, que
sua consciência é mais profunda. Goethe as honrava; Mussolini as
desprezava. Para onde se olhasse, os homens pensavam sobre as mulheres, e
pensavam diversamente7.”
Outro exemplo, de suma importância, são as interrogações de Simone de
Beauvoir, em 1949, sobre o porquê a mulher era vista como o outro em relação ao
homem. Suas análises percorrerem três caminhos que, até aquele momento, tentavam
justificar ou compreender as razões da opressão e da assimetria das mulheres na
sociedade: a biológica, a psicanalítica – centrada nas proposições freudianas – e a
econômica, advogadas pelo materialismo histórico. Na introdução, Beauvoir reflete a
respeito da definição feminina a partir de suas funções biológicas: “A mulher? É muito
simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma
fêmea e esta palavra basta para defini-la8”. Muitos antropólogos, médicos e filósofos
tentavam compreender e, em na maioria dos casos justificarem, as diferenças sociais
entre homens e mulheres por meio das diferenças biológicas. Assim, as análises
Beauvoir vão, justamente, na contramão de tais afirmativas, pois, como assevera “(os
dados biológicos) não bastam para definir uma hierarquia dos sexos, não explicam
porque a mulher é o Outro do homem; não a condenam a conservar sempre essa
condição subordinada9”. Deste modo, afirma que a biológica não é capaz de fornecer as
repostas para a questão central, isto é, o que posiciona mulheres e homens de forma
desigual e hierárquica na sociedade? Logo, refuta a concepção de que a biologia oferece
um “destino imutável” para as mulheres, bem como para os homens.
Durante o século XIX, foram muito presentes os discursos que enfatizam e
justificavam uma suposta inferioridade feminina por meio da biologia. O médico Césare
Lombroso desenvolveu estudos inconclusivos sobre a criminalidade nata com base nas
concepções advindas do “determinismo biológico”. Ele defendia, por exemplo, que as
mulheres, dada a sua natureza, eram submissas, inferiores e incapazes, inclusive de
cometer crimes10. Essas prerrogativas, refutadas pela ciência moderna, foram utilizadas
durante o século XIX e meados do XX, para fundamentar leis proibiam as mulheres de
ingressarem em colégios e Universidades ou ainda para o direito de voto às mulheres.
7
WOOLF, Virgina. Um teto todo seu, op.cit, p. 42.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo, op.cit., p. 35.
9
Idem, p.65.
10
Ver: FARIA, Thais. Mulheres no Tráfico de Pessoas: vítimas e agressoras. Cadernos Pagu, nº31, julhodezembro de 2008.
8
De igual modo, forneceram as bases discursivas que afirmavam que as mulheres não
tinham capacidade para as ciências ou para as artes. Além de infundadas, essas
concepções apagaram da narrativa histórica mulheres pioneiras nas ciências, como Ada
Lovelace11, Marie Curie12, Rosalind Franklin13 e Margaret Hamilton14, que ocuparam
importantes espaços público quando este lhes era totalmente vetado.
Estes discursos estiveram vigentes por muito tempo e não estimularam diversas
meninas a se verem como profissionais, ao contrário, lhes era apresentado que o
universo privado, ligado à maternidade e aos cuidados com os filhos e o marido, era o
único caminho possível e não uma das várias possibilidades de existência. Podemos
pensar sobre o projeto de educação para meninos e meninas durante o século XIX.
Segundo Tania Garcia, no século XIX, no Brasil, as meninas deveriam ser instruídas a
aprenderem “leitura, escrita, quatro operações aritméticas, gramática da língua nacional,
princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica apostólica romana e prendas
de economia doméstica15” – esta última voltada ao seu futuro como esposa e mãe;
enquanto os meninos deveriam se dedicar a um maior número de operações aritméticas,
além do aprendizado sobre as demais ciências. A vida profissional não era concebida
para as meninas, enquanto o espaço doméstico não era projetado como lócus do
masculino.
Durante a primeira metade do século XX, isto é, no entre guerras, na Europa e
na América muitas mulheres deixaram o espaço doméstico para trabalharem, posto que
seus maridos ou pais estavam em guerra. Essa ascensão ao espaço público implicou em
uma politização das mulheres, muitas retomaram os estudos, outras ingressaram em
Universidades e continuaram no mercado de trabalho. No entanto, ao final da II Guerra
Mundial, isto é, nos anos de 1940 e 1950, sobretudo nos Estados Unidos, assistiu-se a
11
Ada Lovelace viveu durante o século XIX, estudou matemática e lógica e é considerada a primeira
programadora da história ao acrescentar algoritmos para funcionamento de uma máquina mecânica.
(http://olhardigital.uol.com.br/noticia/conheca-ada-lovelace-a-1-programadora-da-historia/40718).
12
Marie Curie graduou-se em física e química na França e é a única pessoa que recebeu dois prêmios
nobel, um em Física, em 1903, pelas descobertas no campo da radioatividade, e o outro em 1911, em
química, pelas descobertas dos elementos rádio e polônio. Mesmo frente a isso, Marie Curie não foi aceita
para trabalhar na Universidade de Cracóvia, na Polônia, sua terra natal, justamente por ser mulher; do
mesmo modo que a Academia Francesa de Ciências não a elegeu como membro, também em 1911.
13
Rosalind Franklin foi uma biofísica britânica que, nos anos de 1950, suas pesquisas levaram à
descoberta da estrutura do DNA. No entanto, o reconhecimento foi tardio.
14
Margaret Hamilton é uma cientista norte-americana, ligada à área de computação e engenheira de
software e foi responsável por desenvolver o conceito moderno de software e, assim, criar o programa de
voo utilizado na Apollo 11 – que possibilitou que a primeira missão humana chegasse à Lua.
15
GARCIA,
Tania.
A
Educação
na
Construção
de
Gênero.
http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/152_tania.pdf
uma propaganda em torno dos papéis femininos ligados, exclusivamente, ao lar. A
psicológica norte-americana, Betty Fridan, analisou esse processo que reafirmava o
papel e o lugar que as mulheres deveriam ocupar na sociedade. Segundo a autora:
“Todos afirmavam que seu papel era procurar realizar-se como esposa e mãe.
A voz da tradição e da sofisticação freudiana dizia que não podia desejar
melhor destino do que viver a sua feminilidade. Especialistas ensinavam-lhe
a agarrar seu homem e a conservá-lo, a amamentar os filhos e orientá-los no
controle de suas necessidades fisiológicas, a resolver problemas de rivalidade
e rebeldia adolescente; a comprar uma máquina de lavar pratos, fazer pão,
preparar receitas requintadas e construir uma piscina com as próprias mãos; a
vestir-se, parecer e agir de modo mais feminino e a tornar seu casamento uma
aventura emocionante; a impedir o marido de morrer jovem e aos filhos de se
transformarem em delinquentes. Aprendiam a lamentar as infelizes
neuróticas que desejavam ser poetisas, médicas ou presidentes. Ficavam
sabendo que a mulher verdadeiramente feminina não deseja seguir carreira,
obter educação mais aprofundada, lutar por direitos políticos e pela
independência e oportunidades que as antigas feministas pleiteavam 16”
Apesar de estas autoras questionarem os pressupostos que justificavam as
desigualdades entre homens e mulheres por meio de uma narrativa essencialista, calcada
na biologia, a categoria gênero ainda não era utilizada como método analítico. O intuito,
entre as décadas de 1970 e 1980, era estender visibilidade às mulheres e compreender a
opressão e as formas de discriminação que recortavam suas vidas e que não tinham uma
origem biológica, psicológica ou essencialmente econômica, apesar de esta última ser
uma das clivagens possíveis.
A questão de gênero
O conceito gênero passou a compor as pesquisas acadêmicas e os discursos
feministas em meados dos anos de 1980 e ganhou maior força e abrangência na década
de 1990. A categoria analítica emergiu em meio às transformações ocorridas na
sociedade e na ciência. De um lado, ao final do século XX, houve uma crítica
aos tradicionais modelos científicos, construindo bases para a formulação de
novas categorias de análises; do outro lado, a pluralização do movimento
feminista que passou a pensar a identidade feminina a partir de outras
clivagens sociais, a exemplo da etnia, da classe e da sexualidade. Esse
16
FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1971, p.57.
momento coincide com a eclosão de outros movimentos sociais identitários,
como o negro, o lésbico e o gay e, posteriormente, o LGBTS, que tornam
visíveis as discriminações dirigidas a outrxs sujeitos sociais. No caso das
mulheres, passou-se a interrogar o que era a “identidade feminina”, ou seja,
o que significa ser mulher dentro da nossa sociedade? A associação entre
gênero (os papéis sociais construídos em torno do sexo biológico), classe e
etnia levou a indagar a respeito de outras identidades. Isto é, o que significa
ser mulher e negra? Ou mulher, branca e lésbica? Homem e negro?
Homossexual e negro? Pobre, negra e lésbica? Branco, gay e classe média?
Essas interrogações trouxeram à tona outras experiências de abjeções e
violências enfrentadas no cotidiano e deram ensejo às lutas identitárias pelo
reconhecimento e respeito à diversidade.
No âmbito da historiografia, o artigo publicado em 1986, por Joan W. Scott,
trouxe grandes contribuições para os estudos sobre as relações de gênero. Neste, a
autora argumenta que há pouco tempo, “as feministas começaram a utilizar a palavra
‘gênero’ mais seriamente, no sentido mais literal, como uma maneira de referir-se à
organização social da relação entre os sexos17”. Scott assegura que, antes mesmo de ser
entendida como uma categoria, “gênero” já era vislumbrado por outras pesquisadoras,
indicando uma rejeição ao determinismo biológico e apontando para os aspectos
relacionais das definições normativas de feminilidade. Assim sendo, Scott afirma que a
categoria “gênero” serve para indicar as construções sociais, isto é “a criação
inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas
dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social
imposta sobre um corpo sexuado18”. Ou seja, gênero é uma forma de saber que organiza
a sociedade por meio dos discursos sobre a sexualidade. Essas práticas, ideias e
discursos, contudo, não são fixos, eles se alteram ao longo da história e esta tem papel
fundamental, não apenas em perceber as alterações da organização social dos sexos,
mas também em analisar como a história participa da produção sobre a diferença sexual,
17
SCOTT, Joan. Gênero. Uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade. Porto Alegre. juldez, v. 16, n.2. 1990, p.76.
18
Idem, p.81
ou seja, como as representações do passado nos ajudam a construir o gênero no
presente.
Assim, o conceito de gênero lança luz sobre as construções sociais e culturais
que são atribuídas ao sexo. O filósofo Michel Foucault afirma que durante os séculos
XVIII e XIX, a ciência e a medicina elaboraram discursos que definiram a vida social
dos indivíduos a partir da classificação de suas práticas sexuais em normais e
patológicas, de forma binária e hierarquizada. Essa classificação estava calcada na
diferença biológica relacionada a uma natureza ou essência que designaria aos
indivíduos determinadas aptidões, comportamentos ou destinos. Nesta divisão binária e
hierarquizada da sexualidade, o feminino aparece associado à histeria, à fragilidade, à
submissão e à inferioridade e ao espaço privado; do mesmo modo que a
homossexualidade aparece ligada à patologia e à “anormalidade19”.
Assim, quando tratamos de gênero, estamos refletindo sobre os papéis
atribuídos, culturalmente e socialmente, aos sexos feminino e masculino, em uma dada
sociedade. E, deste modo, refletindo sobre os efeitos destes papéis na vida dos sujeitos.
Isto é, estamos refutando os discursos e práticas que afirmam que as mulheres não têm
capacidade para determinadas funções e por isso não precisam estudar; ou que os
homens são naturalmente violentos e, logo, os estupros, agressões físicas e assassinatos
de mulheres fazem parte de um “impulso” natural masculino. Ou ainda que a
homossexualidade é uma patologia, um desvio psicológico ou genético, e, portanto deve
ser curada ou tratada.
A categoria gênero nos permite refletir sobre como determinadas sociedades
estenderam sentido e valor a um sexo biológico e a uma prática sexual em detrimento de
outra; e qual é o impacto desta valorização e hierarquização no cotidiano. Então, é
importante ressaltar que quando estamos falando de relações de gênero não estamos
falando apenas em mulheres; estamos pensando nas construções sociais em torno da
sexualidade. Logo, a masculinidade também compõe o foco de atenção dos estudos
sobre as relações de gênero e outras identidades, até então invisibilizadas, como
homossexuais e transexuais.
Deste modo, podemos sintetizar que gênero não se refere às diferenças físicas e
biológicas entre homens e mulheres, mas sim sobre as construções sociais e culturais
que foram estabelecidas aos corpos masculinos e femininos como naturais, portanto,
19
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2005.
“normais”, e que criaram mecanismos que valorizam o sexo masculino e a
heterossexualidade e inferiorizaram o feminino e a homossexualidade, resultando em
formas de discrimanalização, marginalização e opressão às mulheres, aos gays, às
lésbicas, @s transexuais, etc., que por não serem consideradxs como “iguais” no que
tange aos direitos sociais.
Gênero e Educação
Enfim, porque precisamos tratar de gênero na educação? Por que a(o)s docentes,
de distintas áreas, devem falar a respeito das relações de gênero em sala de aula?
Primeiramente, quando abrimos para tratar de gênero em consonância com os
pressupostos dos Parâmetros Curriculares Nacionais nos propomos a tratar de equidade
e respeito20, ou seja, trata do reconhecimento das diferenças, sejam elas de gênero, etnia
ou religião, e a consolidação de uma prática que vise o tratamento igualitário entre os
indivíduos. Isto é, fazer com que as diferenças não sejam compreendidas como fator de
discriminação ou de exclusão.
Deste modo, tratar das relações de gênero é fazer com que a (o)s aluna(os) não
vejam o(a) outro(a), por suas diferenças de gênero, classe, etnia, religiosa, como um não
igual em termos de cidadania ou de direitos. É do reconhecimento do (a) outro (a) como
humano e não como algo abjeto, subalterno, que pode ser violentado, morto, isto é, que
pode ser eliminado (a) do convívio, pois sua vida, sua existência não tem importância
para a sociedade.
Sendo assim, o conceito de gênero não se trata de um “discurso ideológico” que
pretende destruir famílias, religiões ou ensinar a ser homossexual, como muitos creem,
mas, ao contrário, visa propiciar a compreensão de que existem formas diferentes de
arranjos familiares e que eles devem ser respeitados; que biologicamente o sexo
feminino e o masculino têm uma série de hormônios, cromossomos que os diferem,
inclusive anatomicamente, mas que isso não lhes dá um destino seja por conta de seu
sexo ou da cor da sua pele. O mesmo vale para as questões econômicas. Isto é, trata-se
“Refere-se à necessidade de garantir a todos a mesma dignidade e possibilidade de exercício de
cidadania. Para tanto há que se considerar o princípio da equidade, isto é, que existem diferenças (étnicas,
culturais, regionais, de gênero, etárias, religiosas, etc.) e desigualdades (socioeconômicas) que necessitam
ser levadas em conta para que a igualdade seja efetivamente alcançada”. Parâmetros Curriculares
Nacionais, p. 20 - http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf.
20
de uma recusa aos determinismos e binarismos construídos culturalmente e que são
utilizados para justificar as hierarquizações sociais.
A escola, como sabemos, é um local de socialização das crianças e jovens, onde
têm contato com as noções de cidadania e direitos. É na escola que aprendem a refletir
sobre as diferenças, pois ali se vêem diante delas. O espaço escolar também é um lugar
de circulação de imagens e representações da sociedade. Nas divisões de brincadeiras,
nas atividades da sala de artes ou das aulas de educação física, criam-se espaços
gendrados. A pesquisadora Guacira Louro em uma pesquisa, datada do fim dos anos de
1990, a respeito de livros didáticos e paradidáticos, chama a atenção para os
estereótipos presentes nestes materiais sobre família, papéis sociais, grupos étnicos e
áreas profissionais que contribuem para a permanência de um imaginário social
hierárquico e desigual. Estas representações não espelham a realidade plural das salas
de aulas, e, criam uma visão de que o cotidiano daquela(e)s discentes estão incorretos,
não são normais. Como avalia Louro:
(...) Muitas dessas análises têm apontado para a concepção de dois mundos
distintos (um mundo público masculino e um mundo doméstico feminino),
ou para a indicação de atividades "características" de homens e atividades de
mulheres. Também têm observado a representação da família típica
constituída de um pai e uma mãe e, usualmente, dois filhos, um menino e
uma menina. As pesquisas identificam ainda, nesses livros, profissões ou
tarefas "características" de brancos/as e as de negros/as ou índios; usualmente
recorrem à representação hegemônica das etnias e, freqüentemente, acentuam
as divisões regionais do País. A ampla diversidade de arranjos familiares e
sociais, a pluralidade de atividades exercidas pelos sujeitos, o cruzamento das
fronteiras, as trocas, as solidariedades e os conflitos são comumente
ignorados ou negados21.
Profissionais da área de História, por exemplo, sabem muito bem a dificuldade
em fazer com que @s discentes compreendem que a escravidão não foi exclusiva da
população negra, que este processo ocorreu em uma determinada época; e que em
outros tempos, povos brancos também foram escravizados. Isto é, não é a cor da pele,
não é a composição genética, biológica que condiciona alguém à subalternidade ou à
escravidão. O discurso da “inferioridade” racial, fruto do século XIX, ainda não está
ausente das paisagens mentais de nossa sociedade. Não por acaso, no início dos anos
2000, foi incorporado à obrigatoriedade do ensino de História da África ao currículo
21
LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação. Rio de Janeiro: Petrópolis, Vozes, 1997, p.70.
escolar22. Somos um país multicultural, mas ainda há um discurso de valorização da
“imigração branca” em detrimento das matrizes culturais indígenas e africanas que
compõem nossa sociedade e isso precisa ser problematizado e discutido nas escolas. A
escola tem que ser um espaço de criticidade, que leve o(a)s discentes a refletirem sobre
o passado e o presente.
O mesmo pode-se dizer a respeito dos “heróis nacionais”. Até pouco tempo, as
narrativas históricas apresentavam uma visão masculina do passado, omitindo do
processo histórico outros sujeitos, como as mulheres. Essa narrativa contribui para a
permanência de um imaginário em que outras personagens não são importantes para a
sociedade e, no caso específico das mulheres, que elas sempre estiveram na esfera
privada, no cuidado dos filhos e do marido. As imagens femininas pouco apareciam
ligadas ao universo público, nas áreas das ciências, da política, do empresariado, da
justiça, etc. Deste modo, poucas meninas se viam como advogadas, juízas, engenheiras,
empresárias, cientistas, politicas, jogadoras de futebol, entre tantas outras profissões
que, por muito tempo, foram consideradas naturalmente masculinas.
Em relação à representação de família, na maioria dos casos, endossa-se a
imagem de um núcleo combinado por um homem e uma mulher e seus filhos. As
crianças que têm núcleos familiares diferentes, composto apenas por um dos pais, pelos
avôs e às vezes por tios e tias– uma realidade bastante comum em nosso país – ou ainda
os que são filhos de relações homoafetivas ou são adotados, não se veem como parte
integrante da sociedade. E esses fatores, muitas vezes, levam a processos de exclusão e
marginalização destas crianças no espaço escolar. A homofobia, por exemplo, pode ser
pensada dentro dessa chave. Ao não tratarmos das diferenças nas identidades sexuais e
de gênero, contribuímos para a aversão àquelxs que não são reconhecidos como homens
ou mulheres “reais” ou “verdadeiros”. Essa aversão, como bem sabemos, resulta em
muitos casos de violência contra gays, lésbicas, trans, etc.
Assim, ao falarmos de gênero estamos combatemos os estereótipos
propagandeados sobre as mulheres que ainda lhes relegam à culpa por serem assediadas,
agredidas ou estupradas. Questionamos as concepções enraizadas sobre os corpos
femininos que projetam para as meninas, desde o berço, um único ideal de beleza e de
feminilidade refletidos em personagens de princesas, geralmente altas, magras e loiras.
Lei 10.639, de 2003, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e
dá outras providências”.
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Padrão este que tem transformado meninas em objeto de consumo, que tem levado a
uma rejeição ao próprio corpo, a quadros de depressões, processos de bulimia e de
bullying. Tratar das questões de gênero nas escolas é combater os estereótipos sobre os
meninos e meninas que não se enquadram nos “papéis sociais” esperados para o seu
sexo e são classificados e “apelidados” levando a processos de evasão escolar ou de
violência.
Insistir nas questões de gênero na sala de aula é de suma importância, pois
apesar dos avanços e conquistas de direitos nas últimas quatro décadas, o machismo
ainda continua fazendo com que mulheres ganhem menos que homens, apesar da
mesma formação; continua assegurando que mulheres, meninas (e também meninos)
sejam culpadas pela violência sofrida, que mulheres espancadas e assassinadas sejam
julgadas moralmente por suas escolhas afetivas. Os discursos homofóbicos continuam
presentes afirmando que “hossexualismo” tem cura; que o que falta “é porrada”; e
seguimos assistindo jovens gays, lésbicas e trans sendo expulsxs de casa; levadxs ao
psiquiatra ou sofrendo estupros “corretivos” para aprenderem a serem “homens e
mulheres de verdade”. Precisamos falar sobre gênero, pois as ruas ainda são lugares
perigosos para as mulheres, gays, lésbicas, trans... O lar ainda segue sendo um dos
lugares onde a violência está mais presente, tanto para mulheres, quanto para crianças.
Precisamos discutir os papéis sociais de gênero, pois o patriarcado continua afirmando
que homem de verdade não chora, que precisa ser violento, que não deve respeitar a
colega, que deve repassar “nude”, pois tudo isso é coisa de “macho”.
Assim, por essas e por outras tantas razões, a educação e o debate sobre gênero,
bem como outras clivagens, devem andar lado a lado. A educação deve ser crítica, a
escola deve ser um espaço não de transmissão de um conhecimento estanque e factual,
mas um lócus de aprendizagem, de criticidade, onde as visões diferentes devem ser
escutadas e debatidas e não meramente reproduzidas. A escola é espaço de
desconstrução e de construção. Assim, a educação precisa ser pensada a partir das
concepções de gênero, se quisermos construir uma sociedade onde as diferenças não
impliquem em desigualdade, intolerância e violência.