ATUALIDADE A crise da Igreja para além da pedofilia

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ATUALIDADE A crise da Igreja para além da pedofilia
ATUALIDADE
A crise da Igreja
para além da pedofilia
ALICIA SAGRA (Argentina)
CADA VEZ GANHAM MAIS REPERCUSSÃO os escândalos de pedofilia que envolvem
membros da Igreja Católica e o notório repúdio gerado pelo papel encobridor que,
durante décadas, jogaram o atual papa Bento XVI e a cúpula vaticana. No entanto,
esta é só a manifestação mais evidente de uma crise mais profunda que vive
a influência popular da Igreja.
A
pedofilia, bem como os abusos
contra mulheres, não são algo
novo na Igreja. Existem há séculos
e foram usados como elemento de poder.
Mas sempre um manto de silêncio cobriu
essa realidade. Há alguns anos, esse
manto começou a deslizar e se tornaram
públicos alguns casos que tiveram ressonância. O do padre mexicano Marcial Maciel, filho de uma beata e sobrinho de um
santo, fundador da congregação da Legião de Cristo, quem foi pai de vários filhos contra quem cometeu abusos sexuais.
O caso do padre Grassi, na Argentina,
criador e diretor da Fundação Meninos
Felizes, acusado de numerosos casos de
pedofilia. O dos jovens colombianos abu-
A pedofilia, encoberta pela
Igreja, mostra sua hipocrisia
reacionária com a oposição
ao casamento gay, ao aborto,
ao uso de anticonceptivos…
sados por um seminarista. O dos vários
filhos abandonados pelo ex-bispo Lugo,
atual presidente do Paraguai. Mas o escândalo tomou repercussão em massa
quando o New York Times lançou uma
campanha de denúncias, chegando a acusar o agora Papa Bento XVI e o Vaticano
de terem encoberto o reverendo Lawrence
Murphy, que teria abusado de 200 meninos surdos em Kentucky nas décadas de
1950 e 1960. A partir da denúncia do poderoso diário norte-americano, novos
casos vieram à tona no Canadá e em diferentes países da Europa, e até o irmão
do Papa foi acusado, ainda que rapidamente absolvido pelo Vaticano. Evidentemente, o manto de silêncio tinha caído.
Uma hipocrisia cada vez
mais evidente
A mesma instituição que durante séculos tem encoberto essas perversões que
hoje vêm à tona, é a que lança campanhas mundiais em defesa da “moral e dos
bons costumes” e, em seu nome, se opõe
ao casamento gay, à adoção de crianças
por casais homossexuais, à legalização
do aborto, ao uso de anticonceptivos.
Esta hipocrisia cada vez mais evidente
está provocando a deserção de um número importante de fiéis. São menos os
que se somam às cruzadas machistas e
homofóbicas ou contra “a inveja do demônio e a pretensão destrutiva do plano
de Deus”1. Diminuem os casamentos religiosos e os batismos. Inclusive tem gerado reações dentro da própria Igreja,
como a dos padres argentinos de Córdoba, Mendoza e Quilmes, que enfrentaram as posições reacionárias em relação
ao casamento gay2. Como se diz nos
meios católicos, “a credibilidade da
Igreja está em perigo”.
Os escândalos potencializam
a crise, mas não a originaram
Lawrence Murphy, quem teria abusado
de meninos surdos, foi encoberto
pelo Vaticano.
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Os porta-vozes do Vaticano (oficiais e
oficiosos) tentam se defender argumentando que “a pedofilia é terrível, mas
existe em todos os lados”, “é um grande
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exagero, os casos denunciados datam de
20 ou 30 anos” e que “tudo tem que ver
com um plano organizado contra a
Igreja”.
É falso que tudo se resuma a uma
“campanha contra a Igreja”. É verdadeiro
que, diferentemente de outros momentos, a imprensa imperialista deu uma
ampla difusão às denúncias das vítimas
e temos que ver a que se deve essa mudança de atitude. Mas não é essa a causa
da crise.
Também é errado achar que esta crise
se originou ou se reduz ao problema da
pedofilia. Estudiosos e analistas católicos
coincidem com isto. O antropólogo das
religiões Elio Masferrer Kan declarou: “A
Igreja católica atravessa uma severa crise,
que não se via nos últimos 400 anos”. E
dá dados anteriores à explosão do escândalo. Assinala que, no México, um dos
países mais católicos, em 2005 registraram-se cerca de 2,5 milhões de nascimentos e só 1,25 milhão de batismos,
“praticamente a metade dos que nasceram se vincularam à Igreja, a outra metade não”. E acrescentou que, nesse
mesmo ano, somente 53% dos casais
civis passaram por um matrimônio religioso3.
Por sua vez, o teólogo Pablo Richard4
afirma: “O mais importante em minha interpretação é que esta continuidade entre
João Paulo II e Bento XVI confirma e faz
evidente uma crise irreversível e o fim do
atual modelo conservador da Igreja. (...)
O Concilio Vaticano II (1962-1965), interpretado por nós desde as Conferências Gerais do Episcopado latino-americano em
Medellín, Puebla e Santo Domingo, constitui um autêntico movimento de reforma
na Igreja Católica. Com João Paulo II
(1978-2005) e, agora, com maior razão
com Joseph Ratzinger, se está consolidando uma clara tendência de contra-reforma (...). A interpretação crítica que
aqui proponho é que a eleição do Cardeal
Ratzinger como Papa não foi desenhada
para ser um Papa de transição, mas para
ser um Papa de continuidade (...). E conclui: “A Igreja conservadora é autocrática
e opressora, o que provoca dentro dela um
espírito de medo generalizado: os laicos e
laicas praticantes têm medo dos padres,
os padres têm medo dos bispos, os bispos
têm medo da cúria vaticana e esta tem
medo da Teologia da Libertação. Na
moral, a Igreja conservadora está mais
preocupada com o aborto e o casamento
dos homossexuais, do que com os milhões
de seres humanos que morrem de fome no
AGOSTO DE 2010
Terceiro Mundo (...) Mas a possibilidade
histórica e real de construir um novo modelo ou maneira de ser da Igreja nos
enche de esperança e alegria”.5
Da Teologia da Libertação
a João Paulo II
Obviamente, não concordamos com
Pablo Richard no papel que dá à Teologia
da Libertação. Na medida em que continuem pertencendo e disciplinando-se à
instituição dirigida pelo Papa, continuarão sendo úteis à defesa da ordem burguesa, independentemente das posições
“progressistas” que possam ter sobre as
lutas operárias e camponesas, as reivindicações das mulheres e a homossexualidade. Mas, sim, concordamos com ele
quando relaciona a atual crise da Igreja
com o papado de Bento XVI.
A Igreja Católica tem demonstrado ser
uma instituição de grande poder de
adaptação. Na Idade Média, foi o principal senhor feudal e é um dos principais
setores capitalistas desde que a burguesia se impôs mundialmente. Também
soube ter políticas frente às mudanças
que se deram no capitalismo.
Após o triunfo da revolução cubana, a
Igreja iniciou a reforma da que fala Pablo
Richard. Em janeiro de 1959, a três
meses de sua eleição, o papa João XXIII
anuncia o Concílio Vaticano II, que se
inicia em 1962 e culmina em 1965, sob
o papado de Paulo VI. Foi um Concílio
de abertura para outras igrejas; aí
mudou-se a liturgia e as missas passam
a ser dadas no idioma nacional, deixando de lado o latim, e incorporando
música não religiosa; orienta-se para a
utilização dos meios de comunicação;
inicia-se o trabalho “pastoral”. Foi, em
resumo, uma renovação da Igreja para
colocá-la em harmonia com os tempos.
Essa renovação teve sua expressão
mais radicalizada na América Latina, nas
Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), de onde surge com força a
Teologia da Libertação. Foram muitos os
padres, freiras e seminaristas adeptos
desse movimento que morreram enfrentando às ditaduras latino-americanas.
Mas a Teologia da Libertação foi muito
importante para a Igreja, já que serviu de
dique de contenção de jovens militantes
católicos que eram impactados pelos
processos revolucionários dos anos 60 e
70.
Em 1978, ante o processo de revolução
política nos ex-estados operários e a crise
do aparelho stalinista, a Igreja dá uma
O actual Papa Benedicto XVI foi
simpatizante do nazismo na sua juventude.
guinada. Assim, após o assassinato de
João Paulo I, vem o polonês Karol
Wojtyla (João Paulo II), conhecido anticomunista que, internamente, defende
com fervor o celibato dos padres e enfrenta a Teologia da Libertação e toda corrente minimamente progressiva. É o
“Papa Viajante”, que percorre o mundo
tentando apagar todo foco revolucionário. O que viajou à Argentina para rezar
pela rendição na Guerra das Malvinas. O
paladino das campanhas “em defesa da
vida”, contra a legalização do aborto, do
casamento gay, do uso de preservativos,
da participação das mulheres em tarefas
sacerdotais e grande acobertador dos
casos de pedofilia. Esse reposicionamento da Igreja harmonizava-se com o
auge do neoliberalismo e a contraofensiva ideológica do imperialismo, após a
queda do Muro de Berlim, em 1989, e a
pretensa “morte do socialismo”.
Na contramão dos tempos
Mas as coisas mudaram. Por isso,
Pablo Richard diz que, em 2005, era necessário eleger um “papa de transição” e
não o cardeal Ratzinger, mão direita e
continuador de João Paulo II. Bento XVI
conciliou com a “guerra preventiva e a
luta contra o terrorismo” de Bush. Mas
isso durou pouco. Essa orientação da
Igreja a colocava na contramão dos tempos e das lutas que se tinham aberto em
2000. Dos processos revolucionários latino-americanos que impuseram governos como os de Chávez, na Venezuela,
ou Evo Morales, na Bolívia; do fortalecimento da luta palestina e o desprestigio
de Israel, do fracasso da política ianque
no Iraque e a crise imperialista que levou
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João Paulo II, líder da Igreja católica
a partir de 1978, foi fervoroso
anti-comunista, impulsionador
da restauração capitalista
nos estados operários.
a que houvesse um presidente negro e
com discurso “progressista” nos EUA.
Isto é, a atual crise da Igreja é produto
(e a sua vez confirmação) da situação revolucionária mundial aberta em 2.000. A
falta de uma política, similar à da década
de 1960 para enfrentá-la, provoca a agudização da mesma. Esta inadequação à
nova realidade se manifesta não só na
perda de credibilidade, na deserção de
fiéis, senão também em consideráveis
derrotas, como a votação da Lei de
Aborto na Espanha ou a do casamento
gay na Argentina
Esta situação não só preocupa católicos da Teologia da Libertação, que clamam pela volta ao Concílio Vaticano II,
mas também ao imperialismo.
2007 - Visita ao Brasil
UM EXEMPLO DO RETROCESSO
E
ntre os dias 9 e 13 de maio de 2007,
Bento XVI realizou uma visita ao Brasil, o país de maior população católica do
mundo, onde se realizaria a V Conferência
Geral do Episcopado Latino-americano e
Caribenho.
Nessa viagem, Joseph Ratzinger voltou a
mostrar as posições profundamente reacionárias da Igreja, em especial ao condenar o uso do preservativo.
Suas declarações caíram tão mal no país
que o próprio presidente Lula, que se reivindica profundamente católico, teve que
diferenciar-se expressando que, no Brasil,
difundir o uso do preservativo é uma
“questão de saúde pública”
Tal separação da realidade teve seu custo:
o principal ato de massas de sua visita realizou-se no chamado Campo de Marte,
em São Paulo. A Igreja brasileira esperava
juntar um milhão de pessoas e mobilizou
a fundo seus recursos e seu imenso aparato nacional. Mas ao ato compareceram
apenas umas 300.000 pessoas, o que foi considerado um grande fracasso.
Tradução: Rosangela Botelho.
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A Igreja é fundamental
para manter o controle
imperialista. Ela pode
atuar para frear revoluções sobre mais de 1 bilhão
de católicos no mundo. Mas
os novos tempos exigem que
essa atuação se dê no marco da
política de negociação com os governos latino-americanos e o
mundo muçulmano, e de algumas
concessões democráticas, impulsionadas
por Obama.
A Igreja é um aparato
fundamental para manter
o controle imperialista
sobre as massas.
Então, pode ser que o que está por
trás, não só da difusão dos casos de pedofilia por parte da imprensa imperialista, senão também da grande
repercussão midiática de produções de
Hollywood, como O código Da Vinci ou
Anjos e demônio, seja uma pressão do
imperialismo ianque para adequar à
Igreja à sua política de “reação democrática”.
Tradução: Rosangela Botelho.
1
Carta do Cardeal Bergoglio, da Argentina,
às Carmelitas de Buenos Aires, sobre o
matrimônio gay, 22/06/2010.
2
“Parece uma cruzada, parece a Idade
Média”, disse Eduardo de La Serna, padre de
Quilmes, ao diário Página 12, 11/07/2010.
3
Publicado em Redes Cristianas
(redescristianas.net), 26/02/2009
4
Sacerdote chileno, doutor na Bíblia e em
Sociologia da Religião, diretor do DEI
(Departamento Ecumênico de Investigações)
da Costa Rica.
5
Artigo publicado em 2005, em 2001.atrio.org
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