Mundo sem forma_Moneo - Companhia dos Cursos

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Mundo sem forma_Moneo - Companhia dos Cursos
PARADIGMAS FIM DE SÉCULO ♦
Fragmentação e compacidade na
arquitetura recente
Rafael Moneo
As décadas passam rapidamente. E se as
usamos como unidades de tempo para
refletir as mudanças na cultura e, portanto,
na arquitetura, tem que se reconhecer que
nos encontramos no fim dos anos 90. Que
interesses prevaleceram ao longo desta
década?
Poder-se-ia dizer que esta tem sido uma
década dominada pela fragmentação. É
certo que fragmentação é um conceito
demasiado amplo. E sou também consciente
da atração que resulta hoje a visão
fragmentada da realidade, quando as
ciências são incapazes de estabelecer um
modelo unitário com o qual contemplar a
natureza e quando a sociedade nos força
mais e mais a uma diversidade que parece
tornar inevitável a referência a um mundo
fragmentado, rompido.
Fragmentação é hoje para nós uma
metáfora, que em termos de forma nos
ajuda a descrever a realidade que nos
rodeia e, portanto, vendo as coisas deste
modo, alguém se sentiria inclinado a dizer
que uma arquitetura fragmentada reflete o
mundo contemporâneo, caindo uma vez
mais na inevitável armadilha do zeitgeist
para justificar nosso trabalho.
Entende-se a atração que tem a metáfora. O
mundo ao nosso redor é heterogêneo e
rompido.
Nada
sugere
unidade.
Os
escritores em seus textos e os pintores em
suas telas e construções se concentram em
mostrar-nos um panorama decomposto e
desconjuntado, no qual se captura uma
realidade
fragmentada.
Por
que
os
arquitetos deixariam de fazer o mesmo?
De outra parte, com lentidão, mas com
constância, essa fragmentação parece haver
se dissolvido em uma atmosfera mais geral
que reclama um mundo sem forma,
caracterizado pela fluidez, pela ausência de
limites, pela constante mudança, onde a
ação é mais importante que qualquer outra
qualidade. A ação tem passado a ser um
valor em si mesmo. Algo que não necessita
de uma representação específica. Como
resultado de tal endeusamento da ação, a
cena arquitetônica tem se convertido em
algo indiferente, inclusive me atreveria a
dizer, em algo que conscientemente
renuncia aos atributos. A fantasia hoje nos
leva a um mundo no qual a forma como
categoria está ausente.
Como
conseqüência,
a
arquitetura
contemporânea se define a si mesmo como
algo rompido, descontínuo, quebrado e
fragmentado, ou, no pólo oposto, como algo
inapreensível, instável, fluido e sem forma.
A cena é imprecisa e pouco definida. Não
somente no sentido figurado, mas no
sentido mais literal, a arquitetura parece
interessar-se hoje, tanto por formas
rompidas
e
fragmentadas
como
por
texturas, artifícios, reflexos. Inclusive a idéia
do edifício enquanto tal está hoje submetido
à discussão.
ORIGENS DA IDÉIA DE FRAGMENTAÇÃO
As origens da fragmentação são incertas.
Algumas pistas acerca do que se poderia
entender por forma rompida foram vistas no
trabalho de artistas como Giulio Romano,
ou, mais tarde, em obras de arquitetos
como Fischer Von Erlach em um projeto
como Kariskirche.
Porém, para nossos propósitos, a primeira
mostra
clara
de
fragmentação
a
encontramos nos desenhos de Piranesi para
o Campo Marzio. Neles há um claro
entendimento do que significa a destruição
daquela
unidade
tão
deliberadamente
perseguida desde o Renascimento. Muitas
vezes se tem insistido que o que Piranesi
buscava era a liberação da forma. Taufuri
escreveu preciosas e luminosas páginas
sobre Piranesi e não creio que seja preciso
competir com o que ele disse. Assim é que
citarei a Piranesi em sua descrição dos
desenhos do Campo Marzio. “O encontro dos
organismos imersos em um mar de
fragmentos formais dissolve, inclusive, a
memória longínqua da cidade como lugar da
Forma”.
Frente a qualquer das versões da cidade e,
portanto, da arquitetura como natureza,
Piranesi
enfatiza
sua
artificialidade
produzindo uma colisão de formas e figuras
que de modo algum podem ser entendidas
como um todo orgânico. “A exasperada
articulação e deformação das composições
já não pertencem a um ars combinatória. O
encontro das macaquices geométricas já
não está regulado por uma harmonia
preestabelecida”. O que Piranesi pretende é
enfatizar o nascimento de um arquiteto que
trabalha mais além do significado, fora de
qualquer que seja sistema simbólico e alheio
à mesma arquitetura. Piranesi descobriu o
que Taufuri chamou de “autoridade da
1
linguagem”. O objetivo é mostrar “a
absoluta
arbitrariedade
da
escrita
arquitetônica, sua condição específica que a
faz ser por completo alheia a qualquer
origem natural”. A idéia de coerência, a
idéia de forma orgânica, fica demolida de
uma vez por todas.
IDÉIA DE FRAGMENTAÇÃO NO SÉC.XIX
Para bem ou para mal, o século XIX
esqueceu o programa de Piranesi. Seu
positivismo levou à busca de regras e
normas,
abandonando
aquela
ansiosa
persecução de liberdade formal que aparecia
na obra de Piranesi. Os teóricos da
arquitetura se sentiram atraídos pelas
normas e regras de composição e, como
resultado, a arquitetura do século XIX pode
ver-se hoje como uma coleção de tipos. Tão
somente alguns arquitetos ingleses se
interessaram pelo pitoresco, sendo ali onde
a idéia de fragmentação sobreviveu. Porém,
naquele pitoresquismo, era realidade uma
indulgente
valorização
das
qualidades
visuais que prevalecia, dando lugar a uma
arquitetura na qual a massa dos edifícios se
rompe e se fragmenta, numa intenção de
aproximar-se da diversidade da natureza
que, de outra parte, distanciava-se de
qualquer
tentação
de
mostrar,
no
construído, a força da autoridade ou de
poder.
IDÉIA DE FRAGMENTAÇÃO NO SÉC.XX
A fragmentação volta a aparecer com
renovada energia no começo do século XX.
De novo os pintores serão os mais sensíveis
a
essa corrente.
Pode-se
falar
em
fragmentação em muitas das obras da
primeira vanguarda, em obras cubistas,
construtivistas, neoplásticas, dadaístas, etc.
A visão unitária que proporcionava uma
teoria orgânica da forma e a que dava força
ao uso da perspectiva como único
instrumento de representação ficou, então,
definitivamente abandonada pelos pintores.
Os arquitetos, imediatamente, seguiram seu
exemplo e daí que ninguém pode se
surpreender
se
usamos
o
termo
fragmentação quando falamos de Le
Corbusier, Rietveld, ou inclusive de alguns
projetos de Mies. Como Robin Evans tem
assinalado, os trabalhos de arquitetos como
Scharoun e Aalto seriam completamente
incompreensíveis sem a idéia de fragmento.
Portanto, pode-se dizer que o modernismo,
que terá seu apogeu nos anos 50,
convertendo-se
na
linguagem
das
instituições, se serviu da fragmentação,
ainda que fosse de uma maneira escondida
e camuflada. A fragmentação aparece de
uma maneira tangível em algumas obras de
Louis Kahn, como o Monastério das
Dominicanas, e mais tarde será um discípulo
seu, Robert Venturi, quem nos ensina a
apreciar, na arquitetura que nos rodeia, as
anomalias e os encontros, as colisões e as
rupturas.
IDÉIA DE FRAGMENTAÇÃO NOS ANOS 70-80
Cabe dizer que a questão da fragmentação
entrou
no
discurso
acadêmico
contemporâneo, em 1981, com o livro
Collage City, de Colin Rowe e Fred Koetter.
Coincidindo com alguns pontos do texto de
Venturi e conhecedores provavelmente do
trabalho dos arquitetos italianos associados
à tendência, Rowe e Koetter celebram a
anomalia e se concentram na ruptura das
normas estabelecidas pela modernidade
ortodoxa. Os olhos de Rowe são, sem
dúvida, os olhos de alguém que desfruta da
paisagem da história: é nela onde
arquitetura está inevitavelmente carregada
de significado ideológico, respondendo com
ele às instâncias da sociedade. O que Rowe
aprendeu da história, do panorama da
história que se abria diante de seus olhos,
logo começou a converter-se em material
utilizável nas escolas. A fragmentação que
Rowe nos havia ensinado a ver na planta da
cidade antiga se converteu em instrumento:
os arquitetos começaram a fantasiar com a
idéia de que era possível manipular o
tempo. A fragmentação, portanto, como
paradigma da ficção de poder fazer e
manipular a história.
Muito populares nos anos 70, as técnicas
historicistas de Rowe e Koetter ficaram
rapidamente esquecidas nos anos 80.
Obviamente, quem via a fragmentação
direta e literal como um novo evangelho,
estava reagindo aos excessos do pósmodernismo. Logo, a fragmentação se
estendeu
a
uma
nova
versão
do
modernismo precoce. Críticos como Bruno
Zevi haviam continuamente reclamado a
ruptura da caixa, cuja construção era tarefa
da maior parte dos arquitetos naqueles
anos.
E sobre aqueles arquitetos interessados na
fragmentação se voltaram os olhos dos
estudantes e críticos que buscavam escapar
do
pós-modernismo.
Provavelmente
ninguém representava essa atitude melhor
que Frank Gehry. Não creio que seja
exagerado dizer que os anos 80 e princípios
dos 90 têm estado dominados por essa
poderosa figura. De outra parte, a
fragmentação encontraria um aliado nos
filósofos
franceses,
que
com
o
construtivismo
estavam
intentando
2
desmantelar a consciência canônica do texto
escrito.
A metáfora da necessária destruição do
texto para chegar a possuí-lo, algo que está
na mesma base da ação de ler, foi
rapidamente absorvida por alguns arquitetos
e teóricos que pensaram que poderiam usar
a etiqueta de construtivistas, a fim de
designar a nova tendência arquitetônica.
Desde os anos 80, a deconstrução que, em
nossa simplificada terminologia, significa
fragmentação, aflorou como uma nova
ideologia estética e como um novo
procedimento
arquitetônico
que
se
consolidou ao longo da última década até
converter-se em algo próximo a uma
maneira de fazer.
FINS DOS ANOS 80 E ANOS 90
Porém, junto a esta tendência que leva à
fragmentação, apareceu ao final dos anos
80 um novo movimento. A iniludível atração
de um mundo sem forma caracteriza este
fim de século. O poder de prescindir da
forma é um novo modo de estar neste
mundo. As origens de tal atitude não há que
se buscar no Renascimento ou na Ilustração,
como ocorria com a fragmentação. Esse
novo modo de ver as coisas é, em verdade,
característica destes últimos anos, quando a
comunicação eletrônica, a informação global
e a imagem virtual parecem haver eliminado
o interesse que homens e mulheres tinham
nas formas e em sua representação. A
forma sugere algo congelado, estático, uma
ordem estabelecida que limita nossa
conduta e daí que acaba sendo inútil e
autoritária. O mundo atual reclama ação e
não necessita, como o passado, um cenário
iconográfico ao redor de nós. Somente a
ação conta, e isso é válido e pertinente em
quaisquer que sejam as circunstâncias. O
processo de globalização tem trazido
consigo a perda de valor daquilo que até
agora temos chamado de específico. A
indiferença e a disponibilidade prevalecem.
Viver é hoje a experiência contínua da
eleição. A forma, ao contrário, está
relacionada
com
o
permanente,
obstaculizando o potencial que encerra o
futuro e daí que haja caído em desgraça.
Uma vez mais são os pintores que
enfatizaram esse enfoque. Pintores tais
como Fautrier e Dubuffet, Twombly e
Fontana,
levaram
até
o
limite
as
experiências visuais e táteis da vanguarda.
A busca de um objeto com entidade própria
ia a desaparecer em seus trabalhos. Em
suas obras, todavia, a pintura estava
concebida como uma tela, mas nem a
vontade de reinventar formas nem a
condescendência com qualquer que fosse a
representação aparece.
Falam mais sobre
informação, de uma certa presença da
matéria, do incontrolável da mente, da falta
de referência, da ignorância dos limites, etc.
Insistem
sobre
a
questão
do
incompreensível, e de que qualquer intenção
de defini-lo através da representação não
tenha sentido. A pintura é algo privado que
se gera fazendo-se uso da atitude, fica
absorvida por um mundo invadido pela
presença da memória, um mundo que faz
sua aquela incomunicabilidade que os
pintores tratavam de refletir em suas telas.
Ainda que haja algumas intenções de fazer
arquitetura utilizando esses princípios – algo
assim pretenderam fazer os situacionistas –
me parece que tem sido somente ao
finalizar os 80 e durante os 90, quando a
tentação de seguir esse caminho se tem
feito sentir. Como os arquitetos têm feito
sua essa estética? Por um lado, poderíamos
falar de uma arquitetura que ignora o
objeto,
a
iconografia,
os
elementos
estruturais, etc., e que tão somente lhe
preocupa
criar condições
físicas
que
favoreçam a vida e a ação. Daí ter sentido
falar de uma arquitetura como paisagem,
que potencializa a mobilidade sem interferir
com a vida. Tal arquitetura faz suas
questões que já apareceram na obra dos
mega-estruturalistas,
mas,
em
última
palavra, é indefinível, imperceptível. Tratase mais de recriar artificialmente uma
topografia alternativa. De algum modo, e,
apesar da consciência de que só a
artificialidade conta, há nessa atitude um
desejo oculto de encontro com a natureza.
Porém, o arquiteto responsável de tal
arquitetura desfruta com o nada, com um
mundo sem forma, dado que ela, como
dissemos, não é necessária e ainda mais
pode ser qualificada como anacrônica no
mundo de hoje. A arte mais recente e o solo
das galerias têm-se convertido na nova tela,
onde os objetos descontextualizados se
convertem em protagonistas. Na arquitetura
sem forma de hoje em dia, um manipulado
plano horizontal é dotado de uma certa
articulação que sugere a proteção que
oferecia a arquitetura antiga, antecipando
uma vida alheia a qualquer convenção
preestabelecida.
Devido ao fato de que a arquitetura não é
de modo algum comunicação, se tem
abandonado a obrigação de inventar
linguagens. A arquitetura, hoje, pretende
estar viva, ignorando qualquer referência a
conceitos tais como linguagem, maneira ou
estilo. Alguns discípulos de Rem Koolhaas,
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hoje presentes no mundo, parecem sentir-se
atraídos per essa tendência, difundida
amplamente através das revistas de
arquitetura. Porém, há outros modos de
dissolver a arquitetura em uma construção
sem forma. Seria conveniente recordar
como os pintores dos anos 50 redescobriram
o valor estético da matéria. Se alguns
arquitetos em busca da arquitetura sem
forma identificaram seu trabalho com o que
se pode chamar de “arquitetura como
paisagem”,
outros,
atraídos
pelas
experiências dos minimalistas, se inclinaram
pelo abandono da forma, propondo a
construção de volumes prismáticos, onde
somente sua materialidade se faz presente.
A solução de qualquer programa de
arquitetura, em um inócuo envoltório
prismático,
se
converte
em
esforço
deliberado
para
rechaçar
qualquer
compromisso com uma forma específica. Se
Taufuri diz sobre o silêncio que se produz
deixando as coisas falarem por si mesmas,
aqui e agora nós podemos falar do silêncio
real que traz consigo a muda condição das
formas primárias. Nos encontramos tão
próximos às origens, que a obra enquanto
tal não existe. A construção passa a ser o
único meio de expressão. A continuidade
entre forma e matéria se converte em uma
questão substancial e a transição do
material à quase existente forma é a
cerimônia que esses arquitetos celebram.
Dá-se, então, prioridade à pele. A superfície
prevalece.
A
arquitetura
enfatiza
as
artificiais e levianas superfícies que refletem
todo o potencial do desenho. Essa
arquitetura brilhante, envidraçada, na qual
nos vimos refletidos ao negar qualquer
identidade formal ao volume construído,
desaparece na percepção. Algumas das mais
valiosas obras recentes pertencem a essas
meritórias intenções. Mencionarei a obra de
Herzog e De Meuron para ilustrar.
Uma vez que temos chegado a esse ponto,
de haver descrito as duas tendências
arquitetônicas que têm caracterizado dos
anos 90, deveria perguntar-me: são esses
os dois únicos modos de fazer arquitetura?
Essa é uma questão que gostaria de
responder com os projetos que citarei agora.
Sou consciente do impacto que o zeitgeist
tem em todo o nosso trabalho. Temos
aprendido através da história da arte como
estabelecer uma certa continuidade entre
todas as atividades humanas e que, na
verdade é forçoso reconhecer, qualquer
manifestação das artes visuais em um
determinado período de tempo não é alheio
aos interesses daqueles momentos. Porém,
tal reconhecimento não implica em uma
única direção, um só modo de proporcionar
testemunho da realidade na qual nos
encontramos.
Dito isso, gostaria de manifestar que não
pretendo, de modo algum, voltar idéia de
uma forma orgânica. Temos aprendido a ver
a arquitetura e as cidades com olhos menos
condescendentes, capazes de apreciar a
diversidade do mundo ao nosso redor,
diversidade que impede de fazer uma
descrição unitária do mesmo. Apesar de
estar falando da forma, não tenho em
mente um sentido orgânico, platônico, da
forma. A dificuldade que implica pensar na
imanência da forma e, portanto, na
impossibilidade de considerar um processo
de criação através de arquétipos, é algo que
os arquitetos têm consciência, algo que
temos apreendido e aceitado. Todavia, a
presença da forma é necessária para
qualquer
construção.
O
conceito
de
“formatividade”, usado pelo filósofo italiano
Pareysson, me parece crucial para entender
como se constrói uma obra de arquitetura.
Deve-se destacar o compromisso que o
projetista tem com qualquer arquitetura,
entendendo-se que tal compromisso implica
referendar sua plena responsabilidade no
que faz, o que nos leva a insistir em uma
liberdade que prevalece sobre qualquer
tentação de determinismo. Porém, o
exercício da liberdade não pode acontecer
em um mundo no qual não aparecesse a
forma. Dito de outro modo, a presença da
forma é garantia de liberdade para o
arquiteto. Esse é o ponto que gostaria de
insistir hoje. A arquitetura pode ser
manipulada com liberdade, sem nos ver
dominados pelos fortuitos resultados a que
leva a fragmentação indiscriminada, sem
terminar na plana e simples arquitetura
como paisagem, a qual parece ser a meta
de quem persegue um mundo sem forma ao
nosso redor.
Em outras palavras, talvez seja possível
uma
arquitetura
que
não
esteja
fragmentada e que não tenha ficado
reduzida à condição de nova topografia. Há
lugar para um mundo arquitetônico liberado
de simetrias, partidos, eixos autoritários... E
todos aqueles mecanismos a que os teóricos
da Beaux Arts trataram de transformar em
ciência articulada. Que os arquitetos
desfrutam de liberdade dentro dos limites da
disciplina
visual
a
que
chamamos
arquitetura é algo que gostaria de
demonstrar através dos meus projetos.
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Em todos eles, tenho tratado de responder
às condições específicas do lugar e do
programa, com ajuda de mecanismos
puramente arquitetônicos. Cada um deles
oferece uma idéia de forma que aceita os
limites
ditados
pelas
circunstâncias,
comprometendo-se com algumas respostas
arquitetônicas previstas, que abrem a porta
à exploração de mecanismos mais precisos.
ARQUITETURA COMPACTA
Todos os projetos têm em comum um certo
gosto pelo compacto. Essa noção de
arquitetura compacta não é nova. Construir
mantendo as restrições de um perímetro
mais ou menos regular sempre foi uma
meta perseguida pelos arquitetos: quem
constrói sabe que encerrar um volume maior
em uma superfície menor é sempre
desejável. Há sempre uma recompensa
formal quando se trabalha em termos de
uma economia intrínseca. Assim tem
ocorrido sempre, tanto no presente como no
passado.
Na arquitetura romana, é fácil encontrar
exemplos
em
que
uma
estratégia
planimétrica leva a considerar o uso do
espaço interior com aparente esquecimento
do perímetro, criando-se um mosaico de
elementos autônomos que desafia a
composição com mecanismos convencionais.
A arquitetura muçulmana oferece, também,
preciosos
exemplos
de
arquitetura
compacta. Os perímetros das cidades
muçulmanas são capazes de absorver a
mais diversa arquitetura, ajustando figuras
regulares sem seguir a tirania dos eixos
perspectivos. Mais tarde, um arquiteto como
Scamozzi, mostra também, com clareza,
como uma superfície regular é capaz de ser
decomposta em toda uma série de figuras
definidas por paredes e pátios, janelas e
escadas, salas e dormitórios, obtendo com
uma admirável contigüidade e continuidade
o espaço sem respeitar um partido
previamente estabelecido. E, em tempos
recentes, Terragni nos oferece admiráveis
exemplos de arquitetura que satura a
planta, dando uso aos espaços intersticiais e
sempre disposta a provocar episódios
arquitetônicos atraentes.
O
compacto,
portanto,
não
é
um
descobrimento, mas sim um modo antigo de
entender a arquitetura. O compacto é uma
maneira de responder a uma realidade de
fio duplo: por um lado, o edifício urbano e,
por outro, um mundo interior autônomo. Daí
que
minhas
propostas
arquitetônicas
tenham sido concebidas primeiramente para
responder de maneira apropriada às
condições da construção urbana na qual se
inserem. Todos esses projetos procuram ser
respeitosos com o lugar e pretendem fazer
parte dele, se bem que criando uma nova
percepção do que eram as condições
prévias. Pensando desse modo, a ninguém
surpreenderá que essas massas construídas
sejam o resultado de um processo de
divisão e não de agregação. Porém, todos
esses edifícios mantêm viva a realidade
interior, realidade na qual, em meu modo de
ver, se manifesta a animação de tudo aquilo
que se constrói.
MUSEU DE BELAS ARTES DE HOUSTON
O Museu de Belas Artes de Houston é um
exemplo claro da atitude mencionada acima.
Não via nenhum outro modo de operar
naquele lugar que não fosse o fazer uso
intensivo do solo que dispúnhamos. Houston
é uma cidade que não permite outra
percepção dos edifícios que não seja aquela
que proporciona o automóvel e, em meu
entender, esse fato não oferecia a
oportunidade de considerar-se o Museu
como um objeto a ser abordado a pé por
quem caminha pela cidade. O edifício,
assim, se divide em toda uma série de
compartimentos e espaços conectados
mediante um fio condutor oculto, a que
confiamos o movimento dos visitantes. O
Museu explora o telhado tanto para
potencializar
seu
perfil
como
para
proporcionar luz nas galerias dispostas
abaixo dele.
CENTRO CULTURAL DE DON BENITO
No Centro Cultural de Don Benito, o
compacto volta a aparecer como resultado
de um uso intenso do solo. Com efeito, se
sobrepôs
cinco
pisos,
conseguindo
proporcionar luz natural à maior parte deles
mediante um sistema de lanternins.
PREFEITURA DE MURCIA
Na Prefeitura de Murcia, um edifício fecha o
espaço de uma praça singular, aceitando ser
um prisma estrito e regular. Não obstante, o
edifício se rompe mantendo o perímetro
regular, enfatizando o conjunto fragmentado
de pilares que nos é apresentado como uma
versão renovada dos velhos retábulos
(painel que enfeita um altar) espanhóis,
embora à margem de qualquer ordem
tradicional.
MUSEU DE ARTE MODERNA E ARQUITETURA
DE ESTOCOLMO
No Museu de Arte Moderna e Arquitetura de
Estocolmo, o conjunto de salas que se
levantam na Ilha de Skeppsholmen mantém
5
o caráter de pavilhão que têm as
construções existentes e se dispõem sobre o
terreno com grande liberdade. As salas
formam, literalmente, pacotes, dando lugar
a peças compactas associadas com cada
uma das coleções do Museu, ao mesmo
tempo em que proporcionam ao edifício a
escala adequada. Obviamente, conviver com
os edifícios existentes em Skeppsholmen e
manter intacto o perfil da cidade de
Estocolmo era o que se pretendia aqui.
♦
Texto para uso no ateliê do Trabalho
Final de Graduação da FAU-PUCRS,
extraído da Revista El Croquis n°98,
p.198-202.
Também publicado na Revista
Arquitectura Viva n° 66, mayo-junho
1999, p.17-24.
Tradução livre, inclusive com inserções de
sub-títulos adicionais, do professor Renato
Menegotto.
KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN
No Kursaal de San Sebastián tem que se
falar
de
arquiteturas
compactas,
fragmentadas e minimalistas ao mesmo
tempo, o que faz com que a explicação
tenha um maior grau de sofisticação. Por
outra parte, tem que se reconhecer que aqui
o
material
desempenha
um
papel
importante. Não obstante, no meu entender,
nesse projeto se oferece uma alternativa
tanto para a fragmentação como ao
minimalismo. Um primeiro olhar nos levaria
a pensar que se trata de uma estrutura
fragmentada; porém, uma avaliação mais
apurada nos faz ver que os possíveis
fragmentos
ficaram
consolidados
e
encontraram seu lugar, tendo como meta a
obtenção dos espaços que estávamos
buscando. Nada é fruto do azar. De outra
parte, podemos falar do compacto quando
observamos como tão generoso programa
ficou absorvido em volumes limpos. Sua
simplicidade nos levaria a falar também em
minimalismo.
E concluo. Vejam-se os documentos e as
imagens para mostrar mais claramente o
compromisso com uma arquitetura que tem
fé tanto no uso dos princípios como nos
mecanismos de que se tem servido ao longo
do tempo. Em minha opinião, uma das
obrigações das escolas é ajudar os
estudantes a descobrir tais mecanismos e
princípios através do conhecimento do que a
arquitetura é e tem sido. Porém, me dou
conta que tenho dito obrigação quando
deveria ter dito prazer. Estou seguro de que
o estudo da arquitetura fascina tanto ao
leitor como a mim. Espero que a
apresentação do meu trabalho mostre a
inevitável atração que sinto pelas questões
que considero estejam no coração de toda a
arquitetura.
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