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Lembranças de uma
Cidade Querida
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
www.galenoalvarenga.com.br
Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo
Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que
pode ser adquirida através do site do autor.
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Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
Copyright © by GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
Supervisão Editorial
Sofia Lopes
Projeto Gráfico, Diagramação e Capa
Marcos de Oliveira Lara
Revisão
Maria Isabel da Silva Lopes
Impressão
Sografe
Contato c/ o Autor
[email protected]
www.galenoalvarenga.com.br
A473
Alvarenga, Galeno Procópio de Mendonça
Lembranças de uma cidade querida / Galeno
Procópio de Mendonça Alvarenga. – Belo
Horizonte: Ed. do autor, 2009.
186p.
ISBN 978-85-907543-7-4
1. Literatura brasileira – Romance. I. Título.
CDD: B869.35
CDU: 869.0(81) – 31
Elaborado por:
Maria Aparecida Costa Duarte
CRB/6-1047
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Agradecimentos
Nasci em Itabira, entretanto foi em Santa Maria de Itabira que
passei os alegres e descontraídos momentos de minha infância, adolescência e maturidade. Pouco a pouco fui encantado pelo ambiente
aconchegante e saudável do povo de Santa Maria de Itabira. Assim me
tornei filho adotivo dessa querida cidade.
Ao amável povo de Santa Maria de Itabira, minha cidade natal selecionada conscientemente, não por acaso, meus agradecimentos pela
acolhida simpática e afetuosa durante os inúmeros momentos em que
ali estive.
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(*) O romance “Lembranças de uma Cidade Querida” não descreve fatos reais ou percebidos em uma determinada cidade. Ele narra
uma história inventada, ficcionista, criada pela mente do autor. Qualquer semelhança com fato real presenciado ou imaginado pelo leitor
é mera coincidência.
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SUMRIO
Uma rua chamada Direita...................................................................9
Quincas e Carlota: Um casal qualquer de Lumeeira..........................21
Uma rua chamada pecado................................................................41
A famlia de Jac...............................................................................49
Nasce Rachel ...................................................................................57
Carnaval: Rachel alcana a idade adulta..........................................63
O baile  fantasia..............................................................................67
Semana Santa: O sermo do Padre Leo..........................................73
Semana Santa: A procisso...............................................................79
Arroubos tmidos..............................................................................85
Rachel e Tom..................................................................................89
Ascenso e queda de Ana Maria.......................................................95
O Desaparecimento de Rachel........................................................121
Rachel passeia com Tom...............................................................155
A proposta de Amvel....................................................................161
Uma terrvel deciso.......................................................................167
A queda final do namoro inexistente..............................................173
A manh seguinte...........................................................................179
Fugindo do incompreensvel...........................................................183
Anos depois....................................................................................185
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Uma rua chamada Direita
Lumeeira da Serra durante cem anos foi um município que se
celebrizou pelo requinte com que as mulheres da cidade, principalmente as moradoras da Rua Direita, fabricavam deliciosas goiabadas.
Naquela ruela estreita e silenciosa, calçada de pedras escuras de minério de ferro, as antigas construções enfileiravam-se, coladas umas
às outras. No meio dessas casas, destacava-se um imenso sobrado de
paredes brancas, mofadas e descascadas pelo tempo, exibindo suas
numerosas janelas e portas pintadas de azul.
Foi nesse casarão arrogante, mas ao mesmo tempo amargurado
por desgraças frequentes, que nasceu, no dia 25 de dezembro, Rachel
Gonçalves de Almeida Gomes. Não ousaria afirmar que Rachel foi uma
pessoa totalmente sem sorte, pois se assim fora, ela teria morrido logo
ao nascer, com seu minúsculo 1,4 quilo cabendo quase dentro da palma
da mão. Segundo D. Nenzinha, a parteira que a trouxe ao mundo, ela
sobreviveu por milagre, pois tinha tudo para morrer. Posteriormente,
muitos outros fatos acontecidos com Rachel, eventos comuns que ocorrem com todos nós, revelaram a conjunção surpreendente do azar e da
sorte, ora predominando um, ora outra, durante toda sua existência.
Segundo as conversas das comadres passadas de boca-em-boca,
ela não só demorou a andar, como a falar. Conseguiu uma coisa e outra, quando alcançou três anos. Seu destino incerto levou-a, nessa idade, quando brincava no quintal de sua casa, a ser picada por um escorpião amarelado, altamente venenoso. Mas como sempre acontecia,
seguindo seu destino, o acaso feliz a protegeu, debelando o azar que
circundava constantemente sua vida tumultuada e incerta.
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Rachel novamente escapou da morte, após esforços e dedicação
do médico pediatra existente na cidade, onde ela nasceu e viveu a
maior parte de sua vida.
A oscilação de sorte e azar continuou perseguindo-a. Para escapar da picada do escorpião, Rachel teve que tomar soro, e no lugar
onde penetrou a agulha, formou-se uma pele escura e amarelada que
passou a sangrar constantemente. Com o passar do tempo, formou-se
ali uma grande ferida, que demorou meses para fechar e cicatrizar.
Sua família, no conjunto, tinha, como Rachel também, as pequenas alegrias e tristezas da vida e de todos nós. Seu pai era um eterno
apaixonado pela sanfona, política e, mais ainda, pelas mulheres. Estava
disponível para tocar seu velho instrumento, sempre que anunciavam
um casamento, um aniversário, um batizado, ou ainda qualquer ajuntamento de pessoas.
Na rua Direita de Lumeeira moravam também outras pessoas
interessantes, além da família de Rachel. Mesmo sendo a cidade habitada por figuras estranhas, segundo a visão de um forasteiro, os
nascidos ali não percebiam a esquisitice de um ou outro morador,
ou mesmo do conjunto de habitantes de Lumeeira, pois todos os ali
residentes já haviam se acostumado a tudo que acontecia naquele pequeno lugarejo.
As casas construídas na Rua Direita ocupavam quase somente um
lado da rua. O outro lado, em quase toda sua extensão, era um enorme
e continuado morro de pedras e terra vermelha. Na parte mais alta da
rua Direita – ponto mais elevado da cidade - , estava a igreja católica e a
casa paroquial. A rua Direita terminava após uma descida bem inclinada de quase um quilômetro. Nesse ponto encontrava-se um albergue
pobre, que abrigava homens e mulheres sem recursos próprios. Estes
eram geralmente pessoas que, por diversas razões, não foram capazes
de se auto-manterem através do esforço próprio, como os alcoólatras
crônicos, idosos caducos, bobos, isto é, pessoas com defeitos físicos ou
mentais graves e crônicos, todos abandonados pelas famílias.
Na parte mais alta da Rua Direita, um pouco abaixo da casa paroquial, onde residia o padre da cidade, encontrava-se uma velha e
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quase destruída pensão, cujo dono, Felício, sempre tinha hóspedes
interessantes para serem vistos através dos buracos feitos pelo próprio
proprietário. Os diversos olhômetros existentes na pensão foram construídos nas portas e paredes de madeira apodrecida e destruída pelos
cupins. As paredes eram tão finas e esburacadas que a conversa dentro
de um quarto era ouvida, com nitidez, no outro quarto.
— Quer presenciar algo interessante? Tenho por hóspede, nos
fundos da casa, um doutor. Ele está recebendo uma dama, por sinal
muito bela... É muito interessante apreciar as safadezas deles...
Essas e outras apresentações de hóspedes eram anunciadas pelo
proprietário da decadente pensão: um hóspede tomando banho, um
outro indo à privada, um terceiro dormindo, conversando ou realizando outras atividades tão excitantes como as acima. Todas essas
apresentações espontâneas realizadas pelos atores amadores que ali
se hospedavam, podiam ser vistas, por plateias escolhidas, a preços
populares: R$ 1,00 por hora.
O preço variava conforme o espetáculo a ser observado e de
acordo com o dia e a hora. Quando era muito excitante, o próprio Sr.
Felício, o proprietário da pensão, assistia a tudo sozinho, pois, durante o tempo em que ele apreciava o espetáculo não liberava seu teatro
para mais ninguém.
Homero, o barbeiro, que tinha seu salão num cubículo colado à
pensão, além de ser vereador da cidade, eleito com 31 votos, era também um grande conhecedor de almas. Desse modo, muitos homens
o procuravam, não apenas para cortar o cabelo ou fazer a barba, mas
também para consultá-lo. Após se assentarem na cadeira, os clientes
iam contando os fatos traumáticos que vivenciaram, eventos sempre
carregados de fortes emoções.
Após terminar a longa narração, às vezes acompanhada de lágrimas e soluços, os fregueses recebiam os sábios conselhos do barbeiromacumbeiro. Após meditar, fingindo estar pensando profundamente
acerca do problema apresentado, e dependendo da complexidade do
caso, Homero, além das orientações e prescrições verbais, geralmente,
receitava raízes para esses sofredores.
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A maioria de seus clientes o procurava para se queixar de impotência, cansaço sexual, espinhela caída, sopro na mente, encosto, mauolhado, ronco no pulmão, dores no ventre e garganta com catarro.
Quando o caso era percebido como muito complicado, encaminhava o cliente, através de um bilhete, para seu colega de profissão,
Chiquinho Mandinga. Este, especialista em problemas amorosos, familiares e sexuais, possuidor de poderes mais profundos do que Homero,
vinha, a cada dia mais, obtendo enorme sucesso entre os curandeiros
da região. Seu poder de cura, inquestionável em Lumeeira e imediações, havia gerado muitas discussões acerca da causalidade e cura das
enfermidades. Além disso, suas rezas, preces e conselhos eram famosos ali e alhures.
— O homem necessita de alguma coisa diferente, que fuja ao rotineiro. Isso é terrível! O medo está para a alma como o banho de sauna para o corpo. Um e outro são muito saudáveis: melhoram a saúde e
prolongam a vida. Viver é igual a guerrear: quem ganha, vence. E tenho
dito! - afirmava, empolgado com sua sabedoria, Chiquinho Mandinga.
Salomão, consertador de fogões a gás, nas horas vagas era também serralheiro. Bastante obeso e careca, lábios flácidos, uma pele da
cor de batata doce, falava como se estivesse orando, com sua voz de
baixo rouquenha:
— Deus é uma grande invenção, quiçá a maior invenção já inventada nesse grande mundo de Deus. Se alguém - isso ninguém sabe
quem foi - não tivesse inventado Deus, não existiria o homem. Precisamos muito dele, muito mesmo. Aleluia! Aleluia! Glória e glória a Deus
e também ao seu inventor!
Jônatas, pedreiro aposentado, homenzinho cabeludo, braços
compridos, morador no final da Rua Direita, sempre era visto caminhando da casa paroquial ao albergue, de cabeça baixa, como se procurasse alguma coisa perdida há muito tempo. Diante de cada passante que encontrava, sem olhá-lo, cumprimentava-o com seu único tom
de voz:
— Bom dia, irmão! Deus ajude nossa alma perdida. Amém, Jésus, nosso Salvador.
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Josefino, sem nenhuma pressa, caminhava devagar olhando
para um lado e outro, trazendo as duas mãos cruzadas atrás das costas. Com sua barba comprida e esbranquiçada, muito alto e magro,
sorria para um e outro, inventando sempre alguma coisa interessante
para contar.
— Soube da última? Zé da Onça faz rapaduras deliciosas, custam
barato e duram muito. Isso caso você não ponha na xícara uma grande
quantidade no café. – E terminava sempre com uma enorme gargalhada.
Elias, irmão de Salomão, era vendedor de camisas, cuecas, lençóis e outros tecidos semelhantes. Homem ao mesmo tempo matreiro,
muito religioso e temente a Deus. Jurava, várias vezes ao dia, para o
freguês ingênuo e pobre, que seu preço era o menor da praça e o tecido do lençol de melhor qualidade. Após fechar a loja, antes de retornar
à sua casa para jantar e dormir em paz, nunca deixava de passar pela
igreja. Ajoelhado, ele rezava e pedia perdão a Deus pelas mentiras ditas
durante todo o dia.
Nestor, gerente do banco da cidade, era um cara que quase não
abria a boca para os moradores da cidade. Tinha medo que as pessoas
lhe pedissem empréstimos. Quando estava só, no seu quarto de pensão, falava sem parar consigo mesmo, acerca de sua vida e das coisas
do mundo. Seu tema preferido era comentar, para si, os diversos fatos
dos quais participou, principalmente os que se arrependeu de ter feito. No seu isolamento, Nestor ficava remoendo, em voz alta, as bobagens de sua vida vazia.
Murmurava ainda, às vezes fazendo recriminações contra si próprio, das bobagens feitas durante o tempo em que era jovem e morava na sua cidade natal. Essas críticas e autocríticas foram aprendidas
por Nestor através de um curso de treinamento de gerência dado pelo
banco, onde se discutiu administração bancária, arremedo de filosofia,
sexologia, AIDS, rudimentos de genética e outros conhecimentos extremamente úteis acerca de comportamento humano.
Lumeeira, como qualquer cidade do interior, tinha seus doidos e
bêbados. Não fugindo à regra, lá tinha Lando, que era bêbado e doido
ao mesmo tempo.
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Caminhava pelas ruas falando sozinho, pedindo pratos de comida, dinheiro para uma pinga e um lugar qualquer para dormir nos
dias de frio e de chuva, pois, nos dias quentes, ele preferia dormir nas
calçadas ou debaixo das árvores. Ninguém sabia quem era o pai de Lando, mas era voz corrente que seu pai era um próspero comerciante de
veículos que, na mocidade, teria sido um grande admirador de Te, mãe
de Lando. Contavam que, através de advogado, o comerciante ficou
livre dos encargos do filho.
Com 25 anos, e juntamente com outras coisas atraentes na cidade, Lando servia de diversão para as crianças e jovens da cidade, que
lhe faziam perguntas indiscretas acerca de sua vida amorosa e sexual. As
respostas, impublicáveis, eram disparates incompreensíveis e tristes.
Sebastião, viúvo e sem filhos, após ter vivido muitos anos fora de
Lumeeira, voltou à cidade. Logo nos primeiros dias ele já pôde sentir
que os costumes daquele lugar continuavam sendo quase os mesmos,
comparados aos de trinta anos atrás, quando decidiu ir trabalhar em
outro lugar.
Tentou não revelar para seus conhecidos sua vida passada, mas,
como voltou rico, essa característica foi facilmente descoberta. Por
isso, passou a ser procurado por amigos e parentes: todos lhe davam
conselhos de como deveria empregar as economias.
A princípio, ainda incerto a respeito de ficar ou não em Lumeeira, ele morou algumas semanas na pensão do Sr. Felício. Após algum
tempo, decidido a ficar na cidade, Sebastião comprou uma casa na rua
Direita, perto de onde morava uma viúva bastante atraente. Como ele
notou, e também como ele, ela fugia de contatos mais próximos com
os outros moradores, por isso era chamada de “sistemática” e bastante
antipatizada por todos.
Sebastião adquiriu, com o treino obtido nos grandes centros
onde viveu, um maior desembaraço e despreocupação ao lidar com
as pessoas. Entretanto, essa conduta não era aceita, sendo censurada
pelos habitantes da cidade. Para alguns moradores a linguagem de Sebastião era livre demais, suas expressões complicadas e metidas, seus
pontos de vista carregavam uma filosofia pedante.
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Seu comportamento natural e espontâneo era percebido e interpretado, pelas línguas ferinas da cidade, como um exemplo de conduta
pretensiosa, mal-educada e nada fina. Tudo isso porque ele conversava
com a arrumadeira que ia a sua casa duas vezes por semana, no mesmo tom e com a mesma atenção com que falava ao prefeito da cidade.
Aceitava convites para jantar, entretanto, dias depois, como ordenava
o hábito, não retribuía o convite, não convidava, agradecendo ao anfitrião, no prazo máximo de sete dias, para jantar em sua casa. Pior
do que tudo isso – considerado pelos homens e mulheres da cidade
como falta grave – eram suas contradições com respeito aos costumes
da cidade. Nas rodas de homens, Sebastião não se interessava e nem
contava histórias e anedotas acerca de sexo, uma conduta normal e
exigida para os homens durante seus bate-papos. Entretanto, às vezes,
contava coisas mais escabrosas, como se fossem perfeitamente naturais, nos ambientes de família e na presença de senhoras. Um absurdo
e um despreparo social!
Sentindo-se perdido naquele ninho estranho e pouco acolhedor,
frequentemente não compreendia os complexos mexericos que corriam
de boca-em-boca entre famílias inimigas. Ingenuamente, falava inadvertidamente coisas que não podiam ser faladas naquele ambiente.
As pessoas de Lumeeira, aos poucos, foram percebendo que a
presença de Sebastião era perigosa e inconveniente nas festas e reuniões, pois, quando ele abria a boca, corria-se o risco dele falar o reprovável Ele não compreendia, por exemplo, por que naquele lugar não
era permitido perguntar ao médico da cidade quanto ele pagou pela
camisa que estava usando. Uma lástima!
Morando perto da viúva, Sebastião, interessado em flores, começou a observar o belo jardim existente na casa ao lado, onde ela
morava. Como gostava de flores, um fato proibido para os homens do
lugar, permitido apenas para mulheres e gays, ele, envergonhado, a
procurou, interessado em vê-las mais de perto. Ela, temendo a fala do
povo, o rejeitou, imaginando que pudesse ser um gay, e ser amiga de
um gay desconhecido, naquele lugar, seria um perigo para a sua sobrevivência na cidade.
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A coitada da viúva era acusada pelos mexericos da cidade de
não ter se esforçado para prolongar a vida do seu marido que, canceroso e em estado terminal, sofrera dores atrozes.
Falar mal de um e de outro, da viúva e de Sebastião, do dentista ou de sua mulher, de Lando, o doido, do dono da pensão e
outros mais, muitas vezes inventar fofocas contra um e outro, era
um dos passatempos favoritos dos habitantes da cidade das gostosas goiabadas.
Sebastião, sem muito pensar e condoído do problema da viúva,
ao retornar de uma viagem pediu-a em casamento, e após vender a
casa dele e a dela, os dois mudaram-se para uma cidade grande e bastante distante de Lumeeira.
Alberto, após se recuperar de uma grande cirurgia a que foi
submetido, decidiu, a convite de uma irmã sua que ali residia, ir convalescer em Lumeeira. Como ocorre em todas as pequenas cidades,
foi apresentado pela irmã a diversas pessoas. Já melhor de saúde, a
cada noite Alberto comparecia a uma recepção diferente, em casas
dos amigos e parentes, que formavam um grupo de mesmo status
que o seu.
Numa das casas onde compareceu, pôde observar um tipo de
aristocracia em decadência, descendentes de alguém que, há cem,
duzentos ou quinhentos anos, tinha títulos de nobreza, pertencia à
família real ou foi amante do rei. A família visitada era composta do
marido, filhos e de sua mulher, que falava sempre olhando para baixo
e com voz fanhosa. Essa mulher, protótipo das outras ali existentes,
confessava-se e comungava regularmente e pensava, com total segurança, que bastava pertencer à família cujo sobrenome era X ou Y,
para ter prestígio, dinheiro e direitos para o resto da vida.
Encontrou também algumas famílias fósseis. Nessas, o marido e
mulher se sentiam obrigados a passar dois meses por ano numa das
praias badaladas do Rio de Janeiro ou do Nordeste, fazer compras
no fim do ano em São Paulo ou Nova Iorque. Essa família mantinha
os mesmos pontos de vista, os mesmos costumes e valores de seus
antepassados de séculos atrás.
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O vigário geral, Padre Leão, negociador hábil, era recebido em casa
dos ricos e dos pobres, oscilando entre dois polos, ora defendendo um
lado, ora outro. Num momento, criticava os poderosos e ricos da cidade
que exploravam os miseráveis e esbanjavam suas fortunas, em outro, ele
criticava os ricos e poderosos e lamentava a situação dos pobres que passavam fome e que eram os grandes frequentadores e adoradores da igreja.
No meio dos miseráveis de um lado e dos ricos e poderosos de
outro, estavam personagens secundários da tragicomédia de Lumeeira: os pequenos comerciantes, os funcionários públicos, os profissionais mais simples, todos com uma renda regular. As mulheres desses
homens do grupo do meio, sem naturalidade, imitavam, com ares superiores, as mais ricas e poderosos, acreditando estar muito chiques,
quando, na realidade, estavam ridículas.
Em torno desses diversos grupos, reuniam-se três a quatro solteironas dominadoras. Estas exerciam uma grande influência no comando de igreja, talvez possuíssem mais poder que o próprio padre. Essas
senhoras estavam constantemente fiscalizando e controlando a conduta dos habitantes da cidade, esforçando-se por manter fossilizada a tradição, a memória e o espírito, para que nada fosse contra o transmitido
por suas mães, avós, bisavós, tetravós e outras ascendentes.
Segundo as observações de Alberto, a soma das informações acumuladas em todas as cabeças era composta de uma imensa quantidade
de ideias antigas, às quais se misturavam alguns pensamentos novos.
Os discursos representativos das ideias do lugar avançavam e recuavam, no seu vaivém continuado e monótono. Como um pêndulo, as
ideias reproduziam, indefinidamente, os mesmos movimentos, as mesmas formas, uma marcha eterna e igual.
Quem escutasse hoje, uma só vez, seu ruído vazio, ouviria amanhã,
ou daqui a um ano, a mesma sonoridade desprovida da realidade. Tudo
ali se repetia, a mesma coisa, o mesmo modo de falar, as mesmas palavras
e assuntos, como o som continuado que nascia da água de uma cachoeira. A vida rotineira dos moradores de Lumeeira girava em torno de uma
série de hábitos e conversas tão inalteráveis quanto o eram suas opiniões
religiosas, políticas, ideológicas, morais e literárias. Jamais mudavam...
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Alberto observava aqueles personagens, enquanto ia se recuperando da cirurgia, mas ficou amedrontado. Com dificuldade, pouco
a pouco percebeu que muito lentamente - como todos ali - foi assimilando as condutas e o modo de pensar dos habitantes da cidade.
Imaginou que, se ficasse morando ali por muito tempo, acabaria incorporando as novas maneiras de viver e podia nunca mais mudálas, talvez nem perceber o modo dogmático e fóssil que ele absorveu
passivamente.
Decidido a retornar à sua cidade, teve naquela noite seu último encontro com um seleto grupo de amigos e parentes. Uma das
conversas girou a respeito de uma mulher separada do marido e, por
isso, vista como inaceitável e perigosa. Depois de ouvir, com toda a
atenção, as opiniões de um e de outro, despediu-se e foi embora para
casa dormir. No dia seguinte, bem cedo, retornou ao seu ninho.
Quatro irmãs moravam numa casa na parte mais baixa da rua
Direita, bem próximo ao albergue. As quatro irmãs, sendo costureiras
simples, consertavam uma calça rasgada, faziam, diminuíam ou aumentavam uma bainha, pregavam botões e faziam mesmo vestidos-padrão.
Eram órfãs de pai, a mãe ainda vivia, e após sofrer um derrame,
não mais reconhecia nenhuma das filhas. Permanecia a maior parte
do tempo deitada numa cama, ou assentada numa cadeira de rodas,
emprestada por um vizinho.
Muito cedo, as irmãs aprenderam com o pai a gostar de música,
principalmente de cânticos religiosos. Convidadas pelo padre, elas
entraram para o coro da igreja. O pai, um homem cheio de princípios,
tocara saxofone na banda da cidade e, além disso, como tinha uma
boa voz, cantara canções antigas em aniversários e casamentos.
Ele imaginava que uma mulher, como suas filhas, não podia
amar um homem casado, sendo solteira, não podia querer outro homem que não fosse seu marido, o qual devia ser o escolhido pela
família. Tudo isso porque as regras ditadas e impostas pela sociedade
de Lumeeira eram essas. Ele não sabia, nem mesmo imaginava, que
a coitada da sociedade, apesar de impor, muito séria, certas regras,
tentava também impor inúmeros princípios.
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Entretanto, frequentemente, a natureza do indivíduo não escutava o ordenado pela sociedade, zombava dela e acabava fazendo o
proibido.
A prefeitura de Lumeeira, numa certa época, interessada em incentivar e divulgar as artes de um modo geral, ofereceu aos interessados alguns ingressos para a ópera Madame Butterfly. As quatro irmãs,
amantes das artes, ganharam os ingressos e foram até Belo Horizonte
para assistirem ao espetáculo. A ópera vista, foi, enquanto viveram,
o acontecimento mais fantástico e importante presenciado por elas.
Ao final do espetáculo, saíram encantadas do teatro, choraram muito,
penalizadas com a heroína japonesa apaixonada pelo militar americano, que não retornou para os braços dela como era esperado.
Os tempos passaram e elas continuaram cantando no coro, costurando e solteiras, apesar do aparecimento de alguns poucos pretendentes. Estes últimos surgiram à medida que elas foram ficando mais
adultas, após a morte do pai, pois este não permitia que elas saíssem separadas uma das outras. Só podiam sair juntas: uma vigiando a outra.
Por azar - ou seria sorte? - apesar dos relacionamentos com diversos amigos, apenas amigos, nenhum dos rapazes com os quais elas
se encontravam na igreja, ou fora dela, as procuraram para propor um
casamento. Um dos amigos era maestro do coro da igreja, o outro, o
sacristão, um terceiro dava aulas particulares de canto para uma delas.
Nenhum deles, apesar da amizade, declarou-se apaixonado por elas.
À medida que foram ficando mais maduras, ou talvez mais velhas, quando os possíveis pretendentes mais exigiam de uma mulher,
os rapazes foram se afastando e desaparecendo. Desse modo, elas continuaram solteiras.
Mesmo assim, alguns poucos rapazes, que de tempos em tempos
as visitavam, não demonstravam nenhum interesse em conquistá-las
e quase sempre os candidatos a candidatos se casavam com outras
moças. As quatro irmãs foram, aos poucos, desistindo de arrumar namorados, decidindo viver sozinhas e à custa de seu trabalho, como
sempre viveram.
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Quincas e Carlota:
Um casal qualquer de Lumeeira
Quincas e Carlota, casados há 35 anos, ele com 60 anos de idade
e ela com 55, moravam numa casa espaçosa, porém bastante estragada
pelo tempo. No fundo da casa havia um grande terreno tomado pelo
capim meloso e algumas laranjeiras, bananeiras e mangueiras, que ali
nasceram por acaso..
Os dias de Quincas e Carlota eram sempre iguais, levantavam-se
às 05:30 horas e, enquanto Carlota fazia o café, Quincas caminhava
até a padaria, que abria às 6:00 horas, para comprar o pão e, às vezes,
um pedaço de queijo e um pouco de margarina, quando esses tinham
acabado.
Carlota, após separar a lata contendo o pó de café e o açúcar,
e enquanto esperava a água ferver, retirava de dentro de um guardalouça, presente da família de Quincas no dia do casamento, existente
na sala de visita, frascos contendo medicamentos, que marido e mulher deveriam tomar na parte da manhã, conforme indicação médica.
Segundo o médico, sem eles, Carlota e Quincas morreriam em pouco
tempo.
Uma vez abertos os frascos, deles eram retirados, para um e para
outro, cápsulas, drágeas e comprimidos, com ações diferente: cálcio
para a osteoporose, hormônios para menopausa, anti-hipertensivo,
antiarrítmico, anticoagulante, antidepressivo, anticolesterol, bem
como doses cavalares de vitaminas C, E, B12 e de sais minerais, ótimos como suplementos alimentares.
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Em seguida, Carlota retirava do guarda-louça a xícara de Quincas e a dela, colocando-as, viradas com a boca para baixo, no lugar
onde todos os dias eles se assentavam. Depois, retirava da gaveta do
armário da cozinha uma faca para passar margarina, a serra de cortar
pão, o açucareiro e colherinhas para misturar o açúcar, cada peça
colocada sempre no mesmo lugar.
Após o café ser coado no coador de pano, diretamente no bule
de alumínio, cheio de manchas, este era colocado sobre uma lata vazia de marmelada que servia de suporte e previamente colocada em
cima da mesa, bem no centro desta. O leite, fervido numa panela de
ferro, permanecia em cima do fogão e, para ser servido, usava-se uma
grande concha de alumínio.
Antes de se assentarem, cada um segurando sua xícara, iam até
o fogão para pôr o leite fervido e necessário conforme o gosto deles.
Uma vez assentados, enchiam a xícara com o café, partiam um bom
pedaço de pão, às vezes uma fatia de bolo de fubá, feito por Carlota,
untavam estes com margarina e, em seguida, paravam por instantes
para orar, agradecendo a Deus a refeição, a saúde e o bem-estar vivido pelo casal. Em seguida, à medida que iam comendo o pão e tomando o café com leite, eles também iam, pouco a pouco, ingerindo
cada um dos medicamentos enfileirados sobre a mesa. Examinando
e reexaminando cada um deles, para não os tomarem de forma inadequada durante o lanche da manhã e depois de se certificarem que
tudo estava certo, os medicamentos iam sendo engolidos, um a um,
ajudados pelo café com leite.
Todas as manhãs - fizesse chuva, fizesse sol - o ritual se repetia:
o casal se assentava no mesmo lugar, as xícaras eram as de sempre,
a esverdeada e grande para Quincas, a pequena e rosa para Carlota.
Até mesmo a quantidade de leite usada para ser misturado ao café
era a mesma.
Se caísse um pouco mais, o excesso era despejado fora. Há anos
eles usavam o mesmo café, a mesma quantidade de água era fervida,
na mesma panela. Tudo ali se repetia, dia após dia, as mesmas coisas,
do mesmo modo. Era proibido mudar!
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Tendo uma vaca nos fundos do quintal, Quincas, após comer seu
pão, tomar seu café com leite e comer um pedaço de queijo quase sem
gordura e muito salgado, como ele sempre gostou, após se despir das
roupas usadas para ir à padaria, vestia uma velha roupa de fazendeiro,
pois agora iria começar seu trabalho diário.
Em cima da pia da cozinha ele pegava o balde limpo. Saindo
pelos fundos da cozinha, caminhava cerca de cinquenta metros, limite
extremo do seu terreno, e num pequeno curral aproximava-se da velha vaca, aparentando cansaço. Após pegar o banquinho que ficava em
cima da prateleira improvisada no curralinho, Quincas se assentava,
colocando antes, em cima do banco, uma almofada velha e suja, para
tornar o assento mais macio. Desse modo amenizava as dores das hemorróidas sempre doloridas. Após prender o bezerro, amarrado em
uma corda nos próprios pés da vaca, ele limpava, usando as próprias
mãos, as tetas da vaca malhada, onde antes o bezerro havia mamado
para “puxar o leite”.
Assentado, colocava o balde entre suas pernas, segurava a teta já
limpa com os cinco dedos da mão, apertando-a e puxando-a para baixo em movimentos cadenciados pelo barulho que o esguicho fazia ao
tocar o fundo do balde. A produção de leite não ultrapassava os dois a
três litros por dia.
Terminado esse ritual diário, Quincas soltava o bezerro para mamar o restante do leite ainda existente no peito da vaca. Segurando o
balde em uma das mãos e o banquinho na outra, retornava a casa, entregando para Carlota o leite para ser fervido e guardava o banquinho
para ser usado no dia seguinte.
Nesse momento Carlota já tinha lavado todas as xícaras, pires,
pratos, facas e colheres, coadores, panelas, isto é, todos os objetos
usados pela manhã. Além disso, já havia passado um pano úmido no
chão cimentado da velha cozinha escura, de paredes descascadas pelo
tempo, onde se viam algumas baratas andarem distraidamente.
Enquanto isso, Quincas cortava, ora no seu próprio quintal, ora
num terreno baldio em frente à sua casa, capim para alimentar a vaca
e o bezerro, quando este começava a comer vegetais.
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Uma vez cortados, eles eram colocados num carrinho de pedreiro e levados até uma máquina elétrica barulhenta, que cortava o capim
em pequenos pedaços que eram levados ao cocho, onde eram despejados para serem ingeridos. Em cima do capim cortado era espalhado
farelo de milho.
Essa rotina da vida dos dois era repetida de forma sempre igual,
durante os 365 dias do ano: nada, nada mesmo, impedia esse ritual necessário. Eles moravam sozinhos; os filhos, todos casados, trabalhavam
em outras cidades e como não tinham empregados, Carlota e Quincas
faziam todo o trabalho diário da casa.
O resto do dia seguia uma rotina estrita e semelhante à já descrita. Carlota ficava quase que o dia todo cozinhando e limpando a
cozinha, arrumando gavetas, varrendo o chão da casa e das partes mais
próximas da casa e do passeio junto à rua, costurando roupas rasgadas
ou lavando outras. Quincas, por sua vez, além de tirar o leite, vendia o
pouco que sobrava para um ou outro vizinho. Carlota não saía, somente Quincas fazia as compras, sempre andando, pois não quis aprender
a dirigir automóveis e não gostava de carroças, charretes ou de cavalos.
Ao voltar da rua, onde fora fazer compras, muitas vezes era lembrado
pela mulher que faltava o sal ou o sabão, assim ele voltava novamente
ao mesmo lugar onde fora poucos minutos antes. Além disso, era ele
que cuidava do galinheiro, verificava o estrago provocado pelos gambás. Os ovos ainda não devorados eram colhidos e entregues à mulher,
que os guardava na geladeira.
O que Quincas jamais fez foi o serviço tido como próprio das
mulheres, entre eles lavar uma meia, um lenço, uma xícara ou um
copo. Por outro lado, Carlota também não fazia o serviço restrito aos
homens, como pregar um prego numa tábua, conversar com pedreiro ou bombeiro, entrar em discussões acerca do aumento ou não da
altura do muro, pois, segundo as regras da família, tais atividades não
faziam parte do trabalho das mulheres. Portanto, a maior parte do dia,
cada um dos esposos agia conforme um roteiro rígido usado em Lumeeira, seguido por quase toda a população, sem que ninguém ousasse
questionar tais prescrições.
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Sempre, naquela casa, havia alguma coisa para ser feita por um ou
pelo outro cônjuge. O quintal, relativamente grande, tinha, além do capim,
pés de frutas que davam muito trabalho para Quincas olhar e cuidar.
No final do dia, quando sobrava algum tempo para Carlota, ela
caminhava, com seus passos lentos e arrastados, até o passeio defronte de onde residia e lá ficava olhando as pessoas, os ônibus e bicicletas
passarem. Cumprimentava cada passante, às vezes ocorria uma conversa rápida com uma amiga ou amigo. Nesse momento, aproveitava
para contar ou ouvir um caso qualquer acontecido em Lumeeira e
como quase todos os que por ali passavam eram conhecidos, não faltavam assuntos interessantes e familiares para as conversas.
As vizinhas, de um lado e outro, mais chegadas a Carlota e também menos atarefadas que ela, geralmente ficavam horas em frente às
suas casas, olhando o movimento diário da cidade. Assim, elas ouviam
uma informação e, em seguida, a transmitiam para um novo passante
que ainda não sabia do acontecido. Dessa forma, no fim de cada dia,
estavam de posse de todos os grandes acontecimentos da cidade e, ao
mesmo tempo, divulgavam as notícias importantes para a maioria da
população. Faziam o papel de um jornal falado ao vivo informando as
principais notícias de Lumeeira. Qualquer pessoa na cidade que quisesse se informar melhor acerca de um ou outro evento, como “quando
será o casamento de Pedro”, “por que Ana largou seu marido”, “com
quem Joana está trabalhando” e mais, “quem casou ou vai se casar”,
“quem está doente”, “quem morreu”, “os acidentes ocorridos nas estradas”, “a gravidez indesejada de Maria ou Tereza”, para saber tudo isso,
bastava ir ali, até onde moravam as vizinhas de Carlota, pois lá seriam
informadas destas e de outras questões importantes na cidade.
Assim, seguindo a rotina de todos os dias, a partir das quatro
ou cinco horas da tarde, até escurecer e começar a novela das seis,
formava-se uma reunião das mulheres vizinhas de Carlota. Quando,
por uma razão ou outra, o assunto ventilado não caminhava por si só,
por absoluta pobreza dele, e estando tudo normal, as vizinhas e Carlota conversavam sobre as novelas que estavam passando na “Globo”
e, nesse caso, cada detalhe era discutido e repetido várias vezes.
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Para completar as discussões acerca das novelas, falava-se, com
grande conhecimento, sobre minúcias da vida de cada artista protagonista das atuais novelas. Também eram comentados seus trabalhos
anteriores, como o da novela exibida no ano passado ou há dez anos
atrás. Desse modo, comparava-se seu trabalho atual e o antigo, bem
como sua beleza nessa e na novela antiga, seus casamentos e separações, sua riqueza e fama e a cor do cabelo. Com grande entusiasmo e
emoção, durante horas era discutido pelas amigas nervosas o destino
do personagem desta ou daquela novela.
O que não se via, talvez nem fosse permitido, era a participação
dos homens nesses encontros dos fins de tarde. Os homens, assentados e mais discretos diante dos muros baixos, limites do passeio que
cercavam a casa, distintos das mulheres apesar da maioria assistir às
novelas, tinham assuntos sérios, picantes e interessantes para serem
discutidos nas suas reuniões das tarde de cada dia. Muito compenetrados, discutiam a venda do bezerro malhado, a compra de um martelo e
do serrote especial, os ratos que andavam invadindo a casa e o assunto
principal e mais animador: a mulher da cidade mais fácil de ser cantada
e possível de ser comida.
Quincas e Carlota quase não conversavam um com o outro,
quando se falavam era através de balbucios ou resmungos, ou quando
tinham necessidade de dar ou receber um recado ou ordem um do
outro. Fora isso, quando estavam frente a frente, geralmente entravam
em discussão intermináveis e ditadas pelos motivos mais ínfimos, assuntos que eram sempre os mesmos.
Ao anoitecer, após entrarem em casa, Carlota e Quincas assentam-se diante da TV, cada um na sua poltrona rasgada e remendada,
sem falar um com o outro. A televisão, como tudo o mais, cumpria
uma rotina repetida diariamente: estava sempre ligada, e ligada permanecia, no mesmo canal.
Os dois, silenciosos e atentos, assistiam a tudo o que era mostrado pelo canal preferido: novelas e propagandas, independentemente
do produto anunciado, inclusive quando o produto mostrado nada
tinha a ver com a vida que levavam.
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Os canais de TV “inimigos”, “horríveis” por sinal, jamais eram vistos, nem mesmo examinados. Sem curiosidade, eles não mudavam para
outro canal, nem imaginavam que pudesse estar apresentando alguma
coisa interessante para eles. Como consequência dessa prisão a um só
canal, os fanáticos adoradores de um determinado canal de TV passavam
a ter certeza absoluta de que o canal escolhido e fixo era o melhor e fora
bem escolhido, e que nos outros, os não examinados, nada apresentavam de interessante. Por isso não havia razões para se gastar o precioso
tempo com coisas ruins e nesse momento perder cenas espetaculares
que, caso não fossem assistidas, seriam perdidas para sempre, o que
seria uma tragédia.
Terminada a novela, às 8:15 horas da noite, os dois se preparavam
para dormir, tomando antes um pouco de leite com farinha de milho.
Nesse momento, novamente, os vários medicamentos eram pegos no
guarda-louça para serem ingeridos. Como se tratava da noite, o primeiro
a ser tomado era o medicamento para insônia, vindo depois os outros:
para abaixar o colesterol, o anti-hipertensivo, o anticoagulante, antiarrítmico, anti-inflamatório, antidepressivo e outros “anti” isso e “anti” aquilo. Todas essas drogas eram tomadas com imensa satisfação, pois, desse
modo, conforme as informações do médico do posto de saúde, estariam
protegidos e poderiam desfrutar da bela e excitante vida que levavam
por vários e vários anos.
Apesar do silêncio que reinava entre os cônjuges, Quincas e Carlota, por viverem diariamente um muito próximo do outro, conheciam
cada pigarro, tosse, coçada na cabeça, fungada, espirro, tom de voz,
olhar, encurvamento ou levantamento do tórax, cada palavra do outro.
Às vezes, mas nem sempre, nos feriados e dias santos visitavam
ou eram visitados por amigos, tão simples e presos à rotina como eles.
Nessas ocasiões, cantavam modinhas ao som de discos de vinil arranhados, que eram acionados nos antigos aparelhos de som e, ocasionalmente, movimentados pelas próprias mãos. Durante as visitas, o
que não podia faltar para os homens era a bebida, que muitas vezes
provocava pesadas brigas entre os amigos e parentes. Mas após algum
tempo estas terminavam.
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Geralmente quando a visita se preparava para se despedir, a paz
retornava, as discussões e xingamentos acabavam em abraços e choros
dos dois ou demais protagonistas. Voltava a grande amizade de sempre
e os convites para novos encontros.
Os dias vinham e iam, uma fileira interminável deles que não acabavam nunca, todos idênticos, como pés da centopeia, todos iguais,
tornando a vida do casal insossa, cansativa e provocadora de irritações
constantes de lado a lado. Quincas, desesperado, lamentava-se:
— Eta vida! Filha de uma pua! Para que viver? Trabalho e repulsa,
repulsa e trabalho. Quincas, depois de alguns minutos sem nada dizer,
olhando o teto, continuava:
— Minha mãe me pariu imaginando que eu seria alguma coisa, tenho certeza! Para que me serve o que me ensinaram? Agora me
aposentei. Há, por acaso, poucos aposentados nesse mundo? De forma
alguma! Eles estão sobrando, isso sim! Eu não faria nenhuma falta! Alegraria muita gente, principalmente o governo. Como posso ter prazer
por estar aposentado? Nenhum! Nenhum mesmo!
— Você reclama muito, além disso ninguém escuta suas reclamações, apenas eu.
— Preciso desabafar. Passo o dia nesse bendito, ou melhor, maldito buraco. Cada vez mais não vivo, apenas olho a vida passar lá fora.
A cada dia ela está mais longe! Eu já não faço parte da vida lá de fora,
sou um espectador, como o sou das novelas. Nada represento, apenas
assisto. Alegro-me e enraiveço-me com o que ocorre com os outros,
pois nada faço... Qualquer dia eu morro.
— Quanta bobagem. Eu irei primeiro que você.
— Deixa-me falar! Não me interrompa! E daí? Nada! O jornal não irá
gastar tinta descrevendo: “O cidadão Quincas, ex-fazendeiro, morador em
Lumeeira, atualmente aposentado, morreu disto ou daquilo”. Que vantagem há nisso? Ser ex e depois, quando se espera ser alguma coisa, torna-se
aposentado e doente?
Que importância tem essa notícia? Nenhuma! Será necessário que
eu, Quincas, viva? Um bobo, quase analfabeto, que se levanta cedo para
comprar o pão, se assenta já cansado e vai tomar café, junto toma vários
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comprimidos para evitar morrer, depois vai tirar um litro de leite, cortar
capim para dar à vaca e, para terminar, vai ao banheiro mijar! É muito pouco! Quem vai admirar o que faço? Gostaria de saber. Só imbecis como
eu. Você mesma deve rir de mim, imaginar: “Quanta pobreza! Ele faz o
que qualquer menino faria.”
Carlota, calada, ouvia os desabafos de Quincas, queixas repetidas
inúmeras vezes. Preocupada, ela pressentia algo desagradável: “Seria a
bebida?”, ela se perguntava. Diante dos desabafos, que a assustavam, ela
às vezes pedia a Quincas para não falar daquele modo assustador. Para
Carlota, essa maneira de falar ia contra a vontade divina. Deus sabia como
ordenar e arrumar a vida de cada pessoa de um e de outro modo. Não
cabia a nós protestar, pois tudo existia, de um modo ou outro, conforme
a vontade divina. Se Quincas era um João Ninguém, foi porque Deus quis
fazê-lo assim, em virtude de algum propósito que só Ele mesmo sabia e
nós não alcançávamos.
Mas Carlota nem sempre filosofava sobre religião. Muitas vezes a
cabeça dela também esquentava e respondia com veemência às críticas
acerca da vida feitas por Quincas:
— Cala essa boca, já falou demais! Se você rezasse mais, certamente teria uma vida mais alegre e não inventaria tais pensamentos. Muitos
estão melhores que nós, guardam dinheiro em lugar de ficarem se queixando, abrem seus negócios, vivem como os ricos, os poderosos e não
desse modo.
— Idiota! Como fala bobagem! É uma tonta! Repete, como papagaio, sempre as mesmas besteiras. Como posso deixar de xingar o
mundo, de criticar você? Magoar você, atacar o mundo com palavras é
uma das poucas alegrias que ainda conservo em minha vida! Sua burra!
Queixar e xingar é o que herdamos com a velhice, é o que nos resta.
O que vamos colocar no lugar da queixa e do xingamento? Ar? Mesmo
este já entra com dificuldade em nossos pulmões.
— Fui chamada de “idiota”, agora eu acabo de ouvir um imbecil falar.
— O disco estragado voltou a repetir as mesmas frases. Você por
acaso conhece as outras pessoas bem sucedidas das quais fala? Se não,
vai conhecer agora: eu era um deles.
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Talvez nem tanto, mas, de qualquer modo, fazia o que desejava
antes de me casar. Você me sugou, tornou minha vida intolerável, preso a você. Sanguessuga! Vaca tonta!
— Já passou para mim. Eu sou a culpada? Carlota lembrava que
Quincas, antes de se casar, era um homem divertido, alegre e bondoso,
não o amargo e desesperado que estava à sua frente; “Por que será?”
Pensava a mulher: “Será verdade que eu sou uma carga prejudicial na
vida dele?” Ela sentia uma opressão no coração, lamentava-se, mas ao
mesmo tempo ficava com pena dele. Aproximou-se do marido pouco
a pouco, e olhando-o nos olhos, foi se encostando carinhosamente no
peito dele, esperando acalmá-lo.
— Ora! Não vai me dizer que agora você vai me lamber que nem
uma cadela... resmungava Quincas, fingindo-se de zangado e fazendo
de conta que queria afastá-la de si. Ela sabia que não o faria e apertava
seu braço. Ele se desmanchou em instantes, mudando o tom de voz e
o conteúdo do discurso:
— Oh, Carlota, minha velha! Vivemos mal, muito mal! Brigamos como feras. Por que será? Será que tudo isso foi determinado
por Deus? Mas por quê? O que fiz para merecer isto? Vai ver que isso é
minha sina.
— Nada, nada - disse, aproximando-se mais dele e gostando do
contato.
— Que posso fazer com meu gênio? Agrido-a, sempre que tenho
algum tempo para conversar com você. Sei disso. Mas sei também que
só tenho você nesse mundo de Deus... Não tenho mais ninguém, o
resto acabou ou está acabando.
— Acalme-se, será melhor para você. Abraça-me! Lembre-se do
nosso primeiro abraço.
— Na hora da raiva não me lembro de nada. Não me lembro
do primeiro abraço e nem que estamos sozinhos nesse mundo, um
agarrado ao outro, ninguém se interessa em nos socorrer, pois todos,
como nós, estão também se afundando. Todos os velhos como nós
esperam a morte.
— Ora, ainda vamos viver muitos anos.
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— E por acaso eu quero viver muitos anos?
Devíamos parar de tomar essa quantidade de remédios, assentarmo-nos na poltrona e esperar até que a morte nos venha visitar.
— Que horror! Fecha essa boca maldita!
— Sabe, às vezes nem quero ver você! Tenho ódio, é como se
estivesse farto!
— Farto de mim? Não entendo! Fala que estamos sozinhos, um
preso ao outro, depois fala que está farto.
— Sinto as duas coisas no mesmo instante, minha cabeça é assim. Saio à rua, por instantes, e tenho saudade de você. Chego e tenho
raiva. Entendeu? Sinto dois impulsos ao mesmo tempo: ficar perto e
longe de você. Não sei o que escolher.
— Não entendi, eu gosto ou não gosto. Não tem esse negócio de
dois sentimentos opostos na mesma hora.
— Quando estou assim, me transformo, sei que nesses momentos eu seria capaz de enfiar uma faca na sua barriga e na minha, tudo
ao mesmo tempo, como o carniceiro. Matar você para aliviar meu ódio
e depois suicidar-me, por não ter você para ficar comigo. O que seria
de mim sem sua presença?
— Como você é esquisito. Ah! Já tinha percebido isso.
— Imagino transformando nós dois em pedaços de carne!
Quanto mais razão você tiver, mais aumenta minha vontade de
nos estraçalhar.
Carlota não entendia suas ideias, não captava a intenção contida
em suas palavras confusas, talvez nem ele entendesse. Entretanto ela
percebia que a mensagem, naquele momento, era de paz, pois a voz de
Quincas estava calma, até carinhosa. Isso diminuiu sua tensão e a acalmou, levando-a, sem receio, a se aproximar mais do corpo do marido.
Quincas, preso aos braços de Carlota, continuava a falar, no mesmo tom de voz:
— Deus há de permitir que algum dia melhore nossa vida. Nós já
nos acostumando um ao outro.
Carlota notava que a discussão estava prestes a terminar. Sabia
que os dois estavam habituados e entrelaçados um ao outro.
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— Talvez com a vinda dos netos, dos bisnetos, resmungou Carlota, suspirando, apenas para encher o vazio da fala que ia se extinguindo e prosseguiu:
— Quem sabe, desse modo nós teríamos com que nos divertir,
por quem nos preocupar.
— Divertir e nos preocupar com os netos? Já temos preocupação
demais!
— Não é bem assim, com a saída dos filhos, não temos mais ocupações que nos interessem ou nos absorvam. Como você sabe, atualmente não temos nada para nos preocupar seriamente.
— Eu me sinto preocupado o dia inteiro.
— Você arruma preocupações para encher o tempo, que é cheio
de despreocupações. Entendeu?
— Acho que não.
— Irei explicar melhor: você está aposentado – sei que o dinheiro é pouco, mas dá para nós dois – não mais precisa trabalhar para
comer. Os filhos já foram embora e agora vivem por conta própria,
não nos amolando mais. Os problemas de saúde que temos são leves,
próprios da velhice e tomamos remédios para isso. Então, vamos nos
preocupar com quê?
— Com várias coisas... é, me preocupo sem parar...
— Você se preocupa com o vazio. O que é o vazio? A falta do que
fazer, uma ausência de um interesse constante e importante. Esse nós
não temos.
Os velhos morrem mais cedo por não terem nenhum projeto importante para seguir, se emocionar, prender a atenção continuadamente. Não falo em receber uma visita, ir a uma festa, pular carnaval. Isso
tudo não traz interesse continuado, é apenas um momento, é passageiro demais, como comer um pão quentinho e gostoso, acaba logo.
— O dia inteiro eu faço coisas: tiro leite, corto capim, dou à vaca...
— Mas se não fizer isso, sua vida pouco muda. Falo de planos a
longo prazo, que são importantes para o que desejamos, como cuidar
de um recém-nascido. Acabaram-se os nossos grandes e importantes
projetos. Na ausência deles, só nos restou inventar um.
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A única coisa interessante com que nos defrontamos e empenhamos são nossas brigas, como a maioria dos velhos. Nós brigamos o dia
inteiro para dar um significado às nossas vidas, sem elas nos sentiríamos piores ainda. O restante nós preenchemos com pequenas preocupações: novelas e fofocas, pois sendo nossas diversões, deixamos
de lado um empenho maior em planos nossos e mais elaborados. O
remédio é procurar outra coisa para fazer e que nos interesse. É isso!
— Isso não irá mudar nunca. Eu xingo, não para encher o tempo,
mas sim obrigado pelo sofrimento que me aflige, uma dor interna me
força a xingar.
— De onde vem esse sentimento pesaroso que faz você sofrer?
Não será devido à falta do que fazer? perguntou Carlota com uma voz
desanimada e cansada de tanto pensar.
— É meu destino, mulher! Destino, feridas e marcas de minha
alma! Acha que sou pior ou diferente dos outros? Eu sei que morreria
sem você, muitas vezes penso nisso. No entanto penso, durante a raiva, em matá-la.
Sou como elástico, quanto mais puxado e esticado for, mais força
e impulso tem. Quando ando pelas ruas e vejo uma casa bonita, um
belo automóvel, um aparelho grande e colorido de televisão... e muito
mais, lembro-me que não tenho nada disso, sinto um azedume dentro
de mim.
— Não pense em mim. Deixe de bobagem. Eu sei que você se
preocupa comigo. Sei muito mais, sei tudo de você, conheço você por
fora e por dentro, interrompeu Carlota e continuou:
— Sei quando e como você vai espirrar, sei isso porque você já
espirrou perto de mim mil vezes, muito mais. Sei quando você precisa
ir ao banheiro, quando coça a cabeça está preocupado, quando fala e o
olho está virado para cima é porque está pensando na mentira que vai
me dizer... isso tudo eu sei. Por que se casou comigo?
— Por quê? Sei lá por quê... Teria feito melhor se tivesse saído aí
pelo mundo. Podia passar fome, mas seria livre e isso é que importa! Iria
para onde quisesse, com quem quisesse, à hora que quisesse! Não teria
ninguém para me vigiar e julgar, sem parar, o dia inteiro. Isso é terrível.
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Mas, no fundo, Quincas sabia que ela pensava melhor que ele,
Carlota era muito mais fria, raciocinava com calma e lógica. Ele, ao
contrário, resolvia tudo apressadamente, esquentava a cabeça à-toa,
não media o que falava. Precisava dela para ajudá-lo a pensar e freálo. Se estivesse sozinho, já teria, muitas e muitas vezes, destruído sua
própria vida.
— Então vá! Assim eu também alcançaria a paz e liberdade que
você tanto ama! gritou Carlota, pronta para chorar.
— Que liberdade é essa? Perguntou Quincas desconfiado.
— Isso quem decide sou eu!
— Que liberdade é essa, eu perguntei? Indagou Quincas de novo
tendo os olhos fuzilando.
— Você tem alguém?
— Não berre, não tenho medo! Com minha idade? Não seja idiota! Se tivesse alguém teria largado você há muito tempo e não agora!
— Vai ver que achou um pau de amarrar égua para se encostar,
um ombro alquebrado de algum caduco do albergue? Responda!
— Deixe-me!
—Também para quê? Não serve mais para nada! Berrou Quincas.
Assim vivia aquele casal que, no fundo, era um casal como a
maioria, duas pessoas boas. Ambos viviam passivamente, esperando
que algum dia, por milagre, acidente ou sorte, sucedesse algo que destruísse totalmente suas existências já periclitantes. Mas nada acontecia,
tudo permanecia igual, terrivelmente igual.
— Basta! Aguentei além de minhas forças! Não quero mais te
ouvir, berrou Carlota.
— Então, tenho culpa? Você também! Em vez de me convencer,
ainda me provoca! Para que faz isso? Interpelou Quincas, agora num
tom de voz mais de paz
Mas a trégua durava pouco, logo em seguida, sem quê nem pra
quê, a discussão inútil e sempre igual voltava:
— Por que berra feito o boi bravo diante do boi estranho que se
aproximou do rebanho? Irrompeu Carlota diante do silêncio insuportável que não acabava mais.
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— Sua cadela que não tem mais cio! Acha que entende alguma
coisa? Carrapato rodoleiro que não desgruda da gente.
— Berrou e berrou feito boi no matadouro, agora late feito cão
danado...
— Sua obrigação é ficar calada. Lugar de mulher é no fogão, pois
não serve mais para cama. Não sou criança para ficar ouvindo besteiras
ditas por uma professora caduca.
Mas os dois não podiam ficar longe um do outro, talvez eles continuassem a se amar. A vida que levavam foi mal construída, era aborrecida, vazia demais. Não tinham interesses e distrações para serem
perseguidos com entusiasmo, permitindo que cada um descansasse do
outro por algum tempo e, desse modo, pudessem alcançar a tendência, tão humana, que é viver, seguir um caminho, buscar alguma coisa.
Eles estavam presos demais um ao outro, nunca se soltavam, nenhum
vivia para si. Se cada um deles tivesse um alvo próprio na vida, nem
que fosse apenas o de colecionar borboletas, plantar orquídeas, cuidar
de um cão ou economizar tostão por tostão, até morrer com milhões,
a vida ser-lhes-ia mais amena e interessante. Mas eles não tinham essas
preocupações, tolas na verdade, mas capazes de dar algum sentido
para a suas vidas sem sentido. Eles não tinham nem uma moeda sobrando para guardar num cofrinho.
Mesmo quando não discutiam, tanto um como o outro se queixava, não para fazer acusações, mas apenas como hábito, para encher o
tempo vazio. Nesses momentos, sem coisa melhor para pensar e fazer,
cada um falava a primeira coisa que lhe vinha à cabeça, desconectada
do que o outro falara:
— Eu, mentira?
— Então! Qual vida poderei ter? Qual interesse terei? Não me interessa nada. Por isso, vou tirar leite, cortar capim, comprar pão. Tudo isso
me diverte, me impede pensar em coisas piores. Quem não é assim?
Não havia claridade na luz que entrava naquelas cabeças: eram
somente raios opacos e oblíquos. Respiravam com dificuldade devido
ao mofo disseminado que penetrara em seus corpos e nas paredes
esburacadas.
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Tudo isso, sufocava suas mentes escurecidas pelo tédio. Eles imaginavam, nos raros momentos de lucidez, que a vida pulsava lá fora
em alguma lugar distante, mas os ruídos da vida, lá de muito longe,
até atingi-los, misturavam-se à poeira, formando uma massa difícil de
ser decifrada. As pulsações lá de fora, quando conseguiam penetrar na
armadura do casal, atingiam suas cabeças muito levemente, através de
ondas abafadas e indistintas, pois uma forte barreira impedia a entrada
de qualquer informação nova e contrária ao já conhecido. A poderosa
realidade, assentada nos dogmas nascidos dentro da casa, impedia-os
de enxergar a outra realidade, a lá de fora da casa.
As gretas espalhadas pelo chão da casa antiga permitam a criação
de pulgas e percevejos. Grandes baratas passeavam preguiçosamente
pelas paredes, bem como em cima da mesa examinando, aqui e ali,
algum resto de pão que sobrou possível de ser comido. Moscas desalentadas esvoaçavam em toda parte, enchendo o ambiente com seu
zumbido cansativo.
Às vezes, os dois trocavam algumas palavras a respeito do tempo
e, logo depois, se calavam durante meia hora ou mais. À noite, antes
de dormirem, rezavam juntos, pedindo uma vida melhor, uma vida
desconhecida, nem mesmo imaginada.
Quebrando a rotina, surge uma luz
Os dias seguiam-se monótonos, fossilizados, nada de novo acontecia que os distraísse. Tudo era igual, tudo era esperado, imperava a
mesmice de todos os dias, repetida, inúmeras e milhares de vezes.
Como o frio que vai chegando no inverno, a cidade de Lumeeira
foi invadida por uma epidemia de febre transmitida pela picada de carrapato, comum a equinos. Um animal existente na maioria das casas de
Lumeeira, pois a cidade estava cercada, por todos os lados, de terrenos
e matos, sítios e fazendas, onde se criavam equinos e bovinos. Nas ruas
da cidade podiam ser vistos, frequentemente, cavalos, éguas, burros e
bestas, calmamente andando pelas ruas, pastando, aqui e ali, o capim
de que necessitavam, sem serem incomodados por ninguém.
Para espanto dos dois, naquela segunda-feira a rotina do casal
foi quebrada.
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Circunstâncias externas forçaram e penetraram na fortaleza interna. Quando o casal tomava seu café com leite, a atenção dos dois foi
despertada pela batida de palmas. Na porta da casa estava uma figura
diferente das de sempre, um rapaz que vestia uma blusa azulada, onde
se lia o nome “Prefeitura de Lumeeira”. Quincas, assustado com a visita
inesperada e desconhecida, caminhou em direção do rapaz nunca visto. Carlota olhou-o preocupada. Atrás do primeiro visitante, estava um
segundo rapaz, mais novo ainda, vestido com um avental branco.
— Bom dia! Exclamou o primeiro rapaz com uma voz rouca e
baixa, e continuou:
— Sou assistente social, vim aqui para saber como estão passando... para examinar sua moradia.
Quincas, aliviado, sorriu para os dois, convidando-os a inspecionar a casa.
— Bem, amigos... Gostaria de saber se vocês têm tido febre alta,
mal-estar, dores pelo corpo, secura na boca e outros sintomas mais.
— Não temos tido nada, graças a Deus, respondeu Carlota, sorridente.
Logo em seguida, os dois rapazes, uma vez convidados, foram
entrando e fazendo uma vistoria em toda a casa e, principalmente, o
terreiro onde estava presa a vaca.
— Está havendo uma epidemia de febre, comentou um dos rapazes, e continuou:
— Algumas pessoas já a tiveram, uns poucos morreram. Assim
estamos começando um serviço visando a não deixar espalhar a epidemia, discursou com entusiasmo o rapaz de avental branco.
Quincas e Carlota, diante do novo assunto, passaram o resto do
dia falando acerca da visita inesperada e dos comentários dos rapazes sobre a epidemia. Foi um dia movimentado, com conversas e praticamente sem as discussões dos outros dias. Mesmo quando foram
dormir, continuaram a falar no sucedido, repetindo cada detalhe da
conversa, com o entusiasmo ingênuo de crianças que falam a respeito
de um acontecimento inusitado que os impressionara. Adormeceram,
conversando alegremente.
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Na manhã seguinte, ainda bem cedo, uma vizinha apareceu com a
notícia de que um violonista que morava poucas casas abaixo da deles,
um que passava o dia bebendo, tinha sido internado com febre alta.
— Coitado! Adoeceu de noite... coitado, parecia ter sido assado
numa fogueira, comentou a vizinha, demonstrando preocupação.
— O violonista? Ele ontem passou por aqui, andando normal,
comentou Quincas.
Imediatamente após ir à casa do vizinho violonista, saber de seus
familiares o seu estado, Quincas decidiu ir até o hospital do posto de
saúde visitar o amigo. Lá, enquanto esperava ser atendido, encontrou
e conseguiu falar com o rapaz de branco que os visitara no dia anterior
e comentou com ele o ocorrido. No hospital, após visitar o vizinho
doente, Quincas, convidado pelo moço, muito gentil, visitou outros
pacientes ali internados.
Após passar horas no pequeno hospital, Quincas chegou em casa
quando já anoitecia. Carlota, em pé no passeio em frente à casa, o esperava aflita com sua ausência até aquela hora.
Após entrar e lavar cuidadosamente as mãos, mesmo antes de
começar a tomar seu café com leite, ouviu a primeira pergunta de
Carlota, bastante tensa:
— Onde você foi, que demorou tanto?
— Fui ao hospital.
— Ao hospital? exclamou Carlota, perguntando assustada:
— Ele está muito cheio?
— Ainda não, lá também cabem poucas pessoas. Não sei se mandaram alguém para outro lugar. Alguns melhoraram... andam pelos
corredores, mas estão esqueléticos e pálidos.
— Quem tem essa doença, melhora? Perguntou curiosa Carlota.
— Você é ignorante! Idiota! Lá existe uma limpeza como nunca
vi. Todos os funcionários, até os mais simples, trabalham de branco...
Os internados tomam banho muitas vezes ao dia. A comida é tão gostosa e cheirosa que atrai todo mundo.
Na verdade Quincas ficou entusiasmado com o que viu no hospital. Mais calmo, contou para sua mulher as maravilhas presenciadas.
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Carlota, sem dificuldade, percebeu seu entusiasmo e alegria, bem diferente do seu modo habitual dos outros dias. De repente, Quincas,
elevando o tom de voz, falou firme:
— Vou trabalhar lá, como voluntário.
— Eu também vou. Não quero ficar aqui em casa sozinha. O que
vou fazer o dia inteiro aqui sem você? Também quero ser voluntária.
Não sei bem o que é isso, mas quero!
Desse modo, após algumas desavenças simples logo resolvidas,
os dois passaram a trabalhar no pequeno hospital de Lumeeira como
voluntários, durante a epidemia da doença.
Acontece que, nesse ambiente agitado, de objetivos claros e bem
comandados, os dois foram obrigados a ter um trabalho disciplinado e
continuado. Levantavam-se cedo e, após se aprontarem e tomarem um
rápido lanche, iam os dois cuidar de vidas perigosamente ameaçadas.
No hospital tinham o que fazer o dia inteiro, às vezes também durante
a noite, uma atividade completamente diferente da existente até então
em suas vidas monótonas.
Quincas e Carlota, obrigados pelo mundo lá de fora, tiveram
suas mentes voltadas para um problema grave que suplantou suas
picuinhas internas do dia-a-dia, tomando a maior parte do seu tempo.
Assim passaram felizes e sem brigas várias semanas, enquanto a doença
durou.
Infelizmente para os dois, a doença causadora da febre foi controlada. Os dois, sem o que fazer diante dos dias vazios de antigamente, voltaram à rotina anterior, com as mesmas discussões, repetidas e
improdutivas, e as mesmas atividades que não produziam emoções
positivas. Assim o tédio retornou, tudo voltou a ser como antes do
trabalho de voluntários. Em consequência, as discussões voltaram, as
mesmas, repetidas e sem sentido.
— Que vantagem há quando uma pessoa sara? A vida que leva
quando está sã é pior que a que tem quando está com febre. Os doentes sabem disso, contudo ficam contentes quando saram... Gostaria
de ficar contente também sem o trabalho estafante e penoso. Mas não
consigo, gostaria de estar lá.
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— Que motivo há agora para você ficar contente? Perguntou Carlota.
— Sinto-me mal! Isso é vida? Os doentes, pobres deles, alguns
morreram, serviram para encher a minha vida. Enquanto os médicos
cuidam dos doentes, os doentes cuidam dos médicos. O que seria a
vida dos médicos sem os doentes? Nada! Como a nossa. Não temos
doentes, nem coisa nenhuma para cuidar e amar. Acho que sim.
Não sei! Uns saram, outros morrem... Eu sou obrigado a continuar a
existir. Não sarei e nem morri! Como? Isso não é vida... é um inferno...
acha que isso não me magoa? Estou bom por fora, mas minha alma está
doente, não encontro médico para cuidar de mim. Ninguém se importa com esse tipo de doente, mesmo sendo um caso grave!
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Uma rua chamada pecado
Mais para o fim da Rua Direita, no seu extremo oposto à igreja,
encontrava-se o albergue, um lugar habitado por homens e mulheres
rejeitadas pela população. Eles dormiam, comiam e falavam, enquanto esperavam o último dia. Eram pessoas sem futuro, marginalizados,
semimortos, velhos, doentes crônicos, alcoólatras e vagabundos. Ali
dormiam os mais pobres e incapazes. O que eles mais esperavam eram
sair daquilo, do albergue e desse mundo, só assim iriam sorrir docemente e satisfeitos porque saíam, enfim, daquele lugar, para nunca
mais voltar, nunca mais!
Esse dormitório nada mais era que dois pequenos barracões, um
apertado contra o outro, parecendo colados e dando origem a um só
edifício largo. O dormitório, ficando na parte baixa da rua Direita, estava
situado entre dois morros. Recebia, quanto chovia, toda a água da chuva juntamente com seus dejetos e, quando o tempo estava seco, neles
eram despejadas, em cima dos velhos casebres desmantelados, nuvens
de pó que se levantavam quando ventava ou passava algum veículo.
Próximo ao albergue da rua Direita, encontrava-se um lugar mais
democrático, frequentado pela maioria dos homens da cidade, sem
distinção de raça, posição social, poder institucional e poder econômico, entre eles o ilustre prefeito da cidade.
Os pingos da chuva, ao caírem no telhado de zinco da velha casa
onde se localizava o bar, soavam tímidos, pareciam hesitantes e alastravam outra vez, no silêncio da noite, o melancólico gemido de todos
que ali tomavam o último gole de pinga de mais uma noite, soltando
um suspiro angustiado.
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Por costume, Jacó, pai de Rachel, o morador do imenso sobrado de paredes brancas e janelas pintadas de azul, bem como os outros homens da cidade, ali se reuniam para beber e comentar acerca
de mulheres. Era um boteco situado perto do ponto de parada de
ônibus. Nesse lugar os passageiros desciam para descansarem as pernas, irem ao banheiro do bar ou comerem e beberam alguma coisa.
Por isso, esse local recebeu o nome de “rodoviária” da cidade. A cerca
de cem metros, moravam, de permeio com diversas casas de família
mais pobres, algumas poucas prostitutas que ganhavam a vida em
Lumeeira, por isso essa região era também chamada, por alguns, de
“zona boêmia”.
Vários homens, brancos e negros, ricos e pobres, desocupados
e trabalhadores, diariamente se encontravam, após o trabalho tolo e
estafante do dia, num ou noutro bar ali existente. Jacó era um dos
frequentadores diários de um desses botecos, sempre carregando nos
ombros sua sanfona ensebada e dela tirava melodias tristes e sonolentas, algumas poucas vezes até belas, de tempos que já se foram.
Entre todos os bares, um deles, chamado de Bar do Tico, tinha
um aspecto mais lúgubre. Como do chão desse bar subia uma umidade
vinda da terra solta, ali exalava um cheiro de fumo, mofo e urina, um
odor que se misturava com o cheiro produzido pelos corpos suados,
alguns vestidos com roupas esfarrapadas e apodrecidas. A conversa era
continuada e monótona, como todas as conversas de bêbados:
— Eu fui vencido por amar demais a vida. Minha dona, ao contrário, a detestava, por isso passei a odiar minha mulher. Agora, quando
não sou mais ninguém, sou capaz de rir de tudo e de todos. A vida me
deixou de lado, o mesmo aconteceu com as mulheres que também me
abandonaram, por isso passei a desprezar a vida, como já desprezei as
mulheres que não mais me quiseram. Mulheres existem muitas, mas a
vida é uma só.
— As mulheres são todas umas vagabundas.
— Minha mãe não é não.
— Sei disso, a minha também. Estou falando de outras mulheres.
Entendeu?
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— Entendi.
— Sabia que o Alencastro morreu? Foi picado por uma cascavel.
— Coitado.
— Coitado nada, uma cobra foi picada por outra.
— Devemos ter respeito pelos mortos, deles falamos somente
coisas positivas. Depois da morte, esquecemos as condutas negativas.
— Como ter respeito pelos mortos, se não temos dos vivos, nem
de nós mesmos?
— O lugar onde mais existem mentirosos é Lumeeira.
— Não faltam mentirosos em lugar nenhum no mundo. A verdade
nunca é falada, em parte alguma.
— Será? Deve haver. As pessoas não sabem procurar.
— Eu ainda não encontrei a verdade, apesar de estar sempre
atrás dela. Sofri muito! Minha esperança era a existência desse lugar:
procurei nas religiões, depois na política, na minha família, junto aos
meus filhos e na mulher. Mas a verdade não estava em lugar algum.
Retornei às minhas dúvidas e, pensando melhor, desisti da procura.
— Procuramos sempre coisa melhor para alcançar, esta é a verdade.
— Existem as falsas verdades, vivemos no meio delas. Essas não
precisam ser procuradas, são elas que nos procuram e invadem, sem
que queiramos, nossa mente indefesa. Foram elas que provocaram em
minha cabeça uma espécie de fumaça... a fuligem deixada impediu que
eu compreendesse as coisas. Não entendo mais nada, carregado dessas
fumaças diversas, sinto uma espécie de barreira em volta da mente que
me impede de atinar acerca do significado das coisas.
Um frequentador do lugar atento e lúcido, acontecimento raro
naquele grupo seleto, verificaria que os fatos contados eram geralmente os mesmos, repetidos dezenas de vezes por cada um dos heróis
protagonistas desse.
Os ouvintes, também os mesmos, entediados por não ter o que
fazer ou pensar durante os relatos conhecidos, onde todos já sabiam
do fim da história no início desta, devaneavam e refletiam por instantes, antes da cachaça impedi-los disso, acerca da inutilidade da vida
que levavam.
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Jacó bebia e de tempos em tempos tocava alguma música para a
plateia. Quando faltavam curiosos, ele tocava para si mesmo. Gostava
das valsas cantadas por Orlando Silva, dos boleros de Agostinho Lara,
dos samba-canções de Marisa e até do tango argentino de Gardel. Faltando motivos para comemorar, ausência de companheiros cansados
e bêbados, ele arranjava uma mulher. Qualquer uma servia e, em seguida, tocava para comemorar o grande encontro, imaginando antecipadamente o dia seguinte, quando contaria suas aventuras daquele
dia para o grupo cansado de ouvir as mesmas histórias. Como sempre,
Jacó se apaixonava por todas suas conquistas, pelas poucas mulheres
que encontrava.
Mas ninguém ali se importava com a música de fundo mal tocada. Os fazendeiros, lavradores e comerciantes que lá se reuniam no
início da noite, assentados naquele ambiente cinzento, estavam mais
interessados em esquecer o passado triste, a vida sem objetivos, a impotência diante do tempo ruim, a chuva que não vinha por mais que
pedissem a Deus todo poderoso, ou que caía em excesso. Para esquecer a miserável vida que levavam, os frequentadores do bar usavam o
remédio mágico: a cachaça, vendida a preços módicos. A pinga fora
usada por seus pais, avós e por todos os homens da comunidade, bebida fabricada na própria cidade, no alambique existente na fazenda
do Nhonhô. As mulheres quase nunca faziam uso desse tranquilizante,
a não ser disfarçadamente. A maioria, em lugar da cachaça, utilizava
as rezas para diminuir os sofrimentos, um medicamento com efeito
semelhante à pinga e, talvez, com menos efeitos colaterais.
Após se embriagarem, todos desejavam contar seus casos, falar
mal dos ausentes, pois sempre descobriam algo ruim a respeito dos
moradores da cidade. Cada um procurava exaltar suas próprias qualidades, principalmente o vigor sexual, as conquistas amorosas acontecidas, sua valentia e a força física.
Entre os frequentadores assíduos do bar estava João Bobó, um homem forte que, além de saber ouvir, espreitava, sem que ninguém o visse,
os acontecimentos estranhos e raros da cidade. João Bobó não só tinha
uma excelente memória, como também era capaz de imitar as pessoas.
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Enquanto contava seus casos, representava os gestos e tons de
voz, de maneira cômica, do protagonista do fato acontecido.
De posse dessas características, João Bobó, sem trabalho e dinheiro, frequentador assíduo do bar, era incitado a contar casos que
só ele conhecia, sempre que faltava assunto entre os companheiros do
boteco. Bastavam duas ou três doses de pinga, pagas pelos fregueses
do bar, para que ele iniciasse seus relatos de algum caso ocorrido com
moradores da cidade.
Desinibido, contava suas histórias na presença de qualquer pessoa, inclusive diante do personagem real participante do acontecimento. O repertório de João Bobó, não sendo grande, forçava-o a repetir
várias vezes os casos já contados. No bar, representando o teatro, uma
determinada peça era reprisada diversas vezes, para assistentes diferentes, ou, na maioria das vezes, para os mesmos de sempre, que já
tinham assistido à exibição inúmeras vezes.
Numa noite de segunda-feira sem novidades, após total falta de
assunto entre os homens cansados, João Bobó foi provocado por Zé da
Marta a descrever uma cena contada por ele dezenas de vezes, um caso
acontecido com uma solteirona que vivia do outro lado do Rio Manso.
João Bobó, orgulhoso de seu importante papel, começou a contar o
caso acerca da solteirona, uma mulher que era não só muito conhecida,
como também respeitada por todos na cidade. Entretanto, entre os presentes, um pouco atrás da cadeira onde João Bobó se assentara, encontrava-se Mauro Lobo, o principal personagem masculino da história.
João Bobó, exibindo inúmeros detalhes presenciados, contou
que a mulher havia ficado grávida e, diante das brigas que teve com
o amante que a visitava, tarde na noite, acabou se suicidando. A informação fornecida pela família para justificar a morte da solteirona havia
sido de que ela sofrera uma parada cardíaca de origem desconhecida.
Enquanto João Bobó ia contando a história, interrompida por
perguntas, comentários e gargalhadas dos assistentes, o narrador, indiferente à presença dessa ou daquela pessoa, inclusive do envolvido
no caso, entusiasmado foi contando e imitando o autor da gravidez da
solteirona que se suicidou.
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Mauro Lobo, a princípio, por estar mais distante da mesa onde
a história estava sendo representada, não percebeu que o protagonista que João Bobó imitava era ele próprio. Entretanto, um amigo seu
que estava mais próximo da mesa onde o caso estava sendo contado,
apressou-se a avisar Mauro Lobo o que se passava: o astro naquela
noite era ele.
Mauro Lobo, enfurecido, aproximou-se da mesa onde todos riam.
Sem se perturbar, João Bobó continuou a gesticular e a relatar cada aspecto do evento. Apesar do nome do autor imitado não ter sido revelado
pelo narrador, todos os presentes, através dos gestos representados e
pela história conhecida de todos, identificaram facilmente Mauro Lobo
como o protagonista do que estava sendo representado pelo narrador.
Mauro Lobo não deixou que o narrador terminasse a frase que
tinha começado. A princípio esbravejou, xingando todos os palavrões
possíveis. Nesse momento João Bobó ainda estava sorridente. Em seguida, Mauro Lobo avançou sobre o contador de histórias, começando
a esmurrá-lo. João Bobó, pego de surpresa pelo soco violento, caiu
ao chão sangrando pelas narinas. Entretanto, sendo muito forte, mais
que seu adversário, limpando o sangue que saía de suas narinas com
as mãos, levantou-se e partiu como um animal enfurecido, bufando
com seus olhos brilhantes em direção ao agressor. Inesperadamente,
em lugar de esmurrá-lo, como era esperado, ele abraçou seu desafeto
com seus dois grandes e poderosos braços.
Em segundos João Bobó conseguiu imobilizar Mauro Lobo.
Ao abraçar todo seu tronco, impediu que Mauro conseguisse abrir os
braços para se defender. Enquanto o sangue que escorria de seu nariz
escorria pela boca abaixo, ele, sem se perturbar, ia apertando cada vez
mais o tronco de seu adversário, que quase não conseguia respirar.
Mauro Lobo suava e empalidecia, gemia e começava a ficar sem ar. A
plateia estática assistia a tudo, uivando e gritando ao ver dois homens
violentos e fortes disputando quem era o melhor.
Alguns segundos depois, sempre preso aos poderosos braços de
João Bobó, Mauro Lobo teve seus músculos todos amolecidos. Sua
face, que antes estava vermelha, tornou-se pálida e inexpressiva. Num
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certo momento, João Bobó, suando por todos os poros, notou que
não era preciso gastar mais força: seu adversário estava derrotado. Nesse momento, ao largar seu contendor, Mauro Lobo esborrachou-se no
chão semelhante a um saco pesado e mole.
A plateia que apenas assistia e torcia por um e outro até aquele
momento, entusiasmada com a luta feroz de dois fortes, vendo Mauro
Lobo estatelado no cimento esverdeado e frio do assoalho do bar, sem
se mexer, debruçou-se sobre ele, imaginando que tivesse morrido.
Alguns homens ali presentes, mais corajosos e fortes, com alguma dificuldade conseguiram afastar João Bobó da cena da briga, pois
este já se preparava para, após um ligeiro descanso, voltar a abraçar o
corpo desfalecido de Mauro Lobo, que permanecia deitado.
Minutos depois, Mauro Lobo, ajudado pelos presentes, conseguiu recobrar sua consciência, mas pouco se lembrava do ocorrido.
João Bobó, aconselhado pelos presentes, saiu caminhando calmamente para sua casa, rindo da história contada e representada.
Mas apesar das brigas físicas entre um homem e outro serem
frequentes, para se saber quem era o mais forte e poderoso, elas não
faziam parte do assunto preferido naquelas rodas. O tema central das
conversas entre os homens não podia ser outro do que as idas às prostitutas e as mulheres da cidade que estavam dando.
Sempre, dias antes da visita, a prostituta, ou a semi-prostituta, e
também dias após esse memorável evento, cada detalhe do ocorrido
era contado, comentado e novamente sentido com imenso prazer, por
diversas vezes, não só por seu personagem principal, como também
pelos ouvintes entusiasmados.
Enclausurados sob a penumbra produzida pela luz fraca das lâmpadas do Bar do Tico e pela fumaça dos cigarros acesos constantemente, sem a existência de nenhum assunto animador, era requisitada a
sanfona desafinada de Jacó. Era esta música, chata, monótona e conhecida, que fazia com que os frequentadores do bar suportassem a
conversa fiada que ali acontecia. Um bate-papo de todos os dias, que
durava o tempo em que aqueles homens entediados permaneciam assentados diante das mesas com copos de pinga embaçados e sujos.
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A famlia de Jac
Maria, uma das filhas do casal, só aprendeu a ler após vários anos
na escola. Esta era um pouco, ou bastante, louca. Parecia que sua loucura dependia da época e do momento, pois não entendo bem disso. Por diversas vezes, imaginava que certos rapazes que transitavam
diante de sua casa ou simplesmente passavam por ela pelas ruas da
cidade, estavam interessados em namorá-la. Para ela, um deles seria,
no futuro, após um suntuoso e festivo casamento, seu querido marido.
Entre todos, um desses namorados-fantasmas ganhou notoriedade e dominou, com mais vigor, a mente sensível e cheia de ilusões
de Maria. Pelo que sei, há quinze anos ela esperava por um belo caminhoneiro, moreno claro, robusto e de rosto vermelho, possuidor de
vasta cabeleira amarrada atrás do pescoço com uma borracha. O charmoso rapaz, numa tarde chuvosa e escura, passou por Lumeeira em
direção a Belo Horizonte, dirigindo seu caminhão carregado de bois.
Acidentado devido a uma derrapagem nas pedras de minério de ferro
da rua Direita, onde morava Jacó, um dos bois desequilibrou-se, batendo fortemente contra outros que foram caindo dentro da carroceria.
O motorista, ouvindo o barulho e o movimento dos bois na sua traseira, parou o caminhão exatamente em frente à casa onde residia Maria.
O motorista, após descer do caminhão, subiu até a carroceria para ajeitar os bois, ou seja, colocá-los novamente em pé.
Após seu demorado e cansativo serviço, sempre observado pelos
olhos atentos e interessados de Maria postada à janela de sua casa,
pois era esse o local onde ela passava a maior parte do dia, o motorista, vendo-a bem perto dele, pediu-lhe educadamente um jornal velho,
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para que ele pudesse limpar o sujo de estrume de boi que se agarrou
em suas mãos e que iria dificultar sua ação na direção do caminhão.
Maria, orgulhosa e entusiasmada com o pedido, imaginando tratar-se
de uma possível conquista, rogou-lhe que entrasse em sua casa – o
que ele não desejava – levando-o até a pia da cozinha da casa, para que
ele pudesse se lavar mais adequadamente, do que a limpeza que seria
realizada com os jornais velhos.
Envergonhado e cabisbaixo, o caminhoneiro, após ter entrado
na casa e começado a lavar as mãos, usando para isso o detergente
que estava colocado em cima da pia da cozinha, foi interrompido por
Maria. Esta havia corrido até o armário, tendo retirado dele um sabonete perfumado com alfazema, prontamente aberto e oferecido para
que lavasse as mãos imundas. Enquanto ele as lavava desajeitadamente, ela trouxe uma toalha, a mais limpa e bem passada que encontrou no armário da casa e entregou-lha para enxugar as fortes mãos.
O motorista automaticamente foi seguindo as instruções dela.
Em seguida, Maria o convidou para lanchar, alegando que ele
deveria estar cansado e faminto com todo aquele trabalho. O caminhoneiro prontamente recusou o convite que foi nova e insistentemente refeito, sem que o caminhoneiro aceitasse. Tudo indicava que
ele estava atrasado e desejava ir embora o mais rápido possível.
Sempre envergonhado e até um pouco trêmulo, o caminhoneiro agradeceu a gentil acolhida e saiu da casa sorridente. Prontamente
ele pôs o motor do caminhão para funcionar e partiu, para nunca
mais voltar. Pronto: esta é a história simples.
Para Maria aquele dia não foi um dia qualquer. O fato simples e
aleatório, para ela foi uma anunciação de algo extraordinário que mudaria sua vida solitária. Apesar do caminhoneiro nunca mais dar notícias,
esse episódio e a figura desse rapaz passaram a habitar constantemente
a mente receptiva de Maria. Mas não só ele, também os objetos usados
por ele foram transformados em símbolos poderosos e até adorados.
O sabonete de alfazema semi-gasto foi embrulhado num belo
papel azul e colocado numa caixa onde sua mãe guardava uma jóia
altamente estimada pela família.
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Como os resíduos do estrume de vaca não saíram completamente das mãos que foram lavadas, ao enxugá-las, pequenos sujos, que
não foram extintos com a lavação, passaram das mãos do caminhoneiro para a toalha branca, cheirosa e imaculada.
A toalha, totalmente aberta, mostrando todos os detalhes das belas e possantes mãos do caminhoneiro, foi colocada numa moldura
fabricada com uma madeira avermelhada e especial. A toalha, emoldurada, coberta por um vidro espesso e róseo, se encontra dependurada
em cima da cama de Maria. O sabonete, por outro lado, guardado na
caixa de joias, foi colocado em cima do criado-mudo ao lado da cama.
Este acontecimento, percebido pelas outras pessoas como simples e devido ao acaso, para Maria passou a ter uma enorme importância e repercussão na sua vida monótona. A partir desse dia memorável,
sua vida se transformou e adquiriu um novo sentido. Para ela foi um
evento milagroso que transformou sua desilusão a respeito do porvir,
em esperanças e sonhos acerca de um futuro, que, mesmo sendo longínquo ou até mesmo inexistente, seria esplendoroso.
A mente de Maria, até esse aparecimento súbito e extraordinário,
era vazia, sem objetivos. Depois dessa revelação, ela construiu crenças
animadoras a respeito de um destino acolhedor, devido a esse salvador
que naquela tarde apareceu. Antes dele não havia planos e esperanças,
agora ela imaginava a hora do casamento, o encontro com o príncipe
desconhecido e encantado, morador, segundo sua crença, em cidade
de gente importante. Como não o conhecia, era fácil para ela imaginar
tudo acerca do que sonhara acerca de homens, namoros, casamento e
futuro promissor.
Vivendo em torno e para sua quimera, ela não deu mais crédito
a muitos pensamentos negativos que atormentavam sua mente, abandonou sua vida solitária e triste, pois concentrou-se na sua paixão, no
amor ao caminhoneiro, o novo orientador do que fazer e para onde ir.
Este bendito homem, segundo suas fantasias, lhe daria, uma vez juntos, a felicidade eterna e suprema que sempre sonhara.
Assim, esse caminhoneiro solitário e sossegado, que ocasionalmente passou em Lumeeira e teve um ligeiro problema com a carga de
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bois que levava, que nunca mais passou naquela estrada, transformouse em fonte de orientação e proteção, o novo e importante objetivo
para uma vida desprovida de metas realistas.
O caminhoneiro desconhecido, simbolizado na toalha manchada e no sabonete perfumado ligeiramente gasto, milagrosamente se
transformou em objeto mental de adoração e de temor. Entretanto,
nem tudo era alegria nessa vida esquisita. Ao mesmo tempo em que
Maria esperava o retorno do caminhoneiro, ressuscitado e sempre
belo, cheio de amor e carinho, ela o temia. Frequentemente o via e o
ouvia, segundo suas construções e desejos mentais, perseguindo-a,
fazendo propostas escabrosas de origem sexual. Isso a amedrontava
e a excitava, dominando seu corpo e sua mente..
As representações mentais de Maria, juntamente com mensagens codificadas, todas tecidas pela mistura de lembranças e de desejos não-realizados, alcançavam sua consciência através de ondas do
rádio, telepatia, sonhos, alucinações, delírios e outros meios mágicos
que ela não sabia explicar. Mas sempre as propostas e convites que
ela recebia de seu novo deus, não só a excitavam, mas, ao mesmo
tempo, a aterrorizavam. Mas de qualquer forma, como fora um verdadeiro milagre, tornava sua vida feliz. Agora ela tinha alguém que um
dia voltaria, só para ela, alguém com quem viveria feliz até à morte,
alguém que se apaixonou por ela à primeira vista, que pensava nela,
que a desejava e a queria, a qualquer preço e, no futuro, iria se casar
com ela.
A outra irmã, Marta, uma das mais sadias mentalmente apesar de
ter nascido raquítica, também não teve muita sorte. Sempre fora uma
moça magra e agitada. Passava grande parte do dia assentada numa cadeira, fazendo toalhas de tricô para vender nas lojas da cidade. Numa
certa época, desejou engordar um pouco, pois naquela época o padrão de beleza foi assimilado dos fazendeiros da região: a beleza de
uma vaca ou porca estava na sua gordura e somente quando o animal
estava bastante gordo ele recebia o rótulo de “sadio” ou de “belo”. Para
conseguir o desejado, Marta estava sempre nas farmácias, “consultando” o atendente em busca de um medicamento para engordar.
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Muito cedo, ainda com vinte e três anos, recebeu do médico do
posto de saúde um temível diagnóstico: ela tinha um câncer no estômago. Sem se importar, acostumada ao sofrimento, Marta só procurou ajuda algum tempo depois do diagnóstico inicial. Já era tarde demais, o câncer havia desenvolvido metástases por todo seu debilitado
organismo. Nos últimos dias, o seu corpo inchado expelia um líquido
branco amarelado que manchava o lençol branco do seu leito Mesmo
nesse estado e sabendo com antecedência a certeza de que morreria
em pouco tempo, para alegrar a família e as poucas visitas que recebia, comentava com seu sorriso triste e sua voz muito fraca:
— Deus irá ajudar-me. Conversei com ele. Para curar-me, devo fazer sacrifícios. Como estou acamada e não consigo levantar-me, devo evitar todos os prazeres possíveis. O amor divino é imenso. Assim deixei de
ver TV, de ouvir rádio e comer chocolate, justamente as três coisas que
mais adoro fazer. Deus, que está-me ouvindo, irá me ajudar e me salvar.
Não sei se Deus a salvou, ou não, não consigo aprofundar tanto
assim, sei que Marta morreu em paz poucos dias após iniciar a penitência no seu quarto escuro e mofado. Durante seu velório e enterro
poucos foram os habitantes da cidade que gastaram seu tempo para
se despedir de Marta. Ela não era ninguém naquela cidade, pouco
representava, pois, na ocasião de sua morte, seu pai ainda não era o
rico proprietário de terras e nem prefeito da cidade, era apenas um
pobre sanfoneiro.
Ester foi mais uma das que se salvou milagrosamente das tentativas de aborto. Nasceu razoavelmente sadia, sendo a mais clara
das irmãs. Foi escolhida, desde cedo, para carregar a família em seus
ombros: era a cozinheira, arrumadeira, lavadeira, enfermeira e fazia
tudo quanto era trabalho braçal para cuidar de todos. Cheia de fé e
entusiasmo, aceitava tudo como uma prova vinda do alto e, por isso,
nunca reclamou. Realizava com alegria e esperança o serviço exigido,
ordenado pelos pais a mando divino. Durante o trabalho cansativo
e monótono, para se distrair, Ester cantava velhas canções da igreja,
frequentemente entoava versos onde eram descritas as subidas das
almas ao céu.
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Ester parecia se sentir como se, muito em breve, estivesse morando ao lado de Deus, no céu azul e claro, envolto por nuvens brancas e brilhantes.
Para espanto de todos que a admiravam, numa manhã de domingo quente e ensolarada de dezembro, quando as primeiras mangas
já estavam amadurecendo e exalavam um suave e delicioso perfume,
Ester foi encontrada agonizando em cima de sua cama, vestida com
a melhor roupa que tinha, toda penteada e tendo à mão a Bíblia, a
mesma que ela sempre levou à igreja. Ao lado, em cima de um caixote
velho que servia de criado-mudo, havia um copo com um resto do potente veneno “chumbinho” usado para matar ratos.
De seus cabelos claros e compridos, onde já se viam alguns fios
de cabelos brancos, escorriam, lentamente, filetes de um suor brilhante, iluminados pelos primeiros raios do sol da manhã que se infiltravam
pela janela aberta de seu quarto de dormir. Quando a encontraram, ela
ainda respirava, mas muito mal. Mesmo assim foi levada às pressas ao
hospital por seus pais apavorados, onde foi internada no CTI. Hospitalizada, mesmo com grandes esforços dos médicos para salvá-la, seu
estado foi piorando a cada dia, apesar deles, intimamente, pensarem:
“Se quis morrer, não há necessidade de nos esforçarmos”.
Ester ficou internada sem apresentar nenhuma melhora durante sete dias, sempre em coma profundo. Depois de diversas reuniões
entre os familiares e o corpo médico, foi decidida a retirada dos aparelhos que a mantinham viva. Assim morreu Ester, sem recuperar a consciência e sem contar seus segredos, os motivos de seu trágico gesto,
comentado por todos na cidade. Jamais alguém descobriu os motivos
que a levaram a preferir morrer em lugar de viver a vida pacata e calma
que levava e de que ela jamais se queixara. O que se passou na sua
mente é uma pergunta para a qual ainda não se obteve uma resposta.
Seu suicídio, ainda que traumatizante para os poucos habitantes de Lumeeira, trouxe alguns frutos para seus moradores. Primeiro,
porque sua população quase não tinha notícias excitantes produzidos
na própria cidade. Quase todas as notícias vinham de outras partes do
Brasil, geralmente da capital do Estado.
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Com o suicídio de Ester, os habitantes da cidade não precisaram,
pelo menos durante algum tempo, importar notícias do exterior, pois
nessa ocasião as informações e especulações criadas acerca do acontecimento funesto nasceram e também cresceram na própria cidade.
Durante algum tempo, lembranças e mais lembranças foram resgatadas das mentes dos moradores do lugar, para tentar fazer com
que o evento inesperado fosse compreendido ou explicado. Todos
tentaram relacionar os fatos narrados atuais com outros eventos passados, ligando-os.
Desse modo procurou-se fornecer uma maior credibilidade ao
até então inexplicável acontecimento. Durante meses esse foi o assunto preferido dos moradores da cidade, tendo inclusive tomado o lugar
das conversas usuais entre os homens da cidade, que eram acerca das
mulheres mais livres, dos adultérios, do sucesso comercial de fulano
e do fracasso financeiro de sicrano. Entretanto, nenhuma hipótese
plausível foi levantada.
No período de luto, o pai de Ester, como provação, evitou tocar
sua sanfona nos bares e também não tomou pinga. Assim quando ia
ao bar nos fins das tardes, uma vez assentado, tendo a cabeça voltada para o chão, lamentava com os bêbados seus amigos, enquanto
tomava seu refrigerante, as constantes desgraças que o atingiram nos
últimos tempos.
Mas o suicídio proporcionou alguns ganhos para os moradores da
pequena cidade: provocou reflexões filosóficas e religiosas, pouco ou
nada existentes naquele lugarejo antes desse acontecimento. Chocados
com o fato, as mentes dos homens do lugar, uma vez estimuladas pela
emoção, se viram forçadas a refletir acerca de eventos mais importantes
do que o tamanho da bunda ou dos seios de Joana ou de Alminda.
Os moradores da cidade, assustados, perceberam que uma pessoa como eles, que ali residia e vivia, trabalhava, orava como todos eles,
sem quê nem para quê, decidiu pôr fim à sua vida, exatamente aquilo
que eles mais preservavam. Ester preferiu morrer na sua solidão, sem
explicar nada, sem cartas ou recados. No seu silêncio solitário, desprezou o que todos ali tinham como a coisa mais importante: a vida.
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Diante desse ato que se afastou totalmente das ações frequentes e ditas normais, os moradores de Lumeeira começaram a discutir,
ainda que primitivamente, acerca do valor ou do significado da vida.
Alguns, mais ousados, os divergentes ou loucos de sempre, chegaram
a dar-lhe razão por ter posto fim a uma vida penosa, inútil e sem futuro, a uma vida que não valia a pena ser vivida e sem objetivos próprios. Entretanto, a maioria esmagadora condenou com certo grau
de irritação e indignação e também com um pouco de piedade, o ato
inesperado da filha de Jacó.
Nas discussões acerca do suicídio de Ester, como era de se esperar, não faltaram boatos e especulações, buscando descobrir as razões
daquela morte prematura, estúpida e incompreensível, pois muitos
moradores da cidade viviam uma vida não muito longe da morte. Alguns descobriram, ou inventaram, para compor o evento, que ela tinha
um namorado misterioso, um senhor casado, morador numa cidade
próxima, que havia prometido separar-se de sua esposa para casar-se
com Ester, mas que mais tarde desistiu de uma só vez do casamento.
Outra versão, possivelmente inventada como a primeira hipótese, foi
a de que ela se suicidou por estar louca há algum tempo. Para outros,
ela sempre fora louca, como sua irmã Maria. Mas como sempre ocorre nos casos misteriosos, não faltaram interpretações acerca de uma
possível paixão de Ester por um tio, morador numa fazenda distante
e que, recentemente, ficara noivo de uma prima.
Como sempre ocorre, aos poucos, com o passar dos dias, não
só as conversas acerca da morte de Ester, como também as tentativas
de explicação, foram diminuindo devido à falta de novas informações
ou interpretações disponíveis, pois todas as imaginadas já tinham sido
exploradas. Por outro lado, a repetição das mesmas ideias, como sempre, perdia o interesse inicial. E assim, pouco a pouco, os rumores foram desaparecendo e hoje ninguém mais falava acerca desse funesto
acontecimento.
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Nasce Rachel
Jacó, pai de Rachel, durante uma boa parte de sua vida foi um
homem pobre. Possuía apenas uma pequena terra, quase sem valor,
onde criava umas poucas vacas que produziam alguns litros de leite,
possuía ainda meia dúzia de galinhas garnisé e um pequeno laranjal,
além de um pé de abacate. Sua sorte mudou repentinamente ao encontrar, por acaso, algumas alexandritas e esmeraldas de grande valor
em suas terras. Após alugar um trator para alargar uma estrada que
atravessava seu terreno, logo que os primeiros cortes começaram a ser
feitos, descobriu-se um filão de pedras preciosas.
Em lugar da estrada, Jacó começou a explorar a lavra que foi aberta. A partir desse acontecimento, tornou-se, com a exploração de pedras, um homem rico e poderoso. Com a entrada de dinheiro, sendo
um homem ativo e esperto, foi adquirindo outras propriedades e as explorando com sucesso: postos de gasolina, caminhões e tratores, gado,
fazendas e lojas de materiais de construção e de alimentos em geral.
Rachel, apesar do pesares, teve mais sorte, ou foi talvez menos
azarada. Conseguiu não só se matricular na Escola Normal de Lumeeira, como se formar para professora. Além disso, atualmente usufruía a
riqueza adquirida pelo pai.
Como sempre acontece, ao lado dos bons momentos ela teve,
também, outros bastantes ruins, principalmente os relacionados à sua
vida afetiva. Decidi contar-lhes apenas alguns fatos, pois não desejo
cansá-los, nem fazê-los sofrer. Assim, não descreverei todos os infortúnios vividos por Rachel, apenas alguns, selecionados por me chamarem mais a atenção.
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Foram estes os mais desagradáveis, pois temos a tendência de
guardar mais os fatos ruins acerca das pessoas e de nós mesmos, que
os eventos agradáveis. Adianto que as frustrações foram inúmeras.
Os moradores da pequena cidade, aos poucos foram se acostumando e assimilando os sofrimentos dessa infeliz moça e de sua família. Geralmente ninguém mais se espantava com algum fato novo e
ruim para a família de Jacó.
Ali tudo era normal e esperado e como era suposto, não espantava nem emocionava os parentes, amigos e nem a própria família.
Entretanto, não nego, os mais sentimentais, às vezes passavam noites
em claro, pensando nas desgraças, passadas e atuais, ocorridas com
Rachel e seus pais, imaginando que havia alguma maldição divina, algum mau-olhado ou mandinga em tudo aquilo. Quando tudo parecia
estar melhorando para ela, acontecia o pior.
Pois bem, Rachel nasceu sem chamar a atenção dos parentes
quanto à sua beleza e assim continuou durante toda sua vida. Jamais
foi admirada por seus traços físicos, nem mesmo quando ainda era um
bebê, época em que temos tendência a achar todos recém-nascidos
belos, mas isso não ocorreu com ela.
Todos que a viram ao nascer, fizeram um grande esforço para
fitá-la sem demonstrar um certo mal-estar e repugnância ao ver seus
olhos fundos e parados, sua pele cheia de pontos vermelhos, sua cabeça grande e disforme e seu nariz pontiagudo.
Desde criança Rachel foi uma menina triste, emburrada, calada,
pirracenta, desajeitada e, ainda por cima, mal-educada. Na escola, ainda
muito pequena, por ser muito magra foi apelidada pelos colegas mais
agressivos de “bruxa”. Seus cabelos eram espetados, sua cabeça achatada na frente, de onde saía um enorme e pontiagudo nariz e, para piorar,
na ponta deste assentava-se uma enorme verruga preta. Seus olhos,
como os de coruja, eram redondos e pareciam estar sempre abertos.
Rachel continuou sua penosa vida na escola como aluna medíocre que sempre foi, apesar de ser obediente, cumpridora dos deveres e
correta. Assentada na primeira fila, dali não arredava o pé durante toda
a manhã. Não conversava com ninguém na sala de aula.
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Logo que entrou na escola, tentava satisfazer seus professores
como podia, para receber deles um afeto especial que não era conseguido pela competência intelectual, simpatia ou beleza. Isso ela não
possuía. Para satisfazê-los, os presenteava com o que mais ela amava:
comestíveis diversos. Constantemente sua mãe fazia pasteis, sucos,
doces de leite e principalmente goiabada, para que ela presenteasse
seus professores.
Apenas no recreio ela se aproximava de sua prima Lúcia, que
não a suportava, mas por questões de parentesco sentia-se obrigada
a ficar ao seu lado. Lúcia, quando conseguia se afastar de Rachel, na
primeira oportunidade escapava e se aproximava das amigas, desculpando-se por estar com a prima. Os esclarecimentos eram necessários para que Lúcia não fosse ridicularizada e excluída do grupo pelas
companheiras.
Na escola, Rachel levava sistematicamente para o lanche uma
garrafa de coca-cola contendo chocolate, um enorme pedaço de bolo
de fubá e uma maçã. Num ritual que se repetia todos os dias durante
o recreio, ela estendia em cima de um velho banco de cimento existente no pátio um guardanapo muito limpo, formando uma toalha de
mesa. Depois, um após outro, colocava, em cima da toalha arrumada
para o lanche, a garrafa contendo chocolate, o bolo e uma maçã. Uma
vez preparada a mesa, passava suas pernas nos dois lados do banco
e orava, para agradecer a Deus a lauta refeição concedida, antes de
avançar sobre a comida, que fitava com extrema voracidade. Terminada a oração comia tudo rapidamente, sempre tendo seus olhos muito
abertos e fixos, vigiando os comestíveis postos à sua frente. A maçã
sempre era a última a ser ingerida, servia como sobremesa.
Às vezes, quando alguém ocupava seu banco preferido existente no pátio antes dela ali se ajeitar, Rachel espreitava a pessoa, com a
cara fechada, mostrando explicitamente que ela precisava dele. Caso
seus ocupantes não saíssem, por pirraça não merendava naquele dia.
Voltava com o lanche para casa, chorando, para sofrimento de sua
mãe. Mais tarde punha a mesa no quintal e devorava sua merenda,
sempre executando o mesmo ritual usado no colégio.
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Na escola, a não ser para os professores, jamais ofereceu parte do
lanche para suas colegas, nem mesmo para Lúcia. Mas com frequência,
para seu sofrimento, um menino mais atrevido, num gesto rápido, roubava-lhe a maçã ou o bolo. Em seguida saía correndo e gritando pelo
pátio, seguido por companheiros, para comemorar a vitória. Rachel,
impotente, chorava copiosamente. Com lágrimas nos olhos procurava
a diretora onde apresentava queixa, que era anotada, como sempre,
pelo encarregado da disciplina. Na saída da escola o incriminado, que
havia sido chamado pelo disciplinador, impreterivelmente a ameaçava
e xingava pelas ruas da cidade.
Mas a pior e mais temível vingança surgia quando o moleque
mais desinibido e lépido, passando por trás do seu corpo desengonçado e lento, levantava sua saia azul da escola. Nesse momento ele
gritava para todos seus amigos que assistiam à tragicomédia:
—Tá sem, tá sem, tá sem....
Todos olhavam para as partes baixas de Rachel. Esta, desajeitada
e cheia de manchas vermelhas, abaixava o mais rápido possível sua saia
e chorava. Rachel jamais xingara alguém usando um nome feio, diante dos atrevimentos dos colegas. Ela chorava, sinalizando fraqueza e
pedido de clemência, um ato que nunca foi notado e respondido adequadamente. Na realidade ela sempre estava com suas calcinhas, que
todos viam e todos na cidade já sabiam, eram sempre lisas e brancas.
A brincadeira continuava durante seu trajeto da escola para casa e só
terminava com sua chegada.
— Pai, pai! O menino levantou minha saia!
Nesse momento seu pai era chamado para defendê-la. Este, cansado dessa cena repetitiva, xingava, sem muita convicção, o moleque:
— Moleque safado! Vou falar com seu pai. Se você fizer isso outra
vez eu te pego e chamo o soldado para te prender. O menino corria
pela rua, rindo dos dois. Dias depois, a cena era repetida.
Aos dez anos, quando as crianças começam a crescer rapidamente, ela, por azar, parou de cresceu. Ao entrar na puberdade, seu corpo
mudou. A princípio ficou mais magra ainda do que era, sendo apelidada, nessa ocasião, de “palito”.
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Depois engordou de tal forma que aos 15 anos pesava 90 quilos,
apesar de sua pequena altura. Talvez desiludida com o amor das pessoas, voltou-se para as guloseimas. Quem se assentasse diante dela
durante as refeições, sentia-se mal em vê-la comer. Com seus olhos
abertos, suando, engolia rapidamente cada garfada dada. Devorava
avidamente rapadura, bolos, pães e chocolates, que eram molhados
nos refrigerantes para que descessem pela garganta rápida e facilmente. Acredito que, nessa época, a única coisa que lhe dava prazer
era comer, mais e mais. Ao engordar demasiadamente foi cunhada
com novo apelido, “bolacha”, muitas vezes de “diarreia”, o que a irritava mais do que o apelido anterior, “palito”.
Na puberdade e adolescência Rachel jamais teve um pretendente realmente interessado por ela, pois os poucos jovens e candidatos
a um casamento estavam de fato olhando a fortuna do pai e não
para ela, pois não era agradável vê-la com toda sua feiúra. Vendo as
suas colegas conversarem acerca de namorados, sentia-se diminuída
por não ter nem um flerte. Olhava com certo interesse, na escola,
para alguns de seus colegas de turma. Entretanto, lamentavelmente,
nenhum deles lhe prestava atenção. Talvez ninguém a visse como
um “objeto de desejo”. Alguns a olhavam como uma pessoa aversiva,
outros se distraiam à custa dela, pois Rachel sempre servia para um
deboche fácil.
Apesar de se sentir rejeitada pelos rapazes da cidade, de tempos em tempos via nascer a esperança de conquistar algum rapaz,
principalmente devido à riqueza do pai e seu comportamento de santa. A vida pura que levava atraía alguns poucos interessados, também
homens puros e tímidos demais, incapazes de uma aproximação voluntária e espontânea. Além disso, havia em Lumeeira um excesso de
homens e uma falta de moças para casamento. Este fato ocorria, não
porque o número total de homens fosse maior que as de mulheres,
mas, sim, porque desde cedo muitas mulheres decidiam não namorar ninguém, levar uma vida casta e dedicada somente à família e à
Igreja. Desse modo essas mulheres não faziam parte das candidatas
a um casamento.
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Tomé, dois anos mais velho que ela, primo de Rachel, bonito,
simpático, alegre e confiante em si, além de paquerador, era um dos
poucos rapazes que ocasionalmente a procurava e lhe dava um pouco
de carinho. Para seus colegas, ele desperdiçava seu tempo, conversando com uma pessoa tão sem sal como ela. Ele evitava as críticas
por ser parente dela, o que eliminava as suspeitas e o vexame de estar interessado nela, sem danos para sua reputação. Uma das chacotas dos rapazes da cidade era acusar alguém de estar namorando ou
aproximando-se de Rachel. Quando isso acontecia o infrator partia
para a briga numa tentativa de provar que jamais se interessou por
ela. Os rapazes não admitiam, nem como fantasia, aproximarem-se
simpaticamente de Rachel. Ela olhava Tomé avidamente, imaginando
namorá-lo, mas na verdade nunca ninguém viu nada entre eles que
pudesse ser chamado de namoro.
Era fácil perceber que Rachel se transformava diante da presença de Tomé, quando nas suas raras visitas aos primos, quase sempre
a negócios, ou quando se encontravam na escola e ruas da cidade.
Durante esses encontros, a voz de Rachel mudava, tornando-se ainda
mais estridente e alta. Na sua pele muito branca surgiam manchas
com tons diferentes de cores avermelhadas e, na sua testa e rosto,
formavam-se circunferências brancas rodeando os pontos vermelhos.
Inutilmente tentava tampar seu rosto aquecido com as mãos. De qualquer forma, esses gestos a tornava um pouco mais feminina e até ligeiramente atraente.
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Carnaval:
Rachel alcana a idade adulta
Rachel alcançou, aos 17 anos, 1.55 m de altura e 100 quilos de
peso. Os pretendentes possíveis e imaginados por ela pareciam estar
cada vez mais distantes. Nenhum teve coragem de encarar, abraçando e amando, todo aquele imenso corpo. A cada dia, mais ninguém a
olhava, até as críticas, aos poucos, foram desaparecendo. Todos foram
se acostumando com seu corpo e conduta. Entretanto, havia uma época em que sua rejeição diminuía, nessa ocasião ela tornava-se atraente
e era até percebida como positivamente. Esse momento era esperado
com muita ansiedade e alegria por Rachel.
Todos sabemos que o carnaval sempre foi, em todo o mundo,
o tempo das fantasias, o momento de sonhar e de criar, o tempo do
“mundo de pernas para o alto”.
Pois bem, durante o carnaval Rachel se transformava na Rachel
ideal, deixando de lado a real. Ela, como por milagre, tornava-se uma
outra mulher, a que ela, fora do carnaval nunca havia alcançado. Somente nesse período, a Rachel “construída” pelo costureiro, cabeleireira e manicura de Lumeeira deixava de ser a feia e pouco simpática. Nesse período, adquiria uma outra existência, tornava-se bonita,
agradável e atraente para os moradores da cidade e também para ela
mesma, pois na maior parte do tempo, ela própria não gostava de si.
A nova Rachel nascida da fantasia não se desenvolveu pouco a pouco
como uma pessoa comum, ela nascia por encanto, rapidamente, já feita, adulta, madura e pronta.
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O objetivo de Rachel nesse período era se exibir para o público,
tornar-se uma atração, o que ela não conseguia ser nos outros dias do
ano. Essa outra Rachel era cobiçada, e não rejeitada, pelos homens de
Lumeeira. Recebia ainda um outro nome, o nome com que foi registrada, pois, como era sabido em Lumeeira, durante o carnaval ela era
rainha, princesa ou outra personagem de destaque e de honra na festa,
uma figura importante diante das outras figuras.
Também durante os dias que antecediam o desfile, bem como
durante este, Rachel tinha motivos e possibilidade para entrar em contato com pessoas que, nos outros dias, deviam ser evitadas, segundo
sua família, por serem perigosas e estranhas. Podia ainda aproximar-se
com naturalidade de pessoas que, nos outros dias, muitas vezes tentavam fugir dela.
Ao combatermos uma ideia sensata, nos é fácil encontrarmos razões lógicas para contestá-la, entretanto, as ideias absurdas, esquisitas
e ridículas são mais protegidas contras as críticas, pois essas são, na
maioria das vezes, difíceis ou impossíveis de ser combatidas através da
razão ou da lógica no combate ao ilógico e irracional. Tudo isso nos
mostra que as ideias irracionais e ilógicas são menos combatidas que
as lógicas e racionais, pois, no primeiro caso, nos faltam argumentos
para que possamos ir contra elas. São essas ideias que confundem e
desconcertam o adversário.
Ora, no carnaval de Lumeeira, nascia a “Rainha de Sabá”, A “Odalisca de Marrocos”, “A Rainha da Arábia” e milhares de outros personagens. Cada uma dessas criações passava a existir conforme a ação
esquisita de seu construtor, como o esquizofrênico paranóide que
se julga Cristo, Napoleão ou outro qualquer personagem da história.
Uma vez transformado, de pessoa comum num todo-poderoso, o seu
possuidor passa a atuar como fazem até hoje as personagens míticas,
que durante séculos têm atuado sobre todos nós como exemplos ou
contra-exemplos. Alguns dão a própria vida por essas ideias. Sempre
seres que não têm mais realidade que a “Rainha de Sabá”, inspiraram
nos povos o ódio e o amor, o terror e a esperança, aconselharam crimes, receberam oferendas, fizeram os costumes e as leis.
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Assim, a Rachel desajeitada e escondida nos dias comuns, durante o carnaval tornava-se uma personagem mítica. Ela se tornava
aquela que dizia ser sua fantasia, ora uma rainha, ora um palhaço, às
vezes Colombina. Numerosos julgamentos aceitos pelo mundo inteiro e que a história consagrou, são tão bem fundados quanto os julgamentos feitos acerca da “Nova Rachel”.
Durante o carnaval, ao vê-la fantasiada, os homens e talvez também algumas mulheres imaginassem ser ela uma formosa dançarina,
uma prostituta pronta para receber seu cliente ou uma princesa linda.
Ela se transformava em tudo isso durante o desfile. O que importava
era o desejo estimulado através de sua roupa cintilante e dos seus requebros, ainda que incipientes.
Rachel, durante e somente durante o carnaval, estimulava a
imaginação e memória dos homens de Lumeeira. Nesse período ela
fazia nascer imagens adormecidas em cada uma das cabeças dos que a
fitavam. A partir do estímulo, dentro de cada mente brotavam imagens
coloridas e descoloridas, animadas ou desanimadas, ou qualquer outra característica existente na mente pronta para criar.
Para alguns moradores de Lumeeira e para Rachel, este era o período de felicidade, pois durante o carnaval Rachel se transformava de feia em
bonita, conseguindo, durante os três dias de folia, notoriedade e mesmo a
admiração dos homens que estavam sempre pensando em mulheres.
Assim, durante o desfile, tudo passava a girar em torno de
Rachel, ela era o agente propulsor da felicidade e do prazer dos homens do lugar. Era seu dia de glória.
Entretanto, essa fantasia sempre teve curta duração, apesar de
seu esforço para enganar a si mesma. Aos poucos, a cruel realidade esfacelava a “rainha” criada artificialmente. Assim, para sua infelicidade,
seu sonho durava pouco.
O carnaval de rua, quando ela atingiu sua maioridade, era dirigido
pelo padre Leão. À noite, a partir das 20:00 horas, se reuniam, numa rua ao
lado da rodoviária, o prefeito da cidade, os meninos, os loucos, as prostitutas e todos os jovens da cidade, acompanhados naturalmente dos pais. Ali,
na rua, todos dançavam juntos, sem discriminações de classe e cor.
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A empregada doméstica pulava com o filho ou filha do patrão, o
pedinte dançava com quem lhe deu o prato de comida, o médico ou a
prostituta com seu cliente. No palanque armado onde se encontrava o
som, Padre Leão animava os foliões aos gritos, incentivando-os a brincar e indicando pelos nomes, os que estavam parados:
— Vamos brincar! Hoje é dia de brincadeiras. Aproveitem. Você
aí! Está parado! Dance!
Rachel, uma das poucas moças que saíam à rua fantasiada desde
criança, naquele ano decidiu, após profundas e demoradas deliberações,
sair no desfile fantasiada de Princesa do Cairo. Esta, bem como diversas
outras fantasias, foi escolhida propositalmente. O véu usado escondia
parte do seu rosto gordo, achatado e sua verruga na ponta do nariz.
Geralmente Rachel chamava a atenção de todos com as fantasias
escolhidas a cada ano, sempre diferentes e caprichosamente produzidas. Entretanto, todas elas tinham sempre o mesmo padrão: largas,
para disfarçar a sua obesidade e o véu, para esconder o rosto.
Ao completar 18 anos, Rachel pensou em concorrer ao concurso
de fantasias que era realizado todos os anos na terça-feira gorda, na
sede do Clube Treze de Maio, logo após terminarem os festejos de
rua. Era seu sonho desfilar para o povo, concorrendo ao prêmio estabelecido pelo seu pai, agora prefeito da cidade. Desde sua infância
ela já falava com entusiasmo acerca dessa festa e esperava, este ano,
entrar no lugar de sua mãe no concurso de fantasias do Clube Treze de
Maio. A mãe de Rachel, D. Dadá, cansada de vencer todos os concursos
de fantasias do clube, imaginava parar de concorrer, pois já não tinha
mais graça ganhar o primeiro lugar como sempre acontecia.
Entretanto, diante de certos rumores que surgiram na cidade, D.
Dadá frustrou a filha e, na última hora, decidiu concorrer pela última
vez. A estreia de Rachel ficou adiada para o ano seguinte. Rachel, de
qualquer forma, preparou-se como se fosse uma das candidatas e foi
ver o baile após o carnaval de rua. Tristonha pela frustração bebeu um
pouco mais de vodca com limão e adormeceu em cima da mesa.
Foi aconselhada a ir para casa acompanhada pela antiga empregada, Deusmira, que também estava na festa.
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O baile  fantasia
As fantasias para o concurso do famoso baile da terça-feira de
carnaval eram todas feitas em segredo, muitos meses antes do evento
e só minutos antes do tradicional baile é que o júri ficava sabendo
quais eram as candidatas. É claro que os mexericos da cidade e a presença infalível de alguns permitiam ao júri saber, com antecedência,
que estariam entre os candidatos Zé Donzela, o único “homem” que
concorria, e também D. Dadá, mulher de Jacó e que desde o primeiro
concurso se inscrevia e era a concorrente principal.
O salão onde haveria o baile de carnaval e o concurso de fantasias, marcado para começar às 22:30 horas, estava repleto de dançarinos e assistentes às 21:00 horas. Defensores e adversários dos possíveis candidatos, sem outra coisa a fazer, discutiam acaloradamente
fazendo julgamentos e expressando pontos de vista sobre um e outro
possível ganhador. Devido aos rumores sobre a ida de uma possível
candidata - uma atração da noite – o salão estava mais cheio, pois, além
dos farristas de sempre, muitos curiosos compareceram para assistir ao
desfecho do evento.
O baile iniciava-se com as músicas e danças carnavalescas, próprias para este tempo. Só mais tarde, às 2:00 horas da madrugada, a
dança era interrompida para começar o desfile das candidatas. Ninguém sabia, oficialmente, quem iria concorrer. É claro que os familiares sabiam e muitos deixavam escapar o segredo. Assim, os que ali
iam para brincar, podiam, incentivados por amigos, tornar-se candidatos de um momento a outro. E foi exatamente isso que aconteceu de
modo a causar um reboliço entre os jurados.
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Entretanto, alguns afirmavam que tudo fora tramado dias antes.
Para tornar-se candidata, bastava decidir e aceitar as regras do jogo e escrever, em qualquer papel em branco disponível, com letras de forma,
o nome da candidata, seu CPF e número da carteira de identidade e, em
seguida, colocá-lo num envelope e entregar à Comissão Julgadora.
O baile parou e o jurados subiram até um pequeno palco armado
às pressas, onde se assentaram diante de três mesas de bar colocadas
juntas. Um ajudante levou até o presidente do júri os envelopes com
os nomes dos candidatos.
O júri era formado pelas figuras de destaque de Lumeeira: Sr. Vitório, da padaria, Lolão, o farmacêutico, Abrahão, comerciante, Oracyr,
o dentista, e Demóstenes, o advogado. Além desse grupo de homens,
faziam parte do júri ainda três das principais senhoras da sociedade, D.
Berta, mulher do velho médico parteiro da cidade, D. Lastênia, antiga
professora e tia de Rachel e Clodovina, esta última era a que cuidava
das coisas da igreja, sendo protegida do Padre Leão.
Cada um dos jurados, naquela noite, sabia que era uma figura
ridícula ao estrear, desajeitadamente, roupas novas e incômodas especialmente feitas para aquele baile e concurso. D. Clodovina estava
menos gorda hoje, pois apertara tanto seu busto quanto sua barriga,
ao limite máximo permitido, sem que estourasse ou morresse por falta
de ar. Seus cabelos, penteados de tal modo para a grande festa, davam
a impressão que grandes massas de estrume tinham sido colocadas
em cima do seu crânio. Dr. Demóstenes fugiu, nesse baile, à sua rígida
disciplina, pois não usava sua costumeira gravata azulada com uma flor
amarela. Hoje vestia um terno novo, listrado com riscos verticais claros
num fundo marrom. Sua cabeça redonda sem cabelos assentava-se no
pescoço grosso, enfiado na camisa branca com o colarinho fechado.
Sua face arroxeada dava a impressão que deixava passar sangue dos
seus poros para fora da pele e que esse havia se misturado com o suor
que escorria da face.
O júri, uma vez instalado e em ação, deveria abrir cada inscrição,
muitas vezes ilegível, e uma vez lida, avaliar se deveria ou não ser aceita, como no caso de ser uma brincadeira de mau gosto.
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Mas geralmente isso não acontecia, todos ali levavam a sério a
cerimônia. Ao começar a abertura e a leitura dos nomes, apenas a comissão tomava conhecimento de quantos e quais seriam os candidatos
e somente mais tarde a lista era divulgada para o público presente.
À abertura de cada envelope, o presidente da comissão lia, em
voz alta, o nome do candidato ou candidata. Após a leitura de cerca
de cinco nomes de candidatas, houve uma pausa brusca. Em seguida
o nome da candidata foi mostrado a cada um dos jurados que, espantados e após balbuciarem algumas palavras demonstrando espanto, se
calaram. Estes viveram um momento de pânico. Ninguém se atrevia
a falar nada. Nenhum membro do respeitável júri poderia supor, ao
abrir o último papel, que nele estivesse escrito o nome de Ana Maria.
A comissão ficou tensa e ninguém conseguiu fazer um comentário.
Todos esperaram um pronunciamento rápido do Dr. Demóstenes, que
presidia o júri. Buscava-se, sem achar uma saída, uma forma honrosa
para todas aquelas figuras representativas da sociedade local. O silêncio era terrível naquele palco. A terça-feira gorda de carnaval que estava, até aquele momento, tranquila, ficou agitada.
Por minutos o júri ficou estático. Depois, o silêncio foi quebrado
por barulho do próprio público, que não compreendeu o silêncio da
comissão julgadora. Como se estivesse acordando de um pesadelo,
cada jurado começou a falar nervosamente um para o outro.
— Isto é um absurdo, vociferou o Dr. Demóstenes, ex-candidato
a prefeito na chapa inimiga de Jacó.
— Podíamos aceitar o seu concubinato, os seus filhos naturais,
a passividade de D. Dadá e mesmo o jeito brincalhão e irresponsável
de Jacó, mas não esta pouca vergonha dela concorrer ao concurso de
fantasias, acrescentou Oracyr. Enquanto isso, seu Vitório, calado no
seu canto, lembrava com imensa saudade dos bons tempos quando
Ana Maria trabalhava na sua padaria como caixa.
A comissão julgadora, depois de acaloradas discussões sigilosas,
percebendo a dificuldade política e ética de eliminá-la antes de julgála, que ficaria pior ainda ao não aceitá-la, decidiu permitir que todas as
concorrentes pudessem desfilar e, posteriormente, fossem julgadas.
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Após algum tempo, afinal, tudo acabou bem. Cada uma das dez
concorrentes tinha três minutos para se apresentar no palco, diante da
plateia, para mostrar a fantasia e dar alguns passos ao som de marchinha de carnaval “Mamãe eu quero”.
Aos poucos as candidatas, recebendo poucos aplausos, desfilaram. Não foi difícil eliminar diversas delas já na primeira rodada do desfile. Também não foi difícil perceber que duas das candidatas realmente
estavam bem fantasiadas e desfilaram com grande classe e elegância: D.
Dadá, mulher do prefeito, e Ana Maria, atual amante do mesmo.
Apenas para evitar eliminar de uma só vez oito candidatas e deixar apenas as duas concorrentes capazes de ganhar o prêmio, os jurados, de comum acordo, foram eliminando uma e outra, fazendo com
que novas apresentações fossem realizadas para agradar mais o público presente.
A multidão, composta quase totalmente de homens, assistia animada, dando gritos e urros diante de cada apresentação, mas esperava
com mais ansiedade as duas concorrentes rivais: a esposa e a amante
do prefeito.
O momento final foi chegando: D. Dadá e Ana Maria disputavam,
no Baile de Fantasia do Clube Treze de Maio, o primeiro lugar. As duas,
segundo a plateia, estavam empatadas, pois as palmas e os assobios
estavam equivalentes. Ambas se comportavam como excelentes candidatas, sérias, agiam como profissionais que conheciam as regras do
jogo e o estavam fazendo.
Apesar do inesperado, do susto inicial entre os jurados antes do
desfile, o que se viu durante sua realização foi uma disputa normal e
correta entre as diversas concorrentes, principalmente entre as duas
mulheres do prefeito Jacó. Além disso, o prefeito se manteve assentado numa mesa próxima à passarela, sem intervir a favor dessa ou daquela candidata. Junto ao prefeito, assentavam-se outras autoridades
de Lumeeira e naquela noite Jacó bebia, não a costumeira pinga, mas
sim, moderadamente, algumas cervejas. Com extremo cuidado e tranquilidade, diante de todos, observava e aplaudia com o mesmo ardor e
com total imparcialidade as duas concorrentes até agora classificadas.
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Para Jacó ambas deram o melhor de si e as duas mereciam o
primeiro lugar. Por outro lado, o público aplaudia também com entusiasmo as duas candidatas, sendo que de um lado as mulheres torciam
mais para D. Dadá e os homens gritavam pela eleição de Ana Maria.
As duas foram chamadas a desfilar várias vezes na passarela: os jurados não sabiam como decidir.
A noite estava acabando e o sol já mostrava seus primeiros raios
no horizonte à distância. Os primeiros sons dos pardais e dos pombos
já se faziam ouvir. Clareava mais um dia e o cansaço e o sono invadiam
os frequentadores do Clube Treze de Maio. A algazarra inicial diminuíra sensivelmente. Lá fora já se ouvia, na praça ao lado, a tosse seca de
algumas beatas idosas que se dirigiam à igreja para receber as cinzas
da quarta-feira. Também era possível distinguir o andar pesado e triste
dos lavradores e vaqueiros que, ainda muito cedo, caminhavam em
direção ao campo para gastar mais um dia de suas vidas no trabalho
penoso e sem sentido.
Eis que surge o apresentador Noco, o figurinista com sua voz de
falsete efeminada e cansada. Com muito esforço conseguiu transmitir
ao público o resultado final:
— Atenção, senhoras e senhores! O júri, na sua sabedoria e
imparcialidade, e depois de diversas discussões, decidiu, de comum
acordo, por unanimidade, considerar como vencedora do concurso de fantasias do Clube Treze de Maio, D. Dorvalina Gonçalves de
Almeida Duarte, nossa querida D. Dadá. Esta, como estava decidido,
receberá o prêmio anunciado anteriormente, ou seja, uma viagem à
Foz do Iguaçu, com direito a um acompanhante.
Nesse momento o grupo masculino começou a vaiar, mas Noco
pediu silêncio:
— Atenção! Atenção! Ainda não terminei! Um instante! Entretanto,
em virtude da peculiaridade desse concurso e do grande desempenho e
merecimento da segunda colocada, a Srta. Ana Maria, o júri, aconselhado pelo senhor prefeito da cidade, decidiu aumentar o prêmio da vencedora. Assim, é que, a vencedora, D. Dadá, poderá levar, em lugar de um
acompanhante, mais um outro, ou outra, isto é, dois acompanhantes.
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Entenderam? Estes terão todas suas despesas pagas pela prefeitura da
cidade. Está encerrado o baile de fantasia.
Palmas, urros, gritos e ovações foram ouvidos à distância, para
aplaudir o término feliz e sábio do grande concurso de fantasias da
terça-feira de carnaval. Os presentes, em seguida, foram dormir satisfeitos e tranquilos com o resultado.
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Semana Santa:
O sermo do Padre Leo
Padre Leão, no seu sermão, falou acerca da incompreensível sequência de mudanças que ocorriam na vida de cada fiel. Pensou que o
destino dos seres humanos, por sinal impossível de ser compreendido
ou interpretado, mesmo sendo cheio de significação divina, era composto por uma mistura complexa de belezas, horrores e absurdos.
“Estamos no final da Semana Santa, sendo hoje sexta-feira Santa,
um dia muito especial para a Igreja, quando nós lembramos o sofrimento de Cristo rumo ao Calvário, eu me permito falar de uma maneira mais crua, mais natural, sem muito subterfúgio, me despir um pouco do verniz que reveste minha alma acerca dos nossos sofrimentos,
dos nossos Calvários que Jesus tentou tanto mudar. Ao contrário do
que acontece na maior parte das vezes, hoje falarei com mais espontaneidade, falarei a verdade, pois, daqui a alguns dias, ela poderá não ser
mostrada. Pretendo abordar dois assuntos: o primeiro sobre a infelicidade humana, o segundo acerca dos orgulhosos ou presunçosos.”
1) O SOFRIMENTO E A FELICIDADE
“Não é justo uma pessoa ostentar felicidade frente a tanta miséria. Tal conduta é uma afronta deliberada ao resto da humanidade que
nada tem, nem mesmo esperança de alcançar alguma coisa digna do
que nós imaginamos para o homem médio.
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Não deixa de ser um desafio a Deus apresentarmos uma imensa
alegria no meio de tanta desgraça. Nosso povo, a cada dia mais, está
deixando de acreditar em Deus. Em lugar disso, prende-se mais às festas e rituais, ao hipnotismo que atingiu as massas comandadas pela
mídia e grandes empresários.”
Após uma breve parada, ele prosseguiu inflamado:
“O antigo Deus está moribundo. Em seu lugar cresceram e continuam a crescer outros e outros deuses, a maioria deles sem ética
e cada vez mais afastados das pregações de Jesus Cristo, que lutava,
fundamentalmente, contra a opressão de uns poucos contra a maioria.
Os novos deuses pregam exatamente o oposto: a manutenção eterna
do domínio de uns poderosos sobre a maioria desprotegida.”
Acredito que talvez seja preciso tornar o povo ainda mais infeliz,
pois somente desse modo haveria esperança de que assim, a fé num
Deus de conduta religiosa de igualdade e não de desigualdades e opressão, possa ser resgatada. Como se sabe, e têm sido relatadas, através
dos sofrimentos, que muitas conversões têm sido conseguidas. Somos
pecadores viajando nesse mesmo barco cósmico que está perpetuamente a naufragar. Apesar disso, rato algum tem qualquer justificativa
para abandoná-lo. Jesus disse: “Aqueles que têm, mais lhes será dado e
aqueles que não têm, lhes será tirado, mesmo o pouco que têm.” Essa é
a mais cruel de todas as brincadeiras de Deus e também a mais usada.
2) OS PRESUNOSOS
“O mundo está cheio de presunçosos: políticos, religiosos e também cientistas metidos a sebo. Todos eles são vaidosos que se supõem
ser mais inteligentes, mais cultos, mais capazes e outros mais, mais e
mais. São uns metidos que tentam passar pelo que não são. Fingem
saber acerca do que realmente não sabem ou não dominam; intrometem-se no que não é de sua conta. Um enorme grupo de pessoas,
vocês, ouvintes, os conhecem, vivem das cascas envelhecidas que os
cobrem: o nome da família, o título arcaico que obteve, a posição social do passado. São todos ridículos.”
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“Muitas dessas pessoas não estão verdadeiramente vivas, muitas
nunca praticaram um ato que desempenhasse uma função essencial
para um organismo total. Elas não têm relação viva com coisa alguma,
fizeram discursos, pregaram, criaram leis, pronunciaram conferências,
uma verborreia vazia, sem carne e sem osso, palavras, apenas palavras,
todas elas desprovidas de referenciais possíveis de serem observados.”
“São indivíduos que não têm o menor conhecimento pessoal,
prático, vivido e sentido, de quem é José ou Maria, quem é Deus, o
que é a fome, dor ou sofrimento. Muitos deles andam pelos palanques,
nos púlpitos das igrejas, nas mesas de discussões nas televisões, nos
auditórios fazendo conferências para leigos ou profissionais, para um
público que anota todas as idiotices faladas. Muitos rosnam suas orações, seus discursos vazios, suas prescrições sem sentido, orgulhosos
de seu trabalho infecundo que menospreza a inteligência, a perda de
tempo do ouvinte ou leitor.”
“Esses senhores importantes e esnobes, sem dúvida não conhecem o homem. Eles pervertem e destroem a totalidade da existência
de cada homem, agem presos e conforme a vontade de uma abstração
arbitrariamente imaginada e construída, conceitos desprovidos de entendimento real, a que esses “professores” que desprezam os sentidos
do homem, resolveram dar o nome de Saúde, Normalidade Psíquica,
Deus, Fé Cristã, Paz Mundial, Ordem Social, Democracia, Igualdade,
Família, Direitos, Auto-estima, Alma, Vida futura, Liberdade, Céu, Inferno e milhares, milhares de outros. Todos são conceitos descarnados.”
“Estes seres grotescos e desprezíveis deveriam ser proibidos de
falar, como são milhões de outros que não têm oportunidade para
isso. Esses homens, incapazes de sentirem o ser humano e o meio
físico, são geralmente chamados de espiritualistas, humanistas, mas
são, antes de mais nada, pouco realistas e nada sensitivos. Eles não são
mais, talvez nunca tenham sido, integralmente homens no sentido biológico e espiritual. Noticia-se que os impotentes costumam ser ótimos
amantes espirituais pelas mesmas razões, pois não conseguem atuar
como seres também biológicos. Eles, como os intelectuais metidos,
não têm condições para isso.”
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“Não deveríamos ter uma igreja estabelecida por construções teóricas desprovidas da realidade vivida e sentida. Deveríamos ter, isto
sim, uma religião assentada na experiência imediata e concreta, que
combatesse a crença em dogmas improváveis e nas falsas emoções inspiradas nessas mesmas crenças. Precisamos formar ideias inspiradas
nos sentimentos e pensamentos extraídos da experiência concreta e
imediata, pois só assim ficaremos a salvos das pragas do imenso poder
de grupos religiosos perigosos, de reivindicações estranhas.”
“Só existe um meio para alcançarmos esses objetivos: cultivar
desde criança, sistematicamente, o ceticismo, ou seja, o oposto do que
é ensinado. As crianças são treinadas, desde o nascimento, a acreditar
em todas as bobagens ouvidas dos pais, avós ou outros líderes que as
acompanham.”
“Devia ser ensinado desde o nascimento e posteriormente fazer
parte da essência do currículo escolar, o oposto do que acontece: as
crianças seriam desencorajadas a tomarem as palavras com demasiada
seriedade. Deveriam ser, depois de algumas semanas de aprendizado,
estimuladas a prestarem atenção aos estímulos que chegam do mundo
exterior: o que veem, ouvem, pegam etc. Além disso, elas deveriam
ser advertidas que suas ideias básicas já incorporadas na sua mente,
bem como seus sentimentos e desejos, podem e devem interferir na
observação do mundo em que vivem. De outro modo, os hábitos de
linguagem, a forma de pensar de cada grupo, afeta não só seus sentimentos, mas também desejos e, além disso, as próprias sensações e
pensamentos. O nosso “estado de espírito” de um momento, a palavra
que estou usando no instante, além dos objetos que busco, é que irão
dar o chamado “sentido” ao ato realizado. O que escuto como sons, ou
ondas sonoras, é uma coisa muito diferente e distante do sentido que
dou a eles. O mesmo ocorre com a visão e outros sentidos.”
“O pensamento científico é construído pelos cientistas, não é
observado, arrumado conforme as probabilidades dele realizar. As denominadas “leis imutáveis da natureza” são dados estatísticos médios,
felizmente provisórios, pois, como sabemos, estão em constante mudança.”
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“Tudo isso deveria ser ensinado muito precocemente: ensinar a
analisar tudo o que ouvem ou leem, informar que as palavras não são a
realidade, são formas ou símbolos que tentam, numa certa época, descrever a realidade, segundo algumas mentes num certo lugar e presas
a uma certa filosofia, ciência, religião, ou ideologia política.
Do modo que, a cada dia, o povo tem adorado mais as palavras e,
como consequência, detestado os fatos, que não é outra coisa que um
“materialismo abstrato”, um endeusamento das abstrações. Este, como
o “idealismo abstrato”, tem levado as pessoas a não mais conseguirem
ter experiências concretas e imediatas.
Para terminar, contarei a vocês uma historinha dos frades que, durante uma reunião, discutiam acerca dos números de dentes de um burro.”
“Certa manhã, diversos frades assentaram-se à mesa para sua
reunião semanal, a fim de discutirem diversos assuntos polêmicos e
de importância para o grupo. Num certo ponto da reunião, o assunto
a ser discutido era uma questão que há muito eles estavam em dúvida:
Quantos dentes tem um burro?
A discussão, depois de continuados debates acalorados, não chegava ao seu fim, pois ninguém ainda, com segurança, fora capaz de
afirmar o número exato dos dentes do burro.
Cansados, tentando explicar e interpretar o problema apresentado de um modo e outro modo, num certo momento, meio sonolento,
um dos frades tido como dos mais bobos, desanimado, percebendo
que não se chegava a nenhuma certeza e acordo entre as diferentes
opiniões, sugeriu timidamente ao seleto grupo, se não seria melhor,
ou mais adequado, em lugar de ficar discutindo e tecendo razões e
mais razões, raciocínios complexos, em defesa de uma ou outra tese,
se todos fossem diretamente até ao burro, perguntando a ele, isso é,
abrindo sua boca, e observando, contassem seus dentes.
Quando o fradinho acabou de falar, e como ele era considerado,
abstratamente falando, o menos capaz deles, os seus companheiros de
mesa o olharam irritados e perplexos, por seu grande atrevimento e
ingenuidade.
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Nesse momento, o chefe dos frades, não conseguindo esconder
uma certa aspereza, como porta-voz de todo o grupo respondeu, quase aos gritos, à proposta do fradinho:
— Você acha então que há mais sabedoria na boca de um burro
do que em nossas cabeças? Fique quieto! Retorne à sua insignificância!
Vamos continuar nossa discussão!”
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Semana Santa:
A procisso
Ao terminar seu curso normal, Rachel arrumou um emprego na
escola rural. Todos os dias ela viajava no velho ônibus, através de uma
estrada poeirenta, para ensinar a ler e a escrever crianças desinteressadas e desnutridas. Tinha pela frente um trabalho penoso: lecionar para
meninos desprovidos de recursos e que, provavelmente, frequentavam
a escola apenas para receber a sopa aguada que era servida no recreio.
Sem outra coisa melhor para fazer, Rachel preenchia o tempo
vazio, tentando amar o impossível, pois, durante um longo tempo,
por mais que sonhasse com algum namoro, ela não foi assediada por
nenhum rapaz. Desiludida com os homens, ela incrementou seu envolvimento na escola e na igreja.
Pela manhã, ainda muito cedo, ia para a escola rural. No final
do dia, começo da noite, ela frequentava a igreja juntamente com outras mulheres, senhoras casadas há muitos anos, viúvas ou solteiras
empedernidas. Rachel não perdia mais as rezas, missas, casamentos,
batizados e procissões.
Ela gostava sobremaneira das procissões, pois eram estas que
mais a estimulavam e transformavam durante alguns dias, como no
carnaval, seu modo de viver. Quando se aproximavam os dias de
qualquer procissão, Rachel se preparava com esmero, pois sabia que
seria figura de destaque. Comumente, nessas ocasiões ela colocava
sua mantilha espanhola preta, presente recebido há anos de sua tia e
guardado com carinho.
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Através desse enfeite, ela cobria sua face achatada e feia, disfarçando, assim, seu rosto gordo, seu cabelo espetado e a verruga,
semelhante a um abdome arredondado de vespa, que desde o seu
nascimento habitava a ponta de seu nariz.
As festas religiosas de rua em Lumeeira contavam com a participação da maioria das mulheres da cidade, todas mais velhas que Rachel. Isso se constituía em trunfo para ela, pois era o contraste entre
sua juventude e a velhice das beatas, que fazia Rachel se sobressair em
todas procissões.
Uma vez adornada, destacando-se sobremaneira, conseguia chamar a atenção dos homens da cidade, o que não conseguia durante
seu dia-a-dia. Apesar de sua baixa estatura, bem como sua exagerada
gordura corporal, o modo elegante e belo como ela se vestia para
as festas religiosas, contribuía para que ela se distinguisse do padrão
das devotas que acompanhavam as procissões: mulheres geralmente
muito mais velhas, encurvadas, andando de pernas já enfraquecidas e
mais abertas para conseguirem um maior equilíbrio ao andar.
Durante as procissões, os homens de Lumeeira, totalmente desinteressados dos assuntos relacionados à fé, em lugar de acompanhar o cortejo como faziam as mulheres, se postavam em silêncio e
respeitosamente em cada lado das calçadas. Eles eram, antes de tudo,
assistentes de um espetáculo que ali seria representado, uma exibição
semelhante a um jogo de futebol, uma tourada ou a visão de uma
mulher bonita que passasse na rua. Durante a cerimônia, os homens,
aparentando uma expressão de fé adequada ao evento, prestavam
atenção às mais charmosas e belas que desfilavam orando, uma após
outra, contritas e cheias de fé. A maioria das mulheres que caminhavam pela procissão, não era notada. Apenas duas ou três seduziam,
não só os homens jovens, mas também anciães encurvados, com pouca ou nenhuma possibilidade de pecar, talvez de nem mesmo sonhar
acerca dos pecados.
Rachel, feia à luz do dia, transformava-se à noite, uma vez embelezada pelas roupas apropriadas para a ocasião, como figura de destaque que era.
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Com sua imponência, recebia olhares maliciosos de cobiça dessa plateia formada por peritos em avaliar a beleza feminina do interior. Era sua noite de esplendor e prazer.
Na procissão da sexta-feira santa, Rachel se preparava semanas
antes para o desfile. No início do ano, após as festas de Natal e Ano
Novo, ela começava, apressadamente, seu regime alimentar para perder uns quilinhos, fazia ginástica, caminhava dez quilômetros por dia
e tomava banhos de sol. Além disso, ela procurava um dentista para
tratar dos seus dentes, pois o homem de Lumeeira examinava, em
primeiro lugar, como critério de beleza, os dentes das mulheres em
virtude de sua perícia em examinar e avaliar os dentes dos animais.
No dia da procissão Rachel se preparava desde cedo. Levantavase nervosa e preocupada com o papel a ser representado e também
pelo esforço que teria que depreender durante o longo dia. Após levantar-se, iniciava a faina penosa destinada a usufruir a grande noite.
Fazia as unhas com sua empregada, que era perita em cutículas, ia
ao salão, tentando amansar seus rebeldes cabelos espetados, tirava o
vestido previamente confeccionado do guarda-roupa para limpá-lo e
repassá-lo.
Horas antes do início da festa, Rachel já estava vestida e maquiada para a “grande noite”. Caminhava de um lado a outro dentro de
casa, enquanto esperava, ansiosa, o início do cortejo. Ela sabia que
nesse dia ela era a personagem principal da procissão depois, evidentemente, de Cristo.
A procissão começava com o sermão do padre acerca daquela
semana e, principalmente, da morte de Cristo. Era uma pregação que
normalmente não era ouvida e não interessava a ninguém, pois, como
as ideias eram geralmente repetidas, todos já a conheciam de cor. No
início da fala do padre, sabiam já onde ele ia chegar.
Os habitantes da cidade, todos usando roupas limpas e especiais
para o dia, esperavam na praça onde seria realizado o sermão, ao lado
da igreja, o início da procissão, ponto alto da festa.
Muitos na cidade, mesmo não sendo “voyers” fanáticos, não perdiam as procissões de Sexta-feira Santa.
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Alguns, conforme me confidenciaram, só iam ao desfile para ver
Rachel passar adornada.
Na noite memorável, a cerimônia começava após ser ligada a sirene do carro de polícia, ao mesmo tempo que as luzes da cidade eram
apagadas totalmente. Estava iniciada a procissão. O silêncio produzido
era difícil de suportar, emocionava a todos os presentes. Rachel se postava, como figura principal, à frente do andor onde estava o corpo de
Cristo. Ao seu lado estavam as principais figuras da procissão.
A rua totalmente às escuras, pouco a pouco começava a ser iluminada pelas velas que iam sendo acesas, uma por uma, por todos os
componentes do cortejo, num ritual continuado. A tensão era grande,
todos estavam prontos para iniciar o grande espetáculo.
A procissão marchava solenemente pelas ruas da cidade num silencio sepulcral. Bem na frente caminhava, de um lado, Padre Leão,
coberto de ornamentos exigidos para essa apresentação, e de outro,
Rachel, que, toda enfeitada com a roupa especial, triunfalmente começava suas apresentações.
Muito séria exteriormente, participando como destaque do grupo principal, na frente da procissão Rachel começava sua caminhada
muito lentamente, na penumbra criada pela luz da lua, que nessa noite
jamais deixou de aparecer, e pela fraca luminosidade das velas conduzidas pelos diversos fieis.
Outros participantes especiais, também fazendo parte do grupo
da frente da procissão, carregavam imagens e crucifixos, um pouco
mais para trás. De um lado e outro, viam-se diversos fieis formando
duas alas os quais, de tempos em tempos, entoavam cantos e rezas.
Os fieis iam caminhando a passos lentos e ritmados, arrastando
a sola dos sapatos nas pedras de minério do calçamento, produzindo
um barulho monótono, como se as ruas estivessem sendo lixadas por
uma multidão de solas. Podia-se ouvir ainda, como fundo sonoro, o
ritmo martelado e insistente da matraca.
Um pouco atrás de Rachel, caminhava um negro alto e encurvado, que carregava um velho tambor rasgado e emendado por fitas de
esparadrapo.
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O tambor, dependurado junto à sua barriga, estava amarrado
com uma fita ensebada e grossa verde-amarela, que dava voltas por trás
do seu pescoço. Através das tamboriladas sincronizadas e preguiçosas
dadas no tambor saíam sons surdos e ocos, repetitivos, misturados de
lembranças antigas, suaves e profundas. As pessoas que seguiam a procissão, enfeitiçadas pelo compasso mágico do velho tambor, caminhavam ordenadas e felizes, talvez em êxtase. Imaginavam estar, naquele
instante, gozando das delícias do paraíso, da paz, diante da simplicidade e beleza do seu som.
Mas nem tudo na procissão eram estados de espíritos afastados
das coisas materiais. Havia Rachel, pouco visível sob a claridade do dia,
mas formosa e sedutora na penumbra. Ela se transformava durante
estes festejos, para os habitantes esfomeados de Lumeeira, numa rainha carnuda e atraente. Mas a sedução e o sucesso de Rachel duravam
enquanto as luzes da cidade estavam apagadas e as ruas iluminadas
apenas pelas velas trêmulas. Terminada a procissão, quando as luzes
eram acesas, o sonho de uma noite se desvanecia por encanto e, para
tristeza da rainha da noite de Sexta-feira Santa, tudo voltava a ser o que
era antes. Rachel não era mais cobiçada por ninguém, voltava a ser feia
e pouco atraente.
Todos os homens que a observavam, sabiam que estavam sendo
enganados pelo halo provocado pelo ambiente: pouca luz, o dia especial, os sons nostálgicos do tambor e da matraca, a luz da lua no horizonte, o corpo cheio e arrumado de atriz e, por fim, a emoção evocada
pelo enterro de Jesus.
Mas a ausência de realidade pouco importava. Os homens, durante a procissão, imergiam, como cães famintos, emocionados e sonhadores, no simbolismo vivido por Rachel na Sexta-feira Santa e o
consumiam com avidez. Presos à sua limitação, sem outra possibilidade, já que não encontravam, diante deles, uma realidade feminina
bela por si só, satisfaziam-se e devoravam sua metáfora. Envolviam-se,
por instantes, nessa fantasia sacro-erótica, para descansar da dura luta
diária, realista, feia e penosa.
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Arroubos tmidos
Animada com sua proeza na procissão de enterro, que se repetia
todos os anos, Rachel aumentou suas ligações com a igreja. Aos poucos ela começou a ajudar missas, promover rezas, e até, não oficialmente, a dar confissões aos mais necessitados e humildes fieis. Isso
somente ocorria quando o número de pecadores aumentava muito e
o padre, sozinho, não dava conta, ou também na ausência do padre,
o que não era raro. Rachel, séria, mas também curiosa, esforçava-se
para se manter discreta ao ouvir os pecados daquela gente simples e
humilde. No confessionário, com a seriedade exigida pelo papel que
desempenhava, escutava os pecados ingênuos das mulheres do campo. Imaginavam ter cometido falta grave, quando, de fato, pagavam
pelos pecados dos superiores. Alguns homens da cidade, sabendo da
nova função de Rachel, esperavam o excesso de confissões do padre,
ou suas ausências, para irem confessar-se com a nova ajudante do
padre. Diante dela, propositadamente, inventavam ou se lembravam
de pecados, os mais cabeludos possíveis e, disfarçadamente, a observavam durante a confissão, criticando o nervosismo e a vergonha dela
durante o relato inventado. Confusa e tímida, trocando as palavras,
suando e apresentando, em toda sua face, as grandes manchas vermelhas que apareciam durante esses momentos, despachava rápido o
embusteiro, que saía rindo.
Vivendo acostumada com a igreja e seus frequentadores, ela
aproximou-se mais estreitamente de um padre que, temporariamente, ocupou o lugar do Padre Leão, o qual foi fazer um curso em Roma
durante três meses.
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A intimidade surgida entre ela e o Padre Paulo, e a experiência
adquirida no confessionário, facilitaram sobremaneira a abertura de
canais nunca antes imaginados. Nas conversas, que sempre começavam com rodeios inocentes, aos poucos o tema sexo, assunto preferido dela, era habilmente introduzido. Depois de um bom tempo, a
cada dia com mais intimidade com o pároco e animada com um filme
que vira na véspera na televisão acerca de uma moça que conquistara
o pastor, Rachel decidiu falar claro acerca de seu objetivo, que era
conquistá-lo.
A tentativa de Rachel foi mais uma terrível frustração em sua vida.
Seu objetivo, na verdade, era muito mais ajudar o padre, fazer-lhe caridade, pois imaginava que este estava precisando de ajuda carnal. Ele,
como representante da igreja, parecia, aos seus olhos, ser merecedor
de seu sacrifício, e ela, em virtude da sua proximidade com ele, poderia ser o instrumento para tal. Rachel, que na verdade nunca se sentiu
atraída pelo padre, tinha por ele apenas reverência e piedade. Julgou,
erroneamente, estar mais próxima de Deus, caso ajudasse e fosse benevolente com o representante direto de Cristo na terra.
O padre não aceitou seus favores e a repeliu asperamente.
Disse-lhe, francamente e sem rodeios, que nunca tinha tido interesse
por ela. A partir daquela data, Rachel ficou proibida pelo pároco de
frequentar a igreja para conversar com ele, para ouvir confissões, fazer
rezas e até de ir a procissões. Poderia, no máximo, ir uma vez por semana à missa, desde que ficasse na parte do fundo da igreja, perto da
porta de saída. Decepcionada e desesperada, agora sem poderes e sem
prestígio, não teve outra alternativa a não ser aceitar a ordem imposta.
Com seu arroubo momentâneo, que fracassou quando tentou em vão
conquistar o Padre Paulo, Rachel enterrou, de uma só vez, uma grande
e enorme fonte de prazeres que dava apoio a sua vida vazia.
Um dos primeiros gestos dela foi queimar a roupa usada nas
procissões. Posteriormente, Rachel descobriu que, segundo fofocas, o
novo padre não era um homem fanático por mulheres. Este fato, terrível para ela, a marcou para o resto da vida, obrigando-a a buscar novas
metas, o que era difícil em Lumeeira e principalmente para ela.
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Pouco a pouco ela foi desistindo dos homens, da igreja, das festas, talvez de tudo. Suas antigas e poucas companheiras, não digo amigas, pois creio que jamais as teve, foram se afastando. Umas casaram-se,
outras saíram da cidade para trabalhar ou estudar fora. Sua vida afetiva,
após a “excomunhão”, passou a ser com a família, com umas poucas e
velhas beatas que ela não abandonou e com seus alunos, crianças que
não lhe davam grande importância.
Mas por milagre, sua vida começou a melhorar diante de um fato
muito simples e inesperado. Rachel recolheu em sua casa talvez o único amigo leal que teve em sua vida, um cão. Um caminhão atropelou
em frente à sua casa um pequeno cão, que teve uma de suas pernas
quebrada. Seu ex-dono não apareceu para reclamá-lo, e provavelmente, percebendo a gravidade do acidente, pensou que seria melhor sacrificá-lo que mantê-lo vivo, para evitar seu sofrimento.
Sem casa e sem dono, abandonado como ela, o cão foi carinhosamente adotado por Rachel. A partir desse encontro casual, os dois
se tornaram grandes amigos. Após levá-lo ao veterinário para engessar
a perna quebrada, aproveitou sua ida para que o médico fizesse os
exames e desse as vacinas necessárias. Desse dia em diante sua vida se
transformou. Passou a dedicar ao cão todo o amor que era armazenado
para Tomé e que não pode ser desafogado na pessoa imaginada. Vivendo para o cão, após batizá-lo com o nome de Bob, deu a ele todo seu
tempo e dedicação. Esquecendo os dissabores vividos com o padre e
entusiasmada com sua nova paixão, só conversava com seus familiares
e alunos acerca do cão querido. Agora este era seu assunto e ela não
parava de falar sobre sua graça e inteligência.
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Rachel e Tom
Rachel, apesar de todos os fracassos, continuava a ter esperança
com respeito a Tomé. Ele, cada vez mais falante e alegre, agora com
seus vinte e poucos anos, trabalhava como vendedor de queijos. Seus
amigos, como pilhéria, continuavam a dizer que um dia ele ainda acabaria se casando com Rachel, na expectativa de receber uma boa herança. Ele, de bom gênio, brincava, concordando, talvez sem saber se
teria, ou não, coragem para tanto.
Todos nós sabemos que basta um pequenino grau de estímulos
para que nasça a esperança. A partir dessa, pode ocorrer o florescimento do amor. Amor é como espirro, surge e termina sem que nossa
vontade participe.
A idealização da pessoa amada, ou seja, a transformação da pessoa real amada, na idealizada ou na que sonhamos, é a solução imaginária do amor. Somente através da idealização podemos perceber a
existência da perfeição na mulher ou no homem que amamos. A visão
da perfeição através de nossas ideias desta – a partir de nosso sonho
– tende a diminuir, ou mesmo terminar, logo que comecem a ocorrer
os encontros.
Após conhecer melhor a pessoa, os amantes apaixonados geralmente diminuem a paixão, ou até mesmo ficam desenganados. Surgem
as dores do amor que duram muito mais que as alegrias do amor. Somos obrigados, à medida que as relações entre os amantes aumentam,
a encarar a triste realidade: diminui ou apaga-se a idealização inicial
que era agradável e animadora e aparece o desengano, a desesperança,
as críticas.
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Com o ódio ocorre a mesma coisa, também ele tem sua idealização. Tanto no amor, como no ódio, gozamos a ilusão criada por nós
como se ela fosse externa, pois “quem ama o feio, bonito lhe parece”,
como diz o ditado popular. Ou também: “O que Pedro fala de Paulo,
diz mais de Pedro que de Paulo”.
Todos os homens já perceberam que as mulheres por eles cobiçadas, extremamente belas, causam menos admiração no segundo dia
e menos ainda no centésimo dia. O mesmo ocorre com as observações
das mulheres com respeito ao homem amado. Todos nós toleramos
pouco o erro dos outros, comparados com o que esperamos deles.
Isso nos leva, devagar, às vezes muito rapidamente, a desintegrar a
visão formada durante a idealização positiva.
O amor vivido aos trinta, quarenta ou cinquenta anos, geralmente não tem mais o brilho, o sublime e o vigor do amor construído pela
imaginação durante os dezoito anos. Quando estamos mais velhos, o
amor é uma espécie de sentimento modificado e mais fraco que o do
jovem. Nas mentes mais vividas a desconfiança já nasceu cedo, a realidade interna e idealizada, diferente da do jovem, já está mais perto da
realidade dura, triste e frustrante.
Aos dezoito anos, gozamos, na pessoa amada, cada virtude, conduta ou aspecto físico, conforme construímos esses aspectos em nossas mentes. Assim, se damos uma grande importância à ternura, a vemos desse modo. Se quisermos ter diante de nós uma mulher altiva, a
vemos assim. Aos dezoito anos, a fria e indiferente realidade é ofuscada
pelos nossos desejos, ou melhor, nossos delírios.
Por trás dessa percepção alucinatória, nada contribui mais para
dar nascimento a um grande amor que uma aborrecida solidão e o
ócio. Esses contratempos, que, às vezes, mas nem sempre, nos fazem
sofrer, soam poderosos, produtores do “grande, apaixonado e arrebatador amor”. Esses estados mentais e emocionais facilitam o crescimento do grande amor.
Por outro lado, uma vez destruída a idealização, podemos nos
acostumar com as virtudes e os defeitos das pessoas, mas, nesse caso,
sem nenhuma paixão. A alucinação é fruto das grandes paixões.
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O contato diário nos leva a conhecer melhor os outros e a nós
mesmos, de um modo mais próximo da realidade.
Assim aconteceu, como não podia ser diferente, com Rachel e
Tomé, velhos conhecidos e parentes, desde o tempo de crianças na escola. Com o tempo, cada um foi se acostumando ao outro. Os hábitos
ajudam-nos a tolerar tudo. Isso acontece com todos nós, habituamonos a tudo, com as melhores e piores coisas e pessoas. Com o tempo,
achamos normal tudo, passamos a gostar e a defender o que anteriormente odiávamos.
Rachel, detestada pelo físico, feiúra e antipatia, possuía algo
que todos desejavam: dinheiro e poder político, não dela, mas do pai.
Em Lumeeira, os pais ricos ajudavam o genro pobre após o casamento, para isso lhe davam algum dinheiro para iniciar a vida de casado.
Muitos sogros abriam, após o retorno da lua-de-mel, que sempre era
passada na praia, um pequeno comércio para o genro iniciar sua vida
e poder sustentar a mulher e os filhos que provavelmente nasceriam
desses casamentos.
Tomé era pobre e louco por dinheiro e, talvez sem o saber, procurava Rachel por isso. O pai dela ficava a cada dia mais rico, possuía
duas grandes fazendas, gado leiteiro, casa na capital, mercearia, posto
de gasolina, uma firma de material de construção, além de pedras preciosas, como esmeraldas e alexandritas. Esse poder econômico todo
era uma forte tentação para Tomé, assim não era absurdo pensar que
Tomé, buscando uma segurança financeira para si, pudesse aceitar um
casamento com ela para consertar sua vida. Ele dizia para os amigos
que tinha apenas dó dela e, para agradar seus primos, ia visitá-la ocasionalmente.
Raramente saía com Rachel pelas ruas da cidade ou mesmo para
alguma festa. Quando assim o fazia, estava sempre acompanhado por
outros parentes. Nunca Tomé lhe dera um abraço e nunca teve desejos
de fazer isso.
Entretanto, para azar de Rachel, todos na cidade sabiam que
Tomé, desde os 16 anos, pertencia a Zilda, uma das prostitutas da cidade, moradora ao lado da rodoviária.
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Ela, considerada pelos rapazes da cidade como muito bonita,
era uma mulata quase negra, de olhos esverdeados, atualmente com
28 anos. Sendo uma mulher de gênio forte e decidido, controlava
como queria a vida de Tomé e jamais pensou deixá-lo escapar. Com
sua experiência de vida, Zilda sabia que não havia razões para ter ciúmes de Rachel e, consequentemente, proibi-lo de visitá-la ou mesmo
sair com ela. Para Zilda, a prima de Tomé jamais seria uma concorrente para seus propósitos. Além do mais, em Lumeeira havia uma
divisão nítida das castas, uma prostituta deveria sempre se colocar
em inferioridade diante da filha do comerciante e prefeito Jacó.
Zilda ganhava algum dinheiro com seus encontros amorosos,
mas perdia quase tudo nas bebedeiras, jogos de cartas, em que ela
era viciada e com presentes dados a Tomé e a amigos da vila onde
morava. Era comum, nas segundas-feiras, dia geralmente pouco procurada pelos homens, Zilda ficar presa num jogo de cartas que havia
sido iniciado no começo da tarde e continuava até a madrugada de
terça-feira. Devido ao pouco movimento nesse dia da semana, passou
a tirar seu repouso às segundas-feiras.
Os poucos fregueses desinformados que a procuravam em busca de seus favores e prazeres, eram pronta e respeitosamente dispensados e avisados que no dia seguinte ela estaria pronta para recebêlos e diverti-los. Todos, ao receberem o aviso, voltavam entristecidos
para casa. Alguns poucos tentavam dissuadi-la, entretanto, sempre
em vão. Nem Tomé tinha sua vez nas segundas-feiras.
Tomé, seu acompanhante e guarda-costas, aproveitava-se dela,
entre outras coisas, para completar seu caixa sempre em débito. Às
vezes dormia em sua casa ou fazia pequenas viagens em sua companhia pelas cidades vizinhas. Nessa ocasião, Zilda era apresentada
como sua esposa e geralmente não levantava suspeitas, a não ser para
olhos mais experimentados, pois somente em poucos detalhes ela
fornecia indícios de sua origem duvidosa. Exagerava no batom roxo
nos seus grossos lábios negros e para realçar suas belas pernas, usava
saiotes brancos transparentes que permitiam ver, com nitidez, sua
calcinha preta.
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Por fim, usava um minúsculo sutiã, combinando com sua calcinha, que deixava a metade de seus belos e pontiagudos seios debruçados, indiferentes aos espectadores, à janela do seu suporte, a
olharem do alto o panorama lá de baixo.
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Ascenso e queda de Ana Maria
Aparece Ana Maria.
Ana Maria não teve um pai que a criasse. Segundo as intrigas,
ela seria filha de um contrabandista argentino bem-apessoado, que
encantava as mulheres, e descendente de italianos. Há muitos anos,
esse argentino esteve na cidade a negócios e durante esse período ele
teria tido um relacionamento amoroso com uma jovem, muito clara
e elegante, que acabara de completar dezesseis anos. Ana Maria teria
nascido desse encontro.
A história conta ainda que, quando o contrabandista argentino
soube da gravidez, desapareceu de Lumeeira, nunca mais retornando. A
mãe, algum tempo após o nascimento de Ana Maria, também a abandonou e desapareceu para nunca mais voltar. A menina teria sido criada por
vizinhos de sua mãe, pois também não tinha parentes em Lumeeira.
Mas o que importa é que Ana Maria, ao contrário de Rachel, nasceu bela e simpática. Muito cedo, ainda nos primeiros anos de vida,
ela chamava a atenção por sua beleza e pela maneira como cativava as
pessoas. Aos quinze anos era conhecida por se banhar no rio da cidade
completamente despida, exibindo toda sua formosura, sem se importar com a assistência. Diante dos espectadores entusiasmados com o
que viam, vangloriava-se por estar sendo observada por um grupo de
rapazes bonitos, às vezes até por mulheres curiosas.
Aos dezessete anos, quando já tinha tido um filho de pai desconhecido, Ana Maria devia a Deus e a todo o mundo e estava quase na
miséria, pois levava uma vida bastante livre, perambulando pelas ruas
de Lumeeira.
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Por sorte, nesse difícil período apareceu uma vaga no caixa da
padaria. Pois bem, esse trabalho tão simples transformou totalmente
sua vida por muitos anos.
Ao se candidatar ao emprego, foi rapidamente contratada por
Sô Vitório, proprietário da padaria. Acontece que ele já a conhecia e
sempre estivera encantado com as formas e proporções esteticamente
harmônicas, tendendo à perfeição, e pela beleza dessa moça meiga
e sedutora. A partir daquele instante, Sô Vitório iria desfrutar, diariamente, do contato dessa linda moça.
Antes de completar os dezoito anos, Ana Maria passou a ser considerada a mulher mais bonita de Lumeeira, para muitos, a mais bela
do Brasil.
Sujeita a certa disciplina, recebendo o salário em dia além de
algum dinheiro extra, passou a se alimentar, a dormir regularmente e
também a se aprontar com mais requinte, o que ela não fazia quando
caminhava perdida pelas ruas da cidade em busca de um dinheiro incerto e sujo, de um e de outro homem.
Depois de empregada, melhorando de vida e exibindo exuberante saúde e beleza, passou a andar pelas ruas da cidade de cabeça
erguida e nariz empinado. Durante essas caminhadas, ela mostrava
com orgulho seus cabelos longos e loiros, ligeiramente anelados, revelando uma elegância rara e possivelmente inata, pois jamais aprendera essa técnica com alguém.
Magra e alta, de rosto fino, apresentava as maçãs do rosto proeminentes e rosadas, de onde brotavam duas covinhas fascinantes.
Seus olhos muito claros pareciam estar sempre brilhando e atentos à
presença masculina.
Sua beleza incomum destoava da das outras moças de Lumeeira,
das candidatas à mais bela da cidade. Quando Ana Maria desfilava pelas ruas, entrava numa loja, assistia à missa das dez horas ou atravessava um salão de festa, obrigatoriamente todos os homens, automaticamente, a olhavam, admirando sua graça e fascínio. Por outro lado,
as mulheres geralmente a observavam irritadas e invejosas, diante da
imponência e perfeição, impossíveis de serem alcançadas.
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Ana Maria, destoando das outras beldades da cidade, era vista,
por alguns, como uma “estrangeira”: italiana ou alemã, que provisoriamente estivesse morando em Lumeeira, apesar de usar o linguajar
e sotaque típicos dos residentes naquele lugar. Obrigatória e inconscientemente, com gosto e requinte, Ana Maria flertava com todos os
homens interessantes da cidade que a olhavam. Esta era uma conduta
instintiva e automática, talvez tivesse nascido com essa propensão.
Assentada desajeitadamente no banquinho onde estava a caixa
registradora da padaria, ela era o centro de interesse dos homens, jovens e idosos, que ali iam, aparentemente para comprar o pão, leite,
queijo ou outra mercadoria. Na verdade, o essencial ali buscado não
eram os comestíveis. Procurava-se estabelecer uma comunicação com
seu olhar, aproximar-se, observá-la, ouvir sua voz rouca e encantadora, sentir sua presença envolvente e fascinante, se possível criar uma
oportunidade para “puxar uma conversa”, qualquer que fosse esta.
Alguns, no momento de pagar as compras, procurando alongar
ao máximo o tempo diante dela, faziam perguntas tolas e repetidas,
outros procuravam contar um caso, se possível, cômico. Os corajosos
falavam acerca da própria masculinidade e, por fim, os mais ousados
contavam anedotas picantes. Ana Maria, diante de um ou de outro admirador, sempre alegre, mostrava seu sorriso encantador, seus dentes
brancos e bem postos.
Nunca gostou de estudar e por isso lia e escrevia mal, jamais foi
disciplinada, desse modo foi advertida várias vezes na escola e mesmo
ameaçada de expulsão. Na padaria, principalmente nos primeiros dias,
constantemente dava o troco de forma errada. Entretanto, na maioria dos casos, os fregueses masculinos a perdoavam. Gentilmente lhe
mostravam o erro e, quando necessário, devolviam o dinheiro recebido a mais.
Além disso, seu patrão, encantado com a graça da nova caixa,
perdoava todos seus erros e em lugar de xingá-la, olhava-a com simpatia e ao invés de diminuir seu salário, falava em aumentá-lo. Nessas
ocasiões, Sô Vitório carinhosamente justificava, usando sua voz calma,
as possíveis razões dos seus erros:
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— Não faz mal! No começo é assim mesmo. Muito movimento,
muita pressa das pessoas. Isso leva todos a errarem. Não se preocupe,
isso acontece com todo mundo, não fique nervosa. Eu já errei muitas
vezes. Fique calma.
Sô Vitório, enquanto falava, procurava as palavras mais amáveis
e protetoras que conhecia. Arrebatado pela proximidade perigosa daquela presença humilde e encantadora, estava dominado por um forte
impulso que o forçava a aconchegá-la em seus braços. Fazendo um
grande esforço, tentava segurar os impulsos que o levavam a acalentar Ana Maria. Notando os olhos dela lacrimejando, tinha vontade de
chorar, abraçado à indefesa moça.
Minutos depois, se recuperando, Ana Maria sorria e mostrava
seus lábios carnudos e molhados para Sô Vitório. Ele pressentia que
estava quase perdendo o controle. Aquele sorriso, aquele cheiro delicioso que emanava dela, a possibilidade de vê-la todos os dias durante
horas, de sentir sua presença, de poder aproximar-se dela, de lhe falar
quando quisesse, sem ser admoestado por sua mulher, bastava: isso
valia muito mais que uns centavos dados a mais num troco. Há anos
ele não se sentia tão alegre e bem disposto como após a contratação
de Ana Maria.
Sô Vitório vivia um período de imensa felicidade. A venda de
pães, na parte da tarde, cresceu mais de cem por cento. Na parte
da manhã, como Ana Maria não trabalhava, os fregueses eram apenas mulheres. À noite, durante suas orações solitárias, ele agradecia a
Deus aquele tempo de colheita, rezava para que esse período pudesse
durar eternamente e que o Todo-Poderoso jamais afastasse Ana Maria
de sua presença.
A bela mocinha, ingênua e ignorante em certos aspectos, era,
por outro lado, altamente sagaz na difícil e complexa arte de lidar,
provocar e conquistar homens. Ana Maria era capaz, com pouco ou
nenhum esforço, por nascença ou intuição, fazer com que os homens
que se aproximassem dela, “perdessem a cabeça”, como estava acontecendo com Sô Vitório, apesar da suposta esperteza deles em outras
atividades.
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Ela poderia, se quisesse, fazer com que ele e outros homens lambessem seus pés: bastava ela desejar e ordenar.
Para convencer, conquistar ou comandar algum homem, ela não
precisava fazer uso de belas ou diversas palavras - que ela nem conhecia - não precisava fazer uso de técnicas sofisticadas. Para ela, lidar com
os homens era fácil, bastava mostrar, displicentemente, parte de suas
belas e firmes coxas. Também, caso quisesse, poderia exibir suas pernas
e tornozelos bem torneados quando se assentava no banquinho da registradora, ou ainda, fingindo estar distraída, se abaixasse para apanhar
uma nota que havia deixado cair por querer e, neste instante, deixaria
aparecer parte de sua calcinha. Quando, por um motivo ou outro, ela
mostrava sua calcinha preta ou parte do seu traseiro, os homens que
estivessem por perto olhavam, prazerosa e euforicamente, para esse
primor de escultura ao vivo, jamais observada naquele lugar.
Quando Ana Maria apertava um pouco mais o sutiã, fazendo com
que os seios aparecessem, os olhos dos homens se detinham e, imóveis,
fixavam seu colo, de onde nasciam curvaturas brancas, suaves e sedosas
que caminhavam até os mamilos róseos, morangos vermelhos e maduros, mágicos, expondo-se para serem devorados. Mais cobiçada ainda
ela se tornava quando roçava, distraidamente, no freguês já bastante
energizado. Nesses momentos, seus braços carnudos e quentes transmitiam calor e energia, esquentando mais ainda o pão quente da hora.
Todas essas posturas, aparentemente displicentes, faziam com
que todos os mancebos e também os anciões esfomeados da cidade,
torcessem o pescoço em sua direção, para vê-la e admirá-la. Frente a
frente com Ana Maria, os homens não receavam abandonar a eterna
segurança de suas famílias, de seus casamentos.
Todos, se convidados, largariam tudo o que tinham construído,
para ingressar na aventura maluca junto dela. Sonhavam em gozar as
delícias do paraíso, o contato com aquela jovem sedutora, enfeitiçada,
nunca vista.
Diante de uma piada suja, ela dava gargalhadas roucas e gostosas, irradiando, para todos os lados, sinais sonoros e hormonais, gerados de sua sexualidade exuberante.
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Suas risadas, produtoras de ferormônios, impregnavam os organismos dos fregueses, dominando-os totalmente, levando-os a retornar ali várias e várias vezes em busca da fêmea no cio. Mesmos os homens fisicamente mais distantes dela, os que passavam do outro lado
da rua, também se sentiam atingidos pelo ar misterioso e atraente que
emergia daquele corpo encantador. Sô Vitório só sorria. Os homens da
cidade, felizes pela sedução, olhavam para aquela preciosidade com
olhos lânguidos e de cobiça.
Ana Maria e os homens da cidade
A partir desse período áureo, diminuíram as brigas entre homens
irritados e nervosos. Decresceram as lamentações frequentes a respeito da falta de chuva, da mulher chata, do filho aborrecido e das dores
aqui e ali. Como epidemia, alastrou-se uma euforia generalizada entre
os homens. Estes, nos seus bate-papos, em lugar de se queixarem, relatavam casos cômicos, divertidos e otimistas: falavam das colheitas
esperadas, contabilizavam as economias guardadas, comentavam a
mulher compreensiva, eficiente e econômica, os filhos obedientes e
esforçados. Em resumo, tudo era positivo, até mesmo o governo e os
políticos passaram a ser elogiados em todas as rodas.
Sem o desejar, Ana Maria transformou a cidade de Lumeeira, de
triste e queixosa em eufórica e esperançosa, uma sociedade repleta de
homens animados e cheios de planos otimistas para o futuro. Os mais
antigos diziam que nunca tinham presenciado um período de vida tão
maravilhoso e carregado de esperança, animação e felicidade como
aquele.
Todo esse milagre foi gerado por aquele corpo gracioso e jovem.
Eram dele que emanavam continuadamente estrogênios milagrosos e
poderosos, capazes de transformar a alma de cada homem, de agrupamentos humanos, ou ainda de todo um país.
Ao entardecer, um pouco antes dos trabalhadores largarem seus
serviços, quando davam as últimas enxadadas para preparar a terra
quente e seca para o plantio do dia seguinte, retornava a alegria, com
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o final do dia e, ao mesmo tempo, o encontro previsto que teriam com
a manifestação do sublime. Animados com o imaginado, anteviam a relação milagrosa do feio com o belo, do grotesco com o encantado, da
experiência de um sonho, da epifania. Todos eles, apesar do cansaço,
caminhavam animados para casa.
Em casa, tomavam um demorado e cuidadoso banho com sabonete Eva. Faziam a barba e usavam, para escanhoarem suas faces, toalhas molhadas e quentes, que não só facilitavam a retirada perfeita dos
pelos, como também aqueciam suas faces carentes do calor humano.
Terminada a primeira fase desse ritual, cada trabalhador tentava descobrir, em si mesmo, traços de beleza ainda existentes, através de imagens deformadas refletidas no espelho partido do banheiro. Enquanto
cada um se examinava cuidadosamente, sorrindo diante do espelho,
esfregava no rosto pueril uma loção para barba produzida na farmácia
do Lolão, composta de extrato de rosas, alfazema e sândalo, capaz de
atrair jovens bonitas e de espantar mosquitos, carrapatos e pulgas.
O ritual, tomar banho, trocar de roupas e fazer a barba, antes do
aparecimento de Ana Maria era realizado como uma atividade, em si,
aborrecida. Entretanto agora, ao contrário, essas ações se transformaram em agradáveis e animadoras, pois tinham um objetivo atraente e
bem determinado. Ao mesmo tempo em que se aprontava para ir à padaria, cada um representava em sua mente o que mais amava: a figura
ou imagem de Ana Maria. A presença dessa representação agradável,
amada e cobiçada, tornava a tarefa, mesmo a enfadonha, transformada
pelas emoções positivas, em felicidade. A fantasia, junto aos sentimentos de contentamento, provocava também um aumento na auto-estima
e na auto-eficácia de cada um deles.
Alegre, limpo, de banho tomado e com a barba feita, cada homem
envolto na sua solidão, pensativo, visando ficar elegante e charmoso,
vestia sua camisa listrada, a mais bela encontrada na velha canastra, sua
cueca moderna e vermelha, a calça amarela e, finalmente, calçava suas
botas de cano comprido. Muito sério, tentando detectar algum defeito
que pudesse atrapalhar o objetivo animador, o trabalhador se observava mais uma vez com atenção no espelho embaçado.
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Tentava descobrir algum detalhe importante, possível de estar inadequado e de prejudicar suas intenções. Penteava os cabelos previamente lambuzados com um óleo perfumado e, finalmente, despejava um
vidrinho de extrato cheiroso nos braços e no pescoço. Estava pronto!
A unio dos homens antes separados
Apesar de uma aparente intimidade e compreensão entre esses
homens que compartilhavam, com respeito e devoção, a adoração de
Ana Maria, objetivos semelhantes existiam entre eles: uma névoa leve
mas densa, isolando cada indivíduo do outro.
Possuidores de espelhos refletores idiossincráticos, cada um
deles estava separado do outro por uma neblina encharcada de sentimentos e motivações egoístas. Nenhum deles conseguia captar as
motivações e emoções do outro, por mais próximos que estivessem.
Na maioria das vezes, eram incapazes de se enxergarem a si mesmos.
Eles se conheciam superficialmente, eram estranhos com respeito às
suas intimidades e sob o ponto de vista da profundidade, não havia
sinais indicativos da vida verdadeira e subjacente à camada superficial
de cada um deles.
A luz fraca, com a qual cada um conhecia o companheiro, iluminava apenas a casca, a superfície da pessoa, o verniz. Jamais esses
homens possuíram lanternas possantes capazes de atingir o âmago, a
essência do amigo do trabalho ou do botequim.
Ao se comunicarem, eles trocavam mensagens construídas a partir de sinais mal codificados e desenhados, resquícios da vida enclausurada que levavam no pequeno mundo profissional, familiar e social
onde viviam. Entender seu mundo interno era uma tarefa impossível,
pois os indícios fornecidos por eles do que pensavam ou sentiam, confundiam o caminheiro que tentasse trilhá-los.
Nos pontos da intersecção, alguns desses diferentes caminhos se
cruzavam: conviviam durante certo tempo ou em certo lugar, caminhavam pelas ruas em direção à padaria para aproximar-se da sagrada Ana
Maria, torciam pelo mesmo clube ou tinham a mesma religião.
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Assim, diferentes e estranhos, supunham existir entre eles uma
grande solidariedade e amizade. Mas esta era, de fato, frágil, transitória
e superficial. Quando menos se esperava, a neblina encharcada descia,
e ao se tornar mais espessa, emergiam, com força, as motivações e
emoções egoístas. Nesse instante, cada um desses homens se fechava
mais e mais no seu canto isolado, voltado somente para si, sem laços
que o prendessem aos outros. Preocupado consigo, voltava-se integralmente para seus problemas particulares, não estava mais ligado
aos outros. Quando isso ocorria, o indivíduo podia atacar o ex-amigo,
ameaçar o não-eu, esforçar-se para afastá-lo, ou mesmo matá-lo.
Todos se locomoviam separados pela névoa escura incrustada em
cada corpo. Ao mesmo tempo, supunham estar ligados, compelidos a
realizarem certas caminhadas juntos: o trabalho do campo que executavam, o meio-ambiente semelhante que repartiam, os mesmos partidos
políticos ou religiões que seguiam. Esses eram os elos que os ligavam.
Todas essas atividades influenciavam cada um deles, que, por sua vez,
influenciava a conduta do vizinho e do grupo. Como conviviam ligados
com os mesmos objetivos em algumas atividades, acreditavam se conhecer. Mas, se considerarmos a personalidade total de cada um, e não alguns poucos aspectos dela, eles conviviam com um desconhecido, ignoravam-se. Estavam ligados e, ao mesmo tempo, isolados uns dos outros.
A adoração por Ana Maria, a ida às procissões e ao bar da rodoviária serviam de elos, fontes dessa união passageira, superficial, sem
suporte, que unia homens tão diferentes e distantes. Cada um, no fundo, estava só.
Na marcha em direção à felicidade através da paixão por Ana Maria, simbolizada pelo pão francês, eles se sentiam conectados pelo objetivo único, imaginavam ter acabado com a angústia e o mal-estar da
consciência da solidão, inerente ao ser humano. Estavam unidos, por
instantes, porque buscavam um mesmo fim: ir à padaria ver Ana Maria.
Não importavam os motivos e intenções escondidas em cada um deles,
uma força misteriosa os unia e os dirigia para um mesmo destino: uma
ligação poderosa e milagrosa, mais inebriante que a cachaça tomada
no boteco.
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Ao caminhar em direção à Ana Maria, cada um deles, superficialmente, estava ligado ao grupo, mas por trás desse objetivo explícito comum, escondiam-se, implicitamente, as mais diversas e verdadeiras intenções que os motivavam, propósitos íntimos, muitas vezes
desconhecidos por eles mesmos. As motivações mais profundas de
cada um, revestidas com as fantasias existentes nas metas superficiais, bem camufladas, não eram levadas em conta.
Ana Maria deu origem ao milagre: sua presença dissipou, por
instantes, a névoa que isolava cada indivíduo diferenciado do outro. Tornou-os iguais durante a procissão em sua louvação, revelando
alguma semelhança entre eles, superficial, é claro, mas era através
dessa máscara, desse verniz que eles dividiam, usado para encobrir
e disfarçar as intenções mais profundas, que eles se uniam e podiam
marchar juntos na busca desse objetivo comum.
A meta profunda e fundamental do organismo da maioria dos
homens de Lumeeira, não estava localizada em sua família, em seu
trabalho ou na igreja e, muito menos na política, mas sim focada nos
instintos mais primitivos e animalescos de cada indivíduo: dormir,
comer, procriar.
Bastou a presença da bela Ana Maria, para que todos esses homens, antes sérios e compenetrados, fossem controlados pela presença sedutora de uma fêmea jovem: a caixa da padaria. Os outros
valores foram abandonados ou menosprezados diante dessa poderosa força motivadora.
Foi este poder instintivo de enorme potência, estimulado pela
visão de determinada mulher, que uniu esse grupo, levando-os a se
desviarem de seus projetos anteriores incorporados através da aprendizagem ditada pela cultura, uma meta mais fraca, que não resistiu às
forças mais poderosas.
Ana Maria se tornou o ícone a ser seguido, exaltado e adorado no altar da padaria de Sô Vitório. Durante algum tempo ela foi a
principal fonte de satisfação e alegria de grande parte da população
masculina da cidade. Mesmo muito distante para a maioria dos pretendentes, ela era adorada como símbolo do desejado.
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Representava a juventude, beleza, procriação e o poder sobre
as pessoas, sinais que todos gostariam de possuir ou, pelo menos, de
estarem próximos desses sonhos impossíveis.
Ao sair de casa em direção à padaria, cada homem, anteriormente sozinho, encontrava pelo caminho o amigo, parente, companheiro
de trabalho ou de farras. Pouco a pouco, mais e mais homens, de banho tomado e de roupas limpas e passadas, ligavam-se uns aos outros,
todos agora juntos e presos a um mesmo objetivo. Esse elo, louvar e
sublimar Ana Maria, que ia ligando pessoas anteriormente separadas,
dava origem à formação de uma imensa corrente.
No meio dessa procissão recém-formada, cada um imaginava
chegar o mais próximo possível da “santa”, que era não mais do que
uma pobre mulher, que passava o dia manuseando um dinheiro que
não lhe pertencia, assentada num tamborete tosco.
Vestidos de forma semelhante, usando a mesma loção para barba, caminhando compassadamente, marchavam como soldados bem
treinados, mostrando seus rostos alegres e infantis, esperançosos em
alcançar o paraíso idealizado temporariamente na caixa da padaria.
Daqui a pouco, todos estariam frente-a-frente com essa figura simples,
até desajeitada, mas cobiçada, admirada, adorada e invejada.
O cortejo de homens cheirosos continuava pelas ruas da cidade... A ida à padaria permitia a ilusão de uma viagem ao mundo dos
sonhos impossíveis, uma fonte de intenso prazer nunca antes experimentado. Ana Maria, em troca de um salário mínimo pago por Sô
Vitório, os recebia, todos os dias, de braços abertos, alegre e paciente,
lhes proporcionando a euforia desse encontro encantador.
Todos iam ali para admirar e venerar, por instantes, aquele anjo
distante, que a maioria deles jamais possuiria. Alguns compravam o
pão, duas ou mais vezes, podendo, assim, aproximar-se de Ana Maria
diversas vezes.
Durante a procissão, caminhando em passos lentos, a multidão
solitária antevia o encontro que aconteceria em seguida. Ela daria
àqueles homens um lenitivo para suas misérias. Durante meses toda a
cidade assistiu a este espetáculo dos fins de tarde.
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Quando o relógio batia as seis horas e do alto-falante da igreja
saíam os sons melódicos e tristes da Ave-Maria, cantados numa voz
de contralto, na rua, ao mesmo tempo, homens limpos, perfumados
e enfeitados, desfilavam em torno da padaria, admirando, enlevados,
sua “santidade”, a efêmera Ana Maria, sempre assentada no banquinho
da padaria. Eles buscavam um consolo para a solidão atual e passada,
produzida pela vida insossa, sem planos e sem atrativos.
Nas árvores, comemorando o entardecer, pássaros barulhentos
se acomodavam, preparando-se para mais um descanso da noite que
se aproximava.
Ana Maria e as mulheres
Mas nem todos na cidade estavam satisfeitos e, como disse, adoravam a formosa e atraente mocinha. A presença de Ana Maria no altar
da padaria dividiu a cidade em dois grupos distintos: os eufóricos e
os tristes, os desanimados e os animados, os que a amavam e os que a
odiavam. Diante dela ninguém conseguia ser neutro.
As mulheres, ao contrário dos homens, se irritavam quando ouviam suas gargalhadas eróticas e quentes. Todas elas, sem exceção, sabiam que não tinham a menor possibilidade de competir com uma
adversária tão bem prendada e preparada nesse aspecto. As mulheres,
que forçadas iam à padaria comprar o pão, procuravam, ao contrário
dos homens, sair o mais rápido possível daquele lugar maldito. Unidas pela raiva e vingança, resmungavam e reclamavam umas às outras
acerca daquela sirigaita sapeca e desavergonhada. Ana Maria era uma
afronta à paz, aos mandamentos religiosos, à vida familiar e ao sossego
da cidade.
Enquanto os homens jubilavam animados, cheios de planos,
as mulheres, por sua vez, se sentiam desanimadas e entristecidas.
Também pudera, Ana Maria era uma concorrente imbatível quanto à
graça, beleza e simpatia, para a população feminina da cidade. Ela possuía um padrão de beleza muito afastado do imaginado até então pelas
moradoras da cidade.
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Antes do surgimento e crescimento do prestígio de Ana Maria,
as mulheres tidas como belas eram comparadas com modelos simples,
mais ou menos fáceis de ser atingidos. Todas tinham os mesmos traços
de beleza, elegância e charme. Após a “Era Ana Maria”, um novo modelo de beleza feminina apareceu, colocando como fora de moda os
antigos padrões de beleza e elegância existentes.
Sem fazer grande esforço, ela criou um novo modo de chamar a atenção sobre si, de atrair adeptos, de viciar as pessoas. Mudou os costumes da
cidade, da mesma forma que os shoppings e supermercados fizeram em
relação ao antigo padrão de vendas nas lojas, quitandas e armazéns.
Assim, Ana Maria era odiada pelas mulheres. Estas, devido à raiva
que tinham da jovem, para não sofrerem, evitavam falar seu nome e,
quando precisavam se referir a ela, usavam os termos “aquela vagabunda”, “desavergonhada”, ou ainda, “piranha”.
Entre as mulheres, a tristeza e a falta de esperança aumentavam.
Ao contrário dos homens, andavam encurvadas pelas ruas da cidade,
falavam baixo e emitiam frases de poucas palavras, sem entusiasmo,
tendo perdido toda a capacidade criativa. Diferente do acontecido aos
homens, elas adoeceram mais, como consequência foram obrigadas a
procurar mais os médicos, os postos de saúde e as farmácias. Dentro
da família, as mulheres tornaram-se mais intolerantes e se irritavam
por pequenos problemas com o marido, as empregadas e os filhos.
Bastava o filho não fazer o exercício no horário determinado pela
mãe, para que essa ficasse por minutos esbravejando, possessa. Algumas
delas, as mais atingidas pelo fenômeno “Ana Maria”, chegavam a agredir
os filhos, maridos e cozinheiras. Estas últimas sofreram durante o reinado
de Ana Maria. Um bife um pouco mal passado, um arroz não muito solto,
um copo não brilhantemente limpo eram fortes e potentes motivos para
um xingamento continuado e, às vezes, até a perda do emprego.
Homens idosos
Ana Maria, fonte da imensa alegria disseminada entre os homens
jovens, transmitiu fluidos positivos também para os mais velhos, os
mais resistentes às ações dos hormônios femininos.
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Um simples e gracioso sorriso de Ana Maria, uma pequeníssima e
gentil brincadeira sua, bastava para que os idosos, por encanto, se sentissem felizes e amados por todo o dia. Após esses encontros eles voltavam para casa enfeitiçados e animados, tinham sido atingidos pelo
contato milagroso daquela mulher divina, que ressurgiu, sem quê nem
por quê, das trevas. Os idosos, maravilhados após saírem da padaria,
cantarolavam e assobiavam melodias alegres. Contavam para os amigos, filhos, netos e até para a própria mulher, como fora bem tratado
por aquela moça tão boazinha, simpática e encantadora.
Metamorfoseados, os velhinhos passavam a enxergar o mundo
externo de maneira diferente. Eventos que antes lhes provocava raiva e
violência, agora, após terem sido imunizados pelos hormônios de Ana
Maria, eram percebidos como acontecimentos simples, de pouca importância, fáceis de serem tolerados. Tudo era suportado sem nenhum
esforço. Não mais havia problemas terríveis e sem soluções. Alegres e
calmos, os idosos toleravam facilmente a comida ruim, as agressões da
esposa ou a desobediência do filho e do neto. Agora tudo eram flores,
bastava uma pequena brincadeira de Ana Maria, uma leve encostada de
suas mãos nas dos velhinhos, para que eles se alegrassem, enchessem
de ânimo, por horas ou mesmo dias, suas vidas antes vazias.
A mudana de costumes
Durante a “Era Ana Maria” o comportamento dos habitantes da
cidade se transformou: a alegria voltou a dominar a conduta dos homens e com ela veio a paz.
Nasceu um novo padrão de beleza feminino e, por último, Ana
Maria tornou-se o assunto preferido e, desse modo, as pessoas tinham
o que falar.
Para justificar a ida à padaria à tarde, os homens passaram a exigir lanches, em vez do tradicional jantar, como era o costume antigo e
aceito por todos da cidade. Com a presença de Ana Maria na padaria,
todo um padrão de alimentação da cidade, usado durante séculos, foi
modificado.
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Todos queriam ver, ficar perto e se possível tocar Ana Maria.
Os homens mais ousados, para escaparem da vigilância de suas esposas, inventavam desculpas para justificar suas idas, várias vezes ao
dia, à padaria. Para isso compravam poucos pães de cada vez, ficando
obrigados a retornar ao lugar sagrado por várias vezes. Já não se viam,
como antigamente, nos fins dos dias, homens postados nas janelas,
cumprimentando quem passasse, nem assentados nas poltronas diante das TVs, assistindo programas desinteressantes: todos estavam mais
interessados em Ana Maria.
A alegria de viver, antes não existente, milagrosamente retornou
em grande dose. Era o início de uma nova era, que despontava luminosa e bela. Lumeeira se transformou num lugar de festas constantes.
Ana Maria tornou-se, por muito tempo, a atração máxima da cidade, só comparada à vaca Margareth, que há muitos anos não só se
tornou o assunto mais comentado pela maioria dos habitantes da cidade, como também atraiu curiosos de outras cidades. Todos discutiam
e queriam ver a maravilhosa vaca que produzia 40 litros de leite por
dia. A padaria, como o estábulo, encheu-se de fregueses, as vendas
aumentaram. Todos queriam ver Ana Maria, como ocorreu com a vaca
Margareth. A padaria concorrente, poucos meses após Ana Maria estar
trabalhando com Sô Vitório, fechou suas portas por absoluta escassez
de vendas. A alegria de Sô Vitório era grande, não somente porque
as vendas aumentavam absurdamente, mas também porque ele podia
desfrutar, diariamente, daquela figura deliciosa.
Aspectos negativos
Mas o que é bom para muitos, é ruim para outros. Caiu a venda,
nas farmácias, dos remédios usados pelos homens, diminuíram as
idas aos pais de santos e macumbeiros, o posto de saúde teve uma
diminuição enorme das consultas masculinas. Até o padre da cidade
andou se queixando da falta de homens na igreja durante os últimos
dias e semanas, além disso, os casamentos ficaram raros e muitos
foram adiados.
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Por sua vez, as festas populares e religiosas, como o Natal, carnaval e Semana Santa, não tiveram mais a graça e entusiasmo de antes,
pois, para os homens, Ana Maria era mais excitante e cultuada do que
qualquer outra comemoração antes esperada com grande expectativa.
Crescimento da cidade: as romarias
A romaria à padaria aumentou: homens diversos largavam suas
cidades para irem a Lumeeira comprar o pão dos fins de tarde na padaria de Sô Vitório. Todos afirmavam para suas esposas que naquela cidade estava sendo fabricado um novo e delicioso pão, bonito e sedutor,
jamais visto por aqueles lados, sem dúvida o melhor pão do Brasil.
O movimento da padaria aumentava. Os clientes apareciam de todos os lados: homens novos e velhos, gordos e magros, feios e bonitos
chegavam a Lumeeira, esperançosos. Algumas empresas de turismo organizaram excursões, em ônibus especiais, para visitarem a cidade fabricante do pão especial. Jovens e adultos, nos ônibus lotados, descontraídos e alegres, cantando músicas sacras e sertanejas, se dirigiam à cidade
para visitarem a padaria de Sô Vitório e suas atrações, todos esperançosos e emocionados com o encontro que teriam. Outros “romeiros”, um
pouco mais pobres, mas não menos fanáticos, caminhavam dias através
da estrada, muitos passavam fome, alguns adoeciam durante a jornada,
outros ainda, acomodados em jipes, chegavam empoeirados ao santuário de Ana Maria. Por último, alguns, de muito longe de Lumeeira,
moradores nas diversas regiões do país, se amontoavam nos paus-dearara e viajavam dias até chegar mortos de cansados, mas extremamente
eufóricos com a visão da “santa” Ana. Um último grupo, formado por
clientes especiais, atingia a cidade em confortáveis caminhonetes, todas
enormes e possantes. Era um veículo tão limpo e encerado que permitia ao convidado especial se aprontar e examinar seu visual através da
imagem refletida na lataria do veículo. Não ficava bem se apresentar
diante da bela caixa da padaria, tendo os cabelos despenteados e desarrumados devido ao vento da estrada. Isso poderia ser fatal e destruir
todos os planos de conquistar a princesa cobiçada por todos.
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Era preciso causar boa impressão, ser notado e, quem sabe, escolhido por ela: era o que todos desejavam.
Os visitantes compostos de homens provenientes dos grupos
externos somados aos moradores da cidade, se reuniam diante da padaria. Uma multidão se formava: homens inquietos, agitados, falantes
e sorridentes. Uma alegria contagiante se espalhava... Eles anteviam,
suspirando, o contato quase divino que teriam em seguida com Ana
Maria, a mais bela mulher já encontrada naquelas bandas do Estado.
Caminhando um atrás do outro, passo a passo, centenas de homens formavam enorme fila. Aflitos, esperavam o encontro sublime:
estar frente a frente com a divina caixa da padaria de Sô Vitório, a musa
encantadora capaz de levantar o astral de todos os homens sadios. Para
chegar até a deusa bastava entrar na fila, após escolher alguns pães no
balcão da padaria e, em seguida, entrar na segunda fila e aguardar sua
vez de experimentar o sublime e maravilhoso, o nunca vivido: estar
diante, por segundos, da revelação inacreditável: a junção do homem
comum com a mulher incomum.
Outros aspectos
Ana Maria, aproveitando-se de sua ascensão ao poder, teve encontros secretos com o prefeito, o diretor do hospital, o delegado, o
gerente do banco e também com alguns rapazes novos, bonitos e ricos.
Tudo isso acontecia longe, muito longe dos barulhentos e aborrecidos
adoradores da musa, descartados por ela por serem pobres, desprovidos de beleza e de poder.
Ao melhorar sua vida, saindo de sua miserabilidade, Ana Maria
promoveu festinhas numa casa que alugou e depois comprou. Também frequentou diversas festas, pois agora era uma pessoa importante
e chique.
Nas festas ela era a mais cortejada pelos homens mais desinibidos da cidade. Normalmente, mesmo nos momentos de mais alto
prestígio, Ana Maria raramente era convidada para participar de festas
ditas “familiares” de classes diferentes da sua.
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Entretanto, um amigo mais corajoso e mais avançado, muitas vezes vencia as resistências morais da cidade e levava Ana Maria às festas desse tipo, realizadas nas classes média ou rica. Sendo desinibida,
rapidamente ficava à vontade diante dos outros convidados presentes. Falava, gesticulava e dançava, ora com um ora com outro. Devido à beleza e carisma, ela se tornava a atração da festa e, em torno
dela, formava-se uma grande roda de homens, cada um procurando
ser notado, apesar das críticas que recebiam das esposas ciumentas ao
chegarem em casa. Os mais tímidos, ou os mais dominados pelas mulheres, evitavam se aproximar de Ana Maria, receosos das críticas, mas
de qualquer modo ficavam e espreitavam à distância, boquiabertos e
extasiados pela sua doçura. Ana Maria foi transformada, apesar dos
protestos das mulheres, no símbolo sexual de Lumeeira, a moça mais
desejada pelos homens.
Ana Maria milagrosa
Intimamente relacionado ao aparecimento e apogeu de Ana Maria, como disse, ocorreram diversas mudanças nos costumes dos moradores da cidade. Após o sucesso e poder de Ana Maria, se formaram
dois grandes grupos antagônicos: um formado pelos homens, o outro
pelas mulheres. Enquanto o primeiro enaltecia as virtudes e a beleza
de Ana Maria, o segundo criticava azedamente as características, condutas e mesmo a permanência dela no caixa da padaria.
O grupo masculino, ou seja, o formado pelos admiradores e adoradores de Ana Maria, se tornou eufórico, tranquilo e consequentemente teve a saúde melhorada. Diminuíram as dores nas canelas, aumentou a fome, melhorou o sono. A digestão desses homens se tornou
mais fácil, diminuíram os achaques nervosos e, portanto, aceitaram
melhor os problemas do dia-a-dia e diversas outras características relacionadas a uma melhor saúde física e mental.
O ser humano tem tendência a explicar todos os fatos e acontecimentos experimentados ou observados. Isso aconteceu também com
os homens de Lumeeira.
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A maioria desses homens, desde cedo, aprendeu a explicar os
eventos através de mitos, histórias simples, ações de deuses poderosos
e severos, de demônios e bruxas ou de almas de outro mundo etc.
Assim, não foi por acaso que eles, diante da mudança ocorrida nos
seus estados emocionais e físicos, usaram como explicações as noções
aprendidas e usadas na sua cultura, ou seja, procuraram compreender a
melhoria da saúde a partir de possíveis milagres provocados por forças
sobrenaturais. Como os homens ficaram mais alegres e felizes diante
da sedução de Ana Maria e, consequentemente, ficaram livres de várias
doenças crônicas, bem como mais calmos, alegres e tolerantes, isto é,
mais bem adaptados às famílias, amigos e trabalho, também avaliaram
tudo isso como decorrente de alguma força mágica e externa a eles.
Como estavam melhores quanto à saúde e as relações familiares
ficaram mais ajustadas, eles melhoraram também sua capacidade no
trabalho, não só produziram mais, como também faltaram menos ao
serviço e tornaram-se mais disciplinados e de boa vontade diante dos
colegas e patrões. Finalmente houve um decréscimo nas brigas, bebedeiras, prisões, roubos e assassinatos na cidade, facilitando muito o
trabalho das autoridades policiais.
Ana Maria, sem o desejar, por acaso transformou a vida dos homens de Lumeeira, aumentando-lhes a potência sexual com suas parceiras, pois, durante as relações, imaginavam estar diante da bela e
inalcançável caixa da padaria de Sô Vitório. Melhorando o desejo sexual, houve uma maior produção de testosterona e, como consequência,
um maior crescimento dos cabelos, um aumento dos músculos e maior
vigor e força física, mais ânimo, além da alegria e vontade de viver.
Em resumo: durante o período áureo “Ana Maria”, tudo melhorou para
os homens da cidade e também para a população em geral, que passou
a viver mais em paz.
Aos poucos, a partir da melhora da vida de um e de outro, foram surgindo boatos e esses se alastraram não só em Lumeeira, como
também nas cidades mais próximas, que Ana Maria era divina, talvez
a própria Nossa Senhora encarnada naquela bela e suave moça, cuja
origem era desconhecida.
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De fato, ninguém sabia com segurança de onde e de quem ela
surgiu. Sua mãe, semanas ou meses após seu nascimento, abandonou
seu barracão e desapareceu, sem nunca mais voltar. Os vizinhos, ao ouvirem o choro continuado de Ana Maria, imaginando que alguma coisa
mais séria tivesse acontecido com sua mãe, decidiram ir até onde ela
estava. Lá chegando, espantaram-se, pois a criança estava num canto
da casa, toda suja, chorando de fome e de frio. A mãe nunca mais apareceu. Teria se suicidado? Perdeu-se e morreu no mato? Fugiu, abandonando a filha? Ou era uma santa, que ali fora para gerar uma menina
que daria felicidade a toda aquela gente humilde? Ninguém sabia. Os
vizinhos, ora um, ora outros, foram cuidando de Ana Maria até ela
crescer. Ela jamais ficou num só lugar, viveu a maior parte do tempo
sozinha e abandonada.
Espalhando-se os rumores muito lentamente, acerca da possível
santidade de Ana Maria, não demorou muito para que a notícia atingisse
a todos. Muitos imaginaram que possivelmente Ana Maria fosse uma santa. Os milagres, após a ida dela para a padaria de Sô Vitório, eram visíveis,
percebidos por todos seus devotos, curas notáveis, principalmente ligadas à saúde dos homens e dos relacionamentos conjugais e familiares.
Enquanto o grupo masculino colocava Ana Maria no altar e a
adorava, imaginando-a uma enviada por Deus, uma santa que desceu
em Lumeeira para ajudar as pessoas carentes, sofredoras, deprimidas
e doentes, o outro grupo, o das mulheres revoltadas, dominadas por
outros princípios ou fundamentos, adotou uma ideologia oposta. Para
o grupo feminino da oposição, Ana Maria era uma criação do demônio,
capeta, belzebu, ou coisa parecida. Para esse grupo ela foi jogada na
cidade para praticar o mal, destruir lares, a família e a paz que reinava
antes de sua vinda.
De um lado, uma romaria buscava de Ana Maria mais e mais milagres relacionados à saúde física e mental dos homens jovens e velhos,
da maior produção, da ordem pública e muito mais. De outro lado, as
mulheres tornaram-se mais irritadas e estressadas, por isso seus organismos produziam mais ACTH, Cortisona, Adrenalina, isto é, substâncias produzidas durante o sofrimento e estresse.
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Nessas as dores aumentaram, ocorreram mais suicídios, assassinatos, insônia, obesidade, queda de cabelo e da libido e muito mais.
Por tudo isso, a saúde das mulheres piorava com a presença da caixa
da padaria, dominada pelo demônio. Possuída pelo capeta – ou sendo o próprio – ela, com seu poder diabólico, provocava mais brigas,
doenças, sofrimentos, menos produção, mais vícios como o cigarro,
bebidas, etc. ocasionando mais problemas familiares e públicos, enfim,
tudo piorava para esse grupo.
As mulheres ligadas a uma e outra religião mais fanática, começaram a combatê-la ferozmente, ao contrário dos homens que a veneravam. As “pastoras das almas” uma vez assustadas com a imensa
multidão de homens que abandonou a igreja para adorar a pagã Ana
Maria, percebeu que era necessário tomar providencias rápidas e, para
isso, em parceria com a estação de rádio da cidade, de arrecadação
de dinheiro, de panfletos distribuídos de casa em casa, iniciou-se um
agressivo trabalho para combater a perigosa inimiga. Entre suas ações
foram jogados baldes carregados com fezes e urina humanas, prontamente lavadas por homens devotos.
Mas Padre Leão, por sua vez mais vivido e comedido, comentou,
sorrindo, com amigos essa preocupação:
— Tudo passa, já assisti a isso muitas vezes, não há necessidade
de se fazer nada. É só esperar... nada melhor que um dia após o outro.
A queda de Ana Maria
O ruim e o bom andam juntos: nada bom é sempre bom, nada
ruim dura a vida inteira. Tanto o ruim, como o bom, com o passar do
tempo, acaba. Assim o apogeu de Ana Maria, também como tudo, não
durou para sempre. Tudo que começa, termina: melhora de um lado,
piora de outro. Assim, enquanto uns estavam muito alegres e satisfeitos, outros estavam insatisfeitos e raivosos. A relatividade de tudo não
deixa de ser uma grande virtude desse estranho e miserável mundo.
Como sempre acontece, vivemos em altos e baixos, e nossa
“deusa” não fugiu à regra.
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A vida para Ana Maria começou a piorar a partir das conversas
das mulheres da cidade contra a pobre e bela caixa da padaria. Dejanira, a mulher de Sô Vitório, após ouvir mexericos e mais mexericos,
se uniu provisoriamente ao grupo de oposição a Ana Maria, inimiga
comum de todas elas, apesar de perceber que essa posição daria um
grande prejuízo financeiro a ela, bem como ao marido e filhos. Ana Maria era uma perigosa concorrente, difícil de ser vencida, por ser muito
bonita e elegante, mas também era simpática, alegre e de bom gênio.
Enciumada, observando o enorme movimento de homens na padaria
apenas para ver a “deusa”, decidiu pôr um basta em tudo aquilo,
Dejanira, cada dia mais, desconfiava das ligações do marido com
a menina. Ana Maria, de fato, após começar a trabalhar na padaria passou a vestir roupas mais bonitas, compradas na loja de Sô Nhô da Nina.
Não foi difícil descobrir, conversando com Nha, mulher de Nhô, que
suas compras eram, algumas vezes mas nem sempre, feitas com cheques
assinados por Sô Vitório. Ela percebeu que as roupas compradas custavam caro, isto é, muito mais do que o salário que ela ganhava. O que a
mulher de Sô Vitório não sabia, e nem ele, é que Ana Maria tinha outras
fontes de renda, vindas de outros empregadores além de Sô Vitório.
Após inúmeras discussões acaloradas, adiamentos e pedidos,
Sr. Vitório, acabrunhado e deprimido pela perda que teria, capitulou,
apenas para manter o casamento. Sem outra alternativa, foi obrigado
a despedi-la, diga-se de passagem, severamente contrariado, quase desesperado, com a perda trágica.
Com a saída de Ana Maria, Sô Vitório perdeu 10 quilos; ficou
tristonho, passava grande parte do tempo deitado na cama olhando
para o teto e quase sem falar. Depois, aconselhado pelo médico local,
decidiu ir à capital fazer um tratamento para os nervos. Voltou para
casa dois meses depois, um pouco melhor, entretanto jamais alcançou
a alegria e a felicidade dos dias memoráveis vividos com Ana Maria.
A morte de Ana Maria
Quando Ana Maria foi dispensada da padaria, não só perdeu seu salário, como também boa parte do dinheiro extra que ganhava de Sô Vitório
e dos diversos namorados que a procuravam em busca de prazeres.
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Todos foram sumindo, pouco a pouco. A padaria servia como
ponto de encontro, mais fácil e menos perigoso para seus admiradores casados e pessoas conhecidas de todos. Além disso, na padaria a
concorrência era muito grande, por isso aumentava o esforço de um e
de outro para conquistá-la. De outro modo: existiam muitas ofertas e
pouca mercadoria, fazendo o preço subir. Dispensada e abandonada, a
procura caiu e, junto com esta, a atração da mercadoria.
Por tudo isso, não demorou muito para que Ana Maria, sem treino
e sem conhecimento, retornasse à vida miserável anterior. Com menos
ofertas, sem lugar para marcar os encontros, ao se cuidar menos, todo
um conjunto de fatos negativos contribuiu para que ela fosse percebida como menos glamourosa e menos bonita, apesar de que continuava
a ser quase a mesma pessoa. Coisas do ser humano: percebemos como
mais atraentes os objetos mais distantes, os difíceis de serem obtidos.
Consequentemente, devagar, como sempre acontece nesses casos, ela
foi sendo abandonada por um e outro homem detentor de dinheiro e
poder, que antes a procuravam.
Quando a situação de Ana Maria já se tornava perigosa, desempregada e sem posses, passou a morar com um ex-namorado dos piores tempos. Este rapaz a explorava e a maltratava. Depois de agredi-la
por diversas vezes, numa certa noite a impediu de dormir em casa,
uma casa que era dela. Nesse dia, o rapaz havia colocado dentro de
casa uma nova mulher. Sem ter para onde ir, Ana Maria retornou à
prostituição, sua profissão inicial antes do emprego na padaria e nessa
ocasião reencontrou, nos pontos onde as mulheres esperavam os fregueses, uma antiga amiga de prostituição, que sempre fora lésbica.
Condoída da situação de Ana Maria, essa amiga a convidou para
dormir em sua casa, pois ela não tinha para onde ir. Uma vez na casa da
amiga, confusa e sentindo-se devedora de um grande favor à amiga, em
retribuição ao tratamento obsequioso recebido, cedeu ao seu convite e,
seduzida, as duas passaram a dormir juntas durante algum tempo.
Nesse período negro da vida ela, encontrou-se casualmente com
um amigo gay, do tempo da padaria, um homem muito ligado às mulheres da cidade.
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Ele conhecia, muito melhor que suas amigas, a maneira mais
elegante de se vestir, de se pentear, as regras de etiqueta etc. O gay,
percebendo suas dificuldades financeiras e decadência, quando já começava a ficar feia, procurando ajudá-la, conseguiu um emprego simples para ela numa loja de móveis. Esse amigo, a partir desse encontro
casual, teve outros e outros encontros com Ana Maria. Enquanto ele
próprio jamais tivesse relação com ela, nem com suas amigas, entretanto aproveitava-se de todas elas, apresentando-as a homens seus
conhecidos. Esse era seu principal trabalho.
Melhorando de vida com o emprego na loja, Ana Maria tornou
a ficar com uma aparência mais saudável e novamente bonita. É claro que ela não mais era a mocinha de dezoito anos de antes. Mas de
qualquer modo, por um curto período voltou a imperar e a dominar
alguns homens da cidade usando resíduos de sua beleza antiga. Muitos, ainda presos à sua imagem anterior, continuavam a imaginá-la
como nos tempos da padaria.
Ao melhorar de vida, Ana Maria sentia que tudo aquilo lhe pertencia de novo, que seria tudo fácil como anteriormente. Imaginava
que os eventos favoráveis à sua boa vida a esperavam, como a fidelidade de uma bondosa amiga, dando-lhe as boas-vindas. Ao retornar
à vida anterior, um pouco semelhante mas jamais igual à que tivera
quando trabalhou na padaria de Sô Vitório, ela voltou a desfilar nas
ruas da cidade, com a cabeça altiva, pois o acanhamento dos dias sofridos foi sendo esquecido. Mas diferente do imaginado, seu sucesso
ficou longe do que tinha sido. Além disso, por ter seu poder diminuído, as ex-amigas e ex-amigos não mais lhe deram a importância existente nos áureos tempos de sucesso absoluto.
O amigo, quando ela voltou a ser bonita, disse a Ana Maria que
Jacó, nessa época prefeito da cidade, estava interessado em manter um
encontro com ela. Ele já tentara, no tempo da padaria, conquistá-la,
mas sem resultado, pois ela não se interessou em ser uma amante fixa
de homem algum. Parece que Jacó sempre fora um apaixonado por Ana
Maria. Sentindo-se decaída, vendo no prefeito uma possibilidade de novamente crescer, decidiu aceitar o convite para encontrar-se com Jacó.
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E foi com incrível facilidade ela o dominou e conquistou por
algum tempo na sua vida amorosa e familiar.
Desse modo, após a dispensa de Ana Maria da padaria e do
seu retorno à prostituição, e depois seu emprego na loja de móveis,
Jacó, pai de Rachel, que estava cada vez mais rico e tinha acabado de
ser eleito prefeito de Lumeeira pela terceira vez, se ligou por algum
tempo a Ana Maria.
Jacó, como todos os homens da cidade e como admirador de
mulheres bonitas, achava que ainda estava pronto para ser usado,
com seus 60 anos de idade, por uma jovem mulher. Por outro lado,
sua mulher, D. Dadá, pouco mais nova que Jacó, estava bastante
envelhecida não só devido aos filhos que teve, como também aos
abortos fizera. D. Dadá era nessa época uma mulher magra, parecia
menor que fora, morena pálida, usava uma dentadura postiça mal
colocada que, quando falava, muitas vezes, saía de sua boca de sapo.
Além disso era não só ignorante, como também sem graça alguma. D.
Dadá, o contrário de Ana Maria na maioria das prendas físicas, tinha
um ponto em comum com sua adversária: a estupidez e simplicidade.
Isso ambas possuíam em alto grau.
O relacionamento de Ana Maria com o prefeito durou pouco
mais de um ano. Encontrando as portas fechadas, Ana Maria retornou à prostituição. Dessa vez não teve a sorte de ser ajudada por
sua amiga Marina, pois nessa ocasião a lésbica havia casado com o
proprietário de um açougue da cidade, já tendo, inclusive, um filho.
Desse modo, não havia mais lugar para ela, estava sem saída. Ana
Maria estava sozinha!
Quando tudo é solidão à nossa volta, sentimo-nos desligados
de todos os vínculos e sentimentos, como se dependêssemos só de
nós mesmos... Sentir que se está inevitavelmente sozinho, sofrer a
dor e a responsabilidade de cada ato nosso, aumenta muito nosso
medo de agir. No jovem, isso serve de aviso ou advertência, no velho
e fraco, o pavor do futuro.
Anos mais tarde correu a notícia em Lumeeira que Ana Maria
estava doente.
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Segundo o rumor, ela tinha sido internada num hospital em Belo
Horizonte para tratamento de AIDS. A notícia era verdadeira. Somente
seus amigos mais íntimos, talvez mais curiosos, foram visitá-la. Todos voltaram horrorizados com o que viram: seu aspecto físico era outro, seu
corpo estava totalmente deformado pela doença. Durante seus últimos
dias, a doença havia destruído a bela, formosa e sorridente Ana Maria que
todos conheceram. Restava um corpo esquelético e destruído pelas feridas, não se via e nem se podia recordar mais nada dela. Ana Maria tinha
completado trinta e três anos. Era quase um cadáver antes de morrer.
Um morador de Lumeeira, após visitá-la, a descreveu assim:
— Parecia uma carniça, um punhado de pus e de sangue, um
pedaço de carne decomposta caída no travesseiro. As feridas sanguinolentas e amareladas invadiram inteiramente seu rosto antes encantador. Outras feridas tomaram o restante do corpo de Ana Maria, umas
coladas às outras, de uma coloração parda, repugnante, parecendo
uma lama fedorenta. O corpo antes belo, cheio de contornos bem feitos, passou a ser uma massa disforme na qual não se reconheciam as
antigas feições. O olho esquerdo quase desapareceu, inchado e inundado pelas pústulas misturadas a um sangue escuro, o outro olho,
entreaberto, dava a impressão que afundara, pois em seu lugar havia
uma cratera escura e terrível de se olhar. O nariz e os orifícios dos ouvidos supuravam continuamente. De um dos lados da face, uma crosta
avermelhada, parecendo se soltar, descia até o canto da boca, incomodando-a sem parar, obrigando-a a fazer movimentos continuados
e torcidos dos lábios e dentes, como se estivesse fazendo caretas, que
provocaram pavor quando a olhei. Seus cabelos dourados, os lindos
cabelos de antigamente, caíam e colavam-se na sua face pavorosa, coberta de líquidos escuros produzidos por seu corpo já em decomposição. Ana Maria estava apodrecendo.
O mesmo fator milagroso que seduziu os homens de Lumeeira
durante muitos anos, através do vírus da AIDS adquirido durante sua
vida livre e devassa nos diversos contatos inconsequentes que teve, penetrou no seu organismo e apodreceu sua beleza que se acabou. Dias
depois ela morreu.
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O Desaparecimento de Rachel
Numa manhã de segunda-feira, após arrumar uma pequena maleta quando todos seus familiares haviam saído, Rachel deixou sua
casa sem aparentar nenhuma preocupação.
Quando ela se afastou, o pai já havia se retirado, há muito tempo para seu trabalho na prefeitura da cidade, enquanto sua mãe tinha
ido ao supermercado fazer compras para o almoço. A cozinheira e
arrumadeira, distraídas, conversando sobre a festa do dia anterior e
a respeito do casamento da amiga no próximo fim de semana, nem
perceberam quando, como e com quem ela saiu naquela manhã. Portanto, ninguém em casa notou algo de anormal na sua conduta. Foi
um dia como os outros.
Entretanto, na hora do almoço Rachel não apareceu. Sendo voraz,
ela era a primeira a chegar e ir direto à cozinha para saber as iguarias que
seriam servidas. Mas ninguém na casa se preocupou, pois ela já tinha
agido assim outras vezes. Comia um sanduíche na rua, almoçava na casa
de uma amiga ou ia fazer alguma coisa na cidade vizinha e decidira almoçar por lá. A família, ainda calma, não tomou nenhuma providência.
O sumiço foi considerado normal, fazendo parte de seus hábitos mais
livres e mesmo irresponsáveis de moça adulada e protegida por todos.
A tarde foi passando sem que ela retornasse ou telefonasse, dando notícias. Sua mãe, D. Dadá, decidiu telefonar para uma ou outra
casa, parentes e amigos, perguntando-lhes se tinham notícias de Rachel. Nada, ninguém a viu naquele dia.
A noite chegou, a preocupação aumentou. Rachel não apareceu
para o jantar, nem deu um telefonema explicando sua ausência.
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A família reunida, tensa, quase não jantou. Ninguém tinha fome.
O entardecer despontou escuro e frio. Jacó e D. Dadá, junto
aos parentes mais próximos, questionavam o misterioso desaparecimento. Chegando a noite, os pais e irmãos de Rachel, acompanhados
de amigos íntimos e juntamente com o padre, rezaram até a manhã
seguinte, sob a luz de velas acesas por toda a casa, implorando a Deus
algum sinal de Rachel. Apesar das preces, ela não apareceu, nem deu
notícias.
O dia custou a nascer. O sol estava encoberto por nuvens escuras, indicando pesadas chuvas. O grupo desanimado e cansado,
tendo as caras amarrotadas, sem ter dormido, após tomar um café
bem forte com biscoitos voltou a se reunir e discutir as estratégias a
serem tomadas. Cada um dos presentes, levantando uma hipótese,
expressava suas preocupações e ponto de vista.
Não faltaram conjeturas sobre a possibilidade dela ter sido assassinada e, nesse momento, o possível assassino era citado. Para outros, talvez ela tivesse se suicidado. Novas explicações foram dadas
para justificar essa suposição, bem como os meios utilizados para
concretizar esse gesto.
Houve também suposições acerca de um possível sequestro e
argumentações do motivo para isso: o dinheiro do pai. Assim, muito
cedo, os sequestradores fariam os contatos iniciais. Segundo outras
opiniões, sempre sem nenhum fundamento real, Rachel teria saído
para passear pelas matas da cidade e se perdera. Ela estava deprimida, foi relaxar um pouco, pescar, pegar passarinho, colher orquídeas
e, quem sabe, estando acampada, dormiu por lá. Uma última suposição sugerida foi a de que Rachel deixou sua casa para caminhar e
perder peso, pois engordara cinco quilos durante as últimas festas
na cidade.
As discussões continuaram cada vez mais tensas, o desespero
dos familiares e amigos crescia. Aumentava o número de pessoas e
curiosos que se dirigiam até a casa do prefeito para demonstrar solidariedade. Nenhum deles deixava de emitir sua opinião sobre o trágico acontecimento, pareceres algumas vezes cômicos.
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Terça feira: a casa que abrigou pouco mais de dez amigos na
segunda-feira, acolhia, no dia seguinte, o dobro deles na hora do almoço. Assim foi necessário contratar uma nova cozinheira para auxiliar
a principal. Tudo indicava que o número de visitantes aumentaria nos
próximos dias.
No fim da tarde de terça-feira, num entra-e-sai sem parar, a casa
de janelas azuis já acolhia mais de quarenta pessoas de todos os tipos, inclusive um grande número de crianças, que transformaram a
residência um salão de festa: brincavam, corriam, gritavam e comiam
sem parar. Disputavam uns com os outros os bolos, doces, pedaços de
frango, bolinhos, poltronas e cada brinquedo arrumado.
Os costumes da casa do prefeito foram mudados: além do almoço servido a partir das 11:00 h, que continuava a ser oferecido até às
3:00 h, do jantar servido a partir das 18:00 h indo até às 21:00 h, mais
no fim da noite, em torno das 23:00 h, eram servidas sopas diversas,
também oferecidas durante toda a madrugada para os visitantes que
decidiram passar a noite rezando ou consolando os familiares exaustos, quase desesperados com o desaparecimento da Rachel e com a
multidão que aumentava.
Mas a alimentação não ficava só nisso: durante toda a manhã,
até às 11:00 h, antes de servir o almoço, eram servidos cafés coados
na hora, acompanhados de bolos de fubá, biscoitos de polvilhos, de
araruta e de maizena, queijos de Minas, manteiga de fazenda do pai de
Rachel, presunto vindo da padaria de Sô Vitório. Numa mesa ao lado
de onde era servido o café, viam-se doces artesanais variados e atraentes: goiabada feita pelas moradoras da Rua Direita, doce de arroz, de
abóbora, de batata doce, de leite, cidra, compota de casca de laranja,
de manga, pêssego, maçã, pêra e muito mais. À medida que um prato era esvaziado, prontamente alguém da casa ordenava a reposição
do alimento. Caso não tivesse mais, outro era colocado em seu lugar.
O café reforçado, semelhante ao servido pela manhã, era também oferecido a partir das 13:00 h e continuava até a hora do jantar. Além disso, após o jantar e durante a noite, um cheiro delicioso de café recémcoado era sentido por toda a casa.
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Os estoques eram repostos constantemente, os fregueses aumentavam à medida que se multiplicavam as ofertas dos comestíveis.
Não houve novidades acerca do desaparecimento de Rachel durante a terça-feira e na madrugada de quarta-feira nenhuma notícia importante foi recebida. Enquanto isso, todos comiam, bebiam e falavam.
Líderes não faltaram, logo eles apareceram. Cada um dos grupos era
liderado por um indivíduo e facção diferentes que, durante o processo de
descoberta, aventava hipóteses, teorias, crenças estratégicas distintas da dos
outros grupos rivais.
Um primeiro grupo, seguro de que Rachel havia se perdido na mata
durante sua caminhada, ou por ter ido passear, propunha a chamada urgentíssima do corpo de bombeiros, pessoal treinado e capacitado para
realizar esse tipo de trabalho. Esse grupo, por conta própria, tomou algumas providências iniciais: enviou homens acostumados a passeios e
trabalhos na mata, a irem até lá iniciar o trabalho de busca enquanto esperavam a chegada dos bombeiros já requisitados.
Um segundo grupo, seguro de que ela teria sido sequestrada, propôs, seguindo o paradigma imaginado, chamar a polícia e o pessoal especializado em sequestros. Esse grupo, isoladamente e por conta própria,
não só telefonou para a capital, como também enviou dois representantes da cidade para fornecerem mais informações a esses profissionais.
Um terceiro grupo partiu do princípio de que Rachel estava sendo
punida, pois o acontecido era fruto de erros, pecados, coisas mal feitas
dela ou da família. Segundo essa facção, como prescrição, era preciso
acalmar a ira divina, orando e fazendo penitências, bem como promessas que deviam ser já estabelecidas, caso ela fosse encontrada viva.
Um quarto grupo, chefiado pelo barbeiro da cidade, partiu da
premissa que algo, muito além de sua sabedoria, tinha acontecido.
“Nós estamos diante de um poder fora de nossas mãos”, afirmava o
líder desse grupo.
Como em Lumeeira existiam pessoas que se relacionavam com
espíritos bons e maus, o grupo chefiado por seu líder tomou as providências necessárias para entrar em contato com todos os profissionais
da cidade que merecessem crédito.
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O líder do grupo, pessoalmente, marcou uma audiência com
alguns desses pais-de-santo contratados, para que eles obtivessem as
informações que só eles eram capazes de obter e receber. Além disso,
com o seu poder sobrenatural, eles possuíam técnicas ou meios de
terminar com o mau-olhado, encosto, mandingas, feitiços e ações semelhantes que poderiam ter sido feitas contra Rachel.
Devido à complexidade dessa área, alguns desses informantes
do mundo do além foram consultados para que a família soubesse se
Rachel estava, naquele momento, viva ou morta. Um outro profissional opinava sobre o local onde ela estava, para que outras providências fossem tomadas. O terceiro grupo desses videntes e conselheiros
foi isolado por alguns dias, para que dedicasse seu tempo integral na
ajuda. Seu trabalho era o de protegê-la, independente de estar viva
ou morta, sequestrada ou perdida. Um desses senhores, por ser um
homem muito requisitado, foi isolado ou encarcerado por uns dias
numa fazenda, exclusivamente para cuidar do caso Rachel. Outros
pais-de-santo de menor prestígio eram consultados de manhã, à tarde
e à noite. Os dados fornecidos por eles eram anotados e discutidos
pelos diversos grupos formados, sempre compostos de um líder, um
secretário que anotava tudo e fazia o relatório da reunião e pelos diversos participantes. O barbeiro da cidade, grande conhecedor dessas
áreas, era o coordenador-geral do conjunto dos grupos.
Não podiam faltar telefonemas recebidos pela família, ligações
provenientes de cidades vizinhas. Diversos telefonemas foram para
pedir dinheiro para pagar a liberdade de Rachel. Eram trotes transmitidos, segundo a polícia, por falsos sequestradores, ou talvez pelos adversários políticos de Jacó, pretendendo explorá-lo ou apenas colocálo mais nervoso ainda.
A Procura: estratgias
Quarta-feira. O dia amanheceu nublado e escuro.
Caía uma chuva fina e mansa. Dos dois lados da casa de Jacó escorria uma mistura da água de chuva com a terra vermelha que se sol-
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tava dos barrancos, formando valetas por onde se escoava uma massa
lamacenta que invadia a rua calçada de pedras de minério.
Do lado de fora da casa, o impacto leve e delicado dos pingos de
chuva que caíam e batiam contra a rua molhada, provocava a emissão
de vibrações suaves, repetitivas e tranquilas e, ao mesmo tempo, um
vento fresco e leve transmitia uma sensação de paz e calmaria.
Dentro da casa reinava intranquilidade e agitação. Mentes desesperançadas, choros e lágrimas contidas, sussurros, rezas e orações diversas, uma ou outra voz mais elevada, um entra-e-sai constante. Mais
e mais crianças corriam, chutavam bolas, disputam jogos e doces. Uns
xingávamos outros, alguns choravam e buscavam as mães para ajudálos. Diversas serviçais, de bandejas nas mãos, entravam e saíam da cozinha, repunham alimentos necessários para diminuir a tristeza dos que
ali fizeram a vigília, irmanados em busca do pretendido: descobrir o
paradeiro de Rachel.
Ainda cedo podia se escutar a sirene continuada e chata dos carros da polícia que se aproximavam da casa das janelas azuis. Um a um
os policiais da Delegacia Anti-sequestro, homens de caras fechadas e
de pouca conversa, foram descendo e se postando de forma ordenada
em frente da casa. Alguns estavam mascarados e carregavam numa das
mãos uma metralhadora pronta para ser usada. O comandante dos
policiais, seguido por seu auxiliar direto, entrou, sem olhar para ninguém, na casa de Jacó para ter informações sigilosas. Entre os “sigilos”
foi comentado que diversas pessoas tinham telefonado, pedindo dinheiro para soltá-la.
Ao mesmo tempo foi estabelecida, dentro de um total segredo, a
estratégia a ser desenvolvida. Antes de o grupo partir para suas investigações, Jacó ofereceu aos policiais um rápido e pequeno almoço, em
seguida um café preparado na hora.
Apitando mais fortemente ainda, chegou o carro dos bombeiros.
Esses soldados, um pouco mais descontraídos, foram recebidos pela pequena multidão que ficava do lado de fora da casa, esperando e comentando as últimas notícias. Com dificuldade, o comandante reuniu um
grupo de moradores da cidade para discutir com eles os locais prováveis
de Rachel ter se perdido, caso ela tivesse ido passear nesses locais.
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Diversos moradores se prontificaram para servir de guias. A dificuldade foi grande, pois todos queriam falar ao mesmo tempo e, além
disso, cada um defendia com vigor o seu plano.
Por fim, o comandante conseguiu falar com Jacó. Os dois discutiram quem, entre os moradores da cidade, poderia, de forma eficiente, orientar os bombeiros quanto aos locais mais prováveis de uma
pessoa se perder. Os bombeiros sairiam à procura de Rachel ou do
seu corpo. Prontamente Jacó selecionou cinco homens que naquele
instante estavam dentro da casa, lanchando. Uma vez apresentados,
foram incorporados ao grupo anterior já escolhido e dos bombeiros
que fariam a busca pelas matas que contornam a cidade de Lumeeira.
Antes de saírem, os bombeiros almoçaram a convite do anfitrião, em
seguida comeram a goiabada servida como sobremesa. Logo depois o
caminhão com os bombeiros e mais os ajudantes da cidade partiram à
procura de Rachel. A sirene tocava pelas ruas da cidade, prenúncio de
que algo ruim estava ou podia estar acontecendo.
A presença na cidade de um grupo de policiais investigando o
possível sequestro e, ao mesmo tempo, um outro grupo procurando Rachel na mata, provocou na mente curiosa e angustiada popular
certa confusão, pois havia mais de uma hipótese. As diversas possibilidades e nenhuma certeza exigiam muito trabalho para as mentes
preguiçosas.
Diante das dúvidas e dos fracassos das buscas, alguns voluntários e curiosos, cientes que nada ainda dera resultado concreto, lançaram mão das estratégias alternativas. Um grupo aumentou o número
das orações para vinte e quatro horas por dia, em lugar das clássicas
de hora em hora. Outro grupo se aconselhou, continuamente, com
os superdotados da cidade, os capazes de não só enxergar o passado,
mas também profetizar o futuro e, além disso, conhecer o que se passava perto ou longe dos olhos deles, isto é, eles não precisavam estar
presentes para observarem um evento. Não foi difícil recrutá-los, pois
em Lumeeira e nas cidades próximas, abundavam os parapsicólogos,
auto-revelados, seres dotados de clarividência, sensitivos e outros dotados de “energias” mágicas capazes de lerem o não escrito.
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Todos esses milagreiros faziam profecias e previsões quanto à
saúde, amores, sortes e desgraças de seus clientes. Lamentavelmente,
coitados, jamais fizeram previsões valiosas a respeito deles próprios ou
de sua família. Sem se apoiarem como nós, os desprovidos desses poderes, nos fatos da realidade, apoiavam-se nos poderes sobrenaturais.
Com o olhar sobrenatural, eles teciam explicações sábias e apontavam caminhos adequados para o bem-estar do cliente, conhecimentos
incompreensíveis para nossa cabeça ignorante e fraca. Mestres espirituais diferenciados eram transformados por seus seguidores desesperados em líderes carismáticos, em pessoas influentes e respeitadas.
Os desassistidos e desamparados de Lumeeira buscavam, nos momentos de aperto, a sabedoria desses gurus e esperavam receber deles a
orientação e o aconselhamento que necessitavam.
Durante os tristes e nublados dias após o desaparecimento de
Rachel, os videntes, horoscopistas, parapsicólogos, adivinhos, gurus
e outros profissionais do ramo tiveram seus trabalhos triplicados. Formaram-se enormes filas nas portas dos casebres onde eles moravam e
atendiam: todos esperavam, pacientemente, chegar sua vez de implorar por uma ajuda mágica.
De um lado, inferiorizado e humilde, estava o consulente espiritualmente agitado, que tentava penetrar e aprofundar-se na sabedoria
inata e sagrada do pai-de-santo escolhido. De outro lado, muito tranquilo, estava o orientador ocupando o lugar de cima, do poder, emanando autoridade sobre homens e mulheres desvalidos. Esses seres
diferenciados e superiores não se utilizavam, talvez por não conhecêlas, das informações obtidas através dos órgãos do sentido, o conhecimento nascido do confronto do indivíduo com o mundo real. Cada
um desses seres extraordinários utilizava-se apenas de suas demoradas
e penosas concentrações, talvez reflexões mentais.
Através das profundas e elucidativas visões internas assentadas
nos seus poderes superiores, os gurus recebiam as revelações contendo as informações imploradas pelos aflitos e miseráveis desprotegidos.
Felizmente, para os construtores de castelos no ar, os pais-de-santos,
sendo “pau-para-toda-a-obra”, possuíam soluções para todo e qualquer
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problema, indo de um simples “encosto” ou “mau-olhado”, à descoberta da traição do marido e também onde se encontrava Rachel.
Caso se concentrassem profundamente e recebessem a revelação
milagrosa, saberiam sem dúvida o que aconteceu com Rachel desde o
momento do seu desaparecimento até o instante da consulta. Além disso, caso desejassem, poderiam obter informações detalhadas do que
estaria ocorrendo com ela nas próximas horas, dias e mesmo anos.
O consulente desesperado geralmente saía do encontro satisfeito, calmo e feliz, pois os mestres da magia tinham preferencialmente
soluções boas para cada um que os procuravam, mesmo quando dois
indivíduos diferentes faziam pedidos antagônicos: Luiz queria prejudicar Antônio, que por sua vez queria prejudicar Luiz.
Os conselheiros sem pátria e sem escola, durante o desaparecimento de Rachel, trabalhavam incessantemente dia e noite. Acredito
que seus guias espirituais do além, os instrutores dos gurus reclamaram ao Presidente do Superior Tribunal o excesso de trabalho existente durante o tumultuado período do desaparecimento de Rachel.
Após a chegada dos policiais e dos bombeiros, desembarcaram
também na cidade jornalistas de diversos órgãos de imprensa à procura de uma boa e sensacional notícia.
Dentro da casa: a luta dos grupos de poder
Dentro da casa de Rachel, notava-se o andar nervoso e apressado
de homens e mulheres de um lado ao outro da casa. A todo instante
surgiam discussões cada vez mais acaloradas. Uma luta surda se deflagrava, violenta e suja. Buscava-se, a qualquer preço, um maior poder
nas diversas articulações, mesmo pondo em risco a vítima procurada.
Cada um dos grupos, representado por seu líder, buscava para
si a informação mais importante. Quando a possuía, esta era guardada sigilosamente, mesmo quando a sua não divulgação prejudicasse
o andamento da busca a Rachel, ou mesmo a própria vida da possível
vítima. O poder e a liderança representavam, para seus detentores,
futuros ganhos políticos ou comerciais.
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Sob o manto sagrado e enganador da salvação de Rachel, o que
se observava eram grupos diferentes, conectados provisoriamente por
pertencerem à mesma religião, ao mesmo grupo político, intelectual,
comercial e outros. Claramente podia ser observado que cada grupo
lutava para derrotar ou destruir o “inimigo”, imaginado como diferente e perigoso.
Os componentes pertencentes a cada grupo, divididos pela ideologia implicitamente adotada e trabalhando reservadamente, não se
comunicavam com os outros na troca de informações explícitas e honestas. Ao contrário, para vencer a luta interna dos líderes da cidade,
na busca doentia pela hegemonia do comando das ações, usavam-se
todas as armas possíveis. O importante não era encontrar Rachel, mas
sim derrotar o adversário, aumentar o prestígio pessoal, preparar-se
para o futuro político ou econômico e, se possível, aproveitar a ocasião
propícia para angariar companheiros e destruir o outro lado, o que
pensava diferente do grupo, ou seja, os inimigos.
Percebia-se que inúmeras vezes um grupo fornecia falsas informações para os seguidores do outro bando, incentivavam ou pressionavam um elemento do grupo adversário a dar informações sobre o
andamento dos trabalhos policiais aos repórteres das televisões, rádios
e jornais. Entretanto, as notícias fornecidas não eram verdadeiras. Posteriormente, o noticiado pelo informante pertencente à ala inimiga era
desmentido através da mesma imprensa que forneceu as informações
através do ingênuo informante do outro grupo.
Por isso, o informante inicial que pertencia ao grupo adversário
era ridicularizado e tachado de imbecil pela população e imprensa, no
mínimo destituído de poder. Enquanto se travava essa batalha velada dentro da residência, atual “quartel-general” da desaparecida, uma
guerra política e religiosa, iniciada há anos pelos pais ou avós dos atuais guerreiros, Rachel continuava sumida, não surgia nenhuma pista
digna do nome.
Um dos grupos, possuidor de adeptos com maior poder, temendo
vazamento das informações valiosas das quais eram possuidores, abriu
um novo quartel-general num local separado da residência do prefeito.
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Uma vez afastados fisicamente dos grupos rivais, os participantes
realizavam suas reuniões secretas com mais liberdade e também distantes do assédio da imprensa e dos inimigos. Desse modo, afastados
do centro das discussões, eles arriscavam-se menos quanto ao vazamento de informações sigilosas, fosse através da escuta telefônica, de
gravações de vídeo ou de outros meios.
O grupo mais poderoso se reunia secretamente num local afastado. O escritório central, ou setor executivo, tornou-se o núcleo congregador das principais estratégias a serem tomadas. Neste reduto eram
produzidas e divulgadas falsas informações para serem espalhadas entre o povo e principalmente para os líderes das facções inimigas. Essas
informações falsas transmitidas aos órgãos da imprensa, como notícias
de última hora, desmoralizavam os grupos inimigos perante o povo e
imprensa. Durante todo esse período, o “escritório-fachada” situado
na casa do prefeito, pai de Rachel, foi mantido.
— Bom dia, Pedro Cardoso: alguma novidade?
— Bom dia, Padre Leão. Tenho uma notícia nova e boa. O cativeiro foi descoberto. A polícia já está tomando as primeiras providências,
disse Pedro Cardoso com sua voz fanhosa e em falsete.
— Encontraram Rachel?
__ Não! Quem dera! Descobriram, com segurança, seu cativeiro,
ela foi mesmo sequestrada.
— Sequestrada? Tem certeza! Mas onde? Como foi?
— Sim, sequestrada! Quem sabe o senhor, que fala melhor que
nós, desse uma entrevista à televisão fornecendo essa informação que
tivemos?
— Mas, por que eu? Você poderia falar, conhece mais e vai se
lembrar mais do que eu, que ouvi de você.
— Não, é só isso que falei, é simples.
— Está certo! Irei dar a entrevista aos jornalistas. Nesse momento
Padre Leão saiu da casa de Rachel, preparando-se para falar à imprensa. Ao dar os primeiros passos fora da casa, imediatamente foi cercado
pelos repórteres. Em seguida, falou para as TVs e estações de rádio que
se aglomeravam em Lumeeira.
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Poucas horas depois, o Padre Leão percebeu que a informação
dada por ele era falsa. Pedro Cardoso propositadamente lhe deu uma
notícia falsa, queria que o padre fosse desmoralizado publicamente
como líder religioso da cidade, por ser um padre muito liberal e crítico
da rigidez de alguns católicos da cidade.
Dias depois os católicos de Lumeeira conseguiram, através dos
poderes superiores da Arquidiocese, o afastamento do Padre Leão da
cidade por algum tempo.
Entre os motivos alegados estava o de o padre falar demais, mais
do que precisava e muitas vezes se atrapalhava e fornecia informações
falsas, como a que ocorreu na notícia que deu durante o sumiço de
Rachel.
Mudana de Costumes
O desaparecimento de Rachel produziu um complexo sistema
de movimentos e atividades grupais, bastante diferente do existente
anteriormente. Durante os encontros na casa do prefeito, festivos e
melancólicos, com fartura de conversas e de comida, foi resgatada uma
guerra antiga e estranha de diferentes grupos lutando pelo poder da
cidade. O desaparecimento da filha do prefeito, olhado como o fato
em si mesmo, não era o mais importante.
Chamavam a atenção dos observadores curiosos e imparciais
muito mais as reuniões do povo dentro e fora da casa de Jacó, a comilança, almoços, jantares, sopas, bolos, cafés e biscoitos, a conversa descontraída e séria ao mesmo tempo, a união de um grupo de pessoas
aparentemente com os mesmos objetivos: encontrar uma solução para
o “desaparecimento” de Rachel, a característica teatral, de diversão, do
preenchimento do tempo vazio e tedioso que o fato foi tomando com
o passar do tempo, a representação gratuita de um filme divertido e
emocionante, ao vivo, diferente dos enlatados assistidos nas TVs.
Além do mais, os parentes, os amigos e principalmente os líderes, todos juntos representavam, quase sempre sem nada sentir, papeis
e sentimentos adequados aos fatos que estavam ocorrendo.
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Alguns, melhores atores que outros e mais bem treinados nessa
arte, representavam tão bem que eram capazes de mudar o tom de voz,
de chorar e usar as palavras apropriadas à cena discutida. Muitas vezes
usavam uma mímica tal que impressionava o interlocutor: a cabeça
deveria ficar abaixada, olhando para o chão, indicando abatimento,
tristeza e preocupação, o tom de voz deveria ser lento e baixo, se possível com interrupções, para aparentar grande emoção. Muitas outras
interpretações teatrais foram usadas.
Entretanto, caso, em seguida, o falante tristonho encontrasse o
amigo engraçado ou o negociante interessado na compra de sua mercadoria, ele abandonava o “script” naquele instante, mudava completamente o papel anterior que estava sendo encenado no palco da casa
das janelas azuis e representava outro.
O povo comum, os menos favorecidos da cidade, bem como o
pequeno grupo dos mais favorecidos, os que tinham acesso ao quartel
general aonde as informações principais chegavam e saíam, todos eles,
apesar de verbalizarem tristeza e pesar pelo acontecido à família de
Rachel, destoando do que diziam, mostravam estar animados, muito
mais alegres e felizes com o que observavam e estavam fazendo agora
do que o que realizavam antes.
A cidade, antes espectadora, tornou-se a produtora das notícias
e do enredo. Com a chegada dos jornalistas, rádio, jornais e televisões,
a euforia aumentou diante da novidade para o local: as notícias para o
Brasil agora saíam dali, de Lumeeira. Eles não eram mais espectadores,
mas sim personagens diversos, cuja protagonista principal era Rachel,
centro do drama que estava sendo encenado e divulgado, há vários
dias, para o resto do mundo.
Todos tinham consciência que, de fato, tudo fazia crer que ocorrera uma desgraça, uma situação não desvendada até aquele momento, portanto, incerta e pesarosa. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho
em grupo, a existência de um objetivo certo e preciso a ser atingido,
os contatos diários com pessoas diferentes, todas unidas, tudo isso
fornecia ao povo enfastiado de Lumeeira uma satisfação interna nunca
antes gozada.
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A população ganhara, com o desaparecimento da moça, um vigor rejuvenescedor único, comparado com o existente durante as comemorações das grandes festas: Natal, Semana Santa, casamentos importantes, nascimentos e batizados, formaturas e também os grandes
encontros durante as grandes catástrofes: morte de familiares, assassinatos, enchentes sérias e incêndios, que, como sempre, aproximavam,
uniam e davam força às pessoas.
O desaparecimento de Rachel conseguiu, mais que outro evento do
lugar, reunir os homens e as mulheres, as crianças e os idosos, os sãos e
os doentes, ou seja, toda a população da cidade em torno de um único
objetivo: descobrir o que ocorrera com ela e buscar uma solução para o
quebra-cabeça.
Irmanados, os indivíduos da cidade, ao agirem como um grupo,
não como um indivíduo isolado, como uma torcida de um time, solidários com a família, sentiam-se eufóricos. Animados diante do desaparecimento, todos tinham um objetivo comum, possuíam um motivo
para viver e agir. Portanto, enquanto o mesmo fato, olhado de uma
perspectiva, fora ruim em si, por outro lado, visto de outro prisma,
conforme princípio ou paradigma orientador diferente, jamais um
evento em Lumeeira - um fato tão simples como o desaparecimento de
Rachel - conseguiu transformar, unindo tanto e beneficamente, a população daquela cidade. Este fato relevante e inesquecível, energizou
o organismo de cada um dos habitantes do lugar, lhes transmitindo
desejo e significado para viver, objetivos que talvez a grande maioria
nunca havia sentido.
Rachel continua desaparecida
A casa das janelas azuis da Rua Direita, aos poucos foi ficando
tão cheia de gente entrando e saindo, que se tornava muito difícil ter
acesso a ela. Para chegar até lá, era preciso pedir licença centenas de
vezes perante homens e mulheres distraídos, comendo sem parar e,
quando lhes sobrava algum tempo, conversavam animadamente sem
sair do lugar onde estavam.
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Os familiares tontos de tanto movimento, diante do tormento
secundário pós-desaparecimento que ali se instalou, chegavam ao desespero. Ocorreu uma invasão e depredação da casa. Facas, garfos,
colheres, xícaras, copos, panelas, pacotes contendo cereais, latas de
sardinha, de feijoada, latas de cervejas, cachaça, cinzeiros, toalhas cobertores, sapatos, tênis, meias, calças e muitas coisas mais desapareceram sem ninguém ver.
Além do desaparecimento de Rachel, da invasão e do roubo, da
impossibilidade de viver a vida privada, pior do que tudo isso aconteceu: a família ficou aprisionada em sua própria casa. Nenhum dos familiares de Rachel conseguia sair à rua sem ter um batalhão de pessoas
cercando-o por todos os lados: amigos, vizinhos, curiosos, parentes
e, principalmente, dezenas de jornalistas à procura de uma notícia.
Durante esse período, D. Dadá, Jacó e a filha apaixonada pelo caminhoneiro ficavam dentro dos quartos trancados durante todo o dia,
quando o movimento era maior. As idas ao banheiro eram feitas durante a madrugada, quando eram poucos os curiosos, sendo que vários
deles, felizmente para a família, estavam dormindo pelos corredores,
encostados nas poltronas, em cima das mesas e, muitas vezes, alguns
deles pernoitavam nos banheiros.
Por ser muito difícil penetrar na casa de Jacó, os vizinhos, parentes e a população em geral, bem como os interessados em conhecer
as novidades e também oferecer alguma ajuda, se aglomeraram na rua
Direita, em frente da casa.
Às 6:00 h da manhã, do lado de fora, na rua, já se podia divisar
um pequeno grupo, observando, do outro lado da rua, o movimento
existente dentro da casa. No interior da residência inúmeras pessoas
que pernoitaram ali, começavam a acordar. Iniciava-se a ida às privadas
disponíveis, o barulho das descargas era ouvido de longe. Em seguida
havia a procura pelo café que acabara de ser coado e do leite fervido.
Rapidamente o movimento da rua e dentro da casa aumentava.
Um pouco antes das 8:00 h da manhã todos os lugares possíveis, existentes na rua e nos passeios, capazes de permitir enxergar alguma parte da casa de Jacó, já estavam tomados: não havia mais lugares vagos.
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As informações que iam e vinham, passadas de boca em boca
com frequência, se contradiziam: uma delas anunciava que o cativeiro
havia sido descoberto e invadido pela polícia. Outra, que ela tinha se
suicidado, como ocorrera com sua irmã, pois havia um antecedente
e, além disso, segundo os que defendiam essas informações, Rachel,
nos últimos dias, se mostrava muito triste e abatida. Os defensores
dessa hipótese afirmavam que a família dela, zelando pelo seu nome,
evitava falar a verdade. Segundo esse boato, que corria de boca em
boca, o corpo de Rachel já estava no necrotério do Instituto de Medicina Legal e não seria enterrado em Lumeeira e sim em Belo Horizonte. Outros ainda comentavam que ela havia fugido de casa após uma
briga violenta com o pai. Por fim, um grupo afirmava que ainda não
havia nenhuma notícia certa a respeito de Rachel e que tudo dito até
o presente momento era boato.
Os moradores da cidade, representantes de todas as classes sociais, cada um com seus discursos e crenças diferentes em todos os
gêneros, postados em frente à residência do prefeito, durante horas,
esperavam ansiosos o último ato daquela tragicomédia.
Padre Leão, rejeitado por alguns dos parentes e amigos que lideravam as soluções dentro da casa de Jacó, percebendo que lhe era
difícil entrar na casa, pois havia pessoas ali que não gostavam de seus
sermões e de sua conduta espontânea, moderna demais para a cidade,
mudou seus planos.
Preocupado com o destino de Rachel, ao ver toda aquela multidão impotente e estática diante da casa, olhando para o nada, todos
com a mesma fé, salvar Rachel, onde quer que ela estivesse, concretizou o que imaginara. Ao perceber a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de rezar uma missa dentro da casa, Padre Leão decidiu rezar
as missas várias vezes ao dia.
Para isso ele resolveu não aproveitar o pequeno grupo que estava alojado no interior da residência, mas sim a multidão que esperava
Rachel na parte externa da casa na Rua Direita, uma quantidade de
pessoas muitas vezes maior das que frequentavam a igreja durante as
grandes festas.
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Em suas preces, o padre, ajudado por algumas poucas beatas
disponíveis na rua, pedia a Deus, Todo-Poderoso, para que ela voltasse para sua família sem traumatismos físicos e psíquicos graves.
Após a ida a Lumeeira da polícia anti-sequestro, bem como do
corpo de bombeiros, uma grande parte da imprensa nacional e regional procurou a pequena cidade, visando dar uma grande cobertura do
evento. Jornalistas vindos de todos os lados do Brasil se alojaram na
pensão do senhor Raimundo Nonato, que ficava ao lado da igreja. Mas
muitos jornalistas, diante da falta de pensões, tiveram que se alojar
em quartos alugados em casas de família.
Os jornalistas diversos, diante da ausência total de informações
possíveis de ser acreditadas, pois existiam somente boatos, aproveitaram a folga para passear pela cidade, paquerar, beber cerveja do
bar do Pedro Cardoso, pescar, andar a cavalo pelas estradas de terra.
Desse modo, conhecendo melhor Lumeeira, eles puderam mostrar
aos telespectadores, leitores ou ouvintes de todo o Brasil, relatos ou
imagens sobre a cidade onde acontecia esse drama.
Foi assim que nas reportagens foram mostrados os pontos turísticos, a produção da pecuária e agricultura, as festas populares como
as cavalgadas, a folia de reis, as procissões, quem era o atual prefeito,
a família de Rachel, o campo de futebol, a igreja e outras atrações. Pela
primeira vez em sua história, Lumeeira ficou famosa no país, talvez no
mundo.
Esforços diversos estavam sendo feitos, mas até agora, sem efeito: rezas por vinte e quatro horas, missas, orações diversas, jejum de
alguns, penitências de outros, além da ajuda policial e do esforço de
toda a população. Buscou-se, como relatei, também a ajuda de cartomantes, macumbeiros, videntes, gurus, que eram diariamente consultados para que os pais pudessem se informar melhor do paradeiro da
filha desaparecida.
Aos poucos a população da pequena cidade foi aumentando.
Chegavam curiosos e parentes de Rachel, pessoas vindas de outras
cidades, usando, como meio de transporte, os ônibus, o trem, os barcos, cavalos, mesmo pau-de-arara ou a pé.
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Não faltavam pessoas que, sabendo da notícia e estando de férias, decidiram passar as férias em Lumeeira, pois desse modo, enquanto descansavam e passeavam se divertindo, ao mesmo tempo assistiam e participavam, junto à multidão, ao espetáculo gerado pelo
desaparecimento e procura de Rachel. Parentes e amigos, moradores
em vários lugares do país, solidários e preocupados com o desaparecimento de Rachel, foram passar alguns dias na cidade, procurando
confortar os pais já um pouco desanimados.
Devido à ida de tantas pessoas de diferentes lugares, a população de Lumeeira, durante o “caso Rachel”, triplicou. O espetáculo,
iniciado na manhã de segunda-feira, tinha tudo para durar um dia,
no máximo dois. Entretanto, ao contrário do esperado, ele se estendeu. Os prognósticos eram cada vez mais pessimistas. Para muitos,
ela já estaria morta há muito tempo, assassinada ou morta devido ao
suicídio. Entretanto, conforme essa crença, faltava a prova principal,
encontrar o corpo da infeliz e, em seguida, enterrar a protagonista
principal da peça ali representada.
Quanto mais nasciam os boatos pessimistas acerca do destino
de Rachel, mais pessoas ficavam curiosas e excitadas e, por isso, procuravam se aproximar mais e mais de casa da Rua Direita. A multidão
foi crescendo vinda de todos os lados. Em consequência do aumento
rápido da população, cresceram também as vendas na padaria do seu
Vitório, o Bar do Nem-nem estava sempre lotado, a pensão de Alzira
há tempos não tinha mais vagas, o restaurante de Pedro fazia refeições noite e dia, quadruplicou o consumo de sorvetes na Sorveteria
da Prima Emília, de cerveja, vinho, pinga, pão, mortadela, leite, carne
e outros alimentos no Supermercado Bretanha, cobertores, sandálias,
cuecas, lençóis, travesseiros na loja do José do Monte etc.
Em decorrência desse aumento de vendas desordenado, houve falta
de mantimentos, de bebidas, lençóis, travesseiros, cigarros e camisinha.
Houve uma avalanche em direção ao consumo, já que não havia outra coisa a fazer do que comer muito e muito beber. Todos ali estavam desocupados e não havia novidades no “Caso Rachel”, e muito menos na cidade
onde nada atraía os novos habitantes a não ser a espera do evento.
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Deste modo, a única diversão existente era esperar, num lugar
qualquer, observando o movimento de entra-e-sai que acontecia na
residência onde Rachel nascera e foi criada, a heroína da peça representada em Lumeeira.
Os comerciantes, em coro, comemoravam o crescimento recorde
em suas vendas. Os ambulantes, que vendiam grande parte das mercadorias nas ruas da cidade, uma vez fixados defronte à casa de Rachel,
aumentaram absurdamente as vendas de picolés, sucos, cigarros a granel, biscoitos, pasteis, refrigerantes e água.
No auge das vendas, surgiu uma nova preocupação dos vendedores ambulantes e dos comerciantes estabelecidos com lojas na cidade: o medo da queda de vendas quando terminasse a farra generalizada de consumo que estava ocorrendo durante o sumiço de Rachel.
Reuniões foram marcadas na junta comercial da cidade, visando prolongar ao máximo o desaparecimento da filha do prefeito, desde que
não causasse nenhum dano à moça. Assim, outros grupos passaram a
se reunir para evitar seu retorno rápido, pois se ela voltasse logo, as
perdas seriam enormes. Não sei se conseguiram traduzir seus desejos
em planos teóricos.
A animação geral crescia em torno da casa das janelas azuis, barracas foram se instalando, abertas a partir das seis horas da manhã e
sem hora para fechar, pois esse ato iria depender da demanda no local.
Muitas outras barracas foram erguidas ao longo do passeio em ambos
os lados da Rua Direita, e nelas se vendia de tudo: cigarros, fósforos,
refrigerantes, espetinhos de carne, peixe, linguiça e queijo, cervejas
geladas, comidas a quilo, sucos, sorvetes e picolés, hambúrguer, sanduíches diversos, caldos diversos: de feijão, cenoura, laranja, cana, espinafre e muitos outros.
No quarto dia após o desaparecimento de Rachel, apareceram
em Lumeeira vendedores de CDs piratas, de discos usados de vinil e fitas gravadas. Dessa maneira os frequentadores daquele local puderam
desfrutar, além dos comestíveis e bebidas, dos sons de melodias românticas e caipiras. Um pouco mais distante, colado às barracas, apareceu um parque de diversões cuja maior atração era uma roda gigante,
nem tão gigante assim.
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Além disso, existiam carrinhos girando em torno de um eixo,
um jogo com nove caixas abertas numeradas de um a nove. O apostador ganhava um sabonete, escova de dente ou um maço de cigarros,
se o coelho, ao ser retirada a caixa que o cobria, caminhasse em direção à caixa numerada com o número do comprador.
Distante de Lumeeira, devido às informações acerca do mercado em expansão naquela cidade, novos comerciantes, e com eles
atrações, foram chegando à cidade, todas se fixando em torno da
casa do prefeito. Como sempre, com as novidades surgiram novos
problemas.
A princípio, sendo poucos os participantes e não havendo ainda
privadas na rua, os assistentes daquele espetáculo encenado faziam
suas necessidades fisiológicas num ou noutro banheiro existente
nos bares localizados perto da casa de Rachel. Entretanto, com o aumento enorme de curiosos, os bares não deram conta de resolver o
problema dessa enorme multidão ali reunida. O número de privadas
era pequeno para o de bexigas e intestinos precisando ser aliviados.
Como resultado, os indivíduos diante de suas imperiosas necessidades, passaram a usar qualquer canto de muro, mato, meio-fio, ou
seja, qualquer lugar defronte ou ao lado da casa onde estavam, pois
ninguém queria se afastar por muito tempo daquele salão público
de espetáculo. Como consequência, o fedor de urina e também de
fezes se espalhou, tornando-se insuportável, inclusive para a família
do prefeito. Eu, pessoalmente, presenciei, antes do sol morrer no
horizonte, uma moça de vestido preto, nova, forte e bem cuidada,
agachada em cima de um bueiro, deixando sair de suas “partes”, bem
escondidas pelas saias compridas, um jato forte e barulhento de urina amarelada. Os passantes, respeitosamente, olhavam-na disfarçadamente e em seguida viravam os rostos para o outro lado.
Como solução emergencial desse mal-cheiroso problema, Jacó,
como prefeito da cidade, conseguiu alugar por alguns dias, diretamente da capital do Estado, alguns Pipis-móveis, o que felizmente
abrandou em parte a situação que se tornava um problema de saúde
pública insuportável.
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Mas apareceram outros problemas: começaram a faltar, além da
água, os colchões, as roupas de cama, os restaurantes para se almoçar
e jantar, os pães e as pensões para hospedar os visitantes. Faltaram
ainda diversos trabalhadores como arrumadeiras, varredores de rua,
garçons, auxiliares de padaria, cozinheiras. O trânsito, por sua vez, tornou-se caótico na Rua Direita. Por ordem policial ele foi interrompido,
durante dias, em frente à casa do prefeito.
Mas nem só de desgraça viveu a cidade. Além do aumento de
empregos, houve o aumento dos salários. Ao mesmo tempo em que
o desaparecimento provocava uma tristeza no povo de Lumeeira, junto com um sentimento de solidariedade à família, por outro lado, o
mesmo fato também animava parte da população, que lucrava com
o desaparecimento. Segundo as estatísticas fornecidas pela prefeitura, a cidade de Lumeeira, durante esse acontecimento pesaroso, teve
a maior oferta de empregos de toda sua história, em todas as áreas
comerciais. Podia-se ver, andando pelas ruas da cidade, pregados nas
portas das lojas sempre cheias de fregueses comprando e ao mesmo
tempo discutindo o “Caso Rachel”, o conhecido anúncio: “Precisa-se
de um auxiliar...”
Aumentava, dia-a-dia, o número de assistentes curiosos da casa
de Jacó. Eles participavam como atores coadjuvantes do grande e trágico teatro de rua, ali encenado pelo sétimo dia consecutivo. Crescia a
quantidade barracas armadas pela Rua Direita. A rua, antes muito calma, transformou-se em um mercado. Em toda parte viam-se homens
e mulheres, alguns carregavam balaios na cabeça, outros empurravam
carrinhos ou carregavam caixas contendo guloseimas e bugigangas
diversas: vela, pipoca, sorvete, algodão-doce, churrasquinho, refrigerante, suco, pinga, Viagra, camisinha, cobertores, sacos para dormir,
toalhas, pijamas, capas para chuva, queijo, sanduíches. Outras barracas
vendiam cremes para a pele, protetores solares, batons, xampus, sabonetes, ou seja, produtos do toucador usados para embelezar o povo
de Lumeeira. Os vendedores ambulantes e feirantes estavam animados
com a saída dos produtos. Discutiam, sorrindo, as fantásticas vendas e
contabilizavam o dinheiro que entrara.
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Os produtos, antes das vendas, eram apregoados como espetaculares.
A cidade estava agitada, sacudida e transformada devido ao desaparecimento de Rachel. A chegada de estranhos, vindos dos mais variados lugares, exibindo condutas e hábitos diferentes (roupas, modo de
falar, vocabulário, gostos artísticos, culinários e outros), fez com que
os nativos do lugar começassem a assimilar novos costumes, provocando uma mescla de valores, de vocabulário, interesses, motivações,
modos de se expressar híbridos diante de um mesmo problema.
Em resumo, a cidade pequena e fechada às novas informações
foi mexida e remexida quanto aos valores, padrões e comportamentos.
Ela se transformou numa outra diferente da que era e nunca mais foi a
mesma. Imperava, dominando todos os moradores da cidade, uma agitação constante, geralmente acompanhada de uma euforia e bem-estar
nunca antes observados, nem mesmo durante as cerimônias religiosas
da cidade e as grandes festas como as cavalgadas, touradas, folia de reis
e os casamentos.
A animação era visível, em função do crescimento de todas as
atividades. O jornal da cidade, que anteriormente tinha apenas uma
tiragem mensal, passou a ser impresso diariamente com cobertura de
todos os detalhes do sumiço de Rachel. A estação de rádio da cidade,
funcionando quatro horas por dia, começou a funcionar dezoito.
O movimento da imprensa era constante: entrevistas dos familiares e das autoridades da cidade, fornecendo as últimas informações
conhecidas. As pessoas comuns, observadoras do lado de fora da casa,
eram entrevistadas, opinando sobre o que achavam. Faltando alguém
para falar, um repórter entrevistava o outro e o outro, outro ainda.
Assim, formando essa enorme cadeia, o tempo vazio dos profissionais
era preenchido.
No fim da tarde, após os sinos baterem as 18:00 horas, o disco
antigo e defeituoso tocava a “Ave Maria”, os repórteres reuniam alguns
convidados especiais para discutirem, através de mesas-redondas, as hipóteses e aspectos do evento, que quebrou a harmonia da cidade, desestabilizou e transformou a maneira de pensar e a conduta da população.
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Os nativos da cidade foram bombardeados, dominados e vencidos pelos novos habitantes. Entrelaçaram-se, imiscuíram-se em estreito
contato com os novos modelos invasores: vendedores de mercadorias,
proprietários e artistas do circo e parque de diversões e, principalmente, um número enorme de repórteres. Os invasores falavam, andavam,
usavam roupas e se comportavam de modo diferente, sendo percebidos como modelos a ser imitados, pois se acreditava que os padrões
deles eram os “certos” e “modernos”.
Vários moradores de Lumeeira passaram a comprar um e outro objeto, sonhando se transformar na outra pessoa, a que usava tal
mercadoria. O desejo de metamorfosear-se magicamente num “eu” diferente do real, de tornar-se o “não-eu”, incentivava o morador de Lumeeira a comprar algum objeto, a andar de certo modo, a falar certas
palavras que ele não usava, a cumprimentar, assentar-se ou andar de
certa maneira, como se comportavam os invasores. Todo esse esforço
baseava-se na esperança de ser transformado, através da posse dos objetos ou da mudança da conduta, em uma pessoa diferente da que ele
era. Esperava-se uma transformação não só na aparência, mas também
como as pessoas se sentiam diante delas mesmas.
A necessidade de ser um outro, diferente e melhor que o antigo,
passou a ser tão importante para os residentes de Lumeeira, que os
vendedores de bugigangas não alardeavam para o comprador a utilidade do produto a ser vendido. Tentavam convencer o consumidor de
que ele, ao usar o produto divulgado, se sentiria muito melhor pois
seria transformado numa outra pessoa, ficaria mais bonito caso usasse
a loção para barba X, mais elegante usando o xampu Z, mais sexy ao
usar a camisinha W, mais charmoso e irresistível com as chinelas Y.
Os vendedores se aproveitavam da insatisfação reinante entre a
população para vender toda e qualquer bugiganga, serviam-se do descontentamento existente na mente de cada morador da cidade consigo
mesmo. A falta de amor, de simpatia, de auto-estima, em resumo, o
desprazer por si fundamentava essa procura tola por artigos desnecessários, como descrito nos versos de Blaise Cendrars: “Hoje sou talvez o
homem mais feliz do mundo/Possuo tudo aquilo que não desejo...”
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O dinheiro era desperdiçado na compra dos objetos coloridos e
atraentes nas barracas, vários artigos desnecessários que tinham, por
função, restabelecer o vazio interno, o equilíbrio perdido, perturbador
e desconfortável que dominava a mente do indivíduo. As quinquilharias adquiridas, representando simbólica e enganosamente o poder,
a beleza, a elegância e outras ilusões, uma vez implantadas no objeto
tornavam as bugigangas impregnadas de propriedades mágicas e, desse modo, aumentavam a auto-estima reduzida ou inexistente de cada
indivíduo. Na frenética busca por uma orientação vinda do exterior, já
que inexistia uma interior, bastava os forasteiros exibirem um ou outro
produto para que, imediatamente, a mercadoria fosse valorizada pelos
nativos.
Invaso de ideias
Mas os habitantes da cidade não admiravam apenas as mercadorias vendidas e nunca vistas. Cobiçavam e incorporavam, tentando reproduzir fielmente as condutas observadas nos forasteiros, as palavras,
o modo de andar, os penteados, o sotaque, o estilo de falar, as expressões das emoções, a maneira de comer e vestir e outras. Modelavam -se
neles, imitavam-nos em tudo.
Os estranhos à cidade funcionavam como modelos quanto a um
e outro padrão a serem seguidos pelos antigos moradores. Eram os
forasteiros que revelavam e estabeleciam o importante e o não-importante. Assim, era essencial e muito valorizado, talvez mais que tudo, ser
importante, ser digno de consideração ou prestígio. Desse modo, de
forma progressiva, os nativos de Lumeeira foram se modificando: tornaram-se pessoas que fingiam ser. Ao se identificarem com os invasores, eles imaginavam estar sendo convertidos em pessoas importantes.
A cidade enlouqueceu! Ao abandonar seu ritmo simples, calmo e
harmonioso de antes e envolver-se com a desordem externa, deixou-se
dominar por um novo padrão de conduta, importado dos “estrangeiros” invasores, gente esquisita, se examinada sob o ângulo dos antigos
padrões dos Lumeeirenses quanto ao modo de pensar, de sentir, de
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se comportar, bem como um vocabulário, valores e interesses muito
diferentes dos existentes e que faziam parte da cultura de Lumeeira. O
novo sistema de pensamento que invadiu a mente dos habitantes da
cidade não só era estranho, mas também muito mais complexo que o
utilizado em Lumeeira há séculos.
Podemos dizer que existem dois modos de violência: um físico
(mais antigo, entretanto, ainda usado) e um outro mais moderno,
onde a vergonha de se comportar de um certo modo é inoculada na
vítima. O povo da cidade de Lumeeira, ao endeusar os jornalistas,
passou a ter vergonha dos seus costumes, ingenuamente acreditando
que a maneira de pensar e de se conduzir deles era a correta e a deles
errada e tola.
Atrás dos curiosos e amigos, do enorme grupo da imprensa rádio, jornais e televisões - chegaram também a Lumeeira mais e mais
exploradores das aglomerações: os vendedores de picolé, de lanches
rápidos e de tudo o mais. A multidão ia aumentando.
No quinto dia após o desaparecimento de Rachel, surgiu na
cidade um pequeno circo, cujas atrações principais eram as touradas
e a mulher barbada. Durante os intervalos das apresentações mais
importantes, eram apresentados cantores sertanejos.
Mas não só de circo distraiu-se o povo de Lumeeira nos terríveis
dias do desaparecimento de Rachel. Não faltaram as pregações evangélicas, católicas, espíritas, todas criticando a imoralidade dos tempos modernos, o pecado, o castigo que estava para chegar, sugerindo
que tudo aquilo que estava acontecendo podia ser um castigo divino
por ter Rachel se apresentado daquele modo durante o carnaval.
Padre Leão, por sua vez, criticava os críticos. Sorrindo ao ouvir
as pregações, comentou:
— Tudo bobagem! Deus não é como nós. Ele não se vinga, não
tem raiva de ninguém. Além disso, fantasiar não é e nunca foi pecado.
Pecado é explorar os já explorados, é incutir ideias falsas na mente das pessoas mais humildes, é enganar como muitos pregadores,
políticos e diversos outros profissionais fazem. Isso é uma violência
moderna.
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— Cristo combateu a exploração, o domínio de uns poucos poderosos contra a maioria dos sem-poder. Cristo não gastou seu precioso tempo com essas baboseiras.
As especulações aumentavam em torno do desaparecimento
de Rachel: assassinato? suicídio? sequestro? fuga sem razão plausível?
perdeu-se na mata sem descobrir uma saída? Essas e outras hipóteses
foram examinadas pela polícia e pela população. Junto aos bombeiros,
inúmeros voluntários conhecedores da mata que cercava a cidade, dia
e noite procuravam Rachel. Nenhuma pista na mata foi encontrada, nenhuma informação vinda dos possíveis sequestradores surgiu, nenhuma razão para ela se suicidar ou ser assassinada existia. As investigações, apesar do trabalho da polícia, das reuniões do grupo de amigos,
das rezas continuadas e das consultas aos diversos videntes não saíram
da estaca zero! Nenhuma pista! O desespero crescia!
Os dias foram passando lentos e tristes. A família e amigos cada
vez mais tensos já esperavam, conformados, a qualquer momento, um
final trágico: a descoberta do corpo em algum lugar.
A cada dia o casarão da Rua Direita se enchia mais de pessoas
amigas. Dia e noite, as cozinheiras da casa faziam bolos, quitandas,
café, ferviam leite, além dos almoços e jantares fartos servidos para dezenas de visitantes. Com a casa superlotada, muitos revezavam a hora
de dormir: alguns dormiam ou cochilavam nas camas ou nas poltronas
espalhadas pela casa durante o dia, outros, à noite. Enquanto isso, as
orações continuadas eram feitas por um grupo de mulheres. Velas e
mais velas espalhadas pela casa simbolizavam as “luzes” esperadas por
todos, para que alguém tivesse um “esclarecimento” ou “visão” do que
havia ocorrido.
Quarto, quinto, sexto, sétimo dia! Agora, para muitos, somente
um milagre faria Rachel aparecer. Nenhuma notícia dela. Mais e mais
videntes e macumbeiros foram consultados, alguns com fama internacional foram procurados na capital do Estado e na cidade de São Paulo. Infelizmente, suas mensagens recebidas do além, não coincidiam.
Para uns ela já morrera e sua alma tinha subido ao céu, estando feliz e
tranquila.
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Para outros, ela estava num lugar seguro e não havia com o que
se preocupar. Para outros ainda, Rachel estava presa, em perigo e
algo extraordinário, além de orações constantes, precisava ser feito.
Artes sobrenaturais e diabólicas foram propostas e realizadas
usando um sutiã de Rachel, juntamente com uma galinha imolada,
charutos, incenso e mirra. Tratava-se de um derradeiro e desesperado esforço para resgatar a filha de D. Dadá, trazê-la de volta ao convívio da família.
Enquanto alguns, sem outra opção viável, lançavam mão do uso
da macumba, a Igreja Católica programou uma missa solene realizada no campo de futebol do Lumeeirense Futebol Clube. Através de
intensa propaganda nos alto-falantes da igreja, nos convites impressos, nos jornais e rádios da cidade, se reuniram milhares de pessoas,
participantes de todos os grupos religiosos, políticos e financeiros da
cidade, bem como toda a liderança e liderados da cidade.
Após a missa, os participantes, em procissão, percorreram todas as igrejas, de todos os credos, meditando e orando em cada uma
delas, sobre o momento que estavam vivendo do sumiço de Rachel.
As meditações tinham o mesmo objetivo: implorar a Deus todo-poderoso uma solução para o acontecimento misterioso, porque os homens da Terra tinham fracassado. Tudo já estava considerado perdido, nenhuma hipótese surgia, nem mesmo a mais estapafúrdia, no
décimo primeiro dia após o desaparecimento de Rachel.
Fim do mistrio
Ao meio-dia chegou a Lumeeira um ônibus de carreira quase
vazio, vindo de Belo Horizonte. Este parou na “rodoviária” da cidade
naquela hora sem movimento, pois enquanto os mais desocupados
e animados estavam na Rua Direita esperando por notícias de Rachel, os outros, mais sem esperança e sem ânimo, dormiam após o
almoço. Um e outro passageiro, espichando uma perna ou um braço,
passando as mãos nos cabelos, desceu para comer, beber ou ir ao
banheiro.
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Quando o ônibus já estava quase vazio, eis que se levantou lentamente de sua poltrona uma moça um pouco gorda. Em seguida,
após procurar e pegar no bagageiro sua pequena sacola, desceu do
ônibus.
Na porta por onde os passageiros saíam e desciam, vendedores
de sorvete, biscoitos e outras guloseimas ofereciam suas mercadorias
insossas para os passageiros sonolentos e de cara amassada que desciam do ônibus. Entre esses vendedores estava Zé da Marta.
Devido ao fraco movimento da rodoviária e ao grande número
de fregueses potenciais existentes em frente à casa de Rachel, Zé da
Marta, por diversas vezes durante o desaparecimento de Rachel, tinha
ido vender seus biscoitos em frente e mesmo dentro da casa do prefeito. Nessas ocasiões, por várias vezes ele viu o retrato dela reproduzidos nos “santinhos” que foram distribuídos. Além disso, visualizava
internamente, sem se esquecer, a enorme fotografia de Rachel dependurada na parede da sala da casa do prefeito. Zé da Marta havia se
apaixonado pela moça bonita e cheia da fotografias, por isso mesmo
carregava o “santinho”, guardado com carinho no bolso da camisa
que usava, bem junto ao coração.
Quando Zé da Marta se aproximou da última passageira que
descia ônibus, desanimado, pois não conseguira vender um só pacote, ficou frente-a-frente com ela para lhe oferecer os biscoitos de polvilho que segurava em uma das mãos. Após fitá-la por alguns segundos,
se espantou. Confuso, após colocar o pacote que carregava dentro
do balaio, colocou este em cima do passeio. Sempre olhando para a
moça, enfiou sua mão no bolso da camisa e retirou o retratinho que
guardava com tanto carinho. Olhou para o “santinho” já sujo e ensebado, examinou-o mais uma vez e observou detidamente a moça que
descera do ônibus. Espantado, automaticamente Zé da Marta correu
até ela e gritou ofegante:
— Você não é a moça que desapareceu?
— Eu não! Moça que desapareceu? Não entendi.
— Desapareceu uma moça daqui.
— Que moça? Qual é o nome dela?
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— Rachel, filha de Sô Jacó. Ela sumiu há mais de uma semana. Tá
todo mundo procurando ela.
— Eu sou filha de Jacó.
— Você é Rachel?
— Sim, sou eu mesma.
— É verdade? perguntou, olhando mais uma vez o “santinho” e para
ela. Em seguida, mostrou o papel com a reprodução da fotografia dela.
— Sou eu mesma.
Nesse momento Rachel começou a perceber a razão do espanto
do vendedor. Mas de qualquer modo, ela pegou sua maletinha e caminhou, acompanhada por Zé da Marta, em direção à sua casa. Imediatamente, muito orgulhoso de tê-la descoberto, se prontificou a carregar
a pequena bagagem de Rachel.
Ao passar pelas ruas, antes de chegar à casa do prefeito que era
perto de onde ela descera, um e outro morador que a via, a olhava,
fazendo comentários com os que estavam perto. Ninguém estava entendendo o que estava vendo, pois não coincidiam com as notícias
transmitidas.
Zé da Marta, orgulhoso ao seu lado, levantando ao máximo sua
cabeça e segurando num dos braços seu balaio de biscoitos de polvilho
e no outro a bagagem de Rachel, olhava ora para um, ora para o outro
lado da rua, pois naquele momento ele se tornara importante: fora o
primeiro a vê-la, seu descobridor, tudo fácil e simples. Balançando sua
barriga, sorria e cumprimentava os transeuntes que passavam espantados diante do que viam.
Finalmente Rachel, acompanhada de Zé da Marta, foi se aproximando da casa das janelas azuis. Defronte à casa, podia se ver uma
multidão de pessoas esperando a pior notícia.
Logo que os primeiros curiosos que ali conversavam, imaginando notícias pessimistas, viram Rachel andando pela rua acompanhada
de Zé da Marta, sem polícia, nem corpo de bombeiros, sem “fogueira nem foguetes”, aparentando uma fisionomia normal, a mesma face
que sempre teve, houve um zunzum geral. Alguns, mesmo estando
diante dela, não acreditavam no que viam.
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A novidade se espalhou com incrível rapidez. De longe se ouviram gritos, urras, choros, uma agitação indescritível. Imediatamente
a multidão correu em direção a Rachel: todos gritavam aliviados e
eufóricos.
— Rachel chegou! Viva Rachel!
Os primeiros gritos agitaram de vez todas as pessoas ali presentes:
parentes, policiais, cinegrafistas, repórteres de jornais de rádio, curiosos que correram, para se aproximarem de Rachel e entrevistá-la. Ela,
por sua vez, a cada momento se tornava mais confusa, nada entendia
e se perguntava: “Por que aquela recepção?”. Sem ainda compreender
adequadamente o que todas aquelas pessoas estavam fazendo em frente e dentro de sua casa, com dificuldade pôde aproximar-se dela.
Com muito custo, cercada e empurrada de um lado e outro, sem
graça, perplexa, entrevistada por um e outro repórter que faziam perguntas para ela incompreensíveis, conseguiu afinal chegar dentro de
casa. Ao aproximar-se de seus pais, após fortes e demorados abraços,
sua mãe, chorando e soluçando, perguntou:
— Minha filha, o que aconteceu?
— Como? Sou eu quem pergunto! Por que toda essa recepção?
O que eu fiz de extraordinário? Virei celebridade?
— Você desapareceu!
— Eu? Eu desapareci? Como? Não estou entendendo!
— Onde você estava? Pensamos que você tivesse sido raptada,
assassinada ou se suicidado. Há dez dias estamos desesperados, rezamos dia e noite sem parar. Chamamos a polícia, vieram os bombeiros,
todos ainda estão procurando você em todos os lugares.
— Mas por que a polícia estava me procurando?
— Você sumiu, ninguém sabia onde estava. Onde você se escondeu?
— Eu não me escondi em lugar nenhum!
— Como não? Conta-me a verdade. Você fugiu e se arrependeu?
Agora resolveu voltar. Não foi?
— Não fugi, não! Já disse. Voltei agora porque tratei ficar dez dias.
— Ficar onde? Onde você estava?
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— Estava num Spa.
— Num Spa?
— Sim, um Spa de Irmãs de Caridade.
— Spa de Irmãs de Caridade? Nunca vi!
— É... é um Spa e retiro, ao mesmo tempo. Li, há poucos dias,
um anúncio no jornal católico que você assina. Lá falava acerca de um
Spa especial. Os participantes, durante dez dias, faziam um regime alimentar e, além disso, ficavam em completa concentração, sem contato
com ninguém.
— Você ficava sozinha?
— Sim e não, tinha várias outras pessoas nesse Spa, estava cheio.
Nós somente nos reuníamos quando havia pregações, durante as quais
aprendíamos as virtudes do perdão, do amor ao próximo, da tolerância, da justiça, do controle dos impulsos. Bem, tem mais outras coisas
que não me lembro.
— Por que você não me avisou?
— Avisei! Deixei um bilhete para você, em cima do aparelho de
televisão.
— Devia ter me falado!
— Se falasse, você não ia me deixar ir, seria contra. Por isso decidi sair sem falar nada com ninguém. Mas deixei um bilhete.
— E por que não me telefonou, passou um telegrama ou carta?
— Nesse Spa que fui, que é também retiro espiritual, qualquer
comunicação lá de dentro com o exterior era proibida, inclusive com
outras pessoas do próprio Spa. Não se podia conversar com as outras
internas.
— Mas nem para família?
— Para ninguém. Não se podia nem telefonar para a família, nem
para qualquer outra pessoa, tudo para não perturbar o regime, a concentração, as reflexões e a disciplina
— Mas e as notícias? Os jornais, rádio e televisões relataram seu
desaparecimento durante esses dez dias. Como não soube?
— Já lhe disse: ficávamos fora do mundo, não tinha televisão,
rádio ou jornal.
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Lá não entraram notícias durante os dez dias que lá fiquei, tudo
para não atrapalhar nossa concentração. Em compensação, consegui
emagrecer oito quilos. Estou feliz.
— Ainda bem! Poderia ser pior, suspirou D. Dadá, sua mãe, que
continuou:
— Quero ver o bilhete que você disse que deixou! Onde está?
Vamos lá!
Toda a família caminhou para o aparelho de televisão onde
Rachel disse que fora colocado. Ela procurou o bilhete em cima da TV,
mas nada, não havia nenhum papel onde ela falou. Após muita procura, descobriram um papel, pouco visível, pois estava enfiado num
greta na parte de trás do aparelho de TV. Provavelmente havia caído ali
e ninguém lhe deu importância naqueles dias tumultuados e cheios de
angústia.
Rachel apanhou o papel:
— É ele! Disse radiante, enquanto o abria, e continuou:
— Aqui está o bilhete! Em seguida, após rasgar o pequeno envelope e retirar de dentro dele um pequeno papel, leu o recado nele
escrito:
“Mamãe querida:
Estou indo para o Spa nas imediações de Belo Horizonte. Sei que
a senhora é contra emagrecer, entretanto, como não mais estou suportando meu corpo, irei fazer uma tentativa. O Spa fica num lugar muito
agradável, longe de tudo e de todos. Lá não temos nenhuma ligação
com o mundo cá de fora. Espero voltar mais magra.
Um abraço da filha que muito lhe ama,
Rachel”
Após ler o bilhete, ela o entregou a sua mãe para lê-lo, pois D.
Dadá, chorando sem parar, ainda não acreditava no que estava acontecendo. O bilhete foi lido por diversas vezes. D. Dadá, derramando
lágrimas em cima do papel, bocejou e resmungou:
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— Tanto sofrimento, tanta preocupação por nada. Ainda bem.
Há dez dias não durmo, nem sei se vou dormir hoje depois do seu
aparecimento. Queira Deus que sim!
Assim a festa acabou. A multidão estava frustrada, o final da história não foi o esperado. Pouco a pouco, os curiosos foram se afastando:
tinham a cabeça baixa, os olhos tristonhos, não só porque terminara
a peça teatral ali representada e que os divertia enchendo o tempo de
todos, mas também devido a um final sem grandes emoções, como era
esperado por todos os presentes, amigos e inimigos do prefeito: as
hipóteses estavam erradas, pois ninguém foi sequestrado, assassinado
ou tinha se suicidado.
Os diversos repórteres entraram na casa de Rachel para entrevistá-la, cabisbaixos devido à notícia insossa e sem sal, assemelhandose à protagonista. O que eles tinham para contar, como não causou
nenhum impacto neles, fatalmente não interessaria ou provocaria
grandes emoções nos leitores. Após arrumarem seus apetrechos, se
dirigiram à pensão, ajuntaram as roupas e outros objetos que estavam
espalhados pelo pequeno quarto e saíram da cidade.
O semblante dos repórteres, pedestres, parentes e amigos era de
vazio total. Todos começavam a sentir um retorno à vida antiga após
onze dias de espetáculo. Tudo ali, a partir do aparecimento de Rachel,
sistematicamente voltaria à mesmice de sempre, à vida de uma cidade
pequena e querida, como sempre fora antes do “desaparecimento de
Rachel” e que por onze dias foi transformada, felizmente por um pequeno período.
As notícias ouvidas, lidas ou vistas na televisão, agora viriam de
fora. Eles não eram mais atores e assistentes de um drama angustiante. A partir daquele instante, as notícias do município voltavam a ser
as paroquiais, as já conhecidas: quem ia se casar, quem ficou grávida,
que mulher traiu o marido, a briga de vizinhos e a venda de uma égua
criadeira, tudo conhecido e fácil de entender.
Para quebrar a monotonia do relaxamento, uma mulher, desanimada pelo fim do espetáculo, tirou suas roupas em plena rua, numa
tentativa de reanimar a cidade. Ela não teve sucesso.
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Poucos transeuntes olharam para ela enquanto passaram, pois
estavam mais interessados em ir para casa descansar.
À noite, em frente à casa do prefeito, não havia mais ninguém.
Na rua havia um total silêncio. Até o bar perto da zona boêmia nessa
noite fechou cedo. As prostitutas, desanimadas com a falta de homens,
decidiram ir dormir após escurecer o dia, pois não teriam os fregueses de sempre e muito menos a quantidade enorme dos dias de festa.
Todos estavam sem assunto, qualquer grande e sensacional notícia
agora seria como um traque diante do que a cidade viveu nesses onze
dias. As informações agora não mais comoveriam ninguém: acabaramse as emoções e expectativas daquele povo sem grande atrativos.
Dentro da casa quase às escuras, não mais se notava movimento.
Era tudo silêncio. Marina, a serviçal da casa, caminhando de janela
em janela, foi descendo as cortinas, uma a uma, impedindo a entrada
aborrecida da luz. Estava encerrada a tragicomédia representada na
casa das janelas azuis.
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Rachel passeia com Tom
Quando Rachel completou trinta anos, sua família imaginou que
era melhor deixar de pensar em casá-la, pois não havia mais candidatos
viáveis. Jacó, desiludido quanto ao casamento da filha, vendo-a sozinha
e triste, para alegrá-la decidiu presenteá-la com um automóvel. Como
colecionador de diversos automóveis, foi pessoalmente à agência procurar o carro, que mais lhe agradasse. Lá, depois de examinar um e
outro, escolheu um último modelo do ano. Imaginou ser um belo e
útil presente para sua filha, pois evitaria suas viagens, todos os dias, no
velho e enferrujado ônibus escolar para a escola onde ia dar as aulas.
Rachel recebeu o presente radiante. Não demorou para entrar
no carro dirigindo-o orgulhosa pelas ruas da cidade, sem deixar de
passar em frente a casa onde morava Tomé. Mas, por mais que circulasse com o auto por diversas vezes diante da casa dele, Rachel não o
encontrou para exibir o belo presente.
Enquanto dirigia, imaginou que talvez o veículo a ajudasse a reconquistar sua antiga paixão. Tomé, amante de carros talvez mais que
de mulheres, poderia se aproximar mais dela e talvez ser fisgado através do carro.
No dia seguinte, animada consigo mesma, bem como com o poder do carro, pois onde passava todos viravam o rosto para apreciar
o novo modelo, Rachel saiu à procura de Tomé com a intenção de
convidá-lo a dar umas voltas e experimentar o automóvel.
À tarde, ao encontrá-lo, ele prontamente aceitou o convite. Para
agradar-lhe, Raquel ofereceu-lhe a direção do carro, o assento do motorista, para que ele pudesse dar uma melhor opinião sobre o veículo.
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Em seguida os dois saíram passeando pelas ruas da cidade.
Após percorrerem as mesmas ruas inúmeras vezes, decidiram
experimentar o automóvel na estrada asfaltada, para terem uma melhor ideia do desempenho do veículo. Num certo ponto da estrada,
tomaram o rumo da fazenda do pai de Rachel e, por fim, uma estreita
estrada de terra que ficava à margem do rio que cortava a cidade.
O carro, com pintura metálica de um vermelho sangue, muito veloz, possuía um potente rádio e toca-fitas. Durante o passeio, a
cada instante mais entusiasmado com o automóvel, Tomé pensou que
talvez Rachel fosse uma boa escolha: “Quem sabe, acabo me casando
com Rachel? Junto a ela, minha vida poderá mudar. Me encontrarei, às
escondidas, com Zilda. Ela não irá desconfiar”.
Enquanto Tomé sonhava com um possível plano, o carro chegou à margem do rio. Cansados de tanto rodar de um lugar a outro,
decidiram descer para espichar as pernas e olhar o rio que parecia
estar um pouco cheio devido às chuvas da véspera.
Nessa ocasião, Rachel pesava aproximadamente 100 quilos.
Como sempre, ela engordava e emagrecia. Para não fugir à regra, os
azares continuavam a persegui-la nos momentos mais importantes e
cruciais, quando tudo caminhava para dar certo. Neste instante aconteceu, podemos dizer, uma tragédia: o sonho de Tomé, que começava
a ser construído, relacionado a um possível namoro e casamento com
Rachel, por encanto desapareceu abruptamente. Tudo fruto da má
sorte, ocorrendo sem que ninguém esperasse.
Pensando na possibilidade de se casar com Rachel e procurando ser gentil, Tomé foi ajudá-la a descer do carro. Para isso ele lhe
estendeu as mãos para segurá-la e puxá-la, facilitando assim sua saída
do automóvel, que era muito baixo. Para se levantar e sair do carro,
Rachel girou as duas pernas em direção à porta do carro, bem de frente para Tomé, para colocá-las fora do auto. Ao preparar-se para fazer
o movimento de levantar-se, foi obrigada a abrir demasiadamente as
duas pernas na altura dos joelhos, devido à grossura de suas coxas,
que não ficavam juntas como acontecia a uma pessoa magra. Debaixo
do seu vestido largo, cheio de listras amarelas horizontais, Tomé, as-
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sustado, pôde visualizar num lampejo, com bastante nitidez devido a
um facho de luz proveniente do sol que se punha no horizonte, o que
ele não queria ver. As duas paredes laterais do túnel aberto entre suas
enormes e gordas coxas, mostraram formações gordurosas, moles e
leitosas. No fundo do túnel, pôde visualizar, com indiferença, talvez
até com asco diante da percepção anterior, sua calcinha, que, como
sempre, era branca.
Nesse instante sentiu-se mal. Só com dificuldade ele conseguiu
ajudá-la a se levantar. Ficou nauseado diante da repugnante percepção
que foi obrigado a enxergar: massas gordurosas salpicadas de afundamentos circundadas por formações cheias de dobras, tomando toda
a parte interna e inferior da coxa. Tomé ficou gelado só de imaginar
tocar tudo aquilo durante uma cena de amor. Desiludido e atordoado
com a desagradável e desanimadora visão, desistiu de vez de namorar
sua prima. Imaginou, nauseado, por mais que desejasse pensar no
oposto, como seria sua imensa barriga, muito mais volumosa do que
suas coxas, as dobras do seu abdômen deveriam formar uma grande
cortina. Ele bem que se esforçou o que pôde para não imaginá-la em
sua mente, mas não conseguiu. Via-a cheia de dobras e ele abraçando
aquele imenso corpo cheio de banhas moles. Para desespero dele, as
diversas tentativas que fazia para pensar em cenas alegres, neutras
ou, no mínimo, menos desagradáveis, não davam resultado, todas falhavam. Quanto mais se esforçava para mudar essas representações
ruins, mais elas dominavam sua mente, nítidas e horrendas. Ele pôde,
sem experimentar, vivenciar virtualmente como deveria ser desagradável e repugnante uma relação física com Rachel. Assim Tomé percebeu que ela não o atraía fisicamente, ao contrário, ele desejava estar
longe daquele corpo.
Rachel percebeu que algo acontecera, não sabia o quê, mas a atitude de Tomé com respeito a ela mudou repentinamente. Ela notou
que ele a olhara e principalmente fixara seus olhos, quando descia do
carro, para baixo, ou seja, para suas partes íntimas. Rachel, ao contrário de Tomé, ao representar em sua mente essas imagens, supôs ter
excitado o primo com a exibição de partes de seu corpo.
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Imaginou que possivelmente teria conquistado o amor do primo, quando, sem querer, pôs à mostra suas partes íntimas. Por isto,
naquele instante, ela própria se excitou com suas fantasias.
Coitada de Rachel! Tomé, ao olhar para sua face sorridente e
entusiasmada, não a enxergava, continuava a ver, dentro de si, o que
tinha visto anteriormente, aquelas partes moles e disformes da parte
interna e externa das coxas da prima. Confuso, não sabia o que fazer e
também não encontrava um assunto para comentar, pois estava dominado pelas terríveis imagens. Sendo educado, ele não desejava e nem a
tratou grosseiramente, mesmo diante de um forte desejo para vomitar.
Esforçando-se para não demonstrar sua fraqueza, usando uma grande
força de vontade, recompôs-se com dificuldade, mas de qualquer forma, Tomé, por instantes, se descontrolou.
Esperançosa e afável, Rachel aproximou-se inocentemente mais
um pouco dele, pensando que obteria sua simpatia. Seus passos, vacilantes a princípio, tornaram-se, com o passar dos segundos, mais
firmes. Por estar animada e excitada, caminhou com confiança em direção a Tomé, imaginando estar ele, como ela, pronto para lhe dar um
abraço. Entretanto, ele, ao contrário, continuava nauseado, invadido
que fora pelas imagens pavorosas que não saíam de sua mente. Imbuída de outros pensamentos e de imagens agradáveis, Rachel tinha
outros propósitos, apoiada e segura em suas fantasias, que eram opostas às de Tomé. Entusiasmada com suas imagens, aproximou-se um
pouco mais dele, enquanto sutilmente tentava encostar suas mãos nos
ombros de Tomé. Ele, preso à imagem repelente, ao ser tocado com
as pontas dos dedos frios de Rachel, assustado deu um salto para trás,
como se tivesse levado um choque inesperado. Naquele momento,
afastou-se apavorado com o contato.
As cenas que ocorreram depois desse primeiro ato do contato
físico foram deploráveis. Nenhum deles conseguiu ou teve coragem de
falar coisa alguma. Instalou-se um profundo silêncio, separando um
do outro. Um mal-estar difícil de tolerar dominou os dois, os olhos de
ambos se abaixaram, ficaram paralisados por minutos, fitando a areia
da pequena praia formada nas margens do rio.
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Durante alguns momentos que pareceram anos, os dois, fingindo examinar a areia branca, examinavam, na verdade, seus próprios
pensamentos e imagens. Ora um, ora outro desviava os olhos para as
águas claras e mansas do rio, tentando adivinhar, sem o conseguir, o
que se passava na mente do outro.
Um vento frio de abril despertou-os do pesadelo vivido. Levantaram-se e entraram no auto. Cabisbaixos, os dois nada mais falaram
sobre este triste episódio. Rachel, sorrindo tristemente, abandonou
Tomé diante da casa dele depois de uma despedida melancólica. Percebia que os planos cheios de esperança quanto a uma boa solução para
o futuro, como as águas do rio, foram ficando cada vez mais distantes.
Depois dessa terrível frustração, mais que nunca ela estava decidida a
eliminar de seus planos todos os homens existentes sob a face da terra.
Tudo dava errado.
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A proposta de Amvel
Mas uma série de acontecimentos inesperados, diria até impensados, surgiram na pacata cidade de Lumeeira, atuando diretamente
na solitária vida amorosa de Rachel. Não é com prazer que me lembro
desses fatos, entretanto creio que o leitor deve ficar ciente de toda a
história dessa infeliz mulher.
Tudo começou com um boato surgido entre os moradores da
cidade. A princípio, um leve rumor não confirmado, de que Amável,
um advogado e fazendeiro mais idoso, mas ainda na ativa e viúvo, estava interessado em encontrar-se e possivelmente casar-se com Rachel.
Amável morava sozinho. Ora ficava numa casa da rua Direita, quase no
final dela, ora ia para a fazenda e lá ficava até se cansar da total solidão.
Na velha casa da fazenda convivia harmoniosamente com a sujeira, as
pulgas, os percevejos, as cobras e outros bichos que ele tanto amava.
Amável gastava pouco, não tinha filhos e sua mulher morreu três
anos após o casamento, durante uma epidemia da gripe asiática. As razoáveis entradas de dinheiro, não muitas, bem como as poucas saídas
deste, facilitaram a compra da fazenda com o economizado, guardando o restante no banco. Como tinha algumas posses e era advogado, Amável era considerado rico na cidade e, portanto, bom-partido.
Como não conseguiu ter um filho, e imaginando poder morrer cedo
como sua mulher, externou seu desejo de ter um, por estar envelhecendo e não ter herdeiros diretos. Foi assim que, após observar Rachel
desfilando nas procissões, que ele jamais perdera, e fixado apenas nessa figura, imaginou um casamento com ela, ter um ou dois filhos, para
que seus bens não ficassem nas mãos dos irmãos, sobrinhos, primos,
muitos dos quais ele nem cumprimentava.
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Amável, segundo as informações, foi paquerador quando jovem.
Entretanto, entristecido após a morte de sua mulher, pouco a pouco foi desistindo de procurar uma nova companheira. Era conhecido
como muito exigente e desconfiado, denominado de “sistemático”, criticava a maioria das mulheres com as quais se encontrava. Essa sua tendência dificultava muito a escolha de uma ou de outra mulher. Mesmo
quando assistia às novelas, jamais deixava de recriminar a conduta das
mulheres do elenco. Amável se irritava com certas comportamentos e
também com as roupas usadas pelas artistas que representavam esta
ou aquela personagem. Pessoalmente, assisti Amável ficar irritado com
uma artista e gritar:
— É uma piranha! O bobo não sabe de nada. Se fosse comigo ela
ia ver...
Outras vezes a agressão era maior:
— Mulher nenhuma presta, é tudo sem-vergonha. Os homens
são uns coitados, uns bobos...
Após desabafar xingando as mulheres do mundo, Amável, lembrava de suas inesquecíveis e saudosas paixões, mulheres que não saíam de sua cabeça. Às vezes era obrigado a enxugar com as próprias
mãos, lágrimas que escorriam rosto abaixo, quando contava os casos
que tivera com várias mulheres que conhecera, a maioria delas casadas. Todas as mulheres, segundo Amável, traíam seus maridos.
Eu, que jamais testemunhei suas andanças, apenas ouvi histórias
contadas por ele ou pelos amigos. Sem mais dados, fui obrigado a
acreditar nelas. Com o passar dos anos, como continuava ouvindo os
mesmos casos de sempre, desconfiei que a verdade poderia ser outra. Comecei a supor que seus encontros amorosos eram fantasias, jamais fatos vividos e concretos. Nunca presenciei qualquer evento onde
Amável estivesse acompanhado de uma namorada, amante ou coisa
semelhante, a não ser uma única vez, quando ele ficou, não se sabe por
quê, noivo, tudo indica, arrumado por uma prima, três meses depois
da morte da sua esposa. A noiva escolhida causou-lhe uma impressão
inicial de ser uma boa pessoa, mas depois dos primeiros encontros, ao
ganhar a confiança do apaixonado Amável e estando mais à vontade,
ela fez dele gato-sapato. Esta era, de fato, uma mulher temível.
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Ela foi a única mulher com quem ele manteve contato por algum
tempo e, conforme meu conhecimento, ela não morava em Lumeeira,
mas em Juiz de Fora.
Amável saía para os restaurantes mais caros da cidade em sua
companhia, mas sua noiva levava sempre como acompanhante e convidado um “amigo”. Era ele quem dava as ordens e escolhia o lugar onde
jantariam, inclusive o menu. Ele contou-me, demonstrando descrença
nas mulheres:
— Fomos ao melhor restaurante da região e ele pediu lagosta.
Veio a comida. Ele não gostou e minha noiva concordou, achou que
não estava saborosa e empurrou o prato. Tivemos que ir a outro lugar
para almoçarmos, onde comemos camarão. Era sempre eu que pagava
a conta. Toda mulher é assim! - concluía Amável, generalizando sua
experiência com Dorinha.
Esse fato simples me fez pensar que sua experiência nessa área
não era tão grande como ele alardeava, pois sua ingenuidade foi gritante. Nunca consegui uma explicação para o seu medo de ser “passado pra trás”, bem como sua tendência a fantasiar e procurar inconscientemente mulheres capazes de tapeá-lo. Amável percebia, avaliava
e tratava as mulheres como aprendera a fazer com os animais na sua
fazenda. Via defeitos graves em todas: uma não servia, pois tinha os
dentes tortos, outra, um andar estranho, uma terceira descendia de
família de vagabundos. No mesmo momento em que Amável comentava seu desprezo pelas “piranhas”, sua face mudava ao se lembrar dela.
Tornava-se eufórico e parecia estar feliz diante das mulheres que desfilavam, uma após outra, em sua imaginação.
Quando chegou aos cinquenta anos, após rejeitar, segundo ele,
todas as pretendentes, começou, segundo meu diagnóstico de psicólogo amador, a delirar. A partir dos cinquenta anos, todas as mulheres que viviam na cidade estavam, dentro do seu delírio, apaixonadas
por ele. Elas lhe telefonavam durante o dia, à noite e de madrugada, conversando, convidando-o para encontros, passando trotes.
Algumas mandavam para ele correspondências secretas e difíceis de
serem decifradas.
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Nas ruas da cidade, quando ele saía de casa ou da fazenda, sempre havia uma mulher tentando namorá-lo. Ele caminhava na direção
dela e a moça em sua direção, entretanto, quando estavam se aproximando um do outro e o encontro parecia inevitável, ele se afastava
para tomar outra direção. Como tudo o mais ele justificava essa estranha conduta, argumentando:
— Ela estava há muito tempo me procurando, decidi ir atrás.
Ela me olhou e veio caminhando em minha direção, enquanto eu, por
outro lado, fui ao encontro dela. Ao me aproximar, lembrei-me que a
mulher era casada e achei melhor, para não criar problemas futuros
com o marido, desistir do que planejara.
Agora, mais velho, ele tinha como principal objetivo arrumar um
ou dois filhos para deixar sua herança. Não estava mais selecionando
uma mulher para viver com ele, procurava, sim, uma mulher para lhe
“parir” um filho. Foi então que Rachel entrou nos planos de Amável.
Conhecia-a há muitos anos, pois, como advogado, por diversas vezes
defendeu o pai dela, Jacó, em diversas ações trabalhistas. Identificando-se com ela, observava que tanto ela como ele estavam abandonados
pelos pretendentes da cidade. Foi assim que ele não teve receio em
comunicar sua opinião aos amigos mais chegados, de que havia escolhido, como se escolhe uma vaca, Rachel para com ela ter um filho.
A filha do prefeito prontamente foi procurada por seus parentes
interessados em casá-la, para estudar a proposta do advogado. Durante as diversas reuniões os parentes de Rachel, sem exceção, apoiaram
o casamento dela com Amável.
Inicialmente ela recusou, julgando-o um pouco velho e sem atrativos. Posteriormente, ponderando mais, após ser aconselhada por todos, além de perceber que não tinha muitas escolhas, decidiu aceitar,
principalmente depois do fracasso com Tomé.
Como sempre, os azares que circularam sempre em torno da vida
de Rachel retornaram: quando avisaram Amável que ela aceitara a proposta, este voltou atrás. Ele afirmou que ainda não se decidira, que teria
que pensar e examinar o assunto um pouco mais. Isso aborreceu muito
Rachel, que já havia imaginado seu casamento e até a festa que daria.
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Amável não sabia bem o que queria, mas desejava, de fato, mais
que tudo, ter um filho. Com essa ideia em mente, passou a examinar
com mais detalhes sua presa e com seu grande conhecimento e experiência de criador de gado, começou a duvidar da capacidade de
Rachel, com toda sua gordura e trinta e um anos, de boa parideira.
Após examiná-la, sem ser visto, atrás de árvores e de carros por diversas vezes nas ruas da cidade, ele desconfiou que ela teria problemas
com a gestação. Teve medo de nascer, em lugar de um menino bonito
e forte, uma menina feia e insubordinada. Se isso acontecesse, seu
objetivo fundamental não seria alcançado, pois não teria um herdeiro
macho, confiável e trabalhador. Confiando na sua especulação, Amável desistiu do plano. Ele estava interessado numa boa parideira, não
numa companheira. Este foi mais um episódio de fracasso na vida vazia
de Rachel.
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Uma terrvel deciso
Para piorar a vida de Rachel, fatos que a princípio não estavam
diretamente ligados a ela destruíram, em definitivo, seus sonhos amorosos com Tomé.
Zilda, a amante de Tomé, numa tarde fria e cinzenta de maio teve
um encontro casual na padaria do Sô Vitório com Teresa, uma respeitável senhora casada, mãe de cinco guapos rapazes. Nesse encontro
super-rápido houve inesperadamente uma rápida troca de olhares entre as duas mulheres que não se conheciam. A partir desse encontro,
nasceu uma forte amizade entre as duas. Outros encontros foram ocorrendo numa cidade aonde todos vão aos mesmos lugares.
Teresa, antes de se casar com Antônio, havia sido garçonete num
restaurante de uma cidade próxima a Lumeeira. Nessa ocasião, segundo consta, para aumentar seu salário, sendo bastante atraente saía com
um e outro freguês após o fechamento do restaurante. Depois que se
casou e mudou de cidade, nunca mais trabalhou fora de casa e também
abandonou esse tipo de comportamento, cumprindo seu papel de respeitável senhora da sociedade local.
A presença marcante e o charme de Zilda, somados à sua beleza,
fizeram renascer, nas profundezas de Teresa, instintos carnais, temas
relacionados a sexo, que estavam enterrados há vários anos. Teresa
ficou animada com a redescoberta, causadora de antigas e deliciosas
emoções e paixões, sempre entrelaçadas às memórias de outros encontros, por anos esquecidas.
Quando os olhares se cruzaram na padaria, imediatamente uma
onda de calor percorreu o corpo de ambas, já aquecido pelo calor dos
pães quentes que saíam dos fornos.
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Entusiasmadas, descobriram nesse instante uma fusão de almas,
uma identidade de propósitos, um arrebatamento intenso e maravilhoso que duraria por muito tempo. Recatadas por princípio, nenhuma
delas, naquele instante, se dirigiu à outra. Houve, ao contrário, um
profundo silêncio próprio do início das grandes paixões.
A partir dessa revelação, ainda que nenhuma tentasse encontrar
a outra propositadamente, por diversas vezes elas se viam quando se
cruzavam nas ruas. Sempre, quando ocorria o encontro, reapareciam
as palpitações, a falta de ar e os tremores, um desejo poderoso que
leva as pessoas a se ligarem, estados emocionais e corporais comuns
dos encontros afetivos.
As duas se fitavam disfarçadamente, pois receavam ser descobertas nessa investida proibida. Zilda olhava ternamente para Teresa
com seus olhos esverdeados e brilhantes, esboçando um leve sorriso.
Teresa, por outro lado, mais agressiva e ardente, deixando seus lábios
entreabertos, fixava seus olhos negros apaixonados, demonstrando
claramente seu encantamento e desejo. Aos poucos, as duas amigas
arrumaram motivos variados para se aproximarem. As primeiras conversas surgiram sem dificuldades. Teresa fazia bolos para vender e,
num desses encontros na farmácia do Lolão, quando comprava um
absorvente, iniciou-se um diálogo, a princípio nervoso e tímido, mas
preparando outros mais agressivos:
— Já comi um bolo que você fez. Estava ótimo. Você nem parece
que trabalha tanto... Está tão jovem e bonita!
Afinal, com muito custo, Zilda conseguiu iniciar a conversa que
daria frutos futuros:
— Ora, nem tanto... quem tá falando? Você é mais bonita e mais
jovem que eu. Estou um pouco acabada... sabe? não é? ... é a vida. Faço
bolos há muito tempo. Dizem que são deliciosos, retrucou Teresa, animada com a possibilidade imaginada.
— Claro, o que comi estava muito gostoso.
— Gostaria de fazer um para você, especial... você sabe... apareça
em minha casa... estou sempre lá, o dia todo.
— Irei, logo que puder. Meu dia não é de muito trabalho... sobrará um tempinho, principalmente para te ver.
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— Fico te esperando... Adeus, despediu-se Teresa, já sentindo
um calor por todo o corpo.
— Adeus, pode esperar-me. Zilda, ofegante, imaginava quando
e como seria o encontro.
A partir daí ficou fácil outras conversas e novos encontros. Não
foi difícil Zilda arranjar tempo e coragem para ir até a casa de Teresa
buscar o bolo ofertado, que seria feito com toda a mestria de uma
artista transbordando um imenso amor. O entusiasmo pela ideia de
fazer um bolo para Zilda produziu uma grande excitação em ambas.
Teresa, animada para mostrar sua habilidade, convidou sua freguesa
para assistir e ajudar na confecção.
Na cozinha da casa de Teresa as duas começaram a elaboração
do bolo esperado e carregado de outros simbolismos. Mas logo ao
ajuntar os primeiros ingredientes na elaboração do bolo, as duas não
resistiram à sedução mútua e enamoradas e enlevadas se abraçaram
por alguns segundos. O cheiro do fubá nas mãos e roupas de Teresa
se misturava ao aroma adocicado que emanava do corpo de Zilda e
com o suor produzido pelo calor de ambas. Essa mistura de odores
recém-criados fez aumentar a atração já existente. Estava-se iniciando
um grande romance, que daria o que falar aos habitantes da cidade,
e que repercutiria, indiretamente, na vida de Rachel.
A partir desse primeiro abraço na cozinha, as portas, antes fechadas entre elas, se abriram. As duas, enamoradas, passaram a se
encontrar com frequência. A princípio Zilda ia à casa de Teresa ou
nos pontos comerciais da cidade. Mais tarde, diminuindo o medo,
Teresa passou a ir também à moradia de Zilda, perto da rodoviária, na
região pobre da cidade. Para justificar suas idas junto ao seu marido
e, por que não, para outros moradores curiosos, Teresa alegou que
decidira, após se envolver numa religião nova que chegara à cidade,
ajudar os necessitados, bem como os marginalizados. Portanto, nada
mais certo do que iniciar sua peregrinação, sua ajuda aos necessitados, com a prostituta, com a mulher mais discriminada, mas também
mais procurada pelos homens da cidade, para receberem dela favores e prazeres.
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Os encontros, apoiados nessa explicação, não provocaram, a
princípio, preocupação entre os moradores produtores da ordem moral de Lumeeira. Ninguém imaginou nada de errado naquelas visitas
cada vez mais frequentes. Era, no máximo, uma caridade esquisita.
Mas as duas, cada vez mais envolvidas com a nova paixão e orientação
sexual, perderam o medo, não apenas o medo interno, existente nelas
mesmas, mas também o externo, a reprovação popular. Encorajadas e
estimuladas pela forte paixão existente em seus organismos, as duas
decidiram, sem receio, exibir suas verdadeiras identidades sexuais.
Aos poucos, mais apaixonadas e desfrutando dos prazeres dos
encontros, vencidos os medos delas e da população, elas tornaram-se
mais visíveis, ou seja, passaram a se encontrar, sem se esconderem
diante de todos, não mais se preocupando, possivelmente habituadas
com os mexericos que começaram a ser espalhados em todas as conversas. Livres do medo inicial, cada um mais animada que a outra, as
duas começaram a fazer viagens juntas, indo às cidades vizinhas passear, à capital fazer compras ou mesmo à praia para descansar.
O marido de Teresa desconfiou da estranha amizade ou catequização, como ela dizia. Mas sendo um homem pacífico e também político, evitou tomar medidas mais enérgicas, onde poderia “entornar
o caldo” de uma só vez. Assim, permaneceu calado e quieto, para “o
bem dos filhos”, como mais tarde explicava aos mais íntimos.
Numa reunião marcada e exigida pela sua família, pois todos
na cidade já comentavam a amizade não aceita, Expedito argumentou que uma separação, uma proibição dos encontros, ou ainda uma
expulsão de casa provocaria mais escândalos que os já existentes. Tal
conduta não resolveria o problema e criaria outros. Para ele era preferível nada fazer e esperar, que agir precipitadamente. Além disso,
se ele expulsasse sua mulher de casa, como ela nada sabia fazer além
de bolos de fubá, prontamente ela estaria na miséria sem sua ajuda
e consequentemente seria um desastre para os filhos e, sem dúvida,
para ele.
Depois vim a saber que Expedito, nas primeiras idas de Zilda a
sua casa, imaginou que ela estivesse interessada em um de seus filhos.
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Ficou radiante com estas visitas, ao imaginar que sendo Zilda uma perita na arte de amar, seu filho estaria bem encaminhado na vida sexual
e poderia se preparar para casar com uma virgem mais tarde.
Com o passar do tempo, o romance foi se estreitando e seu
clímax foi atingido nas vésperas das festas da cidade. Zilda e Teresa,
embriagadas de amor, após terem dado o primeiro, o segundo e terceiro beijo, se apaixonaram de forma violenta uma pela outra. Não
mais bastavam as saídas e viagens juntas, isto era pouco. Elas desejavam passar o dia inteiro trocando carícias, pois a atração era intensa.
Começaram a dormir por diversas vezes juntas, ora numa casa, ora
na outra. As desculpas para isso eram tolices que ninguém na cidade
acreditava mais, mas que foram sendo aceitas como um fato inevitável
pela sociedade local. Às vezes as duas falavam que Zilda foi ajudá-la na
fabricação dos bolos devido a muitas encomendas, por isso ela teve
que dormir na casa de Teresa. Noutra ocasião, a desculpa era a tempestade que caiu e impediu Teresa de voltar para sua casa, que ficava
no alto de um morro. Outras vezes ainda era para fazer companhia a
Zilda, que estava doente, e como esta morava só, precisava de uma
alma amiga e caridosa para ampará-la. As doenças, as chuvas e o trabalho se repetiram por muitas e muitas vezes. Tudo isso ajudava as duas
a ficarem juntas apesar das pesadas críticas veladas dos moralistas.
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A queda final do namoro
inexistente
O mês de junho sempre foi um mês de festas em Lumeeira, não
só as juninas, sempre muito comemoradas, como as cavalgadas e também o circo de touradas. Além disso nesse mês era comemorado o
aniversário da cidade e de Sá Maria, bisavó de Rachel, uma senhora
com quase cem anos de idade. Nessas festas, que duravam vários dias,
bebia-se e comia-se em exagero. Todos os moradores compareceram a
esses festejos que se realizavam tanto nas ruas como nas casas de famílias. Além dos habitantes normais da cidade, os ex-lumeeirenses ausentes retornavam ao município nesse período para reencontrar antigos
amigos e parentes. Nas festas familiares, como não existiam porteiros
ou convites, qualquer pessoa podia entrar, beber e comer à vontade.
Foi durante estes festejos alegres e unificadores das pessoas, que a vida
amorosa de Rachel desabou de vez.
O aniversário da cidade caiu numa quinta-feira e as comemorações se estenderam por todo o fim de semana. Todos beberam nas ruas
e nas casas. Entre os alegres festejadores estava Tomé. Como o “homem” de Zilda, percebia que ela há algum tempo mostrava-se desinteressada por ele. Tomé, como outros moradores da cidade, tinha conhecimento da estranha e forte amizade existente entre Zilda e Teresa.
Ele, para não sofrer diante da verdade, tentava assimilar esses
fatos como motivados por outros objetivos diferentes do que estava
sendo falado. Aumentavam as brigas entre Zilda e Tomé. Este, evitando
descobrir o que realmente estava ocorrendo, imaginava, para seu conforto, tratar-se de rusgas passageiras.
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Mas os fatos eram outros e só alguns dias depois ele foi obrigado
a enfrentar a terrível verdade da qual fugia.
Tomé estava perdendo seu nicho para Teresa e, além disso, seus
ganhos diminuíram, não só porque Zilda tornou-se menos caridosa
para com ele, mas também pela diminuição dos fregueses da amiga. As
brigas, que foram se tornando mais frequentes, durante as comemorações do aniversário da cidade aumentaram muito. Geralmente nessas
ocasiões as pessoas ficam mais alegres, mais desinibidas e agressivas,
talvez motivadas pelo barulho continuado, as noites maldormidas, os
encontros frequentes com os mesmos objetivos, tudo regado a bebida,
o que excitava as pessoas e as tornavam mais corajosas e agressivas.
Tomé, envolvido nas festas e bebedeiras, tomou mais coragem
para reagir às gozações que recebia frequentemente com respeito à amizade da sua concubina. Decidido a colocar a limpo os fatos, resolveu
dar uma incerta na casa de Zilda para tirar satisfações acerca de sua conduta. Para isso ele bebeu mais pingas que devia e estas aumentaram sua
coragem. Percebendo que já estava no ponto para uma conversa definitiva, procurou primeiramente Zilda nos lugares possíveis e costumeiros
onde podia ser encontrada. Não a achando, foi até sua casa. Com dificuldade para andar, mas convicto quanto aos objetivos, ao encontrar a
porta trancada postou-se próximo desta, colocando seu ouvido na fina
porta de madeira que dava para entrada do pequeno quarto.
Não esperava, nem desejava escutar o que ouviu: sussurros de duas
vozes femininas foram percebidos e sonorizados por um monótono ranger de catre velho de madeira, uma melodia que Tomé conhecia muito
bem, pois vivera esse fundo musical. Tonto, se desequilibrando, bateu
sua cabeça na porta. Nesse momento fez-se um silêncio profundo dentro
do quarto. Tomé decidiu não bater à porta e entrar, usando para isso a
enorme chave de ferro que tinha com ele, que só após muito procurá-la
encontrou no seu bolso. Entrou no quartinho, tonto de ódio e de álcool.
Diante dele, visualizou o que temia mas não desejava: as duas
amigas amedrontadas e abraçadas no leito. Ele lembrou-se do tempo
que esteve, por diversas vezes, recebendo aquele corpo quente e carinhoso de Zilda e que agora estava sendo doado a Teresa.
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Nesse instante, Tomé perdeu a cabeça, iniciando uma agressão e
desabafo, descontrolado e sem direção. Deu pontapés no velho catre,
que foi prontamente partido em vários pedaços de madeira carcomida
pelos cupins. Em seguida gritou e xingou todos os nomes que sabia.
Esperou por uma desculpa de ambas, uma explicação qualquer, mesmo que fosse idiota, para tranquilizá-lo. Queria ouvir qualquer justificativa para o acontecido, precisava dela. Não obteve o resultado esperado. Nenhuma delas esboçou uma reação.
Levantaram-se calmamente, nuas, mas demonstrando uma tranquilidade própria dos que sabem o que querem. Confessaram, com
firmeza, que se amavam e que isso não era da conta dele, sem aceitar
a briga desejada por ele. Vestiram-se com calma e saíram abraçadas,
diante dos poucos moradores que assistiram à cena naquele sábado
escuro, triste e sereno de Lumeeira. Tomé se desesperou diante da
indiferença da amada.
Saiu confuso. Caminhou com dificuldade pela rua esburacada.
Bebeu no primeiro boteco encontrado um pouco mais, sem saber o
que fazer. Sem rumo aproximou-se do rio que cortava a cidade. Cambaleando, com extrema dificuldade, dirigiu-se até o meio da ponte que
atravessava o rio. Ali ficou parado. A cena vivida há pouco, se repetia em
sua cabeça: Zilda abraçada com Teresa e indiferente ao seu sofrimento. Estava só, sem saída. Sendo assim só lhe restava acabar com tudo
aquilo, que parecia não ser a solução desejada por ele. Apenas uma
alternativa parecia ser a efetiva para acabar com seu sofrimento: pular
nas águas do rio e se afogar. Assim ele ficou por minutos, pensando em
pular e acabar com todo aquele beco sem saída onde tinha entrado.
Na velha ponte da cidade, Tomé olhou para baixo, para as águas
tranquilas do rio, imaginando como seria a vida após esta atual que
estava próxima do fim. Bastaria um pouco de coragem para pular e
terminar seu sofrimento. Sua cabeça estava confusa e pesada, era difícil
para ele tomar qualquer atitude, entre elas o suicídio.
Distraído nas suas divagações, assustou-se quando foi despertado pela voz estridente de Rachel que, ao passar ali em direção a sua
casa, o viu.
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Na casa da avó de Rachel continuavam os festejos do aniversário
ocorrido na quinta-feira. As festas de aniversário em Lumeeira duravam vários dias, começando dias antes da data a ser comemorada e
terminando dias após esta. Geralmente as visitas que vêm de outras
cidades se hospedam na casa do aniversariante e lá permanecem por
algum tempo. Os hóspedes, sem coisa melhor para fazer, bebiam e
comiam e, nos intervalos, comentavam a vida alheia.
Não foi difícil para Rachel conduzir Tomé para a casa da sua avó.
A conversa que travavam não foi compreendida por Tomé. Este, atordoado e apalermado como um sonâmbulo, seguiu cambaleando com
Rachel, acompanhando-a sem saber para quê e para onde se dirigia.
Nos momentos de intensas emoções ficamos à mercê de qualquer estímulo externo, seguimos qualquer ordem sem examiná-la,
pois as ideias internas diretoras da conduta estão prejudicadas. Foi o
que ocorreu com Tomé. Ele entrou na casa da avó de Rachel amparado por ela, sem saber onde estava chegando e para que fora ali. Ela,
tendo percebido a incapacidade de Tomé para andar, sentiu coragem
para passar seus grossos braços, com firmeza, embaixo dos braços
musculosos de Tomé e assim impediu que este tombasse no chão.
Este contato mais íntimo, somado ao odor do perfume adocicado que
saía do corpo de Rachel, o mesmo usado por Zilda, foi a gota d’água
para a tragédia que iria ocorrer em seguida.
As recordações deliciosas foram despertadas com intensa emoção na mente embriagada de Tomé. Ele se lembrou dos braços lisos,
compridos e sedosos de Zilda entrelaçados no seu corpo e do que
acabara de ver no quarto do barracão. Nervoso, confuso pela embriaguez e pelos acontecimentos, sem orientação, carregando uma mistura contraditória de desejo e de ódio, ele, desvencilhando-se de Rachel, olhou-a firmemente apesar de não enxergá-la claramente. Nesse
momento sentiu um branco em sua cabeça, rodopiou em torno de
uma cadeira, segurando-se nas costas desta para evitar espatifar-se no
chão diante das visitas que enchiam a sala da casa.
Tomé olhou para Rachel e viu agora à sua frente Zilda, sorrindo
com meiguice para ele.
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Tomou coragem e, com sua voz enrolada e trêmula de bêbado
disse para os presentes, enxergando o espectro de Zilda diante dele:
— Eu te adoro! Por que faz pouco de mim? Não gosta mais de
mim? Você é a mulher, é a mulher que sempre quis, a dos meus sonhos. Amo você mais que tudo, não me abandone. Tente gostar de
mim. Preciso de você. Farei tudo que você desejar para que possa viver comigo. Quero ainda ter filhos com você. Prefiro morrer que ficar
sem sua companhia. Não me abandone, eu lhe peço, eu lhe imploro.
Nesse momento ia ajoelhar-se diante de Rachel, mas foi impedido devido ao abraço desta, diante de todos, mais para evitar sua queda do que como atração. Nesse momento Tomé não mais controlava
suas palavras. Elas eram dirigidas por seu entusiasmo e pelo desespero de perder Zilda. Impulsos não controlados, não-censurados, saíam
livremente como uma enxurrada que ia carregando tudo que encontrava à sua frente. Sua fala era produzida sem consciência e também
automaticamente. Trabalhando com suas imagens mentais ilusórias e
não com a realidade externa, percebia uma mistura confusa de representações mentais agradáveis e dolorosas de Zilda, do que viu e que
sua consciência não queria admitir. Estas imagens se misturavam e ele
continuava com seu discurso diante de todos os parentes espantados
com a inesperada declaração de amor nunca imaginada:
— Minha amada: sempre fui um apaixonado por você, eu a desejo ardentemente. Sempre quis você ao meu lado. Entretanto, não
pude cuidar de você e criar uma família como queria. Hoje, mais corajoso, desabafo o que vai dentro de minha alma egoísta. Você merece
ter uma vida melhor que esta que leva.
Nesse momento, Tomé tomou as mãos de Rachel e as beijou
com ternura. De fato as mãos de Rachel sempre foram bonitas, talvez
a única parte do seu corpo que pudesse atrair alguém. Mas ele prosseguiu embriagado:
— Diante de todos, que servirão de testemunhas nesse dia maravilhoso, peço sua mão em casamento. Sei, somente agora, que sou
capaz de fazê-la feliz até que a morte nos separe.
A cada momento, a confusão de Tomé crescia mais.
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Quanto mais ele falava impulsivamente, mais animado ficava.
Quando terminou de pronunciar suas últimas palavras, não distinguia
mais ninguém. Começou a ver vultos sem forma, estranhos, dançando à sua frente. Num certo momento, quando D. Dadá, a mãe de Rachel, passou diante dele caminhando pela ampla sala para levar uma
xícara de café para seu marido, ele a agarrou com força, derramou
todo o café no assoalho e lhe deu um beijo no rosto que resvalou pela
sua boca, onde faltava um canino e de onde saíram gotículas de saliva
misturadas ao álcool. Esta, orgulhosa com o carinho, mas ao mesmo
tempo tendo que mostrar vergonha para aplacar o ciúme do marido,
olhou, fingindo estar desconcertada, para Jacó, que tudo observava e
até aquele momento achava graça no que via e ouvia.
O discurso foi interrompido pelas palmas e pelo choro de Rachel, que, emocionada e encantada, teve que se assentar após quase
desmaiar de satisfação. Afinal o grande dia havia chegado. Seu pai, que
já tinha desistido do casamento, reanimou-se e imaginou naquele instante ajudá-la, dando-lhe um novo dote, talvez uma casa para morar, já
que o pretendente nada tinha.
Infelizmente as coisas não ocorreram como todos esperavam.
Como disse no início da história, Rachel sempre foi uma azarada.
Novamente o azar caiu em sua cabeça. Foi aí que aconteceu o pior.
Como sempre as alegrias não duram por toda a vida. Esta durou poucas horas.
Tomé, após terminar seu discurso inflamado, sem saber o que
mais devia fazer, ficou pálido e decidiu assentar-se, amparado por sua
nova namorada e pelos familiares de Rachel. Logo que ele deu os primeiros soluços, todos perceberam que ele estava prestes a vomitar e
rapidamente o conduziram ao banheiro mais próximo. Rachel, munida
de uma toalha muita limpa, bordada com desenhos imitando maçãs
vermelhas, enxugava sua testa após cada golfada cheirando a álcool,
que saía do seu estômago. Uma vez limpado o estômago, foi lhe servido um café forte e novo. Com sua melhora parcial, Tomé foi levado de
carro para casa. Lá chegando, entregue a seus pais, foi colocado na sua
cama, onde adormeceu sem tirar a roupa e os sapatos.
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A manh seguinte
Tomé acordou no dia seguinte com uma bruta ressaca, sua cabeça parecia que ia estourar. Tonto, confuso e principalmente sem se
lembrar de nada do que ocorreu na noite anterior, ele, por mais que
se esforçasse, lembrava-se apenas da cena de Zilda e Teresa juntas, de
sua ida ao rio, de sua ideia de se matar. A partir dessas imagens nada
mais lhe vinha à cabeça, houve um branco, um esquecimento (uma
amnésia das cenas mais recentes, como dizem os médicos) total da
cena na casa dos avós de Rachel.
Após tomar água e caldos diversos, bem como um bom banho
frio, Tomé resolveu sair e reencontrar Zilda, talvez pela última vez,
para tomar satisfações acerca de sua conduta. Ela não lhe saía da cabeça. Não era possível terminar daquela forma, precisava saber melhor
o que ocorrera, saber mais detalhes. Fez com capricho sua barba, ajeitou seus cabelos com um creme que encontrou, colocou uma roupa
limpa, bem passada, a que agradava à sua amada nos velhos tempos
e calçou suas botas novas. Por fim buscou no fundo da gaveta um revólver, colocou as seis balas no tambor e o escondeu na cintura, por
baixo da calça. Estava disposto a tudo. Ele sempre se preparava com
cuidado para os grandes acontecimentos, fossem tristes ou alegres.
Ele estava até bonito com sua face avermelhada devido à bebedeira da
noite anterior. Hoje pensava resolver aquela relação de anos.
O mundo dava voltas e ocorriam fatos inesperados. Não encontrou Zilda na sua casa, por isso caminhou firme até a casa de Teresa.
Iria enfrentar a sociedade local, colocar uma pedra naquela vergonheira. Ele brigaria com as duas, Zilda e Teresa, caso fosse preciso e,
por que não, com seu marido e com seus filhos.
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Estava sem medo algum, decidido a fazer qualquer coisa para
escapar daquele mal-estar que o invadiu, talvez ficasse menos irritado
matando um, dois ou mais. Precisava dar um basta em tudo aquilo.
Era domingo. Tomé caminhava na rua deserta sob um sol claro
e morno das tardes de junho, que convidava as pessoas a saírem de
suas tocas. Entretanto, devido às festividades próprias daqueles dias, a
maioria das pessoas estava descansando na parte da tarde e só sairiam
no início da noite. Ao longe Tomé visualizou Rachel saindo da casa de
Teresa, exatamente para onde ele se dirigia à procura de Zilda. Ela trazia, embrulhado na sacola do armazém, um bolo de fubá.
Seu primeiro pensamento foi fugir, pois ele só tinha um propósito, passar seu caso com Zilda a limpo. Já era tarde para se afastar, pois
Rachel estava muito próxima e mostrava, no seu rosto gordo e achatado, o encantamento peculiar dos namorados apaixonados. Tomé, tenso, tendo seus pensamentos carregados de ódio, não percebia a alegria
estampada no rosto de Rachel. O encontro, inevitável por sinal, durou
alguns minutos. Pela primeira vez na vida, entusiasmada com o discurso da noite anterior, tomou a iniciativa da conversa. Pensando que
ele iria continuar a agradá-la e lhe confessar ainda mais o seu amor,
puxou-o pelo braço com confiança e foi lhe dizendo sem medo:
— Que bom te encontrar! Está atrás de mim? Vim aqui buscar
este bolo de fubá que pedi à Teresa para fazer só para nós. Vamos para
minha casa. Não consegui dormir esta noite pensando no que você
disse. Levantei-me renascida. Ontem foi o dia mais feliz de minha vida.
Não sabia que você me amava tanto assim! Eu desconfiava... Sempre te
amei. Nunca namorei ninguém por sua causa, sou toda sua. De qualquer modo valeu a pena esperar, você é tudo para mim. Meus pais também gostam muito de você. Não sei o que faria se você não existisse.
Tomé, estupefato com o que ouvia, não entendia nada. Tinha ódio
de Teresa e de seus bolos. Tentava de todos os modos compreender o que
a levou a falar daquele modo tão diferente do usual. O que teria acontecido? Buscou alguma relação da briga com Zilda, o seu encontro com Teresa. Nada lhe vinha à cabeça. Tentou interpelá-la, para compreender, mas
foi em vão, pois Rachel, entusiasmada com os fatos vivenciados, confiante
no que aconteceria e vendo com clareza, continuava:
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— Esta noite só pensei no nosso casamento, na festa que meu
pai vai nos dar, na comidaria e nos filhos que teremos. Quantos
filhos você quer que eu lhe dê? Um deles terá o seu nome, Tomézinho.
Vai ser tão bonitinho como você. Hoje você está lindo com esta bota.
Vamos comemorar nosso namoro comendo esse bolo, mas antes vamos tomar um sorvete, pois estou precisando refrescar. Estou quente
por dentro, meu querido, depois vamos para casa. Mamãe chamou
todos os primos aqui presentes para lanchar e celebrar o nosso compromisso de casamento. Que maravilha! Você me dá tanta felicidade e
alegria! Tomé, você sabe que sou louca por você?
Rachel não conseguia parar de falar, repetia sempre a mesma
ideia, entusiasmada com o futuro casamento. Tomé, por outro lado,
sem entender, emudeceu. Entristecido com o que acontecia e imaginando ações totalmente diferentes das que ouvia, começou a pensar
como escapar daquela situação embaraçosa e incompreensível o mais
depressa possível. Caminhou até a sorveteria e pediu um sorvete para
Rachel. Não quis nada além de um copo de água para apagar a ressaca que ainda continuava. Estava cabisbaixo e continuava em silêncio. Depois, sempre ouvindo Rachel falar de forma desconexa, os dois
dirigiram-se para a casa de Rachel no fim da rua principal.
Os parentes estavam reunidos por toda a enorme casa. A conversa não era outra a não ser o namoro de Rachel. Com sua chegada fezse silêncio e criou-se uma expectativa. Esperava-se um novo discurso
inflamado de Tomé, uma nova e ousada declaração, já que a barreira
fora rompida. Entretanto, para decepção de todos, nada aconteceu.
Viu-se um Tomé tímido, muito diferente da noite anterior, medroso,
encolhido num canto sem saber o que fazer, ou melhor, preparandose para escapar daquela situação embaraçosa. Tomou desajeitadamente um café forte para melhorar sua mente adormecida. Todos sorriam
para ele, lhe dando os parabéns. Tomé, sentindo medo de tudo aquilo, apressado para se livrar daquele ambiente incompreensível, alegando um recado que esquecera de dar a sua mãe, largou o grupo
logo que pôde. Rachel levou-o até a porta de saída e despediu-se dele
carinhosamente, pegando delicadamente em suas mãos e ameaçando
lhe dar um beijo que não se concretizou.
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Em seguida, ela confirmou com Tomé seu retorno à noite para
iniciar a primeira e esperada noite dos namorados e comer o bolo
especial feito por Teresa. Toda a grande família esperava ansiosa por
este encontro.
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Fugindo do incompreensvel
A cada minuto, Tomé mostrava-se mais confuso. No caminho
para casa, ao passar pela rodoviária teve uma ideia que acabou se
concretizando. Na verdade ele não tinha nenhum recado para dar a
ninguém. Na rodoviária Tomé imaginou uma saída para ele. Tramou
um plano que resolveria seus problemas com Zilda e Rachel de uma
só vez. Parou, tomou mais um copo d’água para dar tempo de pensar
e decidir. Sua garganta estava seca. De repente, como que aliviado
pelo seu pensamento, comprou uma passagem, ainda para aquele
fim de tarde, para a capital. Eram quatro horas, viajaria às seis horas,
daria tempo.
Chegou apressado e nervoso em casa, já sabia o que fazer. Contou a seus pais que precisava viajar para a capital naquele dia. Um
amigo lhe falara acerca de um emprego que, para consegui-lo, era necessário pressa, isto é, precisava estar na cidade segunda-feira cedo,
senão outro o pegaria. Seus pais ouviram tudo sem desconfiança.
Ajudado por sua mãe, arrumou sua mala rápido, dizendo que o endereço onde ele se hospedaria seria dado quando encontrasse um lugar
definitivo para ficar. Antes, pediu um pouco de dinheiro emprestado
para passar um mês até receber o salário que ganharia na capital.
Chegou à rodoviária um pouco antes de o ônibus partir. Escondeuse como pôde para que ninguém o visse e perguntasse alguma coisa.
Não encontrou, felizmente, conhecido algum. As ruas agora começavam a encher-se de pessoas, procurando posições melhores para
assistir aos cantores que se apresentariam naquela noite na praça da
cidade.
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O ônibus saiu vazio e no horário marcado. Lentamente foi deixando a cidade, passando em frente à casa de Rachel. Tomé pôde
visualizar, dentro desta, uma grande quantidade de visitas que lá estavam, possivelmente esperando a comemoração da festa do início
de namoro e do futuro casamento. Ninguém felizmente virou-se para
observar o ônibus que passava vagarosamente pelas ruas onde as pessoas caminhavam despreocupadas. Perplexo ainda com a virada dos
acontecimentos, Tomé olhou, pela última vez, bem ao longe, fitando
o casebre onde morava Zilda. Despediu-se dela com duas lágrimas
sentidas nos olhos. A partir desse dia, Tomé desapareceu de Lumeeira por quinze anos.
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Anos depois
A história de Rachel não termina nesse ponto. Jacó foi eleito
prefeito da cidade pela quarta vez. D. Dadá está caduca, acometida da
Doença de Alzheimer e não reconhece mais ninguém. Maria, já com
45 anos, continua esperando o caminhoneiro, que ainda não retornou. Tomé só voltou a Lumeeira quinze anos após esse fato. Estava
casado e com três filhos. Teresa rompeu com o marido e foi morar em
definitivo com sua amiga Zilda. As duas compraram a padaria de Sr.
Vitório, expandido-a como confeitaria. Estão felizes e ninguém mais
na cidade comenta essa amizade. Rachel sofreu amargamente no primeiro ano de desaparecimento de Tomé. Entretanto, após esse período, reagiu bem à perda, ao receber a ajuda do novo padre da cidade.
Depois de várias reflexões, decidiu ir para o Convento das Carmelitas.
Hoje está feliz, comungando o amor divino. Em paz com os homens,
espera permanecer ali enquanto viver...
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