Dissertação - Universidade Federal Fluminense
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Dissertação - Universidade Federal Fluminense
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA O fenômeno dos Blogs Policiais Mestrando: Daniel Morais Angelim Orientador: Prof. Dr. Antônio Rafael Barbosa 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA O FENÔMENO DOS BLOGS POLICIAIS DANIEL MORAIS ANGELIM Dissertação submetida à avaliação, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia junto ao no Programa de Pós-Graduação em Antropologia, do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ Janeiro de 2011 2 Ficha Catalográfica Angelim, Daniel Morais, 2011 O fenômeno dos Blogs Policiais – Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2011 Orientador: Antonio Rafael Barbosa Dissertação (mestrado) - Universidade Federal Fluminense – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia 1. Antropologia e Polícia, Internet e redes virtuais, Disciplina e hierarquia, História e formação policial. 3 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA DANIEL MORAIS ANGELIM Dissertação submetida à avaliação, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia, no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. Banca Examinadora: ___________________________________________ Prof. Dr. Antonio Rafael Barbosa – Orientador ___________________________________________ Profª. Dra. Ana Claudia Cruz da Silva Universidade Federal Fluminense ___________________________________________ Profª. Dra. Silvia Ramos de Souza Universidade Candido Mendes 4 Aos meus pais, Milton e Maria. Às irmãs Isabel e Letícia e às sobrinhas Dani e Jú. Por todo o amor 5 RESUMO O presente trabalho é fruto de uma pesquisa etnográfica que teve como foco os Policiais Militares, que em sua maioria vivem no Estado do Rio de Janeiro, e que editam blogs sobre segurança pública. Pesquisei, em uma perspectiva antropológica e histórica, a trajetória e as aspirações deste grupo social específico, assim como os usos e o desenvolvimento do instrumental tecnológico que serve como meio para divulgação de seus enunciados e posições políticas. Neste sentido, explicito práticas, visões de mundo e perspectivas dos agentes de segurança, relacionando-as com o complexo contexto em que eles estão inseridos. Desta forma, espero contribuir na discussão acerca do que é hoje o campo da segurança pública no Brasil. Palavras chave: Antropologia e Polícia, Internet e redes virtuais, Disciplina e hierarquia, História e formação policial. 6 ABSTRACT The present work is the result of an ethnographic research that had focused on the Military Police, who mostly live in the State of Rio de Janeiro and edit blogs about public safety. The research, prepared in a anthropological and historical perspective, is about the trajectory and aspirations of this particular social group, as well as the uses and development of technological instrument that serves as a tool for dissemination of its statements and political positions. In this way, this work explicit practices and the world views and perspectives of security agents, combined with the complex context they live. Thus, I hope to contribute to the discussion of what is now the field of public security in Brazil. Key words: Police and Anthropology, Internet and virtual networks, discipline and hierarchy, history and police training. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................10 O interesse pelo tema.......................................................................................................10 Construindo o objeto de pesquisa ...................................................................................11 Metodologia.....................................................................................................................16 Recentemente, o programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul lançou um número de sua revista, Horizontes Antropológicos (vol.10 nº.21 Porto Alegre Jan./Jun. 2004), dedicado somente a pesquisa antropológica feita na internet. Este material me mostrou como o tema ganhava importância para a antropologia. .............................................................17 CAPÍTULO I...................................................................................................................25 HISTÓRICO E FORMAÇÃO DA CORPORAÇÃO POLICIAL..............................25 1.1 – Breve histórico da formação da Polícia Militar no Brasil..................................25 1.2 – A Polícia no Rio de Janeiro: um breve histórico do tempo do Império até o período atual................................................................................................................26 1.3 – O Sistema Jurídico Brasileiro e a relação com a formação da polícia ..............35 1.4 – Os processos de administração de conflito no Brasil.........................................41 1.5 – A organização da Polícia Militar........................................................................44 1.6 – O regulamento disciplinar..................................................................................47 CAPÍTULO II..............................................................................................................52 AS REDES VIRTUAIS E A BLOGOSFERA POLICIAL.........................................52 2.1 – Um breve contexto da cibercultura e a internet .................................................52 2.2 – Os blogs..............................................................................................................55 2.3 – Os blogs como meio de comunicação e informação..........................................57 2.4 – O Twitter............................................................................................................61 2.5 – Dados sobre a Blogosfera e a Twittosfera Policial ............................................64 CAPÍTULO III................................................................................................................71 ANÁLISE DOS POSTS..............................................................................................71 3.1 – A repressão aos Blogs e aos Blogueiros ...........................................................71 3.2 – A transição: a mudança do Modus Operandi no controle e repreensão institucional ................................................................................................................84 3.3 – Novos temas debatidos pela Blogpol.................................................................94 8 3.3.1 – A formação do Policial .................................................................................102 3.3.2 – Política partidária e eleitoral, a polícia e a segurança pública.......................113 3.3.3 – Política salarial e a PEC 300.........................................................................127 3.4 - Denúncias de corrupção: o caso do @bocadesabao..........................................134 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................140 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................145 9 INTRODUÇÃO O interesse pelo tema Antes de tratar dos assuntos referentes à metodologia, a trajetória e as escolhas que fiz nesta pesquisa, parece-me importante, nessa introdução, utilizar algumas linhas para descrever como surgiu meu interesse pelo tema e porque ele me parece relevante para a atual discussão sobre segurança pública. O despertar da minha curiosidade sobre o tema da pesquisa tem relação intima com o início da minha trajetória profissional, a partir do ingresso no Poder Executivo de Niterói, como assessor da Subsecretaria Municipal de Direitos Humanos (SSDH). Esta Subsecretaria estava vinculada a antiga Secretaria Municipal de Segurança, que no inicio de 2005 – por uma reforma administrativa – recebeu o nome de Secretaria Municipal de Segurança e Direitos Humanos (SMSDH). Esta nova redistribuição institucional teve como consequência uma aproximação do “pessoal dos direitos humanos”, do qual eu fazia parte, com os policiais que compunham a equipe da Secretaria de Segurança. A SMSDH foi chefiada, durante toda a gestão do Prefeito Godofredo Pinto (2004 – 2008), pelo Coronel PM Hélio Luís de Azevedo Neves. Junto com ele, foram nomeados para o comando da secretaria outros dois tenentes coronéis e dois capitães da Policia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ). Durante estes quatro anos, minha convivência com todos estes oficiais era praticamente diária. Foi a partir da observação da dinâmica relacional estabelecida entre eles – do meu ponto de vista, intrigante e sui generis - que me interessei em entender melhor a Polícia Militar. Não me interessava estudar a corporação de um ponto de vista institucional ou 10 mesmo da sua história. O que me desafiava era entender os seus comportamentos e os valores por eles compartilhados. Era curioso observar como aqueles homens, que mantinham uma amizade próxima há mais de vinte anos, se tratavam em todos os momentos, desde as ocasiões mais formais e até as mais descontraídas, com toda a cerimônia e deferência, refletindo uma relação fundada na disciplina e na hierarquia. Percebia que tais valores não eram colaterais ou secundários, mas, ao meu juízo, estruturantes daqueles relacionamentos. E organizavam a vida daqueles homens. Recordo que via isto tudo com estranhamento. Hoje eu reconheço que este momento foi decisivo para as escolhas que eu faria mais tarde. Uma vez que essa aproximação com o universo da polícia, além de ter sido a fagulha que despertou a minha curiosidade antropológica, continua sendo importante para a abordagem do meu objeto de pesquisa. Depois de iniciar a trajetória no PPGA, como aluno do programa de mestrado, minha iniciativa foi relacionar estas primeiras referências com alguns aspectos do processo de construção do ethos1 do Policial Militar. Interessava-me relacionar e problematizar algumas perspectivas do processo de socialização destes homens e mulheres e algumas das consequências e rebatimentos no desenho das políticas públicas de segurança, na dinâmica organizacional da PM e nas práticas que constituem o “fazer policial” (MUNIZ, 1999). Construindo o objeto de pesquisa Em um continente de possibilidades, me interessei em observar como se davam os processos de sujeição, dentro da corporação militar, aos princípios hierárquicos e à disciplina militar, principalmente no que se refere às restrições a fala e a 1 Entende-se por ethos o modo de ser que procede da vivência comum dos princípios, valores, normas, leis e hábitos que expressam a ideia de bem (universal) partilhada pelos membros de uma coletividade (comunidade, povo, etnia, civilização etc.). 11 pronunciamentos públicos2. Entender como isto se relacionava, provocando tensão e conflito, com a “novidade” dos blogs3 e das páginas do Twitter4. Aliás, o conflito e a crise5 são referências importantes para este trabalho, afinal aparecem de formas distintas durante toda a trajetória da pesquisa. Pretendo aqui refletir esta dinâmica. No primeiro período do trabalho me concentrei, respeitando o que lia nas páginas virtuais, na tensão existente entre os “policiais blogueiros” e as diferentes instâncias de comando da corporação. Como veremos, a radicalidade da repressão exercida pela chefia da PM sobre a blogosfera policial foi considerável. O conflito se materializou através de prisões administrativas, processos internos e outras medidas disciplinares. Tudo isto se apoiava nos parâmetros e na tradição disciplinar e hierárquica que fundamentam a lógica de funcionamento das corporações militares. Em verdade, iniciar por aí a pesquisa foi interessante, tendo em vista que a questão hierárquica é um tema importante para a antropologia e já foi bastante discutido por diversos autores, inclusive aqueles preocupados em pensar tais questões no contexto brasileiro. No entanto, com o desenrolar do trabalho de campo e na relação direta com meus interlocutores6, novos temas e facetas apareceram para a pesquisa, fazendo com que o foco do trabalho se ampliasse. Confesso que, em certo momento, me parecia possível 2 Na grande maioria dos Estados, instâncias federativas que comandam e coordenam o trabalho das Polícias Militares, existem sérias restrições e consequentes punições aos PMs que se pronunciem publicamente, sem autorização do comando, sobre assuntos referidos ao trabalho policial. 3 Em uma conceitualização simples, blogs (ou web logs) são estruturas virtuais que permitem que pessoas, sem um profundo conhecimento técnico sobre informática e tecnologia da informação, possam publicar via internet textos, vídeos, sons, imagens etc. O que distingue o blog de um site convencional é a facilidade com que se pode fazer registros para a sua atualização, o que o torna muito mais dinâmico do que os sites, pois sua manutenção é mais simples e apoiada pela organização automática das mensagens ou posts pelo sistema, o que permite que novos textos sejam inseridos sem a dificuldade de atualização de um site tradicional 4 Twitter é uma rede social e servidor para microblogging, que permite aos usuários enviar e receber atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, conhecidos como tweets), por meio do website do serviço, por SMS e por softwares específicos de gerenciamento. 5 Esta pesquisa entende como crise a mudança inesperada ou uma alteração, física ou simbólica, importante no desenvolvimento de determinado evento ou acontecimento. 6 Que não se desenvolveram “apenas” com entrevistas presenciais. Muitas conversas foram feitas por comunicadores virtuais do tipo Skype. 12 concentrar toda a pesquisa no “drama social” (TURNER, 2008) vivido pelos blogueiros em sua relação com a direção das corporações. No entanto, para ser fiel ao campo, foi necessário fazer um deslocamento importante que aparecerá no decorrer do texto. Este movimento se impôs por que não eram simplesmente novos assuntos que apareciam na boca dos meus interlocutores ou em seus posts7. Esta diversidade de temas sempre esteve lá. O que ocorreu é que aquele tipo de conflito dava lugar (em relevância e espaço) a algum outro. Para não submeter o “ponto de vista nativo” (GEERTZ, 1978) a minha própria hipótese e/ou problema teórico – o que seria conveniente para permanecer em minha zona de conforto – tive que deslocar meu foco e “acompanhar o campo”. Tal deslocamento, embora sempre surpreendente para quem o experimente, é muito comum nas pesquisas antropológicas. Passado o momento agudo de conflito intestinal da Polícia Militar, pude perceber outras prioridades na Blogpol8. O que vemos hoje é que a questão disciplinar se apresenta de forma distinta e, sem perder sua importância simbólica e objetiva, já não ganha tanto espaço nos blogs. Os posts revelam o desejo destes policiais militares em garantir um espaço privilegiado no debate público da segurança pública. Pude verificar que, após conquistarem certa estabilidade, a principal motivação destes atores sociais foi a de credenciarem-se como interlocutores dentro do campo de “controvérsias” que envolvem a definição das políticas de segurança nos Estados e no Brasil. Devo deixar claro que a noção de “controvérsia”, conceituada aqui nos termos que apresenta Bruno Latour (2009), parece-me útil para pensar diversos elementos presentes no contexto desta pesquisa. Tomo como referência para o tratamento desse tema no pensamento de Latour, algumas publicações resultantes do curso “Descrição das 7 8 Posts são os artigos postados nos blogs. Tais artigos podem ser fotos, textos, imagens, sons, filmes etc. Termo nativo que designa o conjunto de blogs elaborados e editados por Policiais. 13 controvérsias” que foi oferecido na prestigiosa École des Mines em Paris e era destinado a turmas de futuros engenheiros.9 E o que Latour quer dizer quando fala em descrever controvérsias? É a possibilidade de seguir e defender "um debate que tem, ao menos em parte, por objeto conhecimentos científicos ou técnicos ainda não assegurados” (2009, p.7). Como exemplo, Latour trata dos organismos geneticamente modificados, sublinhando, porém, que há muitos outros. E os conhecimentos científicos ou técnicos ainda não assegurados são aqueles em que “as incertezas usuais do social, da política, da moral complicam-se – e não se simplificam – com o aporte de conhecimentos científicos ou técnicos” (2009, p.7) No contexto colocado pelo curso na École de Mines, a questão da incerteza era bastante real para os futuros engenheiros. As intranquilidades estão presentes em situações cotidianas do trabalho. Mas por que isto? Por que os engenheiros não podem, em uma série de situações, decidir por um dos seus lados? Latour assim recoloca o problema: (...) por que a aptidão fundamental que se exige dos engenheiros não é mais a de escolher a solução técnica que lhes parecerá ótima, mas de preparar seus empregadores para localizar o conjunto das soluções e, sobretudo, as reações sociais, morais, econômicas, organizacionais diferentes que estas soluções podem acarretar; para isso, pede-se, portanto, ao engenheiro, a capacidade de fazer a cartografia da gama de posições atualmente defendidas, por mais aberrantes que pareçam, sem tomar diretamente partido a seu respeito (2009, p. 8). O que me serve nesta discussão é a problematização feita às competências técnicas e saberes especializados. Estes são temas que estão presentes todo o tempo nos 9 Esta escola faz parte do sistema francês das “grandes écoles”, cujo sistema de seleção é extremamente exigente e de onde sai parte expressiva da elite técnica e intelectual do país. 14 enunciados que circulam dentro do campo da segurança pública. Nesta chave de pensamento, podemos entender que os profissionais desta área devem extrapolar o universo dos manuais e colocarem-se atentos também a imprensa, aos boletins das associações de classe, aos materiais produzidos por organizações não-governamentais, ou ainda presente nos relatórios governamentais, as decisões do legislativo e do poder judiciário, etc. Como ressalta Abramovay: “(...) as competências a partir das quais as controvérsias se formam e se desenvolvem não estão enclausuradas nos laboratórios, mas passam por diferentes domínios da vida social” (2007, p. 5). Para Latour, e é isto que é importante para esta pesquisa, a noção de controvérsia desempenha um papel fundamental no funcionamento das ciências ou em qualquer campo do saber. Isto não só pelo fato de que, por óbvio, a ciência se alimenta do debate e da crítica. Esta noção carrega uma saudável polifonia para os debates e para as decisões concretas do campo, já que as controvérsias não se limitam e não podem limitar-se aos especialistas, pois: “se desenvolvem com base numa vasta rede em que atores variados fazem parte daquilo que o tema realmente é, aonde ele ganha corpo e vitalidade” (ABRAMOVAY, 2007, p. 5). Em resumo, as sociedades contemporâneas enfrentam cada vez mais decisões que envolvem o conhecimento científico ou especializado, mas que só podem ser tomadas a partir do acompanhamento das posições polêmicas e das controvérsias que cercam as possíveis intervenções. Assim, se observarmos de forma mais cuidadosa os blogs e páginas do Twitter, compreendemos que estes instrumentos comunicativos são muito mais do que simples ferramentas. Eles possibilitam o acesso para diferentes domínios sociais, cumprindo um papel importante na ampliação do debate e das controvérsias no campo da segurança pública (ou mesmo participando da formação da “segurança pública” como um campo que comporta saberes e práticas específicas). O conteúdo e a repercussão destas páginas 15 representam hoje um significativo espaço de divulgação e formação da opinião dos PMs, permitindo que se posicionem diante das “reações sociais, morais, econômicas, organizacionais”, como diz Latour. Metodologia Apesar das múltiplas possibilidades de abordagem e construção de um determinado objeto no campo antropológico, em mais de dois anos de pesquisa bibliográfica encontrei apenas um trabalho que se referia ao universo policial do ponto de vista do uso da internet10. Na verdade, apesar do fato de que a pesquisa antropológica que se utiliza da internet como campo pesquisa estar em franco crescimento, ainda temos, relativamente, poucos trabalhos com este foco. Desta forma, confesso que tive muitas dúvidas e dificuldades para construir o caminho metodológico desta pesquisa. Desde o princípio, parecia-me complicado justificar uma pesquisa em antropologia que não envolvesse o trabalho de campo em sua forma mais “tradicional” e consagrada. Tinha dúvidas sobre em que medida se pode desenvolver o olhar antropológico sobre um determinado objeto e uma metodologia de pesquisa que não sigam os padrões “clássicos” da disciplina. A despeito da diversidade das possibilidades que a antropologia oferece, a ideia de que só é possível produzir um trabalho de qualidade se o pesquisador se distanciar de seu próprio mundo e imergir no campo permanece poderosa (FACINA, 2004). Como então “subverter” um dos pilares da antropologia moderna que, talvez desde Malinowski, vem se caracterizando por ser uma ciência que tem uma especificidade: o 10 Pesquisa chamada A Blogosfera Policial no Brasil: do tiro ao twitter, desenvolvida pelo Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (Universidade Candido Mendes) e coordenada pela professora Silvia Ramos e pela jornalista Anabela Paiva. 16 trabalho de campo. No meu caso, mesmo realizando diversas entrevistas com os policiais blogueiros, não segui os parâmetros mais “clássicos” e consolidados da observação participante. Somente depois de horas de orientação e do contato com outros trabalhos que também se desenvolveram sobre campos de pesquisa pouco ortodoxos11 tive tranquilidade de seguir em frente. Por mais distintas que fossem estas pesquisas, era possível localizar pelo menos um ponto em comum: esforçavam-se, talvez por uma inspiração malinowskiana, em construir caminhos a partir de uma sincera e consistente imersão no campo de pesquisa. Ficou claro que é possível buscar inspirações metodológicas nesses procedimentos para desenvolver uma pesquisa consistente, mesmo sem ter de viajar para a Melanésia ou qualquer outra parte, afinal, mesmo quando o campo é uma ilha isolada no Pacífico, ele não deixa de ser também uma construção do próprio pesquisador (FACINA, 2004 p. 17). Desta forma, parecia-me fundamental tratar etnograficamente os textos, imagens, vídeos postados nos blogs ou nas páginas do Twitter, já que estes foram meu ponto de partida para a pesquisa. Igualmente, tomei como referência metodológica a produção de dois historiadores que, em suas trajetórias acadêmicas, lograram aproximar a história da antropologia. Um deles é Robert Darnton, historiador estadunidense - que teve influência direta do antropólogo, também estadunidense, Clifford Geertz – que trabalha suas fontes de forma semelhante ao trabalho do etnógrafo12. Vejamos o que ele escreve a respeito: Que coisas boas para se pensar com elas? Claude Lévi-Strauss 11 Recentemente, o programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul lançou um número de sua revista, Horizontes Antropológicos (vol.10 nº.21 Porto Alegre Jan./Jun. 2004), dedicado somente a pesquisa antropológica feita na internet. Este material me mostrou como o tema ganhava importância para a antropologia. 12 As obras de referência que aproximam Darnton da etnografia são “O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa” e “The Kiss of Lamourette: Reflections in Cultural History”. 17 fez essa pergunta em relação aos totens e tatuagens da Amazônia, há vinte e cinco anos. Por que não aplicá-la à França do século XVIII? Por que aqueles franceses daquele século não podem ser entrevistados, responderá o cético; e, indo direto ao caso, ele acrescentará que os arquivos jamais podem substituir o trabalho de campo. É verdade, mas os arquivos do Antigo Regime são excepcionalmente ricos e sempre é possível fazer novas perguntas ao material antigo. Além disso, não se deve imaginar que o antropólogo trabalhe facilmente com seu informante nativo. Ele também se depara com áreas de opacidade e silêncio e tem de elucidar a interpretação que faz do pensamento dos outros nativos. A vegetação rasteira da mente pode ser tão impenetrável no campo quanto na biblioteca (1986, p. 14). Esta é uma referência importante para analisar os textos escritos pelos policiais que pesquiso. De forma bastante semelhante “procede” o historiador italiano Carlo Ginzburg. Ao escrever sobre inquisição do século XVI na Itália (ou no território que poucos séculos depois viria a se conformar como a Itália), Ginzburg biografa a vida de Domenico Scandella, mais conhecido como Menocchio, fazendo uma etnografia que parte de um indivíduo para a caracterização de um período 13. A partir de uma cosmologia que associava o surgimento do mundo ao apodrecimento de um queijo, Ginzburg projeta e debate todo um período histórico. De forma semelhante os dois autores iluminam alguns caminhos muito interessantes na construção de olhares etnográficos sobre objetos que não são “classicamente antropológicos”. Analogamente procuro observar meu material com esta inspiração etnográfica, sempre questionando os motivos e as escolhas dos meus interlocutores. Escolho desta forma por considerar que a análise etnográfica em arquivos e outras formas de produção e compartilhamento de textos tem seu lugar no 13 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Trad. por Maria Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 18 saber antropológico. Esta técnica foi o tempo todo inspiradora da minha pesquisa com os policiais militares: utilizar o familiar para estabelecer diferenças. Destas diferenças descobriremos significados negligenciados antes, quando eram confundidos pelo olhar opaco da familiaridade cotidiana. Nesta trajetória é importante observar alguns elementos com bastante cuidado. Como ressalta Kant de Lima: Desde logo há de se advertir que o estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que certamente não estão habituados as pessoas que se movem no terreno da certeza e dos valores absolutos (1999, p. 8) Não me considero uma pessoa que se move no terreno da certeza e dos valores absolutos, no entanto confesso que lidar com o principio hierárquico e com os limites impostos pela disciplina militar no interior do universo da policia militar me causou estranhamento. O próprio Louis Dumont, na introdução do Homo Hierarchicus (H.h), faz a mesma advertência: Mesmo que suponhamos que nosso leitor seja calmo, não se pode esperar que ele considere a casta a não ser como uma aberração, e os próprios autores que a ela dedicam trabalhos com muita frequência chegaram a explicar o sistema mais como uma anomalia do que a compreendê-lo como uma instituição (2008, p. 49) Mais a frente Dumont volta a enfatizar o possível estranhamento dos leitores mais desavisados. Vejamos: Há um ponto que deve ficar bem claro. Entende-se que o leitor 19 pode recusar-se a sair dos seus próprios valores, pode afirmar que para ele o homem começa com a Declaração dos Direitos do Homem e condenar pura e simplesmente o que se afasta dela (2008, p. 50) Dumont, na série de advertências bastante pertinentes que marcam as primeiras páginas do livro citado, fornece uma indicação muito útil para a construção metodológica deste trabalho: Para o momento, propõem-se aqui, em primeiríssimo lugar, tentar compreender a ideologia do sistema de casta. Ora, ela é diretamente contradita pela teoria igualitária de que participamos. E é impossível compreender uma, enquanto a outra – a ideologia moderna – for tomada como verdade universal, não só enquanto ideal moral e político – o que constitui uma profissão de fé indiscutível -, mas também como expressão adequada da vida social, o que é um julgamento ingênuo (2008, p. 52) Esta perspectiva metodológica colocada por Dummont é profícua também por romper com a tendência preconceituosa que insiste em estudar uma cultura a partir dos ideais de outra. Outra referência importante para esta pesquisa foram as reflexões do antropólogo Emerson Giumbelli. Em um artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais em 2002, o autor discute a relação entre a antropologia e o trabalho de campo e defende que é possível construir trabalhos antropológicos relevantes a partir de pesquisas que utilizam fontes – em alguns casos com exclusividade – históricas e técnicas distintas da observação participante. Falando sobre seu próprio trabalho, na elaboração dos argumentos que sustentaram sua dissertação de mestrado e da sua tese de doutoramento, além da sua 20 trajetória profissional, Giumbelli argumenta que: O ‘objetivo fundamental da pesquisa etnográfica’ deve ser buscado a partir de uma variedade e fontes, cuja pertinência é avaliada pelo acesso que propiciam aos ‘mecanismos sociais’ e aos ‘pontos de vistas’ em suas ‘manifestações concretas’. Ora, há situações etnográficas em que as fontes são exatamente ‘documentos materiais fixos’ a que se refere Malinowski. Em se tratando de um objeto histórico, essas serão as únicas fontes para o trabalho de um antropólogo. Mas mesmo quando estivermos diante de um objeto contemporâneo, é possível que a análise de fontes documentais seja mais indicada do que a busca de um ‘contato o mais intimo possível com os nativos, (...) a fonte textual não ganha privilégios por oposição ao trabalho de campo, mas pela razão de estarem inscritas as informações metodologicamente socialmente significativas (2002, p. 48). Assim, o recurso metodológico que se impõem é tratar os textos recolhidos para a pesquisa com o mesmo rigor e com os mesmos “olhos” que as falas de informantes tentando sempre dar-lhes a clareza e a ordenação que permitam e autorizem sua compreensão antropológica. Somente desta forma é possível tentar falar “do ponto de vista do nativo” O que também deve ficar claro é que o compromisso etnográfico de "colocar as coisas no contexto" precisa se afastar do perigo de reificação do objeto tanto quanto evitar o perigo de produzir um contexto reificado analiticamente. Todas estas noções de forma nenhuma pretendem invalidar ou questionar o trabalho de campo em sua forma mais clássica (que é a forma que venho me referindo até agora), mas sim ter uma concepção ampliada das possibilidades da pesquisa etnográfica. 21 Além do trabalho com os blogs, com o Twitter e com os posts, consegui estabelecer uma interlocução mais próxima com quatro PMs blogueiros. Logrei entrevistar neste processo o major Wanderby Medeiros (PMERJ), Melquiades Nascimento (PMPB) o tenente Alexandre de Souza (PMERJ) e seu parceiro no blog Flávio Henrique (PMERJ), o soldado Robson Niedson de Medeiros Martins (PMEGO), o Soldado Victor Fonseca (PMBA), o Coronel Ricardo Paulo Paúl (PMERJ), o Sargento José Ricardo Supérbi Monteiro (PMMG) e, finalmente, o Aspirante de Oficial Danilo Ferreira (PMEBA)14. Com os dois primeiros consegui me encontrar por três vezes em diferentes momentos e conversamos livremente. Nestas entrevistas foi possível explorar de forma ampla e profunda um número grande de questões fundamentais da pesquisa. O processo das entrevistas realmente foi bastante importante para aprofundar uma série de questões significativas para a pesquisa, afinal – mesmo mantendo a posição de defesa da pertinência de outros métodos – percebo que há situações em que é fundamental ouvir as vozes dos blogueiros, de onde emergem questões capitais que, muito provavelmente, permaneceriam submersas. Depois de uma resistência inicial, seguindo a sugestão inclusive de alguns dos meus informantes, desenvolvi algumas das entrevistas via Skype, Mensseger15 e Podcast16. Em diversos momentos foi muito útil conferir, através do Youtube17 e outros sites de compartilhamento de vídeos (Google vídeos, videoshift etc.), declarações e entrevistas com meus informantes. Todas estas ferramentas virtuais foram muito úteis para ter acesso aos blogueiros de forma mais fácil e regular. Cabe ressaltar como outro elemento da metodologia que durante a realização 14 Wanderby Medeiros edita o blog wanderbymedeiros. blogspot.com, Alexandre de Souza mantém, em parceria com Flávio Henrique, o blog Diário de um Policial, Danilo Ferreira escreve Abordagem Policial e finalmente, Robson Niedson edita os Blog do Stive. 15 Skype e Messenger são programas que podem ser instalados gratuitamente em um computador e permitem comunicação de voz e imagem também gratuitas com outro usuário do software. 16 Podcast é uma forma de publicação de um arquivo de voz na internet permitindo algum interessado acesse este arquivo e ouça a gravação. 17 Youtube é um site que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital. 22 pesquisa resolvi ampliar o escopo de análise. Desde o início do trabalho via referências ao Twitter nos textos postados nos diversos blogs que acompanhava, assim como ouvia alguns policiais mencionarem esse instrumento durante as primeiras entrevistas que fiz. No entanto, resistia em ampliar o escopo do trabalho temendo que isto me fizesse perder o foco e também por identificar que este microblog era muito limitado tendo em vista uma das suas principais características, que é o fato de que cada mensagem deve se resumir em apenas 140 caracteres. Pensava que explorar este caminho não daria qualquer rendimento para pesquisa. Estava errado. A verdade é que o Twitter ganha a cada dia um número maior de adeptos, inclusive entre os policiais blogueiros. E mais: alguns dos interlocutores e “nativos” mais interessantes, se dedicam exclusivamente ao Twitter. Antes de dar por encerrado o quadro metodológico, é importante precisar que, apesar da pesquisa dialogar com realidades e interlocutores de diferentes estados e regiões do Brasil, darei destaque para a constituição da PMERJ. Tal escolha deve-se ao fato de que, além de ser o Estado que reúne quantitativamente o maior número de interlocutores com blogs e páginas do Twitter, a PMERJ foi a primeira guarda organizada a se formar na história do Brasil. Divisão do texto Organizei o trabalho em três capítulos distintos. No primeiro deles o foco está no processo histórico de formação da Policia Militar do Rio de Janeiro. Destaco brevemente o que são os elementos principais de constituição da corporação relacionando este processo com o papel que ela vem desempenhando através do tempo. Além deste rápido resgaste histórico, é neste capítulo que discuto mais profundamente o tema e a influência do sistema jurídico brasileiro no status quo da 23 Polícia Militar, assim como a centralidade do principio hierárquico e a lógica disciplinar da caserna. Relaciono este arcabouço com o processo de administração dos conflitos e seus reflexos nos códigos disciplinares internos da corporação. No segundo capítulo me dedico a descrever as questões relacionadas às redes virtuais e à blogosfera policial propriamente dita. Em uma breve contextualização, destaco o crescimento do interesse e do acesso à internet e como as questões relacionadas com o “mundo virtual” estão ganhando espaço no processo de sociabilização do brasileiros. Ainda neste capítulo, ressalto as caraterísticas mais significativas dos blogs, Twitter e da blogosfera policial, além de alguns dados destes espaços virtuais. Reservo o terceiro capítulo para a discussão etnográfica analisando os textos, vídeos e imagens postados nas páginas virtuais editadas pelos meus interlocutores. Procuro abordar a dinâmica e a trajetória de desenvolvimento da pesquisa assim como os assuntos de maior destaque trabalhados pelos PMs. 24 CAPÍTULO I HISTÓRICO E FORMAÇÃO DA CORPORAÇÃO POLICIAL Inicio este capítulo tratando dos elementos mais fundamentais da história da Polícia Militar no Brasil. Destaco, para efeitos de desenvolvimento da minha argumentação, a formação da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), uma vez que meu foco de análise privilegia os blogs produzidos por policiais militares do Rio de Janeiro e as reações de controle institucional por parte desta corporação. 1.1 – Breve histórico da formação da Polícia Militar no Brasil A tarefa de reconstruir de forma consistente o universo dos homens simples, oriundos na maioria dos casos das camadas livres e pobres da sociedade, que, buscando proteção e melhores condições de trabalho ingressaram nas fileiras da força pública, é bastante complexa. Os historiadores que enfrentaram tal desafio, por falta de fontes mais confiáveis, tiveram que recorrer a documentos que revelam “apenas” indícios do cotidiano e das instituições de segurança, tais como os relatórios sobre a força policial, “fés de ofício” e petições apresentadas ao comando da polícia ou ao Imperador. Tudo isto dificulta a tarefa que tento concluir aqui. Resultado disto é que para elaborar este breve histórico tive que lidar com a escassez de trabalhos sistemáticos que abordem o assunto. Um dos principais historiadores que se debruçou sobre o tema no Brasil argumenta: 25 Nosso conhecimento sobre a identidade dos policiais do Rio de Janeiro do século XIX - e mesmo do século XX - é muito limitado. Para o século passado, a documentação sobrevivente não preserva registros de pessoal, oferecendo apenas informações fragmentadas (BRETAS, 1998, p. 4) Para este trabalho, no entanto, traçar brevemente este panorama da PM é útil, na medida em que me parece necessário, para pensar a inserção dos policiais militares no debate público sobre a segurança pública, apresentar as características desta instituição e o papel que ela vem desempenhando através do tempo, assim como medir seu rol de atribuições na constituição dos controles sociais e estatais (que hoje desemboca na criação de um “campo” ou “domínio” da ação governamental – e também não governamental – nomeado de “segurança pública”). . 1.2 – A Polícia no Rio de Janeiro: um breve histórico do tempo do Império até o período atual O processo de formação do corpo policial do Rio de Janeiro foi consequência direta da vinda da corte portuguesa para o Brasil nos primeiros dias de 1808 (OLIVEIRA LIMA, 1945) e sua fixação na cidade do Rio de Janeiro na data de 13 de maio de 1809. Neste dia foi criada a Intendência Geral da Polícia da Corte (IGPC). Esta intendência foi inicialmente formada por um total de duzentos e dezoito guardas e era composta por um Estado-Maior, três Companhias de Infantaria e uma companhia de Cavalaria. Seu primeiro comandante foi José Maria Rebello de Andrade Vasconcellos e Souza, ex-capitão da Guarda de Portugal (WILCKEN, 2005). Durante os três séculos anteriores, a “segurança do público” era executada pelos chamados "quadrilheiros". Estas eram “corporações” que haviam atuado em Portugal e foram transladados para o Brasil colonial, sem nunca terem sofrido qualquer processo 26 de modernização. No entanto, com a chegada de toda corte ao Brasil, os quadrilheiros que patrulhavam as ruas do Rio já não eram mais suficientes. Fazia-se necessário organizar uma força centralizada de segurança e que garantisse ao Brasil “a mesma forma e a mesma jurisdição que tinham as instituições de Portugal”. (OLIVEIRA LIMA, 1945). Pretendia-se organizar os espaços da cidade e disciplinar os costumes de sua população segundo o paradigma da “civilização” europeia. Nesta perspectiva, a Intendência Geral da Polícia teria assumido o papel de “agente civilizador”, uma instituição privilegiada do Estado para a difusão de valores e códigos de comportamento social, condizentes com a “ordem social renovada que se pretendia fundar no Brasil a partir de 1808” (LIMA, 1990, p. 223) Com a mesma intenção foi criada, já em 1809, outra estrutura de segurança: a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia (DMGRP). Estas duas organizações atuavam juntas. A DMGRP era composta por três companhias de infantaria e uma de cavalaria. Os oficiais e praças da Guarda da Polícia seriam recrutados preferencialmente nos regimentos de infantaria e cavalaria de linha da guarnição da corte, ou seja, eram todos nascidos em Portugal. Os planos de atuação, regulamentos e uniformes seriam os mesmos adotados em Lisboa. Como diretor adjunto da DMGRP estava o Major Miguel Nunes Vidigal, imortalizado nas páginas de Memórias de um Sargento de Milícias, escritas por Manuel Antônio de Almeida, em meados do século XIX18. Repetiam aqui a ordem hierárquica que funcionava em Lisboa e o comandante da Guarda tinha uma dupla subordinação: ao Governador das Armas da Corte e ao Intendente Geral da Polícia. De acordo com características específicas, como sua estrutura militar, foi 18 ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memória de um sargento de milícias (1852-54). Brasília: UNB, 1963. 27 elaborado e aprovado o primeiro regulamento interno para a Guarda da Polícia, composto por vinte e quatro artigos. Germinava aí os atuais códigos disciplinares que organizam as PMs. Preconizava o documento que, caso houvesse alguma quebra de conduta recomendada por tal regulamento, os militares da Guarda da Polícia seriam submetidos ao Conselho de Guerra, respondendo “ao rigor das leis militares”. (COTTA, 2009, p. 8). O desvio mais comum era deixar escapar culpados mediante o pagamento e o gazeteio ao serviço. Pelo seu modo de atuar e algumas das suas características militares, a Guarda da Polícia foi vista como “um exército permanente travando uma guerra social contra os adversários que ocupavam o espaço a seu redor”. Assim Thomas H. Holloway (1997, p. 45), seguindo a linha de outros autores (ARAÚJO , 1898; MONTEIRO, 1925), ao afirmar que a meta da Guarda da Polícia era reprimir e subjugar. Marcos Luiz Bretas segue o mesmo caminho: Outro caminho para se fazer a história da consolidação do Brasil independente toma como eixo central a constituição de mecanismos de dominação e repressão. As necessidades do nascente Estado pouco teriam a ver com ideais liberais exóticos, concentrando-se as elites nas tarefas imediatas de manter obedientes e ordeiras as massas oprimidas de escravos e homens livres pobres. Também por esse caminho as instituições da justiça criminal merecem um papel central na definição das formas do Estado brasileiro e ainda que, mais uma vez, sejam objeto de atenção passageira, são melhor reconhecidas como o instrumento do controle do que como uma peça do sistema cuja montagem exigiria uma operação de alguma complexidade” (1998, p. 2) Com a criação do Município Neutro da Corte (atual área do município do Rio de Janeiro) através do Ato Adicional de 1834, foi criada na província, no ano seguinte, 28 outra força policial denominada Guarda Policial da Província do Rio de Janeiro. Ela era responsável pela área atual do interior e da baixada do atual Estado do Rio de Janeiro, que recebeu a alcunha de "Treme - Terra", uma alusão à força e à coragem dos membros daquela Corporação. Na prática, tínhamos forças de segurança distintas. Uma atuava dentro do município Neutro da Corte e outra que tinha como abrangência o resto do Estado: Dessa Guarda Policial original derivaram as instituições policiais uniformizadas de formato militar que ainda hoje fazem o policiamento urbano no Rio de Janeiro. Com exceção de um breve lapso em 1831, quando o ministro da Justiça Feijó extinguiu o rebelado corpo policial, essa instituição tem sido permanente na história do Rio de Janeiro. Os quadros originais foram formados na tradição patrimonial portuguesa, com homens de maior poder aquisitivo obtendo o privilégio de comandar um corpo policial, oferecendo como contrapartida a manutenção de seus praças. (BRETAS, 1998, p. 5) Esta configuração se manteve relativamente estável até 1960, quando a capital do país foi transferida para Brasília e a cidade do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, passou a ter o nome de estado da Guanabara. A partir daí, a corporação militar que atuava neste território, até então denominada Polícia Militar do Distrito Federal, passou a ser chamada Polícia Militar do Estado da Guanabara (PMEG). Em 1974 o Governo Federal decide reunir os dois estados através da Lei Complementar nº20, que determinava a fusão do Rio de Janeiro e da Guanabara em 15 de março de 1975 (RIDENTI, 2004). Ainda segundo essa lei, a nova unidade da federação receberia o nome de Estado do Rio de Janeiro e, consequentemente, as duas Corporações policiais militares foram fundidas. Surgiu então a corporação assim como 29 a conhecemos hoje, com seu Quartel-General no antigo Quartel dos Barbonos, no Centro da cidade do Rio de Janeiro (BRETAS, 1997). Assim, em toda sua história, a PMERJ já teve 12 diferentes nomes somente na área da atual cidade do Rio de Janeiro. Vejamos abaixo: Guarda Policial da Província do Rio de Janeiro - 1835 Corpo de Guardas Municipais Permanentes - 1831 Corpo Municipal Permanente da Corte – 1842 Corpo Policial da Corte – 1858 Corpo Militar de Polícia da Corte – 1866 Corpo Militar de Polícia do Município Neutro - 1889 Regimento Policial da Capital Federal – 1890 Brigada Policial da Capital Federal – 1890 Força Policial do Distrito Federal – 1905 Brigada Policial do Distrito Federal - 1911 Polícia Militar do Distrito Federal - 1920 Polícia Militar do Estado do Guanabara – 1960 E cinco diferentes nomes na área do antigo estado: Guarda Policial da Província do Rio de Janeiro - 1835 Corpo Policial da Província do Rio de Janeiro - 1844 Corpo Policial Provisório da Província do Rio de Janeiro - 1865 Força Militar do Estado do Rio de Janeiro - 1889 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - 1920 Fonte: site da PMERJ http://www.pmerj.org Hoje, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro tem cerca de 41mil homens espalhados pelo estado em 41 Batalhões que fazem o policiamento ostensivo ordinário e outras unidades operacionais especiais19. As referências históricas descritas aqui são importantes para marcar o contexto de formação da PMERJ, assim como ajudar a entender que os homens que faziam parte 19 Fonte: site da PMERJ http://www.pmerj.org, 30 desta corporação, não podem ser compreendidos como imunes ao contexto sociocultural que carrega a tradição histórica. É importante perceber, em uma avaliação atual, os processos de ruptura e continuidade com o processo que descrevi rapidamente. Ao mesmo tempo em que é fundamental entender este processo histórico, e, principalmente, suas consequências e repercussões, devemos ter muito cuidado com os grandes modelos explicativos, que congelam a realidade e explicam pouquíssima coisa. Tais modelos, ainda hoje, tem bastante força. É equivocado se acorrentar a uma visão que afirma que a polícia é simplesmente um instrumento mais ou menos bem preparado e organizado para garantir a opressão dos ricos e proprietários (os donos do poder) sobre a classe trabalhadora revolucionária. Ou então, o discurso que diz que a polícia é a instituição disponível para enfrentar as consequências previsíveis destas mudanças – caos, desordem e crime – por meio da qual toda a sociedade, a despeito das profundas divisões de classe, teria a ganhar (REINER, 1992). Em uma perspectiva mais complexa, entendo que a polícia, que também é fruto de seu processo histórico, é uma instituição multifacetada, utilizada por pessoas de todas as classes para se opor, cooperar e conseguir concessões uns dos outros (EMSLEY, 1996). Esta conceitualização é coerente com a ideia de que desde o período da formação, os militares que eram responsáveis pela execução das diretrizes emanadas do comando da corporação seguiam a lógica da imposição de normas de comportamento estranha a vida cotidiana dos novos “recrutas” (COTTA, 2009). No entanto, tais cominações não foram processadas sem uma série de percalços. Estas características, ao meu juízo, produzem um processo rico e complexo. Para desenvolver a perspectiva do processo de modernização da Policia Brasileira, diversos estudiosos do tema efetuaram comparações com o processo vivido pela polícia inglesa. Vejamos como Bretas aborda a questão: 31 A polícia inglesa - paradigma da noção de força policial moderna - adotava como medida básica a dura disciplina militar e enfrentava com um número enorme de demissões a resistência dos policiais a conformarem-se ao modelo de trabalhador padrão, sóbrio e morigerado. Todo esforço era feito para isolar o policial de seus pares trabalhadores, controlando seus locais de moradia, investigando as candidatas a esposa dos policiais, proibindo a frequência a bares e a contração de dívidas. Ainda assim, a queda do número de demissões que se percebe no último quarto do século indica ao mesmo tempo uma conformação à norma e o desenvolvimento de formas de contorná-las que tiveram de ser toleradas. A relação entre os policiais e os trabalhadores, que se revelou explosiva e marcada por dificuldades na fase de implantação das forças, foi pouco a pouco se estabilizando, na medida em que as próprias direções policiais foram percebendo determinados limites de ação, reduzindo a ingerência policial sobre os “maus hábitos” da população trabalhadora e estabelecendo normas de convivência com o jogo e a prostituição que evitavam o confronto permanente. (1998, p. 3) Sem desconsiderar a complexidade que é a Polícia, identifico na atual configuração das PMs importantes continuidades com o que foi relatado até agora. Em minha percepção esta lógica exposta consolidou-se e foi lapidada durante o tempo. Este processo é descrito pela imensa maioria da bibliografia dedicada ao estudo da polícia (BAYLEY, 2001; EMSLEY, 1996; BRETAS, 1997; PONCIONI, 2003, 2009 e 2005 COTTA, 2006; MUNIZ, 2009 entre outros). Todos estes autores, como já me referi, elegem como modelo paradigmático para comparação a London Police: Considerada a primeira polícia moderna em um país com governo representativo, sua característica de modernidade 32 estava associada à definição do seu papel como o de uma polícia preventiva e, portanto, não prioritariamente voltada para a implementação da Lei, por meio da repressão aos comportamentos desviantes. Estas duas ideias – um governo representativo e uma polícia preventiva – implicariam a necessidade de que a polícia deveria em primeiro lugar obter e, então, utilizar a aceitação e concordância voluntária das pessoas para a sua autoridade, e que o policiamento efetivo, nestes termos, requereria um consenso genérico de que o poder que a polícia representa e o poder que ela exerce são minimamente legítimos (BATITUCI, 2010, p. 31; grifo meu). No entanto, no caso inglês, o novo enfoque do trabalho policial implicou uma série de novas demandas organizacionais que eram incompatíveis com o modelo que até então estava funcionando na Inglaterra, o que, na visão de alguns autores, “conduziu” a um novo modelo de polícia preventiva. Isto tomava corpo, por exemplo, por meio de patrulhas constantes (BATITUCI, 2010). Desta forma, introduziu-se uma lógica nova que valorizava o desenho institucional de organização que tinha íntima relação e inspiração no modelo das forças armadas, em especial em seu sistema de comando e disciplina. As principais distinções deste modelo foram: sistemas de patrulha derivados de cálculos pré-programados que procuravam excluir demandas políticas e monetárias; processos de recrutamento e seleção, com mínimos a serem atingidos pelos candidatos; estrutura de cargos e salários; política de carreira, com progressão por mérito e antiguidade, mas com maior ênfase no mérito; estabilidade no emprego para policiais de boa conduta; uso do uniforme; e estratégia de supervisão e controle da atividade de patrulha (EMSLEY, 1996). De fato, nos termos de Bayley (2001, p.64-65), a ‘nova polícia’ 33 representou um passo importante na construção das três características essenciais da polícia moderna: ela é pública, pois representa a total transferência da segurança de uma comunidade de sistemas privados ou quase privados para o Estado; é especializada no sentido de que desenvolveu uma missão específica voltada exclusivamente para a prevenção e repressão de crimes; e, finalmente, caminha na direção da profissionalização, dado que inaugura instrumentos organizacionais especificamente direcionados para a qualidade e o desempenho no exercício de suas funções (BATITUCI, 2010, pág. 34). As mudanças ocorridas na London Metropolitan Police foram produto de um processo de mudanças e experiências organizacionais contínuas e vigorosas, que vinha se desenvolvendo desde meados do século XVIII, lastreado por uma longa tradição histórica. Esta característica, que se assemelha ao processo estadunidense (WILCKEN, 2005), não foi o que ocorreu no Brasil. O modelo trazido pela corte era baseado na L’intendance de Police francesa, constituindo, de um lado, “instrumento do príncipe para impor sua própria presença e autoridade contra as forças tradicionais da sociedade imperial”. (WILCKEN, 2005, pág. 110). Acompanhava a formação da Intendência uma lógica “ilustrada”20 de renovação da sociedade colonial. A consolidação da corporação fazia parte de um projeto mais amplo de transformar o Rio de Janeiro em uma cidade a altura de receber os reis da metrópole. Tanto é assim que se combinava com as outras tarefas regulares da guarda, 20 Levando em consideração que existe um forte debate na historiografia em relação ao conceito de ilustração em Portugal, pode-se afirmar que este conceito é derivado do movimento Iluminista e que está referido a uma tentativa de síntese de uma série de ideais e tradições filosóficas, econômicas, sociais, políticas, correntes intelectuais e atitudes religiosas. Representou uma mudança profunda de paradigmas no modo operativo que passaram a se basear em uma lógica mais racionalista, empirista e liberal. Em alguns casos, houve avanços em direção à democracia (como nos Estados Unidos da América). 34 tais como funções de urbanização, saneamento, saúde pública, iluminação pública, etc. É seguro afirmar que tivemos como umas das consequências deste complexo processo de modernização das forças de segurança uma extrema prioridade na perseguição e vigilância das “classes perigosas”, além de uma crônica fragilidade institucional. Podemos concluir que, assim como em outros diversos setores sociais, a profissionalização das forças policiais também é resultado do processo tardio de modernização brasileira (FERNANDES, 1986), que formalmente completou-se, do ponto de vista do seu arcabouço institucional, apenas no decorrer do século XX. 1.3 – O Sistema Jurídico Brasileiro e a relação com a formação da polícia Outro elemento fundamental no contexto geral que procuro para localizar meu tema é o arcabouço institucional do sistema jurídico brasileiro. Debruçar-me brevemente sobre alguns dos seus eixos principais será útil para jogar luz na relação estabelecida entre a constituição e formação da polícia e o desenvolvimento das estruturas e dos aparatos jurídicos. Como ressalta Bretas: É provável que poucos países tenham a história de sua formação tão ligada ao desenvolvimento de sua justiça criminal como o Brasil. Já desde o próprio período monárquico, a história do Brasil independente se elaborava em torno da formação das instituições e órgãos da justiça criminal, tomados como símbolos ou campos de luta para a constituição da nova nação, local privilegiado da disputa entre as tradições do absolutismo português e as novas idéias do liberalismo então em expansão. (1998, p. 2) Assim como outros autores (BRETAS, 1991 e 1997; KANT DE LIMA, 1995 e 2000 COTTA, 2010; SOARES, 1996, RATTON, 2007 entre outros) acredito que tal 35 relação é fundamental para entender e explicar diversas das continuidades culturais e institucionais que estruturam hoje Polícia Militar do Rio de Janeiro. As provas destas prevalências podem ser observadas facilmente, como por exemplo, no predomínio de elementos tais como: a vigilância sobre a prevenção; informalização das práticas; personalismo na decisão e na gestão e uma alta discricionariedade associada à prática do “policial de linha” (MUNIZ, 1999). Estas são peculiaridades inegáveis da nossa polícia que são reforçadas pelos aparatos jurídicos consagrados em nossas legislações, relacionando-se também ao processo complexo da evolução do Estado e da democracia no Brasil, às nossas características culturais, aos limites econômicos e aos dilemas associados à “modernização periférica” (BATITUCI, 2010). Muniz assim posiciona a discussão: Diferente de outras instituições modernas tais como a Polícia Metropolitana de Londres e o Departamento de Polícia de Nova York, criadas respectivamente em 1829 e 1845, as nossas Polícias Militares, em quase dois séculos de existência, nem sempre funcionaram como organizações policiais propriamente ditas. Mesmo levando em consideração os distintos percursos históricos das PMs de cada estado brasileiro, pode-se afirmar que, até os dias atuais, foram poucos os períodos em que, de fato, elas puderam atuar como polícias urbanas e ostensivas. Tomando de empréstimo a fala crítica dos segmentos policiais identificados como "progressistas", pode-se dizer que "as PMs foram muito mais uma corporação militar do que uma organização policial", sendo, ao longo de suas histórias particulares, mais empregadas para os fins de segurança interna e de defesa nacional, do que para as funções de segurança pública. Em verdade, a proximidade das PMs com os meios de força combatente, sobretudo após a criação do estado republicano, não se restringiu apenas à adoção do sobrenome "Militar". Elas nasceram, em 1809, como organizações 36 paramilitares subordinadas simultaneamente aos Ministérios da Guerra e da Justiça portugueses, e gradativamente sua estrutura burocrática foi tornando-se idêntica a do Exército brasileiro (1999 p. 39). Tais estruturas burocráticas se tornam um elo intermediário entre o sistema judicial elitista e hierarquizado e o sistema político formal, igualitário e republicano. É justamente na maneira peculiar que as polícias exercem suas funções que se percebe seu papel neste sistema (KANT DE LIMA, 1995). O que poderia ser identificado como um funcionamento paradoxal ou até anômalo, na verdade não o é. Kant de Lima demostra que as práticas policiais são um complemento do sistema judicial e não uma violação ou degradação dele. Na prática, existe sempre uma profunda diferença entre a aplicação idealmente equitativa dos princípios constitucionais igualitários e a realidade seletiva e elitista da ação judiciária. No Brasil, a ordem constitucional igualitária é aplicada de forma hierárquica pelo sistema judicial. Diferentes tratamentos legais são aplicados às mesmas infrações, dependendo da situação social ou profissional do suspeito. Está estabelecido aí uma ligação importantíssima para a caracterização da corporação policial e extremamente útil para esta pesquisa. As práticas policiais e judiciarias no Brasil, entretanto, não representam um fenômeno isolado, mas refletem as ideologias política e legal mais ampla, como se dá no exercício do poder e na administração da justiça na sociedade brasileira. Como ressalta Kant de Lima: Teoricamente o Judiciário é um poder independente, ao qual cabe aplicar a lei. Ao Ministério Público, que é ramo do Poder executivo, cabe fiscalizar a aplicação da lei. A polícia, também parte do Executivo, é apenas um ramo auxiliar do sistema 37 judicial na aplicação da lei. Teoricamente, nenhuma dessas instituições dispõe de poderes discricionários na aplicação da lei quando os interesses públicos (interesses indisponíveis) estão em jogo nas ações penais compulsórias. Na prática, entretanto, o sistema de fiscalização recíproca, tal como o estabelecido entre o judiciário, o Ministério Público e a polícia, fundamenta-se num único conjunto de valores (KANT DE LIMA, 1995, p.155-6). A estrutura judicial hierarquizada e desigual, que produz mais hierarquia e desigualdade, reflete os problemas que podemos identificar em vários outros campos no Brasil. A existência de um sistema hierárquico profundamente excludente é algo estruturante das relações sociais brasileiras e seus diferentes segmentos apresentam- se como distintos e complementares. Para ilustrar este argumento, gostaria de demonstrar alguns exemplos que, a meu ver, são provas da aplicação hierarquizada dos dispositivos constitucionais, que organizam muita coisa na vida das pessoas. Tratarei da forma como se organiza a própria justiça brasileira. Oficialmente, o sistema jurídico é organizado em diferentes níveis de jurisdição, que configuram diferentes instâncias de apelação. Estes níveis jurisdicionais são graduais. Vejamos o quadro abaixo: 38 Se um cidadão comum é suspeito de cometer um crime 21, ele deve ser investigado e indiciado em um inquérito policial. Esta etapa é executada pela Polícia Civil. Caso as provas sejam consistentes, os autos do processo são encaminhados como denúncia para um promotor. Este examina os autos e, caso concorde com o delegado, indicia o acusado, tornando-lhe réu. Após as audiências de instrução, o juiz de 1o instância profere a sentença, condenando-o ou absolvendo-o. Se o condenado discordar da decisão do juiz, pode recorrer à outra instância. Grosso modo, é assim que transcorre um processo no judiciário brasileiro (KANT DE LIMA, 1995). No entanto, apesar da Constituição Federal definir que todos somos iguais perante a lei, a ação penal progressiva não funciona da mesma forma para todos. Aqui “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”, para recorrer a uma famosa frase de George Orwell22. O que pode ser constatado é que quanto mais “elevada” a posição do réu, menor será o número de instâncias que este terá que se submeter, caso receba alguma acusação. 21 Utilizo para este exemplo um crime comum, como os crimes contra o patrimônio. Os procedimentos e tramites dos crimes intencionais contra a vida são mais complexos, incluindo júri popular em alguns casos. No entanto, a lógica geral permanece inalterada tanto nos crimes contra a vida e contra o patrimônio. 22 ORWELL, George. “A Revolução dos Bichos” Ed. Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 2007. 39 Desta forma, oficialmente há uma aplicação diferenciada da lei, em conformidade com a “posição” do réu. Por exemplo, algumas das etapas graduais de acusação – quase infindáveis – serão omitidas no caso do réu ser Juiz, Promotor, Secretário de Estado, Ministro de Estado etc. Mesmo que o crime seja comum (sem relação com suas atividades oficiais e profissionais), o acusado será julgado diretamente pela segunda ou terceira instância. Outro bom exemplo é o direito à prisão especial para quem tem curso superior completo, para os padres, pastores e outros que lideram grupos religiosos. A elite intelectual, que é também a elite econômica, mesmo quando é condenada, não compartilha do mesmo espaço com os mais pobres. Neste caso, diferentemente do anterior, a discussão não é quem tem mais direitos, ou direitos diferenciados, mas quem não ficará em prisões comuns, um local caracterizado pela precariedade e pelo desrespeito a praticamente todos os direitos. Não convém desenvolver este tema aqui, mas as repercussões da relação que alguns fazem entre a criminalidade e à pobreza (já que as prisões que não param de crescer estão lotadas de pobres) são óbvias (cf. LEMGRUBER, 2001). Assim, contrariando o que é disposto em todas as constituições republicanas, de que não haverá tratamento desigual aos cidadãos, princípio comumente denominado de isonomia do sistema legal, o Código de Processo Penal explicita, nestes institutos, que certos cidadãos, erigidos momentaneamente ou definitivamente em pessoas especiais, gozam de privilégios perante a lei. E como me referi anteriormente, estes exemplos refletem uma característica mais geral. Esta combinação de princípios constitucionais igualitários e normas legais hierarquizantes é um elemento significativo, tendo em vista que “o principio igualitário e o principio hierárquico são realidades primeiras, e das mais cerceadoras, da vida 40 política ou da vida social em geral” (DUMONT, 2005 p.51). Dumont argumenta que o princípio igualitário moral e político foi completamente apropriado por nós, os herdeiros do Iluminismo Francês. O princípio hierárquico seria, pela perspectiva dumontiana, um ataque aos valores modernos afirmando como ideias cardinais da nossa ideologia a igualdade e a liberdade. Ideias que valorizam o indivíduo em relação ao coletivo. A partir desta linha, Dumont aprofunda-se, em outros trabalhos, nas origens e consequências do individualismo na modernidade (1985). Como realidade primeira na vida social geral, estes princípios, por óbvio, têm influencia dentro das corporações policiais, assim como no papel que estes desempenham fora da caserna. 1.4 – Os processos de administração de conflito no Brasil Também é importante para este trabalho abordar, ainda que de forma breve, como as polícias participam dos processos de administração de conflitos no Brasil. Os métodos utilizados, como veremos a frente, emulam a dinâmica de funcionamento dos processos internos que atingiram diversos policiais que participam da Blogpol. Já sabemos que tradicionalmente a principal atribuição das forças de segurança é a normatização do processo de administração e gerenciamento dos conflitos, dos mais simples aos mais complexos. São principalmente para estas tarefas que os policiais são treinados – ao menos essa é a justificativa formal – desde o primeiro momento que colocam os pés em uma Academia de Polícia. E é sob este processo que se assentam todos os argumentos que reforçam a hierarquia, o controle e a disciplina: os soldados devem estar atentos e sempre (bem) preparados para desempenhar suas funções, e para isto devem obedecer aos regulamentos, às normas e aos mais graduados. Esta dinâmica é organizada majoritariamente para que as diferenças sejam 41 mantidas inalteradas, estáticas, em seu devido lugar. Deve ser assim, pois a própria ideia de diferença é substantiva e está associada a uma lógica maior que prega que a igualdade entre pessoas depende da semelhança e não da diversidade (KANT DE LIMA, 1999). Em uma lógica diametralmente diferente, em que a diversidade possa ser tomada como parâmetro para a negociação dos conflitos, as consequências poderiam ser desestabilizadoras: “neste contexto, as negociações se tornam deslocamentos estruturais, que afetam posições desiguais em uma hierarquia excludente, não posições que visam à produção de hierarquia social includente” (KANT DE LIMA, 1999 p.25). Os julgamentos23, que acontecem oficialmente e/ou extra-oficialmente, reafirmam as desigualdades, admitindo-as como inevitáveis: O procedimento judiciário policial pode ser inquisitorial, conduzido em segredo, sem contraditório, por que ainda não há acusação. Entretanto, embora não seja legalmente permitida a negociação de culpa – como, aliás em nenhum nível do processo criminal, que está em busca de uma „verdade real‟ como se viu – é lógico que a policia barganha, negocia oficiosa e/ou ilegalmente, em troca de algum tipo de vantagem, tanto que investiga, como o que os escrivães policiais registram nos „autos‟ do inquérito policial, o que se denomina, mesmo, por uma categoria específica, a armação do processo (KANT DE LIMA, 1999 p.30). Os casos são administrados pelo princípio da complementaridade que ordena o sistema como um todo. Todos devem se submeter a este formato, que está acima e além das partes, para que a ordem do todo seja mantida. Dumont desenvolve bem este tema no posfácio à edição TEL do seu livro “Homo Hierarquicus”. O antropólogo francês, 23 Estes julgamentos devem ser entendidos em um sentido ampliado, desde os que acontecem nos tribunais até os que ocorrem nas ruas. Estes últimos são realizados pelos próprios policiais. 42 quando teoriza sobre hierarquia, lança mão de um conceito interessante, do “englobamento do contrário”. Segundo sua lógica, o princípio hierárquico é algo lógico e de oposição, mas não simplesmente isto. Vejamos como Dumont coloca: o elemento A e B seriam opostos. No entanto, eles não se equivalem. São opostos de maneiras distintas. Contrapõem-se de uma forma que A engloba B. Para ilustrar esta ideia, Dumont recorre a um exemplo extraído da Bíblia. Usando a criação de Eva a partir de uma costela de Adão, afirma que em um nível a mulher se opõe ao homem. Em um outro nível maior, pensando no Homem no sentido de Humanidade, a mulher está contida pelo “conjunto Homem” do qual ela seria um elemento (DUMONT, 2008). Desta forma, seria natural a hierarquização entre homens e mulheres. Desta forma, a hierarquia é, ou deveria ser, visto como algo natural. Em um mundo que se move obedecendo a estas engrenagens, os conflitos estabelecidos neste contexto tendem a ser tomados como irregularidades. O mundo tem que se movimentar em termos de uma harmonia absoluta, fruto evidente de um sistema que conduz a um “pacto” implícito entre os considerados fracos e fortes. Assim, o conflito no Brasil nunca é percebido como algo imanente às relações sociais. Este é um princípio estruturante que, consequentemente, não pode ser suprimido, mas sim administrado. Na lógica militar que organiza a vida dos Policiais Militares, o conflito, que pode ser causado pela editoração de um blog ou de uma página de Twitter, é percebido como um sintoma de uma crise que necessita ser debelada, uma revolta a ser reprimida. Este entendimento, a forma como as situações conflituosas são tratadas, está presente em uma série de ações e situações que vemos nas “sessões” policiais dos jornais, assim como nas páginas virtuais. Esta lógica de funcionamento ajuda a entender a corporação e os motivos da oposição radical a “novidade” da blogosfera policial. 43 A polícia, objeto deste trabalho, desempenha um papel significativo neste quadro que acabei de rascunhar. Basta considerar a própria seleção dos casos conflituosos, por parte da polícia, entre aqueles que merecem a intervenção policial e aqueles que são classificados como “feijoada” (conflitos de proximidade que envolvem, entre outros tipos, brigas de casais, disputas entre vizinhos, querelas entre conhecidos, discussões em bares etc.). Casos estes que, embora não sejam vistos pela ótica policial como dignos de intervenção, acabam, muitas vezes resultando em crimes de maior gravidade (SOUZA, 2008). 1.5 – A organização da Polícia Militar No caso das polícias ostensivas brasileiras, que adotaram historicamente o modelo militar de organização profissional, podemos perceber a presença de vários elementos simbólicos que organizam as práticas de seus atores e que comumente são agrupados sob a rubrica “militarismo”. Este conjunto de valores se faz presente no nome da “corporação” – Policia Militar –, em sua estrutura burocrática e na organização de suas rotinas (MUNIZ, 1999). Este modelo não é e nunca foi uma obrigação para as forças de segurança. Existem países que se diferenciaram bastante do modelo militar brasileiro, como o Norte-Americano e o Canadense (BAYLEY, 2001). A PM está dividida internamente em OPMs (Organizações Policiais Militares) executivas, setoriais e operacionais, que prestam os serviços de policiamento. Assim como no Exército, a PM possui Estado Maior, Cadeia de Comando, Batalhões, Companhias, Destacamentos etc. A tropa se distribui hierarquicamente em graduações e patentes militares. Vejamos: 44 As metáforas24 militares também aparecem o tempo todo com relação às expectativas públicas do trabalho das polícias ostensivas. Alegorias associadas à simbologia da guerra, tal como o combate, o confronto, os inimigos etc., são empregadas tanto pelo senso comum quanto pela mídia para descrever as ações policiais e para cobrar iniciativas e formas de intervenção (RAMOS & PAIVA, 2007). Também são frequentes as fabulações que vinculam a função de polícia à “guerra contra o crime” e, mais recentemente, à “guerra contra as drogas” 25. Diversos elementos favorecem a cristalização dessas metáforas, em boa medida condizentes com a realidade policial, ou melhor, do policial militar. Os PMs, ou melhor dizendo, os nossos soldados, usam fardas. Fardas que se 24 Entendidas nos termos colocado por Victor Turner em Dramas, Campos e Metáforas: Ação Simbólica na Sociedade Humana. 25 Wacquant, L. “O Retorno do Recalcado. Violência urbana, "raça" e dualização em três sociedades avançadas”. Disponível em: www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_24/rbcs24_02.htm 45 assemelham aos trajes de combate dos militares regulares. Nestas fardas se encontram dispostos elementos que permitem a identificação daquele que a usa, tal como o “nome de guerra”, assim como as divisas do grau hierárquico e as condecorações. Tudo isto pertence a uma ritualística própria da carreira militar. Os elementos apresentados aqui, tais como a tradição da formação histórica da PM e a influência do principio hierárquico, estruturam parte importante da cultura26 corporativa do grupo social objeto deste trabalho. No entanto, na minha percepção, as aproximações mais importantes entre a polícia militar e as forças armadas não residem nestes elementos já citados. Existem associações com raízes mais profundas. O que vemos hoje é um debate, razoavelmente forte e em processo de expansão, que questiona a “ideologia militar” das PMs. Este esforço busca problematizar a utilidade do “militarismo” na polícia como fundamento de seu modelo de atuação. É o que podemos perceber na obra de alguns autores que discutem o tema das polícias e da segurança pública, notadamente Carlos Magno Cerqueira e Jorge da Silva (CERQUEIRA, 1996; MUNIZ apud SILVA, 1997: p.63). Estes autores afirmam que ainda vigora nas PMs a ideologia herdada do período militar no Brasil, identificado com um imaginário construído sob a luz da Doutrina da Segurança Nacional, que cristalizou-se no interior das polícias militares depois de 1967 e 1968. Entretanto, apesar da crescente capilarização e da força que vêm tomando essa crítica, são diversas as posições que ainda se mantêm favoráveis ao caráter do desenho militar aplicado à polícia. Sempre é reforçada a ideia da tradição histórica no ordenamento das agências policiais e ao alto custo derivado de uma possível mudança. Também faz parte deste discurso o argumento de que só é possível manter algum 26 Uso este conceito me apropriando de uma perspectiva Geertziana, em que a cultura institucional da PM ou cultura militarista é também uma “teia de significados” que o Policial constrói, ou tece, ao seu redor. 46 controle sobre a discricionariedade inerente à ação da polícia a partir do controle propiciado pela disciplina e hierarquia da organização militar. E é de se esperar que toda esta linha de raciocínio esteja também (ou principalmente) direcionada para dentro da corporação. É, para mim, um empreendimento difícil o de definir se os problemas decorrentes deste desenho militarista no imaginário da PM ocorreram por fatores derivados da nossa história política, das definições constitucionais e da explícita ingerência que o exército teve na vida institucional da PM (a PM foi comandada por generais e coronéis do exército em diversos períodos), ou por outros fatores alheios a estes. Não me sinto capaz, neste momento, de fazer isto. No entanto, parece-me razoável supor que a cultura institucional da PM tenha adquirido contornos mais radicais, e que certos estímulos autoritários derivados de uma Política de Segurança Nacional possam ter prosperado em um ambiente de restrição de direitos, produzindo efeitos dentro e fora da instituição. Isto fica evidente nos inúmeros e incontáveis relatos de brutalidade e violência perpetrados por estes agentes todos os dias nas ruas do Brasil . 1.6 – O regulamento disciplinar Igualmente, é interessante discutir a questão da disciplina policial a partir de uma reflexão do Regulamento Disciplinar da PMERJ. Principalmente pelos rebatimentos pessoais e subjetivos provocados pelas punições que são aplicadas em consequência das possíveis faltas cometidas. A possibilidade sempre iminente de sua utilização parece suficiente para configurar um elemento por demais opressivo. Conforme podemos perceber no artigo sexto do atual Regulamento Disciplinar da PMERJ (RDPM) que define a disciplina policial militar como: A rigorosa observância e o acatamento integral das leis, 47 regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo da policia militar27. Ainda de acordo com o regimento, o cumprimento do dever deve ser orientado aos “altos interesses da ação educativa da coletividade e para a elevação da tropa” 28. A disciplina militar promete, a principio, estar a serviço do fortalecimento dos princípios hierárquicos, do “decoro da classe”, da “honra pessoal” dos seus integrantes, procurando incentivar no interior da “família policial militar”29 o exercício da civilidade, do respeito entre seus membros. De acordo com este projeto, o comportamento do PM deve se pautar pela: a) correção de atitudes; b) obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos; c) dedicação integral ao serviço; d) colaboração espontânea à disciplina coletiva e à eficiência da instituição; e) consciências das responsabilidades e f) rigorosa observação das prescrições regulamentares. (grifo meu). 30 O não cumprimento destas determinações configura uma “transgressão disciplinar” que, como esclarece o próprio RDPM, reporta-se a qualquer violação dos deveres e obrigações previstas pelas normas e outras disposições internas que não constituem crimes. As atitudes insubordinadas que afetam a vida institucional da corporação, mas que não necessariamente se configuram, do ponto de vista da justiça comum, em atos ilegais ou criminosos praticados pelos policiais (MUNIZ, 1999). 27 Regulamento Disciplinar da PMERJ – RDPM/Diretoria Geral de Pessoal/EMG/PMERJ Idem 29 Ibidem 30 Ibidem 28 48 Em seu primeiro anexo, o atual RDPM ocupa-se de “especificar e classificar” as diversas ações qualificadas como faltas disciplinares. A “relação das Transgressões” inclui um total de 125 insubordinações que podem ser, grosso modo, classificadas em três tipos: a) “conduta militar no interior da corporação”; b) “atividades de rua”; c) “a vida civil e ao convívio social do PM”. Conforme os quadros abaixo: Fonte: Regulamento Disciplina da PMERJ – RDPM/Diretoria Geral de Pessoal/EMG/PMERJ 49 O que fica evidente é que a formação militar voltada para a internalização da “disciplina consciente”, guarda a ambição de se fazer sentir em todas as esferas de sociabilidade do policial, procurando antecipar-se e normatizando de forma meticulosa a quase tudo. O que se percebe é que a lógica militarista, fortemente baseada na ação, na hierarquia e na disciplina, é um elemento que aproxima a vida na caserna do modelo de uma “instituição total”. Tal conceito foi elaborado pelo sociólogo canadense Erving Goffman para designar “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada”. (GOFFMAN, 1974 p.11) Os quartéis, academias militares, manicômios e prisões seriam, então, exemplos de “instituições totais”. Todavia, o que deve ser indagado é se o modelo proposto dá conta da realidade da polícia militar no Rio de Janeiro. Parece-me que não, muito porque é impossível entender as práticas policiais e a sua formação sem considerar a interação dos policiais com o que se passa nas ruas (OBERLING, 2010) É importante indicar que este empreendimento quase alucinado de controle da vida do policial, somado ao exagerado apego institucional aos ritos militares e uma forte afirmação da disciplina e hierarquia, contribui para internalizar no efetivo policial, sobretudo nas patentes inferiores que estão mais expostas às sansões disciplinares, uma concepção de ordem social mais rigorosa e intolerante na relação com a comunidade (MUNIZ, 1999). O reforço constante das rígidas regulamentações internas tende a motivar os agentes de ponta a exigirem dos cidadãos os padrões militares de comportamento. A valorização da disciplina, que se apoia na hierarquia militar, em detrimento de um projeto pedagógico consistente, capaz de instruir os policiais sobre o processo decisório em ambientes de incerteza e risco, tende a restringir o exercício da 50 autonomia responsável e consequente, abrindo espaço para o aparecimento da sensação de culpa coletiva. A responsabilização dos problemas de segurança públicas, em seus múltiplos determinantes, que vivenciamos hoje em dia, invariavelmente recai sob as costas da PM. Esta percepção encontrou terreno fértil nas distorções produzidas pelas recentes políticas públicas de segurança adotadas no Brasil (MUNIZ, 1999). O contato direto com o mundo extramuros dá relevo o contraste entre a inflexível conduta militar e a multiplicidade de inserções possíveis na vida civil. Em resumo, o que busquei nesse capítulo foi trazer para o contexto da pesquisa dois dos principais elementos que, em minha visão, estruturam o que é a Policia Militar no Brasil hoje. O “espólio” deixado pela tradição histórica no seu complexo processo de formação me parece central para identificarmos como se formou a dinâmica de relação entre os próprios membros da corporação, destacadamente os oficiais e os praças, da mesma forma com os “paisanos” fora dos “muros da caserna”. Não se pode negligenciar as forças das continuidades históricas (DARNTON, 1990) que mantêm o caráter “real” da polícia que, desde D. João VI, sustenta a coroa enfeitando o seu brasão. É visível como está consolidado o ethos repressivo que permeia também as práticas de nossa Polícia Civil. Ambas postas a serviço do Rei, do Estado, para conciliar forçadamente ou para reprimir conflitos e não para resolvê-los, garantindo a ordem estatal pública e a ordem dos cidadãos. Na conjugação destes elementos, e outros tantos, é que estão assentados os pressupostos básicos em que vivem o grupo social que é foco desta pesquisa. Trazê-los a luz e problematizá-los é fundamental para seguir em frente. 51 CAPÍTULO II AS REDES VIRTUAIS E A BLOGOSFERA POLICIAL 2.1 – Um breve contexto da cibercultura e a internet 52 No que se refere ao contexto das redes virtuais, o primeiro dado significativo para este trabalho é o fato de que o acesso e o interesse pelos computadores e pela internet ampliou-se espantosamente nos últimos anos, tornando este tema algo comum e usual na vida cotidiana de uma parte expressiva dos brasileiros. Pesquisas recentes indicam que já são trinta e seis milhões de pessoas que têm acesso diário a rede de computadores, seja ele domiciliar ou feito no trabalho31. No que se refere à tendência, perceberemos que em questão de poucos anos a maioria da população brasileira terá acesso ao mundo virtual. É fato que o interesse ao conteúdo disponível/disponibilizado pela internet está se popularizando rapidamente no nosso país. Este processo desencadeia inúmeras consequências sobre a vida das pessoas. No entanto, não interessa para esta pesquisa aprofundar as considerações a respeito dos efeitos na sociabilidade, subjetividade ou na dinâmica cotidiana das pessoas que se utilizam dos chats online, redes sociais do tipo Facebook ou Orkut32, ou ainda das condições de transformação do privado em uma “hiper realidade” (BAUDRILLARD, 1973). Em verdade, interessa-me particularmente o comportamento de um grupo restrito de usuários de blogs e do Twitter que almejam participar, através destes aparatos eletrônicos virtuais, do debate público sobre segurança no Brasil. Mais importante que entender sobre o processo de massificação do computador/internet, o fundamental para a pesquisa é desenvolver e problematizar duas constatações atuais: a primeira é que o universo total de possíveis interlocutores e leitores dos blogs escritos pelos policiais militares, assim como de outros conteúdos virtuais, já é muito grande e tende a aumentar ainda mais. Ilustra bem esta tendência a 31 Refiro-me principalmente às pesquisas desenvolvidas pelo IBOPE Net/Rating que traçam um painel do universo de internautas. 32 Uma referência bem interessante é o artigo Antropologia e internet: quando o “campo “ é a cidade e o computador é a “rede” de Jonatas Dorneles. Disponível em: www.scielo.br/scielo. Php? Script=sci_arttext&pid=S0104-71832004000100011&lng=en&nrm=ISO 53 informação de que alguns blogs que tratam da temática policial e da segurança pública, como o blog Repórter de Crime, editado pelo jornalista Jorge Antônio Barros, da mesma forma que os blogs mais consolidados editados por policiais, chegam a ter milhares de page views33 por mês (RAMOS & PAIVA, 2009 p. 11). Se focarmos o que seria a “outra ponta” da relação estabelecida entre o público e o policial, vemos que em menos de seis meses duplicaram o número de páginas editadas por policiais34. O que podemos concluir é que estamos tratando de um processo em vigorosa expansão. O segundo elemento refere-se ao fato que, ao contrário de outras iniciativas, a blogosfera policial não é a elaboração de um diário íntimo que pularia do papel para os monitores, repleto de notícias pontuais e reflexões rasas. De forma alguma se configuram desta forma. O que ficou claro na minha pesquisa é que a internet se transformou em um instrumento, tão poderoso quanto simples, para dar publicidade as opiniões e reivindicações dos PMs, assim como para mobilizar seus pares e a população que acessa os textos e imagens postados. De forma nenhuma se pode confundir a blogosfera policial com páginas pessoais recheadas com noticias da vida particular. Os policiais militares estão interessados em debater segurança pública e é inegável que almejam tornarem-se interlocutores indispensáveis nesta discussão. Mesmo assim, é importante marcar que os aspectos ou elementos subjetivos não deixam de estar presentes e coexistem com esta característica mais “formal, séria e distanciada” dos blogs editados por policiais militares. Mesmo os blogs de opinião, nosso objeto neste trabalho, caracterizam-se pela espontaneidade e personalismo. Desde 1994, quando o estudante americano Justin Hall lançou o seu diário 33 Número de Page Views é o numero de vezes que determinado blog ou sítio da internet é acessado. Na publicação elaborada por Ramos & Paiva há uma indicação que em outubro de 2009 tínhamos um número próximo a cem blogs alimentados por policiais. Em meados de março de 2010, segundo informações dos próprios blogueiros que participaram de uma oficina realizada no IV Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (São Paulo), estávamos ultrapassando os duzentos blogs. 34 54 online – considerado um dos primeiros blogs do mundo – os diários na internet proliferaram numa escala inédita na história das comunicações. O último relatório do Technorati, um indexador que monitora páginas em sessenta e seis países em oitenta e uma línguas, mostra que a multiplicação dos blogs é um fenômeno global que está mudando muitos setores da atividade humana. Segundo o Technorati, entre 2002 (início do monitoramento) e 2008 foram indexados cerca de 133 milhões de blogs no mundo. No Brasil, os números a respeito do uso da internet são divergentes. O Ibope estima o número de usuários da internet brasileira em 62,3 milhões. Já o Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic) calcula este número em 71,7 milhões de usuários. Deste total, o Cetic estima que 17% dos usuários brasileiros teriam blogs ou páginas na internet. A partir destes dados, percebemos um aumento da influência da internet no país. A realização de uma versão nacional do Campus Party, considerada o maior evento de inovação tecnológica e entretenimento eletrônico no mundo, evidencia este contexto. O Brasil foi o primeiro país escolhido para iniciar o processo de internacionalização do encontro realizado na Espanha desde 1997. 2.2 – Os blogs Um blog pode ser definido como um diário on- line, um espaço no qual o autor do blog – ou blogueiro – publica suas ideias a respeito de diversos assuntos, pessoais ou públicos, em textos organizados cronologicamente, e onde os leitores podem se manifestar por meio de comentários. No Brasil, o primeiro blog surgiu no Rio Grande do Sul, criado por Viviane Vaz de Menezes, em 1998. Era escrito em inglês. No mesmo 55 ano, Renato Pedroso Júnior, o Nemo Nox, iniciou o seu Diário da Megalópole. O surgimento de sites que ofereciam ferramentas de fácil utilização para criação de blogs, como o Blogger e o Groksoup, em 1999, permitiu o rápido crescimento da nova mídia. No ano de 2001, o reconhecimento da popularidade dos blogs levou o grande portal de conteúdo virtual IG a se tornar o primeiro site a criar uma área destinada à hospedagem de blogs: o Blig. A princípio, os blogs eram páginas de expressão pessoal, sem fins comerciais. Não demorou, entretanto, para que as corporações de mídia percebessem o potencial dos blogs. Em janeiro de 2003, o portal Terra foi o primeiro a levar para as suas redações dois blogueiros. Dois anos depois, o Portal do jornal O Globo também abriu espaço para que os seus colunistas criassem seus próprios blogs. Em 11 anos, o Brasil ganhou variada blogosfera abrangendo diversos temas, de dietas à política, do sexo à arte. Segundo ranking do site Mundo Tecno35, em 2008, os blogs mais populares do Brasil eram os que discutiam tecnologia. Mas páginas de humor, como o Cocada Boa, e de jornalismo, como a de Josias de Souza, também aparecem bem colocadas no ranking36. Os blogs jornalísticos de política estão entre os mais bem sucedidos e influentes do país. Um dos pioneiros nesse campo foi o jornalista Ricardo Noblat, que criou o seu blog em 2004 quando ainda trabalhava como colunista do jornal carioca O Dia. Em 2005, já hospedado no portal IG, Noblat mostrou o poder da nova mídia ao cobrir as investigações do escândalo que ficaria conhecido como “mensalão” (um esquema de compra de votos de parlamentares). Personagem central no episódio, o deputado federal Roberto Jefferson citou o blog do jornalista como fonte de informação durante os trabalhos de investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O depoimento deu nova relevância aos blogs como formadores de opinião. Muitos dos envolvidos no 35 Informação disponível em: http://www.mundotecno.info/. A lista completa pode ser achada em: http://www.mundotecno.info/noticias/os-200-blogs-maispopulares-do-brasil-em-2008 36 56 citado episódio hoje em dia editam blogs, incluindo o ex-parlamentar Roberto Jefferson. Os blogs também têm atraído os políticos. Muitos deles se utilizam deste instrumento para apresentar suas próprias interpretações dos fatos políticos. O ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu, assim como o ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, e o ex-prefeito da cidade do Rio, César Maia, investiram nos blogs para publicar notícias, entrevistas e suas opiniões pessoais a respeito de assuntos públicos. Para personalidades, assim como para estrelas do mundo da música e da TV, as páginas pessoais representam um meio de falar diretamente com o público, dispensando os filtros da imprensa e assegurando que o conteúdo do texto postado seja exatamente o desejado. De veículos de expressão pessoal, os blogs tornaram-se grandes meios de propaganda e divulgação profissionais, adotados inclusive pelas grandes corporações. Blog, hoje, já não significa apenas uma página feita por uma pessoa ou um grupo, a partir dos seus pontos de vista. No mundo corporativo, blog é qualquer página atualizada periodicamente, onde os posts se sucedem em ordem cronológica e os leitores podem se manifestar em comentários (RAMOS & PAIVA, 2009 p. 16). Grandes empresas têm blogs, que apresentam notícias sobre os projetos e opiniões da companhia. De postagem em postagem, uma nova paisagem se desenha na blogosfera. 2.3 – Os blogs como meio de comunicação e informação Para alguns dos teóricos que têm se detido sobre o tema, a principal característica que diferencia um meio como a internet dos meios de comunicação de massa é a dispersão da emissão, ou seja, o fato de passar de uma relação comunicativa de um para um, como o telefone, e de um para todos, como a televisão ou o rádio, para uma situação de comunicação em que todos podem, ao menos em potencial, comunicar 57 para todos. A rede, assim, permite uma circularidade de papéis em que qualquer receptor pode tornar-se emissor e provedor de informação, produzindo-a e distribuindoa por rede, ou simplesmente repassando informações produzidas por outros (GOMES, 2001). Acredito que esta transformação importante propiciada pela estrutura de informação em rede é parte fundamental de uma nova “esfera pública” 37 renovada, ao menos potencialmente, pela pluralidade das possibilidades de emissão de enunciados. É possível afirmar que se constituiu um “novo ambiente” informativo denso, uma arena dialógica que organiza e facilita a participação coletiva (MAIA, 2002). Estamos pensando sobre uma chave em que o debate público, neste caso o debate público sobre segurança pública, cria um tendência de horizontalizar e pluralizar as relações de conhecimento e autoridade presentes na construção das opiniões e atitudes políticas dos cidadãos. Outro elemento característico que podemos observar na produção dos materiais online é a personalização dos conteúdos. O usual é que os blogs permitam aos seus leitores tornarem-se personagem da narrativa, sendo nomeados e tendo seus comentários incorporados pelo titular da página. Nos blogs, as técnicas e procedimentos de produção ensejam um grau de informalidade e coloquialidade. O policial que publica num blog o faz com intenção de dar ao leitor outro viés, opinativo e mais abrangente, que pode ir desde uma nota de bastidor a um “desabafo”. Estes elementos são importantes, no entanto quero deixar claro que a visão que este trabalho traz não é de forma nenhuma idealizada ou idílica sobre blogs. 37 Este importante conceito é entendido aqui, a partir do prisma habesiano, como a dimensão na qual os assuntos públicos são discutidos pelos atores públicos e privados. Tal processo culmina na formação da opinião pública que, por sua vez, age como uma força oriunda da sociedade civil em direção aos governos no sentido de pressioná-los de acordo com seus anseios. Sob a ótica de Habermas, em sociedades complexas a esfera pública forma uma estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções de outro lado. 58 Esta percepção puramente idealista sobre o “conteúdo gerado pelos usuários” (user-generated content), que aparece muitas vezes em artigos da Web 2.038 é duramente criticada por Keen (2007). Esta visão é definida pelo autor de “culto ao amador”. Sobre os blogs, Keen sublinha que se proliferam informações falsas, difamatórias e dissimuladas (conteúdo publicitário disfarçado de notícia ou testemunhal). Este será um tema importante explorado no decorrer do trabalho. A verdade é que circulam com excessiva facilidade na rede estas informações falsas, tendo em vista a sensação de proteção oferecida pelo anonimato e pseudônimos. Outra questão fundamental é o entendimento que o processo e a “ferramenta” são elementos que não podem ser pensados de forma separada. Dificilmente vivenciaríamos este processo sem os instrumentos e recursos que temos hoje a nossa disposição39. O que eu percebo é que os blogueiros têm um mecanismo poderoso de comunicação nas mãos, e eles sabem disto. As imensas possibilidades de construção de uma arena dinâmica de debates políticos e de interação constituem elemento central. O que tenho percebido é que a decisão pelo uso do blog e do Twitter deu-se também pela sua funcionalidade. Eles se diferenciam de todas as outras formas de relacionamento virtual (e-mail, chat, instant messages, listas de discussão, etc.) justamente pela sua dinamicidade e possibilidades de interação possibilitadas pela facilidade de acesso e de atualização, utilizando programas simples que praticamente exigem apenas conhecimentos elementares de informática por parte do usuário. Mas não é só isto. Os computadores, os instrumentos virtuais, os softwares, sites 38 Web 2.0 é um termo criado para designar uma segunda geração de comunidades e serviços. Seria uma espécie de segunda etapa no desenvolvimento da rede. Embora o termo tenha uma conotação de uma nova versão para a Web, ele não se refere à atualização nas suas especificações técnicas, mas a uma mudança na forma como ela é encarada por usuários e desenvolvedores, ou seja, o ambiente de interação e participação que hoje engloba inúmeras linguagens e motivações. 39 Internet rápida acessível a um número cada vez maior de pessoas, plataformas de elaboração de blogs simplificados, acesso público em expansão (em poucos lugares ainda), a popularização e aampliação da rede do Twitter etc. 59 etc. neste contexto são, ao meu juízo, muito mais do que ferramentas. Cumprem outro papel, muito mais amplo e complexo. Iluminado pelos argumentos de Alfred Gell (1998) eu entendo que, neste contexto, este conjunto de aparatos eletrônicos e virtuais listados fazem parte de um sistema de ação. Está claro que o que chamo de aparatos tem uma capacidade indubitável de inter-relacionar sujeitos, em interações pautadas em papéis de agência. Tais qualidades são dinâmicas e relacionais, variando de acordo com o ponto de vista adotado e com o tempo. Elas não são estanques e pré-determinadas ou inatas; elas se fazem no contexto da interação, sendo constantemente construídas. Os pontos levantados por Gell em Art and Agency, de 1998, ajuda este trabalho porque sugere que os objetos de arte devem ser percebidos a partir da intencionalidade humana neles acumulada. Na vigorosa construção argumentativa de uma teoria realmente antropológica da arte, o autor defende que não podemos tomar objetos artísticos como meros portadores de sentidos ou significados, procurando, antes, os diversos agenciamentos e intencionalidades associados a estes mesmos objetos. Vejamos em suas palavras: In place of symbolic communication, I place all the emphasison agency,intention, causation, result and transform ation. I view art as a system action, intended to change the world rather than encode symbolic propositions about it. The action-centred approach to art is inherently more anthropological than the alternative semiotic approach because it is pre-occupied with the pratical mediatory role of art objects in the social process, rather than with the interpretation of objects ‘as if’ they were texts (1998 p. 67; grifo meu). Tais pressupostos são úteis para este trabalho por que, da mesma forma que nos informa Gell, os blogs e o Twitter são compreendidos como aparatos eletrônicos 60 virtuais e, em função do seu contexto, devem ser considerados como índices em uma rede de relações que acumula e transporta agência e intencionalidade humanas. É um processo que revela e traz intencionalidades complexas. Veremos tal processo com bastante clareza mais a frente. Outra característica fundamental é que o blog permite uma liberdade quase que infinita para a expressão de ideias e opiniões. Podemos verificar isto empiricamente em poucos minutos navegando na internet. Temos muitos blogs de praticamente todos os assuntos, editados das mais diferentes formas. Esta característica particular é interessantíssima por que o blogueiro, até segunda ordem, é o seu próprio publisher e tem mais liberdade na redação dos posts que a grande maioria dos jornalistas nos editorias dos jornais impressos. No caso em particular desta pesquisa, é justamente ai que localizamos os maiores dramas e contradições. As páginas mantidas pelos policiais, até bem pouco tempo, eram fortemente questionadas pelo comando destas 40corporações. 2.4 – O Twitter Desde o inicio da pesquisa via referências ao Twitter nos textos postados nos diversos blogs que acompanhava, assim como ouvia alguns policias o mencionarem durante as primeiras entrevistas que fiz. No entanto, resistia em ampliar o escopo do trabalho temendo que isto me fizesse perder o foco, assim como identificava este microblog como muito limitado, tendo em vista uma das suas principais características, que é o fato de que cada mensagem deve ser resumir a até 140 caracteres. Pensava que 40 Twitter é uma rede social e servidor para microblogging, que permite aos usuários enviar e receber atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, conhecidos como "tweets"), por meio do website do serviço, por SMS e por softwares específicos de gerenciamento. 61 explorar este caminho não daria qualquer rendimento para pesquisa. Estava errado. A verdade é que o Twitter ganha a cada dia um número maior de adeptos, inclusive entre os policiais blogueiros. E mais: alguns dos interlocutores e “nativos” mais interessantes, se dedicam exclusivamente ao Twitter. Os dados indicam que esta é a rede que mais se expande no mundo, se levarmos em consideração o número de usuários. Os atentados de 11 de Setembro de 2001 e a Guerra do Iraque provocaram a “expansão” dos blogs, o incêndio na Califórnia em 2007 e as eleições presidenciais americanas em 2008 fizeram explodir a audiência dos microblogs como Jaiku (do Google), Twitter e Pownce. O microblog, que surgiu em março de 2006, pode ser atualizado de várias maneiras, principalmente através do envio de mensagens do celular e de mensageiros instantâneos como o MSN e Google Talk. Como já mencionei, a principal característica desse formato de blog é o espaço limitado a 140 caracteres para o envio de texto e, talvez por isso, foi rapidamente incorporado pelo mainstream da mídia como mecanismo divulgação de links e para mensagens rápidas e curtas. Elas são importantes neste contexto que explorei. Tecnicamente, essa Mass Self Communication está presente na internet e também no desenvolvimento dos telefones celulares. Estima-se que haja atualmente mais de um bilhão de usuários de internet e cerca de dois bilhões de linhas de telefone celular. Dois terços da população do planeta podem se comunicar graças aos telefones celulares, inclusive em lugares onde não há energia elétrica nem linhas de telefone fixo. Em pouco tempo, houve uma explosão de novas formas de comunicação. As pessoas desenvolveram seus próprios sistemas: o SMS, os blogs, o skype… O Peer-to-Peer ou P2P (CASTELLS, 2006 Pag. 108). Com links, notas curtas e atualizações contínuas, é possível prender a atenção do 62 internauta para as reportagens de maior fôlego e contextualizadas que serão exploradas nas edições online. Estas mensagens curtas alicerçam “um emaranhado” de informações que pode provocar a leitura de noticiais ou textos mais profundos sobre o tema em foco. Talvez seja por este o motivo que grandes corporações de mídia “tradicional”, como por exemplo, The New York Times, BBC - UK, O Globo, Folha de São Paulo etc. rapidamente perceberam que surgia um novo fenômeno na internet com características apropriadas para “chamadas” de suas notícias principais. O exemplo dos “jornalões” é apenas um da infinidade de outros que poderia elencar. O elemento central aqui é a mobilidade e a fácil conectividade. “A conectividade se tornou uma característica definidora da nossa condição urbana no século XXI” (PELLANDA, 2007 Pag. 13). Olhando a partir essa perspectiva de conexão sempre online com o ciberespaço, a produção de conteúdo tem à disposição um cenário formatado para o desenvolvimento da narração em tempo real. São inúmeros os exemplos, que irei explorar no terceiro capítulo, de informações importantíssimas que tive acesso a partir do Twitter. Fotografias, pequenos textos e vídeos (invariavelmente capitados em aparelhos de celular do tipo smartphones41) produzidos no minuto que chegavam à rede virtual. Pellanda considera que com a crescente popularização de aparelhos celulares mais avançados e também de palmtops e outros modelos de aparatos portáteis para informações (como os novos tablets42) as informações que vão para as redes sociais passam a ser narrados em tempo real e no espaço físico onde acontecem as interações sociais (Pellanda, 2007 Pag. 100). Os microblogs, por exemplo, pareciam, quando surgiram, algo banal e fútil, uma simples extensão das mensagens de texto de celulares. 41 Smartphone é um telefone celular com funcionalidades avançadas que podem ser estendidas por meio de programas executados no seu sistema operacional. Invariavelmente tem conexão com a internet e câmeras de fotografia e vídeo. 42 Tablet é um dispositivo pessoal em formato de prancheta que pode ser usado para acesso à Internet, organização pessoal, visualização de fotos, vídeos, leitura de livros, jornais e revistas e para entretenimento com jogos 63 Mas em pouco tempo percebeu-se que são ferramentas poderosas para a divulgação e o debate de acontecimentos importantes. Ao meu juízo, os microblogs, em particular o Twitter, dão a possibilidade de redefinição da relação entre produção de conteúdo, divulgação, mobilidade e rotinas produtivas pelas novas configurações que as tecnologias móveis digitais proporcionam. Estes são elementos importantes para os Policiais que editam blogs. Não é por acaso que todos os PMs que pesquiso possuem e gerenciam contas no Twitter. Na outra ponta da rede, onde estão os leitores/internautas, esta questão da velocidade e portabilidade também é importante, pois estes também realizam, muitas vezes, navegação por meio de telefones móveis em movimento, em deslocamento pelo espaço urbano. Eu, pelo dever de “ofício” de estar em contato com o maior número de informações possíveis, com a agilidade que o campo requer, aproveitei bastante da praticidade de “seguir43” a twittosfera44 relacionada aos meus interlocutores. Está claro que explorar este “novo caminho” foi bastante produtivo para a pesquisa. Não só pelas possibilidades de portabilidades e de agilidade no acesso as informações e dados postados, mas também por que alguns dos “nativos” mais interessantes só administravam páginas virtuais no Twitter. 2.5 – Dados sobre a Blogosfera e a Twittosfera Policial Antes de dedicar-me a análise dos textos postados pelos Policiais Militares, me parece adequado traçar brevemente um panorama de como está configurada a “comunidade virtual” ocupada pelos policiais militares. Neste esforço utilizo como 43 Seguir uma pessoa, grupo de pessoas, empresa de comunicação, blog, site etc. nos termos nativos significa que você terá acesso as informações do “seguido” imediatamente em sua página pessoal . A partir do momento que você segue alguém no Twitter, as atualizações desta pessoa passam a aparecer em sua página inicial. Desta forma você consegue saber o que está se passando no microblog da pessoa seguida sem ter que acessar a página de cada uma. 44 Twittosfera também é um termo nativo. 64 interlocutor o estudo “A Blogosfera Policial no Brasil: Do Tiro ao Twitter”, que foi coordenado pela cientista social Silvia Ramos e pela jornalista Anabela Paiva e responde pela introdução do tema no campo da segurança pública. A blogosfera policial, conceituada assim por seus próprios integrantes, é – do ponto de vista histórico e cronológico – um fenômeno recente. As primeiras páginas começaram a aparecer há bem pouco tempo e realmente se consolidaram a apenas quatro ou cinco anos atrás. Segundo informações do estudo de Ramos e Paiva, em um universo de setenta e três blogueiros45, mais de 80% do total46 dos blogs criados até o final da pesquisa tinham sido criados entre 2007 e 2009 (2009, p. 09). Os policiais militares são a grande maioria na confecção das páginas, correspondendo a 58% do total (2009, p. 09) o que mostra um protagonismo importante dos militares47. (Fonte: RAMOS & PAIVA, 2009 Pág. 16) 45 Nem todos eles eram policias militares. Alguns são jornalistas que tratam do tema da segurança pública, policiais civis, federais, bombeiros e rodoviários. 46 O universo total desta pesquisa consiste em setenta blogs e setenta e três blogueiros 47 A SENAPS (Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça) estima em 720.201 os profissionais de segurança no Brasil, distribuídos da seguinte forma: Polícia Militar: 56%; Polícia Civil: 15%; Bombeiros: 9%; Guardas Municipais: 10%; Pessoal do Sistema Penitenciário: 7%, Polícia Federal (2%) e Polícia Rodoviária Federal (1%). 65 Outro dado que também é interessante revelado pela pesquisa é que a maioria dos blogueiros não é jovem. Mais de 70% tinham, no período da pesquisa, mais de 30 anos de idade. Considero este fato digno de nota por que, representa uma contradição da percepção do senso comum de que o mundo virtual pertence aos mais jovens. Já a divisão da amostra por sexo mostrou que a tradicional predominância masculina na área de segurança foi acentuada: apenas três mulheres estão entre os setenta e três entrevistados (2009, p. 09). O trabalho indica também que a escolaridade dos blogueiros é alta. Somando os que já tinham concluído o ensino superior aos que completaram ou que cursavam, no período da conclusão do estudo, programas de pós-graduação, obtemos 62% dos entrevistados. Os que têm apenas até o ensino médio são 12,7% dos entrevistados. Outro dado interessante é que 57,7% dos respondentes afirmam já ter participado de cursos no programa de Educação a Distância (EAD) da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), da Senasp. (Fonte: RAMOS & PAIVA, 2009 Pág. 21). 66 Outra informação relevante contida na pesquisa diz respeito às formas de divulgação dos blogs. A troca de links, mecanismo natural de interação entre blogs, é o mais frequente. O uso de redes sociais (como Orkut, Twitter etc.), na época era praticado por penas 55,2%. A inclusão em sites indexadores foi mencionada por apenas 38,8%. (Fonte: RAMOS & PAIVA, 2009 Pág. 22). O caso do Twitter é muito interessante, mas infelizmente ainda não temos tantos dados em relação ao microblog. No entanto, já é possível fazer algumas aproximações tendo em vista que quase todos os meus interlocutores também participam ativamente da twittosfera. Além deste fato, a tabela acima revela que mais da metade dos blogueiros ouvidos pela pesquisa, utilizam suas contas no microblog para divulgar as informações postadas nos blogs. Danilo Ferreira, um dos meus principais interlocutores, e editor do blog Abordagem Policial, postou os motivos de sua “adesão” ao Twitter. Quem ainda não ouviu falar dessa mais nova maneira de interagir chamada Twitter? Pois é… O Twitter é uma rede social onde o usuário segue pessoas que tem conteúdo 67 interessante para oferecer, como indicação de links, cobertura de eventos, descrição do seu cotidiano, reflexões etc. Mas tudo isso só pode ser feito em, no máximo, 140 caracteres por mensagem. Eu estou lá, publicando diariamente conteúdo EXCLUSIVO para os interessados em polícia, segurança pública e temas afins. Visite o perfil http://twitter.com/danilloferreira, faça o “login” e clique em “follow” para me seguir (Blog Abordagem Policial, postado por Danilo Ferreira em 01outubro de 2009). Este post é importante por que sintetiza bem quais são as possibilidades e motivações na utilização de rede social como apoio as suas paginas virtuais. Além de divulgar o conteúdo dos blogs, existem alguns policiais que acompanhei no período da minha pesquisa, que se utilizam exclusivamente do Twitter para propalar suas opiniões e posições. O mais interessante e controverso deles é a conta Boca de Sabão (@bocadesabao). Boca de Sabão é uma conta anônima e coletiva48 no Twitter, que e ganhou relevância quando começou a fazer denúncias graves de corrupção dentro da policia. “Protegidos” pelo anonimato da tela do computador, @bocadesabao, que se define como “A Voz de quem não tem Voz. Aqui você fica sabendo dos bastidores da PMERJ”, denuncia à malversação, corrupção etc. de policiais militares dando “nome aos bois”, como diz o grupo. Este personagem e o que ele fala é muito instigante e interessante, por isto voltarei a explorar este tema mais a frente. Um último dado interessante para a pesquisa é o que se refere à perseguição e às punições contra os praças e oficiais da PMs que editam blogs e páginas do Twitter. O temor de retaliações ainda regula a blogosfera policial. Entre 48 Muito recentemente revelou-se que o @bocadesabao é produzido por quatro oficiais e apoiado por dez praças da PM fluminense 68 os 73 entrevistados, 27 disseram já ter sido censurados ou reprimidos. As ameaças de prisão e transferência vêm em primeiro lugar, com quase 26% dos casos. Casos notórios destas reações foram registrados no Rio, onde o comando da Polícia Militar (PM) puniu três autores de blogs, e em São Paulo, onde o blog de um delegado foi retirado da internet pela Justiça, a pedido da Polícia Civil (PC) de São Paulo. (RAMOS & PAIVA, 2009 Pág. 10). Este é o tema que vou priorizar daqui para frente. 69 70 CAPÍTULO III ANÁLISE DOS POSTS 3.1 – A repressão aos Blogs e aos Blogueiros A partir deste capítulo me concentro na análise e avaliação das repercussões dos textos postados pelos policiais militares na Blogpol. De inicio, insisto na temática que encerra o segundo capítulo e organiza esta pesquisa. Faltam algumas horas para nossa participação no Campus Party a respeito da Blogosfera Policial. Essa é a continuação da minha organização de ideias sobre blogs policiais… Desde segundafeira, mais de seis mil campuseiros do Campus Party estão celebrando a liberdade na Internet. Compartilhando informação, de forma descentralizada e totalmente livre, um lugar rico e livre para produção, reprodução e compartilhamento de informação. É o sinal dos novos tempos! O tempo que as pessoas passaram a gostar de interagir, opinar, colaborar e compartilhar. Essa é a era de constante formação de opinião, a era dos blogs. Essa cultura, que já acordou algumas empresas e já é realidade no mercado digital, ainda engatinha (sendo bastante benevolente) nas polícias. A evolução ocorre, porém não sem choques. A legislação interna das polícias e o Código Penal Militar (no caso das polícias militares) tem regras bastante proibitivas para quem deseja discutir sobre Polícia e Segurança Pública na Internet. O fato de a Constituição Federal, nossa lei maior, assegurar a liberdade de expressão, não tem evitado que hajam retaliações contra blogueiros policiais. Até porque a liberdade de expressão 71 tem limites difíceis e subjetivos de mensurar, e algumas das legislações das polícias, ainda que não estejam consonantes com a constituição, ainda existem e estão em vigor. A administração das polícias, quando lhe convir, pode lançar mão dessas leis retrógradas. E mesmo que o punido recorra da medida, ele já terá sofrido a retaliação, que servirá também de aviso aos demais que ousem se expressar publicamente na internet. Alguns casos recentes de punições motivadas por postagens em blogs policiais (Blog Diário de um PM, postado por Alexandre de Souza em 22 de janeiro de 2009). Após a defesa de alguns dos principais elementos que aparecem recorrentemente no discurso dos policiais blogueiros, o Tenente Alexandre de Souza, um dos meus principais interlocutores, reproduz do blog Abordagem Policial, que é editado pelo policial Danilo Ferreira, uma “síntese histórica” dos casos de repressão aos membros da Blogpol. Blog do Major Wanderby Quando: setembro de 2008; Autor: Maj. Wanderby Medeiros Motivo: Publicou “crítica indevida a ato do superior hierárquico”; Medida: Abertura de 3 Inquéritos Policiais Militares em virtude de denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Mais detalhes Comentário no blog do Major Wanderby Quando: setembro de 2008; Autor: Maj. PMERJ Roberto Viana; Motivo: Solidarizou-se com a denúncia que atingiram o Maj. Wanderby num comentário; Medida: Doze dias de prisão administrativa, aplicada pela Corregedoria da PMERJ. Blog Flit Paralisante 72 Quando: outubro de 2008 Autor: Dr. Conde Guerra; Motivo: Questionou “as diretrizes políticas” de sua polícia, a PCESP; Medida adotada: O blog foi retirado do ar por determinação da Justiça. Blog do Capitão Luiz Alexandre Quando: dezembro de 2008; Autor: Cap. PMERJ Luiz Alexandre Motivo: Denunciou em seu blog “que policiais militares e bombeiros militares, não lotados na PCERJ, mas em suas respectivas Corporações, e um ex-PM expulso da Corporação estariam, em tese, andando por aí, sem autorização, armados, em viaturas da Polícia Civil, e com agentes sabedores da situação deles”; Medita adotada: Foi chamado a prestar esclarecimentos na Corregedoria Geral Unificada do Rio de Janeiro. Post do Coronel Menezes Quando: Janeiro de 2009 Autor: Coronel PMERJ Menezes Motivo: Ter escrito e publicado, em diversos blogs o texto “A Perversidade do “Bico” e a “Privatização da Segurança Pública”“. Medida adotada: Cinco dias de prisão administrativa, a primeira punição em quase 35 anos de serviço. As polícias do futuro e os blogs Para toda uma geração que está surgindo, a internet e os blogs não são mais nenhum bicho de sete-cabeças. Logo logo essa geração estará adentrando as fileiras das Corporações, e depois estarão no comando essas Corporações. Não tem como voltar atrás. Aprendamos de uma vez por todas que é o fim da era industrial. E esse é um caminho sem volta! Seria muito mais inteligente se as polícias utilizassem os blogs de seus integrantes como estratégia corporativa. Em vez de repeli-los, seria interessante trazer os blogs para junto da Corporação. Como? primeiro tendo seu próprio blog corporativo (dei 5 motivos para isso aqui), se integrando à 73 Blogosfera Policial e estabelecendo internamente uma política para os blogs, inclusive trabalhando fortemente na fiscalização, comunicação e conscientização das consequências de se postar informações inapropriadas, como informações confidenciais, por exemplo. É assim que trabalha o Exército dos EUA com relação aos Milblogs, os blogs de militares na guerra do Iraque. Críticas participativas, feitas de forma argumentativa, com cunho profissional, científico ou acadêmico não são um perigo, mas sim aliados, de qualquer melhoria dentro e fora das polícias. Pesquisa sobre liberdade de expressão nas polícias Aproveito para divulgar a pesquisado CultCoolFreak e da ONG Artigo 19, conhecida defensora dos Direitos referentes à liberdades de expressão. Eles começaram um projeto para monitorar as constantes perseguições sofridas por policiais por manifestarem suas opiniões. Responda ao questionário da pesquisa caso tenha sido vítima. Todas as informações são sigilosas”. (Blog Diário de um PM, postado por Alexandre de Souza em 22 de janeiro de 2009) Este post me parece bastante significativo para ilustrar a contenda entre o comando da corporação da Polícia Militar e os Policiais que alimentam blogs e microblogs. A hostilidade em relação a estas “ferramentas virtuais” está associada à sensibilidade de autoridades em relação às mudanças que vem ocorrendo e que certamente se aprofundarão no cenário geral da segurança pública. Refere-se também a rupturas profundas no funcionamento de instituições seculares, pouco acostumadas e pouco dispostas a ouvir as vozes nas bases das corporações ao longo deste processo. Retomando alguns dos dados colhidos no estudo de Silvia Ramos e Anabela Paiva, podemos perceber que os blogueiros consideram que tem apoio decidido dos seus colegas (91,8%). Quando se trata de seus superiores hierárquicos, as avaliações se dividem, pois apenas 24,3% acham que eles aprovam o blog. Um quinto (20%) acha que eles reprovam e uma parcela semelhante (21,4%) acha que eles são indiferentes 74 (2009, p. 36). É o que aparece retratado no post a seguir: A PM completou 200 anos em maio, mas parece que continua tentando olhar para um passado sem futuro. No dia em que a blogueira cubana Yoani Sánchez - perseguida pela ditadura de seu país - ganhou o mundo por conseguir uma entrevista exclusiva com o presidente Obama - para seu blog Generacíon Y, o comandante-geral em exercício da PM, coronel Álvaro Garcia, fez um discurso inflamado condenando blogueiros e twitteiros que criticam a Polícia Militar. Um discurso que me lembrou muito aquelas palavras de censura à imprensa e à liberdade da sociedade civil nas ordens do dia dos quartéis, em dias de festa da falecida ditadura militar. Não acredito que seja uma coincidência os dois episódios ocorrerem no mesmo dia - um envolvendo personalidades na internet e outro no mundo real do 15º BPM, em Caxias, com um oficial do primeiro escalão (...). Como um general de republiqueta, o comandante-geral em exercício, coronel Álvaro Garcia, disse: - "Não vamos nos deixar levar por esses covardes que tentam macular a nossa imagem. Eles ficam atrás de blogs ou Twitters, mas, se fossem corajosos, falariam em público e não por meio de denúncias apócrifas. Não deixeis cair em tentação. Não deixeis vos levar por aqueles que não mereciam estar aqui". Embora sem dúvida ocorram exageros e ofensas, as denúncias anônimas da blogosfera e Twittosfera policial devem ser levadas em conta pelas corregedorias das polícias. Não se pode atacar denunciantes sem antes verificar a suposta veracidade das denúncias feitas por eles. Um deles, o principal alvo do discurso do coronel, é sem dúvida os twitteiros Boca de Sabão formado por oficiais e praças da PM, que denunciam irregularidades e corrupção na PM do Rio. O discurso também teve cheiro de provocação ao tenentecoronel Roberto Alves de Lima, que foi transferido para a Direção Geral de Pessoal, a DGP. Segundo apurou o blog Casos de Polícia e Segurança, do "Extra", a "relação do tenente- 75 coronel Roberto com a cúpula da Secretaria de Segurança foi prejudicada por sua participação em movimentos de reinvidicação por melhores condições de trabalho". Pelo pouco que conheço do coronel Roberto deixo meu testemunho pessoal, de que é um desperdício para a sociedade ter um oficial como esses na geladeira, que é como se chama na prática a DGP. Apesar de o próprio comandante-geral, em viagem de serviço em Paris, ter sido um dos primeiros a aderir às mídias digitais e garantir que não persegue o Boca de Sabão, usuário do Twitter, o coronel Mário Sérgio tomou uma bola nas costas do subordinado (o coronel Garcia) ou então ainda não conseguiu convencer seus auxiliares de que a internet veio para ficar. A corporação precisa entender que o mundo mudou e aprender a lidar com a liberdade dessa mídia. Uma das formas mais simples e em benefício da sociedade seria abrir inquéritos para se investigar as denúncias feitas pela twitosfera policial. Sem medo de que elas sejam a expressão mais pura da realidade”. (Blog Abordagem Policial, postado por Danillo Ferreira em 14 de abril de 2009) Os exemplos de repressão e as conseqüentes denúncias durante este período se multiplicaram. Uma das ações que ganhou maior notoriedade se refere ao caso de reprimenda ao blog Flit Paralisante, mantido pelo agora ex-delegado da Polícia Civil Roberto Conde Guerra. Este caso, que ocorreu no ano de 2008 no Estado de São Paulo, é interessante para este trabalho porque, segundo seu autor, lhe foi cassada a palavra: (...) porque denuncia policiais corruptos e critica o governador de São Paulo, José Serra. Estas criticas já ajudou a punir policiais corruptos e o blog até é citado em petição do ministério publico num caso onde outro delegado e sua filha são acusados de lavagem de dinheiro” (Blog Flit Paralizante postado pelo ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo, Roberto Guerra, em 31 de novembro de 2010). 76 Este trecho foi retirado de um texto postado dois dias após a polícia ter executado a ordem judicial de busca e apreensão na casa do ex-delegado, sendo apreendidas uma CPU de computador e outras mídias (como pen drives e DVDs). O delegado já havia sido “censurado” judicialmente em outra oportunidade, tendo seu blog retirado do ar e o provedor Google sido exortado a não mais fornecer-lhe hospedagem, num episódio que, segundo declaração do Guerra, “supostamente envolveu o governador de São Paulo e ofensa à honra, durante a greve da policia civil paulista”. Ao voltar ao ar, o blog lançou campanha contra censura, que recebeu ampla adesão, fazendo uso de imagens muito fortes, como esta que reproduzo abaixo: Neste movimento, a Polícia Militar do Rio de Janeiro não ficou para atrás. No mesmo ano de 2008 abriu processo judicial por “crítica indevida a superior hierárquico” contra o major Wanderby Medeiros. No mesmo mês, puniu o major Roberto Vianna com pena de prisão por ter-se solidarizado com o major Wanderby. Logo em seguida, o comando da PM mandou prender o Coronel Menezes, que não tinha blog até aquele momento, mas deixou publicar o artigo “A perversidade do bico e a privatização da segurança pública”, no blog do Coronel Paul. 77 Mais à frente voltarei a este caso. O que é mais importante agora é afirmar a ideia de que, embora o controle explícito não seja exclusividade das PMs, são nestas instituições militarizadas que isto aparece de forma mais evidente do que, por exemplo, nas instituições civis. A possibilidade iminente da aplicação do Regulamento Disciplinar interno parece potente o suficiente para estabelecer uma gramática pedagógica opressiva. Para trazer um exemplo do que me refiro, lembro o sexto artigo do atual Regulamento Disciplinar da Policia Militar do Rio de Janeiro que postula: (...) A Disciplina Policial Militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever e das leis por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo policial militar (Regulamento Disciplinar da Policia Militar do Rio de Janeiro). Esta norma inclui policiais da ativa e também os inativos que já se desligaram da força policial. Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, todas as iniciativas formais estão voltadas para a internalização de uma “disciplina consciente”, com pretensões de atingir todas as esferas da sociabilidade do policial, procurando antecipar-se e normatizar de forma meticulosa tudo o que não se pode fazer. Isto se traduz, é claro, em uma rígida camisa de força cujo ápice é a insolúvel tensão entre a exigida uniformidade da conduta militar – em benefício da corporação – e as esferas privadas de liberdade e ação individual. Esta é uma realidade tão presente na vida de qualquer policial que é impensável imaginar que este não seja um elemento determinante. Isto é comprovado nas conversas que tive com meus interlocutores. O Major Wanderby assim me falou: 78 Claro que sabíamos que poderia dar problemas. O que não poderíamos deixar é que estes problemas impedissem que nos expressássemos livremente. No entanto, o perigo estava sempre presente. Você não vê o que acontece comigo, o apuro que eu estou passando. Eu virei um símbolo. Ramos e Paiva recolheram informações similares: Um policial militar disse:“quando fui chamado para uma averiguação, aí fui saber que no nosso regulamento disciplinar, tem sim, como prender qualquer blogueiro por transgressão disciplinar baseado na passagem que diz que é proibido comentar sobre questão de polícia militar ou política, sem autorização, salvo questões meramente técnicas e com autorização. Então se for se ater na letra do regulamento e esquecer a Constituição, a gente poderia sim ser preso. É claro que a Constituição é maior e tem a liberdade de expressão. Mas aí a gente entra numa discussão de corrente jurídicas, entendeu, então se me prenderem com base no RDPM (Regimento Disciplinar da Polícia Militar), eu estou preso; até convencer, ir pra justiça e dizer: a Constituição é maior e tem o direito de liberdade de expressão... aí a prisão já ocorreu”. (2009, p. 39). O que aparecia nos blogs que eu acessei confirmava isto: Policial punido por causa de blog, de novo? Começou hoje a punição disciplinar do coronel Ronaldo Antonio de Menezes, que vai ficar quatro dias preso disciplinarmente no 4º Comando de Policiamento de Área. Sua transgressão disciplinar foi escrever um artigo que fazia um paralelo entre o conhecido “bico” (atividade paralela dos policiais para complementarem a renda) e o quadro atual de segurança pública. Como já disse, na letra do nosso regulamento disciplinar, não 79 podemos discutir política, militarismo e Polícia Militar sem autorização. Qualquer um que o faça sem autorização, comete transgressão disciplinar. Neste exato momento, cometo transgressão disciplinar, já que mantenho este blog sem autorização de ninguém. Também escrevo esse texto sem autorização, logo, passível de ser preso (seja justo ou injustamente, não importa). Dependendo da interpretação e do ânimo de punir de quem lê, cometo crime militar, e de pronto viro criminoso. Foi o que aconteceu com o Major Wanderby, que já teve uma série de punições disciplinares devido ao blog, responde na justiça por crime militar e agora foi excluído do quadro de acesso para promoção – tudo devido aos seus blogs. Neste momento sinto que qualquer coisa que escrever sobre o caso será mera repetição. A censura à blogosfera policial vem ocorrendo sistematicamente não é de hoje, e já foi abordado aqui e vários outros blogs. A própria punição do Coronel Menezes já havia sido antecipada em janeiro pelo Gustavo de Almeida e chegou a ser comentada aqui no blog e na Campus Party em fevereiro. Nada do que eu falar agora será novidade. Se já acompanha o blog a um tempo, você já leu. Senão, aqui está o que penso sobre fatos como esse: Blogosfera Policial e Censura Diário do Stive – Coronel preso por comentar em blog (repercussão) Abordagem Policial – Blogosfera Policial e Censura Abordagem Policial – Liberdade de Expressão e Militarismo Blog da Segurança Pública – Censura a blogs policiais. Você tem medo de que? Caso de Polícia – De novo, de novo Capitão Luiz Alexandre – Quem prende quem? Coronel Emir Larangeira – Liberdade de Expressão CultCoolFreak – Polícia Pensante (Blog do Carlão postado pelo Capitão Carlos Assumpção em 19 de junho de 2009) 80 É notório que todos os policiais conhecem o Regimento Disciplinar da Polícia Militar, que em seu Anexo I preconiza como transgressão: Manifestar-se publicamente a respeito de assuntos políticos ou tomar parte, fardado, em manifestações de mesma natureza; e publicar ou contribuir para que sejam publicados fatos, documentos ou assuntos Policiais Militares que possam concorrer para desprestígio da Corporação ou firam a disciplina ou a segurança. Podemos inferir, portanto, que estes homens e mulheres escolhem, de certa maneira, uma postura de enfrentamento que toca a “transgressão”. Como exemplo, cito um post em que o sargento Superbi, membro da Polícia Militar da Bahia demonstra conhecer muito bem o regulamento da corporação: Liberdade de expressão e militarismo. Numa reunião informal com alguns blogueiros baianos e Alexandre Inagaki, este último me perguntou: “vocês são proibidos de falar alguma coisa no blog?”. Sim, respondi. A disciplina peculiar às instituições militares – seja nas forças armadas ou nas polícias militares – limita a manifestação de seus servidores em alguns aspectos, uns explicitamente definidos em lei, outros já culturalmente arraigados nos costumes da caserna. Exemplo de norma que limita o teor da manifestação dos militares está no Código Penal Militar, quando diz, em seu artigo 166: Ele prossegue: Art. 166. Publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou 81 documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo: Pena – detenção, de dois meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Apesar da categórica proibição, o próprio Código flexibiliza a conduta, quando trata do crime de Ofensa às Forças Armadas (art.219 do CPM), e exclui a pena para “a apreciação crítica às instituições militares, salvo quando inequívoca a intenção de ofender”, e para quando se tratar da “opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica” (incisos II e III do Art. 220, respectivamente). Administrativamente, há outras limitações, que se adequam às determinações do comando de cada força, a exemplo do que determinou, em janeiro deste ano, o comando da Polícia Militar de Minas Gerais: “Fica proibida a utilização de imagens institucionais, de viaturas, de militares fardados ou que conduzam ao entendimento de que seja de integrante da Polícia Militar, em sites de relacionamentos ou similares, páginas pessoais ou empresariais, blogs ou qualquer outro meio de divulgação desenvolvido na Internet” Culturalmente, a manifestação de ideias e opiniões por parte dos militares fica resumida na frase dita certa vez por um oficial da APM-BA: “o militar tem a permissão para dizer o que quiser, mas na posição de sentido”. (Comunidade PMBA no Orkut: como controlar?). É interessante que o Sargento relaciona as restrições impostas pela dinâmica militar, com os direitos liberais de cada cidadão Brasileiro: Quando se questiona essas limitações ao policial, a crítica vai diretamente ao caráter de espargidor de cidadania que todo policial deve possuir em sua atuação. Se, por um lado, o policial não é pleno no exercício dos direitos comuns aos demais cidadãos, poderá ele ser um distribuidor de cidadania? Se 82 cotidianamente o policial encontra problemas de complexidade tal que uma visão maniqueísta não é suficiente para solucionálos, e, por conseguinte, deve desenvolver grande capacidade de flexibilização, entendimento e convencimento, por que ele não pode usar esses atributos para promover discussões sobre a realidade em que está inserido, modificando-a, desde que de maneira respeitosa, como em qualquer outra profissão se faz? E, por fim, assinala a potencialidade da internet na constituição de espaços livres de expressão: Na atual realidade, onde a internet ampliou de modo assustador as possibilidades de expressão das pessoas, é praticamente impossível limitar a difusão de opiniões ou idéias de qualquer grupo social. Antes, cabe às organizações militares conscientizar e discutir internamente com todos os seus participantes as conseqüências que pode gerar, por exemplo, um simples scrap no orkut ou uma palavra dita em uma entrevista para um jornalista. A sugestão para os militares que entendem que o fomento de discussões e a produção socializada de conhecimento são necessárias para o desenvolvimento da profissão que, antes de mais nada, tem caráter eminentemente social, é a utilização do bom senso ao publicar qualquer conteúdo. Aqui no Abordagem nunca tivemos problemas de ordem disciplinar relacionados ao teor dos posts no blog, ao contrário, comumente recebemos elogios dos superiores hierárquicos que nos leêm. Se por um lado as polícias devem promover a liberdade de expressão para os seus participantes, com a natural limitação existente para que não cometam calúnias, injúrias ou difamações, é preciso que os policiais imponham-se através da responsabilidade nos seus discursos falados e escritos, da não utilização da verborragia incendiária (que talvez seja conseqüência das limitações existentes) e da maturidade no teor das palavras. Muitas vezes, o problema não está em dizer, mas no modo que se diz, e é atentando a isso que a maioria dos 83 blogs policiais, por exemplo, estão conseguindo se impor como formadores de opinião. (Blog Universo Policial, postado pelo Sargento José Ricardo Supérbi em 01 de Janeiro de 2009). Assim, devemos considerar que as regras e as normas intencionam que a disciplina militar, que deve emergir e se refletir nos regulamentos, seja ferramenta para a contenção dos desvios praticados contra o cidadão. Servem para colocar limites na discricionariedade policial. Prevalece a ideia de que os dispositivos disciplinares consistem em uma espécie de remédio amargo, porém necessário, para os problemas crônicos da Polícia se faz presente. No entanto, este remédio não parece resistir à demonstração empírica dos seus resultados terapêuticos nas diversas agencias que fazem uso da modelagem paramilitar (MUNIZ, 1991). A PM, pelo menos em seus aspectos formais, valoriza a disciplina em detrimento de um projeto pedagógico que concorra para a autonomia dos policiais. Não colabora para “um projeto pedagógico consistente, capaz de instruir os policiais sobre um processo decisório em ambientes de incerteza e risco” (MUNIZ, 1991 p. 145). 3.2 – A transição: a mudança do Modus Operandi no controle e repreensão institucional Como vimos a reação ao fenômeno dos blogs e do Twitter por comandos e chefias de policias, em alguns casos por secretarias de segurança e governos estaduais, foi repressivo e conservador. No entanto, esta reação não foi homogênea em todo o país e para alguns comandos – desde o inicio do processo – foi positiva a novidade. É interessante notar que em alguns governos considerados de forma geral mais progressistas, tiveram reações mais duras ao assunto enquanto outros, dirigidos por partidos conservadores, foram mais receptivos ao acontecimento. 84 Estive inclinado, por considerar que renderia conteúdos mais interessantes, aos casos em que a perseguição contra os policiais blogueiros foi mais radical. Eles apareceram no decorrer do trabalho. No entanto, como já me referi anteriormente, o campo de pesquisa me indicou uma variação importante no tema. Justamente nos estados em que se estabelecia a chamada “linha dura”, como era o caso do Rio de Janeiro, os métodos de coação se alteraram sensivelmente durante o tempo. As variações foram de todo o tipo. Focalizo agora um víeis que ganhou um contorno, mais subterrâneo e perverso, como diria o PM Flavio Henrique49. A tendência50, nesse momento, era de mudança e dizia respeito, principalmente, à forma de lidar com a questão, sem alterar a ideia de que o ato é uma grave transgressão disciplinar. Os processos e prisões administrativas, além das tentativas de expulsão, deram espaço para as “conversas de corredor e ao pé do ouvido”. Apareciam em forma de conselhos dos policiais mais experientes e dos mais afinados com os comandos. As referências e as pistas que apareciam nas entrevistas e até em alguns dos posts eram claras. Um testemunho importante foi dado por Alexandre de Souza: O comando deixava claro, deixava que chegasse aos nossos ouvidos, às vezes até por um policia da mesma patente ou da mais baixa. Manter aquele comportamento poderia prejudicar a nossa carreira. Quem quisesse subir rápido, ter algumas facilidades, deveria ficar longe da internet. Nesta passagem meu interlocutor deixa claro que o comando pode facilitar ou dificultar a carreira de quem é um “pato novo” (SILVA, 2009) na corporação, a 49 Policial Militar do Rio de Janeiro que, com o Tenente Alexandre de Sousa, edita o blog Diário de um Policial Militar. 50 É claro que este é um processo complexo, heterogêneo e, até certo ponto, contraditório. Apesar da postura dos comandos terem sofrido câmbios significativos, ainda se podem constatar reações duras contra os blogs ou contas de Twitter. 85 depender de como o neófito se alinha ao comando. Esta é uma mudança significativa. Tal processo também aparece no trabalho de Ramos e Paiva: Um jovem policial, que nunca foi censurado ou reprimido, acrescenta: Convém esclarecer que, como estou em início de carreira, evito deliberadamente críticas diretas, por fundado receio de retaliação. Acho que outros, principalmente novatos, também têm este receio. Na polícia, a forma mais rápida e ‘legal’ de se punir algum subordinado desafeto é escalá-lo ou transferi-lo para horários, serviços, regiões ou equipes incompatíveis com suas condições e valores. (...) Posteriormente, conforme o rancor despertado, ele será preterido nas promoções subjetivas, impactando diretamente sua remuneração e ascensão funcional, entre outras ações de assédio. (...) Isto ocorre em todas as polícias, não só na Militar, onde os direitos fundamentais inexistem”. O mesmo policial assinala, entretanto, que esta situação está mudando. “Na era do conhecimento, tem poder quem controla a informação e o conhecimento”. Com a internet, o Orkut, o YTB e os blogs, “a balança do poder pendeu para o lado até então mais fraco”. Mas o temor de retaliações ainda regula a blogosfera policial. (2009 Pág. 38). Mesmo que esta mudança possa significar um “arrefecimento” na “linha dura”, não se pode, de maneira alguma, negligenciar que este tipo de “punição” tem um grande impacto sobre a tropa e representa um inconveniente significativo: “ninguém quer mudar quando já está bem estabelecido. Isto não acontece só com quem quer buscar grana suja”, disse-me uma vez o Capitão Melquisedec Nascimento. Mesmo sendo um revés e um problema, tais mudanças demonstram uma alteração qualitativa na relação dos comandos com os blogueiros. As causas desta “inflexão” são múltiplas. O primeiro elemento se refere aos “artefatos tecnológicos” (LATOUR, 2008). 86 Pelas características da internet e a expertise dos blogueiros, fica muito difícil bloquear ou retirar da rede qualquer página. Diversos blogueiros relataram bloqueios em endereços específicos da internet, que sempre se relacionavam a algum blog, ou a página do Twitter. Não se podia, usando a rede interna dos quarteis, acessar aos “blogs proibidos”. Estes bloqueios não ocorreram somente no Rio de Janeiro. Tive noticias que outros Estados também recorreram a este tipo de censura, o que demonstra uma ação, até certo ponto, articulada. Conforme ressalta o post a seguir: Fomos sabotados! Alguém muito mal intencionado me sabotou e apagou meu blog da rede. Pior que isso é descobrir que tem um twiter com o nome praças da PMERJ criado por outra pessoa. Vou começar do zero contando com a colaboração dos amigos blogueiros para divulgar esse infortúnio e para poder continuar prestando um serviço de informação a meus companheiros. Claro que eu não esperava nada muito diferente disso, já que meu blog era um dos mais visitados e populares da internet, chegando ontem as 07:30h ao número de 812.214 visitantes em nossos quase dois anos de existência que completaríamos no dia 16 de Dezembro. Agradeço a paciência de todos e espero voltar a ativa muito em breve. Obrigada. (Blog Praças da PMERJ postado pelo Cabo Verdade em 20 de Abril de 2009) Mesmo com isto, em geral, este tipo de bloqueio é facilmente eliminado quando, em vez de simplesmente digitar a URL da página na barra de navegação, o usuário acessa o blog através de sites de busca, como o Google. A verdade é que a Polícia Militar, ou qualquer outra corporação, não possui dispositivos legais específicos para regular a atividades de seus membros no mundo virtual. E, por outro lado, o argumento de que a liberdade de expressão é uma elemento 87 consagrado na Constituição Federal e algo fundamental para uma sociedade moderna, sempre foi recorrente e forte na boca e nas páginas dos PMs A crescente utilização da tecnologia e destes novos canais de comunicação, bem como os argumentos utilizados por estes policiais blogueiros “foi uma calça justa”, como descreveu certa vez o Coronel Helio Luiz Neves, para uma corporação historicamente conservadora e particularmente fechada em relação a manifestações individuais de opiniões por seus membros. No entanto, o elemento mais forte que impulsionou as mudanças descritas foi, sem dúvida, a recepção e as repercussões externas da perseguição aos blogs. Todo este processo recebeu grande audiência fora dos batalhões, principalmente pelos jornais fluminenses. Eram noticiados e, quase que imediatamente, reproduzidos e difundidos por outros blogs, jornalistas, twitteiros, deputados, vereadores e outros interlocutores ligados à área da segurança pública. Um caso simbólico e paradigmático envolveu o Coronel Ronaldo Antônio Menezes. Informa-nos o blog Segurança Pública - Desafios e Perspectivas, do Tenente Coronel Antônio Carlos Cabalo Blanco, que a prisão do oficial, além de ser destaque em três jornais de grande circulação no estado do Rio de Janeiro, mobilizou a intervenção de alguns parlamentares, como os deputados estaduais Marcelo Freixo (PSOL – RJ) e Flávio Bolsonaro (PP – RJ), e dos vereadores Paulo Eduardo Gomes (PSOL), Renatinho (PSOL) e Felipe Peixoto (PDT), todos da cidade de Niterói. Por ocasião deste episódio, Marcelo Freixo afirmava que: (...) o governador Cabral tem que rever essa prisão, que é inaceitável. Ele tem esse poder e não pode se omitir. Não estamos aqui em visita ao coronel somente em solidariedade a ele. É muito simbólico que essa prisão tenha ocorrido na mesma semana em que houve a condenação de milicianos como o 88 vereador Jerominho e o deputado Natalino e a expulsão da Polícia Civil de Álvaro Lins (ex-chefe de Polícia e deputado estadual cassado). Os fatos colocam a Polícia Militar na contramão. O que o governo vê com bons olhos? (Blog Segurança Pública – Desafios e Perspectivas, postado pelo Coronel Carbalo Blanco em 14 de março de 2009). Blogs de todo Brasil repercutiram com muita intensidade o tema. Reproduzo aqui um post do Blog do Stive51, que é editado pelo soldado Robson Nielson, policial militar do estado de Goiás: Depois da exclusão absurda do Maj. Wanderby do quadro de acessos, agora uma notícia ainda mais assustadora envolvendo Blogs policiais no Rio de Janeiro. UM CORONEL É PRESO ADMINISTRATIVAMENTE, POR 5 DIAS. O Rio de Janeiro é o Estado em que MAIS há registros de existências de blogs policias(dez vezes maior que a média nacional) e todos MUITO ativos. Esta grande atividade dos blogs policias deve-se, sem dúvida, pela inconformidade de policiais idealistas com o descaso das POLÍTICAS DE GOVERNO com a Segurança pública no Rio. POIS parece que o Governador Sérgio Cabral prefere investir APENAS na cúpula da PM, como aconteceu com o aumento salarial de 223% para eles e para os demais NADA. O RIO DE JANEIRO é o estado em que mais morre policiais no dia-a-dia, sendo ainda o pior salário do país52. 51 O termo Stive é um das formas de se referir a um policial parceiro, companheiro. Segundo o Soldado Nielson, “O termo é uma gíria de grupo, comum entre os policiais no Brasil, principalmente por se referira ao ator Steve Seagal, que se tornou um ator muito famoso em Hollywood por filmes policiais”. (Blog do Stive, postado por Carbalo Blanco em 14/03/2009) 52 Reproduzo aqui no exato formato que foi publicado no blog, incluindo ai o formato em caixa alta. 89 (Blog Diário do Stive, postado por Robson Nielson em 13 de março de 2009) Já no primeiro encontro que tive com os policiais Danilo Ferreira e Alexandre Ferreira, me foi revelado esta questão: Nos últimos tempos a situação tem mudado bastante nos quartéis. Acho que a chefia percebeu que não adianta reprimir desta forma... Fica feio para eles, as pessoas comentam muito. Tivemos um monte de matérias de jornais, com gente importante, deputado... falando que isto não podia acontecer. Teve muita reação a prisão do Coronel Menezes. Esta série de fatores mudou a forma com que o comando da Polícia Militar se relacionava com as manifestações públicas de policiais. A divulgação das perseguições e processos, que dava publicidade e ensejava reações do “mundo fora da caserna”, combinada com outras iniciativas, modificou a maneira com que a repressão aos blogs se dava em praticamente todos os estados. Alexandre Ferreira afirma: A partir do momento que, vamos dizer assim, o aparelho repressor não teve como impedir a liberdade de expressão na internet, eles tentaram, mandaram procedimentos de punição administrativa, mas sentiram que não tinham amparo legal para 90 punir, que a gente estava se manifestando, que era uma troca de ideias, os blogs foram ganhando, vamos dizer assim, uma consistência. Eu acho que o crescimento é até irreversível. Eu acho que a tendência é cada vez crescer mais, porque não há como controlar. Não é igual na China, eles já censuraram Twitter, internet, aqui não tem como censurar; a não ser que você entre judicialmente, que o teu blog esteja ofendendo alguém, aí judicialmente eles fazem o contato, mesmo assim vai para o provedor, tem aquela dificuldade. Então as pessoas, primeiro começaram muito como anônimas, mas agora já estão se identificando, saíram do armário (...). No processo de transição, como quase sempre acontece, estão presentes elementos ambivalentes e, em certa medida, paradoxais, que impulsionaram câmbios intensos e, de certa forma, velozes. Conviveram e convivem ainda forças que encorajam e afastam os militares do debate virtual. “Conheço polícias que gostariam muito de escrever ou colaborar com blogs, mas tem medo das repercussões, ao mesmo tempo em que eu vejo a nossa comunidade se ampliar cada dia mais” me contou certa vez Wanderby Medeiros. O que vi é que, apesar das pressões, dos controles mais reservados ou das ameaças mais explícitas, a tendência atual é de alargamento da blogosfera. Um fato simbólico e interessante deste processo de transição pelo qual passou a Blogpol, é que agora já existem diversos blogs “oficiais” das corporações policiais e/ou dos comandantes gerais. O exemplo mais extremo e marcante é o caso da polícia militar do estado do Rio de Janeiro. Já vimos algumas das radicais reações PMERJ aos blogueiros, como a prisão de um coronel de policia em março de 2009. Neste contexto, é surpreendente que em, menos de dois anos, seria lançado o blog do comandante geral da PMERJ, que no período era o Coronel Mario Sergio Duarte. 91 Além deste blog, que está hospedado na rede de informática oficial do estado (http://pmerj.org/blog/), a PMERJ possui também um endereço no site Twitter. Observar este processo foi interessante também para perceber como é veloz e eficiente o intercâmbio de informações e experiências entre os PMs blogueiros. Esta é uma característica importante deste “grupo social” que pesquiso. A capacidade de mobilização e o estabelecimento de relações solidárias é algo notável. É interessante perceber como se formam as redes de “apoio mútuo”, fortificando os laços horizontais de solidariedade. Está claro que esta cumplicidade e unidade de grupo produzida não estão, necessariamente, a serviço da constituição de estruturas paralelas de poder. Parece-me que se organizam aí recursos de sociabilidade (SIMMEL, 1983) comuns àqueles atores 92 sociais que se percebem à margem das esferas privilegiadas de interação dentro de seu próprio território social. Da mesma forma, o processo que observei e a relação com os interlocutores deixaram clara a vitalidade do conceito de ator-rede (LATOUR, 2008). Nas dinâmicas que observei o mais importante não é estabelecer um centro normalizador de estabilidade. Muito pelo contrário, desejam a disseminação “anárquica” pelo maior número de mediadores que conseguir. O mais importante está, como nos diz Latour, na noção de junção, de ligação, de vínculo entre elementos híbridos. Mediadores aqui são entendidos como seres/agenciamentos que não são nem puros humanos e nem puros não humanos. Latour os denomina actantes. Nas próprias palavras do sociólogo: O segredo é definir o ator com base naquilo que ele faz – seus desempenhos (...). Uma vez que, em inglês, a palavra actor (ator) se limita a humanos, utilizamos muitas vezes actant (atuante), termo tomado à semiótica, para incluir não humanos na definição (LATOUR, 2001, p. 346). Estas ferramentas metodológicas ajudam a dar a dimensão complexa de que vivemos em um sistema de relações. Na teoria ator-rede trata-se de descrever a rede de relações, de avaliar as redes, observar o que elas fazem e como aprendemos a ser afetados por elas. Tais noções são importantes para que possamos organizar e operacionalizar metodologicamente as informações que obtenho no campo, além de revelar uma perspectiva complexa de todo o processo. As consequências da inflexão na política linha dura dos comandos representaram, por óbvio, uma “boa noticia” para os meus interlocutores, que já não 93 eram mais, em sua imensa maioria, constrangidos a escrever em seus blogs. No entanto, tal mudança de postura da corporação provocou um câmbio importante na perspectiva da pesquisa. 3.3 – Novos temas debatidos pela Blogpol É necessário que fique claro: a questão da disciplina e hierarquia ainda permanecem como elementos centrais no universo dos policiais militares. Não é por que se estabeleceu uma nova perspectiva dos comandos que o tema não seja relevante. No entanto, com as mudanças ocorridas, a questão muda de qualidade no contexto da Blogpol. Como consequência disto, a partir de certo momento, os textos, denúncias, reivindicações, campanhas etc. não aparecem mais nas páginas virtuais. Com esta realidade, me pareceu correto ampliar o escopo e a perspectivas da pesquisa. Transcender este recorte inicial do trabalho “levou-me” a dar mais importância a outro tema basilar: qual era o interesse fundamental de publicar aqueles blogs. As respostas que obtive - que por óbvio tiveram seu grau de matizes e distinções - convergiam para a ideia geral de que, com as possibilidades tecnológicas oferecidas pelos blogs e Twitter, os policiais teriam a chance de se expressar livremente. Poderiam, ao fim e ao cabo, deixar de serem expectadores silenciosos de um processo que se sentiam protagonistas. Os policiais blogueiros “tinham a missão” de trazer à luz elementos e aportes a partir de uma perspectiva da vida real, da prática na segurança pública. Este é um elemento importantíssimo no processo de legitimação e afirmação dos seus enunciados, posições e do seu discurso. Foram inúmeras as vezes que ouvi ou li tal argumento. 94 Este lugar particular e privilegiado do policial, segundo o discurso nativo, os credenciam, através da autoridade conferida pela vivência das idiossincrasias das circunstancias e das situações voláteis e fugidias da rua, para ocupar lugar distinto no debate público e na formulação das politicas de segurança. Não resta dúvida que uma fração considerável dos actantes em foco deseja ocupar este lugar. Habilitam-se através da construção de um saber prático, que muitas vezes são gestados pela adaptabilidade e pelo improviso. O elemento motivador para que estes PMs escrevam seus blogs, atividade que, até certo momento, era bastante “inconveniente” do ponto de vista da progressão profissional, é trazer ao público o ponto de vista policial. Uma versão dos fatos, informado pela vida real e pelo saber prático, que era distinta da outras versões. Esta é uma constatação tem respaldo também no trabalho de Ramos e Paiva. Vejamos: Construir a memória coletiva e a pessoal, com fotos e textos que registrem, além da história do setor e da instituição, a minha própria história”. “Experimentar uma forma de interação entre a polícia e a sociedade, ainda que não oficial, para a construção de um futuro projeto institucional”. As respostas, apesar da sua diversidade, permitem vislumbrar um ethos policial predominante na blogosfera: amor à profissão e à carreira, responsabilidade no debate sobre segurança pública, desejo de ser ouvido e reconhecido, desejo de mudar e ter voz nas mudanças. Num esforço de síntese, classificamos cada resposta em um dos quatro grupos que, de alguma maneira, caracterizam as linhas predominantes entre os blogs existentes atualmente. Ainda que várias respostas permitissem a classificação em mais de um grupo, o resultado quantitativo indica que a linha predominante é a de elaboração e expressão de pontos de vista próprios dos policiais sobre segurança e 95 justiça (55,6%). Em seguida, vem uma série de blogs, especialmente os de guardas municipais, preocupados com a informação para a própria categoria e a divulgação de “agendas” de interesse coletivo. Depois, vêm os blogs voltados para denunciar as injustiças, as manipulações de governos, comandos e da grande mídia. Por último vêm os blogs dedicados a mostrar para o mundo externo a realidade interna das corporações. (2009, p. 25). Uma parcela importante dos policiais almeja verdadeiramente que seus aportes se tornassem elementos a serem considerados no debate e no campo da segurança pública. Que influenciassem no desenho, não só na execução, das políticas de segurança. Uma sociedade que se pretende democrática deve almejar atender, minimamente, os principais anseios da sua população: distribuição de renda, serviços públicos de qualidade na saúde, educação e segurança pública. Demandas básicas de qualquer povo, principalmente dos menos abastados, desprovidos de recursos capazes de suprir as deficiências do Estado nessas áreas. Embora existam numerosos estudos a respeito das organizações Policiais, pouco se sabe, ainda, sobre a natureza dos atributos e das relações envolvidas na eficácia de organizações que prestam serviços públicos. Em razão desta constatação, as corporações policiais, no Brasil, não constituem raridades e projetam-se em ascendentes práticas de violência e criminalidade urbanas. Os problemas relacionados à segurança pública vêm ganhando dimensões epidêmicas no Brasil, onde, pessoas e instituições dedicadas a estudá-los seriamente, são poucas ainda, assim como são muito precários os dados disponíveis para subsidiar análises precisas e políticas eficazes na diminuição do crime e da violência. A obsessão social pelo crime é traduzida na vida cotidiana, onde até nos momentos de lazer, reservamos grande parte do tempo para assistirmos aos filmes de ação e às matérias relacionadas à violência e 96 criminalidade frequentemente abordadas nos principais telejornais – em horário nobre (Eloá, Cravinhos, etc.). Neste cenário, um dos temas mais avaliados por estudiosos da área de segurança, formuladores de políticas públicas, autoridades de governo, acadêmicos especialistas e pelos próprios policiais é a necessidade de profissionalizar a polícia brasileira como um recurso para capacitá-la, visando um desempenho mais eficiente, responsável e efetivo na realização de sua missão. Notadamente, sabe-se que a questão da qualificação não resolverá o problema da segurança da população. A questão é mais complexa do que se imagina, tendo em vista que ao levar em consideração as palavras do grande sociólogo Emile Durkheim quando afirmou no início do século passado que: “o crime é um fato normal em qualquer sociedade”. Apesar de óbvia, a afirmação costuma chocar as pessoas que imaginam ser o papel da polícia acabar com o crime. Entende-se, portanto, que se a polícia auxiliasse na redução drástica dos roubos diários nas grandes metrópoles, e hoje, também nas pequenas cidades, ainda assim, centenas de pessoas seriam vítimas todo dia. Vítimas sempre existirão independentemente da eficiência da polícia, o que se traduz na responsabilidade das pessoas de reduzir as possibilidades de sofrerem algum ato ilícito. Se os aparatos de polícia e justiça não conseguem controlar a criminalidade e sobram pressões de outras condições sociais desfavoráveis, o combate à violência se torna prioridade nas preocupações da sociedade e o mercado da segurança se torna especialmente atrativo para exploração comercial, aqui como em qualquer lugar do mundo. Neste contexto, não se pode duvidar de uma coisa: não existe solução possível para a segurança pública no Brasil que não passe pela Policia. Temos que ser reconhecidos como ferramenta da segurança pública e também como formuladores de politicas. (Blog PM de Esperatina, postado pelo Capitão Vicente Albino Filho em 01 de agosto de 2010) Assim como são influenciados pelos gestores e pelos intelectuais que pensam o 97 tema da Segurança Pública, os policiais que focalizei na pesquisa, querem influenciar na avaliação e formulação das políticas. Em um rápido balanço deste processo, posso apontar três referenciais que indicam sucesso desta iniciativa. O primeiro indicativo é a grande audiência das páginas virtuais e o impacto que ele exerce sobre a mídia tradicional (RAMOS & PAIVA, 2009). Soma-se a este fato, em uma perspectiva mais oficial e institucional, a realização da I Conferencia Nacional de Segurança Pública53, que incorporou os trabalhadores da segurança, com a Polícia Militar formando um grupo numeroso e fundamental nas discussões. Já no caderno que encarta o texto base, a organização da Conferencia deixava claro o papel das policias no processo: (..) Por outro lado, policiais, peritos, guardas e bombeiros devem ser reconhecidos na sua qualidade de trabalhadores e cidadãos e cidadãs titulares dos direitos humanos e das prerrogativas constitucionais correspondentes as suas funções. (texto base da I Conferencia Nacional de Segurança Pública) A I Conferencia de Segurança Pública foi uma questão bastante comentada pela Blogpol. Vejamos neste post: Amigos, estamos em 2010. A guerra continua. 2009 foi feito de conquistas. Foi sim. Pela primeira vez tivemos a Conferência Nacional de Segurança Pública e nela os blogues (Sic) tiveram espaço especial; vimos de perto e participamos de caminhadas pelo Brasil para aprovação da PEC 300, aí veio também a 41… Esperamos que em 2010 estas conquistas se realizem de verdade. Mas, estamos na luta! 53 A 1º Conferencia Nacional de Segurança Pública teve sua etapa nacional realizada em agosto de 2009. Teve como objetivo definir princípios e diretrizes orientadoras da Política Nacional de Segurança Pública, com participação da sociedade civil, trabalhadores e poder público como instrumento de gestão, visando efetivar a segurança como direito fundamental. 98 NÃO VAMOS DESANIMAR! VAMOS! Tente outra vez…! A conquista é NOSSA! (Blog Diário do Stive postado Robson Nielson em 04 de janeiro de 2010) Outro post bastante interessante é o do Soldado da PM de Santa Catarina Sandro Nunes postado no blog Praças de Santa Catarina: Então no dia de ontem, 30 de julho 2009, já nas fileiras da corporação e depois de 17 anos de tudo ter começado e estar participando de tal conferência, pude LAVAR A MINHA ALMA e confesso que em alguns momentos o meu coração apertou e os meus olhos se encheram de lagrimas mas me contendo, pois sabendo que aquilo é somente uma parte de um longo caminho e que se tem muito ainda a percorrer. Esta atitude não é uma expressão de desrespeito ou quebra de hierarquia ou disciplina, mas sim a busca do respeito e dignidade pelo profissional, pessoa humana e pai e mães de família, que fazem parte desta instituição chamada Policia Militar de Santa Catarina e conclamo todos aqueles homens e mulheres que estão sendo citados ou indiciados em IPM’s, respondendo Processos Administrativos Disciplinares e nos Conselhos de Disciplina não se deixem esmorecer, pois os senhores e senhoras não são baderneiros, arruaceiros, extremistas e nem guerrilheiros como alguns estão falando, mais sim trabalhadores da Segurança Publica do Estado de Santa Catarina e não do desgoverno do estado. (Blog Praças de Santa Catarina postada por Sandro Nunes em 31 de agosto de 2009). Este post se refere a uma das etapas estaduais que foram realizadas de forma preparatória a Conferencia Nacional. É interessante porque relaciona a participação nos espaços da conferencia com a questão disciplinar e hierárquica. Na Conferência, houve uma presença maciça das entidades representativas das 99 categorias profissionais que compõem o aparato de segurança pública. Associações e sindicatos de praças, oficiais, agentes de polícia, peritos criminais, delegados, agentes penitenciários e bombeiros militares foram os protagonistas da Conferência. Suas propostas acabaram por conformar em boa medida os princípios e as diretrizes que compõem o documento final. Se tomarmos as 40 diretrizes aprovadas na plenária final, quase 1/3 delas atendem às demandas especificas de associações e sindicatos do setor (agentes prisionais, policiais militares e civis, bombeiros militares etc.). E, finalmente, uma terceira referência do processo que descrevi foi a criação e o trabalho desenvolvido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esta organização 54, que se transformou em um espaço nacional de referência e cooperação técnica na área da atividade policial e da gestão da segurança pública no Brasil, tem como objetivo central a “valorização do policial como profissional e servidor público dedicado a uma das tarefas mais valiosas e difíceis dentre aquelas desempenhadas pelo serviço público no Brasil”. É uma organização que congrega figuras relevantes no campo da segurança pública brasileira, que acreditam ser fundamental para a superação dos problemas na segurança pública o diálogo democrático e horizontal com os profissionais de segurança, em geral, e com os policiais militares, em particular. Muitos dos blogs que fazem parte desta pesquisa, mantem o link do FBSP “hospedado” em suas páginas. Claro que não é razoável afirmar que todos estes processos foram consequência exclusiva do trabalho da Blogpol. No entanto, seria ingenuidade não reconhecer o papel que este actantes tiveram. Parece-me inquestionável que nos últimos anos o policial de baixa patente, e não somente o comando, desempenha um papel mais importante no campo da segurança pública. 54 Conheço relativamente bem esta organização, já que trabalhei como assessor do FBSP durante 13 meses. 100 Esta não é uma exclusividade do campo da segurança pública. Em outros “setores” podemos identificar uma intensificação das relações entre a sociedade civil e os diversos governos no campo dos direitos humanos, da saúde, dos direitos da criança e do adolescente etc. Temos consolidado um diálogo entre governos e sociedade civil. Isto, portanto não é uma novidade. No entanto, no campo da segurança pública, com suas particularidades, sabemos que todas estas referências simbolizam uma mudança de paradigma que tiveram contribuição da Blogpol. Para finalizar este argumento, lembro que a perspectiva de acrescentar a realidade e o saber prático nas discussões sobre um tema controversos não começou com a Blogpol. De um ponto de vista histórico, esta inciativa emula o feito de um grupo de soldados estadunidenses que organizaram os chamados warblogs. Estas são páginas virtuais que nasceram a partir da iniciativa dos militares de reportar, a partir da sua própria perspectiva, o cotidiano da invasão norte americanas no Afeganistão. Os primeiros blogs apareceram ainda em 2001 e tiveram um crescimento importante até a invasão ao Iraque, em 2003. Tal empreendimento, ao juízo de muitos estudiosos do tema, representou uma guinada importante na forma de comunicação e de relação entre as forças de segurança militarizada, as instituições militares e a sociedade em geral. Tal iniciativa teve um sucesso bastante considerável. A grande maioria das analises feitas sobre este processo comungam da mesma ideia de que, assim como aqui, estes militares eram motivados por comunicar fatos diretamente com um amplo público interessado no tema, inclusive familiares e amigos. Uma das aspirações descritas em entrevistas era oferecer relatos sobre ações militares diferentes dos encontrados na mídia e corrigir certas informações veiculadas pela imprensa (RAMOS & PAIVA, 2009). Esses warblogs procuram formar fóruns públicos de debate sobre a guerra, 101 bem como proporcionam que pessoas que não são jornalistas ou não dispõe dos veículos “oficiais” possam manifestar-se para o mundo. O estímulo à discussão e ao debate por parte dos leitores transforma o fluxo de informação predominantemente vertical que observamos em nossa sociedade em um fluxo horizontal. Enfim, é possível perceber a influência e a importância que esses warblogs tiveram na informação e na agenda de discussões públicas sobre a guerra. Além disso, os warblogs proporcionam a troca de informações entre autores e leitores, modificando, de modo considerável, o fluxo de comunicação verticalizado, característico dos veículos de comunicação de massa através dos quais nossa sociedade acostumou-se a escutar. Qualquer semelhança com o assunto deste trabalho, não é mera coincidência. 3.3.1 – A formação do Policial A postagem dos textos não segue um padrão rígido. Os policiais blogueiros escrevem sobre os mais diferentes temas e demonstram ter interesse e opinião sobre os assuntos mais variados. No entanto, percebi que algumas questões se repetem em todos os blogs que pesquisei. Constrangido pelas características desta pesquisa, me vi obrigado a criar um critério para trabalhar com alguns temas. Por isto escolhi três questões distintas que tem um ponto comum: se repetem em todos os blogs que pesquisei. A primeira delas é a questão da Formação Policial. A segunda se refere à relação entre a política partidária e eleitoral, a polícia e a segurança pública. E por último, o tema da equiparação salarial da PEC/300. Estes três temas serão detalhadamente abordados mais à frente. Uma destas questões, que me parece mais interessante e que já tratei aqui, é a relação entre formação policial feita dentro da caserna, influenciada pelos paradigmas da disciplina e hierarquia, e a prática nas ruas. 102 Posso afirmar que, entre meus interlocutores, existe a percepção de que é impossível criar um padrão para uma vida/oficio tão dinâmico. Ouvi uma vez do Sargento Superbi o seguinte comentário: Fala-se muito em formação. Será que todo o policial já refletiu sobre isto? É trazer uma forma, botar em uma forma. Não dá para sair todo mundo igual, como uma fábrica. Se eu trabalho na Zona Sul é uma coisa. Se você trabalha na área de milícia é outra. Todavia, não me parece que este tipo de visão pretenda negar que os procedimentos formais e universais do tipo “de acordo com o manual”, sob o ponto de vista dos policiais, não tenha qualquer validade. Como em quase toda questão tratada aqui, esta se apresenta com um alto nível de complexidade e com múltiplas “camadas” nos discursos. Quando perguntei se deveriam ser extintos os manuais, a unanimidade dos entrevistados respondeu que não. O que o saber prático anuncia é que a negligência dos elementos circunstanciais, em favor da aplicação exclusiva de princípios gerais, impõem graves limitações à eficácia da ação escolhida. Em face da complexidade da demanda, todo PM deve aprender rapidamente que as regras universais de trabalho, quando desencarnadas das experiências concretas de policiamento, devem ser rapidamente adaptadas. O que fica nítido é que o policial na sua lida diária deve combinar elementos que aprende nos treinamentos com a realidade, com uma capacidade grande de sagacidade e improvisação. A norma está subordinada e opera com referência na ação. “Na rua se faz tudo diferente! Tudo não, 90%... A lei precisa da prática e tem que ser interpretada e ajustada à vida do PM” me disse o Soldado Victor Fonseca, editor do blog Blitz 103 Policial. Neste contexto, o correto é problematizar o pressuposto simplório e redutor de que “a prática nega a teoria” ou vice-versa. O que pude observar é uma espécie de hibrido reflexivo cujo desenvolvimento resulta do encontro cognitivo entre o conhecimento formal experimentado no processo de formação e reciclagem e a experiência das ruas. A frase muitas vezes repetida que “na prática a teoria é outra coisa”, ou, “esqueça o que aprendeu na escola”, não significa, sob meu ponto de vista, a negação completa da validade de uma metodologia voltada ao trabalho policial. Reporta-se tão somente ao “choque de realidade” que significa uma visão crítica ao modelo de instrução praticado, que constrói poucos pontos de diálogo com as situações cotidianas nas ruas. Em entrevista com o Soldado Victor Fonseca, este me disse: (...) uma coisa complementa a outra, você me entende? Não se pode dizer que o policial não precisa aprender as leis para saber quando alguém anda errado. O que não cabe na cabeça de ninguém é que um policia sai do treinamento preparado para entrar na favela, na favela não, né? Na comunidade. Tem que entrar com o mais graduado, que já tá cascorado, que sabe os atalhos O treinamento e a formação também são valorizados por outro aspecto importante, que diz respeito às técnicas de abordagem do policial. Vejamos este longo artigo do Policial Militar baiano Marcílio Reis postado no blog de Danilo Ferreira: Nos Cursos de Formação de Policiais Militares, sejam para a formação do futuro soldado, sargento ou oficial, instrutores ensinam certas técnicas de abordagem a pé, a veículos, a ônibus e a edificação a fim de serem empregadas, quando houver necessidade, no cotidiano de sua atuação. Instruções marcadas pelas orientações minuciosamente detalhadas, categoricamente 104 enfatizadas pelos instrutores através do estudo de ocorrências a nível local, nacional ou até mesmo internacional. Geralmente, analisamos os erros dos outros e correlacionamos com a técnica ensinada para nos servir como lição. Instrutores nos advertem: não façam isso, não façam aquilo, foi precipitação, foi imprudência e uma série de explicações a fim de identificar erros sob a ótica do emprego das técnicas policiais militares. Diante disso, deveríamos observar, ao menos, os princípios básicos de uma abordagem policial no desempenho das atividades de Policiamento Ostensivo. Após apresentar o que seria a norma geral, o soldado traz elementos da realidade das ruas: (...) mas, essa preocupação é demonstrada por parte de algumas guarnições e em casos raros. Em uma certa Operação Policial, uma tal guarnição com quatro homens, embarcada em uma viatura, estava realizando ronda em certo local, quando resolveu abordar um veículo suspeito e como foi ensinado no Curso de Formação, o Comandante da guarnição seguindo metodicamente o que lhe foi ensinado e o que é previsto nos Manuais de Técnicas e Táticas Policiais Militares ordenou ao motorista do veículo suspeito: “Motorista desligue o veículo, retire a chave do mesmo e a coloque sobre o teto, saia lentamente de costas com as mãos na cabeça…!”. Assim a guarnição realizou todos aqueles procedimentos que chamamos “procedimentos padrão”, observando os princípios da abordagem até a sua conclusão. Ao final agradeceu e explicou ao cidadão o motivo do seu veículo ter sido abordado, já que não foi encontrado nenhum objeto ilícito e o cidadão, além de sentir-se constrangido com todo aquele procedimento, não estava praticando nenhum tipo de crime. Em outro local, na mesma Operação Policial, outra guarnição com quatro homens, embarcada em viatura, ao abordar um veículo demonstra total 105 descompromisso com as questões técnicas e táticas Policiais Militares. Não se preocupa com a aplicação dos procedimentos e princípios de abordagem, contudo, apesar das carências e deixando de lado princípios indispensáveis, a exemplo da segurança, que é extremamente importante não somente para a guarnição, mas também para o abordado e os transeuntes que passam no local, consideração feita em qualquer polícia no mundo, a abordagem ao veículo é finalizada sem transtornos, sem alterações. Quanto ao cidadão abordado, nada teve a reclamar, já que a guarnição o deixou bastante à vontade para movimentar-se, não colocou as mãos na cabeça e apenas levantou a camisa mostrando que não portava nenhuma arma “na cintura”. Diante desses dois exemplos hipotéticos, fica a pergunta: qual foi a guarnição que atuou corretamente? E ele complementa: Logicamente a resposta da maioria será a guarnição do primeiro exemplo. Isso em virtude desta ter aplicado os conhecimentos técnico-policiais adquiridos na época do curso de formação. No entanto, apesar da resposta da maioria, sabemos que, em virtude da tendência natural do ser humano em relaxar naquilo que faz de maneira constante, e por geralmente o abordado não esbanjar nenhuma reação, a guarnição acaba negligenciando princípios indispensáveis na abordagem. Finalizando com a seguinte argumentação: (...) devemos nos conscientizar que é extremamente necessário demonstrar perícia, qualificação e profissionalismo no desempenho das atividades policiais. É isso que irá nos diferenciar do senso comum, nos imunizará dos problemas judiciais e consubstanciará a nossa condição especial de Policial Militar. Marcílio Reis serviu 05 anos no Corpo de Fuzileiros Navais, ingressou em 2005 na Polícia Militar da Bahia como Soldado e 106 atualmente é Aspirante a Oficial lotado na 64ª CIPM-Feira de Santana-BA (Blog Abordagem Policial, postado por Danilo Ferreira em 25 de agosto de 2010) Motivados, entre outras coisas, pelo diagnóstico de que uma grande parte da crítica à ação policial e à corporação se escora na falta de treinamento ou ainda no desprezo pela técnica, parte da corporação afirma que, além da vivência diária, o treinamento é fundamental. Nos blogs consultados, pude verificar que são inúmeros os posts relativos à importância do treinamento. Algo bastante similar ao que escreveu o aspirante Marcilio Reis neste longo artigo. A questão do treinamento e da técnica apareceu com grande destaque quando os blogs repercutiram a ação em que o major Marco Antônio Busnello, atirador de elite e chefe de Planejamento de Operações do 6º Batalhão (Tijuca), matou um homem, cujo nome não apareceu em nenhuma matéria de jornal ou post de blog, com um tiro certeiro na cabeça depois de tomar como refém a dona de uma farmácia, na Tijuca, zona norte do Rio. Conforme o post de Danilo Ferreira: A técnica é uma das principais aliadas dos direitos humanos no âmbito policial. Aliada à legalidade e à ética, temos a plenitude do respeito ao que humanamente é aceitável e digno de elogio. Digno de elogio como a ação desencadeada pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na última sexta-feira, onde um criminoso foi morto quando, imobilizando uma refém, ameaçava explodir uma granada. Não que a morte do assaltante seja algo positivo, mas as vidas que foram preservadas mediante a ação da PM, caso a granada fosse acionada, devem ser comemoradas. A técnica utilizada foi o tiro de comprometimento disparado por um atirador de elite (sniper). Quando a refém estava continuamente desfalecendo, o Major Busnello, chefe de Planejamento de Operações do 6º Batalhão (Tijuca), atingiu o meliante na cabeça. Parabéns aos policiais empregados na ocorrência, e à PMERJ como um todo. É através 107 de ações como essas, pautadas no trinômio “técnica, ética e legalidade”, que as polícias brasileiras vão ser, como neste caso, aplaudidas pela sociedade brasileira. (Blog Abordagem Policial, postado por Danilo Ferreira em 26 de setembro de 2009). Até o Coronel Mario Sergio, no período Comandante Geral da PMERJ, deu destaque a “ocorrência”. O tiro do Busnello acertou em cheio. No Brasil não temos muitos registros de ações com reféns em que o agressor tenha sido atingido por atirador de precisão, com consequente libertação da vítima. Verdadeiramente não me lembro de nenhum caso que encerre sucesso. Em São Paulo, em 1990 o cabo da PM paulista e atirador de elite Marco Antonio Furlan, disparou contra um assaltante, mas acabou também matando a refém, a professora Adriana Caringi, quando o projétil acertou com precisão a cabeça do criminoso, atravessou-a e veio atingir também a vítima. Os efeitos transfixantes do calibre 7,62 ainda eram pouco conhecidos entre policiais paulistas e isso foi decisivo para a tragédia. Em 2000, aqui no Rio, outra tragédia: Um assaltante descontrolado que mantinha reféns foi inutilmente preservado em detrimento das vítimas que ameaçava. Durante longos minutos esteve sob mira de atiradores de precisão do BOPE, que aguardavam uma ordem para agir. O desfecho foi trágico. A ordem não foi dada, o alvo não foi posto fora de ação e mais uma dor encheu as páginas dos jornais por semanas. Ocorrências com reféns encerram uma questão transcendente às interpretações meramente jurídicas. Ela se afasta, por exemplo, e totalmente, dessas em que criminosos armados se vêem cercados, confinados em algum lugar onde armam posições barricadas e sinalizam disposição para reação. Mesmo em situações assim, com risco potencial à vida dos policiais agentes do Estado e detentores do monopólio 108 do uso de armas, compreende-se que a busca na preservação da vida agressora está em consideração inequívoca a partir da relação Estado versus transgressor, e o Estado, como sabemos, deve a qualquer custo preservar vidas. Ora, se aqui mesmo já nos soa um tanto estranho essa consideração, posto que o Estado, nesse caso, não é um ser abstrato, mas um conjunto de seres humanos de uma categoria chamada polícia que não merece perecer em mãos bandidas, no caso de ocorrências com reféns a questão se simplifica pelo agravamento, porque, a participação da vítima-refém exige uma escolha e, aí, devemos enfrentar uma questão filosófica do campo da axiologia. Explico: Numa ocorrência com refém, o Estado, que deve preservar vidas, corre o risco de sacrificar a vida inocente ameaçada se agir com vacilações a pretexto de preservá-las, todas, a qualquer custo. (...) Busnello é um integrante do 6º BPM, o Batalhão da Tijuca comandado pelo Tenente Coronel Príncipe. Ontem ele cumpriu sua missão de servir e proteger, mas não teve alternativa: para preservar a ovelha, teve que sacrificar o lobo. Agora sim, o Zé Padilha pode fazer um filme com final feliz. Força e Honra aos valentes do Batalhão da Tijuca! (Blog do Comandante Geral, postado pelo Coronel Mário Sergio em 01 de novembro de 2009). Um artigo da Capitã da Polícia Militar de São Paulo, Tania Pinc55 – especialista no tema de treinamento, uso comedido da força e abordagem policial – chamado “Desempenho policial: treinamento importa?”, foi amplamente difundido e defendido por diversos membros da Blogpol. Os dados foram coletados em experimento controlado, que selecionou 24 policiais militares, da cidade de São Paulo. Os policiais foram observados realizando abordagem, por meio da observação social sistemática, uma técnica de observação direta, não participante. A amostra reuniu 199 abordagens policiais, coletadas em duas etapas: julho e agosto de 2006 e fevereiro e março de 2007. 55 Capitã da Polícia Militar do Estado de São Paulo, mestre e doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. 109 Antes da segunda etapa, 50% dos policiais receberam 60 horas de treinamento. Os resultados deste estudo demonstram uma medida real dos fundamentos da ação policial operacionalizados nas atividades rotineiras, reiterando a importância do treinamento no desempenho policial. Como já afirmei antes, não me parece que problematizar o conhecimento formal adquirido na escola seja negar a pertinência das ações tecnicamente orientadas. O que parece ser a opinião de diversos policiais é a necessidade de sintonia entre o que é formalmente ensinado, a sua metodologia e o saber prática das ruas. Este se prestaria, em certa medida, a recobrir as lacunas da formação, que paulatinamente vão sendo adquiridas no decorrer da experiência profissional. Esta é uma forma de saber que vai se experimentando, que vai sendo testada a cada nova e especifica situação e que procura sempre conciliar os procedimentos gerais com as dinâmicas e os fluxos da realidade cotidiana (MUNIZ, 1999). Prova disto foi postagem que registrou o blog Abordagem Policial, que tem uma sessão dedicada ao treinamento e a técnica policial, sobre as “Novas Diretrizes para o Uso da Força”, de janeiro de 2011. Diversos policiais comentaram o artigo relatando a simbiose entre a técnica e a conjuntura da ação prática. O primeiro comentário foi feito por uma pessoa que se identificou como Tenente PM Alden: O objetivo desta portaria é o de reduzir gradativamente os índices de morte nas ações envolvendo profissionais de segurança. Cito trecho da reportagem do Juiz trabalhista Marcelo Alexandrino da Costa Santos, que foi baleado no dia 3 de outubro de 2010 durante uma blitz da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ele afirmou na ocasião que a imperícia dos policiais não foi provocada por falta de treinamento. “Se não se bate pelas costas, não se atira pelas costas. Isso não depende de treinamento”, disse ele. Discordo completamente dessas 110 afirmações. Treinar atividades que estimulam a adrenalina exige raciocino rápido e a partir daí, as pessoas revelam como são. Se alguém demora em atirar, isso pode significar que este participante está analisando o momento certo para agir. E se o tipo “Rambo” parte para cima do adversário, dura pouco no jogo e não contribui para a equipe. Algumas características podem aflorar durante as partidas, assim como em dinâmicas de grupo ou entrevistas individuais. “Como são situações de relativa pressão, as pessoas tendem a se comportar da mesma maneira que fariam na realidade”, Em outras palavras, o treinamento contribui para um amadurecimento sadio e sólido do praticante em nível psicológico e emocional. Através desses treinos o praticante irá definir e reforçar atributos de personalidade, tais como capacidade de decisão, resistência à frustração, perseverança, humildade, persistência, enfim valores e princípios úteis e decisivos para o sucesso em qualquer atividade profissional. (Blog Abordagem Policial, postado pelo Tenente Alden em 06 de janeiro de 2011). Logo em seguida tivemos outro comentário que se referia também à opinião do tenente Alden: Teoricamente todo esse cuidado no uso da arma de fogo já é abordado no uso moderado da força, que é ensinado nos cursos de formação de agentes de segurança pública, porém na pratica é complicado o agente de segurança ficar esperando o pior, ficar esperando que o bandido atire, para então poder se defender e defender o próximo. Agora no que diz respeito ao treinamento rotineiro é uma ótima medida, porque muitas vezes a falta de perícia e condicionamento são os motivos pelo uso errado da arma de fogo. Espero que essas medidas tornem melhor o serviço oferecido por nós à sociedade. (Blog Abordagem Policial, postado pelo Soltado PM Ronald em 06 de janeiro de 2011). 111 Apenas 10 minutos depois56, reagindo à discussão virtual, o Praça Oziel responde ao Soldado Ronald: Precisamos urgentemente de uma reciclagem. De preferência um curso que abranja todas as disciplinas para a prática policial (tanto a parte tática como a teórica). Com uma roupagem voltada para os direitos humanos, com base na legalidade e nos demais preceitos constitucionais. Não só pelo bem da sociedade, mas para nos protegermos e evitarmos sofrer as consequências lembradas aqui. O sábio é aquele que aprende com os erros dos outros, e não precisa ele imitar o mesmo erro para constatar a mesma paga. (Blog Abordagem Policial, postado pelo Praça Oziel em 06 de janeiro de 2011). Neste dialogo percebemos bem que, para estes policiais, as estratégias e a técnica policial aprendidas nos cursos de formação e reciclagem devem ser alimentadas pelos conhecimentos (e os equívocos) registrados nas ruas. Esta relação não é de oposição, e não se furta a incorporação das normas e técnicas apreendidas. A técnica deve ser efetivamente útil, e dialogar tanto com as idiossincrasias próprias da rua, quanto com as possibilidades do “improviso”. Como ressalta Muniz: Trata-se de um saber-ato ou de um saber obreiro constrangido ao seu constante pronto-emprego, voltado para produzir respostas imediatas para os problemas também imediatos enfrentados no dia-a-dia. Este é um saber “presentista” que é chamado a atuar na emergência dos eventos, no agora e já das pessoas, das situações. A profundidade da experimentação do presente, do que é iminente e inadiável para os “outros”, posta para qualquer PM de ponta, contribui para um recorte singular da cronologia dos acontecimentos. (1999 p. 166). 56 É interessante que os comentários aparecem nas páginas com informações do dia e da hora que foram postadas. Isto possibilita que entendamos a dinâmica dos diálogos. 112 Por óbvio que estes textos, além de servir como válvula de escape para quem escreve, intencionam pautar modificações no atual modelo de formação e treinamento dos PM. Perguntei a todos os interlocutores que entrevistei se com os seus posts existia o desejo de influir em um câmbio na dinâmica atual do processo de formação. A resposta de todos foi positiva. 3.3.2 – Política partidária e eleitoral, a polícia e a segurança pública Outro tema que está presente em todas as páginas é a relação entre a politica partidária e eleitoral, a polícia e a segurança pública. Este é um assunto bastante interessante, já que se relaciona diretamente com as definições das políticas de segurança pública dos diferentes estados. É no momento eleitoral que é debatido com mais força e de forma mais ampla as diversas politicas públicas adotadas em curto e médio prazo. Os policiais militares blogueiros se envolvem com muita força e “paixão” nas eleições. O principal foco é a disputa estadual; sem embargo, aparecem muitas referencias à disputa nacional, como podemos ver neste post: As eleições que ocorrerão em 2010 terão como tema central em vários estados do Brasil a (in)segurança pública. Na Bahia, com o aumento da violência e a incidência de crimes cada vez mais bárbaros e trágicos, o atual Governo terá que trabalhar muito em prol da melhora de sua imagem enquanto responsável pela segurança pública na Bahia. O ex-governador Paulo Souto, précandidato ao Governo do Estado em 2010, já começou a alfinetar a atual administração nesse aspecto, criticando a falta de “capacidade operacional das polícias no combate ao crime no estado da Bahia”. Segundo ele, o Governo precisa atuar “tentando fazer com que os policiais sejam tratados de tal forma 113 que eles possam recuperar a sua capacidade de entender que são importantes e que, portanto, precisam ter uma atuação realmente eficiente”. É importante a leitura de toda a entrevista, tanto para os conhecedores da gestão do ex-governador quanto para os (e)leitores interessados em conhecer melhor as propostas para a segurança em 2010. Ao ler a matéria criticamente, e nos situar no atual contexto da segurança baiana, a ironia e a tragicidade se confundem em vários momentos, se é que me entendem… (Blog Abordagem Policial, postado por Danilo Ferreira em 06 de janeiro de2011). Em outro post, Danilo Ferreira coloca de forma mais ampla o tema: A três dias das eleições que definirão os próximos governadores, presidente, deputados estadual e federal e senadores, ainda há quem esteja em dúvida quanto ao candidato em que votará. Basicamente, há dois pressupostos básicos para votar em um candidato: nível de confiabilidade e propostas defendidas. Naturalmente, a confiança é o mais importante, pois nada adianta ter boas ideias e propostas se, caso eleito, o político engane seu eleitorado, não implementando aquilo que prometeu. Acredito que a confiabilidade é algo que cada eleitor, intimamente, sente ou não com cada candidato, sendo mais acertada a decisão de confiar ou não quando o político tem algum histórico na vida pública, principalmente aqueles que exerceram mandatos recentes, pleiteando a reeleição. Quem é o candidato? O que ele já fez em sua vida pública? É uma pessoa coerente, alinhada com o que discursa? Após essa análise, cabe observar o que o candidato defende. Além dos debates, comícios, palestras e propagandas eleitorais, uma ferramenta importante para aferir as ideias de determinado candidato é seu Plano de Governo – no caso dos governadores e presidente, que devem ter uma agenda com propostas claras e definidas para o exercício do Poder Executivo. Após ler os planos de governo para a segurança pública dos principais candidatos de alguns dos principais estados brasileiros (Rio de 114 Janeiro, São Paulo, Bahia, Distrito Federal, Pará e Rio Grande do Sul) surge uma constatação elementar: faltam propostas para a segurança pública entre os candidatos a governador. Sem olhar para a já citada credibilidade, no máximo, o que encontramos, são as exceções que só confirmam a regra. Ou alguém terá a desfaçatez de defender que um candidato consegue explicar propostas em seu plano de governo, documento oficial e único, no campo da segurança pública, área tão sensível e combalida, em apenas 14 linhas? A generalização excessiva parece ser um estratagema utilizado pela maioria dos candidatos, onde se defende os fins e não os meios. “Polícia valorizada e bem equipada”, por exemplo, é um fim, e não um meio. O eleitor sabe que todos querem isso, mas o problema, e aí os candidatos se calam, é dizer o que será feito para alcançar a tal “polícia valorizada e bem equipada”. A Pacificação de Favelas, principal bandeira do Governo do Estado do Rio de Janeiro, parece um consenso entre os candidatos que resolvem discutir um pouco mais além do blábláblá genérico. Levar serviços de saneamento, educação, cultura e esporte às periferias é tarefa acertadamente destacável, ou seja, fazer com que o estado se faça presente, com estruturas que vão além das viaturas policiais. Outra questão é consenso entre os candidatos discutíveis, a ausência do tema “corrupção nas polícias”. Meu amigo Jorge Antonio Barros, d’O Globo, foi em cima da ferida, ao comentar a campanha dos candidatos ao Governo do Rio: Os programas de governo dos dois candidatos à frente das pesquisas eleitorais para o Palácio Guanabara exibidos na internet não tocam numa questão crucial para a segurança pública: o combate à corrupção e o controle dos desvios de conduta dos policiais civis e militares. (Blog Abordagem Policial, postado por Danilo Ferreira em 30 de novembro de 2010). É importante perceber como a perspectiva colocada pelos policias é claramente 115 de incidência sobre os pontos nevrálgicos percebidos pelos militares. Claro que a questão salarial é importante e tem destaque. No entanto, este não é o único assunto tocado. Vejamos: Eleições 2010: Há solução para a segurança pública? Brasil é 6° país com o maior número de homicídios do mundo De acordo com dados do Observatório da Cidadania, em 2009 o Brasil foi o sexto país do mundo com o maior número de homicídios (25,2 por 100 mil habitantes). É imprescindível propor formas de enfrentamento a todos os tipos de violência Nos últimos anos, a falta de segurança pública é um problema de extrema gravidade e parece insolúvel. A questão passou a ser um dos principais desafios a ser enfrentado pelo Estado brasileiro. A segurança pública − ou a ineficiência desta – deverá ser um dos temas mais debatidos pelos candidatos à presidência nas próximas eleições. A população está sendo obrigada a conviver com a degradação do espaço público, as dificuldades ligadas à reforma das instituições da administração da justiça criminal, à violência policial, à ineficiência preventiva de nossas instituições, à superpopulação nos presídios, às rebeliões, fugas e degradação das condições de internação de jovens em conflito com a lei, para citar apenas os conflitos mais urgentes. De acordo com dados do Observatório da Cidadania, em 2009 o Brasil foi o sexto país do mundo com o maior número de homicídios (25,2 por 100 mil habitantes). Isto corresponde a aproximadamente 50.000 assassinatos por ano. Nos Estados Unidos, o índice é de 6 homicídios por 100 mil habitantes. França e Portugal apresentam valores de 0,7 e 1,6, respectivamente. No México, que possui características semelhantes ao Brasil, a taxa de homicídios é de 9,3 por mil habitantes. (...)O tema tem várias facetas e as soluções não dependem de fatores isolados e sim de um conjunto de inovações. Aliar a questão da segurança 116 pública à questão dos direitos é outro gargalo. Implementar mudanças estruturais no aparato de segurança é outra medida urgente. Valorizar o profissional de segurança é essencial. No entanto, as corporações precisam ser modificadas em sua lógica estrutural. E, sem querer nem de longe esgotar as necessidades de atuação do Estado, não se pode esquecer de que há mudanças necessárias e urgentes na cultura nacional, para desfazer padrões preconceituosos e discriminatórios. E nisto, a sociedade tem sua parcela de responsabilidade. Cabe ao próximo governo desatar todos estes nós. É imprescindível propor formas de enfrentamento a todos os tipos de violência e desenvolver políticas públicas que realmente fomentem a segurança pública que tanto o Brasil necessita (Blog PM Vida, postado por Capitão Alencar em 27 de setembro de 2010). Interessante também foi acompanhar o blog do Coronel Paul. Ele, que sempre utilizou sua página para falar sobre temas políticos partidários em uma perspectiva crítica, se candidatou a uma vaga de deputado federal. O post abaixo trata do assunto: Tenho alertado aos leitores sobre o processo destrutivo que foi instalado pelo governo Sérgio Cabral (PMDB) na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros, os exemplos são inúmeros como tratei em diversos artigos. As instituições organizadas militarmente atravessam a pior fase de suas existências, período em que os valores basilares estão sendo implodidos, sobretudo a hierarquia, que é violada constantemente, sobretudo nos salários, onde as gratificações fazem com que os menos graduados, ganhem mais que os superiores. Os inativos e as pensionistas são os mais penalizados. Vivemos o fim, uma agonia de quem sente a aproximação da morte, impotente para reagir. A administração da PMERJ é o retrato do caos, a desorganização é total. Tenho recebido informes no sentido de que em alguns batalhões da PMERJ os balancetes mensais estão atrasados há mais de um ano, ou seja, inexiste controle 117 financeiro. Hoje, o jornal O Globo mantém na suíte o caso dos Capitães acusados de furtar fios, uma vergonha. Na matéria, ouvido um sociológo sobre a situação atual da PMERJ, ele disse: - "É corriqueiro, no sistema disciplinar da PM, que oficiais de patentes superiores julguem os inferiores. O mais importante é a necessidade de fortalecimento das corregedorias e o investimento em ações que investiguem casos de corrupção, sem que se espere por denúncias". Mal sabe o sociólogo a tragédia que vivemos. A Corregedoria Interna da Polícia Militar iniciou um processo de crescimento em 2005, no Comando do Coronel de Polícia Hudson, uma evolução que seguiu até o início de 2008. Em 2009, no comando Pitta ocorreu uma estagnação e em 2010, já na gestão Mário Sérgio, a CIntPM sofreu um grave enfraquecimento, perdendo a PROATIVIDADE por completo. Além disso, em 2007, conseguimos criar o Gabinete Geral de Assuntos Internos, que teria como uma das finalidades, investigar especificamente as denúncias contra Comandantes, Chefes e Diretores, mas foi uma vitória só no papel, pois no comando Pitta e na gestão Mário Sérgio o GGAI não foi operacionalizado. Penso que eles não julgam conveniente investigar com seriedade as denúncias contra os mandatários da Polícia Militar. Policial Militar reaja, vença os seus medos, antes que não exista mas salvação para a nossa amada e heroica PMERJ. (Blog Paulo Ricardo Paúl – Professor e Coronel, postado por Coronel Paúl em 29 de agosto de 2010). Em outro post o coronel reclama das dificuldades de campanha e de uma suposta perseguição da imprensa: A nossa candidatura parece estar incomodando muita gente, apesar de todas as dificuldades que enfrentamos para a concretização deste sonho corporativo, eleger um deputado federal da PMERJ. Alguns fatos que estão ocorrendo sinalizam 118 nesta direção, mas prefiro falar sobre eles no tempo adequado, após as eleições. Hoje mandei um e-mail para um jornalista do jornal O Globo, aguardarei a resposta. (Blog Paulo Ricardo Paúl – Professor e Coronel, postado por Coronel Paúl em 30 de agosto de 2010). O Coronel Paúl fez a campanha baseado na oposição ao governo Lula e ao Governo Sergio Cabral. Em seu entendimento, a imprensa defendia ambos e, por consequência, o atacava. Prezados leitores, a nossa candidatura deve ter sido uma das mais baratas entre os candidatos a deputado federal do Rio de Janeiro. Os recursos próprios investidos foram os permitidos pela minha contabilidade doméstica, portanto, mínimos. Por isso, não canso de agradecer ao DEMOCRATAS e ao candidato à reeleição, deputado estadual Rodrigo Dantas (DEM), pelo apoio na forma de material de campanha. Além deste apoio partidário, devo agradecer muito a todos que participam da divulgação da nossa candidatura, consumindo recursos próprios e tempo precioso. Eis a verdade. Diante desta realidade, qualquer espaço na mídia tratando da nossa candidatura é muito importante, como o concedido pelo jornal O Dia, no artigo que ilustra este artigo. Agradeço aos responsáveis pela publicação. Não tive a mesma sorte nos jornais O Globo e Extra, mas também agradeço, afinal, falem (escrevam) mal, mas falem (escrevam) de mim. Como pode ser comprovado nos três artigos anteriores, primeiro, o jornal Extra deu uma nota onde eu, o Coronel Ubiratan (candidato a deputado estadual), o Coronel Menezes (Corregedor Interno) e os Coronéis Barbonos fomos referenciados de forma "não positiva", podemos escrever assim. 119 Nesta semana decisiva, O Globo nos colocou próximo de candidaturas "pitorescas", podemos escrever assim. O colunista, Artur Xexéo, nos prejudicou confundindo os eleitores nos identificando como sendo candidato a deputado estadual e pelo PR. Reclamamos por email, ele retificou. Vida que segue. Eu gostaria de ser um dos escolhidos para ser divulgado na coluna diária do jornal O Globo, "Conheça os Candidatos", pois seria uma ótima divulgação. Não conheço os critérios utilizados para a escolha dos candidatos, mas sei que a divulgação tem grande força para os beneficiados, que ganham um "plus" de visibilidade positiva, o que não foi o nosso caso, porém, pelo menos escreveram sobre a nossa candidatura. A nossa candidatura pode não ser vitoriosa, mas incomodou muita gente, afinal, quantos querem um CORREGEDOR na política brasileira? E, se for vitoriosa, subverterá a verdade de que para eleger um deputado federal são necessários MILHÕES DE REAIS e fará nascer a força das candidaturas corporativas no serviço público fluminense (Blog Paulo Ricardo Paúl – Professor e Coronel, postado por Coronel Paúl em 30 de agosto de 2010). O Coronel Paul, além de ser um dos blogueiros que mais produzem, com uma média de 260 post por mês, é um exemplo importante do envolvimento da Blogpol nas eleições. A imensa maioria dos blogueiros teve uma posição crítica aos diferentes governos estaduais e ao governo Lula. Além disto, a sua candidatura representa um blogueiro da PMERJ. Foi aí que o envolvimento de Militares (Policiais e Bombeiros) teve seu ápice. Vejamos como isto se deu em uma matéria de jornal reproduzida em um blog: Rio é campeão de candidatos da PM e dos bombeiros 120 Integrantes das corporações articulam a criação de um partido nacional para lutar por melhorias na área de segurança no País POR JOÃO NOÉ Rio - Policiais militares, civis e bombeiros articulam uma verdadeira operação de guerra para o dia 3 de outubro. Diluídos em diversas legendas, mais de 100 integrantes dessas corporações planejam ofensiva para cumprir apenas uma missão: conquistar o voto dos eleitores do Rio. A força dessa tropa é tanta que, para daqui a quatro anos, já se discute até a criação de um chamado Partido Nacional da Segurança Pública (PNSP), cuja base eleitoral é estimada em cerca de 1 milhão de pessoas no País. O QG do grupo, aliás, tem tudo para ficar no Rio de Janeiro. Em todo o Brasil, o estado é o que tem o maior número de PMs candidatos nas eleições deste ano. Ao todo, são pelo menos 60, segundo estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os bombeiros fluminenses também lideram a lista nacional, com 23 elegíveis. Com 14 agentes e delegados, a Polícia Civil do Rio só não terá mais candidatos do que a mineira, com 15. GRUPO DOS BARBONOSO rganizações de cunho político dentro da Polícia Militar não são novidade. O movimento dos coronéis Barbonos (uma referência ao antigo nome da Rua Evaristo da Veiga, onde fica o QG da corporação) deflagrou, em 2008, uma das primeiras manifestações públicas de reivindicações de melhorias nas condições dos PMs. Nesse grupo, estava o coronel Paulo Ricardo Paúl, que hoje é candidato a deputado federal pelo DEM. “O ‘PNSP’ seria um partido aberto à participação de toda a população. A segurança hoje é a questão que mais preocupa os brasileiros. A criação de um partido voltado para o tema, entretanto, ainda é bastante incipiente”, explica Paúl. Um dos principais desafios dessa legenda seria acabar com a imagem negativa de policiais e bombeiros junto aos eleitores. 121 No Rio, por exemplo, há casos como o do ex-chefe de Polícia Civil, Álvaro Lins, que era deputado pelo PMDB e foi cassado depois de ser denunciado por suspeita de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis. Também pode perder o cargo o vereador Cristiano Girão (PMN), ex-bombeiro suspeito de atuar em milícia. Um consenso entre os integrantes do grupo é a reivindicação por melhorias salariais. Nesta semana, inclusive, todos os eventuais quadros do ‘PNSP’ vão mirar a votação em segundo turno na Câmara Federal da chamada PEC 300, que cria um piso nacional para os salários dos policiais civis, militares e bombeiros. “Essa é uma das principais bandeiras desse grupo. Reuniríamos integrantes das polícias, além dos bombeiros e das guardas municipais. O objetivo seria que, em 2016, já existisse um partido reunindo essas classes”, planeja o tenente bombeiro Lauro Botto, candidato a deputado estadual pelo PV. Delegado quer reforma política O ex-chefe da Polícia Civil, delegado Zaqueu Teixeira (PT), candidato a uma vaga na Alerj, não acha que a criação do ‘PNSP’ seja uma boa ideia. O policial tem, entre suas propostas, a criação de uma corregedoria interna na Polícia Civil independente, cujos integrantes trabalhariam apenas nessa unidade, sem passar por outras delegacias. "Não é preciso criar um novo partido para reivindicar a luta por essas pautas. Atualmente, já existem partidos demais. O ideal é que seja aprovada uma reforma política”, afirma o candidato. Para a professora Jaqueline Muniz, da Universidade Cândido Mendes (UCAM) e da Universidade Católica de Brasília (UCB/DF), a grande quantidade de candidatos da polícia no Rio já é quase histórica. “A polícia é a expressão concreta do poder do estado nas ruas. Além disso, há no Rio uma super politização do tema segurança pública. Outro aspecto é que essas corporações possuem uma base de apoio sólida, com policiais da ativa e aposentados, além de seus familiares”, explica. ‘Candidatura pode ser oportunista’ 122 O presidente da Associação de Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Rio (Aspra-PM/BM-RJ), Vanderlei Ribeiro, vê com ressalvas a candidatura de policiais militares a cargos no Legislativo. “Há muitos policiais que ingressam na carreira política só para obter uma licença remunerada de 90 dias. As candidaturas dos policiais devem passar, antes, por um debate entre os integrantes da instituição”, afirma Ribeiro, que não acredita que a criação de um ‘PNSP’ seja positiva. (Matéria publicada no jornal O Dia – Rio de Janeiro no dia 30 de julho de 2011 e reproduzida pelo Blog do Sargento Marlos, postado por Sargento Marlos em 01 de agosto de 2011) Nos meses que antecederam as eleições de novembro de 2010, o número de posts se ampliou de forma impressionante. Todos os blogs que eu acompanhava pautaram o tema em suas páginas. No entanto, podemos identificar que a percepção de participação popular, das eleições e do voto que estes textos transmitem permanece sendo entendido como uma rede de relações que transcende os domínios da política. É inegável que existe aí uma forte “dimensão de naturalização” do processo eleitoral. Esta “dimensão” provoca uma situação paradoxal que permite que o (e)leitor, ao mesmo tempo, desconfie do processo eleitoral e confira a este uma grande importância (GOLDMAN e SANT’ANA, 1996). O (e)leitor é incitado a viver em um constante estágio de frustração e expectativa. Este paradoxo aparece constantemente nos comentários aos posts, a exemplo do comentário abaixo no blog Batalhão de Choque: Agora é que estamos ferrados mesmo. Os nossos maiores representantes na câmara de deputados todos perderam, não conseguiram a reeleição. Não que eu esteja “jogando a toalha”, 123 mas se eu tinha ainda uma tênue esperança da aprovação PEC300, agora com toda razão não tenho mais. Mas o policial já sabe que a classe politica pensa por ultimo em nós. São mais quatro anos de tristeza e de dificuldade. Depois a sociedade reclama da corrupção. Não quero justificar, mas o salario que recebemos é de fome. (Blog Batalhão de Choque - PMSE, postado pelo cabo Clenilson em 11 de novembro de 2010). Em uma análise de mais fôlego, Danilo Ferreira faz um balanço do que foram as eleições gerais de 2010: Num ambiente democrático e republicano, o ideal é que cada cidadão observe seus interesses sócio-políticos e escolha representantes que possam defendê-los (os interesses) de maneira legítima, honesta e incisiva. Agregando-se os grãos de escolha, no caso dos brasileiros, os votos, far-se-á um escolhido ou escolhidos, que devem atuar conforme aqueles interesses. Porém, infelizmente, nem tudo é tão aritmético, pois desde o tempo em que a política existe, a politicagem vem junto, onde a mentira e a dissimulação dos candidatos a representantes enganam os representados, muitas vezes com a anuência destes últimos, por preguiça ou mesmo integração de esforços espúrios. Tudo isso se agrava se estamos falando do povo e da cultura brasileira, e se torna crítico se estamos falando de policiais, e, mais ainda, de policiais militares – ceifados de boa parte dos direitos políticos comuns aos demais cidadãos. Nos últimos tempos, uma exceção imperfeita a esse ambiente de falta de politização por parte dos policiais pelos policiais foi a mobilização em torno da PEC 300, que visa implementar o Piso Salarial Nacional. Por que imperfeita? Porque a maioria dos milhares de policiais brasileiros estão sob a filosofia do que Affonso Romano de Sant’anna descreve no poema “O descendente da utopia” (ver acima). Lamentavelmente, os três principais deputados federais policiais responsáveis pela mobilização em torno da PEC 300 em Brasília não 124 conseguiram se reeleger: Major Fábio (Paraíba), Capitão Assumção (Espírito Santo) e o Coronel Paes de Lira (São Paulo). Mas, observando o quadro abaixo, os leitores poderão entender que nem todas essas ineleições são derrotas: O Major Fábio e o Capitão Assumção conseguiram mais de 60.000 votos, sendo cada um pertencente a corporações policiais com menos de 10.000 homens (PMPB e PMES). Ambos têm boas chances de alcançar a suplência. Já estados como o Rio de Janeiro e a Bahia (com 40 e 30 mil homens, respectivamente) não elegeram sequer um representante federal, tendo vergonhosos números no total de votos para PM’s: 19 e 43 mil votos – votação que caso fosse direcionada a apenas um candidato não o elegeria. A questão estadual é variada. Na Bahia, dois policiais militares foram eleitos, o Coronel Gilberto Santana e o Sargento Isidório, entretanto, ambos fizeram candidaturas onde o discurso primordial não se referia ao compromisso com a tropa, não tendo, naturalmente, a obrigação de praticar essa linha de atuação na Assembleia Legislativa. Das candidaturas que atuavam no discurso próPM, duas pareciam ser as mais relevantes, a do já Deputado Estadual Capitão Tadeu, que tentou a reeleição, e a do soldado demitido na greve de 2001, Marco Prisco. Fazendo as vezes de analista político, suponho que dois motivos principais levaram cada um dos candidatos a não serem eleitos. O Capitão Tadeu, por causa da postura adotada no último Movimento Polícia 125 Legal, que desagradou a muitos, e sua permanência na base aliada do Governo. O Soldado Prisco, por ser um ator ainda desconhecido por muitos da PMBA, e a visão de radicalismo que recai sobre suas opiniões e ações. Ambas as candidaturas trabalharam atacando essas visões, aparentemente sem sucesso. O resultado é que não há um representante legítimo da PMBA na Assembléia, a não ser que o início dos mandatos em 2011 prove o contrário. O certo é que precisamos estudar meios de acabar com a orfandade política dos policiais em nível nacional e estadual. É a qualidade dos candidatos? A desunião da tropa? A quantidade de candidatos? A falta de politização dos policiais? Creio que há um pouco de cada um desses fatores. Ou enfrentamos isso, principalmente através das associações de praças e oficiais, ou continuaremos a saga de desprestígio e desrespeito à fundamental função policial no Brasil. (Blog Abordagem Policial, postado por Danilo Ferreira em 11 de novembro de 2010). Parece-me que os policiais blogueiros, bem como os que comentam seus posts – quase sempre identificados com patentes policiais – procuram permanentemente um “bom candidato” que os represente e que defenda a categoria. O comportamento, baseado na percepção pessoal, é reflexo da forma de como a política está estruturada. Os eleitores comportam-se desta maneira não necessariamente por opção política, mas utilizam-se das ferramentas que estão disponíveis. Utilizando princípios de juízo moral e um grande pragmatismo, fazem suas escolhas reproduzindo as relações de reciprocidade que já se consolidaram no Brasil. Em busca do sucesso eleitoral, os candidatos que “fazem campanha” através da Blogpol procuram construir a sua imagem de acordo com suas concepções a respeito do que é verdadeiro, legítimo e, principalmente, de acordo com o que julgam ser as 126 concepções dos que imaginam o que pensa um leitor de blogs policiais. Estas características se baseiam fundamentalmente em aspectos simbólicos da imagem do candidato. Estas são, em linhas gerais, as estratégias básicas dos candidatos e as reações do eleitorado que “transitam” pela blogosfera policial. Estas estratégias e reações não são qualitativamente diferentes da população em geral. Diversas das tendências e características refletidas nos posts são bastante similares às atribuídas por diferentes correntes da ciência politica para o “caso brasileiro”. 3.3.3 – Política salarial e a PEC 300 Uma das pautas constantes nas demandas e propostas dos que debateram o tema das eleições na blogosfera foi a questão da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de nº 300. A campanha pela aprovação desta PEC certamente é o assunto mais debatido hoje em dia na Blogpol, tendo se iniciado antes da campanha de 2010. Esta iniciativa parlamentar propõe equiparar os vencimentos das Polícias Militares e Bombeiros Militares de todas as unidades da federação com os praticados hoje pelo Distrito Federal. A PEC é de autoria do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP). Esta tentativa de correção da Carta Constitucional é bem simples: As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º, do artigo 60, da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional: Artigo 1º - O § 9º do artigo 144 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “§ 9º - A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do = 4º do artigo 39, sendo que a das Polícias Militares dos Estados, não poderá ser inferior a da Polícia Militar do Distrito Federal, aplicando-se também o Corpo de Bombeiro militar desse Distrito Federal, no que couber, extensiva aos inativos”. “Artigo 2º - Esta Emenda entra em vigor cento e oitenta dias subsequentes ao da promulgação.” 127 Sala das Sessões, em 04 de setembro de 2008 Esta modificação da carta magna, de forma muito concreta, significaria um acréscimo salarial bastante significativo, já que a PM do Distrito Federal é a polícia que recebe os valores mais altos em seu soldo. Veja a tabela salarial da PMDF Na PMERJ, que tem o pior soldo do Brasil nas patentes mais baixas, o profissional de segurança entra na carreira com um salário de R$ 786,86. A diferença salarial entre o soldado de segunda classe de Brasília e o do Rio de Janeiro é de R$ 2.244.56, quase quatro vezes menos. Os policiais que entrevistei e os que escrevem em blogs que acompanhei durante a pesquisa, de forma homogênea e consensual, identificam que a valorização salarial é uma politica pública de segurança central e importantíssima. Desta forma, o tema e a campanha adquiriram uma relevância enorme na Blogpol: A PEC 300 é uma Proposta de Emenda à Constituição que, em sua proposta original, pretendia igualar os salários dos militares estaduais de todo o Brasil (ativos e inativos) aos salários dos militares do Distrito Federal, trazendo isonomia aos profissionais que desempenham a mesma função. Depois, em 128 votação na Câmara Federal, a PEC 300 foi aglutinada com a PEC 446 e criou-se, na ocasião, uma nova proposta, a de fixar um piso remuneratório para servidores ativos, inativos e pensionistas, das polícias militar e civil, de R$ 3.500,00 para o menor cargo ou graduação e de R$ 7.000,00 para o menor posto. Ao longo de sua tramitação, a PEC 300 foi sofrendo alterações, e a proposta atual prevê a criação de um piso salarial, cujo valor será definido por uma lei federal num prazo máximo de 180 dias após a publicação da PEC, e também de um fundo para subsidiar o aumento de despesas (no meu entender investimentos) decorrente da aprovação da emenda. Para ajudar a acelerar o processo de votação da PEC, é de extrema importância que você militar, sua família e seus amigos liguem para o 0800 619 619 - telefone da Câmara dos Deputados em Brasília -, e diga ao atendente que deseja que a PEC 300 seja aprovada. Peça ao atendente que envie a sua mensagem para todos os deputados da Câmara, especialmente para o presidente da casa. Também é importantíssimo que você participe da mobilização a favor da PEC: Audiências, passeatas, carreatas... Não há luta sem vitória e, como diz o Dep. Major Fábio (relator da proposta), não há jogo sem pressão. Não preocupe se o seu Estado terá condições de arcar com o piso, pois a diferença será paga pela União, como já ocorre no Distrito Federal. Há uma emenda dentro da PEC 300 que prevê a criação de um Fundo Federal para auxiliar os Estados que necessitem de complementos de verba para pagamento do piso salarial nacional. Portanto, esse fundo apenas será estendido para todos os Estados. (Blog Universo Policial, postado pelo Sargento Monteiro em data não especificada). Contudo, uma linha importante dos posts relativos ao tema da PEC 300 é de informação geral. Os policiais que estão mais inteirados dos meandros e da trajetória dos processos parlamentares consideram fundamental trazer informações gerais para a 129 Blogpol. Este pode ser identificado como o primeiro passo no processo de mobilização. São muitos textos que trazem o histórico e os motivos, que parecem óbvios, da campanha. Vejamos um exemplo: O Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá quer estender política de valorização no DF para policiais de todo o País. A Câmara analisa a Proposta de Emenda à Constituição 300/08, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que estabelece a remuneração dos policiais militares e bombeiros do Distrito Federal como piso para a remuneração dessas corporações nos demais estados. A medida valerá para servidores da ativa e também para inativos. Faria de Sá argumenta que recentemente as leis 11.361/06 e 11.663/08 valorizaram a remuneração da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, mas apenas do Distrito Federal. Ele propõe que essa política de valorização seja estendida aos demais estados, especialmente em razão do risco crescente da atividade policial em todo o País. "E mesmo porque é público e inegável que outras unidades federativas da União apresentam índices de criminalidade muito mais proeminentes do que os do Distrito Federal", disse. O deputado argumenta ainda que uma boa política salarial é a única compensação pelos perigos que envolvem a atividade policial. “Como é sabido, os integrantes das Polícias Militares não têm direito a FGTS, aviso prévio, pagamento de horas-extras, adicional noturno, filiação sindical, nem direito de greve", lembra. A admissibilidade da proposta será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Se for aprovada, será criada uma comissão especial para analisar o mérito da PEC, que ainda deverá ser votada em dois turnos pelo Plenário. 130 Enviem email para o endereço a seguir, o qual redireciona para TODOS os deputados federais, apoiando a PEC e reivindicando a devida valorização salarial dos PMs e BMs de todo o Brasil :[email protected] (Blog Militar Legal, postado pelo Capitão da PMERJ Melquisedec Nascimento em 30 de janeiro de 2009). Os posts, além de serem numerosos em todos os blogs que acompanho, batem o recorde em número de comentários. Cito como exemplo este texto do Capitão Melquisedec, que teve 160 comentários: Caveiras, tenhamos fé, aqui no Estado de Goiás quando entrei como soldado, ganhava cerca de R$ 590,00, e o salário era um emaranhado de gratificações, hoje, certa de 7 anos depois, um soldado está com R$ 2.711,00 e esperando já um aumento, por isso tenhamos esperança e vamos nos mobilizar já que as nossas Associações pra nada servem pois cada uma cuida dos seus interesses se esquecendo que todas deveriam olhar pro nosso lado, o da POLÍCIA MILITAR, como um corpo. Desejo que a PEC seja aprovada e que todos tenham a mesma felicidade - pelo menos minha - que mesmo com um salário de R$ 3.120,00 bruto ou R$ 2.400,00 líquido, não sou visto como um morto de fome como antes e que quando chego no quartel. Vejo que o que anda com uma condução ruim anda de carro 2005 e não mais de ônibus como antigamente, ou derrubando um lanche na padaria da esquina porque o dinheiro não dava. Espero que todos tenham a mesma alegria de falar assim, sou PM e todos falarem, pô tu é um cara de sorte. A Esqueci de falar que o emaranhado de gratificações virou um único valor, o subsídio, com isso o salário é R$ 2.711,00 na ativa como na aposentadoria para um soldado. Boa sorte a todos e CAVEEEIIIIIIRRRRRAAAAA. (Blog Militar Legal, postado pelo Cabo da PMGO Douglas em data não 131 especificada). Toda esta interatividade e o número de textos em todos os blogs que pesquisei, com direito a colunas especificas e sessões especiais, revelam claramente que os blogs têm, na visão dos meus interlocutores, a tarefa de defender e representar toda categoria, ampliando e dando força, em alguns casos, ao que seria a atribuição de um sindicato setorial. Durantes as entrevistas, já no período final da pesquisa, quis explorar este tema. Danilo Ferreira comentou que a pauta era fundamental, mas o incomodava ela ser, praticamente, o único tema que os policiais davam importância. “Esta é uma característica que enfraquece os blogs. O público que frequenta os blogs fica achando que só queremos isto”. Algum tempo depois Danilo publicaria este texto: Tenho insistentemente publicado textos de incentivo defendendo a implementação de salários dignos aos policiais brasileiros, que colocam à disposição do seu ofício suas próprias vidas. O tema tem sido recorrente não apenas aqui no blog, mas nas comunidades e bate papos de viatura, principalmente por causa do advento da PEC 300, que visa definir um piso salarial para as polícias do Brasil. Simultaneamente, percebemos policiais politicamente apáticos em seu cotidiano, se manifestando de forma inflamada por aumento salarial, tema em que começa e se encerra suas pretensões de melhoria da segurança pública. Ao ler um texto sobre um equipamento novo, por exemplo, vem este tipo de policial e reclama: “que mané equipamento… eu quero é salário no meu bolso!”. Mudança de procedimento para dinamizar a atuação policial? “Nada vai pra frente se não me pagarem o dobro do que eu ganho!”. Discussão sobre corrupção? “Eu quero é dinheiro!”. 132 Minhas convicções político-ideológicas sempre me levaram, e ainda me levam, a entender que quanto maior o poder de uma pessoa, mais responsável ela é pela dor ou delícia que vivemos. Assim, quando vejo este fenômeno do puro interesse pelo salário por grande parte dos policiais, corro a tentar entendê-lo, principalmente, através das decisões estratégicas que os governos tomam. Há aí, certamente, questões como falta de vocação e desmotivação, que levam o profissional a se desinteressar pelo cerne do seu ofício. Alguns aspectos da seleção e da justiça institucional precisam ser revistos para que tal fenômeno seja diminuído. Por outro lado, cada policial, individualmente, não pode ser considerado vítima frente à evidência de possuirmos, cada um de nós, racionalidade e algum senso crítico. Explico: não passa de atitude mercenária e interesseira esconder todos os problemas, inclusive os que possam ser resolvidos por um único policial, sob a justificativa do baixo salário. Você, policial que se omite e despreza a necessidade que a sociedade tem dos seus serviços (legais, éticos e morais) sob a alegação de ganhar pouco, não agiria diferente de nossos parlamentares, que acabam de aprovar salários ofensivos à moralidade pública. Mais: mesmo que o salário seja aumentado, você continuará se omitindo. Quem pensa deste modo não merece sequer o salário que ganha atualmente. (Blog Abordagem Policial, postado pelo Danilo Ferreira em 22 de agosto de 2011). Parece-me bem interessante estas distinções e matizes sobre um tema bastante consensual. Mostra também uma interessante perspectiva crítica a respeito da tática no campo da reivindicação pelos direitos, neste caso pelos direitos econômicos. De toda a forma, mesmo com algum nível de polêmica, ou até por causa dela, 133 fica claro que este é um tema significativo para a Blogpol. 3.4 - Denúncias de corrupção: o caso do @bocadesabao Como derradeiro elemento de análise da pesquisa, gostaria de abordar as questões levantadas pela conta do Twitter Boca de Sabão. Como já me referia anteriormente, Boca de Sabão é uma conta anônima e coletiva no Twitter. Vejamos: Este coletivo de policiais ganhou importância por denunciar a corrupção dentro da polícia. Selecionei alguns dos seus posts para que tenhamos ideias do conteúdo das denúncias: bocadesabao Boca de Sabão Tem vagabundo bancando de FUZIL 7.62 na R.Cel Aldomaro Costa esquina com a Bento Ribeiro. Pra que UPP na área do 5ºBPM? bocadesabao Boca de Sabão ACORDA TC PAULO HENRIQUE! A promiscuidade continua no 12º BPM. Enquanto PPMM cascudos bancavam 134 Carnaval, as barbies ficaram aquarteladas. bocadesabao Boca de Sabão Maj Ademir, se vc gosta de $$ bota o pessoal pra trabalhar na rua. Tem muita gente no expediente do 39ºBPM bocadesabao Boca de Sabão Sgt Ricardo do 41ºBPM chegou ao cúmulo de levar cópias das escalas pros vagabundos da área pros companheiros serem caçados bocadesabao Boca de Sabão Sgt A Carlos do GAT/41º gosta de tacar bala nos companheiros que tentam invadir seu territorio de arrego (Acari) bocadesabao Boca de Sabão Cap Jean, essa área do 31ºBPM é terreno minado. Vc criou esse POG no terreirão pra mineirar o comercio e não vai terminar nada bem. Mantido na sombra do anonimato graças às possibilidades do mundo virtual, @bocadesabao se transformou em uma das maiores polêmicas da rede. Durante o período da pesquisa, vi posições radicais contra e a favor. É claro que os blogs refletiam isto também. Jorge Antônio Barros escreveu sobre a conta: Coronel admite que Boca de Sabão faz denúncias importantes Vejam vocês como são as coisas. Eu tinha, pelos jornais, uma péssima imagem do coronel Marcus Jardim, o chefe do Primeiro Comando de Policiamento de Área (...). Durante a visita ao Rio de Philip Alston, relator especial da ONU para direitos humanos, Jardim deu a ele um souvenir, em tom de provocação - uma miniatura de um caveirão, o blindado que sempre foi alvo de críticas - às vezes injustas, é verdade - dos movimentos de direitos humanos. Ao ir à posse do novo comandante do 2o BPM (Botafogo), tenente-coronel Antônio Carlos Carballo Blanco, ontem (estou editando vídeo sobre o assunto) pude pela primeira vez conversar pessoalmente com o coronel Marcus Jardim. 135 Descobri uma pessoa simpática, afável e educadíssima. A conversa transcorreu num clima tão bom que pude perguntar o que ele acha das denúncias feitas pelo usuário do Twitter conhecido como Boca de Sabão que aponta irregularidades e denúncias de corrupção na Polícia Militar do Rio. O coronel Marcus Jardim então admitiu que considera importantes algumas denúncias feitas pelo Boca de Sabão e que já comprovou até algumas delas. Infelizmente ele não se recordou de nenhuma que tivesse sido comprovada. Ele confessou que é leitor assíduo do Twitter do Boca, mas ressaltou que não concorda com acusações sem provas, que podem difamar pessoas e instituições. Não é nem preciso lembrar que a opinião de Marcus Jardim vai na direção oposta à do comando da PM, que - até que se prove o contrário -continua ignorando solenemente as denúncias feitas pelo tuiteiro, a quem já tentou desesperadamente localizar e desvendar a identidade. (Blog Repórter de Crime postado pelo jornalista Jorge Antônio Barros em 5 de novembro de 2009). Ao mesmo tempo em que existiam posições favoráveis, outro policiais, que também se utilizam do anonimato do Twitter, repudiavam a postura do boca de sabão. Foi criada, ainda em 2010, a conta @x9caguete que critica de forma radical as denúncias feitas por policiais à “sua própria corporação”. Em uma conversa com um dos meus interlocutores, que me pediu para que omitisse sua identidade somente em relação a este comentário – caso fosse usá-lo no trabalho –, foi bastante critico ao coletivo: “Este grupo são um bando de covarde, caguetas (sic) que só contribuem para levar a imagem da polícia para a lama. Temos órgãos internos que podem agir nestes casos que eles denunciam”. Houve inclusive reações do ex-comandante geral da PMERJ, que declarou que a PM estava empenhada em localizar e punir o grupo. O coronel Paulo Ricardo Paúl 136 repercutiu: Por ordem do comandante-geral da PM, coronel Mário Sérgio, a corporação está empenhada em localizar o “Boca de Sabão”. Engana-se, porém, quem acha que “Boca de Sabão” é algum traficante de alta periculosidade ou algum chefe de facção criminosa ou de uma milícia. Por incrível que pareça “Boca de Sabão” é o codinome de um policial militar, que usa o twitter para fazer críticas ao comando da Polícia Militar. Ninguém descobriu até agora a sua identidade. O coronel Mário Sérgio determinou que o Serviço Reservado (PM – 2) e a Corregedoria investiguem e descubram quem é o “Boca de Sabão”. Computadores do QG estão sendo vasculhados, especialistas em internet estão tentando rastrear as mensagens e policiais estão sendo interrogados. Uma verdadeira “caça às bruxas” está em curso dentro do QG. O coronel Mário Sérgio, com base no novo regulamento disciplinar que criou para a PM, quer porque quer, que o “Boca de Sabão” seja expulso. Para quem não sabe, hoje pelo novo regulamento críticas ao comando são passíveis de expulsão, enquanto matar um inocente por negligência, no máximo leva a uma repreensão no Boletim Reservado. Sinceramente era de se esperar que a PM tivesse outras prioridades, como por exemplo, prender os marginais que espancaram um soldado e botaram outros dois para correr, na Cidade de Deus. Mas, para o comandante da PM a prioridade é prender e expulsar o “Boca de Sabão”. Isso que é modernidade. (Blog Paulo Ricardo Paúl, postado pelo Coronel Paúl em 29 de setembro de 2009). O próprio grupo decidiu, em reação a esta polêmica, esclarecer alguns temas por meio de entrevistas feitas através de chats (mantendo portanto seu anonimato). Vejamos partes da entrevista dada a Jorge Antônio Barros: Por que afinal o comandante-geral da PM manifestou intenção de descobrir quem é o Boca de Sabão? Boca: O bocadesabao surgiu antes do atual comandante, mas esse parece 137 estar se preocupando mais comigo que o anterior. Eu creio que ele se preocupa porque Mario Sergio imaginou que seria uma unaminidade entre os policiais. Não imaginou que teria críticas como as nossas. Quais são as maiores críticas que o Boca faz ao atual comando da PM? Boca: O bocadesabao faz poucas críticas diretas ao comando. Ele se preocupa principalmente com as péssimas nomeações de comandantes e com a restrição de acesso ao BOLPM (Boletim da PM). Você teria alguns exemplos dessas "péssimas nomeações"? Boca: Quase todas. Fizemos até uma enquete. Hoje eu diria que a pior nomeação é a dos comandantes do 5º BPM (Praça da Harmonia) e do 31º BPM (Recreio), réus num processo por corrupção passiva. Como vc avalia uma nomeação como a do coronel Millan, que está na lista do Jogo de Bicho? Boca: Cel (coronel) Millan foi réu no mesmo processo mas tem uma situação diferente no mesmo. Parece que já foi absolvido. Mesmo assim, se eu fosse o comandante-geral, não o nomearia subchefe do Estado Maior Geral. Você soube que o major que se meteu em confusão numa blitz da Lei Seca havia sido nomeado ouvidor pelo próprio Mário Sérgio? Boca: Fiquei sabendo! Um absurdo. Li no seu blog. Das denúncias que você tem feito no Twitter, qual resultou em sindicância ou inquérito? Boca: Sinceramente não fiquei sabendo de nenhuma. O que me parece mais interessante neste processo todo é o tema do segredo. Este elemento, neste contexto, tem um “duplo sentido”: um deles refere-se ao anonimato dos autores das denúncias, que permanecem ocultos atrás das possibilidades da internet. Em 138 sentido inverso está o “segredo rompido” pelas acusações. O tema do anonimato é um tema permanente na Blogpol. No início do “movimento”, o secreto estava “respaldado” na lógica de que os policiais poderiam ter problemas graves em suas carreiras (RAMOS & PAIVA, 2009). Atualmente, com todo o processo que vimos aqui, não tenho notícias de qualquer blog relevante que seja anônimo. No que se refere ao Boca de Sabão, o secreto, quando denuncia outros policiais de forma explicíta e direta, alude a uma estratégia de sobrevivência. Isto me parece claro. No entanto, quando tratamos dos “segredos” revelados pelo Boca de Sabão, rompe-se as já “tradicionais” redes de autoproteção que mantinham as informações, agora divulgadas, no subterrâneo das conversas de corredor. As redes que ainda funcionam para evitar punições e o isolamento institucional entre os policiais de baixa patente são rompidas quando os segredos expõem os oficiais corruptos. 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS Queremos falar, opinar sobre a nossa formação, abordagem... Mostrar o que é o policial e a corporação. Queremos ser ouvidos e que as pessoas possam saber a história do nosso lado. Lembro de uma música antiga, que agora foi regravada.... Deixa eu dizer. Nós que mexemos com esta coisa de Blogs queremos isto: desabafar. Estas foram as ultimas frases que ouvi entre todas as entrevistas que fiz com meus interlocutores. Esta passagem do tenente Alexandre de Sousa marca muito qual é a questão de fundo da pesquisa. Os policiais militares que tive contato (pessoal ou através da rede de computadores) têm urgência de exteriorizar suas posições, falar sobre o que sabem e sobre o que têm vontade. Neste contexto, o reconhecimento e o entusiasmo com as (novas) possibilidades oferecidas para intercâmbio de idéias e experiências, assim como o diálogo amplo com uma grande audiência representam, sob meu ponto de vista, a descoberta de um novo mundo. Para trazermos tal realidade, com a complexidade e as cores necessárias, foi fundamental recuperar e contextualizar, ainda que brevemente, alguns dos principais elementos constituintes da corporação pesquisada. Uma vez que esse entendimento depende também da identificação das rupturas e das continuidades históricas na 140 constituição do Policial Militar. Saber sobre a intensa influência institucional que as forças armadas tiveram na história da PM, assim como as tendências históricas de afastamento das reais necessidades de um amplo setor da sociedade e, claro, o alinhamento com interesses e demandas de outros grupos sociais, visíveis até hoje na ação policial, ajuda a entender o comportamento da PMERJ e o cenário em que estão inseridos meus interlocutores. De forma semelhante, revisamos a questão da lógica disciplinar e o principio hierárquico presentes no contexto da polícia militar, que logicamente está imbricado com a tradição da corporação. Tais elementos, que não podem ser pensados separadamente, são elementos fundamentais para a contextualização do problema debatido aqui. Da mesma maneira, é basilar para o trabalho o esforço de localizar a relação entre os instrumentos virtuais, como softwares, sites, computadores etc. e seus operadores. Entender que estes elementos conformam e fazem parte de um sistema de ação unitário, com capacidade incontestável de inter-relacionar sujeitos, em interações pautadas em papéis de agência (GELL, 1998) é capital para descrever e problematizar o tema. Procurei também descrever que tais qualidades são dinâmicas e relacionais, variando de acordo com o ponto de vista adotado e com o tempo, e que não é correto tomar estes instrumentos sem levar em conta os diversos agenciamentos e intencionalidades associados a estes mesmos objetos. Sem estas noções não é possível compreender que blogs e páginas do Twitter são índices em uma rede de relações que acumula e transporta agência e intencionalidades humanas complexas. A Internet (e as suas possibilidades) agrega tantos elementos, tais como a velocidade, maleabilidade, liberdade, que escancara um horizonte inimaginável de possibilidades. O tipo de organização em rede da Blogpol propicia, como nos ensina 141 Castells (2006), um tecido forte, mutável e flexível. Uma poderosa “ferramenta” para propagar enunciados e construir posições. Com os dados etnográficos registrados na terceira parte da pesquisa, busquei demonstrar e desenvolver elementos que informam quais são os anseios dos policiais blogueiros, além de alguns dos elementos centrais e marcos na trajetória do coletivo que constitui a Blogpol. No que se refere ao caminho percorrido, o mais marcante foi o processo de transição (intensa) e estabilização da Blogpol. Este, a meu ver, configura-se como uma quebra importante de paradigma, que, todavia, ainda não está fortemente consolidado. No entanto, não deixa de ser algo notável, principalmente se levarmos em conta o contexto de uma organização marcada pela forte hierarquia e por uma tradição em que a palavra tem um uso restrito e consentido. Os enunciados vão sempre acompanhados da obrigação de apresentar um discurso (co)medido, impessoal, frio e técnico. Ao invés de ser tratada como um elemento estratégico, a palavra, via de regra, é distribuída e sopesada de forma a refletir a lógica e o principio hierárquico “imposto” pelo comando da corporação. A realidade em que vivemos hoje é a de que processos administrativos e outras formas de repressão aos blogs policiais ocorrem de forma residual. Este movimento abriu espaço para o aparecimento e o protagonismo de outros temas. Examinei analítica e etnograficamente três questões entre a extensa “pauta de temas” abordadas pelos blogs, tais como: a questão do treinamento e da formação policial; a relação entre polícia militar, políticas públicas de segurança e eleições; a campanha pela valorização salarial da categoria através da PEC 300. Vimos que a pretensão destes homens e mulheres é justamente ocupar um lugar de destaque nos debates da segurança pública em nosso país. 142 Este é outro elemento de destaque nesta conclusão: a urgência da fala destes policiais militares acontece de forma diversa e articulada com uma intencionalidade clara. A questão da perspectiva e do lugar que ocupam nos processos de administração de conflitos apareceu sempre com muita força. Vimos que, sob a ótica dos meus interlocutores, o amalgama perpetrado pela formação teórica rigorosa que julgam ter, somado com a vivência das ruas, é elemento que pertence a eles (e a ninguém mais), podendo ser “traduzidos” e aportados ao campo de controvérsias da segurança pública. As mais distintas realidades freqüentadas pelos policiais durante a o período que estão nas ruas, sob esta perspectiva, conformam um saber único, imerso em toda a sorte de idiossincrasias da vida real, que sintoniza o que é formalmente ensinado com o que a realidade impõe. Desta forma, somente os policiais militares detém este saber prático e informal que, em grande medida, é capaz de contribuir para a “solução” dos diversos problemas que impedem o sucesso das políticas de segurança. Este é um elemento recorrente na etnografia efetuada neste trabalho. Aparece de forma evidente e inequívoca no tratamento da relação entre a formação da técnica policial na academia e a vivencia na rua. No entanto, está fortemente presente também no “programa” político dos policiais candidatos. Estes se representam como os únicos capazes de dirimir o drama da segurança pública, porque são os que conhecem de perto a cena policial. Desta forma, somente estes homens podem denunciar, mesmo que anonimamente, os malfeitos de seus colegas, porque dividem com estes o cotidiano da caserna. Não ousaria indicar outras repercussões e/ou tendências que serão “herdeiras” do processo que vimos aqui. Estas se revelarão com o decorrer do tempo. O que é possível dizer com certeza é que o aparecimento e a consolidação da blogosfera policial é elemento relevante dentro do campo da segurança pública. O que já foi conquistado é 143 notável. O ato de desafiar a rígida lógica disciplinar e o principio hierárquico da Polícia Militar não é obra menor. É lógico que não se pode colocar em termos de vitória dos praças sobre os oficiais, mas, no entanto, a editoração de diversos blogs por parte da corporação ou de seus comandantes gerais, como ocorreu na PMERJ, é algo significativo. Por fim, devo dizer que tenho a certeza de que não encerrei aqui nenhuma questão. O esforço feito aqui é para que este trabalho seja mais um passo em direção a um entendimento mais amplo das questões levantadas. 144 BIBLIOGRAFIA ABRAMOVAY, Ricardo. Bem vindo ao mundo da controvérsia. In: VEIGA, José Eli da (Org.). Transgênicos: Sementes da Discórdia. São Paulo: SENAC, 2007. Disponível em: http://diplo.uol.com.br/2006-08,a1379, 2006. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memória de um sargento de milícias (1852-54). Brasília: UNB, 1963. ARAÚJO, Elysio de. Estudo Histórico sobre a Polícia da Capital Federal. Rio de Janeiro, 1898. BAYLEY, D. H. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa. EDUSP, São Paulo, 2001. BAUDRILLARD, Jean. 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