Veja por dentro

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Veja por dentro
Para as nossas famílias
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índice
Nota dos autores................................................................................9
Introdução..........................................................................................11
Capítulo 1 • João Batista — O Messias Rival e os Ossos
da Polémica.....................................................................................21
Capítulo 2 • O Ossário de Tiago — A Mão de Deus ou o Crime
do Século?.......................................................................................57
Capítulo 3 • Maria Madalena — Prostituta, Apóstola, Santa…
ou a Esposa de Jesus?.....................................................................89
Capítulo 4 • O Evangelho de Judas — O Grande Thriller
do Cristianismo...............................................................................141
Capítulo 5 • A Verdadeira Cruz — O Carregamento
de Um Navio Inteiro.......................................................................185
Capítulo 6 • A Mortalha e o Sudário — O Jesus Histórico
e o Jesus Misterioso........................................................................215
Agradecimentos.................................................................................251
Bibliografia.........................................................................................252
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n o ta d o s a u t o r e s
Os seguintes especialistas foram entrevistados para a série da CNN
Finding Jesus e usámos excertos dos seus depoimentos ao longo desta
obra: Nicholas Allen, reverendo Bruce Chilton, Kate Cooper, Annaliese
Freisenbruch, Camil Fuchs, rabi Joshua Garroway, Oded
Golan, Mark Goodacre, Mark Guscin, Israel Hershkovitz, Tom
Higham, Shimon Ilani, John Jackson, Matthew Kalman, Georges
Kazan, Noel Lenski, Byron McCane, frei James Martin, Candida Moss,
Elaine Pagels, Jonathan Pagis, Joan Taylor e Ben Witherington III.
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introdução
Quem
é
Jesus?
A
pergunta deve ser formulada no presente do indicativo porque,
para os crentes, Jesus é Deus e ele existe aqui e agora tal como
sempre existiu: «Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e pelos
séculos», como afirma o Novo Testamento. Ser-se cristão é ter uma
relação com um Jesus que está vivo no Céu e connosco em cada momento de cada dia.
Mas Jesus também está profundamente presente entre os agnósticos de hoje e mesmo entre os céticos mais obstinados, que se relacionam à sua maneira com Jesus de Nazaré quase com tanta devoção
como a dos cristãos.
Repare o leitor na reação perante qualquer novo artefacto que seja
descoberto numa escavação na Terra Santa ou qualquer fragmento
de papiro que surja das areias do Egito ou dos mercados de antiguidades, por vezes obscuros, que existem em todo o mundo ocidental.
Todos esses objetos são acompanhados por afirmações espantosas e
por uma vaga de manchetes de letras bem gordas, e cada um deles desencadeia uma nova onda de fascínio global por um homem que morreu há dois mil anos, crucificado pelos Romanos numa colina poeirenta
nos arredores de Jerusalém.
A crucificação foi um castigo infligido a muitos outros que eram considerados inimigos do Estado. Mas Jesus era diferente. Para os crentes,
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Jesus ergueu-se do túmulo ao terceiro dia nessa primeira manhã de
Páscoa, trazendo consigo uma mensagem de vida eterna e galvanizando um pequeno grupo de seguidores que iria depois criar uma igreja e disseminar uma fé que conseguiria chegar a todos os cantos do
mundo. Os que rejeitam este pressuposto ficam obrigados a enfrentar
a realidade da vida que Jesus teve neste mundo depois de morrer e as
forças históricas que ele libertou e que ainda hoje se mantêm inalteradas, mesmo numa época tida como laica. Não admira por isso que
a entrada relativa a Jesus na Wikipedia, a enciclopédia online de acesso
livre, seja a quinta entrada mais alterada entre as mais de 30 milhões
existentes no site.
Toda a gente parece ter a certeza de quem é Jesus e daquilo em que
devemos acreditar a seu respeito, mas, para essas afirmações poderem
ser fundamentadas, há que saber quem foi Jesus.
Analisar esse mistério e a história que o rodeia é o objetivo desta
obra e da série da CNN Finding Jesus. É uma aventura fascinante que
tem que ver com a teologia, com a arqueologia, com as preocupações
contemporâneas em matéria de sexo, religião e sentido da vida e com
a milenar paixão humana pelas relíquias. Nos seis capítulos que se seguem examinamos seis relíquias — ou artefactos, se se quiser — que
nos abrem uma janela para o passado, alargando os nossos conhecimentos sobre a Judeia, os homens e as mulheres que se relacionaram
com Jesus e aqueles que mais tarde seguiram o homem que acreditavam ser o Messias — ou seja, Cristo (do grego christos, «o ungido»).
Estas investigações levam-nos ao âmago da história e da sabedoria
contemporânea acerca da Bíblia e demonstram, mais uma vez, que descobrir a verdade sobre Jesus não é tarefa fácil. Nunca foi, aliás. Quando
Jesus foi levado à presença de Pôncio Pilatos, o governador romano da
Judeia não sabia o que pensar dele. «És o rei dos Judeus?», perguntou-lhe Pilatos.
Jesus respondeu: «Tu o dizes.» Mas, ao ser acusado pelos sumos
sacerdotes e anciãos, nada respondeu.
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Pilatos disse-lhe, então: «Não ouves tudo o que dizem contra ti?»
Mas Ele não respondeu coisa alguma, de modo que o governador
estava muito admirado.1
Este diálogo famoso está presente, com ligeiras variantes, em todos os quatro evangelhos consagrados pela Bíblia — São Mateus, São
Marcos, São Lucas e São João —, que relatam a vida e a morte de Jesus.
Mas os evangelhos bíblicos não são biografias, no sentido mais comum
dessa palavra. São textos que contam a história de Jesus, mas que, acima de tudo, transmitem o «porquê» da sua vida (a mensagem dos seus
ensinamentos) tanto como transmitem o «quem», o «o quê», o «quando» e o «onde». É por isso que os diferentes evangelhos se ocupam
de diferentes temas da vida de Jesus: dois contam versões do seu nascimento e os outros dois, não. Só um se refere à vida de Jesus entre
a infância e a sua ascensão como figura pública por volta dos 30 anos
de idade. Variam nos pormenores e, por vezes, chegam a contar a mesma história de maneira diferente, contradizendo-se mesmo em certos
pormenores.
Durante vários séculos isto não foi um grande problema. A vida de
Cristo foi tida como um dado adquirido. As diferenças entre as várias
versões significavam apenas que os pregadores tinham fontes mais
abundantes de materiais para se inspirarem e um reservatório bem
mais vasto de significados que era necessário esclarecer. A efabulação, mesmo para enfeitar os relatos, não era, necessariamente, uma
coisa má. Os acontecimentos da Bíblia e as inúmeras imagens em pedra e tela que os representam podiam conduzir as pessoas à essência
da fé. O cristianismo era principalmente uma questão de fé e era isso
que punha os crentes a discutir entre si, muitas vezes com resultados
mortíferos. No entanto, quando as guerras religiosas que assolaram
a Europa no século xvii deram lugar ao Iluminismo, no século seguinte,
1
odas as referências e citações da Bíblia foram retiradas da Bíblia Sagrada conhecida
T
como Bíblia dos Capuchinhos (ed. Difusora Bíblica, 2.ª edição, 2002). [N. do T.]
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tudo mudou. A tradição foi sujeita a uma sindicância racionalista e os
dogmas ao escrutínio científico, e tudo o que não correspondia aos padrões do Iluminismo era posto de lado.
Os relatos sobre Jesus nos evangelhos foram objeto de uma atenção
especial. Foi assim que nasceu a chamada Primeira Busca do Jesus histórico, iniciativa dos protestantes alemães que fizeram incidir o olhar
crítico da erudição moderna na Sagrada Escritura e que acabaram por
reescrever o Novo Testamento de uma forma que, não poucas vezes,
escandalizou os fiéis. Tudo o que não podia ser provado era posto em causa e muito do que fora importante para os crentes ao longo dos séculos
foi posto à margem. Talvez o mais famoso e mais ilustrativo exemplo
desta abordagem seja a Bíblia de Jefferson, a versão do Novo Testamento
da autoria do presidente americano Thomas Jefferson, uma das personalidades influenciadas pelo Iluminismo, que cortou literalmente todas
as passagens das Escrituras que se referiam a milagres e acontecimentos sobrenaturais, deixando apenas os ensinamentos éticos de Jesus
que Jefferson achava serem aceitáveis.
A Primeira Busca terminou, na realidade, em 1906, com a publicação da obra que deu o nome ao fenómeno, Geschichte der Leben-Jesu-Forschung («A História da Pesquisa da Vida de Jesus»), de Albert
Schweitzer. Médico luterano mais tarde reconhecido pelo seu trabalho humanitário na África Ocidental e Prémio Nobel da Paz em 1952,
Schweitzer acabou por concluir que «o Jesus histórico continuará a ser
um desconhecido e um enigma para o nosso tempo».
Contudo, Jesus não seria posto de lado tão facilmente. Uma conferência de 1953 subordinada ao tema «O problema do Jesus histórico»,
de outro erudito alemão, Ernest Käsemann, lançou aquilo a que hoje
se chama a Segunda Busca, que levou à utilização da crítica textual e
de outros instrumentos de estudo modernos numa nova tentativa de
encontrar solução para este «problema». A Segunda Busca foi suportada por diversas descobertas arqueológicas memoráveis — como a
descoberta ocasional dos Manuscritos do Mar Morto por um pastor
beduíno — que fizeram pela Bíblia o que a descoberta do túmulo do
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rei Tutankhamon fez em 1922 por todos os assuntos relacionados com
o Egito. A arqueologia bíblica transformou-se de repente numa moda.
Até deixar de o ser. A Segunda Busca pareceu ter terminado nos
anos 1970, mas a questão do Jesus histórico continuou a estimular
a imaginação do Ocidente e, por volta da década de 1980, uma nova
geração de estudiosos, recorrendo a um novo arsenal de instrumentos e
de tecnologias, lançou o que veio a ser conhecido como Terceira Busca.
E esta não dá sinais de estar a abrandar, e por vários motivos.
Um deles é o facto de os eruditos cristãos estarem mais envolvidos
do que nunca nesta pesquisa, recorrendo à ciência e à História não apenas para tentarem fazer prova das suas crenças — o que muitas vezes
culminou num embaraço intelectual —, mas também para consubstanciarem melhor a sua fé e mostrarem a um público desconfiado que
a fé e a razão podem funcionar em harmonia. As anteriores tentativas
de descobrir o Jesus histórico estiveram perto de ser dominadas pelos
críticos do cristianismo, que procuravam desacreditar a fé, ou por cristãos que se concentravam na tentativa de retirar a camada relacionada
com o mito, para poderem ir mais longe e recuperarem os elementos
mais sólidos da verdade que estavam enterrados e assim resgatar o profeta judeu original que pudesse falar de uma forma diferente ao mundo
moderno. Só que estes esforços acabaram por colocar em confronto
a ciência e a religião, e a fé e a razão prejudicaram-se mutuamente.
Estes esforços também conduziram a alguns projetos discutíveis,
como o Seminário de Jesus, um coletivo informal de 150 eruditos que,
durante os anos 1980 e 1990, recorreu a um sistema de contas coloridas
para votarem as partes dos evangelhos que consideravam fidedignas.
No final, foram levantadas dúvidas sérias sobre 82 por cento das palavras atribuídas a Jesus e a 84 por cento dos seus feitos, um resultado
ainda pior do que o da Bíblia de Jefferson e com uma metodologia que
os principais especialistas consideraram que deixava muito a desejar.
Em anos mais recentes, alguns eruditos, bloggers e defensores da
teoria da conspiração têm até tentado ressuscitar a teoria de que Jesus
não existiu ou de que não tinha nada que ver com o homem retratado
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pelos Evangelhos e que a sua vida, morte e ressurreição não passavam de um logro. Os argumentos tornaram-se tão insistentes que, em
2012, um eminente estudioso do Novo Testamento da Universidade da
Carolina do Norte em Chapel Hill chamado Bart Ehrman escreveu um
livro a refutá-los. E o caso não lhe suscitava qualquer interesse pessoal.
Antes pelo contrário: embora tivesse sido educado como cristão evangélico, Ehrman acabou por se tornar mais tarde um agnóstico convicto.
Mas como escreveu: «A realidade é que, seja lá o que for que se pense
a propósito de Jesus, ele existiu.»
Continua, porém, a ser difícil encontrar uma prova inabalável da
sua existência. Jesus não deixou nada escrito pelo seu punho e não há
relíquias físicas (além de alguns artefactos implausíveis como o famoso
prepúcio de Jesus, que é uma história completamente diferente). A sua
existência é citada de passagem por alguns historiadores do primeiro
século mas, fora isso, continuamos em grande medida a confiar nos
evangelhos.
Portanto, o que é que ao certo sabemos dele? Mesmo depois de
tanta procura e de tantos testes, a resposta mais certa parece ser a mais
breve: Jesus era um judeu de Nazaré que viveu, e foi crucificado, na
província romana da Judeia, terra de Israel, que era uma região rebelde
na fronteira oriental do Império situada numa encruzilhada perigosa
do mundo antigo.
E quanto à sua aparência? Ninguém pode dizer, ao certo. Até a língua que ele falava continua a ser um tema polémico. Quando o Papa
Francisco se encontrou com o primeiro-ministro israelita Benjamin
Netanyahu durante a visita papal a Jerusalém em junho de 2014,
Netanyahu tentou estabelecer uma ligação com o líder da maior igreja
cristã do mundo, ao salientar que o cristianismo e o judaísmo tinham
a mesma origem e que o próprio Jesus falava hebraico. «Aramaico!»,
corrigiu o Papa com gentileza, referindo-se à língua semita que está
intimamente associada ao hebraico e que era a usada no dia a dia no
tempo de Jesus. «Ele falava aramaico, mas sabia hebraico», replicou
Netanyahu, diplomaticamente.
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Bem, o grego também era de uso generalizado nessa altura e muitas
vezes misturava-se com o hebraico e o aramaico. «A utilização da antiga
língua judaica fazia lembrar o “espanglês”, mudava-se de língua consoante o que a pessoa dizia e com quem falava», escreveu nessa altura
Seth Sanders, professor de Religiões no Trinity College e autor de The
Invention of Hebrew («A Invenção do Hebraico»).
Esta incerteza, esta ausência relativa de factos concretos, é o que
está no centro do problema. Adam Gopnik, da redação da revista The
New Yorker, a propósito da interminável obsessão que é a tentativa de
descobrir a verdadeira história de William Shakespeare, cuja biografia
se mantém ainda opaca passados 450 anos sobre a sua morte, escreveu:
«A resposta fácil é a desproporção entre o altíssimo patamar da sua reputação e os fragmentos da sua biografia: as montanhas mais altas produzem os mais abomináveis homens das neves e os yetis acumulam-se
nas encostas do Evereste.»
Aliás, até parece que o domínio da arqueologia bíblica dá origem a
tantos logros, ou afirmações exageradas que parecem ser logros, como
os avistamentos do Bigfoot ou de Elvis Presley. Quanto maior é o impacto, maior é a atração e quanto mais extravagante for a descoberta,
mais credível ela se torna.
Também faz parte do conhecimento convencional, no que se refere
aos estudos sobre o Filho de Deus, que a falta de dados exatos sobre
Jesus significa que nós acabámos por compor tanto o retrato que o homem da Galileia já se parece connosco, o que se torna bastante suspeito. Há uma piada antiga que ilustra esta situação. A pergunta é «Como
é que sabemos que Jesus era judeu?». E a resposta é esta: porque seguiu
o negócio do pai, viveu em casa dos pais até aos 30 anos e pensava que
a mãe era virgem e a mãe pensava que ele era Deus. Se adicionarmos
algumas variações a esta piada — ele bebia vinho a todas as refeições
e adorava contar histórias, por exemplo —, Jesus tornar-se-á italiano
ou irlandês e por aí adiante.
As nossas preocupações atuais tendem a ser um pouco diferentes,
tal como o nosso Jesus que, a todo o momento, se descobre ser um
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proto-marxista ou um republicano do Tea Party americano que é contra
os impostos; um camponês de vida humilde ou um homem de negócios modelo; um zelote amante da liberdade ou um filósofo grego não
alinhado; um homem gay ou um marido feliz e com filhos.
Concentrar-nos nos artefactos associados a Jesus pode ser uma forma de contornar algumas dessas tentações biográficas. É certo que as
relíquias podem conduzir ao seu próprio tipo de literalismo, que será
um atalho para um pensamento pouco maleável sobre a fé, tanto de
crentes como de céticos. As descobertas genuinamente notáveis que
viram a luz do dia em décadas mais recentes fazem muitas vezes com
que se pense que, a qualquer momento, emergirá a verdade genuína e
que algum fragmento de papiro vai revelar que, sim, Jesus era feminista, que uma gravura mostrará que ele tinha um irmão e que um trapo
nos revelará, finalmente, como eram as suas feições.
E mesmo os descrentes mais radicais podem agarrar-se às relíquias
para fundamentarem os seus pontos de vista, tal como os apologistas
cristãos fizeram no passado. Vivemos mais do que nunca num mundo
de vitórias absolutas em que queremos ter razão e em que precisamos
que nos deem razão. Não gostamos da ambiguidade nem da dúvida.
E quem é que gosta, aliás? Um dos próprios apóstolos de Jesus, Tomé,
não quis acreditar na Ressurreição até «ver o sinal dos pregos nas suas
mãos e […] meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no
seu peito». Tomé teve sorte por dispor dessa possibilidade quando Jesus
lhe apareceu, mas nós temos de nos contentar com outros objetos, que
também não são menos fascinantes.
Nesta obra procuramos respostas (como Tomé, o Incrédulo) em fragmentos de ossos dos contemporâneos de Jesus, em textos de papiros
que podem dar-nos, ou não, novas perspetivas sobre acontecimentos
que os evangelhos não registaram e numa caixa funerária que pode ter
contido os ossos do irmão de Jesus. Examinamos fragmentos do que
pode ter sido a cruz em que Jesus foi morto e a mortalha que pode ter
envolvido o seu corpo, registando o seu renascimento e o seu regresso
a esta vida. E investigamos as vidas de São João Batista, Maria Madalena
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e Judas Iscariotes para ver o que os biógrafos dos mais próximos de
Jesus nos podem dizer sobre o Nazareno.
Os objetos associados a Jesus têm sido desde sempre alvo de grande fascínio. Os evangelhos relatam como uma mulher, que sofria de
hemorragias há mais de doze anos, furou a multidão que rodeava Jesus
convencida de que «se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada». E assim foi. As pessoas hoje em dia não parecem menos atraídas
por objetos associados a atletas famosos ou celebridades e, se forem
relíquias ligadas a mortos, serão ainda mais poderosas.
Mas aqueles de que nos ocupamos nas páginas seguintes — com a
possível exceção do Sudário de Turim — não são, necessariamente, relíquias milagrosas daquelas que os fiéis adoram e os descrentes rejeitam,
como David Hume, filósofo escocês do século xviii que foi o autor da famosa definição de milagre como sendo uma «violação das leis da natureza».
Mais do que isso, esses objetos são, eles próprios, pertença do mundo natural e testemunho do que aconteceu num período e num local
determinados da História. Estes objetos têm a capacidade de nos fazerem pensar noutras realidades e de nos transportarem para um tempo
e para um lugar que não são os nossos apenas pela esperança de descobrirmos qualquer coisa sobre Jesus que não tenha sido filtrada pela lente
dos nossos desejos que distorce o que vemos.
Os artefactos são, de certo modo, um espaço raro de terreno comum
entre os céticos e os crentes, um local onde a ciência e a religião podem
encontrar-se, e não como inimigas mas como peregrinas numa jornada
partilhada, independentemente do seu destino.
Ao contarmos a história destes objetos, queremos perguntar, e responder, a duas perguntas fundamentais: São verdadeiros? E o que significam?
«Todo aquele que vive da verdade escuta a minha voz», disse Jesus
a Pilatos enquanto esperava pela sua decisão, de pé diante dele. «O que é
a verdade?», perguntou-lhe Pilatos. Jesus ficou em silêncio, segundo
o Evangelho de São João. Mas é a descoberta da resposta à pergunta
de Pilatos que está no centro da procura de Jesus e motiva este livro.
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capítulo um
JOÃO BATI S TA
o m e s s i a s r i va l
e os ossos da polémica
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t
ão João Batista foi o homem que ficou famoso por prever a vinda do Messias
S
e que depois identificou Jesus como sendo o enviado de Deus quando o batizou
no rio Jordão. Poderão cinco ossos humanos encontrados na ilha de Sveti Ivan
pertencer ao «Batista»?
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Q
uem visita a ilha de Sveti Ivan talvez não pense que este seja o local
mais provável para esclarecer um dos mistérios mais intrigantes
da história cristã.
Com cerca de 640 m2, esta extensão de terra quase estéril fica no
mar Negro, ao largo da costa da Bulgária, a menos de um quilómetro
da cidade balnear de Sozopol e a quase 2250 quilómetros de Jerusalém.
Mas a ilha sempre teve uma importância maior do que a sua dimensão,
tanto estratégica como cultural. Depois de os Romanos a terem conquistado no ano 72 a. C., construíram aí um farol e, perto de um antigo
santuário trácio, um templo com uma estátua com 13 metros de altura,
em bronze, representando Apolo.
Os edifícios em redor do templo acabaram por ruir, acompanhando
a sorte do Império e, no século v d. C., quando os cristãos começaram a
chegar à região e a preencher o vácuo deixado pelos Romanos, foi construído um mosteiro sobre as ruínas existentes e a discreta ilha foi batizada como «Sveti Ivan», ou São Ivan. Ou, na tradução latina do nome,
São João, isto é, São João Batista.
No Novo Testamento, João é conhecido como «Batista» ou «Imersor»,
devido à fama conquistada por atrair as almas penitentes para os seus
batismos nas águas do rio. Mas os cristãos também o conhecem como
«Precursor» por ser o homem que ficou igualmente famoso por prever
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a vinda do Messias e que depois identificou Jesus como sendo o enviado
de Deus quando o batizou no rio Jordão. João era um profeta franco e
direto, um arauto destemido do Reino de Deus e o típico pregador de
rua que, em vez de andar com cartazes à frente e atrás com a proclamação «Arrependam-se!», se cobria com pelo de camelo e se alimentava de
gafanhotos e de mel silvestre.
João vivia de acordo com o que proclamava e foi mandado prender
por Herodes Antipas, o rei-fantoche dos Romanos na Judeia, quando
denunciou o casamento incestuoso do rei com a sua própria sobrinha,
Herodias. A morte de João, nessa altura, também ficou famosa por
Herodes aceder a oferecer à filha, tradicionalmente identificada como
Salomé, o que ela quisesse, se dançasse diante dos convidados de um
jantar real. Salomé assim fez, e terá sido bastante convincente, pedindo
a cabeça do Batista numa bandeja, o que Herodes lhe concedeu.
Sveti Ivan, a ilha de São João, sofreu várias atribulações ao longo
dos anos. A basílica original foi abandonada e depois reconstruída no
século x, tendo florescido durante o século xiii, acompanhando o crescimento do culto a São João Batista. Diz-se que aí terão sido enterrados
dois patriarcas de Constantinopla, o que seria uma honra para um local
tão modesto. Os muçulmanos otomanos que iam conquistar a cidade
cristã de Bizâncio saquearam a ilha de São João em 1453, mas depois
disso ainda foi erguida uma nova igreja. Posteriormente, já no século
xvii, os piratas cossacos fizeram da ilha um refúgio e transformaram a
igreja num salão de festas. Os Otomanos terão acabado por arrasar todas as construções para privarem os piratas de qualquer tipo de abrigo
e a ilha acabou por ser usada como hospital de campanha dos soldados
russos no século xix.
Por volta de 1980 falou-se na reconversão da ilha em destino turístico,
dispondo de um hotel, lojas e outro tipo de atrações. O projeto ficou, no
entanto, parado e Sveti Ivan pouco mais é hoje do que um lar para a vida
selvagem, nomeadamente para algumas espécies de aves em risco. E até
já desapareceram as focas-monge-do-mediterrâneo que povoavam as rochas da ilha e que eram como ecos distantes do passado monástico do local.
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J oã o B at i s ta : O M es s i as R i va l
e os
O ss os
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Deve ter sido uma espécie de ato de fé o que levou os arqueólogos
a explorarem as antigas ruínas da ilha e a fazerem uma espantosa descoberta, em julho de 2010, debaixo do altar original: um relicário de
mármore (ou cofre para relíquias) com diversos ossos. Três dos ossos
eram de gado: de uma ovelha, de uma vaca e de um cavalo. «Os ossos de
animais são os maiores de todos e podem ter sido lá postos para aumentarem o volume do que parece ser um conjunto bastante diminuto de
ossos», disse Thomas Higham, professor de Ciências Arqueológicas
da Universidade de Oxford, à agência Reuters. Higham foi um dos
membros da equipa chamada para fazer um teste de ADN aos ossos,
para determinar se podiam realmente pertencer a São João Batista.
Com os despojos animais encontravam-se mais cinco ossos humanos: um pedaço de osso da mão direita, um dente, um fragmento de
crânio, uma costela e um cúbito (osso do antebraço). Higham e a sua
equipa levaram esta coleção para a Unidade de Aceleração de Radiocarbono de Oxford, um dos mais importantes laboratórios do mundo de
datação por carbono de achados arqueológicos e, dois anos mais tarde,
o resultado deixou o próprio cientista estupefacto: os ossos humanos
datavam de meados do século i d. C., precisamente a época em que
Jesus vivera. Os testes do material genético feitos por especialistas da
Universidade de Copenhaga revelaram que os ossos eram todos provenientes do mesmo homem e que ele parecia, por seu turno, ser oriundo
do Médio Oriente.
Além do mais, enterrada numa parte mais antiga da igreja, foi descoberta uma pequena caixa feita de pedra vulcânica. A caixa tem uma
inscrição com o nome «São João» em grego e o dia festivo de São João
Batista — dia 24 de junho —, que a tradição garante ser o dia do seu
nascimento. A pedra de que é feita a caixa chama-se tufo calcário e é
oriunda de uma zona situada na Turquia dos nossos dias, na proximidade de uma das rotas usadas para o transporte de relíquias da Terra
Santa para Constantinopla (hoje Istambul), onde os imperadores romanos e diversos aristocratas, além de patriarcas e bispos, ansiavam por
comprá-las.
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«As relíquias eram muitas vezes oferecidas como sinal de favor.
O mosteiro de Sveti Ivan pode muito bem ter recebido algumas como
presente de um patrono que pertencesse à elite de Constantinopla»,
disse Georges Kazan, arqueólogo de Oxford, cuja tese de doutoramento
teve por tema as movimentações de relíquias nos séculos v e vi. Kazan
salientou que a ilha ficava a uma distância muito acessível da capital
bizantina e numa das mais importantes rotas comerciais do mar Negro.
«Pode ser exagerado pensar que esse material do século i foi parar
todo a esta igreja da Bulgária e que ainda lá se manteria à disposição dos
arqueólogos que fossem fazer escavações», disse Higham, acrescentando
que «já aconteceram coisas mais estranhas». Higham, ateu confesso e
sem motivo nenhum para proferir afirmações de caráter religioso, contou aos jornalistas a sua primeira reação quando, em 2010, ouviu falar
nas relíquias: «Pensei que fosse uma brincadeira, para ser sincero.»
Ao dar início à fase de testes, pensou que a idade da igreja original (por
volta do século v) asseguraria uma idade provável ao material. «Pensámos que talvez estes ossos também fossem dos séculos iv ou v. Mas
ficámos surpreendidos quando se revelaram muito mais antigos do que
isso.»
E poderão ser os ossos de João Batista? Até agora não há uma maneira de ter a certeza porque não existe uma base de dados de ADN
que sirva de comparação, nem nenhum genoma da família de São João
— que poderia incluir o seu primo em primeiro grau, Jesus de Nazaré.
Mesmo assim, a simples descoberta dos ossos — todos de meados do
século i e todos de um homem que viveu no Médio Oriente — continua
a ser uma descoberta notável.
João Batista foi, em certa medida, o Humpty Dumpty dos mártires.
Foi decapitado e, ao longo dos séculos foram tantas as igrejas, os santuários e as mesquitas — São João é também um profeta venerado pelo
Islão — que reivindicaram a posse do seu crânio e dos seus vários ossos
que os clérigos mais brincalhões gostavam de dizer que João devia ter
tido seis cabeças e doze mãos. Reconstruir um único São João Batista
pode ser impossível, apesar de a tarefa e a popularidade dos seus restos
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mortais abrirem uma janela a perguntas realmente importantes: Quem
era João Batista e porque é que ele foi tão importante para Jesus de
Nazaré? Porque é que Jesus foi ter com ele para ser batizado? Seria
o Batista uma figura mais popular do que o Filho de Deus? E porque
é que o movimento de São João se dissipou, como ele próprio previu
que aconteceria, enquanto o movimento de Jesus se tornou uma religião global?
«NÃO COMPREENDER O BATISTA É NÃO COMPREENDER JESUS»
Acima de tudo, o que João Batista dá à História cristã é um contexto
histórico e religioso, e esse contexto tem uma importância vital para
compreender Jesus. Mas também pode ser profundamente ameaçador
para muitos dos seus seguidores.
Foi uma ameaça que surgiu nos séculos xvii e xviii com a ascensão
da «crítica bíblica», o movimento académico decidido a examinar as
Escrituras de um ponto de vista desapaixonado, erudito e «factual», em
vez de olhar para os textos cristãos sobretudo como uma concretização das profecias do Antigo Testamento e um relato do Deus único e
verdadeiro, que envia o Seu Filho ao mundo para viver e morrer como
homem com o objetivo de expiar os pecados do mundo e de se erguer
do túmulo e indicar o caminho que conduz à salvação eterna. Ao longo
do seu percurso, este homem divino, Jesus Cristo, também mostrou
aos seus seguidores como se vivia e instruiu-os nesse sentido. Durante
séculos, o Novo Testamento foi ensinado como sendo um conjunto de
crenças que se devem seguir para se alcançar o Céu e como um manual
de moralidade para guiar a vida das pessoas neste mundo. Para a maioria dos crentes, a ciência não fez mais do que interferir no significado
e o contexto histórico só serviu para diminuir a singularidade de Jesus.
Os eruditos foram pensando cada vez mais o contrário e a maioria
foi vista como detratora, limitando-se a sublinhar as inconsistências ou
as contradições evidentes dos Evangelhos, enquanto rejeitava os relatos
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dos milagres (sendo a Ressurreição o principal), como se não passassem de mitos óbvios, totalmente inventados pelos primeiros cristãos,
ou de uma interpretação errada de fenómenos naturais, ou ainda de
uma alucinação coletiva.
Alguns estudiosos cristãos têm tentado utilizar a ciência para fundamentar as Escrituras e confundir os céticos bíblicos. Um dos primeiros exemplos foi o do arcebispo anglicano do século xvii James Ussher,
cujos cálculos complexos baseados na Bíblia serviram para determinar
a hora e o dia da Criação como a noite da véspera do dia 23 de outubro
de 4004 a. C., que foi domingo. Outros têm seguido os passos de Ussher
esforçando-se por afastar teorias científicas que parecem entrar em conflito com as afirmações bíblicas ou tentando adivinhar a data e a hora
exatas do fim do mundo.
Estes esforços acabaram quase todos mal ou deram origem a uma
imagem reflexa dos pontos de vista dos racionalistas, ao concentrarem-se de tal modo na justificação científica das Escrituras que acabaram
por obscurecer os mais elevados propósitos e fins teológicos do cristianismo.
Quando se trata de Jesus de Nazaré, o medo de muitos crentes tem
sido o facto de ele estar a ser posto em causa como Jesus Cristo ao ser
retratado como um judeu do sexo masculino que viveu na Judeia do
século i, um rabi e profeta entre muitos dos que existiam na região
nos dias tumultuosos do Império Romano. Seria preferível vê-lo apenas
como o Filho de Deus, o primeiro cristão, emergindo das páginas dos
textos sagrados já completamente formado, dando início a uma nova fé
e morrendo por ela.
A estrutura dos próprios evangelhos estimulou este ponto de vista:
dois dos quatro evangelhos, o de São Marcos e o de São João, começam
abruptamente com o início da atividade pública de Jesus na Galileia,
quando era um homem solteiro com cerca de 30 anos. Os Evangelhos
de São Lucas e de São Mateus abrem com o que é designado por narrativas de infância, que relatam a adorada história natalícia do nascimento
numa manjedoura de Belém e a fuga da Sagrada Família para o Egito,
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para escapar ao terrível édito de Herodes segundo o qual todas as crianças do sexo masculino com menos de 2 anos deviam ser mortas para
liquidar o Messias, impedindo-o de se tornar um perigo para o domínio
romano, se atingisse a idade adulta.
O Evangelho de São Lucas conta a história de Jesus quando, aos
12 anos, acompanhou Maria e José a Jerusalém para a Páscoa. Nessa
visita, os pais perdem-no de vista e só o encontram três dias depois no
Templo, a debater os ensinamentos judaicos com os anciãos, espantados perante os seus conhecimentos e a sua sabedoria.
Além deste episódio, que apresenta Jesus como um jovem com
uma maturidade quase sobrenatural, os evangelhos saltam do Jesus
criança para o Salvador já completamente adulto e passam por cima
de quaisquer dores de crescimento ou de qualquer outra história do
seu percurso de vida. Daí a proliferação de teorias fantasiosas sobre
os «anos perdidos» de Jesus. Os crentes da Idade Média deliciavam-se
com as histórias que asseguravam que Jesus visitara a Inglaterra durante esses anos intermédios, enquanto os crentes com sensibilidades
mais modernas preferem as teorias que o dão como tendo ido à Índia
(um pouco como os Beatles a visitarem um ashram), tendo talvez descoberto o budismo, o que ajudaria a explicar o que estes últimos veem
como a vertente «comer, rezar, amar» dos seus ensinamentos.
Mas os crentes modernos que rejeitam este tipo de devaneios também não precisam de ter medo dos esforços no sentido de conhecer
Jesus e a fé que ele pregou, por meio da compreensão do contexto histórico da sua educação e do seu crescimento. E isso começa pelo seu
mentor, João Batista.
«É frequente que nos livros sobre o Jesus histórico, São João Batista,
tal como nas histórias de milagres, receba uma referência superficial
e uma atenção muito breve», escreve o reverendo John P. Meier no
seu arrebatador estudo de vários volumes intitulado A Marginal Jew:
Rethinking the Historical Jesus («Um Judeu Marginal: Repensando o
Jesus Histórico»). «Mas uma das maiores certezas que temos acerca
de Jesus é que ele se submeteu voluntariamente ao batismo por João
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com o fim de obter o perdão pelos seus pecados, sem dúvida um acontecimento embaraçoso que cada evangelista tenta neutralizar à sua maneira», escreve o autor. Como Meier assinala, os primeiros seguidores
de Jesus pareciam desejar que ele não fosse «contextualizado» fora da
sua singularidade. Contudo, esta abordagem não é desejável, afirma
Meier, nem tão pouco possível, porque «não compreender o Batista
é não compreender Jesus».
Compreender João Batista começa pelos quatro Evangelhos canónicos do Novo Testamento. O facto de João aparecer em São Mateus, São
Marcos, São Lucas e São João é um registo coerente que sustenta as
afirmações de que ele foi uma figura histórica real. E que ele seja o alvo
da atenção pormenorizada de Josefo, o historiador judeu do século i,
como adiante veremos, faz da sua existência um facto indesmentível.
Meier usa vários critérios para determinar a fiabilidade histórica de
uma pessoa, de uma afirmação ou de um relato do Novo Testamento e o
principal é o «critério do testemunho múltiplo» — ou seja, se alguém
ou alguma coisa aparece em várias fontes históricas, é provavelmente
real, e João Batista preenche esse requisito.
No entanto, o Batista também corresponde ao «critério do embaraço» de Meier, que sustenta que se alguma coisa ou alguém, no Novo
Testamento, cria um embaraço ou uma dificuldade teológica que os seguidores de Jesus tenham de explicar, será provavelmente real, porque
não é algo que os primeiros cristãos pudessem ter inventado, antes pelo
contrário. Regressaremos a este critério do embaraço quando falarmos
de Maria Madalena (uma mulher como primeira testemunha da Ressurreição) e de Judas Iscariotes (o apóstolo que trai o omnisciente Jesus,
que o havia escolhido!).
João Batista enquadra-se neste critério por ter batizado Jesus, que,
obviamente, não teria necessidade de ser purificado de quaisquer pecados. Explicar este enigma teológico será o que em parte leva João a ser
apresentado de maneira diferente nas diversas fontes históricas.
A título de enquadramento, importa referir que três dos Evangelhos
(São Mateus, São Marcos e São Lucas) são tão semelhantes na forma
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e no conteúdo que são designados por «sinóticos», da palavra grega
que significa «olhar a partir do mesmo ponto de vista». Os estudiosos
acreditam que estes três Evangelhos foram os primeiros a ser escritos
algumas décadas depois da Crucificação, com base nos relatos orais que
circulavam desde o ministério público de Jesus, que teria começado por
volta do ano 30 d. C.
O Evangelho de São Marcos parece ser o mais antigo dos três, tendo sido composto entre 65 e 75 d. C. São Mateus e São Lucas ter-se-ão
baseado nessa narrativa. O quarto Evangelho, o de São João, foi escrito
posteriormente, talvez mesmo por volta de 100 d. C., e tem um estilo já
muito diferente. A tradição (que é contestada por muitos, senão mesmo pela maioria, dos eruditos) atribui este Evangelho ao apóstolo João,
o «discípulo amado», que, segundo a mesma tradição, também compôs
o Livro das Revelações quando já era um homem idoso e vivia exilado
na ilha de Patmos, na costa da atual Turquia.
O Evangelho de São Marcos, que é o primeiro, abre sem preâmbulo,
mergulhando diretamente na história de Jesus e começando com João
Batista a concretizar a profecia de Isaías do Antigo Testamento («uma
voz grita […] no deserto»), preparando o caminho do Senhor: «aplanai
na estepe uma estrada para o nosso Deus». E São Marcos prossegue:
João Batista apareceu no deserto, a pregar um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados. Saíam ao seu encontro
todos os da província da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém
e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.
João vestia-se de pelos de camelo e trazia uma correia de couro
à cintura; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre.
Todos os elementos fundamentais da história do Batista estão aqui:
a sua voz profética, o seu ministério do batismo, o apelo generalizado
que faz e o seu estilo de vida ascético. Mas antes que alguém pense que
João era muito importante, São Marcos regista de imediato o anúncio
feito pelo Batista: «Depois de mim vai chegar outro que é mais forte do
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que eu, diante do qual não sou digno de me inclinar para lhe desatar as
correias das sandálias. Eu batizei-vos em água, mas Ele há de batizar-vos no Espírito Santo.»
E, como se de uma deixa se tratasse, Jesus entra em cena para ser
batizado por João. São Marcos conta que, ao emergir das águas do rio
Jordão — e a cerimónia exigia uma imersão completa e não apenas uns
salpicos —, Jesus viu «serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre
Ele como uma pomba». E depois: «do Céu veio uma voz: “Tu és o meu
Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado”.» Não é claro se mais
alguém viu esse sinal ou ouviu a mesma voz.
Este momento, este batismo, lança claramente o ministério de Jesus. Tal como teria feito João, Jesus dirige-se diretamente para o deserto
para enfrentar as feras selvagens e as tentações de Satanás e, depois de
saber que João foi preso, inicia a sua atividade na região da Galileia, no
Norte da Judeia, onde fora criado.
A meio do Evangelho de São Marcos, Jesus regressa para completar
a história de João, voltando a contar as circunstâncias que rodearam a
prisão do Batista e a sua macabra morte: que João denunciara Herodes
por se casar com a mulher do próprio irmão e fora atirado para a prisão,
mas que Herodes receava matá-lo. A mulher de Herodes, Herodias,
queria-o morto, mas Herodes sabia que João era visto como «homem
justo e santo» e o próprio Herodes gostava de o ouvir pregar, apesar de
não ter bem a certeza de perceber o que ele dizia.
Chegou então o momento do famoso banquete em que a filha de
Herodes, identificada algures como Salomé, dançou para os convidados e,
em troca, teve direito à oferta da cabeça de João Batista numa bandeja,
que depois entregou à mãe. Herodes ficou «desolado» e esse pode ter sido o
motivo pelo qual autorizou os discípulos de João a recolherem o seu corpo
e a depositá-lo num túmulo, história que, em muitos aspetos, prefigura
a Paixão de Jesus. De facto, João era tão popular que, quando mais tarde
ouve falar de Jesus, Herodes pensa logo que João se erguera dos mortos.
O Evangelho de São Mateus é mais abrangente. Só retoma a narrativa de São Marcos relativamente a João depois de contar de novo a
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história da infância de Jesus. O Batista é nessa altura apresentado quase
da mesma maneira, só que São Mateus põe-no a criticar especificamente os fariseus e os saduceus, dois outros grupos judaicos que detinham
o poder em Jerusalém nessa altura e que eram o alvo do ressentimento
de muitos profetas. João Batista denuncia-os como «raça de víboras»,
preconizando que eles serão abatidos e atirados às chamas.
Quando o Batista prediz a chegada do Messias, que será Jesus, também invoca o «fogo inextinguível» que Jesus trará consigo para consumir os impenitentes. E quando Jesus aparece realmente no rio Jordão,
João reconhece-o como sendo o Único e reclama que deve ser Jesus
a batizá-lo e não o contrário. Mas Jesus diz que não: «Deixa por agora.
Convém que cumpramos assim toda a justiça.» É então que se faz o batismo, que a pomba desce do Céu e que a voz de Deus confirma Jesus
como seu Filho.
Esta cena é seguida, como em São Marcos, por Jesus a passar quarenta dias no deserto, com algumas observações a propósito das tentações e com Jesus a dar então início ao seu ministério de pregação
— arrependendo-se dos seus pecados, como fez João —, disseminando os seus ensinamentos mas dedicando-se também a fazer milagres.
Estes milagres são uma das diferenças fundamentais entre João e Jesus
e, aliás, mais à frente no mesmo texto, quando João, aprisionado, ouve
o que Jesus anda a fazer, envia dois dos seus seguidores para confirmarem que é ele o Messias: «És Tu aquele que há de vir ou devemos
esperar outro?»
Aparentemente, o Batista não terá visto a pomba nem ouvido a voz
de Deus no rio ou, então, ainda alimentava algumas dúvidas. Jesus dá
as suas instruções aos discípulos de João: «Ide contar a João o que vedes
e ouvis: os cegos veem e os coxos caminham, os leprosos ficam limpos e
os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos
pobres. E bem-aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de
escândalo.»
Jesus lança-se de seguida num elogio a João Batista que dirige à multidão: «Em verdade vos digo: entre os nascidos de mulher, não apareceu
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ninguém maior do que João Batista.» Também faz notar que «o mais
pequeno no Reino do Céu é maior do que ele», mas isto é um elogio
muito grande vindo do Filho de Deus.
A última referência ao Batista em São Mateus é um dos momentos
mais reveladores e comoventes de toda a história: depois de João ter
sido morto, os seus discípulos recuperam o corpo, enterram-no e vão
de imediato contar a Jesus. Ao receber a notícia, Jesus «retirou-se dali
sozinho num barco, para um lugar deserto», com aspeto desgostoso
e talvez a pensar seriamente no que poderia esperá-lo.
O Evangelho de São Lucas mergulha ainda mais no passado e nas
histórias de João e de Jesus, com o tipo de pormenores que os eruditos
encaram com dúvidas. Entre eles destaca-se a história, que só São Lucas
conta, do casal idoso e estéril, Isabel e o sacerdote Zacarias, que recebe
a visita de um anjo chamado Gabriel. O anjo anuncia que Isabel dará
a Zacarias um filho, de seu nome João, que será um profeta vidente
que fará com que muitas das pessoas de Israel se voltem de novo para
Deus. Isabel entra em reclusão, conta São Lucas, até que um dia, grávida de seis meses, é visitada por uma jovem chamada Maria — que até
poderia ser uma adolescente — que anuncia a Isabel que também ela
engravidou por milagre. A criança que está no ventre de Isabel dá de
imediato um salto, o que faz Isabel anunciar que é um sinal de que João
reconheceu Jesus como Filho de Deus.
São Lucas diz que as duas mulheres são parentes, fazendo crescer a
tradição de que a idosa Isabel e a jovem Maria eram primas, o que faria
com que também João Batista e Jesus fossem primos. O evangelista diz
que Maria ficou com Isabel durante três meses, o que teria correspondido
ao momento em que Isabel daria à luz, data tradicionalmente tida como
24 de junho, ou seja, seis meses exatos antes do nascimento de Jesus, que
é o primeiro Natal, relatado por São Lucas com esplêndidos pormenores.
São Lucas retoma mais tarde a história de João no deserto, «pregando um batismo de penitência para remissão dos pecados». João volta
a negar que é o Messias e aponta para Jesus, a quem batiza. De novo o
Espírito Santo «desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba»,
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Deus dá o seu acordo e Jesus inicia o seu ministério público depois de
ter de ficar quarenta dias no deserto enquanto Herodes prende João e
o manda decapitar.
O Evangelho de São João, o quarto Evangelho do Novo Testamento
e também o último a ser escrito, começa como o primeiro, o de São
Marcos, e logo com João como arauto do Verbo, Jesus Cristo: «Ele não
era a Luz, mas vinha para dar testemunho da Luz. O Verbo era a Luz
verdadeira que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina.» João reclama mais uma vez que não é ele o Messias, como alguns pensam, mas
em vez de descrever o seu batismo de Jesus no rio Jordão, diz aos que
o escutam que o Espírito Santo desceu sobre Jesus como uma pomba
e que Jesus era, na realidade, o Filho de Deus.
São João Evangelista dá maior ênfase, no Evangelho que lhe é atribuído, à divindade de Jesus, com tudo preparado para destacar Jesus
como Cristo, Messias e Filho de Deus — e é isso o que João Batista faz.
Quando o Batista vê Jesus encaminhar-se para ele, diz aos seus seguidores: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!» E os seus
discípulos abandonam-no para seguirem Jesus. No terceiro capítulo,
alguns dos discípulos que ainda se mantêm com João Batista fazem
notar que Jesus e os seus discípulos também estão a batizar pessoas
e questionam-no sobre o motivo que leva as pessoas a irem ver Jesus.
O Batista volta a exaltar Jesus por ser o escolhido e, numa frase famosa,
diz: «Ele é que deve crescer, e eu diminuir.»
João Batista sai de cena nessa altura e já nem é feita referência à sua
morte.
«DEUS FICOU EM FILA DE ESPERA»
Se os evangelistas tinham aqui a preocupação de mostrar que Jesus
era realmente maior do que o seu mentor, ultrapassando-o como figura
religiosa e como líder espiritual, os historiadores dessa era não revelam
essa deferência.
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O mais importante desses cronistas foi Flávio Josefo, um judeu nascido em 37 d. C., logo a seguir aos acontecimentos relatados pelos Evangelhos, e que lutou pelo povo judaico na revolta de 66–70 d. C. contra
os Romanos. Capturado pelas forças romanas e perante a ameaça de ser
executado, Josefo optou por se juntar ao campo imperial e romanizou-se, embora continuasse a considerar-se judeu.
Depois da derrota dos judeus rebeldes e da destruição do Tempo
em Jerusalém em 70 d. C. (um acontecimento apocalíptico que muitos
viram mais tarde como uma concretização dos lúgubres avisos feitos ao
povo de Israel por João Batista, por Jesus e por outros), Josefo retirou-se
para Roma e escreveu diversos relatos históricos dessa época, que são
extensos e memoráveis. Neles refere-se por duas vezes a Jesus: uma vez
apenas de passagem ao abordar a morte do irmão de Jesus, Tiago, e na
outra com maior pormenor ao descrever Jesus como «homem sábio» e
«autor de coisas maravilhosas», que foi crucificado por Pôncio Pilatos
e se ergueu do túmulo ao terceiro dia. Os estudiosos acreditam que algumas passagens da obra podem ter sido embelezadas por posteriores
tradutores cristãos, mas não há a menor dúvida relativa ao tratamento
dado por Josefo a João Batista, que aqui aparece como uma figura mais
bem-sucedida e mais influente do que Jesus.
Em todos os manuscritos que restam da história que escreveu,
Antiguidades Judaicas, Josefo escreve sobre a batalha travada por Herodes
contra um rival que derrotou o seu exército:
Alguns dos judeus pensaram que a destruição do exército de
Herodes teve origem em Deus e, muito justamente, como castigo por
aquilo que ele fez a João, dito o Batista: porque Herodes matou-o,
sendo ele um homem bom e tendo ordenado aos Judeus que praticassem a virtude, com justiça entre eles e com devoção relativamente
a Deus, e chegassem desse modo ao batismo […]
Josefo prossegue, explicando que o Batista atraía grandes multidões
e que Herodes receava que ele usasse a influência que detinha sobre
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o povo para lançar uma rebelião, «porque eles pareciam estar prontos
para fazerem qualquer coisa [que João Batista] recomendasse». E por isso
decidiu, numa ação preventiva, prender João na fortaleza de Macaerus,
situada na margem oposta do mar Morto, a leste de Jerusalém. Foi aí
que determinou a morte de João. Josefo não se refere à filha dançarina
de Herodes ou à cabeça na bandeja, mas dá-lhe nome: Salomé.
Todas estas informações ajudam a construir um retrato mais completo do que o que temos de muitas outras figuras centrais do Novo
Testamento, como Maria Madalena ou Judas Iscariotes. E o que é que
isso nos diz?
Em primeiro lugar, fica claro que Israel no século i era um barril de
pólvora com um pavio curto. Aliás, sempre foi, em grande medida. O povo
judaico era ferozmente independente e já tinha uma história longa e
orgulhosa como povo escolhido do Deus único e verdadeiro, identidade que se manifestava numa fusão da tradição religiosa com o fervor
nacionalista. Contudo, a província da Judeia também era relativamente pequena, situando-se na interseção da História em que os grandes
exércitos se enfrentavam e os impérios nasciam e morriam. Os Judeus
foram, com frequência, danos colaterais, mas conseguiram explorar todos os momentos de distração das superpotências do mundo antigo
para tentarem livrar-se do jugo dos opressores.
No segundo século antes do nascimento de Jesus, no ano 164 a. C., o
clã dos macabeus encabeçou um exército judaico rebelde que conseguiu
tornar-se independente do Império Selêucida, acontecimento que era
recordado todos os anos na cerimónia do Hanukkah, o Festival das Luzes,
que celebra a reconsagração do Templo de Jerusalém. A autonomia da
Judeia manteve-se até 63 a. C., quando o Império Romano em ascensão
conquistou a Judeia e aí colocou um soberano maleável, um rei-cliente, que
governava em nome de Roma. Este modelo nunca foi bem aceite pelos
Judeus e, periodicamente, erguia-se em armas um líder rebelde — como
Judas da Galileia fez no ano 6 d. C. — que acabava sempre derrotado.
Esta agitação constante entre a população mantinha os governantes da
Judeia num estado de paranoia perpétua. Um sinal do estado de espírito
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dos reis-clientes de Roma encontra-se no relato evangélico da ordem
dada por Herodes, o Grande, de mandar matar todos os recém-nascidos
do sexo masculino ao ter ouvido a profecia de que um bebé nascido
numa manjedoura se tornaria, em adulto, o Rei dos Judeus. Herodes
Antipas, filho e sucessor de Herodes, o Grande, tinha a mesma natureza ansiosa e não quis correr riscos, como também torna claro o relato
de Josefo.
«Quando há um líder popular que emerge num determinado contexto temporal é porque aconteceram coisas que tornaram as pessoas
desesperadas por um qualquer tipo de mudança», diz Joan Taylor, professora de Cristianismo Primitivo no King’s College de Londres. «E se
tomarmos Josefo […] e o que ele diz, havia uma tremenda agitação
social além do receio do controlo romano», acrescenta.
E seria João Batista realmente uma ameaça? Nada nas ações dele,
ou nas dos seus seguidores, parece fundamentar este ponto de vista.
«Como esclarece Josefo, se alguma ideia de revolta existia era na mente sempre desconfiada de Herodes e não na mensagem e nos atos de
João», diz Meier.
Mas as suspeitas de Herodes prevaleceram e João foi morto, desfecho que pressagiava o que aconteceria a Jesus, com a única diferença
de que Antipas respeitava obviamente João para o mandar decapitar,
castigo que por norma era reservado aos cidadãos romanos por ser tido
como mais rápido e clemente. Já Jesus de Nazaré foi crucificado por se
tratar de um castigo lento, cruel e humilhante aplicado aos criminosos
mais mesquinhos, como os que foram torturados até à morte nas suas
cruzes ao lado de Jesus.
Em segundo lugar, fica também claro que havia uma agitação religiosa na região equivalente ao tumulto político. O filme A Vida de
Brian, dos Monty Python (1979), que foi uma sátira muito controversa, mas comercialmente muito bem-sucedida, aos Evangelhos — e, de
certa forma, à moda crescente do estudo científico dos Evangelhos —,
embrulhou as suas blasfémias em fragmentos de verdade. Um desses
pormenores é visível numa cena em que Brian, erradamente tomado
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pelo Messias, passa por uma série de profetas e de sábios de rua que
invocam o fogo do Inferno ou contam parábolas incompreensíveis.
E sentimos que a Judeia da época de João Batista não era muito diferente, com a mão pesada de Roma a dar azo não apenas a conspirações
políticas e militares, mas também aos sonhos fervorosos de intervenção divina.
«É importante perceber que nem todos os judeus esperavam a chegada de um Messias, mas alguns tinham essa esperança», diz o rabi
Joshua Garroway, professor associado de História do Cristianismo
Primitivo no Hebrew Union College, de Israel, acrescentando: «O tipo
de Messias que esses judeus esperavam é de um espetro muito amplo.
Alguns aguardavam apenas um líder humano que reunisse todos os
Judeus do mundo ou […] simplesmente desafiasse a hegemonia de
Roma na terra de Israel, restabelecendo um reino davídico com Jerusalém por capital. Outros esperavam um Messias que fosse um grande
profeta ou um grande professor ou que fizesse milagres. Talvez mesmo
que provocasse o fim do mundo tal como o conhecemos, por meio de
um qualquer tipo de julgamento.»
Havia seguramente mais alguns candidatos entre os quais se podia
escolher. Josefo, a nossa mais fiável fonte sobre o judaísmo do século i,
refere-se a uma série de profetas e de pseudo-messias. Um deles, chamado Teudas, chamou centenas de seguidores ao rio Jordão com promessas de milagres e depois enviou-os contra um esquadrão de cavalaria
que, naturalmente, deu cabo deles. Teudas também foi decapitado —
como uma sombra do fatal destino de João — e o seu cadáver exibido
num desfile em Jerusalém. Teudas e o seu destino são também citados
nos Atos dos Apóstolos, do Novo Testamento. (Este livro, que os historiadores veem, em geral, como uma extensão do Evangelho de São
Lucas e como obra do mesmo autor, relata a fundação da Igreja primitiva e o seu crescimento em todo o Império Romano.)
O livro dos Atos também põe o tribuno que prende o apóstolo Paulo
em Jerusalém a perguntar-lhe se ele é «o egípcio que, há tempos, provocou uma rebelião e arrastou para o deserto os quatro mil sicários».
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É uma referência à figura messiânica proveniente do Egito a quem
Josefo chama «falso profeta» e que reuniu milhares (ou centenas, mais
provavelmente) de seguidores nas proximidades de Jerusalém, prometendo derrubar as muralhas da cidade com uma ordem sua. Não aconteceu, mas as forças romanas mataram e capturaram a maioria dos que
aí se encontravam reunidos, tendo o profeta anónimo do Egito fugido
para o deserto sem que nunca mais se ouvisse falar dele.
Quando se trata da diversidade religiosa do judaísmo nessa época,
Josefo sabe bem do que fala. Durante os seus anos de exploração juvenil
associou-se, alternadamente, aos saduceus e aos fariseus e também aos
essénios, uma comunidade quase monástica composta na sua maioria
por homens celibatários que viviam no deserto, talvez no povoado de
Qumran, em cujas proximidades foram descobertos os Manuscritos do
Mar Morto nos anos 1940 e 1950.
Debate-se muito se os essénios terão sido os autores dos pergaminhos e se terão realmente vivido em Qumran, mas a sua existência
e a sua influência não levantam dúvidas. Formavam uma comunidade
ascética voltada para uma vida simples marcada pela castidade, pela
pobreza e pelo estudo da religião. «Cultivam a seriedade», escreve
Josefo com uma evidente admiração, «rejeitam os prazeres do vício»
e «consideram o autocontrolo e a capacidade de não sucumbir às paixões como virtudes».
Aos 16 anos, conta Josefo, ele próprio se foi juntar aos essénios com
quem viveu durante três anos: «Entreguei-me ao sofrimento, passei por
grandes dificuldades e ultrapassei-as a todas. Nem me contentei apenas
com a experiência destes três anos porque, quando fui informado de
que havia um essénio cujo nome era Banus que vivia no deserto e que
não usava nada para se cobrir senão o que crescia nas árvores e que não
comia outra comida senão a que queria ser comida, banhando-se com
frequência em água fria, tanto de dia como de noite, para se purificar,
imitei-o nessas coisas e estive com ele durante três anos.»
Não admira por isso que Josefo escreva sobre João Batista com simpatia ou que muitos tenham defendido que João, que parece ser tão
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semelhante a Banus, devia ser um essénio. Mas Meier argumenta que
«a ligação de Qumran, em especial na imagem romântica de João a ser
educado numa escola preparatória no deserto da Judeia, pode ser exagerada». E Ben Witherington, um erudito do Novo Testamento no Seminário
Teológico de Asbury, observa que «o que há de diferente a respeito de
[João] é o facto de ele ser proveniente dessa comunidade e se tornar
uma figura espiritual solitária, chamando outras pessoas, normais, a
arrependerem-se».
De facto, há diversos traços que distinguem João dos essénios e de
outras variantes judaicas do seu tempo. E eles incluem a importância
de um ato de batismo único, a sua tentativa de chegar a todo o judaísmo
e o seu relativo desinteresse pelas subtilezas das leis e dos costumes dos
Judeus.
Mas é verdade que a prática do batismo não era completamente
estranha. «Na realidade, a imersão na água era uma das primeiras formas pelas quais os Judeus se podiam limpar para obterem uma pureza
ritual que os habilitaria a participarem no Templo», diz Garroway, acrescentando: «Nos círculos judaicos, no entanto, também havia a noção
de que algum tipo de lavagem com água podia ajudar a limpar a nódoa do
pecado moral. Esta crença mergulha as suas raízes nos profetas Isaías,
Jeremias e Ezequiel, que usam a imersão na água como metáfora para
a transformação moral da pessoa e para o seu regresso a Deus. Suspeito,
por isso, que João via o seu batismo de acordo com algum tipo de transformação moral, que prepararia os Judeus para o julgamento do fim
dos tempos que ele considerava estar iminente.»
Mas o estilo de batismo de João pode ser mais bem descrito de
uma forma mais ativa: um «afundanço», mais do que a autoimersão
convencional num lago, como sublinha Liz Carmichael, do St. John’s
College de Oxford, numa conferência sobre o Batista realizada em 2011.
«Ao empurrar as pessoas para debaixo de água, imergindo-as nas águas
do Jordão ou de uma nascente, João parece ter introduzido um elemento
novo», afirma. Além disso não havia mais ninguém que nessa época
fosse conhecido pelo nome «Batista», como era o caso de João.
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Em terceiro lugar, tornou-se óbvio que João era mais importante do
que Jesus, pelo menos de início. «Penso que é muito claro que, durante
a sua vida, João Batista foi muito mais bem-sucedido do que Jesus», defende Candida Moss, professora de Cristianismo Primitivo e de Judaísmo Antigo na Universidade de Notre Dame. «Parece-nos hoje óbvio
que Jesus é mais importante mas, à época, se vivêssemos na Palestina
do século i, conheceríamos o nome de João Batista, mas poderíamos
não conhecer o nome de Jesus», afirma.
Jesus, de acordo com o costume da época, terá procurado uma comunidade religiosa — talvez os essénios, como faria Josefo mais tarde —
e um mentor na pessoa de João. Mas esse contexto revelar-se-ia depois
embaraçoso quando os seguidores de Jesus tentaram explicar o seu caráter único. É por isso que as passagens evangélicas sobre o Batista parecem indicar uma progressão clara. Em São Marcos, como nota Joan
Taylor, «Jesus é mais ou menos arrastado por esta grande avalanche de
pessoas que vão para o rio Jordão e é por essa razão que ele lá se encontra. Mas depois, em São Mateus, João Batista exclama que não quer fazê-lo e que devia ser Jesus a batizá-lo a ele. E São Lucas associa o Batista
a Jesus pelo sangue, relatando a história dos primos que se conhecem
ainda no ventre materno, digamos assim, introduzindo desse modo
o Batista na história de Jesus.
O Evangelho de São João, mais do que os de São Mateus, São Lucas
ou São Marcos, eleva finalmente Jesus à qualidade de Cristo e mostra
João Batista a salientar mais uma vez, para o caso de restar alguma
dúvida, que ele não é o Messias e que o Messias é Jesus. No Evangelho
de São João, diz Mark Goodacre, professor do Novo Testamento e das
Origens do Cristianismo na Universidade de Duke, o Batista «não
é o profeta, não é Elias. É apenas alguém que prepara o caminho para
Jesus».
«Os Evangelhos tentam de várias formas diminuir o papel de João»,
considera Goodacre, afirmando: «Sabemos que João era enormemente
popular. Sabemos que muitas pessoas deviam vê-lo como um profeta.
E uma das coisas que os autores dos Evangelhos estão a tentar fazer é,
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na realidade, uma espécie de exercício de controlo de danos para fazerem dele apenas um precursor de Jesus, sem lhe darem qualquer identidade independente que seja só sua.» Paulo também teve de fazer isso,
como o registam os Atos, quando foi para Éfeso e descobriu discípulos
que não haviam sido batizados em nome de Jesus, mas apenas «no
batismo de João». Paulo corrige de imediato a situação, informando-os
de que João era apenas um arauto do Filho de Deus e garantindo um
batismo de arrependimento, pelo Espírito Santo, segundo Jesus… que
é Paulo quem ministra.
Por muito que os autores dos Evangelhos, ou outros, tentem diminuir o papel de João ou contextualizá-lo na história mais abrangente
de Jesus, resta ainda uma questão central: por que motivo é que Jesus
precisava de ser batizado? «Quanto mais não fosse, não deveria ser o
Filho de Deus a fazer o batismo?», pergunta frei James Martin, sacerdote jesuíta e autor de Jesus — Um Encontro Passo a Passo.
No Evangelho de São Mateus, João faz a Jesus a mesma pergunta e
Jesus responde-lhe: «Deixa por agora. Convém que cumpramos assim
toda a justiça.» E então João concorda em batizá-lo.
E qual é o significado da resposta de Jesus? Como afirma Martin, «é
uma resposta obscura que pode ter confundido tanto João Batista como
os primeiros leitores de São Mateus».
O grande teólogo protestante Karl Barth postulou que, por Jesus ter
vindo assumir os pecados do mundo, não havia ninguém que precisasse mais de ser batizado. Martin especula que Jesus sentiu que era importante passar pelo que os outros haviam passado e identificar-se com
os «bons frutos» dos ensinamentos de João. Talvez Jesus soubesse que
lhe era necessário dar algum passo ritual e público antes de se lançar
no seu ministério, que foi o que aconteceu a seguir.
Martin também aponta para um motivo mais convincente: «Jesus
decidiu entrar de forma ainda mais profunda na condição humana.»
Não é que o Jesus isento de pecado precisasse de ser batizado, mas era
um «ato de solidariedade, um ato humano do Filho de Deus, que tenta
a sua sorte com o povo do seu tempo». No seu batismo no rio Jordão,
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Jesus, simbólica e fisicamente, espera pela sua vez na companhia do
seu povo.
Como diz Martin: «Deus ficou em fila de espera.»
O dogma central do cristianismo é a Encarnação, a crença de que
Deus se tornou homem e sofreu e morreu com, e por, toda a gente,
todas as pessoas boas, más ou indiferentes. Será talvez a afirmação mais
comovente que o cristianismo faz, mas gerou também grande consternação e grande oposição. Alguns veriam a posição de João Batista
como a de um irmão mais velho e mentor de Jesus, capaz de minar a
fé naquilo que os seguidores de Jesus acreditavam a seu respeito. Mas
talvez a submissão de Jesus e a sua imersão na comunidade, e no rio
Jordão, sejam mais uma prova da sua identificação com a humanidade.
PORQUE É QUE O MOVIMENTO DE JESUS TRIUNFOU E O DE JOÃO NÃO
Todavia, como João Batista profetizara, ele diminuiria enquanto Jesus aumentaria. Essa profecia tornou-se realidade. Mesmo assim, porque é que o movimento lançado por Jesus triunfou — independentemente do seu papel divino — enquanto o de João esmoreceu? Houve
quatro motivos fundamentais para isso ter acontecido.
O primeiro foi o facto de Jesus ter ressuscitado e João não.
«É a Ressurreição que na realidade coloca Jesus em destaque, como
algo que é completamente diferente», diz Taylor. João «quis ser sempre
um reformador dentro do judaísmo e levar os Judeus para um caminho
justo que anteciparia a transformação», acrescenta. E não fez afirmações a respeito de si próprio a não ser para se apresentar como profeta.
«Depois da morte de João, muitos dos seus seguidores podem ter-se
transferido para o movimento de Jesus porque, ao contrário de Jesus,
João continuou morto depois de ter morrido», diz Geoffrey Smith, professor de Cristianismo Primitivo na Universidade do Texas, em Austin,
observando que «também se podem ter apercebido da ligação que existiria entre os dois movimentos».
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Em segundo lugar, nas palavras de Ben Witherington, «Jesus faz
milagres e João faz batismos. São dois tipos diferentes de ministério».
Ambos eram importantes. Os Evangelhos admitem que Judas poderia
encontrar-se entre os discípulos que Jesus destacou com a missão de
curar os doentes e expulsar os demónios. Os primeiros Pais da Igreja
também fizeram notar, como Santo Agostinho, que «mesmo os pecadores conseguem fazer alguns milagres que os santos não conseguem»
e esse é o elemento fundamental no que se refere à vida de alguém.
Em terceiro lugar, os milagres ajudaram seguramente a transmitir
a mensagem de Jesus, e ele usou-os para conseguir alcançar outro objetivo que o diferenciou do Batista: criou uma comunidade à sua volta, na
qual as outras pessoas podiam participar. Aliás, quando Jesus recebeu
a notícia de que João fora morto, ficou claramente perturbado — pelo
desgosto ou por recear ser esse o seu destino, ou pelos dois motivos — e
procurou retirar-se «dali sozinho num barco, para um lugar deserto»,
segundo o registo do Evangelho de Mateus. Mas a multidão que o rodeava insistiu em segui-lo e, «cheio de misericórdia para com ela, [ele]
curou os seus enfermos». Mais tarde nesse dia, vendo as pessoas cheias
de fome e sem comida, fez o milagre de dar de comer aos seus cinco
mil seguidores, multiplicando alguns pães e peixes para poder alimentar a multidão.
João Batista era, por outro lado, um homem mais solitário que não
parecia ter interesse em encontrar quem o seguisse. «Pelo contrário»,
afirma Meier, «a principal preocupação do Batista era dirigir um apelo
a todos os israelitas para que se arrependessem e aceitassem o seu batismo. A grande maioria dos que foram batizados parece ter voltado para
casa.» Alguns permaneceram com o Batista, esclarece Meier, mas pareciam ir e vir à sua vontade, e os seus maiores devotos transferiram-se
para o movimento de Jesus depois da morte de João. O Batista era sobretudo um profeta clássico que defendia a conversão em primeiro lugar e só
depois a comunidade, como uma vez afirmou Ben Meyer, um dos estudiosos da Bíblia. «A ousadia da iniciativa de Jesus reside na inversão desta
estrutura: primeiro, a comunidade; depois, a conversão», escreve Meyer.
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Uma das pessoas que responderam ao apelo do campo de Jesus
parece ter sido uma recruta chamada Joana, que foi mais tarde apresentada por São Lucas como tendo sido uma das mulheres que Jesus curou
e que, com Maria Madalena, foi uma das várias mulheres que apoiaram
no início o movimento de Jesus «com os seus próprios meios». Joana
é também citada como mulher de Cuza, que era administrador da casa
real de Herodes. Pela sua posição, Joana teria um conhecimento bem
direto do estilo de vida de Herodes e dos acontecimentos que rodearam
a execução do Batista. E isto pode explicar por que motivo é que os relatos evangélicos contêm maior número de pormenores sobre a morte
de João do que o de Josefo.
O quarto e último motivo que esteve na origem do êxito do movimento a que Jesus deu origem, ao contrário do de João, foi o facto de
Jesus — ou os seus seguidores, pelo menos — se ter lançado à evangelização de todo o mundo. Quer tenha sido o resultado de uma ordem
divina ou uma sábia estratégia de marketing, ou as duas coisas, o certo
é que deu resultado.
O que se deve concluir é que o movimento de João foi diferente dos
outros movimentos do judaísmo de então e que o de Jesus foi diferente
do de João. Se o movimento de Jesus teve maior êxito em termos de
crescimento, João beneficiou de uma espécie de vida depois da morte
com que Jesus não podia competir. As suas relíquias e as partes do seu
corpo que os crentes adoravam dispersaram-se por toda a Cristandade
à medida que a veneração pelos mártires se foi transformando no culto
dos santos.
«MORTOS MUITO ESPECIAIS»
«De todas as religiões, o cristianismo foi a que mais se preocupou
com os corpos dos mortos», escreve Robert Bartlett no início do seu
cativante estudo da santidade, Why Can the Dead Do Such Great Things?
(«Porque é que os Mortos Podem Fazer Coisas tão Grandiosas?»). O título
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é uma citação de Santo Agostinho, ou Agostinho de Hipona, um bispo
do século iv d. C., do norte de África, e um dos autores e pensadores
fundamentais da Igreja. Foi Agostinho que resumiu as perspetivas divergentes dos «mortos muito especiais», como o autor Peter Brown
chamou aos santos. «Rezamos pelos nossos mortos mas rezamos aos
mártires», escreveu Santo Agostinho.
Nos dois casos, a atitude de veneração sagrada por santos e mártires teve correspondência num tratamento decididamente diferente dos
seus corpos, tratamento esse que, por volta do ano 200 d. C., afastou os
cristãos dos Judeus, dos pagãos Gregos e Romanos e, mais tarde, dos
muçulmanos. Tal como os seus antepassados judaicos, os cristãos primitivos acreditavam que os cadáveres deviam ser tratados com o máximo de respeito. Isto torna-se evidente nos próprios Evangelhos, quando
os seguidores de João Batista tiveram o cuidado de recuperar e de enterrar o seu corpo, como depois fariam os discípulos de Jesus com o seu
próprio corpo. De acordo com os costumes da tradição abraâmica, era
preferível o enterro imediato, os cemitérios eram vistos como terreno
sagrado e os túmulos dos santos eram tratados como locais de peregrinação. Só que os cristãos alteraram esta fórmula quando integraram os
mortos, e partes dos seus corpos, nas suas vidas diárias e nos espaços
onde viviam, construindo igrejas sobre túmulos ou decretando que o
corpo de um santo ou uma qualquer relíquia física fossem integrados
num altar.
«A transferência de restos mortais para as igrejas das cidades quebrou o último tabu que demarcava os espaços dos vivos e dos mortos e ignorou as proibições legais e morais muito enraizadas, relativas
tanto à perturbação dos restos humanos como à presença dos mortos
nas cidades», escreve Bartlett. «Foi um desenvolvimento que separou
abruptamente o cristianismo das religiões pagãs e judaica, que sabiam
distinguir o local de culto do cemitério e que consideravam ser macabra
a adoração das relíquias corporais», acrescenta.
Um dos primeiros exemplos da devoção cristã pelo corpo de
um santo encontra-se no relato do martírio de Policarpo, o idoso
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bispo de Esmirna, na Turquia de hoje, que ocorreu por volta do ano
150 d. C. Policarpo foi queimado na fogueira numa arena romana por
se recusar a acender incenso em honra do imperador. Depois disso,
os cristãos que faziam parte da sua congregação tiveram o cuidado de
recolher as cinzas e os seus restos «para terem um pedaço da sua carne
santificada».
O que na realidade distinguiu os cristãos dos judeus e dos muçulmanos foi o modo como os cristãos desfaziam os cadáveres ao acaso
e transportavam os fragmentos para todos os lados, chegando a lutar entre si para saber quem teria o direito à relíquia. O registo mais
antigo desta devoção data do ano 300 d. C. e encontra-se no relato
de uma mulher abastada de Cartago que costumava beijar o osso de
um mártir antes de receber a Eucaristia. Esta mulher, Lucila, chegou
a ser repreendida pelo diácono local. As autoridades romanas também não gostavam desta prática com tendência a alastrar. Uma lei
imperial de 386 d. C. estabelecia que «ninguém deve dividir ou comerciar um mártir».
Contudo, não havia maneira de travar a devoção. Há relatos do início da Idade Média cheios de histórias de roubos de partes do corpo e
dos ossos dos santos. São Nicolau de Bari, que seria mais tarde venerado de forma mais laica como São Claus (o Santa Claus que deu origem
ao Pai Natal latino), ficou sem costelas, sem braços e sem dentes, que
lhe foram surripiados por monges cheios de zelo. O bispo Hugo de
Lincoln, mais tarde São Hugo de Lincoln, a quem foi oferecida a hipótese de venerar o braço de Maria Madalena num mosteiro francês, cortou
a mortalha de seda que envolvia a preciosa relíquia e, para horror dos
monges que assistiam ao ato, tentou cortar um pedaço do braço para si
próprio. E depois atirou-se ao dedo indicador de Maria Madalena com
os dentes, «primeiro com os incisivos e finalmente com os molares»,
roendo a mão até conseguir partir o dedo em duas partes.
Aliás, como escreveu o eminente especialista em História da Igreja
da Universidade de Cambridge, Eamon Duffy, no início da Idade Média,
«as relíquias e os fragmentos de relíquias foram distribuídos por
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mosteiros, bispos e papas como sinais de favor ou de apreço, os missionários levavam-nos para os territórios pagãos para os protegerem
e inspirar temor, e os soldados usavam-nos em combate como se fossem um exército de auxiliares divinos. As igrejas, os mosteiros e as cidades ganharam poder, riqueza e prestígio graças à posse das relíquias
mais notáveis, e as feiras e os mercados destinados a assinalar os dias
decelebração dos santos tornaram-se cruciais para a prosperidade de
regiões inteiras».
As relíquias foram crescentemente associadas aos milagres e,
mesmo que os santos e as santas não tivessem feito milagres durante
as suas vidas terrenas — como terá sido o caso de João Batista —, isso
não impediu as pessoas de acreditarem que os seus restos mortais
davam origem a curas milagrosas, visões e outros episódios semelhantes.
O certo é que os primeiros séculos do cristianismo nos deram, seguramente, um bom número de mártires com as suas respetivas relíquias, atendendo às perseguições imperiais que se mantiveram até o
imperador Constantino ter legalizado a fé cristã em 313 d. C. pelo Édito
de Milão. (Mas foi só em 380 d. C. que os sucessores de Constantino
fizeram do cristianismo a religião oficial do Estado, o que constituiu
uma vitória estonteante, para o que chegara a ser considerado uma seita sem importância, além de uma aliança, na prática, entre o trono e o
altar que, no entanto, também viria a ser um problema para a fé cristã
alguns séculos mais tarde.)
Mesmo assim, não havia mortos especiais que chegassem para as
igrejas existentes, cujo número aumentava rapidamente, e isso fez com
que o comércio das partes de corpos sagrados (ou das suas réplicas) começasse bastante cedo. Por volta de 401 d. C., Santo Agostinho criticou
os monges que «têm pedaços dos mártires para venda», mas o mercado negro também se ia expandindo graças à veneração dos santos
e das suas relíquias. Chegaram a erguer-se vozes ocasionais de protesto, como a do corajoso monge francês Guibert de Nogent, que, no
século xii, escreveu um tratado sobre as relíquias em que dava exemplos
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de ossos e de corpos apresentados como relíquias de santos… a bom
preço, claro.
«Recordo-me de tantos negócios do género em toda a parte que até
me faltam o tempo e a força para aqui os relatar», escreveu Guibert,
acrescentado: «Porque se fazem muitos negócios fraudulentos, não
tanto em torno dos corpos completos, mas mais em torno de membros
do corpo ou porções deles, chegando a ser vendidos ossos vulgares como
relíquias dos santos. Os homens que fazem isto são claramente aqueles de quem fala São Paulo, que supõem que o ganho é um sinal de
santidade e que transformam em meros excrementos dos seus alforges
de dinheiro as coisas que (se ao menos o soubessem) poderiam ajudar
à salvação das suas almas.»
Nos Contos de Cantuária, a paródia escrita por Geoffrey Chaucer
à sociedade inglesa e à Igreja da época, os peregrinos que vão em jornada a caminho de Cantuária encontram o Perdoador, um vendedor sem
escrúpulos de perdões eclesiásticos que também diz ter uma coleção
de relíquias sagradas (algumas das quais são ossos de porco) que tenta
impingir aos peregrinos. Estas histórias não andarão muito longe da
verdade e ajudaram a estimular o zelo dos reformadores protestantes,
que iriam tentar pôr fim a grande parte do culto das relíquias durante
os séculos que se seguiram, não sendo, no entanto, inteiramente bem-sucedidos. Na sua obra de 1869, A Viagem dos Inocentes, em que relata
uma viagem pela Europa e pela Terra Santa, o humorista americano
Mark Twain encontrou nas mais variadas relíquias pretexto suficiente para as cáusticas observações que o caraterizavam. Numa capela de
Génova, ao dar com outro conjunto de relíquias do Batista (as suas
cinzas e as correntes que o teriam mantido agrilhoado na prisão de
Herodes), Twain finge-se confundido: «Nós não desejávamos descrer
destas afirmações, mas não conseguíamos ter a certeza de que elas
pudessem estar certas, em parte porque podíamos partir a corrente, o
que São João também poderia ter feito, e em parte por já antes termos
vistos as cinzas de São João noutra igreja. Não conseguíamos pensar
que São João pudesse ter tido dois conjuntos de cinzas.»
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UM SANTO PARA OS NOSSOS DIAS?
Na realidade, João Batista revelou-se bastante fértil em matéria de
relíquias e foi alvo de uma devoção duradoura, o que se deverá, pelo
menos em parte, ao facto de ter sido decapitado. «De todas as partes
do corpo, a cabeça humana tem o significado mais complexo», escreve
Bartlett, «como sede de todos os cinco sentidos e por ser o elemento
mais facilmente identificável da identidade pessoal.» Não foi por isso
surpreendente que as relíquias oriundas da cabeça pudessem ser altamente valorizadas e, ao mesmo tempo, fonte de tamanho escândalo.
A mais antiga referência à cabeça de João Batista aparece sob a forma escrita em finais do século iv, quando os cristãos acreditaram ter
localizado o seu túmulo em Sebaste, perto da Nablus dos nossos dias, na
Cisjordânia. Os autores antigos dizem que o mosteiro onde se encontravam os restos mortais do santo foi atacado por pagãos em 261 d. C.,
durante um assomo de renascimento da antiga religião — convém
recordar que o cristianismo ainda reinava há pouco tempo — e
que as relíquias do Batista haviam ficado danificadas pelas chamas.
O que restava, e que parecia incluir a cabeça, foi reunido pelos monges
e enviado para o Egito e para outros locais, por razões de segurança.
No ano de 391, como escreveu Georges Kazan num estudo de 2011 sobre o Batista, o imperador Teodósio mandou levar a relíquia da cabeça
para Constantinopla, onde foi guardada num pequeno cofre ou urna,
embrulhada num manto com a cor roxa imperial e transportada para
Hebdomon, nos arredores de Constantinopla, para a grandiosa igreja aí
mandada construir por Teodósio para a acolher. Curiosamente, a descrição do pequeno cofre aproxima-se muito da do relicário desenterrado
na ilha do Mar Negro de Sveti Ivan mais de 1600 anos depois.
Por outro lado, em 453 deu-se o que foi classificado como «Segunda
Descoberta da Cabeça do Batista». Terá sido o próprio Batista a revelar a localização da relíquia num sonho em que apareceu aos monges
durante a sua visita a Jerusalém. «Descobriram a cabeça, ainda embrulhada num saco de pano, no interior do que é descrito como o local do
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anterior palácio do rei Herodes, o Grande», escreveu Kazan. Foi o começo
de uma história picaresca: «Quando iam em viagem para a Síria, de
regresso a casa, um oleiro que viajava com eles fugiu com a cabeça para
a sua cidade-natal de Emesa [hoje Homs, na Síria], dizendo estar também a obedecer às instruções do Batista, que lhe apareceu num sonho.
A relíquia ia ainda escondida dentro do saco e diz-se que o oleiro não
sabia o que continha. Finalmente, antes de morrer, pôs a cabeça dentro
de uma urna selada e deixou-a à irmã, que não sabia o que era.»
Um sacerdote acabou por adquiri-la e, ao ser expulso da cidade por
heresia, deixou-a enterrada numa caverna que mais tarde veio a ser utilizada por outros monges que, graças ainda a outra visão, a descobriram
em 453. Durante as invasões árabes que se seguiram, a cabeça foi também levada para Constantinopla, onde, no coração dos fiéis, substituiu
a cabeça recuperada por Teodósio. Os cruzados ocidentais que saquearam a cidade em 1204 ainda descobriram a cabeça no seu lugar.
Para não ficar para trás, apareceu no século x um impostor francês
a afirmar que a cabeça do Batista se encontrava, de facto, num mosteiro em Saint-Jean-d’Angély, nos arredores de Bordéus. Esta declaração
levou de imediato o monge Guibert a protestar: «Não havia dois João
Batista nem um com duas cabeças!» Mas isso não impediu os Franceses
de prezarem a sua própria cabeça do Batista nem impediu a cabeça do
Batista e outros restos mortais seus de se multiplicarem ao longo dos
séculos.
Numerosas igrejas, santuários e mesquitas garantem ter vários braços na sua posse — partes do corpo igualmente importantes por terem
sido usadas para o batismo de Jesus — e há vários locais onde se encontram diversos dedos, como o Museu de Arte de Nelson-Atkins, em
Kansas City, no Missuri.
Uma igreja de Roma garante possuir a cabeça do Batista, mas a tradição islâmica mantém que a cabeça de João se encontra na Mesquita
Omíada de Damasco, local de uma antiga igreja. Por volta de 1200 foi
construída em Amiens, no norte de França, uma catedral destinada
a acolher a cabeça do Batista que teria sido trazida por um cruzado
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regressado do saque de Constantinopla. E também há igrejas em
Munique, na Alemanha, e no Monte Atos, na Grécia, que afirmam
ter partes do crânio do Batista, encontrando-se ainda outro fragmento
da cabeça em Istambul e ainda outro numa igreja do Egito.
A cidade de Halifax, em West Yorkshire, no Reino Unido, até tem
a cabeça do Batista no seu brasão oficial graças a uma lenda do século
xvi segundo a qual os primeiros colonos religiosos da zona terão trazido
com eles o «rosto sagrado» (holy face) de João Batista. Em inglês antigo,
«sagrado» era «halig» e «rosto» era «fax», daí o nome Halifax.
O único local que parece estranhamente desprovido de uma relíquia do Batista é Florença, onde João é venerado como santo patrono
da cidade. Diz-se que em 1411 o Papa João XXIII — que seria deposto
e denunciado como pretendente falso ao Trono de São Pedro durante
o Grande Cisma do Ocidente — possuía um crânio do Batista que tinha
à venda pela impressionante soma de 50 mil florins. As negociações que
então decorreram não conseguiram baixar o preço e o comprador teve de
se contentar só com um dedo. Também fracassou uma conspiração destinada a roubar a relíquia e os florentinos ficaram especialmente perturbados quando o Papa Pio II doou um braço inteiro do Batista a Siena,
a sua cidade-natal e a mais odiada das rivais de Florença na Toscânia.
Não admira assim que um artigo do New York Times de 1881, que
menosprezava o «culto tonto das relíquias», contasse a história de dois
mosteiros franceses rivais em que cada um reclamava a posse de uma
cabeça do Batista, justificando-se ambos com a afirmação de que o primeiro crânio era de João em adulto e o mais pequeno era também dele…
mas «em rapaz». Kazan, infelizmente, disse que a história é apócrifa e
que tem origem numa nota de rodapé de uma tradução do Tratado sobre
as Relíquias, de João Calvino (que não era a favor das relíquias). Isto
mostra a facilidade com que podiam proliferar as afirmações de posse
dos vários fragmentos dos restos mortais do Batista, mesmo entre os
céticos.
O problema desta história tão colorida é o facto de, por muito que nos
divirta, poder facilmente gerar uma atitude de troça sobre a importância
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(e o poder) das relíquias por parte de crentes e de não crentes. Os ossos
de João Batista abrem-nos uma janela para um capítulo fundamental
da História e para um legado partilhado por judeus, cristãos e muçulmanos.
E, na realidade, o que fica sempre obscurecido pelo nosso fascínio
pelas relíquias do Batista, ou pela sua relação com Jesus, é o seu papel
único: João é um santo cristão, mas é também pré-cristão. Ele morreu antes de Jesus se sacrificar na cruz e depois disso houve teólogos
que argumentaram que, por causa dessa diferença temporal, João foi
parar ao Inferno e não foi diretamente para o Céu, como se pensaria.
Orígenes, o Pai da Igreja do século iii, foi um dos que tentou mitigar
o destino de João, ao estabelecer que o papel do Batista no mundo
infernal foi o mesmo que teve no mundo terreno: ser arauto da chegada
de Jesus. Por isso, quando Jesus desceu ao Inferno, como o afirmam os
Evangelhos, entre a Crucificação na Sexta-Feira Santa e a Ressurreição
no Domingo de Páscoa, resgatou para a eternidade todos os justos que
haviam morrido desde o início do mundo, incluindo João Batista.
Este papel abrangente faz de João Batista uma espécie de ponte
entre tradições e épocas. Para os cristãos ortodoxos do Oriente, João
foi o último dos profetas do Antigo Testamento além de ser um santo cristão, pertencendo tanto ao mundo judaico como à igreja cristã.
Os muçulmanos, como vimos, veneram João Batista como profeta e o
mesmo fazem os seguidores da fé Bahá’í. Para a pequena comunidade
dos mandeístas, formada no século i d. C. na região que é hoje o Iraque,
João Batista é que é o verdadeiro Messias e não Jesus. A imagem de
João como profeta é tão antiga como ele próprio e ainda se mantém nos
nossos dias.
João Batista foi conhecido como João, o Precursor, ou João, o Imersor.
Mas, tão importante como isso, foi o facto de ele ser João, o Que Dizia
a Verdade. Na Inglaterra do século xi, dois eclesiásticos discutiram se
os cristãos venerados como santos deviam ser considerados mártires
se tivessem sido mortos defendendo o seu povo durante uma invasão.
Na tradição cristã, o mártir é aquele que é morto por defender a fé e por
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J oã o B at i s ta : O M es s i as R i va l
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O ss os
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P ol é mi ca
se recusar a negar Cristo. Um destes eclesiásticos, Anselmo, futuro arcebispo de Cantuária, replicou ao seu opositor que sim, que esses santos
eram mártires porque, se estavam dispostos a morrer em vez de fracassarem na defesa do seu povo, decerto que teriam preferido morrer a
negar Cristo, o que era visto como um pecado muito mais grave.
Para fundamentar a sua posição, Anselmo fez notar que João Batista não fora morto por se ter recusado a negar Cristo, mas por denunciar
a imoralidade de Herodes. «Que distinção existe entre morrer pela justiça e morrer pela verdade? Além do mais, porque pelo testemunho da
Sagrada Escritura […] Cristo é verdade e justiça e aquele que morre pela
verdade e pela justiça morre por Cristo.»
É por isso que João Batista pode ser invocado como um precursor de
mais recentes mártires da verdade, como o pastor luterano e resistente
antinazi Dietrich Bonhoeffer, Mahatma Gandhi, Martin Luther King e
o arcebispo salvadorenho Oscar Romero. Há uma qualidade universal
em João, «a voz de quem grita no deserto», que exige respeito em todos
os dias e em todas as épocas. O modelo de João talvez seja hoje especialmente poderoso e comovente quando reportagens e vídeos oriundos
da terra onde ele pregou nos contam a história de tantos que sofrem
o mesmo destino medonho que ele sofreu. E é por isso que ele pode ser
o santo perfeito para os nossos dias.
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