14 - Blog da Companhia das Letras

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14 - Blog da Companhia das Letras
14 | Outlook | Sexta-feira, 18.6.2010
ELEITOS
Adoráveis canibais
Em A Sociedade da Neve, os relatos dos sobreviventes
da famigerada tragédia dos Andes, reunidos pela primeira
vez, tornam ainda mais complexo, ambíguo e enigmático
o tema da antropofagia
TEXTO R O N A L D O B R E S S A N E
FOTO ARQUIVO EL PAÍS
Sobreviventes do acidente aéreo (à frente) e o tropeiro que os ajudou a sair das montanhas
á alguns anos o mundo foi
assombrado pela notícia
de um esquisito ritual
realizado na Alemanha.
Um homem anunciou na
internet que gostaria de
realizar sua fantasia de ingerir carne
humana. Outro homem respondeu: sua
fantasia era justamente a de ser comido.
Civilizados, marcaram um encontro,
abriram um vinho e rasgaram as fantasias — um comeu o outro, primeiro sexual, depois literalmente. O comilão,
mesmo com uma defesa razoável — não
fez nada que o comido não quisesse, e
tudo foi filmado — , ganhou a prisão
perpétua (o que lhe impôs uma triste
restrição nos hábitos alimentares). É
inafiançável transgredir o maior de todos os tabus. Talvez por isso nos fascine
Livro não recusa
a sobriedade, porém
tempera-a com
um humor que
surpreende. Embora
multifacetada,
a narrativa
paradoxalmente
torna ainda mais
misterioso o ato
que em princípio
deveria revelar
tanto a série de livros e filmes estrelados
pelo cínico Hannibal Lecter, criação de
Thomas Harris imortalizada no carisma
de Anthony Hopkins: o canibal encontra-se num espaço além do bem e do
mal. A antropofagia, se ritualizada, tem
forte simbolismo sexual e/ou religioso.
Aos olhos da sociedade, o canibal habita
um lugar próprio — ou como deus, ou
como pária. Em culturas antigas da Indonésia, Austrália, Nova Zelândia, China e Américas, o consumo ritualístico
de carne humana justificava-se ao incorporar atributos dos mortos — força,
coragem, inteligência, ou mesmo como
vingança do inimigo —, e em alguns casos só deixou de ser praticado no século
20. Um tipo bem diferente, mas não
menos misterioso, é o canibalismo famélico surgido em épocas como na
Guerra dos Trinta Anos
FOTO ARQUIVO EL PAÍS
(1618-1648) ou no cerco a
São Petersburgo durante a
Segunda Guerra. O caso
mais recente é o da queda de
um avião nos Andes, em
1972, cujos sobreviventes,
para não morrer de fome, se
alimentaram da carne das
vítimas do acidente. O drama rendeu livros como Os
Sobreviventes: A Tragédia
dos Andes , de Piers Paul
Read, fruto de conversas
logo após a tragédia, que
originou o péssimo filme Os
Sobreviventes dos Andes ,
de 1976, e os relatos pessoais Después de Las Diez,
de Carlitos Páez, e O MilaTime de rúgbi de ex-alunos do colégio Irmãos Cristãos de Montevidéu, poucos dias antes do embarque
gre dos Andes, de Nando
H
Parrado, em 2006. Porém, o drama
nunca foi tão, desculpe, dissecado
quanto em A Sociedade da Neve, de Pablo Vierci (Companhia das Letras, trad.
Bernardo Ajzenberg), em que, pela primeira vez, uma das mais lendárias e radicais experências humanas é contada
por todos os 16 sobreviventes.
Em 13 de outubro de 1972, um jato
turbo hélice fretado da Força Aérea do
Uruguai se espatifou no meio da cordilheira dos Andes. Levava 45 pessoas,
entre passageiros e tripulantes, a maioria integrante de um time de rúgbi de
ex-alunos do colégio Irmãos Cristãos de
Montevidéu, a fina flor da elite uruguaia. Após dez dias de buscas, o Serviço Aéreo de Resgate chileno deu a todos
como mortos. “Setenta e dois dias depois, dois jovens maltrapilhos e esqueléticos surgiram de repente nos contrafortes da cordilheira ao sul de Santiago,
depois de dez dias de uma inacreditável
caminhada; o grito ouvido nas colinas
pelo tropeiro que resgatou os dois zumbis percorreu o mundo, que acolheu
com assombro e incredulidade aquelas
dezesseis figuras espectrais que apareciam do nada”, conta o premiado romancista Perci — ele mesmo um ex-jogador deste time, excluído da equipe
por falta de talento para o esporte: o
perna-de-pau era chamado pelos amigos de “escrevinhador”. Tocado pessoalmente pela tragédia, Perci acalentou por décadas o projeto deste livro —
são famosas suas reportagens a respeito, como o longo artigo no El País “Nosotros, los otros”, em que escreve do
ponto de vista dos mortos. Foi penoso
reencontrar os dezesesseis sobreviven-