Diferentes Visões sobre o bebê-medicamento

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Diferentes Visões sobre o bebê-medicamento
Diferentes Visões sobre o bebê-medicamento:
Bispos Católicos condenam o primeiro bebê medicamento francês1
Trung Nguyen
Tradução: Flora Tucci2
Mês passado, médicos na França anunciaram o nascimento do primeiro bebê-medicamento
(irmão salvador) do país. Nascido de pais de origem turca, Umut Talha (em turco quer dizer
esperança), foi concebido em fertilização in vitro (IVF) usando Diagnóstico Genético PréImplantacional (PGD). Esta técnica, em conjunto com Antígeno leucocitário humano (HLA),
comumente conhecido como tissular, vem permitido famílias a terem filhos – um irmão
salvador3 – que são capazes de doar tecido salvador de vidas (comumente, material do cordão
umbilical) para um irmão vivo doente. Os pais de Umut procuraram o hospital em Clamart um
ano atrás, requerendo o tecido PGD. Seus dois filhos tinham beta talassemia, uma doença de
sangue hereditária, que requer transfusão de sangue mensal.
Um embrião foi escolhido e geneticamente selecionado de um grupo original de doze
embriões para assegurar que fosse livre da doença e que o tecido fosse compatível com um dos
irmãos. O irmão salvador, Umut, não tem talassemia e células de seu cordão umbilical vão ser
usadas para curar sua irmã mais velha, agora com dois anos, e suas transfusões de sangue
mensais vão ser descontinuadas. Os pais de Umut planejam retornar a Clamart para se
submeterem ao mesmo procedimento para curar seu outro filho, o irmão de Umut de quatro
anos.
A seleção de bebê medicamento não é algo novo. Adam Nash, que é o primeiro bebê
medicamento noticiado no mundo, nasceu uma década atrás nos EUA. Células de seu cordão
umbilical foram usadas para curar sua irmã, Molly Nash (com seis anos na época) que tinha
1
Original: http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2011/03/catholic-bishops-condemn-frances-first-bebe-medicament/
2
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), psicanalista e bolsista do
Núcleo ERA (www.era.org.br).
3
Nota do tradutor: o irmão salvador é um bebê-medicamento.
anemia de Fanconi, uma condição hereditária que enfraquece o sistema imunológico,
normalmente causando a morte aos sete anos. Aqui no Reino Unido, a Human Fertilisation and
Embryology Authority (HFEA) permite a seleção de bebê medicamento, e, talvez, o caso mais
famoso seja o dos Hashmis. Em 2002, foi dada a permissão ao casal para criar um bebê
medicamento para seu filho, Zain, que também sofria de beta talassemia. E em 2003, Christina
Curkowskyj, que também tinha anemia de Fanconi, se tornou o primeiro bebê da Austrália a
receber um transplante de sangue do cordão umbilical do bebê medicamento, Thomas. Casos
de PGDs tissulares (HLA), tanto em combinação, ou não, com testes PGDs de doenças têm
chamado a atenção da mídia e interesse público. „My Sister‟s Keeper‟, o romance de 2001
escrito pelo famoso autor nova iorquino Jodi Picoul, atesta este fato. O romance foi adaptado
para o cinema.
As leis bioéticas atuais na França permitem casos como de Umut. PGDs tissulares têm sido
teoricamente permitidos na França desde 2004; no entanto, o assunto permanece controverso.
Mais de seis anos depois, o timming do nascimento do primeiro bebê medicamento francês
provou ser significante: a lei que permite bebês como Umut está atualmente sendo revisada.
Stephen Wilkinson esboça um pressuposto fundamental no qual ele chama de “Liberalismo
Político Esquemático”. Esta é a visão em que o Estado é obrigado a não proibir uma dada
atividade, a não ser que se possa fornecer razões convincentes para tal. Por exemplo, não
devemos banir o uso de PGD e outras formas de reprodução seletiva a não ser que esta seja
acompanhada de uma justificação ética adequada e um raciocínio moral, do mesmo modo que
deve ser errado proibir fumar ou apostar, a não ser que existam razões justificáveis para tal. Isso
não significa que devemos permitir tudo e qualquer coisa. Um conjunto muito restrito de
políticas governamentais poderia ser justificável, desde que haja bons argumentos para
apoiar essas políticas. PGDs tissulares permitem a criação de uma vida livre de doenças, e
também permitem que a vida de uma criança doente seja salva. Muito poucas pessoas
argumentariam que é melhor criar uma vida afetada por doenças, ou que uma criança doente não
deveria ser salva. Portanto, cabe aos detratores dos PGDs tissulares mostrarem que existem
razões moralmente adequadas para banir este tipo de reprodução seletiva e que essas razões
superam as razões para apoiar a criação de irmãos salvadores.
Um grupo de detratores é, sem surpresas, a Igreja Católica. O Arcebispo de Rennes, Pierre
d‟Ornellas, junto a outros bispos e sua província eclesiástica, emitiu este comunicado vários
dias após o nascimento de Umut:
Curar um irmão honra o homem. Muitas pessoas dedicam suas vidas a isso.
Apoiar parentes no seu sofrimento que têm um filho seriamente doente é um
dever da sociedade. Nós entendemos sua angustia e sua esperança na medicina.
Contudo, legalizar o uso do mais vulnerável ser humano para curar é algo
indigno para o homem. Conceber uma criança para usá-la – mesmo que seja
para curar – não é respeitável à sua dignidade.
Afirmações de que PGDs tissulares são moralmente censuráveis porque envolvem
instrumentalizar crianças são comumente trazidas aos debates públicos sobre a ética de formas
particulares de reprodução seletiva. Muitos detratores dos PGDs tissluares, como o Arcebispo
Pierre d‟Ornellas, têm argumentado que a seleção de bebês-medicamento injustamente maltrata o
mais vulnerável ser humano, e que tais crianças devem ser respeitadas por elas mesmas e
desejadas por elas mesmas, e não pelo que podem fazer por seus pais. A criação do bebê
medicamento, os bioconservadores afirmam, poderia desrespeitar a dignidade (futura) desta
criança. As bases para argumentos da instrumentalização vêm de várias perspectivas; no entanto,
tais afirmações baseiam-se mais frequentemente nas prescrições universais do filósofo Immanuel
Kant:
Age de forma a usar a humanidade, seja em sua própria pessoa, ou na pessoa de qualquer
outro, sempre, ao mesmo tempo, como um fim, nunca simplesmente como um meio.
No entanto, análises mais profundas da visão kantiana sugerem que não há nada que proiba o
tratamento de pessoas como um meio, mas, ao invés, há algo moralmente questionável para o
tratamento de pessoas somente ou simplesmente como meio. Então, mesmo que sigamos a
famosa máxima kantiana, criar uma criança não é moralmente questionável, mesmo se for “um
meio para um fim”, contanto que esta criança seja respeitada como um ser humano. Seria
moralmente repreensível criar, por exemplo, um bebê-medicamente, e então, descartá-lo, já que
teria servido ao seu propósito. Entretanto, claramente este não é o caso de Umut, e nem as outras
centenas de bebês-medicamento que nasceram. Então, tal objeção falha como um argumento
ético e, a fortiori, como um caso para proibição legal. Esses pais vão tão longe para salvar seus
filhos doentes, e isso mostra que são pais amorosos e carinhosos, e que vão amar e cuidar de seu
novo bebê. Os pais de Umut declararam que eles teriam Umut independentemente dele ter ou
não o tecido compatível para seus irmãos. Além disso, no caso dos Curkowskyj, os pais de
Christina tiveram uma outra filha (a quarta) vários anos depois do bebê medicamento de
Christina, Thomas. Poderia imaginar-se que eles desejaram Thomas unicamente para salvar a
vida da filha doente. Os pais de Christina poderiam ter parado de ter filhos assim que Thomas
nasceu e a vida de Christina foi salva.
Contanto que o bebê- medicamento seja amado como um indivíduo, e não somente em virtude
de poder salvar um irmão, o resultado é benéfico para todos. É difícil argumentar contra criar
uma nova vida (sem doenças) que também pode salvar uma outra vida, enquanto ambas sejam
respeitadas e amadas.
Parece que, todavia, o Arcebispo Pierre d‟Ornellas opõe-se aos PGDs tissulares mesmo que o
bebê-medicamento não seja usado somente como um meio para a cura; ao invés, o fato da
criança ser usada para quaisquer meios é moralmente questionável, ou assim parece, de acordo
com sua declaração. Poucas pessoas (se alguma) poderiam sugerir que os motivos de uma
mulher que quer ter um filho em virtude do seu sonho de toda uma vida de ser mãe e construir
uma família são moralmente questionáveis. Ainda, poderia argumentar-se que ela está vendo seu
futuro filho como um meio de alcançar sua própria felicidade e alcançar seus objetivos de ser
mãe, mesmo que estes não sejam os únicos motivos dela querer ter um filho. Parece injusto negála a liberdade reprodutiva desde que, claro, ela seja capaz de amar e cuidar de sua criança.
Existem várias outras (talvez menos benignas) razões existentes para se querer ter um filho.
Isto inclui “completar uma família”, prover uma companhia para um outro filho, agradar avós,
melhorar um casamento, os benefícios financeiros e psicológicos que um filho adulto
proporciona aos seus pais envelhecidos, o preenchimento de quartos de uma nova casa
comprada, e até mesmo produzir um herdeiro. Todas essas razões envolvem os pais vendo os
seus filhos como meio de uma forma ou de outra, mesmo que não sejam vistos somente como
meios. Embora o Arcebispo Pierre d‟Ornellas (ou você ou eu) não veja estas razões como sendo
particularmente boas para conceber um filho, sua objeção, que é baseada na ideia de
instrumentalização abusiva, parece excessivamente restritiva em destacar, sem sucesso,
unicamente a seleção de embriões no intuito de conceber um bebê-medicamento; ao invés,
contaria contra várias instâncias (se não a maioria dos casos) de reprodução. A não ser que exista
um modo empírico de qualificar a “incorreção” dessas razões do “mais moralmente
questionável” ao “menos moralmente questionável” e de determinar onde a linha deve ser
demarcada (o que é altamente improvável), parece pouco razoável proibir a reprodução por
alguma razão, e não para outras razões.
Então isso significa que não existe justificação ética para proibir PGD tissular? Não
necessariamente. Outras objeções foram levantadas pelos bioconservadores que ainda não
foram discutidas aqui. Inclui-se argumentos relacionados a preocupações de segurança e
questões de danos e benefícios para os bebês-medicamento, e potenciais danos do PGD tissular
para a sociedade em larga escala (por exemplo, argumentos relativos ao aprimoramento e ao
“slippery slope principle”4, e a alocação e distribuição de recursos) embora eu tenha que
admitir que várias dessas objeções, pelo menos de uma perspectiva filosófica, parecem
problemáticas para mim. Ademais, embora eu tenha focado na doação de sangue do cordão
umbilical, existem objeções quanto à doação de órgão após o nascimento, e questões de
exploração e coerção de doação de órgãos sólidos não-renováveis (como rins). O que pode ser
dito, todavia, é que o argumento fornecido pelo Arcebispo Pierre d‟Ornellas é falho, e que
objeções apoiadas em ideias de instrumentalização abusiva não demonstram com sucesso que
as leis atuais da França de bioética, que permitem casos como o de Umut, devem ser mudadas.
Cabe aos bioconservadores e proibicionistas desenvolverem uma justificação ética adequada
para a proibição de PGD tissular, e de demonstrar que tais justificativas se sobrepõem, não
somente a criação de uma criança saudável, mas também a razões para querer salvar uma vida
de uma criança doente.
4
Nota do Tradutor: Este princípio refere-se a um argumento de que todo “relaxamento” de uma restrição imposta
constitucionalmente é um convite para justificar algum outro “relaxamento” mais amplo desta restrição.