Educação Rural - Serrano Neves
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Educação Rural - Serrano Neves
ESBOÇOS DE UMA NOVA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO DO MEIO RURAL BRASILEIRO1 ____________________________________________________________________________ Rudá Ricci2 1. Educação do Campo como fator de cidadania O clima, lembrando a maresia carioca, é denso, abafado e, naqueles dias, muito chuvoso. No auditório, dezenas de trabalhadores rurais, dirigentes sindicais do campo, professores, agentes pastorais, membros de ONGs, representantes de universidade, comprimidos em inúmeras cadeiras voltadas para a mesa que preside o evento. Atrás da mesa, um enorme painel onde destaca-se a frase: "Por uma educação básica do campo". Um jovem dirigente rural toma a palavra. Afirma que vai anunciar uma demanda dos trabalhadores rurais, em especial, os dirigentes e lideranças que não tiveram tempo, ao longo de suas vidas, para se dedicarem aos estudos. Em poucas palavras anuncia: "Nós, dirigentes, queremos uma espécie de supletivo, um curso alternativo para concluirmos os estudos. Mas ele precisa ser reconhecido oficialmente, não deve ser uma experiência paralela. E achamos que ele precisa respeitar nosso tempo e que trabalhe, além das questões oficiais, as questões que nos interessam: defesa do meio ambiente, tecnologias, política, cidadania." Finalmente, olha para uma pessoa à sua frente e descarrega: "Nós não queremos que aconteça como ocorre hoje com tantos militantes: vão estudar na cidade, entram na universidade e começam a perder tempo, pensar coisas estranhas, falar diferente. Queremos uma educação nossa, do homem do campo, comprometida com o nosso meio." Este encontro, ocorrido no início de setembro de 99, na cidade de Muriaé, Zona da Mata mineira, envolveu lideranças da região que socializaram experiências em educação rural e elaboraram as diretrizes políticas regionais sobre o tema. O episódio, relatado acima, revela um discurso novo das lideranças rurais. A educação sempre foi um tema central das organizações rurais, em toda a América. Com efeito, no século passado, várias organizações de produtores rurais articularam-se nos EUA para lutar por uma educação do homem rural. As Farmer's Union multiplicaram-se pelo país e tinham, como preocupação central, recuperar o poder dos agricultores. O poder perdido, no entender dessas organizações, havia se diluído a partir do crescimento do número de deputados urbanos para o parlamento. Acreditavam que o aumento do poder urbano se dava, fundamentalmente, em função do cabedal de informações e da formação que os homens da cidade tinham adquirido com a proliferação das escolas públicas. Exigiam, em contrapartida, escolas no meio rural. As primeiras escolas, contudo, não atraíram o homem do campo. Os horários eram incompatíveis com os hábitos rurais, os temas e a metodologia de ensino eram rígidos e herméticos demais, o calendário não respeitava o ano agrícola. Agregou-se a esta insatisfação o movimento das igrejas protestantes do norte. Em 1830, surgiu um movimento nacional, com forte motivação moral, que defendia o retorno aos valores agrários, a capacidade de empreendimento pessoal e a exigência de reformas sociais3. Nasceria, pouco depois, a concepção extensionista, inicialmente implantada a partir de "escolas ambulantes" que eram instaladas em vagões de trem. Os trens, ao chegarem numa comunidade do interior do país, levavam consigo um vagão adaptado que era utilizado para programas de "demonstração" de novas técnicas produtivas e conhecimentos gerais. Em todas experiências e movimentos sociais rurais, ainda que não tenham chamado muito a atenção da grande imprensa, as escolas e a educação ocuparam - e ocupam - um lugar central. Mesmo nos acampamentos e assentamentos rurais, ou comunidade rurais de origem indígena espalhados pelo 1 Texto produzido para as equipes de "educação" e "agricultura" da Fundação SEADE, para o encontro ocorrido em 23/9/99. Agradeço as contribuições da AMEFA, em especial, do professor João Batista Begnami. 2 Sociólogo, professor da PUC-MG e consultor associado da CPP (Consultoria em Políticas Públicas). E-mail: [email protected] . 3 Em 1786, o médico Benjamin Rush, já havia declarado que as comunidades deveriam apoiar as escolas para converter os homens em máquinas republicanas. O movimento dos protestantes do norte resultou na construção de muitas escolas locais mantidas pelo estado e altas taxas de matrícula no meio rural. Somente no final do século XIX surge a preocupação com a eficiência (incluindo a produtiva), em detrimento da formação moral, comunitária. Sobre este período, ver POPKEWITZ, Thomas. Reforma Educacional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Ver, em especial , o capítulo 2, intitulado "Identidade Social e Profissionalização: A construção do ensino do século XIX como um elemento para a construção do Estado". 1 continente americano, é possível encontrar crianças sentadas no chão, ao redor de uma árvore, ou em cadeiras improvisadas embaixo de lonas, assistindo aulas ministradas por algum voluntário. Ao entrevistar agricultores rurais sobre projetos familiares, a educação é sempre ressaltada como garantia de uma vida melhor para seus filhos. Mas, o que há de novo nos discursos ouvidos em Muriaé é que os trabalhadores rurais não querem mais (talvez, repetindo a trajetória das lideranças rurais dos EUA) uma educação para o campo. Desta feita, exigem uma educação do campo. Este discurso novo sugere uma revolução no sistema educacional e na elaboração de estratégias pedagógicas. Para os educadores urbanos, estrategistas das propostas educacionais públicas, significa uma prestação de contas com o papel civilizatório e urbanizador que a educação brasileira desempenhou desde os anos 30. Esta concepção instrumental da educação alimentou-se de duas fontes: um forte pensamento evolucionista, que se propagou na grande imprensa brasileira nas primeiras duas décadas deste século e a vertente taylorista de educação, difundida nos EUA. Em relação à primeira fonte, vale registrar que seu maior emblema foi o personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato, em 1914. Não raro, Lobato estabelecia paralelos entre o homem do campo e os parasitas e os animais não produtivos, como encontramos nestas passagens de Urupês: Caboclo, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças... Chegam silenciosamente, ele e a "sarcopta" fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia (...). Completam o rancho um cachorro sarnento - Brinquinho, a foice, a enxada, a picapau (...). Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê.(...) Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. (...) A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jéca Tatu (...) A sociologia brasileira, nos seus primeiros passos, corroborou a discriminação política e cultural em relação ao homem do campo. Na década de 60, Juarez Brandão Lopes, Alain Tourraine, Fernando Henrique Cardoso e Azis Simão sugeriram que a forte presença rural no emergente proletariado brasileiro fragilizava sua organização e a consciência de classe, facilitando o controle dos sindicatos pelo Estado. O espaço urbano, então, foi se configurando como o espaço da moralidade, do progresso e do desenvolvimento social. Nesta esteira ideológica, foi se projetando uma concepção de escola pública que tinha por objetivo central a formação do trabalhador urbano. E daí, nasce a escola pública, taylorista, urbana, para o campo. Uma escola pautada pelo necessário êxodo rural, para a constituição do proletariado urbano. Vejamos alguns de seus presupostos. 2. Educação para o Campo como fator de êxodo A educação pública brasileira toma contornos efetivamente nacionais nos anos 30, com a criação do Ministério da Educação. Neste período, adotou-se o progressivismo (inspirada em Dewey, Kilpatrick, Decroly e Montessori) e uma linha tecnicista que buscavam, antes de mais nada, a coesão social. Em Minas Gerais, na reforma dirigida por Francisco Campos , foram implantados trabalhos de grupo ao lado da preocupação com noções de higiene, civismo, e instrução moral. Após a Reforma Francisco Campos e a criação do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, criado em 1938), adota-se uma concepção de currículos enciclopédicos e cria-se um corpo de administração educacional: orientadores, inspetores, supervisores. O objetivo central seria o ajuste do comportamento individual ao ambiente social, afinado com as demandas do processo de industrialização em curso. Com o regime militar, os acordos com a USAID (United States Agency for International Development) passam a orientar uma linha mais racionalista, com apoio direto das universidades de San Diego e Wisconsin, separando a prática da teoria curricular e enfatizando o ensino profissionalizante, a especialização docente e o planejamento. Este é o período que se aproxima das concepções que aqui denomino de educação taylorista. Mesmo assim, a orientação 2 teórica permanece ambígua: são adotados autores tradicionalistas (Tyler, Taba, Saylor, Fleming) e, com menor peso, autores tecnicistas (Bloom e Gagné). Embora mantenham como objetivo da educação a reprodução de valores, aparecem, surpreendentemente, orientações curriculares sustentadas por linhas existencialistas e fenomenológicas4. Embora a ambigüidade pareça permear toda esta trajetória, a preocupação central com a formação do homem urbano e o compromisso com a industrialização formam uma linha de coerência a partir dos anos 30. No final dos anos 30, com a criação do INEP, inaugura-se uma preocupação com a formação de currículos que estimule hábitos sociais. O primeiro livro-texto publicado no Brasil, de autoria de João Roberto Moreira (1955) enfoca a necessidade da escola ser instrumento de renovação e progresso brasileiro, procurando integrar o Brasil na civilização ocidental do século XX. A partir da década de 50, a influência dos EUA aumenta significativamente na elaboração dos currículos. Era o período da Guerra Fria e a preocupação com o processo de urbanização e constituição de um mercado consumidor fundava a consolidação do bloco americano. À título de ilustração, em abril de 1956, o Brasil assina com os EUA o acordo que geraria o Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE). Introduzia-se os modelos tecnicistas nas escolas brasileiras e a estrutura curricular norte-americana. Vejamos, ainda que brevemente, os pressupostos da concepção curricular norte-americana, no intuito de compreendermos como a política educacional adotada subordinou a cultura rural aos objetivos da industrialização nacional. Ainda no final do século passado, Joseph Mayer Rice, um autor taylorista, ao criticar a ineficiência do sistema educacional público sugeriu uma série de alterações baseados no gerenciamento científico. No livro que publica em 1914 propõe a introdução do gerenciamento científico na conduta das nossas escolas (...). Sua preocupação central passou a ser o desperdício do tempo escolar. As escolas norteamericanas adotaram um modelo de linha de montagem5 : as salas de aula passaram a dividir-se por série (superando a sala multiseriada, típica do meio rural); o dia escolar foi fragmentado em unidades temporais separadas de 35 a 45 minutos6; a hierarquização curricular, de inspiração comteana, que tinha na matemática a ciência do novo mundo (teoria geral do mundo), seguida pela física (ciência primeira), química, biologia, psicologia e outras ciências sociais. Como se percebe, a estrutura proposta centrava-se no mundo industrial, na formação de estruturas que formassem o operáriopadrão, em termos de conteúdo programático e na difusão de hábitos sociais (em especial, a disciplina e controle do tempo). Seguindo as orientações de Rice, Franklin Bobbitt, em 1918, publica o livro The Curriculum que seria um marco no campo de estudos curriculares. O autor baseava-se na análise dos conteúdos a serem ministrados, a partir do exame das habilidades necessárias apra exercer com eficiência as ocupações profissionais da vida adulta7. O conceito-chave adotado pelo autor era eficiência. Sua preocupação central era a definição de padrões. Bobbit ilustrava esta preocupação com frases de efeito, tais como: a educação, tal como a usina de fabricação de aço, é um processo de moldagem ou transformar o material bruto no produto acabado para o qual ele melhor se adapta8. Preocupava-se com crianças, da oitava série, que realizavam adições a um ritmo de 35 combinações por minuto, enquanto outras, na mesma sala, faziam adições a 105 combinações por minuto. Finalmente, Ralph Tyler, no final dos anos 40, estabelece os contornos da organização e desenvolvimento educacional que serão empregados no Brasil até os anos 80. Tyler propõe o tripé: currículo - ensino e instrução - avaliação, sugerindo o desenvolvimento sobre os aprendizes, sobre a vida contemporânea fora da educação e sobre as inovações sugeridas pelas diferentes disciplinas. Novamente, a preocupação central é a definição de hábitos sociais e socialização de informações que pudessem servir de alavanca para a industrialização acelerada. 4 Para uma análise abrangente da história curricular brasileira ver MOREIRA, Antonio Flavio. Currículos e Programas no Brasil, Campinas:Papirus, 1997. 5 Ver DOLL JR. , William. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre : Artes Médicas, 1997, pp. 58 a 63. 6 Este sistema foi elaborada pela U.S. Steel Company, e buscava padronizar o tempo instrucional para que os diretores escolares pudessem garantir que todas salas estivessem sendo utilizadas eficientemente. Em todas salas de aula havia um relógio mecanizado. 7 Ver SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 8 BOBBITT, J. F. . "The elimination of waste in education", In The Elementary School Teacher, 12, 1912; pp. 259-271. 3 Desta concepção educacional - e definição da noção de currículo como hierarquia de conteúdos, e não como plano de estudos sobre a realidade - firma-se uma escola essencialmente urbana. Se, de um lado, o jovem rural, até os anos 40, tinha pouco acesso ao ensino formal, restando-lhe assumir a condição de aprendiz de agricultor na divisão de trabalho familiar, a partir desta data, por outro lado, passou a freqüentar um ambiente que lhe apresentava um mundo profundamente distinto do seu. Infelizmente, apenas nos últimos anos começam a surgir pesquisas que procuram sistematizar a dinâmica social que envolve os jovens a partir da educação formal. Um desses estudos é o de Maria José Carneiro9, que pesquisou jovens rurais, entre 15 e 26 anos de idade, residentes em Nova Friburgo (RJ) e Nova Pádua (RS). A autora revela o empenho dos jovens em melhorar seu padrão de vida, sem que isto implique na negação da cultura de origem. A educação é revelada, sempre, como um elemento estranho, embora necessário, sugerindo a externalidade das concepções educacionais brasileiras para o meio rural. Vejamos duas falas que inserem a educação na trajetória de vida de dois homens, hoje com mais de 40 anos de idade, reproduzidas por Maria José Carneiro: Eu tenho 41 anos e saí com 11 anos (...). Saí por convite da família, não por mim. (...) A gente saiu para buscar um estudo. Nossos pais, nossa família influenciou muito para que a gente saísse para estudar, para que tivesse estudo, tivesse formação. (...) Todos que saíram não voltaram porque a própria cidade te oferece mais coisas, ela te oferece lazer. (...) Alguns ficam , vão trabalhar na prefeitura e acabam ficando. Mas, hoje não! Hoje se tivesse uma terra para eu voltar..., nas condições que eu tenho hoje... eu até voltaria. ( Filho de agricultor, gerente e sócio de uma indústria de lixas industriais em Caxias do Sul). Eu saí daqui, eu troquei a minha... eu diria assim, a minha herança eu troquei pelo estudo10. (...) Se nós ficássemos em doze aqui, repartindo um pedaço pra cada um... ia ficar pouco pra todo mundo. Então, 'me paga o estudo, me ponha na Faculdade e eu não preciso mais da terra...' ( Filho de agricultor, advogado, 46 anos de idade). A educação formal, como se percebe em inúmeros relatos é alternativa à vida rural. O mais comum, é o jovem, após a 4a série primária11, procurar empregos na cidade, com empregados domésticos, no pequeno comércio ou na construção civil. Nas pesquisas recentes, a velha tradição do filho mais novo ficar no meio rural já começa a desaparecer. Fica quem possui menor vocação para o estudo. Em Nova Pádua, dos 56 filhos de agricultores entrevistados, 83% informaram que não gostariam de permanecer na atividade agrícola, porque é um trabalho pouco rentável, sem futuro, instável, sem recompensa, duro, pesado e sujo. Assim, a educação para o meio rural passa a ser, pouco a pouco, compreendida em sua dimensão política e não apenas na possibilidade de capacitação e aumento de eficiência produtiva. É desta forma que lideranças, como aquela presente no encontro de Muriaé, passam a incorporar propostas educacionais no seu discurso político: como programas oriundos e que respondem às demandas e à dinâmica do meio rural. Daí nasce a articulação nacional "Por uma educação básica do campo". 3. Esboços e tentativas de articulação de uma rede educacional do campo Do total de 278 mil escolas rurais brasileiras existentes no final dos anos 80, 200 mil eram escolas municipais; 2,5 mil eram federais, 70 mil eram estaduais e 4,9 mil eram privadas12. Mais da metade dos professores brasileiros que não possuíam sequer o ensino fundamental concluído ministravam aulas no meio rural. Dado que a maioria dos eleitores brasileiros residem no meio urbano que, por sua vez, possui um poder de formação de opinião maior que o meio rural, as administrações públicas 9 CARNEIRO, Maria José. "O ideal rurbano: campo e cidade no imaginário de jovens rurais", In DA SILVA, Francisco C. T. et ali . Mundo Rural e Política: Ensaios Interdisciplinares. Rio de Janeiro: Campus, 1998. 10 A relação entre permanência do jovem no meio rural e processo sucessório foi analisada por Ricardo Abramovay no livro Juventude e Agricultura Familiar: desafios dos novos padrões sucessórios (Brasília: Unesco, 1998). 11 Na pesquisa realizada no Rio de Janeiro, a autora percebeu que dos alunos que estudavam numa escola estadual inserida no meio rural, 85,7% dos homens e 58,3% das mulheres trabalhavam, em especial, na construção civil (38,5%) e comércio (30,7%). A agricultura ocupava apenas 7,7% dos jovens. 12 Dados do MEC, de 1989. 4 municipais preferem introduzir inovações pedagógicas nas escolas situadas na cidade, onde as mudanças ganham maior visibilidade. Esta característica fundamenta a grande pulverização das experiências educacionais rurais do país. Nos anos 80, com a eleição de governos municipais comprometidos com movimentos sociais rurais, em muitos municípios brasileiros teve início a experimentações que não chegaram a formular mudanças conceituais profundas ou um programa político pedagógico que alterasse a lógica da escola para o meio rural. Não obstante, esboçaram temas e preocupações que, mais adiante, foram incorporadas em experiências mais acabadas. Cito, à título de ilustração, as experiências realizadas em São João do Triunfo, no Paraná, e Ronda Alta, no Rio Grande do Sul. Em São João do Triunfo, a secretaria municipal de educação investiu na formação de professores de escolas rurais. Realizaram "reuniões pedagógicas" onde os professores procuravam definir, com o governo, um programa educacional. A crítica central foram os conteúdos dos livros didáticos, distantes da realidade dos alunos. Destas discussões, foram surgindo várias inovações. Uma delas foi a Semana da Comunidade, realizada ao longo da semana de 7 de Setembro. Aboliram as tradicionais passeatas e organizaram, em cada comunidade, espaços de lazer, onde eram distribuídos baralhos, brinquedos, papel, tinta, chimarrão. O objetivo era reconstruir os laços comunitários, desgastados pelos anos de crise econômica. Em seguida, criaram a Feira de Ciências. Cada comunidade mapeou brinquedos e atividades típicas do meio rural. A feira contou com exposições de alunos que explicavam como se fazia um balaio, como se cultivava uma planta, com se fazia um remédio com plantas medicinais. Estas iniciativas estimularam a integração de setores governamentais, articuladas ao redor das atividades agrícolas. Temas como agrotóxicos, trabalhados nos programas de preservação ambiental da secretaria de agricultura, passaram a ser incorporados no currículo escolar. Outra inovação foi a criação do conselho escolar, composto por pais, alunos e professores. Os pais começaram a acompanhar as obras. Finalmente, a inovação mais significativa foi a mudança do período de férias escolares, respeitando o ano agrícola. Transferiram as férias de julho para agosto e setembro, meses de colheita. Em Ronda Alta, o programa educacional apoiou-se nos seguintes pilares: a) adoção de metodologia de ensino baseada em Paulo Freire, valorizando o conhecimento do homem do campo. Os pais foram convidados a participar em Ciclos de Pais e Mestres, onde ensinam técnicas de cultivo e preparo do solo ou ainda contribuindo com a merenda escolar; b) implantação dos centros regionais de ensino (CRE) no meio rural, nucleando escolas que estavam dispersas, sem infraestrutura, diminuindo, inclusive, o custo operacional. Experiências com as relatadas acima foram constituindo um caldo de cultura junto a educadores de escolas rurais. Embora a marca seja a dispersão e o localismo, algumas características parecem ter conseguido constituir um núcleo de orientação dos procedimentos inovadores, a saber: a) mudança do calendário escolar, respeitando-se o calendário agrícola; b) a redefinição dos conteúdos curriculares, adotando-se uma forte tendência à interdisciplinaridade, tendo como eixo articulador as questões ambientais; c) a participação da comunidade, na gestão, no acompanhamento das práticas educativas ou mesmo ministrando aulas e programas na escola; d) articulam-se formação acadêmica, moral (em especial, ressaltando as práticas comunitárias) e lazer (normalmente esquecidas nas programações oficiais); e) a nucleação de pequenas escolas no meio rural. Na segunda metade dos anos 80, este caldo de cultura forjou uma experiência alternativa de escola rural: a escola família agrícola (EFA). Por ser a experiência com maior abrangência territorial e por ser 5 a principal referência na constituição do movimento "Por uma educação básica do campo", passarei a relatar os contornos desta experiência13. As EFAs têm como uma de suas referências mais significativas as Maisons Familiales Rurales14 (MFRs), que surgiram em 1937, em Lauzun, sede do cantão de Lot-et-Garonne. A escolas francesas nasceram num período em que o meio rural já era fortemente afetado pela mecanização agrícola e enfrentava a crise de mercado e preços em vários produtos agrícolas, como leite e carnes. Seus ideólogos foram Jean Peyrat, agricultor e presidente do sindicato rural de Sérignac-Péboudou; padre Granereau, seguidor de Marc Sangnier (católico social) ; e Arsène Couvreur, ex-bancário, jornalista (foi criador do semanário agrícola nacional La France Agricole), também seguidor de Sangnier. As MFRs possuíam três pilares: a) a formação técnica (aprendizado prático e observações no terreno, procurando fomentar a profissão de agricultor); b) a formação geral (história, matemática); c) a formação humana e cristã. As Maisons Framiliales Rurales funcionavam como internatos, alternando o tempo de convívio do aluno na escola, com o tempo de convívio com seus pais. As famílias forneciam parte dos suprimentos, além do pagamento de uma quantia mensal. No primeiro ano da experiência, a primeira semana de convívio foi marcada para após a colheita de novembro de 1935. Parte da programação era voltada para visitas técnicas: pomar, exploração agrícola, análise do funcionamento de máquinas. Todas atividades são permeadas por iniciativas de um "animador", função exercida em rodízio, estimulando a formação social. Ao final, os jovens submeteram-se a uma prova estabelecida pelo programa oficial de formação por correspondência. Ao final deste primeiro ano, avaliou-se a necessidade de se readequar o programa para a capacitação em desenvolvimento da agricultura regional e do meio rural. A escola foi registrada no Secretariado Central de Iniciativa Rural (SCIR). A nova programação acabou por gerar a criação de uma cooperativa dos produtores de ameixa, tal o impacto do programa educativo sobre a economia das famílias. Na década de 40, no pós-guerra, foram detalhados os princípios, objetivos e métodos desta experiência: a) objetivos: formação integral de jovens, envolvendo instrução, educação e formação da personalidade; b) princípios: são essencialmente familiares. As iniciativas e responsabilidades pertencem aos pais dos alunos (assim como aos pais dos ex-alunos); c) método: alternância, articulando teoria e prática, centro de formação, pais e meio. A partir dos anos 50, constituiu-se a Associação Internacional de organismos de Maisons Familiales15. No Brasil, a experiência foi introduzida em 1968 (no Espírito Santo)16, e proliferou nos anos 80. Os sócios ativos são pais de alunos, ex-alunos e outros apoiadores, que possuem direito a voto. 13 Deve-se, entretanto, levar em consideração outras experiências que se apresentam como alternativa às escolas rurais formais: as escolas comunitárias rurais e as escolas desenvolvidas pelo MST. No campo oficial, algumas experiências de inovação ocorridas no último ano nas escolas agrotécnicas federais também despontam com alternativas em fase de experimentação. Neste último caso, seria importante destacar a experiência da EAF de Januária, norte de Minas Gerais. Nesta escola, adotou-se a estrutura modular de currículo, tendo como eixo a formação de técnicos em agroindustrialização. O aluno pode optar por montar seu currículo, inscrevendo-se em disciplinas que podem habilitá-lo gradualmente, até concluir o curso e garantir sua habilitação plena. O programa, obviamente, procura inserir rapidamente o jovem no mercado de trabalho. 14 Ver NOVÉ-JOSSERAND, Florent. L 'étonnante Histoire des Maisons Familiales Rurales. Paris: France Empire. 15 Existem, hoje, cerca de 1.000 centros no mundo todo que adotam a Pedagogia da Alternância. Na América Central, destacam-se as experiências da Nicarágua, Guatelmala, Honduras, Panamá e El Salvador. Na América do Sul, além do Brasil, destacam-se as experiências argentinas (articuladas na Associação para a Promoção das Escolas Famílias Agrícolas APEFA - e Centros Educativos para a Produção Total - CEPT) e uruguaias. Atualmente, os países membros do Mercosul procuram constituir uma rede, a RED-ALT-rede de educação familiar rural por alternância. 16 Inicialmente, envolveu os municípios de Anchieta, Piuma, Rio Novo do S e Iconha). Hoje, as EFAs subdividem-se em quatro vertentes: a) as vinculadas ao Movimento de Educação Promocional do ES (MEPES); b) as afiliadas a Associação das Escolas da Comunidade e Famílias Agrícolas da Bahia (AECOFABA); c) as Casas de Família Rural (com maior presença no sul do país); d) as Escolas Comunitárias Rurais. 6 Priorizam a experiência sócio-profissional. No entender de seus ideólogos, a experiência vivida é mais significativa que a ensinada. Valoriza-se, portanto, a experiência cotidiana, numa reapropriação do tempo holístico, anterior à organização do tempo escolar de inspiração taylorista. Na prática, o projeto educativo ocorre em três momentos, envolvendo a casa do aluno, o centro educativo (a escola) e o meio sócio-profissional. Se a casa é o local da pesquisa e observação, o centro educativo é o local da socialização das experiências, da comparação, análise, interpretação e generalização. O meio profissional é onde são aplicados os conhecimentos e onde surgem novos temas de pesquisa17. Os instrumentos pedagógicos e recursos utilizados são, também, distintos das escolas formais. As EFAs utilizam planos de estudo (elaborados em conjunto), cadernos de realidade (cadernetas de campo), visitas de estudo, visitas às famílias e empreendimentos profissionais e projeto profissional do jovem. Algumas experiências brasileiras já possuem planos de formação estruturados. Este é o caso da EFA Chico Mendes, situada em Conselheiro Pena (MG). A escola possui 10 alternâncias e propõe 8 temas de planos de estudo. Os primeiros dois anos tratam de temas gerais e da vivência do aluno, o terceiro ano trabalha a produção regional (em especial, café) e o quarto ano enfatiza os processos produtivos (com introdução de estágios para aprofundar a descoberta profissional). As EFAs articulam-se, no Brasil, ao redor da UNEFAB (União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil)18. Entre os dias 3 e 5 de novembro, organizará em Salvador o I Seminário Internacional "Alternância e Desenvolvimento". Em junho de 2000, será realizado em Luziânia (GO) o Congresso Nacional das EFAs, cujo tema será "A EFA e o Desenvolvimento Rural: Parcerias e Sustentabilidade". Esta experiência serve como ponto de apoio para algumas iniciativas de formulação de programas de educação do campo em vários níveis. Era disso que falava o dirigente, no encontro de Muriaé. Esboçava um sistema educacional do campo, envolvendo supletivos, ensino médio e universidades. Seu discurso apontava, contudo, uma profunda crítica a qualquer iniciativa de transferência do sistema urbano para o meio rural. Atacava, em suma, as experiências educacionais brasileiras, voltadas para o campo, que na sua própria experiência pessoal fomentaram o êxodo. 17 Os contornos gerais deste projeto pedagógico aproxima-se da experiência da Escola Dual alemã. Ver texto que produzi intitulado "O perfil do educador do século XXI", disponível no site www.cpp.inf.br . 18 E-mail: [email protected] . Para contatar outras experiências: EFA de Marabá ([email protected]), EFA de Goiás ([email protected] ), EFA de Campo Grande ([email protected]) , EFAP/Perimentral Norte ([email protected]), MEPES ([email protected] ). 7