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Agemir Bavaresco (org.)
METAMORFOSE DO PAMPA: DA CULTURA E SUAS SERPENTES
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................4
A - METAMORFOSE DO PAMPA: DA CULTURA E SUAS SERPENTES......................7
Introdução ................................................................................................................................7
1 - ROTEIRO DIDÁTICO-HERMENÊUTICO DA LENDA .......................................9
1.1 - A NOITE: FORÇA CRIADORA DO PAMPA (Cap. I) ........................................10
1.2 - “ESPERANDO A VOLTA DO SOL NOVO” (Cap. II) ........................................12
1.3 - O DILÚVIO PAMPEANO E A COBRA-GRANDE (Cap. III) ............................13
1.4 - O OLHAR ÉTICO-ANTROPOLÓGICO (Cap. IV) .............................................15
1.5 - DEVORAR OS OLHOS OU O PODER DA LUZ (Cap. V) .................................17
1.6 - O MOVIMENTO DIALÉTICO DA LUZ DOS OLHOS (Cap. VI)......................17
1.7 - A TRANSMUTAÇÃO DA SERPENTE (Cap. VII) .............................................18
1.8 - O FIM E O COMEÇO DA SUSTÂNCIA (Cap. VIII) ..........................................19
1.9 - NO AUGE DA CONTRADIÇÃO (Cap. IX) .........................................................21
1.10 - DO FOGO DA SERPENTE OU A FORÇA DA .................................................22
AUTONOMIA (Cap. X) ................................................................................................22
1.11 - DA SERPENTE E SEU ENCANTAMENTO (Cap. XI) ...................................25
1.12 - DO CUIDADO COM A SERPENTE (Cap. XII) ................................................26
2 – A SERPENTE: DO SÍMBOLO E SUAS LEITURAS ...................................................28
2.1 - UM SÍMBOLO ARQUÉTIPO ...............................................................................29
2.2 - UM SÍMBOLO PSICOLÓGICO ...........................................................................29
2.3 - UM SÍMBOLO SACRO-MORAL ........................................................................30
2.4 - UM SÍMBOLO MÍTICO .......................................................................................31
2.5 - UM SÍMBOLO PAMPEANO ...............................................................................31
CONCLUSÃO ........................................................................................................................34
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................36
B - A LINGUAGEM DO OLHAR NA LENDA M’BOI-TÁTÁ ...........................................38
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................47
2
C - A M’BOI-TÁTÁ COMO MITO ORIGINÁRIO DO PAMPA: UMA LEITURA SOB O
ASPECTO ÉTNICO ..............................................................................................................48
1 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS ACERCA DO ASPECTO
ÉTNICO-CULTURAL DO RIO GRANDE DO SUL ...................................................48
2 – A LENDA DA M‟BOI-TÁTÁ .................................................................................52
Referências bibliográficas .....................................................................................................57
D - A CORRUPÇÃO DO PAGO NA LENDA A MBOITATÁ ............................................58
1 - INTRODUÇÃO - RESUMINDO O TEXTO ..........................................................58
2 - ANÁLISE DA NARRATIVA ....................................................................................60
3 - ANÁLISE DA LINGUAGEM ....................................................................................62
4 – A MBOITATÁ E A INTERTEXTUALIDADE....................................................63
E – A MBOITÁTÁ .................................................................................................................66
F - DER BOITATÁ................................................................................................................72
3
APRESENTAÇÃO
Cláudia Rejane Dornelles Antunes 1
João Simões Lopes Neto (1865-1916) publicou a M`Boitatá, pela primeira vez, no
jornal pelotense Correio Mercantil, em 1909. Um ano depois a lenda saiu em livro, na
primeira parte de Cancioneiro Guasca, editado pela Livraria Universal. Em 1913, foi
incorporado o texto A Salamanca do Jarau, e as lendas ganharam uma edição própria, sob o
título único de Lendas do Sul, ainda pela Livraria Universal.
A partir daí, Lendas do Sul ganhou fama e alçou-se ao lugar de obra-prima na
literatura rio-grandense e brasileira, ganhando várias reedições. Ao lado de Negrinho do
Pastoreio e A Salamanca do Jarau, M`Boitatá demonstra a maturidade intelectual do escritor,
que soube recolher, seja de registros orais da literatura popular, seja de versões escritas, as
principais lendas que habitavam o imaginário do povo, no Rio Grande do Sul e seus
arredores.
A obra literária de Simões conta com apenas três títulos publicados: Cancioneiro
guasca (1910), Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Em 1914, lançou em
jornal, em formato folhetim, Casos do Romualdo, que só sairia em livro 36 anos após a
morte do autor. Em todos eles Simões parece ter utilizado o mesmo processo: dar voz à
tradição popular e transformar em escrita as formas orais repetidas por séculos pela gente
simples do Sul.
É interessante salientar que a idéia de tradição, para ele, não se restringia à
transmissão de fatos passados, mas a toda experiência humana, sempre atualizada, em elo de
continuidade. Pouco importa se ele não foi o criador das lendas ou se, antes dele, José
Bernardino dos Santos, Daniel Granada, Apolinário Porto Alegre, Carlos Teschauer e
Cezimbra Jacques já haviam registrado variantes da M`Boitatá. Foi Simões que ousou dar
tratamento literário ao que antes, por permanecer preso à forma oral, não conseguia
transcender sua condição e encontrar caminhos próprios, adquirindo o selo de literatura.
1
. Doutoranda em Letras na área da Teoria da Literatura pela PUCRS. Autora do livro A poética do conto de
Simões Lopes Neto: o exemplo do conto “O negro Bonifácio”.
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No entanto, apesar de dar o salto capaz de transformá-los em obras de arte, os textos
de Lendas do Sul continuaram ligados às suas raízes e foram aceitos, mais uma vez, pela
coletividade. Desse modo, a matéria folclórica, que ainda hoje é repetida pela gente dos
rincões, encontra eco nas ruas da cidade e até mesmo nas academias. É na versão de Simões
que ela encontra sua maior expressão.
A obra simoniana despertou desde o início o interesse da crítica. A princípio, de
forma mais lenta, dentro da imprensa local. A partir dos anos vinte, foi ganhando espaço no
mercado editorial, mas foi com o lançamento de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, em
1949, pela Globo, que Simões rompeu definitivamente as fronteiras do Estado e passou a ser
discutido por grandes nomes da crítica brasileira. Nos anos 1970, entrou para a academia e
foi recebendo um olhar cada vez mais especializado de estudiosos de diversas áreas. Nesse
sentido, os primeiros estudos, ligados à crítica impressionista e naturalista, foram sendo
substituídos
por
abordagens
historicistas,
estilísticas,
sociológicas,
psicológicas,
psicanalíticas, formalistas, (pós) estruturalistas, desconstrutivistas, geneticistas e, mais
recentemente, filosóficos.
Os ensaios apresentados neste livro são apenas uma amostra do trabalho sério de
pesquisa acadêmica do Grupo de Pesquisa Simoniano do Instituto Superior de Filosofia da
Universidade Católica de Pelotas (UCPel), sob a coordenação do professor Agemir
Bavaresco. O Grupo inova, ao se debruçar sobre um autor local, rotulado com a
classificação de "regionalista", para investigar questões relacionadas a valores humanos
universais, ligados à ética, à cultura, à religião, à identidade e ao esforço humano de
compreensão do mundo e de auto-referencialidade nesse mundo.
Metamorfose do pampa: da cultura e suas serpentes relê a lenda M´boitatá sob o
ponto de vista epistemo-ontológico, em que a metamorfose da serpente é encarada como
evolução dos "olhos da cultura", como metáfora das manifestações culturais. O ensaio de
Mateus Weinzenmann discute a linguagem do olhar na M'boitatá e interpreta a lenda como
metáfora da criação do pampa, destacando a importância dos olhos como instrumento de
leitura do mundo e, ao mesmo tempo, espelho do mundo para quem os vê.
Eduardo de Oliveira, no ensaio "A M'Boi-tatá como mito originário do pampa: uma
leitura sob o aspecto étnico", estuda as etnias presentes na composição da lenda e interpretaa como mito fundador do gaúcho do Rio Grande do Sul, uma vez que cada olho seria uma
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etnia incorporada ao território do pampa, trazendo consigo outra cultura geradora de uma
nova visão de mundo.
Mário Mattos, tomando como instrumento de análise uma tabela-resumo da lenda,
parte do ideograma da narrativa para analisar os mitos presentes na história. Desse modo,
desenvolve a idéia de “corrupção no pago” e de suas ligações intertextuais com outros textos
de Simões ─ como Jogo do Osso, O Boi Velho, Batendo Orelha!, Penar de Velhos, etc. ─
noção que poderia ser estendida tanto a obras da literatura universal, quanto à atual situação
mundial.
Por último, Luís Borges apresenta um fragmento da M'Boitatá, traduzida para o
alemão, baseada na primeira versão simoniana de que se tem notícia, imaginada para um
livro infantil, no manuscrito inédito Terra gaúcha. Mais uma vez a obra de João Simões
Lopes Neto continua respondendo às questões levantadas pelos pesquisadores, reveladas de
forma original por meio da crítica filosófica.
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A - METAMORFOSE DO PAMPA: DA CULTURA E SUAS SERPENTES
Agemir Bavaresco 2
INTRODUÇÃO
Antes de narrar a lenda da Mboitatá 3, como que num prefácio, Simões Lopes
transcreve uma carta de Coelho Neto, datada de 20 de novembro de 1909, em que este
afirma que a “Boi-tatá, também conhecida dos nossos sertanejos, com variantes que muito a
diferençam da que escreveste, deve figurar no folclore gaúcho” (S, 134,3). Temos aqui uma
primeira indicação de que essa lenda tem outras versões, dentre as quais a dos sertanejos.
Porém, o “Simões escritor estava amadurecido; conseguia fazer excelente literatura a partir
de original versão – crioula, no seu invento – de um mito contado de norte a sul no vasto
território de sua pátria” (Diniz, 2003, 169).
Lígia Chiappini apresenta, pelo menos, dez versões da lenda da Mboitatá,
ordenando-as cronologicamente assim: a) José de Anchieta, 1560; b) José Bernardino dos
Santos, 1869; c) Couto de Magalhães, 1876; d) Daniel de Granada, 1896; e) Pe. Teschauer,
1911; f) João Cezimbra Jacques, 1912; g) Ambrozetti, 1917; h) Sílvio Júlio, 1919; i)
Crispim-Mira, s.d; j) Alceu Maynard Araújo, 1973.
Segundo Chiappini, as versões apresentam algumas características em comum: a
Mboitatá é um monstro luminoso que amedronta as pessoas à noite; ela é um “deus irado”
(cf. Granada, 1896) que pune o pecado ou a audácia humana.
As diferenças são as seguintes: a) quanto à identidade: cobra, coisa de fogo, pássaro,
touro, cobra grossa, cobra pequena, cobra inteira de fogo, apenas os olhos são de fogo; b)
quanto à função: protetora dos campos contra os incendiários, guardiã do ouro escondido,
alma penada de quem fez pacto com o diabo, ou de comadre e compadre adúlteros.
2
. Doutor em Filosofia pela Universidade Paris I. Professor de Filosofia/UCPel (Universidade Católica de
Pelotas). A pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Simoniano contribuiu na elaboração deste artigo.
Somos gratos pelo debate hermenêutico e as contribuições analíticas empreendidas durante as reuniões do
Grupo, em especial aos co-pesquisadores: Luís Borges, Eduardo dos Santos de Oliveira e Mateus
Weizenmann.
3
. Optamos pela grafia Mboitatá, porém, manteremos nas citações do texto original de Simões Lopes e outros
comentaristas as diversas variantes tais como: M‟boi-tátá, boi-tátá etc.
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Não obstante, as semelhanças e diferenças, existem alguns pontos polêmicos: para
Câmara Cascudo a Mboitatá não está relacionada com os mitos do ouro, portanto, não é
parente do carbúnculo conforme defendem Granada e Teschauer.
Para Granada, a Mboitatá, o Carbúnculo e a Teiniaguá, normalmente, andam pelos
cerros ou entre as águas dos lagos, onde há tesouros. Ele conclui que o ouro, o fogo, o
encantamento e cobras ígneas costumam estar associadas nas representações dos povos.
Chiappini afirma, embora considerando a polêmica dos especialistas em Folclore,
que é possível aceitar o cruzamento da Mboitatá, no Rio Grande do Sul, com os mitos
ligados ao ouro, como propõem Granada, Teschauer e o próprio Augusto Meyer (cf.
Chiappini, 1988, 159-169). Porém, é certo que a “M’boi-tatá remonta aos mitos indígenas,
com forte influência ibérica. Tal sincretismo seria, anos depois, salientado por Simões
Lopes, em nota introdutória às Lendas do Sul, quando disse que o argumento “vem da
Ibéria, a topar-se com a ingênua e confusa tradição guaranítica” (Diniz, 2003, 168).
Quais dessas semelhanças, diferenças e funções são apropriadas por Simões Lopes
em sua versão da Mboitatá? Considerando as outras tradições, qual é a originalidade da
versão simoniana que, segundo Coelho Neto merece fazer parte do folclore gaúcho? Para
responder a essas perguntas, apresenta-se, primeiramente, um roteiro de leitura da lenda e,
depois, uma análise simbólica da mesma.
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1 - ROTEIRO DIDÁTICO-HERMENÊUTICO DA LENDA 4
Em princípio, “a „cobra de fogo‟ é um mito de todo o Brasil e só apresenta caráter
peculiar neste caso devido à circunstância da versão crioula, com sabor próprio e variantes
que a diferenciam das versões do Norte, conforme observação de Coelho Neto, em carta ao
autor” (Meyer, 1957, 272). Em Simões Lopes há, segundo Augusto Meyer, uma
identificação da “cobra-de-fogo com a cobra-grande (Mboiguaçu) que se alimenta dos olhos
dos bichos”; e uma acoplagem do mito ígneo da Mboitatá com o mito do dilúvio.
Para Chiappini, Simões Lopes, realizou um trabalho de bricoleur ao fazer a síntese
das várias versões dos mitos e cobras (Barbosa Lessa, Silvio Júlio etc.) na lenda da
Mboitatá. Há a transmutação da Mboiguaçu (cobra-grande) em Mboitatá (cobra-de-fogo).
Simões Lopes reúne as duas tradições sobre as cobras, pois ambas apresentam semelhanças:
As duas vivem em água, infundem medo e são associadas à noite.
Segundo Chiappini, a originalidade simoniana está na “particularidade de comer
olhos e desmanchar-se em pedaços, lançando luzes esparsas que, depois se juntam, e que é
um dos aspectos mais bonitos desta versão, não encontrei em nenhuma outra” (Chiappini,
1988, 174-175).
Simões Lopes conhecia, certamente, muitas versões escritas da lenda da Mboitatá
(dos jesuítas, dos românticos do Partenon Literário, dos folcloristas etc.), bem como ouvira
as narrações da tradição oral. De posse, do material escrito e oral soube criar a sua versão,
introduzindo motivos novos e, sobretudo, inculturando-a no pampa gaúcho, enquanto marca
de seu estilo próprio. O espaço social do gaúcho está presente na lenda. Aí estão o laço, o
campeiro, o tapejara, o repontar do gado, o churrasco, o fogão etc. A paisagem é incorporada
pelo estilo simoniano de narrar que consiste nas repetições, nas reticências e nas
comparações, englobando macegas, coxilhas, campos, arroios, rios, sol etc (cf. Borges,
2001, 67s).
Pode-se dizer que “entre o signo do desmembramento supersticioso e da unidade
apenas pressentida, nessa narrativa, move-se Blau Nunes; entre o signo do terror e da calma,
do mundo como incógnita e do mundo explicado, oscila a palavra de Simões Lopes”
4
. Para as citações da lenda utilizaremos a edição crítica estabelecida por Lígia Chiappini, conforme referência
bibliográfica, depois a letra “S”, seguida do número da página e a respectiva linha.
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(Chiappin, 1988,176), que compôs a lenda em 12 capítulos, os quais podem ser divididos em
três partes: A primeira parte engloba o capítulo I ao VI e trata da boi-guaçu e o dilúvio; a
segunda inclui o VII e o VIII e aborda a Mboitatá; e a terceira vai do IX até o XII, iniciando
com o nascimento do sol. Tendo como pressuposto essa unidade narrativa, analisa-se cada
um dos capítulos, identificando a dinâmica da identidade e diferença que são articulados na
oposição ontológica dos elementos naturais e sociais contraditórios. Estes determinam o
movimento dialético e, portanto, a metamorfose cultural permanente de toda realidade.
1.1 - A NOITE: FORÇA CRIADORA DO PAMPA (Cap. I)
A lenda da Mboitatá começa com a noite. Ela é o contexto simbólico deste fenômeno
físico-químico causado pela combustão de gases, só visível à noite: a cobra-de-fogo. Há uma
passagem do mundo natural “línguas de fogo” para o mundo fantasmagórico imaginário.
Aqui, reside a originalidade lendária, que supera o simples fenômeno natural e o projeta para
a criação simbólica. Trata-se de uma personificação dos fenômenos naturais através de
deuses e mitos originais.
A narração inicia com a clássica expressão: “Foi assim” que faz parte das narrativas
lendárias. Remetendo a um tempo mítico e impreciso. Existem repetições que denotam uma
oralidade sonora da lenda: “muito”, “sem e nem”; o contar repetitivo da lenda com o acento
profundo que imita o badalar do sino na noite imemorial do tempo, que se perde na história
dos povos e culturas milenares como “semmm e nemmm”. O eme repetido remete ao
interior inconsciente: “Noite escura, como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada
e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria” (S, 135, 5). Cinco
vezes é repetida a palavra monossílaba “sem” e uma vez “nem”. Este termo imita o badalar
do sino que marca o tempo. O primeiro capítulo estrutura-se segundo o tempo noturno:
a) “Houve uma noite tão comprida” denota um tempo prolongado, a tal ponto que há
o receio de que a luz jamais retorná. Após, caracterizar o aspecto da duração da noite, o
autor descreve-a como sendo a total ausência de luz, vento, ruídos e odores. Pode-se dizer
que a noite é o nada lógico que fecunda a tradição coletiva mítica dos povos, no grande
espaço temporal: “Ao mergulhar no tema da M’boi-tatá, o escritor de pronto deparou-se com
a magnitude e a antigüidade que a envolviam, o que justifica a linguagem bíblica e os
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boleios iniciais das frases, como se estivesse a sondar a narrativa, antes de mergulhar por
completo na essência do relato” (Diniz, 2003, 168).
Há, segundo Chiappini, nos mitos por ela pesquisados um acento na noite, “quando
os homens estavam cansados de viver num dia eterno”. Porém, em Simões Lopes, ocorre o
contrário, destacando-se, o “nascimento do dia, da luz, quando os homens estão cansados de
viver numa noite eterna” (Chiappini, 1988, 171).
b) A situação do pampa: Simões Lopes descreve num parágrafo a situação sócioeconômica do mesmo. Fala-se que os “homens viveram na tristeza dura”, porque faltava
comida (“churrasco não havia”) e o único alimento era a “canjica insossa” (S, 135,6-9). Este
parágrafo sintético possui um indicador do contexto do pampa. Na época em que o autor
escreve a lenda (1909), Pelotas vive uma crise econômica: “No período que se iniciou com a
República e que se estendeu até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a pecuária gaúcha se
encontrava estagnada, sem maior avanço de suas forças produtivas” (Pesavento, 1993, 215).
A crise atingia a criação do gado e a tecnologia da charqueada, o que se refletia em nível de
produção e mercado (cf. Bavaresco, 2003, 95-97). Há um declínio lento do fogo, como num
paralelo do declínio econômico da região: “Não mais sopravam labaredas nos fogões” e “os
borralhos estavam se apagando”. E assim, permanecem os homens reunidos, ao redor do
fogo, quase que estáticos, olhando as brasas se consumirem, porque a noite da estagnação
sócio-econômica era interminável.
c) “E a noite velha ia andando”: A escuridão é fechada, a tal ponto, que nenhum
conhecedor de caminhos poderia cruzar pelos trilhos do campo, nenhum cavalo seria capaz
de encontrar o local onde se criou, enfim, nem o guaraxaim encontraria o rastro. Apesar da
insistência da escuridão que parece tudo aniquilar, há o movimento: “A noite ia andando”.
A noite é o foco central da primeira parte da lenda. Costuma-se afirmar que a noite é
feminina, associando-se as duas como sendo forças criadoras.
Na história, a mulher assume as mais variadas representações: Por exemplo, planeja
e “faz a teia” ardilosa em Penélope; na literatura francesa a deusa Razão é identificada com
uma mulher; na Bíblia, a mulher assume figurações contraditórias, de um lado, sendo a
causa do mal original em Eva e, de outro, a “salvadora” em Maria. Como a mulher é
representada na literatura simoniana?
O viés feminista de Hilda Simões Lopes interpreta que, na literatura simoniana, o
feminino é o racional. O masculino conduz quase sempre à tragédia pampeana, enquanto a
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figura feminina é a que restabelece a paz e o entendimento na lida campeira. O “gaúcho
macho” é o rude, quase insensível. Ele é aproximado à força irracional, muito próximo da
força bruta da natureza. A mulher é, de fato, quem administra a fazenda, pois é ela que
permanece em casa, enquanto o homem sai para guerrear. Ela é descrita como a que pondera
e reflete diante das situações de impasse. A mulher é a força criadora que ordena o mundo
pampeano. Ao contrário, Flávio L. Chaves entende que, na maioria dos textos simonianos
(cf. No Manantial, Jogo do Osso, etc), a mulher representa o mal, o desequilíbrio ou é fator
desencadeante da tragédia. De fato, as duas posições remetem à dialética entre o público e o
privado. A mulher, em nível privado, é a que organiza racionalmente o espaço do lar e da
grande família na estância. Porém, na esfera pública, palco dominado pelo masculino, onde
se desenrolam a guerra, os confrontos de poder, a mulher é um fator de disputa e confrontos,
desencadeando as forças inconscientes da violência e morte, isto é, a tragédia pampeana.
1.2 - “ESPERANDO A VOLTA DO SOL NOVO” (Cap. II)
A noite prolonga-se, enquanto, o primeiro capítulo privilegia o olho, enquanto órgão
dos sentidos, o segundo destaca o ouvido, que escuta o “silêncio morto” que é interrompido
pelo canto do quero-quero. Este é o sentinela da esperança dos gaúchos “amontoados no
redor avermelhado das brasas”, aguardando a luz do dia “que devia vir e que tardava tanto”.
a) Aqui aparece, pela primeira vez, o verbo “minto” que será repetido mais duas
vezes nas partes III e IX. Ele contradiz outra expressão “foi assim” que exprime a verdade, a
certeza. Instaura-se, portanto, uma contradição: “foi assim” X “minto”. O que é a verdade e
a mentira para a lenda? Para a antropologia positivista, o mito é um pensamento primitivo,
destinado a desaparecer com a evolução da ciência. Não é assim para a antropologia
fenomenológica, que compreende o mito/lenda como um modo de contar histórias em que o
símbolo possibilita o aparecimento de novos sentidos. O acesso à verdade dá-se mediante
práticas situadas no modo de viver do gaúcho, através dos hábitos, da tradição, do modo
ético do cuidado, dos valores, das necessidades e dos bens comunitários. A verdade não é
um mero ato conceitual, baseado em normas formais e na identidade proposicional (cf.
Giddens et alii, 2003, 190).
b) “Era o téu-téu ativo”: Em meio ao silêncio, aparentemente morto, ouve-se uma
voz de vida que irrompe. O téu-téu é uma figura onomatopaica que reproduz o canto do
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quero-quero. Ele acorda o pampa, anuncia a “volta do sol novo”. Ele “agüenta a esperança
dos homens”, ou seja, ele sustenta a esperança dos homens, aguardando a volta do sol. Só o
quero-quero é o que se ouve na noite interminável do pampa, “fora disto, tudo o mais era
silêncio”. O téu-téu representa a chama de vida com seu canto, enquanto, ao redor nada de
movimento, ou seja, “nem nada”. A narração culmina na dupla negação: “nem nada” (S,
135,27), semelhante ao texto bíblico, em que a terra era sem forma e vazia. A dupla
negação, em Lógica, é uma afirmação. Simões Lopes, ao dizer “nem nada”, deixando apenas
o canto vigilante do téu-téu, parece dizer que do fundo de toda melancolia ou pobreza
sempre resta a vida por um fio de esperança, resistindo até o fim.
Nesta parte, como na anterior, o papel da negação manifesta-se na perda de todos os
órgãos dos sentidos: Nem gosto, nem tato, nem vista, nem ouvido, nem voz (S, 135,5); e na
ausência de movimento (S, 135, 27). Porém, a dupla negação anuncia uma afirmação do
movimento através do dilúvio e da boi-guaçu.
c) A narrativa funda os tempos, na tensão dialética entre o natural e o lógico. Aqui,
eles são representados pela noite e a luz. Temos o fiat lux a partir do “nem nada” que é uma
dupla negação que põe uma afirmação, ou seja, “no princípio está a ação”. A criação
pampeana dá-se no movimento do “nem nada” como força criadora da dialética originária
entre luz e trevas, entre a noite e o dia. O divino pampeano revela-se na narrativa telúrica, ou
seja, é a via física que permite o gaúcho conhecer a Deus (cf, Bavaresco/Borges, 2003).
A dialética, entre luz e trevas, acontece nos dois elementos que perpassam os doze
capítulos, tendo na cobra-de-fogo a representação deste embate; luz e trevas estruturam as
grandes partes da lenda, bem como organizam o microcosmo dos contrários: terneiros e
pumas, tourada e potrilho, perdizes, guaraxains etc.
1.3 - O DILÚVIO PAMPEANO E A COBRA-GRANDE (Cap. III)
Quanto ao mito do dilúvio, é difícil determinar no texto de Simões Lopes o que é
procedente da tradição bíblica e o que pertence aos dilúvios, narrados na tradição indígena
pré-cristã, porque, segundo C. Lugon, “uma vez instruídos na religião cristã, os neófitos
passaram a dar melhor expressão às suas anteriores idéias religiosas” (Apud Chiappini,
1988, 170, nota 20).
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No mito do dilúvio, há o nascimento do dia, surgindo a luz, após a existência de uma
longa noite. “Parece possível afirmar, a partir daí, que Simões Lopes teria aproveitado tanto
o dilúvio como a noite eterna para associá-los à Mboitatá que surge nas trevas, iluminandoas repentinamente” (Chiappini, 1988, 171).
O tema do pecado, da punição e do incesto, característico da tradição cristã, não
aparece na versão simoniana, aproximando-o, portanto, da tradição indígena. A referência ao
dilúvio está, usualmente, associada ao pecado, porém, em Simões Lopes isto não é explícito.
a) Inicia-se esta parte, novamente, com a afirmação: “Minto”. Aqui, pode remeter ao
fantástico mundo descritivo, em que a verdade é uma busca. O “minto” não significa
mentira, mas uma abertura para o despertar da consciência, simbolizado na própria cobra. A
humanidade despertando da natureza, na misteriosa transcendência imanente do pampa
gaúcho. O “comer os olhos” é o processo de assimilação da luz que produzirá luz, no
crepuscular amanhecer da noite diluvial.
b) “Desabou uma chuvarada tremenda”: Aqui, tudo gira em torno da água. Ela é o
assombro original que constitui o dilúvio simoniano: “Tudo misturado, no assombro” de ver
os campos inundados, as lagoas subirem “e todo aquele peso d‟água correu para os arroios,
que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das
coxilhas” (S, 136,5). A descrição situa o cenário do pampa (coxilhas, minuano, estrelad‟alva, banhados, terneiros, tourada, perdizes), preparando a introdução da boi-guaçu que foi
despertada pela água que invadiu sua toca: “Ela então acordou-se e saiu, rabeando”.
b) A serpente e os olhos: A boi-guaçu (na língua tupi: cobra-grande) come, somente,
os olhos. “Só comia os olhos e nada, nada mais” (S, 136, 16). Na noite silenciosa e escura,
os olhos, tais tições, começam a se abrir. Aqui, aparece a boi-guaçu que será identificada
como a devoradora de olhos até a parte VI. Depois ela se transformará em Mboitatá. As
águas, após inundarem tudo, começam a baixar. Então, “a carniça foi cada vez engrossando,
e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia”.
c) A luz bíblica e a serpente simoniana: Na narração bíblica a serpente aparece não
no dilúvio, mas no mito da criação: “A serpente era o mais astuto de todos os animais dos
campos, que Iaweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós não podeis
comer de todas as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer
do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus
disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”. A serpente disse então à
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mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos
olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Bíblia, Gênesis, 3, 15). A cobra é um símbolo ambíguo, pois é aquela que incita Adão e Eva saírem das trevas e
abrirem os olhos, isto é, ingressarem na luz. A abertura dos olhos representa a tomada de
consciência, pois o homem e a mulher podem discernir entre o bem e o mal, ou seja, passar
tudo pela luz da consciência.
A serpente, porém, pode ser a “máscara para um ser hostil a Deus e inimigo do
homem. Nela a Sabedoria, e depois o NT e toda a tradição cristã, reconheceram o
Adversário, o Diabo” (Bíblia, 1985, nota “h”, 34). Em Simões Lopes, a cobra não tem
ligação com o pecado ou alguma conotação de ordem moral como na narração bíblica, mas é
um animal ligado à luz, pois o fato de comer os olhos, dá-lhes a substância luminosa. De
fato, Simões Lopes une os dois mitos: O da luz e o dilúvio numa associação original, pois
das trevas surge a luz da serpente.
d) O dilúvio bíblico e o dilúvio simoniano: Em Gênesis 6,9-7,5, conta-se o mito do
dilúvio. Esta narração inspira-se nas inundações periódicas dos grandes rios que ocorriam no
vale mesopotâmico. A narrativa do dilúvio é típica das antigas culturas do oriente médio. Os
autores bíblicos apropriam-se destas tradições, dando-lhe o seguinte significado: O dilúvio é
um retorno ao caos primitivo como no primeiro capítulo do livro do Gênesis, em que Deus
cria o mundo e a história do nada, ou seja, do caos. Aqui, o dilúvio é uma conseqüência do
pecado humano. O mito do dilúvio representa, de fato, uma nova criação divina, em que
Deus aceita a ambigüidade humana, que é responsável pela ambigüidade no mundo e na
história. Assim, experimenta-se a graça na história, não obstante o contínuo pecar da pessoa.
Vê-se que o dilúvio, na lenda simoniana, pode ser associado ao dilúvio bíblico, pois
ambas são narrações mitológicas para compreender as inundações cíclicas e, por certo,
causavam a destruição da natureza, animais e pessoas. O dilúvio bíblico é uma nova criação,
enquanto o dilúvio simoniano é um retorno cíclico da Mboitatá por ocasião das enchentes e
da mudança de estações: “E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez
entocada. Mas no verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário” (S,
138, 10).
1.4 - O OLHAR ÉTICO-ANTROPOLÓGICO (Cap. IV)
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O ato do olhar tem uma função física e espiritual: “O olho, órgão da percepção
sensível, é natural e quase universalmente o símbolo da percepção intelectual (do conhecer,
saber e, também, possuir). A função do olho físico é captar a luz; a do olho – janela da alma
– captar e emitir uma luz espiritual” (Chiappini, 1988, 183). Considerando esta dupla função
dos olhos, este capítulo é composto de três momentos:
a) O texto começa com uma frase que parece um princípio biológico: “Cada
bicho guarda no corpo o sumo do que comeu” (S, 136,19). A partir desta sentença, seguemse vários exemplos de animais que, ao assimilar um determinado alimento, mantêm em seu
organismo as propriedades do mesmo, sobretudo, exalando o cheiro do pasto ou da carne
comida.
b) Depois, Simões Lopes aplica este princípio para o ser humano. Assim
como os animais assimilam o mundo pelo alimento, as pessoas assimilam as culturas pelos
olhos, guardando na mente o que viram no mundo: “Assim também, nos homens, que até
sem comer nada, dão nos olhos a cor dos seus arrancos” (S, 136, 23). Aqui, há uma
antropologia do olhar em dois sentidos: 1º) Os olhos revelam as emoções e impulsos que
estão no interior da pessoa. Disto, deduz-se uma ética do olhar: a) “O homem de olhos
limpos é guapo e mão-aberta”, isto é, o olhar brilhante caracteriza-se pela valentia e a
generosidade; b) “Cuidado com os vermelhos” e continua, “mas cuidado com os amarelos”.
Há uma recomendação de se ter prudência com estas duas cores, reiterando de certa maneira
o grau de periculosidade que este tipo de olhar pode inspirar; c) Enfim, “toma tenência doble
com os raiados e baços!”(S, 136,25). Se os anteriores exigiam cuidado, aqui se alerta para
tomar uma dupla precaução, pois estes são embaciados, portanto, não deixam transparecer o
que se passa no seu interior.
Se, no primeiro sentido, o olhar é uma janela da alma, no segundo o olhar é um
espelho do mundo, pois a vista “guarda no corpo o sumo do que comeu” : 2º) O olhar é uma
forma de representar a realidade. O olhar realiza um duplo movimento: Representa o mundo
e identifica-se com o mundo pela assimilação. Há um paralelo entre a assimilação orgânica e
o olhar. O olhar constrói a identidade com o meio onde está imerso. O sujeito, diz Ortega y
Gasset, é o resultado do eu e as suas circunstâncias.
c) O olhar humano reproduz o real, “assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu” (S, 136,27), assimilando a luz dos mesmos. Simões Lopes
introduz o tema do olhar humano, elevando o dado natural-físico para o seu momento
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espiritual-humano. Há uma aprendizagem natural que inspira o modo de ser humano. A
antropofagia simoniana compara a boi-guaçu “que tantos olhos comeu” com o olhar humano
que, ao ver o mundo, identifica-se com ele, podendo reproduzi-lo ou modificá-lo. Deste
processo, podem ser geradas novas sínteses culturais, luz para as trevas ou, então, ser apenas
uma reprodução mecânica do mesmo.
1.5 - DEVORAR OS OLHOS OU O PODER DA LUZ (Cap. V)
Há na cobra-grande uma voracidade insaciável em devorar olhos. Deles depende seu
poder. A luz dos olhos de “tantos, tantos” animais que ainda guardavam um “rasto”, um
“pingo” de luminosidade. O poder da cobra-grande sustenta-se da luz. Ela precisa da luz do
dia, para alumiar as trevas da “noite grande”. A luz é o símbolo de poder.
a) “Um rastilho da última luz”: A vontade devoradora da cobra-grande é comer todos
os olhos que ainda guardavam um resto de luz “antes da noite grande que caiu”. Ela precisa
de “tantos, tantos!” olhos para continuar a iluminar “a noite grande”.
b) “Um pingo de luz cada um”: Os olhos foram “sendo devorados” (sic) num
crescendo: “[1] No princípio, um punhado, [2] ao depois, uma porção, [3] depois um
bocadão, [4] depois, como uma braçada...” (S, 136, 32-33). E a cobra-grande foi recolhendo
de cada olho “um pingo de luz”, como que sugando a luz da sobrevivência.
Devorar os olhos é o ato de assimilar o mundo. É o busca incessante de apropriar-se
do mundo. A boi-guaçu representa a vontade de dominar o mundo pelo ato de devorar os
olhos. O detalhe é que todos os olhos guardavam um “pingo de luz”, ou seja, a cobra-grande
necessita alimentar-se da luz para viver. No entanto, isto contém uma oposição: “A natureza
do olho é solar e ígnea, como a Mboitatá – cobra de fogo. Mas, também, lunar e sombria
como sua luz azulada – a luz que cega” (Chiappini, 1988,183) e cessa de brilhar.
1.6 - O MOVIMENTO DIALÉTICO DA LUZ DOS OLHOS (Cap. VI)
A aventura da boi-guaçu chega ao seu fim. A esta altura da narração, alcança-se o
fim da primeira parte, pois a segunda é dominada pela Mboitatá. O verbo “ir” organiza este
capítulo da lenda. Aparece três vezes a forma verbal “vai”, mostrando o movimento da boiguaçu. Há uma dialética do movimento da luz, que permite a mudança da boi-guaçu em
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Mboitatá. Ela é a expressão do movimento em meio à “noite grande”, isto é, a ação que
ainda resta para iluminar e “guardar a esperança” do pampa.
a) “E vai”, nega o que a boi-guaçu não tem: Ela não tem pêlos, nem escamas,
nem penas, nem casca e nem couro. É isto que lhe permite tornar-se, totalmente,
transparente.
b) “Vai”, afirma o que a boi-guaçu é: O seu corpo “foi ficando transparente,
transparente, clareando miles de luzezinhas” (S, 137,1). Os olhos são a luz do corpo da boiguaçu, que se alimentou de “cada pequena réstia de luz”. Assim, ela tornou-se translúcida,
gerando uma identificação entre seu corpo e o mundo.
c) “E vai, afinal” mostra o que a boi-guaçu veio a ser: [1] “Já era uma
luzerna”, ou seja, uma grande luz; [2] “Um clarão sem chamas”, porque irradia uma luz sem
consumir-se; [3] “Já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria” (S, 137,5),
sinalizando o ocaso da boi-guaçu. Ela atingira o apogeu da luminosidade; agora, começa a
mutação para outra realidade. A luz amarelada é “triste e fria”, porque aponta para o ocaso.
A luz enfraquece e diminui o calor, tornando-se fria.
A boi-guaçu comera tantos olhos que ela acabara por ficar completamente
transformada em pura luz. O movimento dialético da realidade lógica é assim: Primeiro,
vem o movimento da identidade da boi-guaçu que assimila o mundo, depois de negação, e,
finalmente, da afirmação ao máximo, que conduz a uma nova realidade diferente de si
mesmo (Hegel, 1995, p. 159-169). Aqui termina a aventura da boi-guaçu e realiza-se a
passagem para Mboitatá.
1.7 - A TRANSMUTAÇÃO DA SERPENTE (Cap. VII)
Aqui ocorre a metamorfose da boi-guaçu em Mboitatá. O termo Mboitatá é repetido
cinco vezes para marcar a mudança que se opera no interior da espécie. Simões Lopes opera
uma fusão de duas tradições sobre a serpente que resulta numa evolução biológico-cultural.
Há uma criação literária que corresponde a uma mudança cultural na elaboração de uma
nova versão da tradição sobre as lendas da serpente.
a) “Foi assim [...] quando pela vez primeira viram a boi-guaçu tão demudada”: Esta
segunda parte, começa, como a primeira, com a expressão “foi assim”. De fato, trata-se de
um novo começo, pois, agora, narra-se a aventura da Mboitatá. As pessoas não reconhecem
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mais a boi-guaçu, por isso chamam-na de Mboitatá, que tem, como característica, a
luminosidade do fogo.
b) A fome da cobra de fogo: Ela é “faminta sempre que nem chimarrão” (S, 137,11).
Segundo o pesquisador e escritor Mário Mattos “a menção , na lenda, ao chimarrão faminto,
não se refere à bebida, mas ao cão chimarrão. No tempo da caça aos couros, a abundância
de carne fez crescer as matilhas de cães que haviam voltado à vida selvagem no pampa.
Quando famintos, atacavam as próprias comitivas de viajantes, daí a comparação com o
perigo da Mboitatá rondando os ranchos dos gaúchos”. Ela continua a manter o instinto
devorador da boi-guaçu. Novamente, como na primeira parte, aparece o quero-quero. Antes,
ele é o vigia da noite que sustenta a esperança do nascimento da luz. Agora, porém, ele tem
a função de “bombeiro” (S, 137,12) que alerta para o perigo. O cantar do téu-téu chama a
atenção do povo para tomar cuidado com a cobra devoradora.
c) Curiosidade e medo: As pessoas diante do fenômeno manifestavam, ao mesmo
tempo, o sentimento de curiosidade e de medo. À primeira vista, todos querem ver a cobra,
depois ficam pasmados diante daquele “grande corpo de serpente, transparente [...] que
media mais braças que três laços de conta e ia alumiando baçamente as carquejas” (S, 137,
15). Ela também é luminosa e transparente como a boi-guaçu. Diante do monstro, o povo
chorava, pois a Mboitatá “ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças
a enfaravam”. A reação é de pavor porque a serpente é perigosa, uma vez que ela, agora,
privilegia os olhos das pessoas: “E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo”.
Na segunda parte da lenda, levanta-se a hipótese da presença de um elemento
epistemo-ontológico: A metamorfose da serpente é, ao mesmo tempo, a evolução dos “olhos
da cultura”. Os olhos são a expressão do conhecimento que se materializa nas várias
expressões culturais. Eles tornam o conhecimento visível no ser da cultura.
1.8 - O FIM E O COMEÇO DA SUSTÂNCIA (Cap. VIII)
O capítulo inicia num tom coloquial: “Mas, como dizia”. É o contexto da conversa
entre gaúchos ao redor do fogo. Aqui, circula o chimarrão enquanto se alimenta a oralidade,
guarda-se a memória das origens, transformam-se as tradições e atualiza-se o sentido da
cultura. É o movimento do lusco-fusco dos costumes representados no nascer e morrer da
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Mboitatá. Esse processo de vida-morte da cobra é a representação da morte-vida da
sustância de uma cultura que se articula assim:
a) A Mboitatá e o téu-téu: Os dois animais parecem estar em duelo. A primeira,
buscava desesperadamente devorar os olhos das pessoas, dos quais dependia para continuar
a ser o “clarão” na escuridão. Enquanto, o segundo “cantava de vigia em todos os flancos da
noite” do pampa. A Mboitátá alimenta-se de luz e o quero-quero é o guardião da noite. “Só
um pássaro, o quero-quero, usado como contraponto às trevas absolutas, cantava de vez em
quando do fundo da escuridão, vigiando sempre, esperando a volta do sol, que devia vir e
que tardava tanto” (Diniz, 2003, 169).
b) A sustância: Eis que repentinamente e de uma forma lacônica é anunciada a morte
da Mboitatá: “Passado um tempo, a boi-tátá morreu” (S,137,22). A explicação é a seguinte:
“De pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas lhe não
deram sustância”. Não foi suficiente a quantidade de olhos devorados, embora lhe tivessem
saciado a fome, mas não lhe deram a essência vital. A causa é a falta de sustância, “pois que
sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos”. Os olhos
mortos não tinham sustância. Esta só se encontra nos olhos vivos. A luz que ainda os olhos
mortos retinham foi aos poucos desaparecendo e, com isso, também a cobra de fogo foi se
apagando.
c) “Tudo o que é sólido se desmancha no ar!” Em seguida, Simões Lopes descreve
como acontece a morte da Mboitatá: “Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça
[...] o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez”(S,
137,26). A Mboitatá desmanchou-se como os outros couros, carnes e ossos. É o fim das
peripécias da cobra que parecia onipotente, invencível e, no entanto, desfaz-se “como cousa
da terra”, ou seja, como o pó.
d) “O sol apareceu de novo!”: Há uma inversão, pois com a morte da Mboitatá, a luz
volta a brilhar. Antes, a cobra de fogo era o sol da grande noite diluvial que envolvia o
pampa. Ela como que fazia a síntese dos opostos entre a luz e as trevas, ao manter a
luminosidade em meio à noite. Pois, agora, a “grande noite” deixa lugar ao “sol novo”. A
coincidência é tão grande que “pareceu cousa mandada”, algo como destino. No entanto,
aqui está o movimento dialético da noite e a luz que anunciam o fim do dilúvio e a chegada
do dia com o sol radioso: “O sol apareceu de novo!” Simões Lopes introduz, afirma
Chiappini, o mito do nascimento do sol que não existia na versão guaranítica. Esta apenas
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contava que a luz da Mboitatá, desmanchando-se, espalhava-se em muitas luzes pelos
campos. A versão simoniana converge, porém, para o nascimento do sol.
As ruínas de uma civilização são o corpo da tradição de se desmancha, tal a serpente
que se esvai como pó pela terra. Morte e vida de uma cultura é o próprio jogo de opostos
simbolizados pela noite e o sol. A cultura como a Mboitatá vai digerindo tudo o que
encontra de luz perdida nos olhos da tradição para ainda ter “sustância”. Assim, a alma da
cultura é composta pela sustância da luz que fica gravada nos olhos das obras que
permanecem e perecem. O passado morto é sustância para que a luz volte a brilhar. E a
aurora anuncia no horizonte que o “o sol vai subir” novamente, preparando um novo ciclo
cultural que virá como a Mboitatá, rastejando, anualmente, pelo pampa.
1.9 - NO AUGE DA CONTRADIÇÃO (Cap. IX)
Os nove primeiros capítulos narram a primazia da noite. Há uma ausência da luz. A
única luminosidade é produzida pela Mboitatá. No entanto, com a morte desta, morre a noite
e nasce o dia, começando a terceira parte da lenda. O fenômeno da cobra de fogo acontece à
noite. Seu movimento desenvolve-se nas trevas. Se a escuridão é a ausência de tudo, a
Mboitatá é, ao contrário, a presença ativa no pampa.
Aqui, aparece pela terceira vez a expressão “minto” que não tem uma conotação
moral ou algo que signifique engano e erro. Ao invés, o “minto” sempre é introduzido pelo
autor, para introduzir uma contradição na narração: No capítulo II, o “minto” opõe-se ao
“silêncio morto” da escuridão através do canto vigilante do “téu-téu ativo”; no capítulo III, o
“minto” opõe-se à “última tarde em que houve sol” pela “chuvarada tremenda”, ou o dilúvio
pampeano que arrasa tudo e prepara o advento da boi-guaçu; enfim, aqui no capítulo IX, o
“minto” opõe-se a “noite grande” para afirmar o nascimento do dia através do sol. A
oposição do “minto” simoniano vai crescendo até elevar-se ao máximo da contradição que
cria uma situação nova: o nascimento da luz. O silêncio, o dilúvio e as trevas são superadas
pelo sol que sobe no horizonte, lentamente, afirmando a tensão dialética “para igualar o dia e
noite, em metades, para sempre”(S, 138, 37). Porém, a contradição segue o caminho lento e
paciente da história da cultura: “Apareceu sim [o sol], mas não veio de supetão”(S, 137,33).
Ele aparece assim:
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a) “Primeiro, foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas”: As
trevas são afrontadas pela luz das estrelas que começam a despontar ao longe, na aurora de
um novo amanhecer.
b) “Depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma
lista de luz”: O avançar da claridade avoluma-se mais e mais e a lista de luz aparece.
c) “Depois a metade de uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu,
subiu”: Enfim, eis o sol que é descrito repetindo três vezes o verbo “subir” para expressar o
movimento ascendente da roda de fogo afirmando a soberania sobre o dilúvio.
d) “Até vir a pino e descambar, como dantes": A elevação do sol alcança o seu
zênite, para depois tornar a descer, no seu movimento gravitacional harmonioso.
e) “E desta feita, para igualar o dia à noite, em metades, para sempre”: O equilíbrio
entre as trevas e a luz é estabelecido, após a longa noite dominada pela serpente. Dia e noite
divididos em partes iguais para sempre. O movimento cíclico da natureza alcança o seu
ponto de equilíbrio, ordenando o dia e a noite.
Entre os mitos guaranis narra-se o nascimento do dia de modo semelhante ao do
Gênesis bíblico. A criação da luz é descrita no livro do Gênesis depois das trevas: “No
princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o
abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: „Haja luz‟ e houve luz.
Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz „dia‟ e às
trevas „noite‟” (Gn. 1,1-3). Simões Lopes parece seguir a tradição bíblico-guaranítica,
porém, introduz no coração da noite a serpente luminosa. A noite traz no seu interior a
oposição luminosa da cobra de fogo que lhe dá o brilho narrativo, culminando a criação do
pampa desta contradição entre luz e trevas.
1.10 - DO FOGO DA SERPENTE OU A FORÇA DA
AUTONOMIA (Cap. X)
O capítulo VIII contou-nos a morte da Mboitatá, no entanto, eis que ela retorna
rastejando pelos campos “arisca e só”. Há uma metamorfose, passando-se do real ao
imaginário, a cobra torna-se um elemento metafísico que está sempre presente na tradição
oral e na versão cultural dos mitos fundadores dos povos. Antes, a serpente extinguiu-se,
pois, os olhos das carniças “não lhe deram sustância”, portanto, “o corpo dela desmanchou22
se”. Agora, ela permanece sozinha, resistindo à inclemência e aos rigores do inverno, para
aparecer como um fogo incontido e abrasador no calor do verão. O fogo da serpente torna-se
um ser com luz própria, não dependendo mais dos olhos das carniças para ter sustância vital.
Ela é o símbolo do próprio gaúcho que resiste à solidão do campo, porém, mantém a
autonomia sem render-se, evitando perder sua identidade cultural e capacidade criadora.
a) O retorno cíclico da natureza e a autonomia da Mboitatá: “Tudo o que morre no
mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo”. O processo natural é
nascer, morrer e renascer. A volta ao elemento de onde saiu, para daí “nascer de novo” é a
lei na natureza. Porém, com Mboitatá não ocorre este fenômeno: “Só a luz da boi-tátá ficou
sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu” (S 138, 4-5). Ela é um animal
diferente, parece ter vida própria. Ela se mantém viva, sem precisar unir-se com a luz de
onde saiu.
b) A solidão e o inverno da serpente: Ela “anda sempre arisca e só” e continua se
alimentando de carniça, devorando a quantidade que tiver para hibernar durante o tempo
frio. Assim, resiste no inverno, dormindo nas tocas, enquanto se completa o tempo das
geadas e do vento minuano.
c) O fadário da Mboitatá no verão: Com a chegada do calor estival, a serpente sai da
toca e “começa então o seu fadário” que Simões Lopes descreve, seguindo o movimento da
mesma, como se estivesse vendo-a ao vivo: [1] “A boi-tátá, empeça a correr o campo,
coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!” Ela continua sendo um fenômeno da
noite, pois depende, como se mostrou acima, da escuridão para ser vista; [2] “É um fogo
amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manantiais”: Há
uma semelhança com a sarça ardente bíblica que também é envolta em chamas e, no entanto,
não se consome: “Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia”
(Ex 3,2). Assim, a Mboitatá adquire características metafísicas, pois não queima e nem
aquece, não obstante possa ser vista; [3] “E rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e
arrebenta-se, apagado”; [4] “E quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo
jeito!” (S, 138, 12-17). O destino da cobra é aparecer. Ela surpreende, inesperadamente, o
gaúcho campo a fora. O fadário da Mboitatá cumpre-se inexoravelmente. Daí, a necessidade
de saber lidar com ela.
d) A maldição: Duas interjeições expressam o embate com a Mboitatá. Elas
concluem este capítulo e fazem a transição para o penúltimo, mostrando o perigo da
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serpente. A primeira é “Maldito!”, destaca o aspecto pernicioso e malvado; a segunda, é
Tesconjuro!”, completa a maldição contra a serpente, condenando-a pelo exorcismo. Aqui,
aparece, pela primeira vez, a serpente sendo a encarnação do mal, isto é, com o próprio
diabo. Nas duas versões da Mboitatá em Recordações da Infância do livro inédito Terra
Gaúcha, transcritas por Carlos F. Sica Diniz, encontramos quatro vezes a menção ao diabo:
“Boi-tatá quer dizer cobra de fogo, mas é o diabo (itálico nosso) – isso é” (1ª versão); “No
verão, nas noites quentes, noites de trovoada, o diabo anda solto”; “É o boi-tatá, o diabo dos
campos”; “Boi-tatá quer dizer cobra de fogo, mas é o diabo, isso é!”( 2ª versão) ( Diniz,
2003, 304-305).
Na tradição simbólica há esta ambigüidade, podendo a serpente ser, ao mesmo
tempo, a representação do bem e do mal. Simões Lopes incorpora em sua narrativa esse
segundo sentido hermenêutico, embora na sua maior parte a serpente seja descrita para além
da compreensão maniqueísta entre o bem e o mal. Antes, ela desempenha uma função
metafísica de “sustância” que sustenta a luz em meio a “grande noite” que cobre o pampa e
o dilúvio que inunda os campos. De fato, essas duas fórmulas são precações para afastar o
mal que é representado pelo demônio. A Mboitatá passa, agora, a ser identificada com uma
força maligna. O autor incorpora as duas tradições semânticas do símbolo da serpente, que
as tradições religiosas-culturais tanto do ocidente como do oriente legaram à humanidade.
No entanto, esta força perigosa é reconciliada pelo gaúcho. Assim, como ele doma um
animal, da mesma forma dominará a Mboitatá.
O capítulo começa com uma sentença sobre o sentido cíclico do eterno retorno que
comanda as leis da natureza e pode-se dizer das culturas. Uma tradição morre, outro sol se
levanta, torna-se incapaz de se renovar e desaparece: É o ciclo das civilizações em declínio e
ascensão na história. Porém, como a luz da Mboitatá, o fogo da cultura permanece e carrega
sozinho a herança na travessia da história dos povos. Desenvolve-se a criação cultural do
pampa no embate entre o mito e o logos; a memória e o esquecimento; a esperança e o
medo; o ofuscamento e a lucidez; o heroísmo e a barbárie. O processo de devorar/criar é um
ato antropofágico de assimilar as culturas alienígenas para recriá-las, atualizando o
imaginário e o sentido do serpentear histórico.
Simões Lopes une o enfoque cíclico com a criação. A Mboitatá rompe o retorno “à
semente de onde nasceu” para “ficar sozinha” e assim, afirma-se como autônoma: “Nunca
mais se juntou com a outra luz de que saiu”. A dimensão cíclica da repetição de alimentar-se
24
da luz dos olhos da tradição é superada pela criação que mantém o fogo, permanentemente,
aceso na chama das serpentes da cultura.
1.11 - DA SERPENTE E SEU ENCANTAMENTO (Cap. XI)
A Mboitatá é um ser quase invisível e perigoso, aparece e desaparece como descreve
o capítulo anterior. Por isso, o encontro com ela é inevitável, podendo ser fatal: “Quem
encontra a boi-tatá pode até ficar cego” (S,138,19). Antes, aconselhava-se lançar
exorcismos, agora, porém, há “dois meios de se livrar” dela:
a) Fechar os olhos: “Ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem
respirar, até ir-se ela embora”: Uma das características da Mboitatá é comer os olhos das
pessoas, como se viu acima. O primeiro modo de enfrentar a serpente, portanto, é fechar os
olhos para que não os veja e, assim, evita-se que os devore.
b) Laçando a serpente: “Ou se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada
grande e atirar-lhe em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a
ilhapa!”( S, 138,20s). Assim, como o gaúcho laça o gado, da mesma forma pode-se prender
a Mboitatá. Uma vez de posse da víbora, o autor descreve todos os movimentos necessários
para dominá-la: [1] “A boi-tátá vem acompanhando o ferro da argola”; [2] “Mas de repente,
batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz”; [3] “Para emulitar-se
de novo, com vagar, na aragem que ajuda”(S,138,25). Aparentemente, a cobra teria sido
presa e vencida pela astúcia do cavaleiro que a conduziu contra as macegas até reduzí-la a
migalhas. O vento etéreo sopra os restos para a toca e assim ela se recompõe de novo na
profundeza da terra. Ela como o tatu mulita refugia-se na toca, porém, a qualquer momento
ele sai e continua a aparecer no campo.
c) Voltando à toca ou o encantamento permanente: A conclusão deste capítulo é
fundamental, pois, ele aponta para o futuro da Mboitatá. A expressão “para emulitar-se de
novo” pode ter dois sentidos (cf. Nota do Glossário em Lopes Neto, 1957, 379) : 1º) Ao ser
laçada, a serpente desaparece como o mulita ao entrar na toca, tornando-se invisível. A
aventura da serpente teria terminado. 2º) Porém, esse ato de ocultar-se na toca é, ao mesmo
tempo, o começo do encantamento. Ela transforma-se de novo em Mboitatá. A serpente
nunca deixará, definitivamente, prender-se. Ela é um ser mítico que escapa do laço do
25
gaúcho, desaparece na toca e aparece de novo no campo como atesta o último capítulo.
Volta de novo, sai da toca e começa o seu fadário campo à fora.
1.12 - DO CUIDADO COM A SERPENTE (Cap. XII)
O último capítulo é o mais curto, sendo quase telegráfico. É composto de um aviso e
de uma constatação:
a) “Campeiro precatado! Reponte o seu gado da querência da boi-tatá: o pastiçal, aí,
faz peste”. Trata-se de uma orientação ao campeiro para precaver-se de levar o gado pastar
no local onde mora a cobra, pois o pasto transmite, aí, doenças aos animais. Porém, se a
serpente espalha peste, ela também tem uma função protetora e pode-se dizer ecológica. Na
História do Rio Grande do Sul, Terra Gaúcha, encontra-se uma observação sobre a lenda da
Mboitatá: “Quem topa com um deles [os pedaços da Mboitatá espalhados pelos campos]
pode ficar cego; mas também protegem os campos contra aqueles que os incendeiam”
(Chiappini, 1988, 174).
b) “Tenho visto!”: É uma frase conclusiva que testemunha o que ocorre com a
pastagem. A lenda termina fazendo referência ao ato de ver, isto é aos olhos, os quais foram
cobiçados durante toda a narração. “Tenho visto” pode ter uma dupla referência: Uma
imediata, diz respeito ao que acontece com o gado que come o pasto onde passa a Mboitatá.
Outra, é um testemunho ocular do fenômeno da Mboitatá. Neste sentido, é uma frase
conclusiva da lenda que tem nos olhos, ao mesmo tempo, o objeto do desejo da serpente e
uma breve análise antropológica do olhar.
A lenda insere-se no movimento cíclico da temporalidade noite-dia-trevas-luz. Para
Granada a lenda da Mboitatá era conhecida das gerações guaranis. Ela percorre, ainda hoje,
as campanhas do Brasil, do Rio da Prata e Paraná, banhando-se nas lagoas e escondendo-se
entre os penhascos e cerros.
A Mboitatá está associada à família da teiniaguá das Missões e do carbúnculo ou o
farol que ilumina as serras das regiões andinas. Elas apresentam características semelhantes:
São pequenas, são de fogo, andam pelos cerros ou lugares onde regularmente há tesouros
imaginários, daí serem representantes da mãe do ouro.
26
Para as etnias fundadoras, o fogo e o encanto são simbolizados pelas cobras ígneas.
A Mboitatá representa na imaginação popular outros conceitos misteriosos da vida e da
morte: luz que vem da morada dos espíritos (cf. Granada, 1896, 120-122).
Após a apresentação deste roteiro didático-hermenêutico, analisa-se, a seguir, a
serpente enquanto, um símbolo. Qual é o seu significado e os diversos níveis de leitura desta
herança coletiva que as culturas criam ou repetem?
27
2 – A SERPENTE: DO SÍMBOLO E SUAS LEITURAS
A serpente é um símbolo universal que está presente nas culturas. Ela possui muitos
significados, conforme as etnias e as experiências históricas dos povos. A versão simoniana
da Mboitatá, insere-se dentro deste diálogo intercultural. Simões Lopes elabora uma
interpretação simbólica da serpente a partir do pampa gaúcho.
O símbolo é uma estrutura de duplo sentido: um de ordem lingüística e outro não
lingüística. O primeiro fornece o sentido ou a significação do símbolo, enquanto o segundo
refere sempre a algo mais do que o sentido imediato que não é dito. Aqui, é o momento não
semântico de um símbolo, ou seja, da sua opacidade. O símbolo situa-se na interface entre a
bios e o logos, pois ele nasce da força da vida e da forma da razão. O símbolo está ligado ao
universo da vida. Por isso, ele se torna linguagem, na medida em que os elementos do
mundo se tornam transparentes à razão. O símbolo só age, quando sua estrutura é
interpretada, daí a exigência de uma hermenêutica mínima para o funcionamento de
qualquer símbolo. Os símbolos mergulham suas raízes no interior da vida do universo,
então, eles nunca morrem, apenas se transformam na temporalidade espacial das culturas. Os
sistemas simbólicos constituem um reservatório de sentido.
“De fato, a história das palavras e da cultura parece indicar que, se a linguagem nunca
constitui o estrato mais superficial da nossa experiência simbólica, este estrato profundo
apenas se torna acessível a nós na medida em que se forma e articula a um nível
lingüístico e literário, uma vez que as metáforas mais insistentes se pegam ao
entrelaçamento da infra-estrutura simbólica e da superestrutura metafórica” (Ricoeur,
1987, 77).
Enfim, Paul Ricoeur reitera que o “símbolo permanece um fenômeno bidimensional,
na medida em que a face semântica se refere à não semântica”, nesta dialética permanente de
relacionar a superfície semântica da metáfora com a profundidade pré-semântica
da
estrutura bidimensional do símbolo( cf. Ricoeur, 1987, 57-81).
A serpente é também um símbolo que é constituído lingüisticamente por um duplo
sentido, a tal ponto que cada interpretação feita pelos mitos nunca esgota a sua reserva de
sentido. A Mboitatá é uma leitura da serpente, sob o ponto de vista da metamorfose dos
olhos, pois a lenda se estrutura no embate entre a sustância da luz e das trevas, metáfora do
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próprio ato de olhar. Há outras dimensões interpretativas deste símbolo tais como, o
arquétipo, o psicológico, o sacro-moral, o mítico, o pampeano etc.
2.1 - UM SÍMBOLO ARQUÉTIPO
A serpente é um arquétipo que mantém em si um significado contraditório, porque
reúne, ao mesmo tempo, as idéias de morte e vida. Por exemplo, em algumas culturas
simboliza o mundo infernal e o reino dos mortos, pois seu habitat são lugares escondidos,
buracos na terra; e, também, significa a vida que se renova devido à sua capacidade de
rejuvenescer, permanentemente, através da troca de pele (cf. Biedermann, 1994, 344).
“Vê-se que a serpente, arquétipo fundamental ligado às fontes da vida e da imaginação,
conservou pelo mundo as valências simbólicas as mais contraditórias em aparência. E as
mais positivas dentre elas, se por um momento foram incluídas no índice da nossa
história, começam a sair dos seus esconderijos para novamente dar harmonia e liberdade
ao homem. A poesia, as artes, a medicina – que sempre tiveram a serpente como
atributo – encarregam-se disso” (Chevalier, 2003, 825).
A metamorfose das forças em oposição presentes no símbolo conduzem à
contradição do sentido positivo e negativo. Assim, é o arquétipo serpente que é capaz de
significar a vida e a morte nesta permanente contradição de morrer e renascer através dos
mitos e tradições orais e escritas. A serpente está ligada à noite fria, pegajosa e subterrânea
das origens, ligando-se à idéia de vida.
2.2 - UM SÍMBOLO PSICOLÓGICO
No sentido psicológico, a serpente é um vertebrado que encarna a psique inferior e o
psiquismo obscuro do inconsciente. Nas origens da vida, encontra-se a serpente que é o
símbolo da alma e da libido (cf. Chevalier, 2003, 814-825).
Há uma referência ao espírito humano no que diz respeito aos répteis, de modo geral:
“Na interpretação simbólica da psicologia profunda, a serpente é, como todos os outros
répteis, um símbolo animal que reporta à pré-história da terra e aos primórdios da história da
humanidade” (Biedermann, 1994, 346). De modo particular, porém, “a serpente vive em
29
uma esfera misteriosa da natureza [...], [ela] é uma imagem de forças primitivas
particulares” que caracteriza a psique humana.
2.3 - UM SÍMBOLO SACRO-MORAL
Constata-se no enfoque bíblico que a serpente é um símbolo moral pois representa
ora o bem, ora o mal. Embora o cristianismo só tenha, na maior parte das vezes, retido o
aspecto maldito da serpente, a Bíblia, no entanto, comprova também o aspecto bom do
símbolo. Assim, no livro dos Números, as serpentes terrestres enviadas por Deus fazem
perecer muita gente em Israel, porém, o povo eleito reencontra a vida através da própria
serpente:
“Então Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras, cuja mordedura fez perecer
muita gente em Israel. Veio o povo dizer a Moisés: „Pecamos ao falarmos contra Javé e
contra ti. Intercede junto de Javé para que afaste de nós estas serpentes‟. Moisés
intercedeu pelo povo e Javé respondeu-lhe: „Faze uma serpente abrasadora e coloca-a
em uma haste. Todo aquele que for mordido e a contemplar viverá‟” (Nm 21,6-9).
De um lado, a serpente é condenada por conduzir ao mal. No livro do Gênesis a
serpente que dialogou com Eva é condenada a arrastar-se ao chão: “Caminharás sobre teu
ventre e comerás poeira” (Gn 3,14). No livro do Apocalipse a serpente é semelhante ao
dragão-cósmico: “Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou
Satanás, sedutor de toda a terra habitada” (Ap 12,15).
De outro, a serpente é o símbolo que garante a vida e o bem do povo. Na era cristã, o
Cristo que salva a humanidade é, algumas vezes, representado como a serpente atravessada
na cruz: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja
levantado o Filho do Homem, a fim de que todo aquele que crer, tenha nele a vida eterna”
(Jo 3,14s).
Portanto, na Bíblia, a serpente é um símbolo moral contraditório, pois, encarna o mal
no mito do paraíso e é meio de cura, de bem, como no fato da “serpente de bronze” que
Moisés ergue no deserto.
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2.4 - UM SÍMBOLO MÍTICO
Entre os povos, a serpente sempre vem associada a um mito que tem por finalidade
compreender os fenômenos físico-naturais. Por exemplo, “para os germanos setentrionais a
serpente que cinge a terra, é o símbolo do oceano que circunda as terras emersas,
analogamente, a seu equivalente egípcio, a monstruosa Apófis, que ameaça a barca do deus
sol” (Biedermann, 1994,344).
Já para os mexicanos, a polaridade pássaro/serpente encontra-se no brasão da cidade
do México, em que se vê uma águia pousada sobre um cáctus com uma serpente nas garras.
Os povos andinos representam a harmonia entre o condor, o puma e a serpente, venerandoos como divindades protetoras do céu e da terra. Na lenda da Mboitatá de Simões Lopes,
aparece também o pássaro (o quero-quero) e a serpente (a boi-guaçu e a boi-tatá) num
embate em meio às trevas do dilúvio pampeano. Segundo Biedermann, esta combinação dos
dois animais simboliza a união dos opostos.
Biedermann opina que “simbolicamente prevalece o papel negativo desempenhado
pela serpente, devido, por exemplo, à periculosidade de sua mordida”. Porém, há um aspecto
positivo da serpente que se encontra associado ao movimento cíclico: O mito da serpente
Uroboro que morde sua própria cauda, em forma circular, significa o eterno retorno do
universo, num processo de nascimento e mudança infindável.
Simões Lopes mostra nesta narrativa da Mboitatá “sua própria fé no mito”, afirma
Chiappini. A narrativa realista do regionalismo brasileiro dessa fase não respeita o caráter
verdadeiro do mito, considera-o como “uma simples crença ingênua de matutos ignorantes”
a ser superado pelo saber científico. “Simões Lopes, ao contrário, ao recompor a unidade
perdida do mito, num todo novo, orgânico e coerente, lhe restitui também a verdade” própria
da dimensão simbólica. (cf. Chiappini, 1988,185).
2.5 - UM SÍMBOLO PAMPEANO
Simões Lopes incorpora muitas tradições e versões da serpente e as reelabora dentro
de seu estilo este símbolo universal. Embora retome e desenvolva vários temas metafísicos
clássicos: a criação, o dilúvio, a sustância da luz, o fogo etc., ele caracteriza-se, porém, por
inserir na lenda, o específico do contexto cultural sul-riograndense:
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- A paisagem e o clima fazem parte do “conjunto animado da fala mágica e singela”:
Minuano, estrela-d‟alva, campos, lagoas, banhados, sangas, lombo das coxilhas, o sol,
estrelas, céu, inverno e verão, mormaços, noite e dia, manantias, aragem, vento, serenada.
- Do fogo: Há uma etiologia da Mboitatá, diante do espanto do fogo fátuo constrói-se
uma “tentativa de explicação da gênese do fenômeno, integrada numa visão de mundo
coerente” (Chiappini, 1988,182).
- Aves: Quero-quero, perdizes, socó, biguá, avestruz.
- Os animais e insetos estão irmanados pelo medo, tornando-se amigos para enfrentar
o perigo do dilúvio: Flete crioulo, terneiros e pumas, tourada e potrilhos, guaraxains,
formigas, cobras, ratões, tambeira, cerdo, bagual, boi, tatu, anta.
- Das árvores, arbustos e ervas: Pasto, flores da mataria, nhanduvai, tacuruzais,
butiás, aguapés, santa-fé, tiririca, carqueja, macega, pastiçal.
- Da etnia: Tapejara.
- Da alimentação: Churrasco, canjica, leite, milho verde, mandioca, chimarrão.
- O espaço social do gaúcho está presente a cada momento na casa e móveis: Fogões,
tições, brasas, querência, rancheiras.
- Dos objetos de trabalho: Laço, couro, ilhapa, ferro da argola.
Esses elementos, acima, enumerados demonstram o grau de incorporação que o
símbolo serpente assume na narrativa simoniana da Mboitatá, a tal ponto que se pode
afirmar que se trata de um símbolo pampeano. O autor, evidentemente, soube dar a própria
ordem e originalidade à narração, organizando-a em doze capítulos, constituídos em três
partes. Simões Lopes cria “um modo seu de falar o coletivo; e de manipular os recursos
genéricos da expressão oral”, ou seja, “o narrador popular[Blau Nunes] que ele cria, tem um
estilo seu de narrar” (Chiappini, 1988,176).
O trabalho de Simões Lopes foi também de atualização do símbolo coletivo da
serpente, aproveitando
“os recursos comuns aos narradores anônimos, tais como as repetições, as fórmulas de
início e fim, as reticências e as comparações. Estas freqüentemente são tentativas de
apanhar, pelo concreto, o desconhecido para construir com eles uma narrativa viva, que
atualize seres e acontecimentos, revivendo no presente, quase ritualmente, cenas do
passado. É todo um patrimônio coletivo, portanto, que se consegue atualizar,
32
improvisando palavras e gestos. É um estilo de ida e volta: diz e rediz, compara mas
nega parcialmente a comparação, corrigindo, alterando”(Chiappini, 1988,177).
Viu-se que a serpente pode ser interpretada em diversos aspectos enquanto símbolo
sócio-cultural. Partindo de sua dimensão arquetípica, a serpente é um símbolo contraditório
que contém o sentido da vida e da morte; depois, esta energia viperina pode ser associada à
própria psique humana em sua força libidinal; assume, em seguida, um caráter sagrado,
delimitando, moralmente, o bem e o mal, para além de sua compreensão exclusivista, pois a
serpente torna-se por um momento um símbolo de maldição e depois de salvação. Assim,
em cada mito recria-se a aventura da serpente que vai perpassando as culturas e recebe em
Simões Lopes também a sua forma específica pampeana.
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CONCLUSÃO
Simões Lopes soube trabalhar com muita originalidade a dimensão da tensão
contraditória da lenda em suas diversas variações internas. Destacam-se as seguintes
oposições que conduzem a metamorfose da Mboitatá e às mudanças culturais:
1. A oposição temporal noite e dia, luz e trevas constitui, juntamente, com a
climática inverno e verão o grande cenário onde está situada a lenda. A cena desenvolve-se à
noite, pois, o fenômeno da cobra de fogo só ocorre na escuridão. Então, o sol é esperado,
ansiosamente, para vencer as trevas e superar o medo da Mboitatá. Neste lusco-fusco da
noite iluminada pela serpente pampeana trava-se a luta de sobrevivência da cobra. “É um
juntar-se, desjuntando-se; um repetir-se inovando; o movimento do cosmos, retomado pela
linguagem
poética,
na
combinação
mágica
da
identidade
com
a
diferença”
(Chiappini,1988,184).
2. A expressão “foi assim” e “minto” reproduz a oralidade, contando a lenda e seus
contrapontos: “Foi assim, uma noite tão comprida” com ausência total de som e movimento;
“Minto: no meio do escuro e do silêncio [...] era o téu-téu ativo”. A inércia é rompida pela
ação até que, finalmente, aparece a luz, superando as trevas, igualando “o dia e a noite, em
metades, para sempre”.
3. A serpente e o quero-quero são uma dupla que representa a combinação dos
opostos, pois a serpente busca, vorazmente, sobreviver comendo os olhos dos animais
mortos e das próprias pessoas, enquanto o quero-quero vigia o pampa, alertando os
moradores do perigo da cobra grande. Um e outro querem garantir a sobrevivência que é
garantida na própria vida cíclica da serpente de „começar o seu fadário‟ sempre de novo no
universo.
4. O princípio da assimilação do outro para poder sugar a sua força, realiza-se no ato
de comer os olhos. Estes, uma vez comidos, iluminam a cobra que, por sua vez, alumia a
noite. O processo dialético da negação do alimento permite a assimilação deste e a
transformação em luz. “As vítimas da cobra grande são, portanto, mortos, mas, por
contraste, o que ela come nelas é o que lhes resta de vida – a vida que traziam nos olhos”
(Chiappini, 1988,181).
5. O olhar que capta o mundo e reproduz sua luz é, ao mesmo tempo, o olho que
revela o íntimo da consciência. “A Mboiguaçu só come os olhos, janelas da alma, o sopro
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vital que lhes vem de dentro e de fora (da alma e do sol)” (Chiappini, 1988,181). A oposição
da reflexão externa e interna das imagens do mundo é o processo que tece o modo do ser
ético-antropológico revelado nos olhos e sua cor: “limpos, vermelhos, amarelos” etc. É uma
referência à psique humana que esconde o inconsciente, porém, a fala do gaúcho trata de
aconselhar com sabedoria prática como os diversos olhares mostram o fundo da alma.
6. A sustância da serpente é o que lhe dá a sobrevida. Ela é composta da luz dos
olhos que, no entanto, por serem de carniças já carregam a morte no seu interior. Deste
modo, a luz é, ao mesmo tempo, “sustância-vida” e “contingência-morte”. Nesta oposição
metafísica, o corpo da serpente viveu e “desmanchou-se, também como cousa da terra”. “O
olhar já implica um duplo aspecto de luz e sombra. Do equilíbrio da luz solar e lunar vive o
universo; do equilíbrio do olho-alma solar e do olho-alma lunar, do instinto e da razão
vivem os homens” (Chiappin, 1988, 183).
7. O movimento cíclico afirma: “Tudo o que morre no mundo se junta à semente de
onde nasceu, para nascer de novo”. Assim, acontece na natureza. Porém, com a Mboitatá há
uma superação do „eterno retorno‟ para a afirmação que se desprende de seu outro. Assim,
há autonomia que não se deixa prender, pois “anda sempre arisca e só”, e não se junta à sua
origem.
O propósito deste estudo foi mostrar a metamorfose da Mboitatá como sendo a
própria metamorfose do gaúcho. Este como a serpente, passa por constantes mudanças. As
culturas dos povos são um processo de permanente metamorfose intercultural, que, na suas
oposições, realizam movimentos cíclicos, porém, no auge de suas contradições são capazes
de desprender-se de seu outro e assim “ficar sozinhas” e irradiar luz própria. As culturas têm
no seu interior serpentes que lhe dão o vigor da “sustância” e a luz do olhar viperino.
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36
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B - A LINGUAGEM DO OLHAR NA LENDA M‟BOI-TÁTÁ
Mateus Weinzenmann 5
Desde os tempos mais arcaicos, o ser humano, rodeado por um mundo infinito de
possibilidades, carente no entendimento do universo circundante, indaga sobre a constituição
da natureza e sua relação com a mesma. Ao observar as transformações naturais, percebe a
relação causal entre os fenômenos: as sementes viram flores ou árvores, as árvores dão
flores e frutos, os frutos geram novas sementes que reiniciam o processo. Mas de onde
surgiu a primeira semente? De que forma se constituiu o mundo e o universo que
vislumbramos tanto de forma estática, condicionado a uma fórmula ou princípio ordenador,
quanto em seu caráter dinâmico, visto a mutabilidade da natureza, o que Aristóteles
explicara como movimento da potência ao ato?
O despontar da filosofia na Grécia Antiga trouxe consigo um turbilhão de respostas à
inquietante dúvida humana sobre a gênese ou princípio constituinte do universo no qual está
inserido. Tales de Mileto, considerado o precursor do pensamento filosófico, afirma ser a
água o princípio originador de toda natureza, enfatizando o caráter vital desta para a
existência de qualquer forma de vida.
Outros pensadores atribuíram a distintos elementos a origem de toda matéria.
Anaximandro chamou de ápeiron a substância material indefinida responsável pela
existência da multiplicidade. Anaxímenes atribuiu este feito ao ar. Demócrito chegou à
concepção de um átomo como partícula microscópica indivisível. Anaxágoras pensou ser a
pluralidade composta por pequenas unidades, contendo um pouco de tudo o que há na
natureza material, enquanto Empédocles colocara quatro elementos (água, fogo, terra e ar)
no ponto de partida de um universo que, sofrendo combinações entre si, pôde ordenar-se
com uma variedade perceptível aos sentidos humanos.
Antes, porém, de o pensamento filosófico dirigir-se a estas questões, em que nível de
especulação sobre o mundo e conformação sobre a realidade o ser humano se encontrava? O
desejo pelo conhecimento do meio com o qual se relaciona sempre dirigiu a humanidade a
encontrar explicações, dentro das limitações de sua vida cotidiana, aos fenômenos
percebidos, mas ainda misteriosos. Esta necessidade aportou a espécie humana ao uso da
5
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Simoniano/Instituto Superior de Filosofia/UCPel.
38
narrativa mítica que, através da linguagem oral, foi transmitida de geração após geração,
assegurando um certo domínio cognitivo do ser humano no seu mundo vivido. Fenômenos
naturais foram povoados por crenças sobrenaturais e esta relação estabelecia o pacto da
humanidade com os deuses ou entidades superiores, manifesto em a natureza como forma de
linguagem.
A racionalidade advinda da filosofia grega imprimiu pouco a pouco no homem o
senso de responsabilidade pessoal, até Protágoras indicá-lo como “o centro de todas as
coisas”, mas no ambiente mítico, a humanidade vivia à mercê das emoções divinas, assim,
um raio poderia ser considerado a fúria de um deus, bem como a seca ou o dilúvio. O mito
não foi exclusividade de um só povo, foi e é um fenômeno universal. A religiosidade está
permeada por este tipo de conhecimento e mesmo o mundo moderno, com o apogeu da
razão e consolidação das ciências, não conseguiu a erradicação deste. O próprio positivismo,
ao creditar à objetividade científica a solução dos problemas humanos e a pregar a varredura
do estágio mítico e filosófico no pensamento, mitificou a ciência, atribuindo-lhe um caráter
sobrenatural. Assim, o mito está intrínseco na estrutura de qualquer sociedade, não é uma
forma de pensar esquecida no tempo. “Os mitos exercem funções sociais como a força que
faz a história ou são a linguagem que permite e possibilita a sociedade viver os fatos em
unidade e coesão superior” (ZILLES, 1994, p. 155). Esta forma de transmissão da cultura é
a própria linguagem e o elemento da identidade da sociedade que a transmite.
O mito bíblico do dilúvio, segundo o qual, por expiação de uma culpa o mundo foi
recriado pela força divina, teve na água o recurso material utilizado para a destruição e
construção, expressando a morte e a vida. É curioso que o pensamento filosófico de Tales
também considerou a água a gênese criadora e acrescentara: “as coisas estão cheias de
deuses”, como explicitação da existência da vida na multiplicidade da natureza que, em
última instância, provém da água. Embora a distância espácio-temporal seja verificável,
observam-se as relações entre o mito e as primeiras explicações filosóficas do mundo antigo.
Em outras regiões do planeta se efetuou igualmente a leitura dos fenômenos e as explicações
cosmológicas enfatizando a presença destes elementos supostamente primordiais. Tanto a
filosofia talesiana, quanto o mito hebraico, conforme exposto, imprimiram na água um
sentido criativo, diferenciando-se, contudo, pelo aspecto de mero instrumento nas mãos de
um Deus uno para o segundo, e contendo, igualmente, um sentido destruidor, e sem o caráter
de especulação filosófica como para o primeiro. Mas o que tem em comum a narrativa
39
bíblica e a filosofia grega com os tantos mitos espalhados pelas mais remotas regiões
habitadas? A presença de elementos, como a água, sem a qual a vida seria impossível, o
fogo, indispensável para o humem se aquecer e assar os alimentos, o ar que se respira e a
terra em que se afirma, levou o ser humano a formular explicações para os mistérios que o
envolviam, baseadas na presença desses elementos, sem, no entanto, abandonar a idéia de
divindades capazes de manipular esta matéria.
De origem indígena, em sua versão platina, o mito da M’ Boi-tátá, a cobra luminosa
devoradora de olhos, começa a ser narrado por Simões Lopes Neto como uma grande e
assustadora noite na qual parecia que a luz jamais voltaria a brilhar. A escuridão lembra a
formação do mundo segundo o livro do Gênesis, visto que este primeiramente esteve imerso
nas trevas até que Deus dissesse: “Faça-se a luz” e esta se fez presente. A lenda é uma
metáfora da criação do pampa. Antes do estabelecimento desta infinda noite caíra uma
chuva incessante, o que traz novamente à memória o dilúvio bíblico, no qual Noé deu abrigo
aos animais. Também nos remete a semelhanças com a hipótese de Tales, pois a água, em
meio a aquele dilúvio, parecia ser a unidade do universo pampeano. A importância da água
nesta lenda, se impõe à medida que foi responsável pela mortandade de tantos animais e pelo
despertar da Boi-guaçu, a imensa cobra que hibernava, como se refere Simões Lopes:
“dormia quieta havia já muitas mãos de lua” (Lopes Neto, 1988, p. 136). A água, nesta
lenda que da tradição oral é escrita por Simões Lopes Neto, toma o caráter instaurador de
uma nova ordem. Este elemento, associado à escuridão da noite e ao brilho que resta dos
olhares, reflete em seus charcos o rosto de cada vivente e o medo do perigo ameaçador.
Encarcerados pela inundação e sem a segurança que a luminosidade lhes propiciaria, os
habitantes destas terras esperam desconsolados pelo restabelecimento da ordem nos campos.
Segundo a crença desta cultura, “cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu”
(Lopes Neto, 1988, p. 136). Assim, a cada olho, saboreado pela cobra, depositava-se no seu
interior a réstia do último raio de luz vislumbrado por este órgão dos sentidos. A Boi-tátá
tornara-se, depois tantos olhos devorados, a luz que carecia no pampa. Esta luz, porém,
causava espanto nos tantos olhos que a podiam perceber, “seu clarão sem chamas já era um
fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria” (Lopes Neto,1988, p. 137). Enfarada com os
olhos das carniças, o réptil agora cobiça os olhos vivos e do medo dos homens vertem
lágrimas que sinalizam a presença de uma luz que ainda resiste em se incorporar à
enigmática luz do bicho.
40
Considerando a concepção heraclítica sobre o princípio originário de todo o mundo
visível e mutável, é possível estabelecer ainda mais um ponto de contato com o mito: Boitátá, que significa cobra de fogo, sai pela escuridão sugando toda luz que encontra. Este
animal, caracterizado pelo escritor como dotado de um poder extraterreno, pretende ser o
Uno, se o Uno do filósofo de Éfeso for tomado como paradigma da criação, visto que para
Heráclito o fogo era o elemento criador. Outro elemento que vem alimentar o poder do réptil
faminto por olhos, é o fato de que, com a morte do mesmo, o clarão se desprendeu e o sol
voltou a brilhar em meio aquela paisagem bucólica.
O enigma da criação pampeana, expressa na lenda M’ Boi-tátá, traz consigo a
característica humana de recorrer a entidades metafísicas ordenadoras do universo. A falta
de recursos para explicar o fenômeno conhecido como fogo-fátuo (clarão provocado pela
liberação de gás metano no ato da decomposição de animais) provocava inquietação, medo e
dúvida em cada ser humano que presenciava o fenômeno na paisagem do campo. A
luminosidade assemelhava-se a uma cobra, mas por que ela estaria iluminada? É este o
aspecto que demonstra o maior risco de topar-se com o réptil. Todos os olhos podem ser
presas da faminta, que ora é tomada sob uma ótica hermenêutica como guardiã dos campos,
ora como portadora de um caráter de correção moral em outras terras nas quais esta lenda
vige no imaginário do povo. Simões Lopes Neto explicita este perigo e descreve a receita,
proposta pelos nativos, para salvar-se do mesmo.
“Quem encontra a Boi-tátá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela, só tem
dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados sem
respirar, até ela ir embora, ou, si anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada
grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto até a
ilhapa! A boi-tátá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa
macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com
vagar, na aragem que ajuda” (Lopes Neto, 1988, p. 138).
Em linguagem tradicional e em conformidade com os hábitos do homem do campo,
o escritor pelotense coloca-se como “Homero do Pampa”, aquele que explicita o sentimento
do gaúcho, suas crenças e soluções para os mistérios que o afligem, numa convergência de
elementos da cultura luso-hispânica e de fortes caracteres indígenas, originados por estes
povos que presenciavam o fenômeno, antes que os brancos transformassem suas terras em
41
colônia européia e trouxessem a escrita que assegurou a propagação de suas lendas, mesmo
que já impregnadas por elementos não originais.
É instigante a relação da lenda simoniana com o olhar. Por que o apetite da poderosa
boi-guaçu, denominada Boi-tátá, esteve voltado somente para os olhos? O que ela almejava
era a apetitosa carne deste órgão ou o seu poder intrínseco? Cabe retomar que de acordo com
a lenda o corpo de todo ser vivo traz consigo vestígios do que ingeriu, assim, se poderia
atribuir aos olhos o poder de, ao degustar imagens, garantir novos conhecimentos a quem o
ingere? Estabelecendo uma relação entre a afirmação de Francis Bacon, segundo o qual
“conhecimento é poder” e o princípio desta lenda em que o predador transfere para si o
conteúdo de sua presa, há de levar-se em conta que o réptil, ao ingerir os olhos, deglutia
também os olhares e todo um mundo carregado em sua retina, o que o faria soberano nos
campos que assombrava. Se para triunfar, é necessário conhecer, cabe pensarmos como a
teoria do conhecimento desenvolveu suas idéias em meio aos séculos. Uma importante
corrente do pensamento ocidental é o empirismo que, remontando a Aristóteles, encontra seu
apogeu entre os filósofos ingleses dos séculos XVI e XVII. Ao tratar desta linha de
pensamento remetemo-nos aos cinco sentidos: visão, audição, tato, olfato e paladar. Entre
estes, ao longo da história, ao olhar atribuiu-se um poder cognitivo superior. O sentido da
visão na linguagem cotidiana, é utilizado para designar atributos dependentes de outros
sentidos. Expressões tais como: “olha que macio!” ou “veja só que bela música!”,
imprimem destaque especial à visão. Não é a toa que a Idade Média para os renascentistas e
iluministas fora chamada de “Idade das trevas”, “Noite de mil anos” ou “época de
obscurantismo”. A própria ausência de luz, na lenda simoniana, estabelece o ambiente
propício à temeridade. Assim como a humanidade treme com a incerteza da escuridão, o
olhar é uma fonte de segurança para todo ser humano. Expressões como “estou andando de
olhos vendados!” enfatizam a dúvida em cada passo dado, mesmo que o uso de linguagem
como esta não seja refletido em seu significado por quem a expressa, a linguagem oral
transmite o que está profundamente enraizado em nossa cultura, o sentimento de que a
certeza está no que vejo.
Reiterando o destaque da visão para o entendimento do mundo e a felicidade dos
indivíduos, assim se refere Aristóteles no livro da Metafísica:
“Por natureza, todos os homens desejam conhecer. Prova disso é o prazer causado pelas
sensações, pois mesmo fora de toda utilidade, nos agradam por si mesmas e, acima de
42
todas, as sensações visuais. Com efeito, não só para agir, mas ainda quando não nos
propomos a nenhuma ação, preferimos a vista a todo resto. A causa disto é que a vista é,
de todos os nossos sentidos, aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e o que nos
faz descobrir mais diferenças” (Aristóteles, Metafísica, A 980, 21-5).
É inegável o prazer das sensações e, se a visão não representa o principal sentido
produtor de satisfações sensíveis, ao menos incita a imaginação, o desejo e nos impulsiona a
elaborar e concretizar projetos. “Basta que eu veja alguma coisa, para saber ir até ela e
atingi-la, mesmo se eu não sei como isso se faz na máquina nervosa” (Merleau-Ponty, 1984,
p. 88). Da visão, pende um emaranhado de implicações, basta perguntar-se para que servem
os monumentos edificados na ocasião de guerras, algo que é visível não permite o vidente
esquecer. A crença no poder cognitivo do olhar pode ser conferido entre personalidades
históricas como São Tomé, que nega acreditar na ressurreição de Cristo, a menos que este se
apresente aos seus olhos. Mas o que são estes olhos que nos deleitam em dor e prazer? Olhos
que produzem uma leitura do mundo e são também o próprio espelho do mundo para quem
os vê.
Um fragmento de Empédocles, recolhido por Aristóteles, demonstra que o interesse
por este enigmático órgão, senhor de todos os outros, já era fonte de especulação entre os
antigos filósofos gregos. O seguinte fragmento diz:
“Assim como alguém que se proponha a sair numa noite tempestuosa prepara uma
lanterna, flama de fogo brilhando em meio à tempestade, ajustando à sua volta placas
transparentes para protegê-la do vento e para cortar as rajadas da ventania, enquanto,
através delas, brilha com seus raios infatigáveis o fogo em suas partes mais sutis; assim
também o Amor captou o fogo, embebeu a pupila arredondada, envolvida de
membranas delicadas e delicados tecidos que fendem e atravessam o dilúvio
circundante, deixando passar o fogo porque este é mais sutil” (Apud Novaes, 1997, p.
41).
Segundo Platão, no Timeu:
“Entre todos os instrumentos que servem para a alma prever, os deuses modelaram
primeiro os olhos portadores de luz e os implantaram no rosto pela seguinte razão. Um
fogo tendo a propriedade de não queimar e sim de brilhar com doce luz, decidiram que
seria o corpo próprio de cada dia. Porque o puro fogo dentro de nós é parente daquele,
43
fizeram com que escoasse através dos olhos, fabricando o globo ocular, especialmente a
pupila, úmido e de textura cerrada, de modo a não deixar passar nada de grosseiro, mas
apenas o fogo que filtra por aí por si mesmo” (Apud Novaes, 1997, P.41).
O olhar também se manifesta na literatura, no mito e na ópera de maneira especial.
Orfeu, no intento de resgatar seu grande amor, Eurídice, das sombras da morte, atravessa o
obscuro “Hades” e chega aos “Campos Elísios” com uma restrição imposta pelos deuses:
estava proibido de mirar os olhos de sua amada até saírem daqueles reinos. A capacidade de
ver, além de assegurar conhecimento e liberdade, é temerosa, pois desmascara um invisível
que seduz e desestrutura. Narciso provou a pena pela paixão, provocada por sua visão, ao
afogar-se na água que servia de espelho e amarrava seus olhos ao intento de pegar aquela
encantadora imagem.
Os olhos fazem parte de um corpo todo integrado, corpo este estigmatizado pela
cultura ocidental, a partir da tradição greco-romana.
“O homem sempre teve dificuldade em ver claramente e sem preconceitos seu próprio
corpo. De maneira geral, sempre houve a tendência entre os filósofos em explicar o
homem não como unidade integral, mas como composto de duas partes diferentes e
separadas: o corpo (material) e a alma (espiritual e consciente)” (Aranha & Martins,
1993, p. 311).
Sob a égide desta postura dicotômica do ser humano e calcados em uma
interpretação errônea das escrituras sagradas, na Idade Média foi muito comum a prática de
atividades espirituais, visando o controle da carne e até mesmo o castigo do corpo pela dor, a
fim de purificar a alma. No Renascimento e na Idade Moderna, o corpo começa a ser
dessacralizado e iniciam-se as práticas de dissecação de cadáveres. Somando ainda a
concepção cartesiana de que “o homem é constituído por duas substâncias distintas: a
substância pensante, de natureza espiritual – o pensamento; e a substância extensa, de
natureza material – o corpo” (Aranha & Martins, 1993, p. 313) e, aliado ao espírito do
mecanicismo moderno, cria-se a imagem do corpo-objeto, o qual a fenomenologia de
Merleau-Ponty tentará superar. A posição deste pensamento do século XX pode ser assim
expresso:
44
“Se o corpo não é coisa, nem obstáculo, mas é parte integrante da totalidade do ser
humano, meu corpo não é alguma coisa que eu tenho; eu sou meu corpo. Ao estabelecer
o contato com outra pessoa, eu me revelo pelos gestos, atitudes, mímica, olhar; enfim,
pelas manifestações corporais. Ao observar o movimento de alguém, não o vejo
enquanto simples movimento mecânico, como se o outro fosse máquina, mas como
sujeito cujo movimento representa um gesto expressivo. Portanto, o gesto nunca é
apenas corporal: ele é significativo e nos remete imediatamente à interioridade do
sujeito” (Aranha & Martins, 1993, p. 315).
Simões Lopes Neto, na lenda M’ Boi-tátá, transcreve o que na tradição oral fazia
parte do imaginário do povo. Assim, cita que tal como os animais que carregam no corpo o
conteúdo ingerido, “os homens, até mesmo sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus
arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão aberta; cuidado com os vermelhos; mais
cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços” (Lopes Neto,
1988, p. 136). Estaria a tradição mítica mais voltada ao ser humano como um todo
integrado, longe da postura fragmentária proposta pela filosofia anterior ao século XX, à
medida que é possível estabelecer na lenda uma antropologia e psicologia do olhar? Como
se poderia aplicar a idéia de um corpo-objeto dentro desta perspectiva, se no olhar, segundo
este mito, poder-se-ia fazer uma leitura dos sentimentos humanos, através do seu gesto ou
expressão corporal? Se o mito é anterior ao conhecimento de uma filosofia, alicerçada numa
cultura voltada para os mares Egeu e Mediterrâneo, portanto, distante do universo de onde
surgiu a explicação para o fenômeno fogo-fátuo, teria este (o mito) antecipado, por meio de
sua sabedoria, a estreita relação entre o corpo e o psíquico, o que a filosofia só fora despertar
após tantos séculos decorridos? O pensamento filosófico, no anseio por um conhecimento
seguro a respeito da constituição humana e do seu universo circundante, teria criado um ser
humano artificial, devendo volver ao mito para resgatar um elo perdido?
É impossível compreender uma intenção somente através da fala ou da escrita, que
são meios simbólicos de linguagem, necessários para o diálogo inter-subjetivo. Estas formas
institucionalizadas não acrescentam algo de novo à comunicação. Conforme Úrsula Silva em
seu livro “A linguagem muda e o pensamento falante”, o diálogo entre os sujeitos não pode
ser reduzido à esfera da linguagem convencional, considerando que o ser ao comunicar-se, é
um corpo integrado, simbiose de gesto e pensamento, de carne e intelecto. Este, portando um
45
mundo vivido, transmite sua experiência, ao se expressar, enquanto continua alimentando-se
à medida que fala.
“Não se pode simplesmente identificar o signo verbal como uma entidade inerte, cuja
materialidade se possa conceber desvinculada da atividade humana, nem atribuir-lhe um
conteúdo conceitual que procedesse da razão. A palavra é significativa enquanto está
em ato, movida pelo meu comportamento que, irradiando do corpo como fundo que se
expressa, incide nos objetos de um mundo vivido, isto é, de um mundo que, como
horizonte deste comportamento, está animado por ele” (Silva, 1994, p. 72).
Com a contribuição de Merleau-Ponty para a compreensão da linguagem corporal, o
ser humano lança passos largos à sua integração no campo lingüístico. Não é mais
concebido como um ser que erra por ter um conteúdo carnal. A expressão de seu corpo
demonstra uma intenção que, por longos séculos, esteve mascarada sob o jugo de uma
filosofia que entronou a razão e se pôs aos seus pés, agravado pela herança de uma visão de
corpo como pecado. “É enquanto corpo que o sujeito se volta para o mundo para vivê-lo e
conhecê-lo” (Silva, 1994, p. 75). Assim, os olhos que a cobra desejava, portavam uma
intenção e, como sugere Simões Lopes Neto, cada indivíduo expressa no olhar o mundo
vivido que carrega. “O corpo fala. Sua fala não é apenas a palavra verbal, mas todos os
modos de expressão intersubjetiva. O corpo, como sujeito perceptivo, lança ao mundo, pela
fala, seu modo de vê-lo e vivê-lo” (Silva, 1994, p. 79).
46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando.
Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993.
ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969.
CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. [S.C.], [S.E.], [S.D.].
GRANADA, D. Daniel. Supersticiones Del Rio de La Plata. Montevidéu: A. Barreiro y
Ramos, 1896.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. (In.: Os Pensadores). 2 ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1984.
NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo.
Edição Crítica por Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
NOVAES, Adauto. O olhar. 6. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
SILVA, Úrsula Rosa da. A linguagem muda e o pensamento falante. Sobre a filosofia da
linguagem em Maurice Merleau-Ponty. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
ZILLES, Urbano. Teoria do Conhecimento. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
47
C - A M‟BOI-TÁTÁ COMO MITO ORIGINÁRIO DO PAMPA: UMA LEITURA SOB O
ASPECTO ÉTNICO
Eduardo dos Santos de Oliveira6
Qual a origem do gaúcho? Os historiadores parecem não ter chegado a uma
conclusão convergente acerca do assunto. Talvez isso se deva ao fato de que o gaúcho possa
ser considerado como uma composição formada por diversas etnias. Alguns afirmam que “o
gaúcho é um mestiço forjado nas fronteiras do pampa – mescla elementos de várias nações
indígenas com a tradição luso-castelhana”7. Mas, se o gaúcho, de fato, é “essa mescla”, qual
a especificidade que permite que ele seja chamado de gaúcho? Ou, gaúcho é apenas um
“gentílico regional”, sem maior significado?
Supomos que não e, neste intuito, pretendemos encontrar qual a especificidade do
gaúcho. Nosso ponto de partida consiste em analisar quais as etnias presentes na composição
étnica e cultural do Rio Grande do Sul e relacionar essa análise à lenda da M‟boi-tátá de
João Simões Lopes Neto. Nossa hipótese de leitura considera esta lenda como o mito
fundacional do pampa. Num primeiro momento, mostraremos quais etnias compõem o Rio
Grande do Sul e alguns traços culturais que estas etnias trazem consigo. Em seguida,
faremos a relação entre essa analise etnológica e a lenda da M‟boi-tátá.
1 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS ACERCA DO ASPECTO
ÉTNICO-CULTURAL DO RIO GRANDE DO SUL
Antes de fazermos a aproximação da lenda da M‟boi-tátá ao componente étnicocultural do tipo denominado gaúcho, serão delineados alguns aspectos de sua estrutura
étnica e cultural. Para tal empreendimento, analisaremos, de modo genérico, alguns desses
elementos étnicos e, por acreditarmos que andem junto aos mesmos, alguns fatores
pertencentes à cultura, a começar pelo índio que já estava no estado do Rio Grande, quando
da chegada dos colonizadores.
6
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Simoniano/Instituto Superior de Filosofia/UCPel.
7
BUENO. De onde vem o gaúcho?. In: Correio do Povo, 13 de setembro de 2003, p. 5.
48
Podemos encontrar três grandes grupos indígenas: os jês, os guaranis e os
pampianos8. Nos séculos seguintes à chegada dos colonizadores, grande parte dessas tribos
indígenas foi arrasada. Os jês, por exemplo, foram destruídos por epidemias de origem
européia e africana”9. Alguns aspectos das culturas indígenas foram modificados, devido,
também, à chegada dos europeus. Os pampianos, por exemplo, tiveram alguns hábitos
alimentares modificados com a introdução do cavalo e do gado10. No entanto, os indígenas
trazem algumas influências à cultura gaúcha. Um exemplo disso, pode ser percebido em
verbetes herdados dos guaranis: araçá, caboclo, capão, cipó, urubu, entre outras palavras11.
Se há uma cultura que é invadida, deve existir também o invasor. Já desde o início há uma
disputa pelo território que foi “descoberto”. “Durante o período colonial, o Rio Grande do
Sul sofreu os choques das frentes coloniais lusas e espanholas, pelo domínio da área, pois a
linha de Tordesilhas (1494) nunca foi demarcada”12. Assim, o Rio Grande do Sul recebe
influência não apenas portuguesa, mas também espanhola, e uma disputa trava-se pelo
território gaúcho. “A avançada militar constituiu, de início, um dos maiores fatores do nosso
povoamento. Em torno dos acampamentos militares nasceram Rio Grande, Pelotas, Bagé,
São Gabriel, Rio Pardo, Itaqui, Alegrete, Santa Maria, Caí, Santa Vitória, Torres etc.”13. Da
disputa pelo território surgem, portanto, alguns povoados que dão origem a cidades gaúchas.
No entanto, após Portugal ter conseguido o domínio sobre o território gaúcho “não lhe
bastava a avançada militar; era preciso o povoamento do solo”14. Assim, “os portugueses se
fixam ao solo, regam a terra com o suor de trabalhadores infatigáveis e dessa luz tenaz,
desse esforço continuado, nasce-lhes o sentimento da propriedade na proporção do trabalho
dispendido”15.
A contribuição portuguesa é muito forte na formação da identidade cultural do
gaúcho. Podemos perceber essa influência através dos seguintes fatos:
8
Cf. FLORES. História do Rio Grande do Sul, p. 12ss.
9
Ibid., p. 14.
10
Ibid., p. 16.
11
Ibid., p. 22.
12
Ibid., p. 23.
13
GOULART. A formação do Rio Grande do Sul, p. 194.
14
Ibid., p. 197.
15
Ibid., p. 198.
49
“Na zona do litoral, perto da Fazenda do Arroio, avista plantações de mandioca e de
trigo; perto de Porto Alegre, mandioca e cana; em Mostardas, trigo e centeio; perto de
Rio Grande, mais ao sul, plantações de linho (para a fabricação de ponchos) e trigo;
perto do Chuy, milho. A influência da cultura lusa pela agricultura prolonga-se até
Santa Teresa”16.
Porém, não apenas o português contribuiu culturalmente na formação do gaúcho. Um
outro elemento étnico que se faz presente no pampa, é o escravo negro. Dentre os negros,
destacam-se dois tipos: “o tipo Guiné e o tipo Congo, negros do Congo e de Angola,
predominando principalmente o tipo Guiné”17. Da presença dos negros no Estado, alguns
aspectos culturais foram herdados sob a forma de religião, alimentação, lendas, mitos e
vocabulário (banana, cacimba, moleque, samba e zebra, por exemplo)18.
Finalmente, nota-se no Rio Grande do Sul a presença de imigrantes que, por um
motivo ou outro, vieram habitar no pampa. Cercados de tensões sociais, os alemães foram
os primeiros que vieram para o Estado. Em seguida, foi a vez dos italianos19 (por volta de
1850, para substituir os escravos negros que aos poucos ganhavam liberdade). Os poloneses,
por seu turno, começaram a imigrar para o Rio Grande em torno de 186920. Temos, ainda
imigrantes judeus e japoneses no século XX.
Dessa composição étnica, pode-se perceber claramente que “os elementos que
contribuíram para a nossa formação apresentam uma grande heterogeneidade”21, de modo
que fica difícil descrever um único tipo étnico que possa ser caracterizado como gaúcho.
Sob o aspecto cultural, ocorre um “agauchamento”, ou seja, uma apropriação cultural
daquele que habita o pampa, no que diz respeito ao “enfrentamento e domínio do meio
ambiente”22. Assim, por exemplo, o habitante do pampa passa a adotar certos hábitos e
costumes que o caracterizam como tal: o cavalo, o poncho, o chimarrão e o laço23. Babel de
16
Ibid., p. 161-2.
17
Ibid., p. 263.
18
FLORES. Op. cit., p. 130.
19
Ibid., p. 110.
20
Ibid., p. 113.
21
GOULART. Op. cit., p. 261-2.
22
MATTOS. A origem do gaúcho riograndense como parte integrante da identidade cultural do brasileiro, p.
8.
23
Ibid., Loc. cit.
50
raças, como diria Jorge Salis Goulart24, não há um tipo étnico definido de gaúcho, pois ele é
um tipo híbrido, fruto, poder-se-ia dizer, de uma “assimilação criativa e funcional, isso que
chamamos „antropofagia‟”25.
Justamente através deste processo antropofágico, desenvolver-se-á a originalidade do
gaúcho, pois “o que faz autêntica uma cultura não é necessariamente a ausência de origens e
contribuições externas – coisa aliás difícil de acontecer”26. Como podemos perceber, ao
longo do tempo, “os rio-grandenses incorporavam por via „antropofágica‟ as mais variadas
expressões platinas ou platinizadas ao seu vocabulário, bem como danças, reuniões de
carreiras, aspectos do vestuário etc. modificando-os e assimilando-os às suas
necessidades”27, e o modo de proceder diante disso revela a originalidade de uma cultura.
É necessário, finalmente, assinalar, como conseqüência, a presença da força épicotelúrica como necessária à formação da identidade de um povo. Através dela, cada um pode
situar-se num contexto concreto e interagir neste mesmo meio. A interação ocorre com os
demais membros de uma comunidade e com o próprio meio. Disso, não temos apenas o
meio que influencia o sujeito, chegando ao ponto de anulá-lo; nem um sujeito a priori que
não possa ser modificado pelo meio em que está inserido. Ou seja, indivíduo e meio
interagem reciprocamente.
Não é apenas o meio em que se está inserido o ponto chave para essa formação de
identidade cultural, mas também o outro com quem se partilha a vida de modo comum.
Neste sentido, podemos citar, com pertinência, a frase do filósofo Jürgen Habermas:
“Ninguém, por si só, consegue afirmar sua identidade”28. Assim, ratifica-se a importância do
outro, que é sempre diverso, na formação de identidade cultural. Temos, deste modo, não
apenas multiculturalidade na composição do gaúcho, mas também interculturalidade, ou
seja, culturas que, lado a lado, se põem em diálogo no seu processo formativo. A seguir,
veremos como a composição étnica-cultural gaúcha estaria estruturada sobre a lenda da
M‟boi-tátá
24
GOULART. Op. cit., p. 261-2.
25
MATTOS. Op. cit., p. 9.
26
Ibid., Loc. cit.
27
Ibid., Loc. cit.
28
HABERMAS. Comentários à ética do discurso, p. 19.
51
2 – A LENDA DA M‟BOI-TÁTÁ
Como vimos, várias etnias estão presentes no Rio Grande do Sul, e, apesar dessa
imensa variedade, há uma originalidade no gaúcho. Neste item, veremos como a lenda da
M‟boi-tátá poderia ser tomada como mito fundador do pampa, levando em conta as
considerações feitas acima. Para tal tarefa, a estrutura da lenda, redigida por Simões Lopes,
será mantida e faremos a leitura, considerando apenas as nove primeiras partes da mesma.
A M‟boi-tátá
I
Foi assim:
Quando os colonizadores aqui chegaram, já havia índios que habitavam não apenas o
território gaúcho, mas todo o continente americano. Poucos, talvez, ninguém no Velho
Continente, imaginava que os índios pudessem existir. Sabiam, provavelmente, que o Novo
Continente existia e, por isso, desembarcaram aqui. Era noite. E, a noite, alude a trevas. De
um lado, para um povo primitivo, o medo o circunda, pois a noite remete ao desconhecido,
ao mítico… De outro lado, para os “exploradores do mundo”, o outro lado do mundo era,
também, desconhecido, escuro, pois dele pouco se sabia. Tratava-se de um mundo
inexplorado. “E a noite velha ia andando… ia andando…”29.
II
Minto:
Antes que os colonizadores tivessem ocupado o território, já havia sido feito um
“reconhecimento de território”. Morar aqui não se sabia ainda bem como seria, mas era
preciso ocupar o território. Aquele que domina o continente tem uma pequena “pista” que
talvez seja falsa. Essa pista é dada pelo téu-téu. Ele canta de um lado, mas tem o ninho do
lado oposto àquele em que está. Assim se manifestam as esperanças dos colonizadores que
descobriram o Novo Continente: pensam que acharão o ninho perto do quero-quero, mas ele
está do lado oposto. Que canto é esse que dá esperança? E que esperança é esta? E quanto à
falsidade de uma “pista”, em que consiste?
29
NETO. A M’boi-tátá, p. 135.
52
Os europeus viram no Novo Continente riquezas a serem exploradas e a necessidade
de impor sua cultura aos índios, através da catequese. Essa imposição era até bem
intencionada, pois queria levar a salvação a um povo que a desconhecia. No entanto, a
cultura que é invadida não é levada em consideração. Eles são coisificados. E o engano
consiste nisso: não se pode querer que uma cultura, que é invadida, seja adaptada àquela que
a invade. É preciso, no mínimo, um respeito mútuo. O caminho a ser tomado deveria ter sido
outro, para que o ninho fosse achado e, ao mesmo tempo, ninguém fosse prejudicado.
III
Minto:
Na noite anterior houve chuvas. Muita chuva. Talvez essa chuva seja aquela que caía
dos olhos do índio que foi desrespeitados em relação à sua identidade cultural, já no
primeiro contato com os europeus. Como os índios não puderam ser enquadrados no
paradigma europeu, eles nem sequer foram considerados como gente. A água que verte dos
olhos do pobre índio, enche todas as tocas dos que habitam o pampa e desperta a boi-guaçu.
Muitos morreram, devido à enchente. Há muito que a boi-guaçu dormia. E, agora, ela vem.
Faminta! O que é a boi-guaçu? É uma cobra grande que se alimenta de olhos. O que é esta
cobra? É um enigma. Não podemos dizer o que ela é, mas qualquer um percebe sua
atividade pelo pampa. O que significam, então, os olhos de que ela se alimenta? Cada olho
pode ser considerado como uma cultura que é “incorporada” ao território gaúcho. Para cada
novo tipo que chegava aqui, pode-se dizer que a boi-guaçu “alimentava-se mais um pouco”.
IV
Assim, temos muitos componentes diferentes entre si na cultura gaúcha, do mesmo
modo que cada olho é diferente dos demais. O viés pelo qual cada olho observa um
fenômeno é único e, mesmo que outro se coloque em seu lugar, sua visão será diferente.
Deste modo, podemos citar como olhos assimilados pela boi-guaçu: a nova cultura que os
jesuítas vêm trazer aos índios (especialmente a religião) e, com o passar dos anos, as
culturas portuguesa, espanhola, alemã, italiana, polonesa, judaica, japonesa e, ainda, os
escravos negros, cada uma delas com novos hábitos e costumes diversos entre si.
V
53
Cada olho que foi assimilado pela boi-guaçu, retinha uma chama de luz, isto é,
guardava consigo “um último olhar” daquilo que tinha enxergado antes da passagem da
cobra. Um número imenso de olhos foi devorado por ela. E a cada olho devorado, mais
escura fica a noite e, inversamente, mais clara fica a cobra…
VI
Pode uma cultura, mesmo em fase de construção, consistir num “amontoado de
olhos”? “O Rio Grande do Sul, como todo o Brasil, é uma babel de raças, muitas das quais
de caracteres opostos, de psicologia antagônica”30, de modo que essa multiculturalidade
pode ser percebida claramente. Cada cultura, cada etnia faz com que a boi-guaçu seja vista
como um “fogaréu azulado”, pois ela não possui pêlos, escamas, penas, casca ou coro
grosso. Ou seja, a boi-guaçu é transparente e pode-se enxergar o que ela traz dentro de si: os
olhos, por sua vez, brilham como um “clarão sem chamas, de luz amarela e triste e fria”31.
VII
É por isso, que, quando os homens vêem a boi-guaçu, chamam-na de boi-tátá: cobra
de fogo. E ela vem faminta. Cuidado! Ela pode, inclusive, atacar “os olhos vivos dos
homens”32, parecendo que quer aumentar ainda mais de tamanho.
VIII
Mas como dizia:
O téu-téu cantava por causa da boi-tátá. Assim, podemos representar aquele animal,
conhecido como guardião dos pampas, como o espírito cultural do pampa. O téu-téu sente-se
ameaçado pela boi-tátá, pois ele também tem olhos, que podem ser comidos pela cobra de
fogo.
Fato importante: a morte da boi-tátá. Ela morre porque os olhos não lhe dão
“sustância”. Então, a luz que estava presa pela boi-tátá, se desata e “o sol apareceu de
novo!”33. É a criação do pampa. Após, a atividade devastadora da boi-tátá poderíamos
afirmar que surge o tipo gaúcho? Possivelmente não! A boi-tátá tem papel importante na
30
GOULART. Op. cit., p. 255.
31
NETO. Op. cit., p. 137.
32
Ibid., Loc. cit.
33
Ibid., Loc. cit.
54
formação do gaúcho porque ela une diversas etnias que estavam inicialmente separadas, mas
ela não traz consigo um gaúcho formado a priori. Destarte, uma cultura não pode consistir
num simples amontoado. Uma cultura é construída aos poucos, e, no caso da gaúcha, por
elementos diversos entre si. Observemos que o téu-téu esteve sempre guardando o território
gaúcho. Ele, sim, viu tudo. E aquilo que a gente vê, faz com que a gente mude. Não se pode
permanecer o mesmo, após a passagem da boi-tátá, uma vez que ela traz muitas coisas novas
consigo. O espírito gaúcho vai sofrendo alterações ao longo do tempo, e o téu-téu vê o dia
despontar no horizonte.
IX
Minto:
O dia “apareceu sim, mas não veio de supetão”34, ou seja, foi aos poucos que esse dia se
construiu. Para que a boi-tátá morresse, precisou comer muitos olhos. Como os olhos não
puderam sustentá-la, a boi-tátá acabou morrendo. Porém, seu rastro ficou marcado em nosso
chão. E essas marcas podem ser percebidas ainda hoje. O processo de assimilação de
culturas é ininterrupto, e a boi-tátá pode a qualquer momento voltar. Deve-se ter muito
cuidado no momento em que ela passa, para que nenhuma particularidade seja negada e,
assim, haja não apenas multiculturalidade, mas também interculturalidade.
O dia confere tranqüilidade ao téu-téu. Isso significa que o gaúcho se consolidou em
definitivo como tipo específico Rio Grande do Sul? Sim e não. Sim, porque o gaúcho é o
tipo característico do Estado, formado e forjado nos limites do pampa. Mas, nada impede
que a boi-tátá retorne. Daí o não como resposta à pergunta acima, pois uma cultura não pode
permanecer estática. Esse é o fadário da boi-tátá. Considerando-a como mito fundador do
tipo gaúcho (do sul do Brasil), pode-se dizer que ela juntou um imenso número de olhos.
Cada olho é uma etnia, que traz consigo uma cultura, uma visão de mundo, costumes dos
quais esses próprios olhos se alimentaram um dia em seu território de origem.
Sem dúvida uma força épico-telúrica faz com que algo estranho a uma cultura possa
com ela harmonizar-se de tal forma que deixe de existir qualquer influência determinista
sobre os que se adaptam à mesma. Assim, cada um está em contínua formação, e
relacionado ao contexto social em que está inserido. A interação é permanente, e,
34
Ibid., Loc. cit.
55
dificilmente, alguém conseguirá escapar à boi-tátá, ou seja, o homem está destinado a se
fazer perante interações, seja com o meio, seja com os demais.
“e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!”35
35
Ibid., p. 138.
56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUENO, Eduardo. De onde vem o gaúcho?. In: Correio do Povo, 13 de setembro de 2003.
FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. 6 ed. Porto Alegre: Nova Dimensão,
1997.
HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, s.d.
GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. Pelotas: Livraria do Globo,
1927.
MATTOS, Mário. A origem do gaúcho rio-grandense como parte integrante da identidade
cultural do brasileiro. (Tese aprovada no 28º Congresso do MTG). Cruz Alta, 1983.
NETO, João Simões Lopes. A M’boi-tátá. In: _____. Contos gauchescos. Lendas do Sul.
Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
57
D - A CORRUPÇÃO DO PAGO NA LENDA A MBOITATÁ
Mário Mattos 36
1 - INTRODUÇÃO - RESUMINDO O TEXTO
O resumo de uma narrativa é muito mais importante do que parece. Para estudar a
lenda A Mboitatá, nosso primeiro passo será resumí-la; e, para isso, tratá-la como um texto
comum
Abaixo montamos a tabela de derivação descendente, ou bloco de modelagem,
referente à lenda A Mboitatá. A divisão em 12 capítulos foi reagrupada - abstraindo
diferenças e denominando cada novo grupo pelo aspecto comum dos capítulos ajuntados.
Caíram assim para quatro, as doze partes em que Simões dividiu o texto original. Essas 4
idéias-tronco, ficaram agora denominadas: a) Introdução: a perda do sol para a noite (caps. I
e II); b) Os flagelos da longa noite (caps. III a VII); c) A volta do sol, e das duas metades do
dia (caps. VIII a X); d) e a Conclusão: o fadário da luz da Mboitatá (caps. XI e XII).
36
. Mário Barboza de Mattos, escritor, coordenador do Núcleo de Estudos Simonianos (NES) do Instituto
Histórico e Geográfico de Pelotas (IHGPEL).
Agradecimentos: Aos confrades simonianos do GPS-ISF-UCPEL: Agemir Bavaresco, Luís Borges, Mateus
Weizenmann e Eduardo dos Santos de Oliveira, pioneiros em Pelotas da pesquisa e estudo hermenêuticos da
lenda A MBOITATÁ, por haverem despertado meu interesse por essa, que até então tinha como a gata
borralheira; e que passei a considerar a mais importante das lendas de João Simões Lopes.
58
Introdução
c) A VOLTA DO Conclusão
a) A PERDA DO b) OS FLAGELOS SOL E DAS DUAS d) O FADÁRIO DA
SOL
PARA
A DA LONGA
NOITE
Há
METADES DO DIA
LUZ DA MBOITATÁ
NOITE
muito tempo, Na
houve uma
ultima
tarde, Andava na escuridão, Olhar na luz é perigo
noite viera chuvarada e com sua luz baça, por de cegueira. Quem a
escura, abafada, sem enchente.Os animais isso o teu-téu cantava encontra sozinho, tem
os cheiros da vida.
ficaram ilhados nas de vigia.
dois recursos:
coxilhas.
Os homens tristes, Começou a mortan- Passado um tempo, a Estando de a pé, o
só comiam canjica dade dos bichos. A boitatá
insossa. Com
lenha
a co-bra
de jeito é ficar parado de
grande fraqueza, mas a luz olhos bem fechados,
rareando, boiguaçu acordou e presa
ficavam horas
morreu
ao saiu a comer olhos.
se
desatou. sem respirar, até ela ir
Nisso, o sol voltou.
embora.
fogo.
A
escuridão De
fechada,
tanto
comer Primeiro, o luzir das Ou, se andar a cavalo,
olhos, esticou a pele estrelas. Depois, foi atirar o laço e galopar
desorientava
os e
ganhou
mais apurados faros; amarelada
por isso ninguém tornando-se
saía para o campo.
luz reaparecendo o astro. com o laço de arrasto.
baça, O dia se dividiu em 2 A luz, bate na macega
metades, para sempre ese esfarinha+emulita-
irreconhecível.
se
Só o teu-téu, desde Os homens a batisa- A bola de luz da boi Campeiro!
Evita
a
o sumiço do sol, ram boitatá.Ela ron- tatá desembesta no peste, tirando o gado
montava
guarda dava seus ranchos, verão,
com seu canto de pra comer
esperança.
vivos
assombrando da
olhos os
querência
da
homens. boitatá! Tenho visto!
Tesconjuro!
A tabela-resumo, acima montada, coloca-nos em mão o esqueleto ou ideograma
completo da narrativa, querendo-o mais ou menos similar ao que teria sido esboçado
mentalmente
por Simões Lopes Neto, antes de desenvolvê-lo na plenitude da sua
linguagem poética.
59
Merecem nosso respeito e admiração as brilhantes análises já feitas no GPS-ISFUCPEL e certamente destinadas à consagração.
Entretanto, acreditando no valor da pluralidade de interpretações que uma lenda
comporta, ousamos propor-nos uma avaliação literária do conto-lenda simoniano, à luz dos
critérios técnicos que vimos adotando no NES-IHGPEL, isto é, proceder às análises da
narrativa e da linguagem, e nesse caminho, tentar interpretar os mitos na estória aparente,
para buscar intuir a estória oculta e a visão de mundo dali emanada.
2 - ANÁLISE DA NARRATIVA
As Lendas do Sul foram
publicadas originalmente em edição separada. A
apresentação de Blau Nunes como narrador, só é válida para os Contos Gauchescos. As
Lendas têm assim outros narradores com voz gauchesca, no tom oracular apropriado ao
gênero. Nas três principais – O Negrinho do Pastoreio, A Salamanca do Jarau e A Mboitatá
– o narrador está oculto, é onisciente e o leitor quase nada sabe sobre ele. Blau Nunes
aparece em A Salamanca do Jarau, não como o narrador, mas como um dos personagens
narrados. Sua estória do Cerro, ouvida da avó charrua, é uma narrativa dentro da narrativa.
Somente em A Mboitatá, o narrador oculto dá ares da sua graça, falando por várias
vezes na primeira pessoa, em intervenções curtas – Foi assim:... Minto:... E vai,... E
então!.... Mas, como dizia:... Maldito! Tesconjuro!... Tenho visto!... Isso não muda nada em
termos de identificação. Ao que parece, houve o propósito deliberado do autor em colocar o
foco num narrador anônimo e onisciente, cuja voz emerge das profundezas do imaginário
coletivo gauchesco.
A narrativa é toda mítica, por isso difícil de entender à primeira leitura. Ela fala de
uma enorme cobra
- 3 laços de doze braças dão quase oitenta metros de comprido!
Aproveitando-se da escuridão e da enchente - flagelos que oprimem os seres humanos, a
flora e a fauna - ela
sai da toca para comer olhos de cadáveres e armazenar luz.
Transformada em boitatá, ronda os ranchos dos humanos como faziam os cães chimarrões.
Quer devorar seus olhos, mas é denunciada pelo valente teu-téu. Morre de fraqueza, o corpo
se desfaz, mas sobrevive na luz tirada dos olhos dos cadáveres; e, mesmo após a volta do
Sol, durante as noites de verão, continua a ameaçar os homens de cegueira e o meio
ambiente de peste.
60
Fica evidente que o conflito principal do conto é o que se trava entre a serpente e os
seres vivos, sendo importante evitá-la e ou combatê-la, para neutralizar seus efeitos trágicos
(morte, cegueira, peste). Embora a literatura sobre os mitos nem sempre assinale papéis
negativos para as serpentes, não resta duvida que a personagem criada por Simões Lopes
em A Mboitatá é, de início a fim, um ser repulsivo, ameaçador e maléfico.
Na versão simoniana da lenda, pela fixação do nascimento dos fatos num tempo
imemorial, a narrativa, como um todo, adquire universalidade. Se esse tempo fosse fixado
nos começos do Rio Grande do Sul, remontaria apenas a 1737, data da fundação por Silva
Pais. Haveria exatidão histórica, mas a verossimilhança ficaria limitada. O cunho
cosmogônico da fabulação simoniana confere a todos os demais fatos narrados a carga
simbólica própria do mito, passando sua verdade a
ter significados polivalentes, cuja
abrangência vai além do pago gaúcho, atingindo e provocando a sensibilidade não apenas
do leitor riograndense, mas do brasileiro ou universal.
A narrativa é vazada quase toda em discurso indireto, descritivo. Só constituem
exceções as já mencionadas intervenções diretas do narrador-campeiro anônimo, no começo
ou fim da maioria dos capítulos e em todo o mini-capítulo final. Tais entradas diretas
funcionam como um leme poético-didático, bem ao estilo gauchesco, corrigindo guinadas
propositais, quebrando a monotonia e dando mais interesse à viagem do leitor
Quanto à história oculta:
Já temos afirmado que a lenda A Salamanca do Jarau, é uma espécie de passar a
limpo dos valores e mitos esparsos ou implícitos nos Contos Gauchescos. Sobre esses
mitos-valores, tivemos oportunidade de efetuar palestra Seminário de Estudos Simonianos
37
publicada
nos anais do II
, novembro de 2000 – intitulada O Núcleo Mítico da
Narrativa em João Simões Lopes Neto. Ali classificávamos os mitos do pago em duas
grandes divisões, os mitos do Bem e do Mal.
Corrupção do Pago,
38
Entre os mitos simonianos do mal, a
se faz presente em vários contos, que ilustramos
extraindo
exemplos de Jogo do Osso, O Boi Velho, Batendo Orelha e Penar de Velhos.
Após estudar a lenda A Mboitatá, chegamos hoje à convicção de que novamente
Simões quis passar a limpo os mitos significativos da corrupção do pago presentes nos
Contos Gauchescos. E, ao fazê-lo, foi mais longe, pois os mitos da cobra de fogo, mais os
37
. Editora e Gráfica da UFPEL: Pelotas, 2001.
38
. Devemos a Ligia Chiappini, em No Entretanto dos Tempos, Martins Fontes: São Paulo, 1988, a idéia da
Corrupção do Pago na antevisão de Simões.
61
da enchente diluviana, da escuridão, do téu-téu, da peste, do campeiro precatado, etc.,
adquirem potencial bem maior para um leque de intertextualidades – assunto que
pretendemos desenvolver em capítulo separado, logo após a análise da linguagem.
3 - ANÁLISE DA LINGUAGEM
A beleza
e expressividade da linguagem
gauchesca presente no texto não é
perceptível na primeira leitura, pelo esforço que se faz para não perder o fio em meio a uma
descrição cheia de estranhezas inesperadas, num clima pesado e sombrio, que parece fugir
à regra das demais narrativas simonianas. Contudo, após assimilar o conjunto, através de
um resumo como o
que inscrevemos
na tabela de derivação descendente, atrás
apresentada - e voltar à releitura do original - perceber-se-á, de forma mais clara, o quanto
a linguagem acrescenta em termos de expressão e poesia viva ao esquema narrativo.
Se a narrativa é como o esboço, o mapa do futuro quadro - a linguagem é como a
pintura final, que torna vivo o quadro pronto, com o dramatismo de seus sombreados e a luz
de suas formas e cores.
Pelo uso da primeira pessoa e por suas exclamações, confirmadas na interjeição final –
tenho visto! - podemos classificar o narrador como
havendo testemunhado os fatos
narrados, porém sua história se reporta a um tempo antigo, muito antigo, muito. Essa
perspectiva confere-lhe um grau de entidade fantástica, capaz de atravessar o tempo. A
verossimilhança ou capacidade de persuadir o leitor, é assegurada pela mimese poética do
linguajar campeiro, que, sem necessidade de um deus ex-machina,
39
confere autoridade,
naturalidade e misto de assombro, às surpreendentes estranhezas, saídas do próprio
desenrolar dos fatos narrados. As metáforas não têm conta:
[...] Os olhos [...] ficavam [...] olhando [...] as brasas somente, porque as faíscas, que
alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
[...] uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o teu-téu ativo [...]
[...] o seu “quero-quero!” – tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia
agüentando a esperança dos homens...
[...] as lagoas subiram e se
largaram em fitas, coleando pelos tacuruzais e
banhados, que se juntaram todos, num;
39
. Ligia Militz da Costa . A poética de Aristóteles. Mimese e verossimilhança. Ática: São Paulo, 2003.
62
[...] de repente,batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz,
para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.
[...] Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de
seus arrancos.
[...] O homem de olhos limpos é guapo e mão aberta; cuidado com os vermelhos;
mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços [...]
Merece atenção especial a sentença acima, pois ao estabelecer
nexo insólito entre
certos homens e a Mboitatá, reforça a nossa leitura da Corrupção do Pago, como significado
oculto da lenda:
4 – A MBOITATÁ E A INTERTEXTUALIDADE
a) Decifrando os Mitos -
A Mboitatá é a serpente-corrupção, repulsiva, que se
aproveita:
1) Do flagelo da escuridão, significando as trevas da ignorância, da desinformação,
da superstição e dos preconceitos e constrangimentos que mortificam e dividem a espécie
humana, inclusive a fome, as doenças e a miséria;
2) Do flagelo da enchente, significando destruição, e morte, guerras e opressão,
torturas, violência racial, religiosa e política. Suas metamorfoses indicam sua plasticidade
e
capacidade de emulitar-se e ressuscitar sob nova forma, dos golpes recebidos. Com a
volta do Sol – da luz, das liberdades, da esperança – a Mboitatá sobrevive na luz baça, que
se utiliza do poder corruptor para manipular os meios de comunicação; e busca cegar a
população com uma falsa cultura. Age à noite, em cumplicidade com as forças subterrâneas,
do vicio e do crime, em sintonia com os homens de olhar raiado e baço. É ela que espalha
frases cínicas e perversas no meio do povo, por exemplo:
[...] amigo é como papel higiênico: a gente usa e depois joga fora!
[...] O negócio é levar vantagem em tudo!
[...] Se não tirares (lucro) dos amigos, não irás tirar dos inimigos!
[...] Todo homem tem seu preço... é só pôr-lhe a graxa na mão!
[...] Não existe mulher honesta. O que existe é mulher mal cantada!
63
O teu-téu é o poeta, o artista, o jornalista, a voz que não se corrompe e denuncia.
Mesmo perseguido e aparentemente fraco, sobrevive às perseguições e ergue o seu canto de
esperança.
O campeiro precatado tem dois modos de enfrentar a MBoitatá da corrupção:
Primeiro, se é cidadão indefeso, ficar parado, à distância da corrupção, da droga e do vicio,
afastar o gado da sua querência, proteger a família de contaminar-se ou alimentá-la.
Segundo, se está a cavalo em algum poder - o policial correto, o jurista íntegro, a autoridade
incorruptível - atirar o laço e sair a galope, acossando-a, ou desbaratando suas forças.
b) Potencial de intertextualidade – Já nos referimos aos Contos Gauchescos onde
aparece a Corrupção do pago:
Em Jogo do Osso, O cinismo do bolicheiro Arranhão, explorando o jogo, o vício que
leva o Ruivo aos desatinos e ao crime, sem que aquele safado, curtido na ciganagem se
abale, preocupado apenas com a coima do jogo não paga ao coimeiro.
Em O Boi Velho, a frieza dos Silvas ingratos que, esquecidos do carinho recebido em
crianças, mandam abater o Cabiúna pra não perder de vender o couro.
Em A Salamanca do Jarau, a alegoria da onça furada, moeda que
trazia
prosperidade à custa da ruína do próximo – um convite à corrupção.
Em Penar de Velhos, a lábia usurpadora do padre gringo, levando o velho Cruz
moribundo a esquecer dos pobres que o haviam servido em favor da paróquia que ele
manipulava.
Em Batendo Orelha!, a ingratidão do sistema excludente, igualando no fim trágico, o
Recruta e o cavalo Reiuno, ambos veteranos heróis de guerra e, quando inválidos, tratados
como descartáveis.
Em Duelo de Farrapos, a luta sem princípios da oposição a Bento Gonçalves, para
afastá-lo das negociações da paz com Caxias, refletida na assembléia de Alegrete, com a
vinda da emissária castelhana e posteriormente com a cizânia envolvendo – comendo os
olhos – de Onofre Pires.
Poderíamos ainda lembrar: a traição e chacina dos Lanceiros Negros no final da
Guerra dos Farrapos. Quem teve os olhos devorados pela Mboitatá?
Extrapolando o pago pampeano e encarando o Pago Global, vemos na lenda da
Mboitatá sugestões instigantes para a intertextualidade em temas universais:
64
Na Bíblia, a traição do apóstolo Judas, entregando Jesus por trinta dinheiros, pode ser
interpretada à luz da serpente devoradora de olhos, sendo emblemática a crucifixão entre
dois ladrões, para substituir a verdade de suas revelações pela luz baça distorcendo a
imagem do Nazareno.
No romance Madame de Bovary, de Flaubert, a fria insensibilidade do comercianteagiota Vinçart, transformando em inferno os sonhos de amor da pobre Ema de Bovary,
cujas dividas a levam ao suicídio, bem como a indiferença e covardia egoístas dos amantes,
também ilustram a ação devoradora de olhos da Mboitatá.
Finalmente, a própria realidade atual do Brasil e do Mundo contém veementes
atestados da ação da Mboitatá, com atos de corrupção e oftalmofagia, a reclamar ficcionistas
para obras de intertextualidade com João Simões Lopes Neto.
65
E – A MBOITÁTÁ
[O texto a seguir segue a versão de Lígia Chiappini. Contos Gauchescos. Lendas do Sul.
Casos do Romualdo. Rio de Janeiro: Presença Edições/Instituto Nacional do Livro, 1988, p.
133-138.]
A Andrade Neves Neto
A M’BOI-TÁTÁ
Meu Caro Simões L. Neto
Agradeço não me haveres esquecido com a tua amizade e com o teu talento. A lenda da
“Boi-tátá”, também conhecida dos nossos sertanejos, com variantes que muito a diferençam
da que escreveste, deve figurar no folclore gaúcho, onde já cintila, acesa por ti, a velinha do
“Negrinho do Pastoreio”, a cuja claridade puseste o meu nome. Prossegue, porque fazes
trabalho de valor e muito me alegro por haver insistido com a tua modéstia para que
continuasses a colher, aqui, ali, essas flores eternas da Poesia do povo, fazendo com elas o
ramo que será um encanto para todas as almas e glória para o teu nome. Abraço-te
teu
Coelho Neto
Rio, 20-XI-09
A M‟boi-tátá
I
Foi assim:
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais
haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume e no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores,
sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.
66
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia,
não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos
estavam se apagando e era preciso poupara os tições...
Os olhos andavam tão enfarados da noite, que, ficavam parados, horas e horas,
olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai... as brasas somente, porque as faíscas,
que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do
campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até
nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando... ia andando...
II
Minto:
no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de
vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar: era o téu-téu ativo, que não
dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo,
que devia vir e que tardava tanto já...
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu – quero-quero! – tão claro, vindo de lá
do fundo da escuridão, ia agüentando a esperança dos homens, amontoados no redor
avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada.
III
Minto:
na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das
coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d‟alva, nessa última tarde também
desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga-d‟água que levou um tempão a cair, e
durou.... e durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando
pelos tucuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele
peso d‟água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo
fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é
67
que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E era terneiros e
pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam
na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros
miúdos.
E como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a – boiguaçu – que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se
e saiu, rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boi-guaçu pegou a comer as carniças.
Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a
cobra-grande-comia.
IV
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o
cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó
tristonho e o biguá matreiro até no sangue tem cheiro de pescado. Assim também, nos
homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor dos seus arrancos. O homem de olhos
limpos é guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e,
toma tenência doble com os raiados e baços!...
Assim foi também, mas doutro jeito, coma boi-guaçu, que tantos olhos comeu.
V
Todos – tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, guardavam, entranhado e
luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que
caiu... E os olhos – tantos, tantos! – com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados;
no princípio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma
braçada...
68
VI
E vai,
como a boi-guaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas
como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi
ficando transparente, transparente, clareando pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que
foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a
boi-guaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz
amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam
vivos...
VII
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela vez primeira viram a boi-guaçu
tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito
outra, chamaram-na desde então, de boi-tátá, cobra de fogo, boi-tátá, a boi-tátá!
E muitas vezes a boi-tátá rondou as rancheiras, faminta, sempre que nem chimarrão.
Era então que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de
serpente, transparente – tátá, de fogo – que media mais braças que três laços de conta e ia
alumiando baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo,
pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boi-tátá
ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam...
VIII
Mas, como dizia:
na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boi-tátá, e era por ela que o téu-téu
cantava de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado um tempo, a boi-tátá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos
comidos encheram-lhe o corpo mas lhe não deram sustância, pois que sustância não tem a
luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos...
Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre
as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo
dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez.
69
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí.
E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo!
IX
Minto:
apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram
despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no coloreado do céu; depois foi sendo
mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma lista de luz... depois a
metade de uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e
descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.
X
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, pra nascer de novo:
só a luz da boi-tátá ficou sozinha, nunca mais se juntou como a outra luz de que saiu.
Anda sempre arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mas se infesta.
E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois de quentura dos mormaços, começa então o seu fadário.
A boi-tátá, toda enroscada, como uma bola - tátá, de fogo! – empeça a correr o
campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água
dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagado... e
quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!
XI
Quem encontra a boi-tátá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem
dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem
respirar, até ir-se ela embora, ou, si anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada
grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a
ilhapa!
70
A boi-tátá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa
macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar,
na aragem que ajuda.
XII
Campeiro precatado! reponte o seu gado da querência da boi-tátá: o pastiçal, aí, faz
peste...
Tenho visto!
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F - DER BOITATÁ
Luís Borges 40
Apresentamos a seguir uma versão [provisória] para o alemão de O Boi-Tatá, de
João Simões Lopes Neto
Der Boitatá
Eine andere Geschichte von sia Mariana.
- Im Sommer der Teufel los. Nach einem warmen Tag, in der Abenddämerung,
verwandelt er sich in einem Feuerball und rennet auf der Wiese, Berg auf, Berg ab, wer
wei wie lange in die Nacht hinein! Das Feuer ist gelb und bläulich, das niemand anzündet
und die trockenen Felder nicht verbrennt; es rennt, kreit, springt als wäre es ein Ball um
plötzlich vergröert es sich, steig hinauf und wieder hinuter, nimmt ab, platzt, zergeht und
verschwindet, und ohne zu erwaten, kommt es wieder zurück, genauso iwe woher. Wer den
Boitatá triff kann durch sein Licht blind werden! Wenn jemand auf ihn stot, der hat nur
zwei Möglichkeiten sich von ihm zu befreien: stehen bleiben, ganz ruhig, mit geschlossen
Augen, bis er wieder fort ist, oder wenn man reitet, den Lasso abwickeln, eineSchlinge
machen und auf ihn werfen un dann galoppieren und gleichzeitig den Lass, ganz locker,
schleppen.
Dann Komm er mit dem Ring des Lassos mit und plötzlich, wenn die Schhlinge ein
dickes Gras trifft, lost er sich auf. Boitatá bedeutet Feuerschlange, aber in Wierklichkeit ist
er Teufel, já das ist er.
Als sia Mariana die Geschchte beendet, waren wir alle stumm, mit groen Augen,
ängstlich; einer der Buben Schrank, als ob es schon Gespenste sähe; und ich schlich mich
langsam weg und ging bis zum Fenster um dort einem Boitatá zu erblicken – im Dunkeln
des Weges von Landgut.
40
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Simoniano/Instituto Superior de Filosofia/UCPel.
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Texto em português constante em João Simões Lopes Neto, uma biografia, de Carlos
Francisco Sica Diniz, p. 304. (1a. versão)
“Outra das histórias da sia Mariana.
No verão o diabo anda solto. Depois de um dia quente, ao anoitecer, ele se vira numa
bola de fogo e anda correndo no campo, coxilha abaixo, coxilha acima, até que horas da
noite! É um fogo amarelo ou azulado, que ninguém acende e não queima os pastos secos,
corre, gira, pula como uma bola e de repente aumenta, sobe, desce, míngua, arrebenta-se,
desaparece, e quando menos se espera, aparece outra vez, do mesmo jeito. Quem encontra o
boi-tatá até pode ficar cego da luz dele! Quando alguém topa com ele, só tem dois meios de
se livrar: esperar parado, muito quieto, de olhos fechados, até ir-se embora, ou se anda a
cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande, atirar em cima dele e tocar a galopes
trazendo o laço de arrasto, todo solto. Ele então vem acompanhando a argola do laço e de
repente, topando uma macega grande, se desmancha. Boi-tatá quer dizer cobra de fogo, mas
é o diabo – isso é.
Quando a sia Mariana acabou de contar esta história, ficamos todos calados, de olhos
grelados, medrosos; um dos piás espiou para baixo do armário, talvez já assombrado; eu,
desapareci e fui até a janela para ver se bispava algum boi-tatá – no escuro do corredor da
quinta”.
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