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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.292
AS PRAGAS DO BRASIL: AS FORMIGAS E O COTIDIANO DOS COLONOS NA
AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI
Carlos Eduardo Rodrigues∗;
Fabiano Bracht∗∗;
Felippe Estevam Jaques∗∗∗;
Christian Fausto M. dos Santos∗∗∗∗.
Seria difícil exprimir por palavras as diversas espécies de formigas que são de várias
naturezas e nomes, porque na língua brasílica é muito usado dar nomes diversos a
espécies diversas, e raras vezes se nomeiam os gêneros por nome próprio [...] quanto
às formigas, só parecem dignas de menção as que destroem as árvores, de nome içá,
arruivadas que esmagadas cheiram a limão e cavam para si grandes casas debaixo da
terra. Na primavera, isto é, em Setembro e daí por diante, fazem sair o enxame de
filhos quase sempre num dia seguinte ao da chuva dos trovões, se fizer bom sol.
(Carta do ir. José de Anchieta ao P. Diego Laynes, São Vicente, 1560)
Ao primeiro contato com o Novo Mundo a Mata Atlântica se apresenta no horizonte dos
portugueses com a exuberância de sua fauna e flora apresentando as riquezas da nova terra
descoberta. E atraídos por estas riquezas mesmos sem compreender os nativos, procuraram
logo estabelece relações, nesse processo as árvores de pau-brasil deram lugar aos primeiros
povoados. Porém a bela e rica Mata Atlântica escondia os menores e mais nocivos inimigos
para esta marcha colonizatória: os insetos. Dentre as pragas que infernizaram os colonos, as
formigas eram as mais avassaladoras e destrutivas, tanto para as plantações, quanto para os
povoados e desempenhavam grande transtorno para a economia e o cotidiano dos colonos.
Sua importância era tamanha que o grande senhor de engenho e cronista, Gabriel Soares de
Sousa em suas considerações sobre a nova terra dedicou algumas páginas de seu tratado para
discuti-la.
O colonizador e dono de engenho, comerciante e navegador português, natural de
Ribatejo, Gabriel Soares de Sousa viveu aproximadamente entre 1540 a 1592. Chegou ao
∗
Acadêmico do curso de História pela Universidade Estadual de Maringá. e-mail: [email protected]
telefone: (44) 9141-8882.
∗∗
Graduado em História. Professor do Ensino Médio do Nobel Sistema de Ensino (Maringá-PR). e-mail:
[email protected]
∗∗∗
Graduado em História. Professor do Ensino Médio (Cianorte-PR). email: [email protected]
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Brasil em 1569 com quase 30 anos de idade onde se casou com Ana de Argolo, montou um
engenho de açúcar em Jequiriça e uma fazenda criatória em Jaquaripe. Considerado por José
Honório Rodrigues como “o maior de todos os cronistas da época”, descreveu em seu tratado
suas propriedades e alguns engenhos do recôncavo baiano. Entusiasmando com as amostras
de ouro e prata trazida por seu irmão João Coelho de Sousa, chefe de uma expedição aos
“sertões do São Francisco”, este falecido em 1580, Gabriel Soares adentra aos sertões em
busca de ouro aonde viria a falecer em 1592, no rio Paraguaçu, nascente do rio São Francisco,
no mesmo lugar que seu irmão. No testamento escrito em 1584, deixou terras, escravos,
gados, índios forros, casas, fazendas, engenhos de açúcar e duas obras: os polêmicos
Capítulos contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil e o Tratado
Descritivo do Brasil, obra dividida em “Roteiro Geral da costa Brasílica” com informações
geográficas, e o “Memorial e declaração das grandezas do Brasil”, ambas as obras escritas e
oferecidas ao fidalgo português Dom Cristovão de Moura em 1587. Possivelmente foi
sepultado no mosteiro São Bento com um epitáfio determinado em seu testamento dizendo:
“Aqui jaz um pecador”. (VAINFAS, 2001, p. 260-261)
As literaturas de viagem provocaram uma revolução nos estudos de da História Natural.
As notícias sobre animais e plantas encontrados no Tratado descritivo do Brasil em 1587, de
Gabriel Soares de Sousa e na História da Província de Santa Cruz, de Pero Magalhães
Gândavo, trouxeram novos conhecimentos e/ou derrubaram mitos acerca da relação homemnatureza no período das grandes expansões européias. Alguns exploradores portugueses como
Afonso Gonçalves, Baldaia, Nuno Tristão e o próprio Gabriel Soares que estabelecera
contatos com terras fora da Europa, fizeram uso da observação da natureza para adquirir
novos conhecimentos que se acumularam na medida em que os descobrimentos avançavam o
interior do Novo Mundo.
Os relatos dos cronistas do século XVI, que passaram pelo Brasil seguiram modelos
distintos de escritas, cada autor partiu de dados e locais concretos particulares, entrelaçando o
real, o visualizado e o memorizado. Esses escritos eram, majoritariamente, realizados a
posteriori, no mínimo um ano após o contato com a região descrita, sendo resultados das
memórias desses autores ou transcrições de outros cronistas que aqui estivaram dos quais
observaram a terra e seus habitantes de ângulos, lugares e períodos distintos, seja pelo litoral
norte como a carta de Pero Vaz de Caminha em 1500, no convívio com os nativos da região
∗∗∗∗
Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-RJ), Professor
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá.
e-mail: [email protected]
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do atual Rio de Janeiro como Hans Staden em 1547 à 1550 ou em meio a “mata” como
Gabriel Soares Sousa que esteve na Colônia entre 1569 à 1580. Gabriel Soares retrata a
geografia, a fauna, a flora e os habitantes da costa brasileira, do rio Amazonas ao rio da Prata
além de fazer um memorial das grandezas da Bahia. (CORREA, 2006, p.72).
Entre a variedade de animais e plantas apresentadas no Tratado Descritivo de Gabriel
Soares, chama-nos a atenção a dedicação do autor em detalhar os insetos encontrados na
América Portuguesa, sua variedade e influência na vida cotidiana. Especial destaque é dado as
formigas, demonstrando a importância deste inseto e a extrema preocupação do autor em se
atentar a todo e qualquer ser vivo que habite nesse Novo Mundo.
Dividido em quatro capítulos1, os relatos sobre as formigas apresentam varias
informações acerca deste inseto, como a fisiologia das “[...] turusá, que são ruivas, e têm o
corpo tamanho como grão de trigo, e grande boca [...]” e das “Tacibura [...] que são
pequenas de corpo e têm grande cabeça, têm dois corninhos nela; são pretas [...]” e os
hábitos e habitats das “[...] taciaí, que são grandes e pretas, e criam-se debaixo do chão [...]
mas não se afastam muito do seu formigueiro.” e das ubiraipu “[...] que se criam nos pés das
arvores [...]” (SOUSA, 2000, p.208). A influência aristotélica se faz presente nas
classificações dessas formigas separando-as pela estrutura anatômica, pelo habitat e modo de
reprodução, distinguindo as aladas das não aladas além da atribuição de inferioridade a esses
insetos sociais por não possuírem sangue e viverem em lugares podres, úmidos e em
decomposição nos quais, segundo Gabriel Soares, eram gerados. Encontramos também em
tais descrições, a preocupação em determinar o útil e o não útil na natureza bem como a
ausência das figuras de linguagem tão comuns nos Bestiários Medievais2 presente nas
crônicas do francês Jean Léry (1557-1558) e do português Pero de Magalhães Gândavo
(1565-1570). Em suma, os relatos de Gabriel Soares se aproximam de um relatório, objetivo,
prático e didático.
Ao partir do pré-suposto aristotélico, Gabriel Soares estabeleceu uma relação entre
formiga e podridão. Esta relação se apresenta nas observações dos habitats de alguns desses
insetos, onde do autor indica ser a putrefação o local de “nascimento” das mesmas: as “[...]
tapicema, que se criam nos mangues [...]”, as ubiraipu “[...] se criam nos pés das arvores [...]
as quais se mantêm das folhas das árvores e da podridão do côncavo delas [...]” e a tacibura
“[...] criam-se nos paus podres que estão no chão [...]” (SOUSA, 2000, p.208). Essas
formigas têm seu habitat na podridão dos paus e das árvores, ou nos úmidos mangues do
litoral, onde recolhem pedaços de plantas que servem para a cultura de fungos da família
Lepiotaceae. Estes, por sua vez, são cultivados por algumas espécies de formigas em galerias
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dentro dos formigueiros para que posteriormente sirvam de alimento. Talvez o fato, aceito no
século XVI, de que a maioria dos insetos “nasciam” da podridão, levou ao espanto os
europeus quando viram que os indígenas tinham, em seu cardápio abdômen de formiga
tanajura, larvas encontradas em taquaras e mesmo marimbondos e ninhos de cupins (POSEY,
1979, p.56). Em Gabriel Soares encontramos o caso das formigas içás:
[...] a estas formigas comem os índios torradas sobre o fogo, e fazem-lhe muita festa;
e alguns homens brancos que andam entre eles, e os mestiços, têm por bom jantar, e
o gabam de saboroso, dizendo que sabem a passas de Alicante; e torradas são
brancas por dentro. (SOUSA, 2000, p.208)
Estas formigas do gênero Atta que conta, aproximadamente, com 200 espécies, são
chamadas de içá por conta do tupi-guarani Yçaba, que quer dizer gordura, pois seu abdômen
ovado era considerado como gordura e, deste modo, comestível depois de torrado (CLEROT,
1959, p. 59). O consumo desta exótica fonte de proteína era uma tradição indígena.
Entretanto, não se passaram muitos anos até que o europeu provasse e aprovasse o consumo
de içás torradas. O próprio José de Anchieta parece ter gostado do quitute de formigas:
Para ver quando elas saem de suas cavernas ajuntam-se as aves, ajuntam-se os
índios, que ansiosamente esperam este tempo, tanto homens como mulheres: deixam
as suas casas, apressam-se, correm com grande alegria e saltos de prazer para colher
os frutos novos. [...] enchem os seus vasos, isto é, certas cabaças grandes, voltam
para casa, assam-nas em vasilhas de barro e comem-nas; assim torradas, conservamse por muitos dias, sem se corromperem. Quão deleitável é essa comida e como é
saudável, sabemo-lo nós, que a provamos. (ANCHIETA, 1997, p. 28)
Mesmo o venerável jesuíta cede ao prato indígena a base de formigas.
Boa parte acerca das discussões sobre as formigas no tratado de Gabriel Soares está
relacionada à economia mercantil sobre os males causados pelas mesmas nas atividades
agrícolas. Assim, duas formigas merecem destaque: as ussaúba, mais conhecida como saúva e
as guajuguaju, conhecidas como formigas-de-passagem.
As formigas-de-passagem, as que os índios chamam de guajuguaju, ou “saca-saca”, ou
“morupeteca”, ou “toca” – formiga de correição, são várias espécies da subfamília Doeylinae.
Tais formigas são conhecidas por organizarem expedições de caça predando todo e qualquer
animal que consigam dominar, matar e destrinchar. Por serem carnívoras, este comportamento
de "caça arrastão" promovia, durante o período colonial, a fuga não somente de animais e
outros insetos, mas dos seres humanos também. Com cerca de 200 espécies a natureza destas
formigas é estranha para Gabriel Soares por não construírem colônias e terem um modo de
vida em constante movimento, organizam expedições periódicas de milhares de indivíduos
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“[...] as quais vão andando em ala de mil em cada fileira [...]” e que “[...] são tantas estas
formigas, quando passam, que não há fogo que baste para as queimar [...]” (SOUSA, 2000,
p. 207). Quando acontece este arrastão, tudo que se encontra no caminho acaba sendo
devorando inclusive os pequenos animais:
[...] onde matam as baratas, as aranhas e os ratos, e todos os bichos que andam; e são
tantas que os cobrem de improviso, e entram-lhes pelos olhos, orelhas e narizes, e
pelas partes baixas, e assim os levam para os seus aposentos, e a tudo o que matam
[...] e acham a roupa da cama no chão, por onde elas subam, fazem alevantar mui
depressa a quem nela jaz, e andar por cima das caixas e cadeiras, sapateando,
lançando-as fora e coçando; porque elas, em chegando, cobrem uma pessoa toda, e
se acham cachorros e gatos dormindo, dão neles de feição, e em outros animais, que
os fazem voar; e matam também as cobras que acham descuidadas; e viu-se por
muitas vezes levarem-nas estas formigas a rastões infinidades delas; e matam-nas
primeiro entrando-lhes pelos olhos e ouvidos, por onde as tratam e mordem tão mal,
e de feição que as acabam. (SOUSA, 2000, p.207)
Para Gabriel Soares há algo de vantajoso a ser tirado nos “rastões” das guajuguaju ,
pois, para nosso cronista, estas formigas contribuem para o controle sanitário das moradias e
vilas coloniais ao exterminar as demais pragas nocivas a saúde do homem como as baratas,
aranhas, ratos, cobras, etc., mesmo que causem inúmeros transtornos para seus residentes e
animais domésticos. Nesse sentido as formigas de correição possuem um caráter ambíguo,
pois contribuem para limpeza do ambiente de diversas pragas, mas por outro lado são um
perigo real para outros seres como o homem e animais domésticos. Logo, qualquer tipo de
criação de animais domésticos era consideravelmente prejudicada pela ação destas formigas.
Outra formiga digna de atenção são as saúvas - ussaúba, também conhecidas como
cortadeiras – Acromyrmex sp. e Atta sp, já no século XVI são uma unanimidade quando se
pensava em “pragas” para o cultivo agrícola e sobrevivência humana. Estes gêneros são, até
hoje, extremamente prejudiciais a agricultura sendo imensamente agressivas durante suas
incursões na busca pelos galhos e folhas de plantas que servirão de meio de cultura para o
fungo que cultivam nas galerias do formigueiro.
[...] "ussaúba", que é a praga do Brasil, as quais são como as grandes de Portugal,
mas mordem muito e onde chegam destroem as roças de mandioca, as hortas de
árvores da Espanha, as laranjeiras, romeiras e parreiras. [...] as quais formigas vêm
de muito longe de noite buscar uma roça de mandioca [...] e passa logo por aquela
palha tamanha multidão delas que antes que seja manhã, lhe dão com toda a folha no
chão; e se as roças e árvores estão cheias de mato de redor, não lhes fazem mal, mas
tanto que as vêem limpas, como que entende que tem gosto a gente disto, saltam
nelas de noite, e dão-lhe com a folha no chão [...]. (SOUSA, 2000, p.206)
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A ferocidade e velocidade com que estas formigas destroem as lavouras foram, entre
outras coisas, uma das causas imediatas das dificuldades encontradas pelos colonos para
realizarem o povoamento e a agricultura nas terras do Brasil, como aponta Gabriel Soares:
[...] se elas [as saúvas] não foram que o despovoará muita parte da Espanha
[Portugal na época estava unida à Coroa espanhola] para irem povoar o Brasil; pois
se dá nele tudo o que se pode desejar, o que esta maldição impede, de maneira que
tira o gosto aos homens de plantarem senão aquilo sem o que não podem viver na
terra. (SOUSA, 2000, p.206-207)
Embora Gabriel Soares se depare um dos solos mais ricos do mundo em termos
agrícolas, ou seja, o massapê, as tentativas de se introduzir uma agricultura aos moldes
europeus dava-se por fracasso devido aos frequentes ataques das cortadeiras acusadas pelos
lavradores colônias de serem os limitadores do desenvolvimento da agricultura
(ASSUNÇÃO, 2000, p. 213). Além de Gabriel Soares, outros cronistas levantaram
depoimentos acerca da ferocidade das formigas. Padre Anchieta apesar de não ver grandes
problemas nas içás em um prato de comida, as caracteriza como o mal que comprometia a
expansão geográfica por destruírem as lavouras (ANCHIETA, 1997, p. 28). Brandônio em
1618 escreveu em seu Diálogos da grandeza do Brasil a culpabilidade das formigas pela a
não prosperidade da produção de vinho (ABREU, 1956, p. 104). E no século XVII o médico
holandês Guilherme de Piso testemunha a ferocidade dessas pragas que se produziam em
“imenso exército” se alimentado de “peixes, carnes, hortaliças e frutas (só se abstêm dos
ácidos), e até de insetos venenosos, escorpiões, escolopendras, ratos silvestres e quejandos,
sem risco”. (PISO, 1967, p. 604-605)
Por toda a extensão da Mata Atlântica encontramos cinco espécies distintas de formigas
dos gêneros Atta e Acromyrmex que se adaptaram facilmente ao clima da região tropical e
subtropical por serem consumidores de fungos da família Lepiotaceae cultivados nas galerias
de suas colônias. Já as formigas do gênero Azteca, conhecidas como formiga-de-ambaúba,
vivem em mutualismo com algumas árvores da família Cecropiaceae, pois estas apresentam
os troncos, nós e entrenós ocos, fornecendo assim, uma morada para a colônia de formigas
que, em troca, defende a árvore hospedeira de qualquer inseto que queira se alimentar da
mesma.
Nas florestas primárias as formigas conviviam em constante competição com outras
espécies além de estarem submetidas aos predadores naturais. Algumas plantas
desenvolveram toxinas para repeli-las, pássaros, rãs e principalmente os tamanduás se
encarregavam de comê-las garantindo assim o equilíbrio ecológico. (DEAN,1996, p.126)
Juntamente com os pássaros nativos com formas, cores e cantos que encantavam o
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colonizador, o tamanduá, por sua exuberância, acabou sendo condenado pela maciça
exportação para os Gabinetes de Curiosidade3 espalhados pela Europa, acelerando sua
extinção e o aumento da populacional das formigas. (RIBEIRO, 2006)
As medidas anti-formiga adotadas pelos homens foram inúteis até o século XX. Os
colonos descalços e portando apenas uma enxada eram presas fácies para as cortadeiras que,
por sua vez, recusavam qualquer tipo de isca que podiam danificar suas reservas de fungos.
Tentava-se inundar com água ou injetar fumaças com foles de plantas rejeitadas pelas
formigas, ambas tentativas eram em vão, já que os corredores eram projetados para drenar a
água da chuva e a fumaça não alcançava profundidade suficiente. As formigas só não estavam
presentes em solos baixos, arenosos e úmidos. Em solos úmidos, as formigas ficavam
impedidas de montar formigueiros devido aos elevados lençóis freáticos, o que “explica a
concentração de atividades agrícolas e pastoris na região encharcada de Campos e na planície
de Santa Cruz e o plantio em ilhas fluviais e alagados. Por outro lado, eliminar as saúvas era
contraproducente, já que as formigas realizavam uma tarefa hercúlea de melhorar as
qualidades mecânicas do solo e transportar seus nutrientes. Uma colônia madura revolvia, por
ano, uma quantidade média de solo para cobrir um hectare com profundidade de dois
centímetros”. (DEAN, 1996, p.127)
Uma manobra utilizada pelos colonos para escaparem das cortadeiras era abandonar os
velhos campos e queimar novas faixas de terra da mesma forma que faziam os índios com a
agricultura de coivara4, menos invasiva à vegetação “porque imita a escala natural de
perturbação e, em vez de congelar permanentemente o processo de sucessão, apenas o explora
de forma temporária” (Ibdem, p. 45). Este dado foi observado por Gabriel Soares: “[...] nas
terras novas não há formiga que faça nojo a nada.” (2000, p. 173) o lavrador podia contar
com dois ou três anos de plantio e colheita avançando a área queimada para se distanciar das
cortadeiras. Praticamente todos os cronistas do século XVI levantaram queixas sobre as
cortadeiras, concordando com sua agressividade e resistência a todos os métodos defensivos
ou como sendo a causa potencial da persistência da agricultura itinerante que impedia a
aplicação do arado e a aceleração do processo de desmatamento da Mata atlântica (LISBOA,
1804). Esta “competição” entre homens e formigas se manteve com um regular equilíbrio até
o século XX quando foi introduzido no meio rural e urbano o uso maciço dos inseticidas
inorgânicos que conseguiam atingir camadas mais profundas do solo e eliminar a formiga
rainha.
Nos relatos de Gabriel Soares as formigas são constantemente apontadas como pragas,
conceito restrito a ação desses insetos nas atividades humanas como a destruição das
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plantações pelas as saúvas ou atacando os animais domésticos com as formigas-de-passagem.
Dentro do imaginário cristão europeu de inícios da Modernidade, a palavra praga ainda fazia
certa referência as setes pragas do Egito descritas na bíblia. Hoje, o conceito de praga engloba
desde os vetores causadores patologias humana ou animal, aos surtos de crescimento de
determinadas espécies nocivas a agricultura ou as que possam vir a desequilibrar qualquer
ecossistema. Assim, a imensa quantidade de formigas encontradas na América Portuguesa se
apresenta como umas das maiores barreiras para o desenvolvimento da economia e o
estabelecimento do colono.
A excessiva preocupação do senhor de engenho, Gabriel Soares, com as saúvas, dava-se
pelas ações destas pragas nas lavouras de cana-de-açúcar, pois estas impossibilitavam o
estabelecimento de atividades lucrativas, bem como a formação de uma colonização de
povoamento das terras do Brasil (DEAN, 1996, p. 124). Para desenvolver a atividade
econômica da cana-de-açúcar era necessário povoar estas terras. Este problema de ordem
entomológica, durante o processo de colonização da América Portuguesa, teve um peso
crucial.
O processo de colonização contribuiu muito para a proliferação das formigas sobre as
lavouras de cana-de-açúcar e para as demais atividades humanas, já que em terrenos
cultivados pelo sistema de coivara se afugentava os predadores naturais acelerando um
processo de desequilíbrio ecológico que se iniciou no primeiro dia de colonização.
Com a derrubada das matas, o ecossistema se desequilibra e as queimadas se
encarregam de limpar os resquícios de floresta para o cultivo da cana-de-açúcar ao longo das
Capitanias Hereditárias5 sobre as colônias de formigas ocultas abaixo do solo e ilesas as
queimadas. Sem predadores naturais e nem defensivos agrícolas artificiais, hoje, a única
maneira de controle dessas pragas, a população de formigas disparava e os portugueses viamse impossibilitado de combatê-las. Estes insetos eusociais que se multiplicavam à medida que
as queimadas avançavam e eliminavam as plantas que serviam de matéria prima para o
cultivo de seus fungos, tinham como única alternativa atirar-se sobre cana-de-açúcar para
suprirem o cultivo de seu alimento.
Antes mesmo dos portugueses aqui chegarem, os índios americanos tiverem problemas
semelhantes com as formigas. Quando Sousa relata a ação das saúvas, refere-se a uma roça de
mandioca: “[...] vêm de muito longe de noite buscar uma roça de mandioca [...]” (Ibdem,
p.206), uma planta nativa do Brasil cultivada pelos índios e que leva em média 18 meses para
alcançar o período de colheita. Obviamente, que a técnica de coivara adotada pelos
portugueses já era praticada pelos indígenas há muito tempo, quando domesticaram as
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primeiras plantas com potencial agrícola. Porém, as saúvas não deveriam causar tantos
problemas aos agricultores indígenas, principalmente pela escala em que a prática da coivara
era adotada. Uma pequena plantação de mandioca, no meio da floresta tropical, era somente
mais uma das inúmeras opções de plantas a serem colhidas e levadas até a colônia pelas
saúvas. O principal problema dos portugueses com estas formigas, advinha do fato destes
deixarem as saúvas sem opções a não ser a de atacar as folhagens e colmos da cana-de-açúcar.
Das dez formigas apresentada por Gabriel Soares, todas possuem algumas
particularidade. As içás e as quibuquibura são as formigas grandes e saem de suas colônias
voando após a chover; as guajuguaju (as formigas-de-passagem), pequenas e ruivas são
itinerantes que “[…] de tempos em tempos, se saem da cova, majoritariamente depois que
chove muito [...]” (Ibdem, p.207); as grandes e pretas taciaí “[...] criam-se debaixo do chão
[...] mas não se afastam muito do seu formigueiro [...]”, diferente das saúvas que se
distanciam de suas colônias para “atacarem” longas plantações. Existem as que se criam nos
mangues “[...] que fazem ninho da terra nestas árvores, obrados como favo de mel [...]”,
estas são as pequenas tacicema que não mordem, assim como as tacipitanga, pequenas que,
“[...] se criam pelas casas em lugares ocultos, que se não podem achar, mas como as coisas
doces entram em casa, logo lhes dão assalto [...]”. As içás servem de alimentos, já as ussaúba
(a saúva) é a praga do Brasil. Se é da podridão dos pés das árvores que as pardas e pequenas
ubirapu vivem estas fazem companhia às tacibura, residentes dos “[...] paus podres que estão
no chão [...]”; se as guajuguaju (formigas-de-passagem) são tantas que “[...] quando passam,
não há fogo que baste para queimar [...]” (Ibdem, p.208) e deter o avanço da tropa, essas
juntamente com as saúvas dificultaram a vida dos colonos portugueses, prejudicaram suas
plantações e atacaram seus animais domésticos, dificultando consideravelmente a
possibilidade de estabelecimento de uma agricultura européia abaixo do equador.
Em suma, as literaturas de viagens provocaram uma revolução no estudo de da História
Natural. Os relatos dos cronistas do século XVI trouxeram informações acerca dos nativos, o
que plantavam o que comiam, sua relação com o ecossistema e as dificuldades que os novos
ocupantes da terra tiveram para se estabelecerem num mundo novo, repleto de animais
estranhos e exóticos, de plantas extravagantes e de insetos enormes, abundantes e extremante
nocivos. Para sobreviverem nas novas terras, os portugueses se relacionaram intimamente
com os nativos, aprenderam com eles não somente a técnica a coivara, ou a comer mandioca
eles aprenderam também a importância de um amplo saber acerca da natureza, de uma
sofisticada sistemática nativa que apreendia os menores detalhes morfológicos e
comportamentais no que se referia a uma ampla gama de insetos eusociais que poderiam ser,
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tanto uma ótima fonte de proteína, quanto uma ameaça a agricultura e a própria integridade
física do colonizador. Devemos nos atentar para o fato de que foi a ocupação massiva do
litoral, e a conseqüente derrubada da Mata Atlântica para dar lugar a cana-de-açúcar, que
gerou o paradigma da saúva, ou seja, foi a ausência de predadores naturais e fontes de
alimentação silvestre que geraram um reequilíbrio ambiental na qual as formigas obtiveram
franca vantagem e, consequentemente, uma explosão populacional. Aliado a isso, a cana-deaçúcar, bem como as verduras, legumes e frutas trazidas pelo português para serem cultivados
em hortas e pomares, foram muito bem aceitos como substitutos para o cultivos dos fungos
da família Lepiotaceae.
Se Gabriel Soares se preocupou em descrever minuciosamente as pequeninas formigas,
esta manifestação vai além do simples caráter utilitarista. Ela nos revela também um
colonizador português meticuloso, criterioso e preocupado em observar, descrever e
classificar o meio ao seu redor.
Notas
1
“Que trata das formigas que mais dano fazem, que se chamam saúva” (SOUSA, 2000, p.206), “Em que trata da
natureza das formigas-de-passagem” (Ibdem, p.207), ”Que trata da natureza de certas formigas grandes.”
(Ibdem, p.207) e “Que trata de diversas castas de formigas.” (Ibdem, p.208)
2
Os Bestiários Medievais são listas das mais variadas espécies – e não necessariamente existentes – catalogados
segundo as suas propriedades naturais e os seus valores simbólicos e morais. Produto de uma cultura rigidamente
classificatória, os bestiários – juntamente com os herbários (listas de erva, flores e plantas) e os lapidários
(compilações de pedras e de fósseis) – representam muito bem a tendência que a Idade Média herdou das épocas
anteriores para interpretar o mundo natural como manifestação exterior de uma realidade superior e distinta, da
qual a realidade real seria um simples epifenómeno. (FINAZZI-AGRÒ, 1993, p. 83).
3
Os Gabinetes de Curiosidades ou Os quartos das Maravilhas eram lugares onde os diversos reinos europeus
colecionavam multipicidades de curiosidades e achados dos diversos lugares do mundo entre os séulos XVI e
XVIII. A maioria vinha do Novo Mundo e consistia de três ramos da História Natural: animal, vegetal e mineral,
além de abranger artefatos raros, extraordinárias, monstruosos e exóticos, permitindo a quem não podia viajar
um contato tangível com objetos e curiosidade de diversas parte do mundo. (DIAS, 2001, p, 127)
4
A agricultura itinerante, migratória, de caiçara, de pousio ou de coivara é caracterizada por formação de roças a
partir da abertura e queima de áreas de mata primária ou parcela em regeneração, que se alternam em períodos
de cultivo (2-4 anos) e períodos de pousio florestal (3-7 anos). Essa prática foi utilizada pelos índios e
portugueses e ainda se faz presente em comunidades espalhadas pelo interior do Brasil. Nas regiões onde
normalmente esta prática é realizada se restringe a situações onde existe mata em abundância, gerando muitas
fontes de propágulos (sementes e mudas) de espécies florestais. (AGRICULTURA, 2004).
5
Implantadas em 1532 por Dom João III, as Capitanias Hereditarias eram as primeiras estruturas de governo
implantada na colônia. Eram governadas pelos Capitãos Donatários que recebiam a terra por doação real. Ao
todo foram 14 capitanias para 12 capitãos, distribuidas ao longo do litoral brasileiro. (ALVEAL, 2005, p. 88-90)
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Capistrano de. Diálogos das grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes
Brandão. Salvador : Progresso, 1956.
AGRICULTURA migratória: redução de custos e preservação do meio ambiente. Embrapa,
29
de
Nov.
2004.
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