Um pouco de Paik em todos nós
Transcrição
Um pouco de Paik em todos nós
Um pouco de Paik em todos nós lucas bambozzi Quando no início dos anos 90 me dei conta de que estava perdido em algum lugar entre a TV, o vídeo independente, o cinema experimental e alguma coisa que tinha a ver com arte contemporânea, percebi também que haviam luzes demarcando esse caminho desconexo e tumultuado. Essas luzes vinham do que via, lia e ouvia falar de Nam June Paik. As luzes indicavam caminhos incríveis mas fui entendendo depois que não eram vias muito certeiras. Pelo contrário, eram luzes caóticas, que brincavam com a profusão de possibilidades, indicativos de que estar perdido fazia parte desse caminho. Foi por esses tempos que vi uma reportagem sobre o célebre sintetizador de imagens que Paik havia construído com Shuya Abe em 1969 com o apoio da rede de TV pública de Boston (WGBH-TV). Me parecia uma situação especial que revelava muitos lados de uma mesma ‘coisa’. Enquanto no Brasil os artistas flertavam com o esquema da TV, Paik já estava lá dentro ditando subversões, fazendo a WGBH investir seriamente numa ‘traquitana’ de uso aparentemente pouco sério. Paik, um pianista indisciplinado, queria não apenas um instrumento onde as imagens pudessem ser tocadas com uma fluência típica da música, como também pretendia ‘desreferencializar’ a imagem de vídeo da realidade, buscando distorções, abstrações, colorizações e formas visuais sintéticas, afirmando essa longa relação amorosa entre os procedimentos de produção de imagem e som -- Paik queria fazer vídeo como se faz música. Mas acima de tudo o invento parecia constituir um desses momentos raros em que uma ousadia nas artes significa um avanço na engenharia.1 Paik dizia que os estúdios grandes e sofisticados o amedrontavam, o faziam perder sua identidade. Sua famosa frase: ‘Eu uso tecnologia para odiá-la melhor’ vem do contato com esses grandes estúdios e estruturas imponentes. Ironicamente o vídeo sintetizador se tornou possível através de um grande estúdio (a WGBH TV). Uma espécie de ‘máquina anti-máquina’2, como Paik o chamava, se tornou uma invenção que finalmente poderia ser usada ‘contra’ sua estrutura criadora, ou seja, a lógica da TV e sua necessidade de seguir padrões de qualidade, falar com objetividade e Instrumentos e computadores dedicados ao processamento de vídeo em tempo real surgiram logo depois, mais notadamente no início dos anos 80, como o CVI (Computer Vídeo Instrument) da Fairlight, os Paintbox da Quantel, o computador Amiga 1000 da Commodore (1985) dentre outros, o que tornou viáveis a um número maior de artistas do vídeo alguns dos devaneios visuais vislumbrados por Paik. 2 Textos de Nam June Paik, em Paik Nam June Museum <http://www.paiknamjune.org/eng/paiknamjune_04_07.htm> 1 aliciar grandes audiências. O sintetizador simbolizava a vitória da ‘super-infidelidade sobre a alta fidelidade (hi-fi) -- como a dizer: o adultério é mais interessante que o casamento’.3 Entre 1969 e 1971, juntamente com o engenheiro de televisão Shuya Abe, Paik construiu o famoso sintetizador que tornava possível a ‘mixagem’ em tempo real de sete fontes simultâneas de video. O uso da ironia e humor por parte de Paik em suas performances e invenções dialogavam com as tecnologias existentes e revelavam as contradições de uma época. Em muitos trabalhos de Paik, percebe-se a simulação de técnicas high-end, supostamente sofisticadas, mas produzidas muitas vezes de forma propositadamente tosca. Os efeitos visuais excessivos em seus vídeos, as referências às utopias da ficção científica, seus robôs e máquinas estranhas, o enaltecimento dos eletrodomésticos eram parte inerente de seu estado de espírito caótico mas também de sua visão critica com relação à tecnologia. 3 Textos de NamJune Paik. Fonte: <http://www.paiknamjune.org/eng/paiknamjune_04_07.htm> Passaram-se muitos anos para que eu pudesse compreender melhor o quanto alguns desses pensamentos de Paik estavam introjetados em minhas práticas. Em 2004 desenvolvi o projeto Spio,4 claramente inspirado na forma irônica de Paik em se relacionar com as tecnologias cibernéticas5. O projeto fazia alusão não apenas ao sintetizador Abe/Paik no que se refere ao processamento de imagens, como também ao primeiro de uma série de robôs criado por Paik em 1964, o K-456, como projetos que evocam algum tipo de desordem, algo improvável de ser encontrado nas rotinas das máquinas. Spio foi criado como um sistema autônomo de captação, processamento e transmissão (webcasting) de imagens geradas por câmeras de vigilância, montado sobre um eletrodoméstico ‘inteligente’ (Roomba, a robotic floor vac’6): Um aspirador de pó ‘robotizado’ percorre o espaço da instalação em movimentos pré-definidos, disparando eventos sonoros e visuais. O sistema se retro-alimenta através da interferência de luzes e sons, e a partir da interação com os visitantes, os movimentos do ‘robô’ se tornam caóticos e as imagens sofrem interferências.7 Spio foi pensado como paródia aos procedimentos e tecnologias intrusivas muitas vezes utilizados como forma de gerar espetáculo e entretenimento. Trata-se de um modelo de pensamento, que se vale de brinquedos e procedimentos aparentemente ingênuos de produção de imagens para retratar um contexto voltado para os domínios do político e das liberdades civís em conflito com as tecnologias da comunicação. O projeto Spio foi apresentado pela primeira vez no Itaú Cultural, na exposição Emoção Art.Ficial 2.0, em 2004. 5 Paik cultivava uma relação de admiração e ódio com relação a criador da cibernética, Norbert Wiener autor de Cybernetics or Control and Communication in the Animal and the Machine (MIT Press, 1948). 4 6 Hoje há vários modelos disponíveis na loja virtual do fabricante: http://www.irobot.com/consumer/ 7 Descrição do trabalho retirada do projeto enviado ao ItaúCutltural. Spio em ação no Emoção Art.Ficial 2.0, no Itaú Cultural em São Paulo (2004). Denominei o sistema de ‘degenerativo’, em menção irônica aos generative systems, que processam eventos de forma automatizada, geralmente a partir de algorítimos pré-definidos. Uma vez que a automação definida para o trabalho tendia mais para o caos do que para a repetição de padrões, o projeto indicava um pensamento tipicamente paikiano, no sentido em que pretendia lançar as tecnologias do vídeo em direção a ambientes menos controlados. Os vídeos e performances não-tãosérias de Paik foram facilitados com uma criação como o sintetizador Paik/Abe, uma máquina que permitia interferências livres e randômicas nas imagens. De forma similar, o projeto Spio incorpora como um de seus componentes, um dispositivo de processamento de eventos audiovisuais, onde as imagens captadas pelas câmeras são ‘transformadas’ em tempo real em função da posição do aparato no espaço da instalação bem como a partir das interferências do público. Tanto a série de robôs criados a partir de 1964 como o sintetizador Abe/Paik evidenciavam a intenção de Paik em produzir uma arte em que se podia anexar ações performativas ao longo do processo, tendendo a uma perda de controle sobre o resultado final, como nos happenings. Os artistas do grupo Fluxus chamavam de Eventos Fluxus a esse tipo de performance que adquiria a forma de atividades banais ou cotidianas, tidas como desestruturadoras da cultura da música e das artes ditas ‘sérias’. O robô de Paik K-456 em performance nas ruas de New York, em 1964. Spio ‘fala’ sobre as supostas novas práticas que emergem da cultura digital ao mesmo tempo em que faz referências ao espírito Fluxus de apropriação de sistemas alheios ao sistema da arte, sugerindo novas nuances para os conceitos de reapropriação, re-contextualização e re-significação. Paik foi um grande mestre em manipular esses conceitos, reinventando muitas vezes suas próprias obras, reinserindo-a em contextos distintos e produzindo diferentes fricções e significações. Esse conjunto de intenções referenciadas no contexto de sedimentação da mídiaarte iniciado por Paik constitui o motor de vários de meus projetos atuais. O pensamento paikiano reverbera na forma como muitos artistas lidam com os sistemas que nos rodeiam, que nos demandam uma atuação como interatores, como ‘sujeitos que produzem significação, desestabilização ou pensamento crítico, o que pode ser feito como no caso de Paik, a partir da ironia, do humor e da subversão. Temos que continuar a aprender com Paik. Que seja para seguirmos caminhos que não sejam tão objetivos ou diretos, e que comportem o devaneio diante das tecnologias atuais ou como se diz hoje, “que ainda venham a existir”. lucas bambozzi . junho de 2006
Documentos relacionados
TV Cello (1971) Charlotte Moorman na apresentação do concerto
permitia pensar. A arte conceitual foi uma manifestação ocorrida em vários países, quase ao mesmo tempo. Uma geração de artistas e críticos que tomaram consciência sobre o estado em que se encontra...
Leia mais