dissertação de mestrado - sartre - fmfs

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dissertação de mestrado - sartre - fmfs
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FACULDADE DE SÃO BENTO
UNIDADE DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NÍVEL MESTRADO
Fabio Marques Ferreira Santos
A CONCEPÇÃO DE AUTONOMIA DO SER DISTANTE DE DEUS A PARTIR DO
PONTO DE VISTA SARTREANO
SÃO PAULO
2010
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Fabio Marques Ferreira Santos
A CONCEPÇÃO DE AUTONOMIA DO SER DISTANTE DE DEUS A PARTIR DO
PONTO DE VISTA SARTREANO
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção título de Mestre
em Filosofia, pelo Programa de PósGraduação em Filosofia da Faculdade
de São Bento.
Orientador: Dr. Franklin Leopoldo e Silva
SÃO PAULO
2010
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Fabio Marques Ferreira Santos
A CONCEPÇÃO DE AUTONOMIA DO SER DISTANTE DE DEUS A PARTIR DO
PONTO DE VISTA SARTREANO
Aprovado em (___) (___) (_______)
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Franklin Leopoldo e Silva – Universidade de São Paulo
___________________________________________________________________
José Carlos Bruni – Universidade de São Paulo
___________________________________________________________________
Daniel Pansarelli – Universidade Federal do ABC
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Dedico este trabalho a Minha amada mãe
pelo incansável apoio, mesmo nestes
instantes em que o tempo a fazem
pestanejar e as minhas filhas, meus grãos
de diamante, Brenda, Thabata e Hannah
Arendt, aos amigos do universo mágico
do Mosteiro e da Faculdade de Filosofia
de São Bento e a todos aqueles que de
alguma maneira contribuíram para o meu
crescimento intelectual.
5
AGRADECIMENTOS
À Faculdade de Filosofia de São Bento
Ao Professor orientador
Mestre e Doutor Franklin Leopoldo e Silva
Aos demais integrantes da Banca Examinadora
Professores Doutores José Carlos Bruni e Daniel Pansarelli
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Condenado à liberdade, estou condenado ao valor, mas
soberana e absolutamente livre aos meus valores, inclusive o
de existir como homem no seio do mundo, e livre, por isso
mesmo, em moldar o mundo segundo uma escolha que nada
determina a tomar SARTRE, Jean Paul, (2007).
RESUMO
SANTOS, Fabio Marques Ferreira Santos. Jean Paul Sartre: A Concepção
de Autonomia do Ser Distante de Deus a Partir do Ponto de Vista Sartreano.
São Paulo, 2010. Dissertação de Mestrado em Filosofia Política do Curso de
Mestrado de Filosofia, da Faculdade de São Bento.
Jean Paul Sartre, representa um pensador singular dentro de sua concepção
existencialista do termo, funde seu pensamento sobre o jaez de um ateísmo
extremado, por este foco que a dissertação encontra seu verdadeiro referencial, o
qual dá sustentabilidade ao desenvolvimento da concepção da autonomia do ser
distante de Deus a partir do ponto de vista sartreano, onde o homem como epicentro
é senhor do seu destino detendo uma autonomia enquanto ação em decorrência de
seus atos, os quais se desenvolvem por intermédio de uma liberdade gratuita e
indeterminada.
Palavras Chave: Sartre; Concepção de Autonomia; Existencialismo; Ser;
Deus.
Abstract
SANTOS, Fabio Marques Ferreira Santos. Jean Paul Sartre: The concept of
autonomy of Being Far from God, from the Sartrean view. São Paulo, 2010. Master
Thesis in Political Philosophy, of the Master of Philosophy Course, of the São Bento
College.
Jean Paul Sartre, represents a singular thinker within his existentialist
conception of the term, he merges his thinking about the kind of extreme atheism,
with this point, the dissertation finds its true referential, which gives sustainability
development of the concept of autonomy of the existence far from God, from the
Sartrean point of view, where the man, as epicenter, is the master of the destiny,
holding an autonomy, while the action is a result of the acts, which develops through
a free and unlimited freedom.
Keywords: Sartre; Concept of Autonomy; Existentialism; Existence; God.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10
2. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM SARTRE I .................................................. 14
3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM SARTRE II ................................................. 31
4. A CONCEPÇÃO DE AUTONOMIA DO SER DISTANTE DE DEUS A PARTIR DO
PONTO DE VISTA SARTREANO ........................................................................... 62
5. CONCLUSÃO .....................................................................................................100
6. REFERÊNCIAS .................................................................................................. 107
1. INTRODUÇÃO
A introdução de todo trabalho representa o caminho que conduzirá a obra que
se propõe a escrever. Nesse caminho o compromisso do autor é colossal, tendo em
vista que o seu compromisso é proporcionar ao leitor, senão um contato com o todo
da obra, ao menos colocá-lo em contato com as grandes questões filosóficas e
estimulá-lo e situá-lo dentro dos desafios que é este da filosofia.
Nesse sentido, é salutar esclarecer inicialmente que o presente trabalho está
desmembrado em seu núcleo institucional em três grandes capítulos, digamos assim
de “centrais”, os quais são representados pelos Conceitos Fundamentais em Sartre
Parte I e II e a Concepção de Autonomia do Ser Distante de Deus a Partir do Ponto
de Vista Sartreano, os capítulos dos Conceitos Fundamentais buscam dar
sustentabilidade ao iniciante em Sartre às bases de seu pensamento, facilitando
assim a compreensão e o seu entendimento, mais que isso, facilitando o acesso às
particularidades de seu existencialismo, quanto aos experientes pesquisadores
desse pensador a oportunidade de retomar os conceitos sempre realizando uma
nova releitura o que se revela essencial do ponto de vista pedagógico.
Quanto ao terceiro capítulo, este representa o grande crepúsculo do trabalho,
alude inevitavelmente o cerne da tese a qual pretende vencer os obstáculos
terminológicos e galgar sentido a elucidar o tema proposto com vigorosa coerência,
principalmente porque Sartre dialoga acirradamente com a problemática de fundo
em busca de melhor elucidá-la.
Outrossim, Sartre tem como ponto nevrálgico o homem, referencial que será
mantido na presente tese, no entanto, na presente pesquisa diante de sua dimensão
intercontinental os conceitos ser, eu e homem deverão ser interpretados como
sinônimos, evitando assim, qualquer divergência hermenêutica, neste sentido,
comporta ainda alguns apontamentos em busca de garantir a autenticidade do
pensamento de Sartre.
Nessa esteira, a concepção de autonomia deve ser compreendida dentro dos
contornos do pensamento sartreano, ou melhor, equivalendo ao exercício concreto
social do homem oriundo da liberdade enquanto indeterminação, outrossim, quanto
a palavra doutrina esta corresponde a demonstração de que diante da
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expressividade da corrente existencialista esta desde seu surgimento vem
albergando seguidores e defensores.
Em Sartre encontramos este despertar. Embora tenha registrado o apogeu de
sua filosofia no século XX, ainda em nossos dias podemos encontrar em sua obra
pontos que nos instigam a pesquisar e debater suas ideias, através das suas obras.
Nesse período que compreende o interstício secular de suas obras, notamos
que seu pensamento trouxe incômodos para a igreja e para todas as gerações que
sucederam sua filosofia, caracterizada de existencialista. Sartre nos chama a
atenção para a existência de uma verdade que durante muito tempo foi calada ou ao
menos o despertar pelo interesse de adentrar neste complexo e denso pensamento.
A corrente existencialista em Sartre é impar diante de sua distinção, frente a
outras correntes representadas por outros grandes pensadores, tais como:
Kierkegaard, Heidegger, Jaspers e Gabriel Marcel os quais não serão investigados
na presente pesquisa, Sartre, fresa sua singularidade ao romper com fé cristã, ao se
declarar ateu.
Na existência nos deparamos com o problema clássico da essência para a
compreensão efetivas das coisas sensíveis, neste ponto há uma fratura para que se
estabeleça uma nova concepção de compreensão da existência, onde “a existência
precede a essência”. Para esta corrente o sujeito se perfaz ao se relacionar com o
mundo externo em um processo de dialeticidade onde não existe um fim, isto em
decorrência dos efeitos da temporalidade, essa questão é essencial para o
entendimento do existencialismo.
Percebemos então que os conceitos que cristalizam esta corrente são
peculiares e sua investigação minuciosa sustentará a tese a ser defendida. O
homem nesse processo é admitido como um ser existencial, ele possui sua própria
existência em um procedimento de transitividade, onde alheio a ele nada existe, às
demais coisas, se existem, existem porque o homem existe, caso contrário não teria
significado, pois o homem existe e fornece significado às coisas e a si mesmo.
Nesse projeto existencial, o homem é caracterizado por uma condição
essencialmente humana, ou seja, inacabada e projetada para vida no mundo com os
demais homens. Essa condição, esse modo de ser no mundo, gera uma limitação
interior e exterior, onde podemos constatar a presença de limitações evitáveis e
inevitáveis. Essa situação do homem faz que o existencialismo tematize questões
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que colocam o homem no centro, tais como, o temor, a angustia, o tédio, a
melancolia e desespero, temas umbilicalmente ligados ao homem, enquanto ser
existente no mundo.
Vemos que dessa autonomia existencial surge uma concepção de
esvaziamento ou atrofiamento da moral que contrasta com a objetividade moral
estabelecida de um ponto de vista universal no mundo. A liberdade humana, tema
ícone do existencialismo, justifica esta ruptura ante qualquer ordem universal a qual
se existir chocaria com a unidade do ser.
Dessa forma, podemos inferir que este ser determina sua moral no seu
processo de singularização, no processo de hominização. Nesse processo, a ideia
diretriz passa pela construção da interioridade desse ser que o homem é e tem que
ser propriamente. Numa perspectiva existencial, Deus não tem interferência neste
processo de tornar-se homem livre e existencialmente dotado de autonomia, capaz
de entender, assumir e construir o seu destino.
Deus, nesse sentido, é um problema para o existencialismo, a medida que
Deus torna-se um obstáculo a ser superado, em prol do estabelecimento do homem
plenamente livre, livre até das amarras de um ser transcendente. Esta é uma
questão intrigante e através dela podemos pensar na possibilidade de que para
Sartre é assim que Deus aparece como um problema que deve ser enfrentado
filosoficamente, na busca de responder a várias questões conceituais que dizem
respeito à existência do homem.
Neste contexto, sabemos que a linguagem altera a realidade das coisas, nos
seduz, nos exalta e pode nos conduzir a um abismo sem volta, porém fica colocado
o problema: pensar ou morrer? Para Sartre a morte vem de fora e o pensar está no
ser para si em uma relação com o mundo. Temos ainda o problema de uma
linguagem difusa que foge da linguagem do momento histórico em que esta corrente
foi forjada, o que nos exige um constante esforço para reproduzir o pensamento
sartreano sendo fiel as intenções e objetivos dos seus conceitos, considerando o
contexto sócio-histórico do próprio pensador francês: sua origem, a disciplina e a
educação lhe foi imposta no período de sua formação, bem como a realidade
histórica em que viveu.
Isso será concretizado pela superação de uma condição natural de nós
humanos, outrossim, sabemos ou ao menos imaginamos que terá algo que a
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linguagem não tocará, porque exigirá um maior esforço do pensar. Nesse sentido, a
linguagem é ponto nodal, pois durante todo o processo histórico-concreto
encontramo-nos ante ao seccionamento das realidades, das verdades criadas pela
ilusão verbalizada da linguagem. Esse caráter seccionador e definidor de verdade
que a linguagem possui – a noção de Deus, por exemplo – constitui um desafio
perpétuo para os grandes pensadores que recuaram diante da incompreensibilidade
de tocar o que se buscava compreender, curvando-se a uma simples palavra
chamada Deus, tendo assim, suas teses solapadas pelo esvaziamento de seu
intelecto.
Na dimensão da existência, existe algo de misterioso que convida ao
interesse, não um simples interesse, mas aquele interesse que nasce pela
dificuldade de se chegar onde se pretende. Em Sartre, talvez o fator histórico-social,
sobretudo do período entre - guerras, tenha filosoficamente inibido-o. No entanto,
através dos seus escritos literários é notória a presença de uma voz que ecoa e,
repetidamente, afirma que Deus não interfere na existência do homem. O homem
existe. Por uma via estreita, uma passagem arriscada, através de sua obra-prima O
Ser e o Nada, podemos constatar esta assertiva.
Será um desafio, pois os mais prodigiosos pensadores e sábios de seu
tempo, tentaram perscrutar esta seara, mas não lograram êxito, deixando para as
próximas gerações ao menos uma chance pela tentativa, uma incógnita que com
humildade iremos navegar, buscando uma resposta clara e objetiva para refletir e
esclarecer a concepção de autonomia do ser distante de Deus, a partir do ponto de
vista Sartreano.
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2. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM SARTRE I
Sartre é o representante do existencialismo ateu, dentro da corrente filosófica
conhecida, genericamente, como existencialismo. A posição sartreana é marcada
pelo ateísmo e, por isso, diverge na forma e nas questões abordadas pelo
existencialismo como um todo. Essa diferença fica mais clara quando confrontamos
a obra – a temática – de Sartre em relação a seus predecessores, tais como
Kierkegaard, Jasper, Heidegger, Marcel. Embora, não seja o cerne a ser discutido na
presente investigação, visando previamente evitar qualquer confusão, além de
recortar a temática que aqui queremos examinar.
Por esta razão uma das questões importantes é compreendermos que o
existencialismo sartreano goza, primordialmente, de uma autonomia em sua
linguagem. Estabelecer as regras conceituais, no que concerne a especificidade de
sua linguagem e de sua temática, é aumentar a chance de compreensão do seu
legado filosófico-literário. Por vezes, em se tratando de Sartre, é visível que o seu
processo de elaboração e amadurecimento intelectual sofreu inúmeras mudanças de
perspectivas e enfoques. De certa feita, podemos reconhecer que isso é um direito
que lhe assiste, dado o próprio período histórico em que viveu. Apesar disso, essas
mudanças e a nuance multifacetada de sua obra é questionada por seus críticos. A
este respeito, à guisa de ilustração, trazemos à baila o comentário de Mário Giordani
(1976, p. 18):
Helmuth Kuhn, em seu livro Encounter with nothingness observa que os
filósofos da Existência não se atêm à Filosofia da Existência. Essas
Filosofias da Existência tendem a terminar em qualquer coisa de diferente
delas mesmas, quer seja a Ontologia de Heidegger, o Humanismo de
Sartre, a Teoria da Transcendência de Jaspers. Cada um deles, nos diz
Kuhn, sai, de um modo ou de outro, da Filosofia da Existência propriamente
dita.
Isto pode conduzir o leitor despercebido a uma visão relativista do
pensamento existencialista, até mesmo podendo levá-lo a imaginar que ela não seja
uma corrente filosófica propriamente dita, mas, como veremos, ela se assenta no
desenrolar do século XX e efetivamente nele se consagra.
Compreender a linguagem de Sartre, como já enfatizado, significa
compreender seu pensamento em toda sua dimensão. Por esta razão que sua
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menção a partir da linguagem sobre o Existencialismo se faz relevante,
principalmente porque até mesmo os mais inveterados pesquisadores do
pensamento sartreano ainda claudicam frente à sua obra clássica o Ser e o Nada,
por ser esta obra demasiadamente técnica do ponto de vista de sua linguagem.
Ademais, em Sartre a linguagem além lhe ser própria a qual tem como
objetivo salvar seu pensamento em toda sua extensão, trata de seus conceitos com
rigor, por isso, apresentamos a partir do próximo parágrafo o ser em si como um
dentre outros conceitos fundamentais do existencialismo sartreano responsável por
descortinar a linguagem em Sartre.
O ser em si, em síntese, representa o ser que ele é. Portanto, o ser é uma
espécie de pleonasmo, algo redundante que singelamente visa transmitir uma ideia
esférica de perfeição. Para Sartre o em si é absoluto, perfeito, idêntico a si mesmo e
essa é sua identidade que o distingue de qualquer outra coisa. O em si é totalmente
oposto do ser para si, conforme a definição fornecida por Bornheim (2005, p. 34).
A identidade do em-si indica antes de tudo sua opacidade “o ser-em-si não
tem um interior que se oporia a um exterior” (EN, p. 33). O ser não tem
segredo, apresenta-se como realidade maciça, e nesse sentido constitui
uma síntese absoluta que se possa imaginar. Permanece totalmente isolado
em seu ser e não tem possibilidade de manter qualquer relação com o que
não seja ele mesmo. “As passagens, o devenir, tudo o que permite dizer
que o ser ainda não é o que será e que já é o que não é, tudo isso lhe é
recusado por princípio.” Sendo “plena positividade” ignora necessariamente
a alteridade. O em-si se esgota em ser o que ele é, e isso de um modo tão
radical que consegue escapara a própria temporalidade.
O ser em si também se destaca por estar divorciado da concepção do
possível e do necessário, atributos de origem existencial. Outrossim, sua identidade
perfeita faz com que, em sua definição, possamos traçar um recorte, uma espécie de
divisor de águas sustentado sobre a égide do princípio da não-contradição, ao
considerarmos que o ser em si é o que ele é, em relação a si mesmo.
Dessa forma, podemos observar que Sartre ao definir o ser em si deu a este
um conceito de plenitude, totalmente preenchido, sem que houvesse qualquer
brecha em seu ser, defeso do nada. Por outro lado, oposto e autônomo ao ser em si
Sartre tem como existencial o ser para si que será apresentado em suas
particularidades em breve.
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De an passan, os conceitos em Sartre não são fáceis de compreensão e
visualização, isto não nos dá o direito de tê-lo como um pensador inacabado, ou
seja, em Sartre não existe uma ideia, uma categoria pronta e acabada e isso se
aplica a toda a sua filosofia.
Essa peculiaridade é expressa nos temas por ele abordados e, sobretudo, na
forma como esses temas são tratados, distinguindo-o pelo tema e pelo estilo - dos
demais pensadores. A relação entre o ser e o não ser, denominado “o nada”
demonstra que este seja o ponto fulcral que perpassa toda a filosofia de Sartre.
Por isso, que o contato com a obra clássica O ser e o nada: ensaio de
ontologia fenomenológica nos convida a realizar um exame arquivista de seus
capítulos municiado com um rigoroso espírito de pesquisa e o apetite de um
verdadeiro arqueólogo. Seu pensamento, compreendido a partir desta obra, exige
mais que uma leitura, exige uma verdadeira escavação em busca de seu
pensamento.
A relação do ser e não ser nos concebe o legado de que a negação em Sartre
funde a concepção de consciência, esta consciência é um não ser, um nada. Onde o
ser se dá por uma negação, ou seja, o ser é e o não ser não é. Segundo Gary Cox
(2007, p. 20):
Para Sartre, o não ser simplesmente revela o ser e não é necessário ao ser
do ser: “precisamos entender, não somente, que o ser tem uma precedência
lógica sobre o nada, mas também que é do ser que o nada obtém
concretamente sua eficácia. Isso é o que queremos dizer quando dizemos
que o nada persegue o ser. Isso significa que o ser não tem necessidade do
nada para existir.
Dessa forma, podemos ser levados a pensar que através da negação
amparamos o surgimento do ser, pois o ser não depende do não ser para existir, por
uma questão de logicidade. Em outras palavras, do ponto de vista lógico é
inconcebível o não ser constituir o ser, o que seria o mesmo que o ser advir do não
ser. Por isso, o ser possui em si mesmo o seu próprio fundamento. Para Sartre o ser
é ser em si mesmo.
Este ser em si mesmo, parafraseando Gary Cox, representa uma positividade
total, tem sua própria identidade, nunca se posiciona e não se deriva do possível.
Esse caráter de em si mesmo do ser é necessário, é o fundamento, e a consciência
absoluta do ser. Dessa forma, o para si é a negação do ser, é o ser que
primeiramente se apresenta, para em seguida, ser negado.
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Devemos considerar que não diz respeito ao não-ser do ser em si e não está
vincado ao não ser do ser. Não é o ser do não ser do ser em si, o para si tem que,
continuamente, lutar para ser o que o não-ser do ser em si, sem nunca ser capaz de
tornar-se o não ser em si. Esse processo foi caracterizado por Sartre de para si em
si, ou seja, o para si em si é o estágio idealizado pelo ser, porém irrealizável, onde
somente Deus poderia existir.
O para si é uma contradição, pois o para si não possui uma identidade como
o em si. Caso fosse assim o para si seria um ser. Ao contrário, ele representa uma
proposta da negação do ser, negação de si e um deixar de ser um si para se
preservar. Dessa forma, o para si possui ambiguidade e uma indeterminação e
esses atributos só conseguimos visualizar melhor dentro do desenvolvimento
dialético constituído a partir dá, e pela temporalidade.
Complementando este entendimento que trazemos breve trecho de Cox
(2007, 26):
Ficou claro que Sartre rejeita a hipótese de que o ser, de alguma forma,
ocupou-se de salientar o para-si para que o mesmo (ser) fosse conhecido. A
objeção de Sartre a esta hipótese se dá pelo fato de ele atribuir ao ser a
capacidade de possuir projetos que somente um para si pode possuir.
Sartre mantém que somente um ser que é aquilo que não é pode ter
projetos, pois somente um ser que é aquilo que não é pode almejar ser
outra coisa além daquilo que é.
Sendo assim, é a partir da relação entre o ser em si que extraímos a
concepção do ser para si. Nele encontramos a base para sustentação ontológica da
consciência, considerando a supremacia do para si. Segundo Bornheim, (2005, p.
38):
[...] Sartre a designa com a expressão “para-si”; a consciência é para-si por
isso que aparece a si mesma. “A consciência nada tem de substancial, é
uma pura aparência, no sentido de que só existe na medida em que se
aparece (EM, p. 23). Nessa perspectiva, pode-se dizer que a consciência
permanece presa a si, sem conseguir abandonar-se. Por outro lado,
contudo, o ser mesmo da consciência é intencionalidade. Vale dizer que, se
ela se experimenta como relação a si própria, concomitantemente se
relaciona ao em-si; e essa duplicidade de ser explicitada em sua unidade
profunda. Se a consciência é para-si, opõe-se ao outro que não ela, opõese ao em-si.
Neste contexto, podemos inferir que as razões do para si são diversas do em
si. O para si não está na base do em si, ele só pode residir pela via da exclusão,
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apenas no nada, do ponto de vista ontológico e, sob esse ponto de vista, deve
justificar sua manifestação fenomênica.
Sartre, ao estabelecer seus conceitos, formula-os ligados não somente a sua
maneira de pensar, como também buscando desarticular os pensamentos que
poderiam conspirar contra seu entendimento. Considerando que o para si se
estabelece dentro de uma negatividade, este pensador atribuir a este ser um não
ser, diferentemente de Hegel, em Sartre não se trata de uma simples concepção
nominalista vazia, como bem esclarece Bornheim (2005, p. 40):
É impossível tentar “resolver”, na acepção hegeliana da palavra, essas
atitudes, a não ser pelo abandono da própria condição humana. E o
encontro com o negativo ainda se faz através de outras “realidades”: a
ausência, a alteração, a alteridade, a repulsão, a destruição, a distância
(EN, p.57). Nessas experiências todas, a “nadificação é dada à minha
intuição” (EN. p. 45).
Isto ocorre frente a dialeticidade e rompe com a concepção de que em Sartre
as palavras não possuem uma carga de materialidade que surge do seu exercício
ativo no plano do sensível, conforme demonstramos em texto recente, Santos (2010,
p.101), senão vejamos:
A obra o Ser o Nada merece destaque no “para-si” de Sartre,o qual
representa um vai e vem do “Ser” em busca do que inexiste dentro do fora
de si. A ação deste se lançar para fora revela a reflexão do que desejamos
ser e que ainda não somos. Metaforicamente falando, somos como
construção em que, de tijolo em tijolo, a casa começa a surgir, com nítida
diferença de que nunca chegamos ao fim, pois essa plenitude de essência
na estrutura existencialista não é reconhecida, talvez por colocar em risco a
própria teoria.
Nesse ponto, ou melhor, colocando em foco o ser para si, embora não
possamos apontar para este ser misterioso ele constitui o motivo fundamental da
filosofia existencialista, Franklin Leopoldo e Silva (2004, p. 19-20), destaca esse
comprometimento da consciência no momento em que aborda as questões
existenciais.
O romancista deve, portanto, resistir a tentação de Sirius, deve compartilhar
com a sua personagem a opacidade que, em cada situação, se interpõe
entre a consciência e a realidade, entre a consciência subjetiva e o outro,
entre o sujeito e si-mesmo. Também nesse ponto reencontramos o motivo
fundamental da filosofia existencialista, já referido: o homem é o ser para o
qual o seu próprio ser está permanentemente em questão. Uma literatura
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que trabalha, por via das diversas situações que configuram a existência, as
questões que continuamente se apresentam para uma consciência
comprometida é uma literatura que renuncia à simples descrição de estados
da consciência, quaisquer que sejam, mas procura examinar o problema
que cada momento se põe para a consciência nas suas relações com as
coisas, consigo mesma e com as outras consciências.
O para si está no mundo dentro de uma temporalidade, uma consciência do
nada, não é absoluto em si, a consciência é vazia e, por esta razão, o tempo
representa um divisor de águas do ser existencial. A, respeito desta questão e com a
propriedade que se faz necessário neste início destacarmos alguns trechos da obra
Existência & Liberdade de Paulo Perdigão (1995, p. 70).
O Para-Si atende a essas propriedades e ao dualismo permanênciamudança. Presente, passado e futuro (que Heidegger denomina “os três
êxtases da temporalidade”) só podem ser entendidos enquanto modos de
existir do Para-Sim, porquanto devem possuir o duplo caráter de
permanência-mudança de ser e não-ser, que o Em-Si desconhece-se não
vejamos:
Por um lado, sendo uma, facticidade,com o Em-Si originário em seu miolo, o
Para-Si manifesta-se como “aquele que permanece”, Ou seja: nele, cada
instante temporal conserva-se isolado e distinto, permanecendo sempre o
que é. Para dar sinais de sua existência e não sucumbir no completo nada,
os instantes passado e futuro precisam ser no presente. Isso implica uma
permanência: para que passado e futuro possam anunciar aquilo que
passou e aquilo que virá, é necessário que sejam sustentados por um tipo
de Ser (O Para-Si) capaz de existir no presente contendo em seu bojo esse
passado e esse futuro, sem, no entanto, suprimir-lhes o caráter de “algo que
não é mais” e “algo que ainda é”.
Continua o comentador:
Já se vê que o tempo é a própria maneira de ser do Para-Si, pelo fato
mesmo de o Para-Si nadificar-se, constituir-se em permanente
arrancamento de si e perpétuo inacabamento (ou totalização-em-curso). Ao
contrário do pressuposto vulgar, a consciência não existe no tempo: o
tempo é que existe na consciência. A definição que Sartre dá ao Para-Si (O
Ser que não é o que é e é o que não é”) exprime mesmo o composto de três
êxtases (passado, presente, futuro) que estruturam sua temporalidade.
O passado representa uma realidade absoluta, um em si, com pura
positividade, com sustância, ou melhor, uma essência do para si. Embora seja uma
realidade, o para si não habita o passado, não vive, não realiza mais seu exercício
dialético, em decorrência do seu poder nadificante.
Por outro lado, o para si sempre se destaca por sua perene autenticidade no
tempo presente, distinto do em si que está presente constantemente por ser
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absoluto em si o para si é um nada, mas que se faz presente ao ser fazer para si, no
tempo, enquanto instaurador do presente, conforme destaca Bornheim (2005, p. 68).
Diz Sartre que o “para-si” é originariamente presença ao ser”. Acontece que
esse ser presente a... vem acompanhado de distância ou de separação: “a
presença ao ser do para-si implica que o para-si é testemunho de si em
presença do ser como não sendo ser” (EM, p. 167). Nesse sentido, o
presente não é, e deve-se falar em um não-ser do para-si e do presente.
Por um lado, o presente é presença ao ser, e por outro lado, constitui-se
como fuga perpétua em face do ser. Portanto, o presente não pode ser
entendido de um modo objetivo, como momento entre o passado e o futuro;
muito pelo contrário, o para-si se faz enquanto instaurador de presente.
Quanto ao futuro, ainda não vivenciado, privado está o para si, pois,
condenado a liberdade de um futuro que ainda não vivenciou o justificando que o ser
para si é pura liberdade dentro dos contornos desta. Todavia, o que se questiona
qual seria após o exame da relação entre passado, presente e futuro o contexto do
para si, o para si é temporal, se perfaz no tempo. Sendo assim, o para si tem sua
origem no tempo diferente do em si e, por isso, não existe argumento para não
considerar não somente a distinção como a peculiaridade estrutural do para si no
tempo, não se subsumindo ao aspecto atemporal, ainda mais por ser, como prova
irrefutável, a consciência um estatuto exclusivo do para si. Nesse contexto de
distinção, ou melhor de contradição que a subjetividade do para si se constrói
diretamente no mundo.
A subjetividade e a objetividade em Sartre devem ser observadas a partir da
relação entre a consciência do ser para si e o mundo. Não de maneira imediata, mas
sem o peso da tradição idealista. Essa caracterização e diferenciação foi elaborada
de forma precisa e objetiva por Paulo Perdigão (1995, p. 62).
O mundo, do mesmo modo, também não se esgota em sua aparição a nós,
como pensam os idealistas. Existe independentemente do conhecimento
que dele temos. No máximo podemos dizer que o mundo apresenta-se
como objetivo e subjetivo: objetivo porque nos aparece como já existindo
antes que nossa consciência o revele; subjetivo porque, ao torna-se
conhecido, é traspassado por nossa subjetividade. Mas a consciência nada
cria no mundo; este já nos surge plenamente constituído. Nada que
percebemos vem de nós, a consciência nada acrescenta à realidade
concreta do mundo.
Como podemos observar o grande problema em questão diz respeito ao
critério dualista entre o ser e a realidade, questão essa que se arrasta há séculos por
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razões e fundamentações próprias, busca a todo pulso resolver a questão. Do ponto
de vista sartreano, a celeuma pode ser superada a partir do fenômeno da
transfenomenalidade como boa parte dos seus comentadores de sua obra vem
sustentando.
Consciência e mundo não podem ser apenas partes isoladas onde uma das
partes busca conhecer e a outra parte aguarda ser conhecida. Ao contrário, é
suscetível que tanto para consciência como para o mundo exista um ser que
possibilite ambas as manifestações, cuja autonomia e relação se concretiza de
maneira independente.
Embora seja complexa a questão, é interessante compreendermos o paripasso, para se chegar a esta conclusão. Nesse sentido, segundo Gary Cox (2007, p.
30).
Para Sartre, a tranfenomenalidade, é a marca do real. Em sua visão, a
transfenomenalidade, a série infinita de possíveis aparências, precisa
substituir o velho dualismo da aparência e da realidade que enganou os
filósofos durante muitos séculos: “o dualismo do ser e da aparência não tem
mais direito a qualquer status legal na filosofia. A aparência se refere à série
total de aparências e não a uma realidade oculta que poderia sucumbir em
si mesma todo o ser do existente.” (BN XXI). Não existe, na opinião de
Sartre, nada além da aparência, na forma de um ser absoluto que demanda
total positividade enquanto reduz, ao mesmo tempo, a aparência a uma
mera sombra. Se não houver nada além da aparência, então a total
positividade é restaurada a aparência, a essência da qual “é uma ‘aparição’
que não é mais oposto ao ser, pelo contrário, é a medida dele” (BN XXII).
Esta forma com que Sartre aborda a questão entre aparência e realidade gera
em seu pensamento existencialista uma indeterminação, pois, seria ele um pensador
realista ou idealista? Podemos considerar Sartre um pensador realista, na medida
em que ele considera a aparência como pura realidade. Por outro lado, observamos
que a aparência precisa do para si, o que conduz a reflexão sobre a aparência em
linha de continuidade do ser para si que, por sua vez conduziria o pensamento
sartreano ao idealismo.
No entanto, é possível caracterizar o pensamento de Sartre de híbrido, ou
seja, tanto realista quanto idealista, a este respeito Cox, apud Gregory McCulloch
(2007, p. 31), senão vejamos:
O realismo de Sartre. Em seu livro, Using Sartre (“Usando Sartre”), ainda
não traduzido no Brasil), Gregry McCulloch desenvolve um relato sobre o
21
direto realismo sartreano, contrastando-o com o realismo indireto cartesiano
e o idealismo berkeliano ou fenomenalismo.
Os realistas indiretos cartesianos sustentam que a mente e o mundo
material, apesar de interagirem, de alguma forma, são essencialmente
independentes entre si. McCulloch observa (McCULLOCH, 1994:84): “De
acordo com os realistas cartesianos, as duas afirmações são verdadeiras:
1 - O mundo poderia existir sem qualquer mente nele.
2 - As mentes poderiam existir sem nenhum mundo material adjacente ou
meio ambiente algum”.
Por esta perspectiva podemos sustentar, seguindo o pensamento cartesiano, que
o mundo e a mente estão respectivamente separados pela res extensa e res
cogitans, embora para esta corrente de pensamento o mundo seja algo factível, seja
possível pensar no mundo, obter ideias, etc, ao mesmo tempo, os realistas indiretos
da corrente cartesiana não podem provar a existência desse e ficam condenados,
dessa forma, ao solipsismo à medida que não conseguem justificar o mundo em sua
realidade material.
Em outro sentido, Berkeley como protagonista do idealismo, se abomina do
mundo material. Segundo este pensador a mente não está ciente da realidade do
mundo e, por isso, a mente não poderia reconhecer a materialidade do mundo.
Sendo assim, a ideia das coisas está na mente e não fora dela, em um mundo
intangível. Diante da impossibilidade da mente conhecer o mundo, por ser ele uma
realidade/materialidade desconhecida, o ser é ser percebido.
Significa dizer que as coisas deixam de existir quando não percebidas, pois,
perceber significa ser percebido pela mente, em decorrências das ideais que temos
de alguma coisa. Porém, quando não percebidas, ainda assim existem, porque Deus
vigilante diuturno percebe todas as coisas. Importa destacar que ambos os
pensadores comungam de um ponto em comum, ponto este que pode ser
denominado de zona de interseção entre esses dois pensadores.
Para eles a mente porta ideais sobre as coisas como se fosse uma espécie
de filmes fotográficos. Esta imagem alegórica serve e pode ajudar nossa
compreensão, do subjetivismo e objetivismo sartreano que passamos a explorar.
Segundo Sartre, pelo viés do seu realismo direto, considera que as ideias,
percepções e representações do mundo não estão na mente em uma “galeria de
fotos”, mas ao contrário nas coisas em si, fora da realidade das coisas nada existe.
A consciência intencional, consciência de alguma coisa decapta a concepção
de Descartes e Berkeley pela raiz, pois, rompem com estas duas correntes.
22
Estribando-nos em Sartre somos conduzidos a um garantismo e evitamos, assim,
que realidade atingida não seja, outra coisa, senão a realidade efetiva.
O para si, lançando-se fora para de si, constrói a consciência a partir de um
mundo que aí está. É este o fenômeno do para si o qual, dentro de sua
singularidade, torna-se aquilo que quer ser, bem como e o seu próprio ser. Isto,
caracteriza a subjetividade do ser em relação a objetividade do mundo, conforme
bem menciona Paulo Perdigão (1995, p. 52).
O fenômeno do conhecimento também se deve ao vazio interior, a falta de
Ser do Para-Si. Sendo “todo negação”, a consciência pode ser “negação do
todo”: o mundo é tudo aquilo que eu não sou. Mas esse “todo de mundo”
aparece apenas enquanto fundo comum a qualquer conhecimento. Estamos
presentes à totalidade do mundo e, no entanto, jamais podemos captá-lo
como um todo, e sim somente através da apreensão deste ou daquele
objeto determinado. Ou seja, só podemos conhecer o mundo parcialmente,
por meio desta ou daquela forma particular, enquanto o mundo, como
totalidade, se conserva como fundo comum e, no entanto, temos
consciência de que há um “todo” por detrás de cada “isto” ou “aquilo”
observados.
Vale dizer então que o para si irradia seu subjetivismo e concomitantemente,
sua existência onde também inicia o processo de conhecimento. Em verdade, o para
si não alberga experiência anterior ao seu surgimento, em decorrência de uma
impossibilidade lógica imanente a estrutura do existencialismo em Sartre, no
entanto, o para si somente se constitui no mundo, ou melhor, em um mundo onde
também se relaciona com um outro para si.
O homem existe no mundo, sua singularidade, individualidade, é marcada
pela interação que ele mantém com outros homens. O fato da interação entre
singularidades é a realidade que nos permite falar da existência como caráter
inalienável do homem. É importante afirmar que esta característica do homem não
surge no em si, mas no próprio para si em sua essência nadificante, pois, o nada
além de contribuir para este fenômeno opera como um hiato no sentido de revelar a
autonomia do para si. Confirma esta posição o comentário de Bornheim, (2005, p.
102).
Sendo negação interna, o para-si faz-se habitar por uma fome de ser, de
afirmação de si no ser – mas de um ser no qual jamais consegue incidir. Ele
é relação ao em-si, e apenas relação; o para-si confunde-se com seu
próprio nada, e permanece separado do em-si por nada. “O para-si é
23
fundamento de toda negatividade e de toda relação, ele é a relação” (EN, p.
429).
A consciência do outro é uma sensação natural da consciência do ser para si,
algo que compõe sua estrutura. Neste sentido, é clarificante o magistério de Paulo
Perdigão, (1995, p. 137).
[...] reconheço o Outro como consciência, como sujeito, como Para-Si igual
a mim, portador do mesmo poder de nadificação
e da mesma
intencionalidade, a agrupar as coisas a sua volta e, através do “circuito de
ipseidade”, a fazer do mundo o lugar dos seus projetos. Capto no Outro um
sistema de experiências, sentimentos, vontades e ideias que não é o meu,
um projeto e uma organização do mundo que não são os meus.
Constatamos assim da possibilidade de objetar o outro, porém impossível ser
o
outro
enquanto
consciência
do
outro.
Caso
fosse
possível
objetar
automaticamente, o eu para si seria consciência do outro que também existe
enquanto
para
si.
Se
isso
fosse
possível,
a
relação
de
subjetividade,
intersubjetividade e alteridade deixariam de existir, e como consequência, a
autonomia do para si que por este aspecto não gozaria de sua liberdade teria sua
consciência cooptada.
Diante dessa impossibilidade o outro torna-se, para o eu para si, é um objeto,
uma petrificação realizada por intermédio da janela da alma, os olhos, ou melhor,
pelo olhar. O olhar é o responsável por transformar o outro em algo que “é”, a partir
de um ponto de vista cognoscitivo e capaz de ser inferido pelo ser que conhece. O
Outro está na consciência desde os primórdios, como ensina Paulo Perdigão (1995,
p. 138).
É, então na consciência que devemos buscar a existência do Outro, e não
fora dela. “No cogito descobrimos não só a nós, mas aos outros”. Sendo o
Outro um fato que me alcança no meu âmago, isso significa que a
consciência, além de Para-si, deve ser também, desde a origem, ParaOutro. “O homem é um Ser que implica o Ser do Outro em seu Ser” A
realidade humana é sempre Para-Si-Para-Outro.
Dessa forma, o que eu sou é o resultado do olhar do outro sobre mim, sou
porque o outro me faz ser o que eu sou. Sou, definido pelo outro ou simplesmente
no outro, um ser inoculado pelo outro. Isto nos leva a pensar que sem o outro nada
somos. Esta necessidade do outro, do diferente do eu para dar identidade dentro da
24
contradição do para si faz com que o outro seja a razão existencial do eu. Essa
também é a posição de Paulo Perdigão (1995, p. 142).
Com efeito, para obter qualquer verdade objetiva a meu respeito, dependo
do Outro, Ele é indispensável ao conhecimento que tenho de “mim mesmo”
como um Ser que existe objetivamente no mundo real. O Outro é a condição
necessária para que eu possa me conhecer de uma maneira que, sem o
olhar dele, eu sequer seria capaz de imaginar que fosse possível. Se o
Outro não existisse, eu não poderia saber-me visto objetivamente, porque
eu mesmo, sozinho, não teria como fazer essa representação de mim, ainda
que imaginando a existência de um Outro irreal.
Isso conduz a uma ideia de que o para si seja aquilo que o outro para si faz
dele. O olhar fotográfico capta o outro no mundo fazendo deste instante um retrato.
Diante do congelamento realizado entre o conhecedor e o conhecido, não há nada
que o outro capturado possa fazer, o para si capturado se revela um em si diante da
plenitude do ato.
É interessante porque no ato em que o para si se revela ao outro, para que
outro veja “olhe”, sua subjetividade é mitigada pelo olhar do outro, pela ideia que o
outro faz do para si. Uma concepção plena, acabada, embora as possibilidades para
o para si objetado não deixe de existir. Nem mesmo nesse instante, a maldição da
liberdade o abandona.
No entanto, para o outro, este para si está, petrificado, inerte, perfeito,
recortado e encaixado em uma moldura, sem que sua subjetividade esteja ativa,
ainda que conserve na essência o subjetivismo do sujeito, não passa de um objeto,
a este respeito afirma Bornheim (2005, p. 103):
Compreende-se, desse modo, que o projeto de unificação amorosa se
transforme em fonte de conflito; “precisamente porque eu existo pela
liberdade do outro, não tenho nenhuma segurança, estou em perigo nessa
liberdade; ela petrifica meu ser e me faz ser [...]” (EN, p. 433).
Sendo assim, o ser é o que ele é, mas também o que ele não é, ainda que
subjetivamente mantenha o status do ser. Ele mantém esse status, mas, de uma
forma globalizante suporta os efeitos do outro, do olhar do outro, da subjetividade e
objetividade do outro. Isso não significa a supressão da liberdade do para si
objetado, todavia, o ser já está petrificado, condenado pelo carrasco, todavia, nessa
relação existe algo de necessário segundo Sartre e que individualiza esta relação
denominado corpo.
25
Sartre parte do princípio de que o corpo está no mundo. Sobre este corpo que
habita o mundo, nele habita uma consciência. É impossível a consciência esta sem
que exista um corpo. Essa é a condição básica, para que possa a liberdade efetivarse como exercício propriamente humano e como tarefa que diferencie o homem dos
outros seres. O exercício da liberdade gera um entrelaçamento contínuo onde a
consciência, sem perder de vista o corpo, o abandona constantemente indo e vindo.
Segundo Gary Cox (2007, p. 75):
O corpo representa a situação imediata e inescapável do para-si que o parasi perpetuamente supera em direção as situações futuras. O corpo é o
contingente dado que o para-si transcende perpetuamente. Entretanto, o
para-si é perpetuamente recapturado pelo corpo, pois o corpo é a
possibilidade, a base, da transcendência do para-si. Em outras palavras, o
para-si é aquele que supera perpetuamente o corpo sem nunca se capaz da
considerá-lo, finalmente e completamente, superado.
Na concepção sartreana é uma necessidade contingencial dentro de uma
relação de intersubjetividade. Se para Descartes a prova ontológica exige uma
última instância que essa instância é idêntica a Deus, em Sartre este caminho se
revela impossível. Diante da própria estrutura do para si, formada pelo corpo e pela
consciência, Sartre funde essas duas dimensões. Claro, não é possível afirmar que
em Sartre exista uma certa distinção entre corpo e consciência, porém existe uma
aderência entre si decorrente da imanência.
O corpo também pode ser definido a partir do outro, conforme nos esclarece
Gerd Bornheim, (2005, p. 97).
[...] justificar uma ontologia do corpo deriva do outro como ser-objeto, e
esclarece o que acabamos de dizer. “O outro pode existir para nós sob duas
formas: se eu o sinto como evidência, não chego a conhecê-lo; se eu o
conheço e ajo sobre ele, só atinjo seu ser-objeto e sua existência provável
no meio do mundo; nenhuma síntese dessas duas fórmulas é possível” (EN,
p. 363-4).O conflito não consegue sobrepor à alternativa: ou bem sou objeto
para o outro, ou então o outro se faz objeto para mim; a reificação do para-si
não pode ser evitada.
O corpo nesta perspectiva opera como se fosse, metaforicamente uma
antena, uma antena de comunicação em comunicação com uma outra. No entanto,
embora
exista
uma
manifestação/comunicação
de
uma
para
outra,
a
intersubjetividade não permite com que as consciências estabeleçam plenamente
uma comunicação em nível de consciências puras.
26
Dessa forma, o corpo demarca entre os para si uma relação de facticidade
oriunda da contingência do homem no mundo o que o determina, neste aspecto o
corpo somente é corpo, enquanto o para si está no mundo. Outrossim, corpo, neste
aspecto, funciona como termômetro na medida em que registra o ingresso e localiza
o para si no mundo. Só através do corpo é possível ter acesso à consciência. Dito
com outras palavras, não existe consciência pura, eu puro, o que existe é uma
consciência histórica, situada. O corpo situa e historiciza a consciência, delimitandoa.
É de se considerar também o corpo do outro no contexto relacional, onde
tanto um quanto o outro se apresentam mutuamente. Os corpos tornam-se
presentes e perceptíveis, portanto, históricos através da contingência, diante do
perceber/existir advindo da manifestação. Nesse pormenor, destaca Gary Cox
(2007, p. 81).
Sartre subestima a importância da corporificação na experiência do outro
como objeto, é levantada por um contemporâneo seu, Maurice MerleauPonty, em sua obra, Fenomenologia da percepção. Como já vimos, Sartre
propõe que o outro precisa existir para mim, assim como eu preciso existir
para o outro, como objeto transcendente ou objeto transcendido.
No fim, é necessário considerar o corpo sob o prisma do olhar do outro, onde
os corpos também se tornam objetos de conhecimento. Sob o prisma do olhar, o
corpo também pode ser definido pelo olhar do outro, tornando-se objeto. Essa
compreensão é descrita por Gerd Bornheim (2005, p. 99-00), como segue.
A importância fundamental do estudo do corpo reside no fato de que, por
ele manifesta-se o sentido profundo de facticidade. Pois a facticidade é isto:
“nossa existência como corpo no meio do mundo” (EN, p. 428).
Compreende-se, então, que apenas como estudo da realidade corpórea se
possam elucidar as relações concretas com o outro; não que o corpo seja o
instrumento ou a causa dessas relações, mas ele constitui o seu significado
e marca o seu limite: “é como corpo-em-situação que eu apreendo a
transcendência – transcendida do outro e é como corpo-em-situação que eu
me reconheço em minha alienação dando vantagem ao outro”.
Mesmo nesta relação com o outro, ou melhor, entre os corpos em que fica
evidente a subjetividade, a intersubjetividade, a alteridade, a facticidade e a
historicidade da consciência, a redoma da liberdade é protegida pela elevação que
Sartre dá à concepção de liberdade.
27
Em Sartre a concepção de liberdade é distinta. A Concepção de liberdade
que ele, propõe não é um simples gesto de dizer sou livre, mas é uma liberdade que
decide o futuro do ser, o seu destino. Nesse sentido, liberdade é algo que
fundamenta enquanto estrutura o ser que está no mundo.
É uma liberdade que não se encontra dentro do contexto da infinitude, mas da
finitude continental do homem, por isso, ao se analisar a liberdade notamos dentre
vários aspectos que ela também é responsável por diferenciar o homem de Deus e
dar aquele à sua autonomia.
De certo modo esta liberdade é decisiva, conforme nos ilustra em breve
trecho Bornheim (2005, p. 46).
Com outros termos: a possibilidade que tem o homem de produzir o nada
que o isola da transcendência chama-se liberdade; o homem em seu ser é
liberdade. Mas o que se entende por liberdade? Se o homem não é
estruturado por nenhuma constituição interna, a determinação da liberdade
permanece ontologicamente negativa: qualquer tentativa de determinação
incide na total indeterminação; a liberdade absoluta. Faz-se claro, assim,
que Sartre explicite a liberdade, antes de mais nada, como desprendimento
do passado, quer em sentido objetivo, quer em sentido subjetivo. “Esta
liberdade, que se descobre à nós na angústia, pode caracterizar-se pela
existência desse nada que se insinua entre os motivos e o ato” (EN, p. 71).
Esta liberdade se revela como uma maldição ao ser para si, inerente a ele
desde a sua existência, como bem esclarece o trecho destacado por Santos (2010,
p. 101).
Devemos observar que essa liberdade de escolha, que está contida do
“para-si” do filósofo, não pode ser concebida como liberdade em sentido
“vulgar”. A liberdade, que Sartre acena, é uma liberdade estabelecida
topograficamente em decorrência de uma situação que acontece o exercício
da própria liberdade. Poderíamos, por assim dizer, que essa liberdade opera
como instrumento do exercício de uma ação positiva ou negativa na
realização de um ato.
Interessante que ao se destacar à liberdade como não sendo em um sentido
“vulgar”, revela-se oportuno adentrarmos em que sentido? Ora, se conduzir a
liberdade por essa seara, seria improvável que pudesse dar sustentação a
concepção de liberdade em Sartre, como então justificar a impossibilidade do ser
para si deixar de fazer algo se ele é livre? Então sendo impedido deixaria de ser
livre? Esta seria uma concepção equivocada sobre o que seja liberdade, Albérès
28
(1958, p. 102-103), é pontual nesta distinção, em longo trecho que passamos a
transcrever:
Deste modo a semana de Munique parece trazer um corretivo a esta
“liberdade” total que fora dada ao homem: a guerra se lhe impõe. Porque o
homem é livre, mas somente em uma situação dada. Esta noção vai
permitir a Sartre aprofundar seu pensamento no que diz respeito à
liberdade. Certamente, cada homem permanece sempre livre, mas não há
diante dele como creram Mathieu em A Idade da Razão e Roquetin em A
Náusea, este vago e vazio de indecisão. Há uma situação precisa, que é
aqui a ameaça da guerra. Evidentemente o indivíduo guarda uma certa
liberdade que em determinado sentido é integral: pode responder ao
chamado da mobilização, pode passar à Suíça ou suicidar-se. Ele é livre em
relação a uma problemática que não pode elidir.
Continua o comentador:
De fato, à afirmação absoluta da liberdade, formulada até aqui por Sartre,
poder-se-ia responder que ela é relativa: o pobre não é livre de fazer um
cruzeiro ao Japão, o prisioneiro no calabouço não é livre de pedir lagosta à
americana. De um lado, se cada indivíduo parece livre e cada instante para
escolher entre um conjunto de soluções, de outro lado cada homem nos
parece marcado por sua hereditariedade, por seu nascimento, sua classe
social, pela nação a qual pertence... Tudo isto constitui sua “situação” e é
somente nela e com relação a ela que é livre.
Uma liberdade não como um vácuo, uma vagues, uma imensidão. Podemos,
inferir que a liberdade sartreana está umbilicalmente ligada a uma situação concreta,
uma realidade, onde cada indivíduo corporeificado deve decidir e caso não faça isso,
ainda assim estará decidindo. A partir daí também se, abstrai a moral em Sartre, a
liberdade faz do homem o ser soberano frente a sua existência, construindo-o
internamente, no exercício da dialeticidade do ser para si na medida que se projeta
para o futuro, como bem esclarece Albérès (1958, p. 107).
A responsabilidade pessoal de uma escolha individual efetuada frente a
uma situação vinda do exterior, define a única grandeza possível do
homem: “assim, a liberdade só descobre no ato, faz-se una com o ato... Não
é uma virtude interior que permite desligamento das situações mais
urgentes... Mas, pelo contrário, é o poder de comprometer-se na ação
presente e de construir um futuro”.
Arremata com seu estilo globalizante Perdigão (1995, p. 104-105).
Podemos dizer que a liberdade nos aprisiona nela própria: estamos como
que “condenados a ser livres”. A única liberdade que não temos é
justamente a liberdade para não escolher sermos livres. A liberdade é um
29
fato contingente que nasce com o nosso Ser. Não posso escolher não ser
livre, do mesmo modo como também não escolho ser livre. Se eu pudesse
eleger-me livre ou não, isso implicaria uma liberdade prévia de eleição – e,
uma vez livre, já o seria então para sempre. Por isso Sartre observa que
não somos fundamento de nossa liberdade, já que não a escolhemos.
A liberdade desse ser para si, como um dos fundamentos conceituais mais
importantes pode gerar conseqüências, dentre elas, um dos comportamentos
estudados por Sartre é a má-fé, o qual será tratado na parte II dos conceitos
fundamentais em Sartre.
30
3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM SARTRE II
A má-fé sartreana se fosse necessário defini-la como algo enxuto e objetivo,
poderia conceituar objetivamente como sendo aquilo que não somos, mesmo assim,
o ato de liberdade é presente, como bem aponta Bornheim (2005, p. 49): “O fascínio
da marionete nos leva ao problema central; “O que somos nós se temos a constante
obrigação de nos fazer ser o que não somos, se somos segundo o modo de ser do
dever ser o que somos?” (EN. p. 98).
Da citação, é possível notar que este ser para si deixa de exercer sua
liberdade, permitindo a si mesmo o enganando e atribuindo a sua existência uma
inautenticidade. Esta fase representa um golpe dado a si mesmo, uma perda de
autenticidade, um deixar de ser, enquanto uma liberdade positiva. Esta forma e/ou
modelo de existir, não é impossível no interior da existência. Essa forma de ser no
mundo é definida como má-fé.
Tal questão coloca o para si que é, é em sua existência, uma consciência
vazia, um “nada”, em uma representação, onde cumula no bojo dessa consciência
dois mundos, abrigando no interior do para si uma dualidade que o conduz a
possibilidade de ser o que é e não ser ao mesmo tempo por estar representando
algo que não seja ele mesmo.
Essa postura que dá distinção com relação ao em si, primeiramente porque
este não tem consciência como o para si, segundo, porque é da natureza do em si
não possuir fenda. Caso contrário na medida em que o para si comportar dualidade,
será possível afirmar que ele é suscetível de comportar uma fenda em sua estrutura,
fenda esta da dualidade conforme acima aludimos.
A má-fé por assim dizer é um germe que abriga a consciência, um fenômeno
inato a esta que poderá se manifestar de forma singular em cada ser para si. Por
isso, ser honesto, autêntico e sincero, representa, sumariamente, algo possível e
imanente à condição do para si, a este respeito que faz se oportuno transcrevermos
breve trecho da obra Existência & Liberdade de Paulo Perdigão (1995, p. 120).
O “campeão da sinceridade” é aquele que decide ser exatamente aquilo que
é, sem reticências: “Sou isso, e ponto final”. Então, o que ele almeja é ser
para si mesmo aquilo que ele é, em uma consciência total consigo mesmo.
Ocorre que esse “ser si mesmo”, como um Em-si, não existe para a
consciência. Alguém que confessa “ser mau”, querendo possuir um caráter
31
inanimado de mau, um ilusório ser-mau-em-si, totalidade acabada, no
mesmo momento em que pretende ser essa total fusão com uma suposta
“coisa que ele é”, evade-se dela, põe-se à distância para contemplá-la,
tomar sobre ela um ponto-de-vista, decidir sobre a sua permanência ou não,
e então dizer “sou mau”. A sinceridade, para existir, exigiria que o homem
fosse somente aquilo que é o que é.
Por esta razão, tudo que se passa pela consciência e não possa estar no
plano da realidade pode ser tido como má-fé, pois, estaria existindo o
convencimento de algo que não é. No entanto, segundo Sartre, nem toda má-fé é
uma mentira no sentido mais comezinho das palavras. Este aspecto da má-fé é
explicado por Cox (2007, p. 125).
A reivindicação geral de Sartre é de que a má-fé não deveria ser igualada à
mentira para si mesmo, especialmente se “mentira para si mesmo” se refere
a operações de uma dualidade enganador-enganado, dentro de uma única
consciência. Rejeitando esta dualidade, Sartre rejeita mais especificamente
como sendo ilógica a dualidade freudiana do consciente e inconsciente.
Para Sartre, diferente de Freud, a consciência é cristalina, sua relação se dá a
partir da existência, o devir está projetado para a transcendência e a facticidade no
mundo, o para si e os outros forjam uma relação onde a má-fé, pode emergir,
quando a consciência do ser para si coincide. Esse é o momento em que o ser para
si está representando algo que não é ele mesmo, a isto Sartre denomina de má-fé.
Convém, assim, frisar que a má-fé tanto quanto o ser para si é algo que se
encontra no tempo e com a qual o para si tem que lutar constantemente, como bem
define Cox (2007, p. 127).
A má-fé, ou aquilo que poderíamos cruamente chamar de “mentira para si
mesmo”, é, ou é obtida através de manipulações sutis e constantes desta
propriedade dupla do sujeito-objeto. Mais especificamente, a má-fé é, ou é
obtida através da tentativa de inversões seletivas da facticidade e
transcendência. A má-fé não é um estado. Ao contrário disso, como o parasi que a realiza é parecido como um projeto contínuo que precisa-se
sustentar contra a ameaça constante de colapso. Sartre descreve a má-fé
como uma estrutura metastável.
Continua o comentador:
Como todos os “vários aspectos” (BN 56) ou tipos de má-fé são realizados
através de inversões e manipulações da facticidade e transcendência, um
entendimento destas inversões e manipulações é essencial para um
entendimento da má-fé.
32
A luta do para si no mundo é incessante seja no rio da má-fé ou não até o fim
de sua existência a relação com o outro para si no mundo faz tornar-se perceptível o
fenômeno da alteridade e da intersubjetividade do para si a qual será tratados a
partir de então.
A relação entre alteridade e intersubjetividade em Sartre representa o
termômetro de que a consciência do para si com relação ao outro para si mantém
mesmo em um fluxo relacional a sua autonomia e sua independência. Caso
contrário, o outro deixaria de existir e o para si seria o outro, melhor explicando, o
para si seria a consciência do outro quando do contato com o outro, hipótese esta
insustentável, considerando a singularidade de cada ser existencial, principalmente
enquanto consciência historicamente localizada.
Conspira contra a constatação desta relação, a impossibilidade do para si
permanecer isolado, considerando que em sendo a consciência pura negatividade, a
relação com o mundo, com o outro se revela imprescindível, não diferente seria a
subjetividade e a intersubjetividade marcada entre os para si.
Outrossim, suprimir a alteridade e intersubjetividade seria decretar a
inexistência da liberdade. Ao menos com base no existencialismo sartreano,
primeiro, mesmo que a liberdade revelasse sua autonomia frente uma possível
supressão da alteridade e intersubjetividade, estas são protagonistas naturais pelo
fator existencial. O para si, ao existir no mundo, surge pelo outro, o outro o faz notar
sua existência, esta relação é plena alteridade e intersubjetividade.
Por isso, os conceitos de alteridade e intersubjetividade marcam a corrente
existencialista por sua preponderância e por ser em um elemento estruturante dessa
corrente de pensamento. No existencialismo, sobremaneira, estes conceitos, são,
peculiares como uma engrenagem é peculiar ao sistema mecânico de um relógio.
Apesar de toda a conjuntura que existência revela algo que o universaliza, um
sistema de linguagem. A existência de outras consciências, e outras liberdades
registram a presença da alteridade, segundo Pecoraro (2009, p. 111).
[...] o grande componente da situação é a alteridade: vivemos e exercemos
nossa liberdade em meio a outros sujeitos, outras consciências, outras
liberdades. A intersubjetividade, problema que se mostrou crucial na
tradição moderna, é designada por Sartre com a expressão ser-para-outro.
Já vimos como se constitui o Para-si; trata-se agora de verificar como esse
33
Para-si é também Para-outro. O problema da intersubjetividade, tal como se
foi classicamente formulado, consiste em supor primeiramente a
representação de si e, em seguida, a possibilidade de representação do
outro.
O grande dilema em Sartre nesta relação de alteridade e intersubjetividade é
compreender que o para si é equivalente ao outro e por outro lado entender como se
estabelece a relação do para si que sou eu com o outro que também é um para si,
que não sou eu, mas sim um outro para si. A subjetividade do outro, enquanto algo
já superado, não pode ser ceifada, ainda que o outro seja, estruturalmente, tanto em
forma quanto em essência histórica como eu, dado sua singularidade.
O outro é objetivado pelo eu para si, porém o outro que também é um para si
não perde sua liberdade, nem sua subjetividade que não é totalidade em si ante a
estrutura do para si, no entanto, é petrificado pelo olhar, sua consciência embora
singular para o outro que a objeta se torna irrelevante, pois, o para si faz do outro
ser o que ele vê. Através do instante fotográfico, o para si revela o outro e o perfaz
perfeito, sólido em plenitude, um em si metaforicamente dizendo, distinto
completamente do sentido técnico sartreano.
Arremata, Pecoraro (2009, p 113-114).
[...] a intersubjetividade enquanto conflito de liberdades, só pode ser
compreendido na intersecção das histórias pessoais e a partir da relevância
do outro na experiência do existir histórico própria de cada sujeito singular.
As liberdades não se chocam em abstrato, mas num cenário concreto e
historicamente definido, ainda que essa determinação histórica e política
sejam explicitamente focalizada em O ser e o nada.
Esta relação que destaca a intersubjetividade como bem alude o trecho da
obra acima citada tem fundamento na medida em que existe uma relação profícua
entre dialeticidade e a consciência segundo a concepção de Sartre.
A relação entre dialeticidade e consciência ou vice-versa é algo vital para o
pensamento de Sartre, não são simples palavras, são palavras que para o
pensamento sartreano determinam.
Para Sartre a consciência é tributária da concepção de intencionalidade
herdada de Husserl, ou seja, ela é pura negatividade, é consciência de algo. Por
isso, obrigatoriamente, ela se projeta para fora de si, com o objetivo de construir a
subjetividade existencial.
34
Nesse passo, constamos que o movimento dialético, completado pelo
raciocínio, enquanto condição de que o sujeito não se encontra na ideia, mas fora
dela. Partindo desse pressuposto torna-se compreensível a máxima sartreana que
afirma que a existência precede a essência.
Avançando ainda mais na compreensão da dialética da consciência, torna-se
imprescindível entendermos melhor a estruturação da consciência para que possa
gerar a compreensão necessária. O exercício realizado pela dialeticidade, segundo
Pecoraro (2009, p. 107) é.
A grande novidade trazida por Husserl, ao caracterizar a consciência como
movimento intencional, consiste em romper com a definição de consciência
como coisa pensante (Descartes) e como apercepção sintética do objeto em
geral. A consciência não é substancia nem ente lógico, mas o simples
movimento na direção das coisas. Estamos, portanto, livres de qualquer
configuração de um ego interno, seja ela pensada em termos reais ou numa
acepção puramente lógica.
Complementa o mesmo comentador:
Sartre valoriza a noção fenomenológica de intencionalidade porque ela lhe
permite passar do movimento pelo qual a consciência visa os seus objetos
ao movimento pelo qual a consciência se põe diante do mundo como
indeterminação e liberdade. Com efeito, qual é o significado da célebre
divisa “a existência precede a essência”? Ao contrário da tradição, em que a
essência determina a existência na medida em que contem causas e
determinações de todo vir-a-ser, nesse sentido já pré-configurado
essencialmente através dos atributos principais do ser, o existencialismo
sartriano considera que, no caso da realidade humana, a primazia é da
existência enquanto processo e devir, ficando a essência como o horizonte
de realização do processo de existir. O homem primeiramente existe, sem
qualquer essência que determine essa existência; ao contrário de que
julgava a tradição, a existência não é mera explicitação da essência, mas
processo indeterminado de vir-a-ser.
Por este prisma a realidade do para si é movimento e não repouso. O
movimento é pura dialeticidade e, mudança. Essa modificação são situações
necessárias e valorizadas pela corrente existencialista, a partir da qual a
consciência, detendo o movimento intencional, faz emergir a subjetividade do para si
que até então não é, conforme explica, Pecoraro (2009, p. 109).
Como consciência é vista como movimento, de acordo com a interpretação
existencial da intencionalidade, o movimento de constituição da
subjetividade é primeiramente designado como Para-si. Esse termo possui
em Sartre dois significados. Primeiramente, aquele ligado à reflexibilidade,
como em Descartes e numa etapa da lógica hegeliana: o sujeito está
voltado para si como a primeira instância de realidade que lhe é dada; visa
35
a si mesmo aspirando o ideal da coincidência. O segundo significado é o de
processo: nesse caso Para-si significa em direção de si-mesmo, isto é, o
sujeito, no seu processo de existir, constitui-se, vale dizer, faz um percurso
para si, ou para chegar a si. Os dois significados convergem, pois, sendo a
existência processo de vir a ser, a reflexão sobre si é ao mesmo tempo a
constituição progressiva de si: ser sujeito equivale a vir-a-sê-lo. Isso
significa que a consciência de si é a consciência de algo que ainda não é.
Ou como diz Sartre, a realidade humana é o ser cujo ser está além de si.
O para si é um processo interminável, condenado ao inacabamento por uma
condição de sua própria constituição, a conduta do para si dentro de sua
particularidade repercute no contexto social onde este para si encontra-se situado,
sua dialética individual também é universal na medida em que ele representa um
todo universal dentro de sua particularidade individual ou singular. O para si, é uno,
existente, livre e senhor do seu destino.
Este movimento que podemos denominar de dialética, é assim por dizer uma
fotografia da contradição do para si, o para si necessita da contradição quando ele
passa a ser aquilo que ele não é, e assim sucessivamente. O mesmo ocorre com a
dialeticidade. Na mesma proporção ela torna este movimento perceptível: como um
cronômetro ela constata a contradição do para si que não é pura positividade frente
ao seu caráter intencional descrito na obra clássica La trascendencia del ego (S/R,
p. 16).
La intuicion, según Hurssel, nos pone em presencia de la cosa. Es
necesario entonces entender que la fenomenologia es una ciência de hecho
y que los problemas que pone son problemas de hecho, como, por outra
parte, se lo puede comprender si se considera que Hursserl la llama una
ciência descriptiva. Los problemas de la relacion del yo a la conciencia son,
pues, problemas existenciales.
O para si, enquanto detentor do estatuto da consciência, infla a partir de si,
em um processo de dialeticidade, ela não está fora de si. Por certo ela é registrada
fora, mas parte de dentro, do para si, enquanto consciência fenomenológica e
subjetividade ontológica. Isto é possível porque a consciência é vazia, um nada, é
intencional e, por isso, projeta-se para ser aquilo que ela não é, encampando o
movimento de dialeticidade para construir a subjetividade, construção esta que
revela de forma meridiana a relação entre a liberdade e alteridade em Sartre.
A relação com o outro no exercício da liberdade não encontra barreira no
outro para si, pois, a intersubjetividade é o encontro do para si com o outro para si.
36
Constatamos que esta motricidade decorre de uma liberdade, uma liberdade
enquanto condição do ser para si, enquanto processo de constituição que jamais se
concretiza, ante sua impossibilidade em essência, ou seja, o ser para si está sempre
buscando fora de si ser aquilo que ele ainda não é, como já descrevemos outrora.
Segundo Pecoraro (2009, p. 110).
A liberdade como projeção constitutiva do sujeito é algo que se exerce
sempre no interior de um contexto determinado, que Sartre designa de
situação. A liberdade é sempre situada: isso quer dizer que no seu exercício
concreto o sujeito se depara com os elementos que compõem a situação
vivida. Não existe liberdade sem situação, assim como não existe situação
sem liberdade. Essa reciprocidade deve ser compreendida de duas
maneiras. Em primeiro lugar, através da facticidade: conjunto de fatos,
naturais e sociais, que constituem o contexto em que o sujeito exerce a
liberdade. Dentre esses estão o tempo e o lugar em que nos foi dado viver;
a família, a classe, o entorno social; caracteres herdados, constituição
física, perfil psicológico; cultura, contexto histórico, regime político, etc.
Observe-se que nenhum desses fatos pode ser mudado; quando nascemos,
já os encontramos constituídos e nada podemos fazer a respeito, porque
não dependem de nós. Entretanto, é em meio a fatos dessa natureza que
devemos viver e exercer a liberdade.
Parece um paradoxo, mas não é, principalmente quando surgem fatores
impeditivos ou que desvirtuem a intenção inicial do para si. De fato, a liberdade a
qual
somos
condenados
vem
antes
do
mundo
enquanto
ação/representação/significação.
Nesse processo, o para si em quanto liberdade dá a tonalidade às coisas em
decorrência de sua liberdade. Existir, pois, é existir é em e para a liberdade, onde o
contexto, o destino e a situação do indivíduo, repousa no plano do possível como
individualidade, guiado pela liberdade.
O outro não tira do eu para si a liberdade. A alteridade é comum no contexto
coletivo social onde todos os para si se encontram, vivem e convivem, esta relação
onde um para si é um para outro e assim vise e versa, onde o eu para si constitui
sua subjetividade formando seu passado, sua história.
Enquanto para o outro o eu para si é objetivação, onde as liberdades se
encontram, uma relação de intersubjetividade em que a liberdade encapsulada é
mantida incólume para cada para si.
O conflito entre as liberdades, do ponto de vista sartreano, embora mantenha
a liberdade enquanto liberdade para cada para si, o resultado final sofre uma
variação quanto ao resultado, isto advém do atrito entre as liberdades.
37
Dessa forma, a liberdade e a alteridade são faces de uma mesma moeda, se
completam, na medida em que se justificam dentro do pensamento de Sartre, a
relação entre os para si enquanto uma realidade inevitável, todavia, a condição de
ser livre é imanente ao para si e, a alteridade uma consequência, onde seus
estatutos são preservados no bojo do processo existencial, o qual funde a
historicidade sartreana como passamos a ver.
O pensamento de Sartre é divorciado da concepção clássica de que a
essência precede a existência. No entanto, não seria forçar, inferir que existe uma
essência enquanto existência, pensar uma essência da existência, uma história do
sujeito. O para si enquanto pura negatividade, detentor de uma consciência que é
um puro nada, em seu processo existencial se projeta fora de si constituindo sua
subjetividade, como já dito uma consciência fenomenológica e uma subjetividade
ontológica.
Sua facticidade, ou melhor, tudo que envolve sua existência enquanto tal
constitui sua história, são as marcas impressas no para si e o reflexo objetivado
pelos outros durante o lapso temporal denominado existência, conforme bem
esclarece Pecoraro (2009, p. 115)
A história que age sobre o indivíduo no sentido de determiná-lo e o individuo
age sobre a história na medida em que esta decorre de suas ações. [...] a
subjetividade não é dada, mas constituída. Em termos históricos, isso
significa que o sujeito se forma pela interiorização das condições objetivas
que delineiam o contexto no qual vive. Essa interiorização não pressupõe
qualquer instância de interioridade já dada, pois se trata precisamente de
constituição ou formação. O sujeito nada mais é do que essa interiorização
que equivale ao processo de sua constituição. Ao agir, o sujeito exterioriza o
que foi interiorizado e assim constitui o mundo histórico naquilo que lhe diz
respeito (representações e significações atribuídas às coisas) porque
também o mundo histórico não é algo dado, mas constituído pelas ações
dos sujeitos enquanto agentes.
O homem é um ser histórico, na medida em que faz a sua estória, onde a
historicidade representa nada menos e nada mais do que o englobamento do
começo, meio e fim da existência. A este respeito se mostra salutar destacar a
posição de Franklin Leolpodo (2004, p. 33).
[...] a historicidade é o que o caracteriza na sua produção totalizadora, razão
pela qual podemos admitir algo como uma consciência narrativa na
apropriação ressignificativa que o sujeito faz da factualidade na qual se
insere por sua história individual e social. A narrabilidade, entendida como
38
modalidade temporal do surgimento do sujeito para si mesmo, aparece
assim como um aspecto intrínseco pelo menos em nível reflexivo [...].
O para si é histórico e história, é texto e contexto de si mesmo, auto
sustentável, uma singularidade universal, uma possibilidade que dialeticamente
edifica-se, parafraseando Santos, como uma casa que de tijolo em tijolo se perfaz,
com a única diferença, embora história! Este para si não deixa se completar, caso
contrário, seria um em si, no entanto, por não ser o em si que o para si se revela
autônomo, diferente e por consequência existencial conforme passamos a analisar.
Em Sartre faz-se necessário termos em mente que sua teoria do ser para si
tem como pressuposto uma determinada concepção de liberdade. Percebemos que
as inúmeras obras que tratam do existencialismo sartreano chegam a definir
conceitos e a dar um breve palatar sobre seu pensamento, mas esquecem de,
efetivamente, propiciar ao leitor uma compreensão sistemática do pensamento
existencialista, no que diz respeito a concepção sartreana de autonomia e como esta
articula e perpassa toda a sua doutrina da liberdade.
A autonomia tem como ponto central a liberdade, sendo este o núcleo sob a
qual se estrutura o existencialismo, enquanto corrente filosófica influente. Porém,
compreender o que se entende com o conceito de liberdade em Sartre é vital, pois
liberdade para ele não é definida pela via negativa, ou seja, compreendida em face
de uma impossibilidade real: o deixar de fazer o que se quer.
Em Sartre, sucintamente, a liberdade reflete a livre escolha que o homem faz
de sua vida, em sua maneira de existir para o mundo, ou seja, é uma liberdade próativa. Uma liberdade em que não pode interferir na essência do próprio homem,
enquanto ser engajado e vincado à existência e único responsável pelo que lhe
acontece: responsável pelos seus acertos e conquistas, pelos seus erros, falhas,
decepções, mesmo quando isso lhe advém quando o homem deixa de escolher.
Afinal não escolher é, em si, um ato essencialmente livre e constitui a expressão
máxima de uma escolha.
Disso podemos notar que a autonomia, que é desmembrada em outras
esferas que compõe a vida humana, ou seja, autonomia religiosa, autonomia ética,
etc merece um tratamento peculiar, ao ponto de elevá-la a status de exame como
ora fazemos.
39
A autonomia da liberdade marca, dentro da corrente filosófica existencialista,
o total divórcio com Deus, a medida que o homem é o criador de seus valores e o
responsável pela consequência de suas escolha, portanto, responsável pelo seu
destino. Essa compreensão da autonomia sartreana é radical. É uma autonomia,
que sela a responsabilidade e levada às últimas conseqüências, como bem
esclarece Sartre em o Ser e o Nada (2007, p. 550).
O Para-si é responsável tanto quanto por uma quanto por outra, porque ele
só pode “ser” caso tenha se escolhido. Aparece, pois, como livre
fundamento tanto de suas emoções quanto de suas volições. Meu medo é
livre e manifesta minha liberdade; coloquei toda minha liberdade em meu
medo, e escolhi-me medroso nessa ou naquela circunstância; em outra,
existirei como voluntário e corajoso, e terei posto toda minha liberdade em
minha coragem. Em relação à liberdade, não há qualquer fenômeno
psíquico privilegiado. Todas as minhas “maneiras de ser” manifestam
igualmente a liberdade, pois todas as maneiras de ser meu próprio nada.
Esse ponto de partida humanista-antropológico que caracteriza a concepção
de autonomia em Sartre, tem como finalidade deixar claro e evidente que sua a
filosofia é existencialista, mas se afasta de outras correntes existencialista que
discutem a existência em sua relação com o transcendente, mas que não serão
tangenciadas pelo recorte da pretensão encampada pelo objetivo do trabalho. É
oportuno, nesse passo, citar um breve trecho Coleção Pensadores (1987 (A), p. XI):
Sartre tira todas as consequências desse ateísmo, eliminando qualquer
fundamento sobrenatural para os valores: é o homem que os cria. A vida
não tem sentido algum antes e independentemente do fato de o homem
viver; o valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para si mesmo.
Em síntese, o existencialismo Sartreano é uma radical forma de
humanismo, suprimindo a necessidade de Deus e colocando o próprio
homem como criador de todos os valores.
O valor, ou melhor, os valores atribuídos às coisas não são um legado divino,
mas do próprio homem que faz com que estas coisas existam, dando razão as
coisas em meio esta vivência do homem na constância de sua existência e em sua
perpétua transformação. Essa autonomia em relação às coisas e esse poder de
auto-referenciar-se a si mesmo e o mundo à sua volta, nos leva a concluir que a
liberdade é essência do homem e o elemento que distingue o homem frente aos
demais seres, conforme retrata Mário Giordani (1976, p. 104):
40
A liberdade é essencialmente humana, não, porém, como uma propriedade
da essência de homem, mas sim porque torna essa essência possível pela
escolha. Nesse sentido é que a “existência precede a essência”, pois a
liberdade define o: homem: é o próprio homem: é a essência do homem.
O homem se confunde com sua liberdade. A liberdade, enquanto essência,
garante a sua autonomia, permitindo que o homem crie sua própria moralidade.
Essa característica primordial do homem é expressa não apenas nos textos
filosóficos, mas também nos textos literários ou teatrais, como bem captou Mário
Giordani (1976, p. 105):
Orestes, o herói da tragédia Les Mouches, encarna bem o ideal do homem
livre de Sartre, com seu drama interno, ao tomar sobre si a decisão de
matar Egisto e a própria Clitemnestra. “Mas, de repente, a liberdade
precipitou-se sobre mim e penetrou-me, a natureza saltou para trás e eu
não mais tive idade e senti-me completamente só, no meio de teu
mundozinho indulgente, como alguém que perdeu sua sombra; e nada mais
houve no céu, nem Bem, nem Mal, nem ninguém para dar-me ordens”.
Esta autonomia apoiada em uma liberdade absoluta justifica o ateísmo
escancarado de Sartre e fundamenta sua filosofia existencialista. Mário Giordani
(1976, p. 109) nos melhor traduz este impulso:
Portanto, expulsa a providência tanto do mundo como de suas obras. Não
há para ele nenhuma lei moral divina, nenhum valor eterno a priori,
nenhuma essência; portanto, tampouco nenhuma essência e natureza do
homem. Seu existencialismo ateu significa que há, ao menos um ser cuja
existência é anterior a sua essência, um ser que existe antes que possa ser
definido por qualquer conceito, a saber: o homem.
Isto nos leva a acreditar em um distanciamento de Deus não somente para
sustentar esta autonomia, como também a descrença de que existe uma ordem
estabelecida no mundo a qual estaria influenciando, de forma determinista, a vida do
homem, como se tivesse este homem que cumprir uma jornada já pré-estabelecida
no mundo.
Para Sartre, a vida do homem não pode ser guiada por um ser transcendente.
Tanto a ética quanto a estética são questões que devem ser edificadas segundo a
vontade do homem, mediante sua autonomia e sua possibilidade concreta e com
um caráter pendular.Dessa forma, fortalece ainda mais com propriedade o vinco
conceitual de autonomia, pelo prisma do ateísmo Sartreano, segundo (Bochenski,
1955 p.114):
41
Sartre talvez seja o mais inteligente e o mais sutil ateísta de toda a história
da filosofia e por isso, julgamos útil um rápido contato com sua doutrina.
Sartre mais do que ninguém compreendeu e experimentou a nãonecessidade e a insuficiência de tudo o que encontramos no mundo. Tudo,
diz ele, é sem justificativa. Absolutamente não precisa existir, no entanto
está aí. Um triângulo abstrato, uma fórmula matemática são de algum modo
explicáveis, mas nem existem. A existência das coisas, ao contrário, não
tem explicação. Não conseguimos explicar, por exemplo, por que existe esta
árvore com estas raízes. O mundo real só poderia ser explicado por Deus.
Mas Sartre não quer saber de Deus porque pensa que Deus é uma
contradição, um absurdo maior que o mundo absurdo. Logicamente conclui
que todos os entes, e especialmente o homem, são absurdo sem sentido.
Sartre como nenhum outro filósofo soube formular o dilema: é necessário
escolher entre Deus e o absurdo, ele pessoalmente escolhe o absurdo, o
sem sentido, com todas as suas consequências. Seja me permitido notar de
passagem que quem conhece a marcha do pensamento de Sartre não o
pode classificar como simples “existencialista”. Sartre é um metafísico de
alta categoria. Se errar, erra numa altura onde muitos nem sequer
conseguem acompanhá-lo.
Neste mesmo sentido, podemos a partir da doutrina de (Albérès, p. 139-140),
reforçar a concepção de autonomia através da interface autonomia e liberdade, ao
citar a breve passagem da obra o “Sursis”:
Nada sou, nada tenho. Tão inseparável do mundo como a luz e, contudo,
exilado, como a luz, escorregando sobre a superfície das pedras e da água,
sem que nada, jamais, me agarre ou encalhe. Fora. Fora. Fora do mundo.
Fora do passado, fora de mim mesmo: a liberdade, eis o exílio, e eu estou
condenado a ser livre.
A liberdade em Sartre é algo que fascina e que marca efetivamente a
condição do homem como senhor de seu destino. Esta autonomia lhe proporciona
selar a rota na qual se ligará o hoje e o amanhã e ao mesmo tempo revelar sua
condição existencial, sem chance de fugir da liberdade que possui. O homem pode
morrer pela sua própria liberdade, demonstrando com isso que a autonomia de ser o
que é, é algo imanente a sua existência, onde Deus, não opina, não decide, não
toma partido algum. Em recente produção cinematográfica podemos presenciar
Sartre tão vivo e latente no filme The Box (A Caixa).
The Box (A Caixa) Elenco: Cameron Diaz, Frank Langella, James Marsden,
Gillian Jacobs, Michelle Durrett. Direção: Richard Kelly - Gênero: Terror Duração:115 min. Distribuidora: Imagem Filmes - Estréia:26 de Março de
2010
Sinopse: O que você faria se lhe entregassem uma caixa com apenas um
botão e que se você o apertasse o deixaria milionário mas, ao mesmo
42
tempo, tirasse a vida de alguém que você não conhece? Norma Lewis
(Cameron Dias) é uma professora e o seu marido, Arthur (James Marsden),
é um engenheiro da NASA. Eles são um casal com um filho que leva uma
vida normal morando no subúrbio. Tudo muda quando um misterioso
homem aparece com uma proposta tentadora: a caixa. Norma e Arthur têm
24 horas para fazer a escolha. Logo eles irão descobrir que certas escolhas
estão fora de seu controle e vão muito além da fortuna e do destino.
No filme, além da quantidade de cenas que traduzem o mundo de conceitos
da filosofia existencialista, consegue de forma inquestionável desnudar a incerteza
do ser que ao mesmo que é, não é em si, é no outro ou para o outro, ou apenas é
outro, quase que não se reconhecendo por estar fora de si mesmo, uma ausência de
identidade perturbadora.
Esse turbilhão assusta nossa contemporaneidade ao vermos uma sociedade
incapaz de se proteger a ponto de não garantir sua própria existência. Sartre diria
que existir, viver em uma sociedade assim – socialmente sem rumo ou vivendo,
onde os indivíduos vivem de forma inautêntica – é uma existência falsa, uma
existência que bebe de uma fonte incapaz de dar a este ser uma existência
autêntica, embora tanto em uma como na outra condição, ainda tenha autonomia
por ter em sua essência liberdade, um conceito que embasa sua filosofia e que este
ser está condenado a ser livre. Esta forma de receber o ser em sua plenitude é
preocupante, na medida em que torna este ser limitado, como bem destaca Sartre
em o Ser e o Nada (2007, p. 538)
Enquanto imerso na situação histórica, o homem sequer chega a conceber
as deficiências e faltas de uma organização política ou econômica
determinada, não porque “está acostumado”, como tolamente se diz, mas
porque apreende-a em sua plenitude de ser e nem mesmo é capaz de
imaginar que possa ser de outro modo. Pois é preciso inverter aqui a
opinião geral e convir que não é a rigidez de uma situação ou os
sofrimentos que ela impõe que constituem motivos para que se conceba
outro estado de coisas, no qual tudo sairá melhor para todos; pelo contrário,
é a partir do dia em que se pode conceber outro estado de coisas que uma
luz nova ilumina nossas penúrias e sofrimentos e decidimos que são
insuportáveis.
O existencialismo então é um reflexo de um fato, o qual podemos identificar
dentro de um contexto político-social, como um fato histórico, onde Sartre versus
Deus representa um rompimento, como podemos extrair do artigo Os Equívocos de
Heidegger na Delimitação da Ontoteologia, de José Nicolao Julião 2002, p. 91- 92):
43
O tema da “morte de Deus” não é originariamente nietzchiano; já era
corrente no ambiente alemão, tanto entre os poetas românticos quanto na
filosofia do idealismo [...] Esta triste notícia da morte de Deus talvez
necessite de alguns séculos para se expandir universalmente. Para Heine,
Kant com A Crítica da Razão Pura havia promovido uma revolução espiritual
na Alemanha, muito mais profunda que a Revolução Francesa [...] Kant teria
instalado uma crise no pensamento ocidental moderno, ao afirmar
categoricamente que não há conhecimento especulativo da coisa em si,
mas tão somente de fenômenos [...] O realismo metafísico afirma que as
coisas existem fora e independentemente da consciência ou do sujeito, tal
posição pressupõe uma autoridade externa como fundamento e
organizadora da ordem do mundo, aos moldes da metafísica de Leibniz,
Wolf e Descartes. A revolução copernicana promulgada por Kant, põe fim a
todo fundamento externo, tanto gnosiológico quanto moral. Dessa forma, o
intelecto humano é a medida de todas as coisas; e a ação humana, não a
divina, é o motor da história, “somos nós que comandamos”. Deus perde o
estatuto de coisa em si, assim como a sua função de fundamentador, e
passa a ser apenas uma ideia reguladora, um postulado da razão prática,
que somente orienta a formulação da lei moral, mas o fundamento mesmo
é totalmente subjetivo e racional.
Este novo paradigma do pensamento, indubitavelmente, somado as
incertezas da verdade no mundo externo conduz e influência a novas correntes
filosóficas, dentre elas o existencialismo radical de Sartre.
Nesse sentido, Régis Jolivet (Jolivet, p. 36), de forma meridiana e refletindo
uma nova perspectiva, corrobora com a concepção de que o homem possui uma
autonomia que lhe é peculiar, senão vejamos:
[...], o homem justifica-se a si mesmo absolutamente. Essa justificação,
porém, não é mais que um aspecto de sua liberdade, que não tem razão de
ser. E, por último, o homem é sem razão, absurdo como tudo o mais. O
homem é “uma paixão inútil”. O pior em sua condição será, pois, sacrificar
ao “sério”, ou seja, atribuir ao mundo mais realidade ou valor do que a si
próprio, e a si próprio um valor absoluto. No fundo, tudo é indiferente, não
somente porque Deus não existe e, “se Deus não existe, tudo é permitido”,
mas ainda porque todas as escolhas, quer dizer, todos os valores confluem
para o mesmo absurdo e o mesmo nada, onde tudo se equipara.
Constatamos que Sartre propicia a nós um momento de reflexão sobre a
questão da autonomia algo que é universal ao “homem”, tanto quanto é a construção
universal do homem no mundo, pois, se Deus tivesse qualquer interferência sobre o
homem, este, ao ficar inerte, mesmo assim se realizaria. Podemos concluir, partindo
dessa premissa, que a autonomia de Deus não existe. Em segundo lugar, a prova
da autonomia do homem distante de Deus torna-se patente, à medida que este ser
depende somente de si para ser algo de diferente do que era e demais ninguém,
nem mesmo de Deus.
44
Este entendimento pode ser complementado com a citação de (Albérès, p.
23) oriundo da obra de Sartre a Náusea: “A Náusea não pára aí. Ela constata um
fracasso, mas apresenta um problema, é verdadeiramente uma interrogação: a
liberdade e a lucidez que a afirmamos não serve para nada, falta dar-lhes um
sentido”.
O homem é livre a ponto de sentir uma angústia ao deixar que sua existência
torne se vã e vazia, pois livre e possuidor de sua autonomia precisa ser, caso
contrário será Nada. O homem detém a liberdade que lhe é inerente, onde nada está
pronto, tudo convida ao emprego da construção, pois, caso nada faça sua existência
tornar-se-á um tédio, um tormento.
Esta gratuidade é da sua existência, demonstra a liberdade onde o ser se
empenha dentro de um processo dialético que se dá no mundo, tem que justificar
sua existência, para que isto aconteça a sua autonomia é um atributo essencial de
sua própria existência, uma condição não no sentido de natureza do homem como
um sinônimo, mas uma condição que revela uma circunstância real onde o homem
é. O homem precisa justificar a sua existência livre e responsavelmente concebida.
Esta justificativa somente se realizam se ele detiver autonomia, por esta razão
ao agir dentro de sua liberdade não escapa da responsabilidade de suas ações o
que reflete possuir autonomia. A esse respeito, na obra o Existencialismo é um
humanismo, (Sartre, 1987, p. 3) podemos extrair a seguinte inferência:
O Existencialismo é um Humanismo. Muitos poderão estranhar que falemos
aqui de humanismo. Tentaremos explicitar em que sentido o entendemos.
De qualquer modo, o que podemos desde já afirmar é que concebemos o
existencialismo como uma doutrina que torna vida humana possível e que,
por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e
uma subjetividade humana.
Portanto, esta subjetividade humana se espraia, por intermédio do exercício
da autonomia do homem, como ser que possui liberdade. Outrossim, o homem tem
uma universalidade a qual não lhe é outorgada e sim edificada no mundo que este
homem existe. Segundo Sartre, o homem só se realiza, ao realizar um determinado
tipo de humanidade inerente a ele (Sartre, 1987, p. 16.): “O que o existencialismo faz
questão de mostrar é a ligação existente entre o caráter absoluto do engajamento
livre – pelo qual cada homem se realiza, realizando um tipo de humanidade...”.
45
O homem é livre, ele diferente dos outros seres possui autonomia capaz de
forjar o seu destino, isto é, o homem é seu próprio artífice, senhor e criador de sua
essência, o que revela uma consciência nadificada que dispensa a relação com
outras vidas. Em O Ser e o Nada encontramos sua ontologia voltada para a
existência e não para a essência, como podemos extrair do trecho ora transcrito
(2007, p. 542). Encontramos análogas dificuldades ao querer descrever o ser do
fenômeno e o nada. Mas elas não nos detiveram. Isso porque, com efeito, pode
haver descrições que não visam a essência e sim próprio existente, em sua
singularidade.
Devidamente
sistematizado
demonstrou
metodicamente
a
compreensão fenomenológica que fundou o pensamento existencialista.
O autor, pesquisador e estudioso de Hegel rompe com o psicologismo antigo
que sugeria a existência de dois mundos um interior e um outro exterior, esta sacada
decapta com o pedantismo obscuro de um mundo turvo, desconhecido e explorado
de forma maliciosa que atormenta as mentes menos evoluídas. A partir desse
fundamento e dessa crítica que surge então a existência como consciência em
Sartre.
Esta consciência marca a inexistência do passado: não há vida antes, nem
após a morte, não existe encarnação. Poderia, em verdade, ir mais longe e ponderar
que na modernidade e em nossos dias não houve nenhum outro momento em que
os “trapaceiros” - segundo a linguagem de Sartre - abusaram tanto de uma realidade
que jamais existiu, criando um mundo interior para aprisionar uma falsa existência.
Segundo Gary Cox (2007, p.22):
A consciência de acordo com Sartre, é fundamentalmente e
ontologicamente um não ser em relação ao ser; uma negação do ser.
Portanto, o seguinte relato sobre a visão de Sartre a respeito do não-ser
deve ser entendido como um relato de sua visão do ser da consciência em
nível ontológico.
A consciência em Sartre é uma incógnita tanto quanto tudo que é absurdo,
tida como uma “grande aventura do em si, parafraseando Gary Cox é uma curiosa
aventura, um absurdo considerando a característica rígida, inerte e tenebrosa sem
nenhuma relação consigo, como extrair uma contingência?
No mais, Sartre também busca definir a natureza da consciência. Para este
pensador ela é, inicialmente, dicotômica em relação a sua significação: consciência
46
de si e consciência de alguma coisa, sendo a primeira absolutamente pura por ser
vazia, em suma, um nada no bojo do ser. Quando a consciência em si torna-se
consciência de alguma coisa, nesse estágio, ela se projeta no outro, podendo ser
consciência de si. Para Sartre, conforme afirma Régis Jolivet (1968, p. 30-31),
mesmo considerando a consciência a partir da existência, ela não é psicologizada:
Assim, entendida, a consciência permite eliminar o recurso à “vida interior”
das psicologias clássicas, pelas quais Sartre sempre teve horror. De um
lado, com efeito, julga, como bom hegeliano, que o exterior é, afinal de
contas, antes de tudo o próprio conteúdo do interior, que a essência
aparece na existência e se suprime, portanto, como antítese de fenômeno,
identificando-se com ele. Do outro lado, a “vida interior” parece lhe ser o
asilo da má-fé, o álibi da mentira familiar aos “sórdidos” ou ainda “o
subproduto” que o tédio destila “para as almas sensíveis”. Graças a noção
de “intencionalidade”, tirada de Hurssel, a vida “interior” fica radicalmente
eliminada: não existindo a consciência senão como ultrapassagem perpétua
de si rumo ao objeto, o “dentro” das psicologias clássicas desaparece em
proveito exclusivo do “fora”, isto é, do mundo objetivo, sem o qual se
desvaneceria como uma chama sem oxigênio.
A consciência em Sartre vem ao encontro da esperança Nietzscheana, ou
seja, se para o existencialismo Deus não existe e a consciência advém com a
existência e se perfaz no mundo, para aquele pensador, segundo José Nicolau
Julião (2002):
O momento da tomada de consciência da “morte de Deus” é o mais
perigoso de todos, pois ele aponta para dois caminhos: um - o que
Nietzsche gostaria que a humanidade seguisse – é o caminho da
superação, a tomada de consciência, de que somos nós que comandamos,
ou seja, não há autoridade externa que nos guie, mas somos nós mesmos
que nos conduzimos, para os tornarmos aquilo que somos; o outro, é o
perigo que essa percepção pode lançar sobre a humanidade, pois tal
tomada de consciência revela que lançar sobre a humanidade, pois tal
tomada de consciência revela que aquilo em que depositávamos a mais alta
esperança é desprovido de valor, é ficção e se revela como nada.
O existencialismo vem selar a preocupação de Nietzsche, sem retaliação,
sem consequências, Sartre coloca o homem frente a frente consigo mesmo, em uma
espécie de espelho narcísico e vê sua consciência no mundo sensível, sem Deus.
Ao acordar o homem percebe que continua sendo homem, enquanto Deus, ou
melhor, o conceito de Deus tem sua importância na medida em que desempenha um
papel elementar na construção da filosofia existencialista, demonstrando que a
ordem metafísica, ontológica, epistemológica e moral possuem ordem e garantia de
47
existir em si e não por Deus, o que revela ser uma ilusão a criação do homem
segundo o postulado da religião oriental.
Pois a palavra Deus ou deuses, em análise mais acurada não tem a
concepção que a contemporaneidade atribui, isto significa que Deus, conforme já
manifestado por Sartre é um absurdo, ou simplesmente um pseudo-conceito, a este
respeito Etiene Gilson (2002, p. 22) é esclarecedor.
O primeiro facto surpreendente acerca do significado grego desta palavra é
que a sua origem não é filosófica. Quando os filósofos da Grécia antiga
começaram a especular, os deuses já lá estavam e os filósofos limitaram-se
a herdá-los daqueles homens aos quais toda a antiguidade, até a época de
Santo Agostinho chamou de Poetas Teólogos. Limitando-nos à Ilíada de
Homero a palavra “deus” parece ser aí aplicada uma incrível variedade de
objectos diferentes.
Continua o mesmos comentador (2002, p. 58), porém focando toda a
dificuldade enfrentada pelos filósofos diante do problema do conhecimento, o qual
também é objeto de questionamento em Sartre em sua obra magna O Ser e o Nada
na relação entre o para si e o em si.
O homem conhece-se a si próprio. E porque se conhece a si próprio pode
afirmar “eu sou”. E porque conhece outras coisas para além de si próprio,
pode dizer dessas coisas que “elas são”. Na realidade, um facto
tremendamente importante, uma vez que, tanto quanto sabemos, é através
do conhecimento humano e unicamente através dele que o mundo pode ter
consciência da sua existência. Daí que para os filósofos e para os cientistas
de todos os tempos surja uma primeira dificuldade, não sem importância:
desde que o homem como ser inteligente faz parte do mundo, como explicar
a natureza sem atribuir ao seu primeiro princípio o conhecimento ou
qualquer coisa que, por incluí-lo virtualmente, lhe é efectivamente superior?
A ilusão da criação é uma questão complexa e sempre que discutida causa
grandes e inesgotáveis controvérsias. O fato de que a linguagem causa tantos
problemas poderia nos conduzir a uma atitude simplista de não questionar, mas
apenas aceitar os fatos criados pela linguagem.
No entanto, o limiar dos dias coloca o homem frente a uma realidade humana
que exige que ele se posicione no horizonte do seu tempo, seja olhando para a
história do passado, tanto quanto para história da sua estória como também para a
história do futuro que agora se tornou presente e em instantes passado. Neste
aspecto pontua o magistério de Franklin Leopoldo e Silva (2004, p. 20), “A realidade
humana não é objeto de contemplação porque, numa sociedade fundada na
48
alienação, o homem não atingiu sequer a sua própria realidade: e prisioneiro de
uma imagem inautêntica de si próprio”.
Por esta razão, o homem se vê refém de uma criação surrealista de Deus,
concebendo-o como uma verdade imposta e através da qual surge a ilusão da
criação de um ser superior. Segundo Sartre, a existência de um ser transcendente
não passa de uma contradição e sobre esse tema citamos Bochénski (1955):
O que o homem quer se converter no em-si e ao mesmo tempo ser o
fundamento de sua própria causa, é dizer, um em-si-para-si. Com outras
palavras, o homem quer ser Deus. A paixão do homem é ser em certo
sentido a invenção da paixão de Cristo: O homem deve morrer para que se
converta em Deus. Pois, para Deus é impossível: um “en-si-para-si” é uma
contradição.
O trecho em destaque infere que existe uma contradição à medida que a
paixão de Cristo é tida como invenção. A contradição do em si, com sendo denso,
imóvel, complexo, uno, dentre outros atributos, desponta na medida em se pensa
sobre o questionamento de como possuí-los? E ao mesmo ser livre e conhecer a
tudo, por outro lado também não teria sentido lógico se Deus é um em si ter que ser
um em si para si, disso extraímos a ideia de Deus como uma contradição na criação
do homem.
Deus em sua empreitada teria criado o universo do nada, porém de duas
uma: ou o nada é um nada, um vazio e disso nada poderia ser criado ou em sua
oposição, o nada, é algo, pois, pensar o nada exige a pressuposição da existência
de algo. Afirmar uma essência do “nada”, no entanto, do ponto de vista
existencialista, seria impossível considerando que a existência precede a essência,
portanto, para o existencialismo estes fatos nenhum efeito geraria.
De um modo geral, as escrituras sagradas e em específico a escritura
sagrada ocidental conduz o homem a crer em uma criação ex hihilo, concepção
embasada na criação do universo por um único escultor denominado Deus e antes
dele nada existia, tão somente ele, conforme dispõe o livro de Genesis 1.1 “No
princípio criou Deus os céus e a terra”. À luz do Novo Testamento, lemos em João
1.3 que “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi
feito se fez”. Complementando este raciocínio ainda podemos citar o apóstolo Paulo
que, em Hebreus 11.3, afirma, “Pela fé entendemos que foi o universo formado pela
49
palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não
aparecem”.
Dessas passagens e outras existentes no corpo da escritura sagrada não se
consegue extrair de forma inequívoca
elementos que forneça segurança
suficientemente capaz de sustentar a criação do universo do Nada, É importante
notar que existe uma tentativa de explicar este fenômeno em decorrência da
impossibilidade da explicação, quando retrata uma criação do visível pelo invisível,
ou seja, pela negatividade.
A tese de contradição da criação ex nihilo encontra reforço, diante da
absurdidade da possibilidade frustrada a qual encontra respaldo ao lermos o
versículo sobrepondo a segunda parte em face da primeira, “De maneira que o
visível veio a existir das coisas que não aparecem, pela fé entendemos que foi o
universo formado pela palavra de Deus”, ou seja, ainda que a criação tenha se dado
pelas coisas que não aparecem, elas já se encontravam em Deus, pois, para serem
emitidas por suas palavras – para ter uma certa logicidade – deveria estar contidas
em seu pensamento. Sendo assim, a teoria ex nihilo se revela impossível e
falaciosa.
Outrossim, a possibilidade de uma preexistência material na criação, reflete
do ponto de vista sartreano uma contradição, não somente pela base que alicerça a
corrente filosófica existencialista, como também no seio da doutrina cristã que
defende a criação a partir de Deus, na medida que a existência não possui essência
e esta somente se concretiza a partir da existência. A exegese da escritura não
afasta a essência materialista no momento da criação, o que demonstra uma certa
incoerência.
Nesse sentido, o homem pelas circunstâncias é levado a acreditar na criação
ex nihilo, por quê? Porque se houver entendimento contrário, Deus como arquiteto
“mor” teria criado o universo de uma matéria equiparada a ele, pois tudo teria
surgido junto com Deus. Portanto, nas mesmas condições, observando o universo
notamos que diferente de Deus as coisas existentes não são eternas, e isso nos
conduz, através da negação, a acolher o fenômeno ex nihilo.
A este respeito, se considerar a matéria equivalente a Deus, então Deus não
poderia ser Deus, pois os predicados absoluto e necessário seriam também
atribuídos a matéria onde a supremacia divina e sua autonomia seriam
50
questionáveis. Não poderia existir uma diferença essencial, caso não houvesse um
hiato entre Deus a e matéria. Sendo eles iguais, Deus não regeria a matéria por esta
ser senhora de seu governo, possuindo a mesma propriedade, adjetivos e atributos
de Deus.
Do contexto, percebemos outras implicações questionadoras e que conduz a
reflexão sobre a ilusão da criação, ou seja, se houver defesa no sentido de que tudo
no universo é Deus - posição panteísta - podemos sumariamente ser levados a crer
que a unidade de Deus não se sustenta na medida em que existe no universo
movimento. A possibilidade como colocado da existência de matéria e de Deus no
plano da dualidade, coloca a matéria a guerrear com Deus, gerando inevitavelmente
certo tensionamento.
Não diferente é a supremacia radical de Deus. Sustentando esta posição a
humanidade é levada a acreditar que são deístas, melhor explicando, a
transcendência do criador o colocar em um tribunal a julgar todos, Deus não teria
uma intervenção, senão somente no ato de criação e posteriormente participaria do
juízo final.
Esta questão também é retratada por PENZO; GIBELLINI (2002, p. 18-19) na
clássica obra Deus da filosofia do século XX, senão vejamos:
No quinto livro de A gaia ciência, sob o título “Em que medida nós somos
devotos”, Nietzsche, depois de ter-se lamentado pela perda da fé
metafísica, em que, porém, se funda a ciência, confessa não ter uma
certeza inabalável de perda definitiva do fundamento divino. [...] O novo
modo de propor a relação entre ser e Deus fica fora desse princípio “não
contradição”. [...] Por isso, caso tente esboçar uma resposta para a pergunta
nietzschiana sobre o sentido em que ainda se pode ser devotos, pode-se
dizer que isso é possível no âmbito de um existência imoral. Ou seja, no
âmbito de uma existência que escapa ao poder do homem e, portanto, á
força imperativa do conceito e, por isso, da Lei.
Complementam os autores, ainda citando:
De resto, Nietzsche procura demolir o fundamento do existir moral e,
portanto, a validade ontológica da metafísica quando afirma, ainda em A
gaia ciência (par. 347.355), que, no fundo, a raiz da metafísica seria de
natureza psicológica. A confiança na dimensão universal do conceito e,
portanto, da lei, teria, para ele, explicação no instinto do “medo” que está em
cada um de nós, ou seja, na necessidade de certeza e de segurança. Essa
necessidade de certeza e segurança estaria justamente na base do
princípio de não-contradição.
51
A criação, por estes vetores, apenas reflete, com isso, ratifica a inexistência
de Deus, seu dogmatismo somado à pseudo-segurança conduzem ao problema da
prova cientifica da existência de Deus, no plano pós-metafísico circunda pelo abismo
de uma crise gerada pela figura paternalista de Deus.
Essa figura, abominada pela filosofia sartreana, em Nietzsche não passa de
um Deus-Âncora no plano metafísico e no plano pós-metafísico. Deus-risco, em
decorrência da insegurança oriunda de sua improbabilidade, outrossim, outros
pensadores, tais como Descartes e Locke representam seus pensamentos uma
forma de revelar a rigidez do pensamento ateísta de Sartre.
Em Descartes a ideia inata de infinitude presente no espírito que representava
a prova de Deus, é fulminada, tanto por Sartre como aniquilada, por Locke, segundo
trabalho artesanal cunhado pelo formão da filosofia de autoria de Saulo Henrique
Souza Silva no texto “Locke e a crítica à prova cartesiana da existência necessária
de Deus: um problema moral” (2008, p. 145-159):
No ensaio de Locke, utilizando o que denomina de “historical plain method”
(simples método histórico, Essay, Introduction, parágrafo 2º), pretende fazer
do entendimento humano o objeto de uma investigação cuja finalidade é
delimitar com precisão a origem, certeza e extensão de nosso
conhecimento. Exposta sua, intenção,o filósofo inglês estabelece a princípio
basilar de sua filosofia, a saber: que não existe nenhuma ideia inata da
mente dos homens, sendo esse fato evidente porque “nem as crianças
nem os idiotas possuem a menor apreensão ou pensamento delas” (ibidem,
I, II, parágrafo 5), nem tais ideias, sejam práticas ou especulativas, recebem
da Humanidade validade universal.
Complementa o autor:
[...] diferente de Descartes, Locke pensa que a existência real de Deus
não pode ser provada a priori por nenhuma suposta ideia inata de um
ser sumamente perfeito como sendo “a explicação de uma concepção
que temos em comum de Deus” (Curley, 1997, p. 55), visto que, essa
ideia não encontra nenhum assentimento geral entre os homens. (o negrito
é meu).
Locke não defende uma ideia contrária a existência de Deus, sua visão
antropológica busca sedimentar Deus como escultor da natureza e arquiteto das
regras da moral que faz o homem ser o que é. No entanto, se Locke debela a tese
cartesiana, na medida em que Deus não é uma ideia imanente ao homem, como
destaca Etiene Gilson em sua obra Deus e a Filosofia (2002, p.42)
52
Efectivamente, o próprio Moisés não conhecia o nome do Deus único, mas
sabia que os judeus lho perguntariam; mas, em vez de se envolver em
profundas meditações metafísicas para descobrir o verdadeiro nome de
Deus, ele optou por um atalho tipicamente religioso. Moisés simplesmente
perguntou a Deus Seu nome, dizendo-lhe “Senhor, irei ao encontro dos
filhos de Israel dizer-lhes: O Deus dos vossos pais enviou-me até vós. Se
eles me perguntarem: qual é o seu nome? O que lhe devo responder? Deus
respondeu a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse: Assim o dirá aos filhos
de Israel: O QUE É enviou-me até vós”.
Complementar o autor (2002, p. 65):
É um facto conhecido que Descartes sempre desprezou a História, mas aqui
a História pregou-lhe uma partida. Se não tivesse investigado tão pouco o
passado da sua própria ideia de Deus, teria compreendido imediatamente
que embora seja verdade que todos os homens tem uma certa ideia de
divindade, nem todos tiveram, nem sempre, a ideia cristã de Deus. Se
todos os homens tivessem essa ideia de Deus, Moisés não teria perguntado
a Javé o seu nome; ou a resposta de Javé teria sido: “Que pergunta
disparatada, tu sabe lo”.
Sartre não diferente, debela com o pensador inglês, na medida em que Deus
é um absurdo e que o valor moral é uma modalidade do nada. À medida que o
homem estabelece seus valores e a sua moral, Deus não existe. Mais do que
Nietzsche que afirma que “Deus Morreu”.
Para a concepção Sartreana, o grande autor da natureza e escritor de suas
regras é o próprio homem, criatura esta condenada a liberdade e senhor do seu
destino, como podemos extrair do trecho da obra a A idade da razão, do diálogo
entre Mathieu e Marcelle (Sartre, 1979, p. 15) “... tem saudade dessa época?
Marcelle respondeu secamente: Dessa época, não, mas da vida que poderia ter
tido”, negar Deus no interior do existencialismo, representa a garantia de que o
amanhã existirá, enquanto que negar Deus para o empirismo Lockiano a Lei da
natureza não existiria.
Sendo assim, para o existencialismo a criação é uma ilusão dentro dos
contornos dessa corrente. Por que? Se para o existencialismo sua condição de
corrente filosófica existe independentemente da fé e/ou da religião, esta na medida
em que é revelada ou imposta como postulado, por ser contraditória, ou melhor, por
não provar claramente o que é Deus e quem seja, principalmente pelo vértice
filosófico, não merece ter estatuto de superioridade que habilite à criticar e expor o
53
pensamento existencialista como sendo uma doutrina imersa no mal e em falsas
verdades emergente do século XX.
No século XX, temos um problema crítico a ser encarado, o qual não
podemos nos furtar, segundo Albéres (1958, 09) “... a angústia da responsabilidade
humana por um homem que não admite guia algum no exercício desta
responsabilidade”, é elemento que recorta a questão da autonomia moral a ser
explorada dentro do pensamento de Sartre e que trataremos no decorrer destas
próximas linhas.
Uma moral que se faz presente, a partir da existência, é algo que rompe com
a compreensão clássica gerando inevitável conflito nos círculos intelectuais, em O
existencialismo é um humanismo (1987, p. 8-9) Sartre fala da necessidade de
suprimir Deus e garantir a priori todas as dimensões da existência, partindo do
próprio homem:
O existencialista opõe se frontalmente a certo tipo de moral laica que
gostaria de eliminar Deus com o mínimo de danos possível. Quando, por
volta de 1880, os professores franceses tentaram constituir uma moral laica,
disseram mais ou menos o seguinte: Deus é uma hipótese inútil e
dispendiosa; vamos suprimi-la: porém, é necessário – para que exista uma
moral, uma sociedade, um mundo policiado – que certos valores sejam
respeitados e considerados como existentes a priori; é preciso que seja
obrigatório a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, fazer
filhos, etc.
A Moral Sartreana está ancorada nos valores criados pelo próprio homem que
os constituem em sociedade e os respeita praticando suas ações conforme as
regras estabelecidas. Esta posição revelou o radicalismo da corrente existencialista,
pois, ao fazer essa afirmação Deus foi transformado em uma ilação ultrapassada,
desnecessária e inviável para a construção dos valores morais.
Citando trecho da mesma obra acima citada O existencialismo é um
humanismo (1987, p. 9):
O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incômodo que
Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qualquer
possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir
nenhum bem a priori, já que não existe consciência infinita e perfeita para
pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos
ser honestos, que não devemos mentir, já que nos colocamos precisamente
num plano em que só existem homens.
54
Ao considerarmos que a existência precede a essência, em Sartre somos
conduzidos a pensar que os valores morais somente podem surgir de uma
construção por meio da ação do homem. Por outro lado, acreditar na moral cristã
seria repousar na imensidão da vagueza, à medida que os valores cristãos
dependem de um exercício homérico de hermenêutica intelectiva em busca de
compreender a moral oriunda dos textos cifrados das escrituras religiosas.
Também é oportuno compreendermos esta forma de elaboração da moral
sartreana, considerando ser este pensador um Moralista que realiza suas
observações, descrevendo-as e julgando-as dentro do contexto humano, o homem
como agente autônomo e elemento central de sua filosofia tem seus atos e atitudes
analisados donde se extrai as concepções morais.
Em Albérès (1958, p. 46-47) podemos citar:
Este movimento marca uma desconfiança do homem com relação aos
“valores”, uma vez que eles estão comprometidos em uma civilização,
petrificados de algum modo e tornam se suscetíveis de se transformar de
realidades vividas em álibis de para a hipocrisia.
Outrossim:
[...] Sartre toma os valores morais na medida em que se degradam,
tomando fatalmente o aspecto de convenções; eis o que Péguy entendia
por “mística deteriorada em “política”. Sartre e este é bem o movimento de
sua filosofia, vem então a criticar tudo pela sinceridade, lucidez e
responsabilidade nuas do indivíduo, desprezando os valores coletivos e a
“moral” que se transformam muito amiúde em paraventos para a
insinceridade.
Podemos perceber que Sartre rompe com o clássico entendimento sobre a
moral. É importante deixar claro que para este pensador a moral é uma construção a
partir de valores criados pelo próprio homem. Diante disso, os valores impostos, os
valores apresentados por uma moral cristã são suscetíveis de desconfiança, são
verdadeiros iglus da hipocrisia, considerando a evolução social e dos valores
construídos em determinado momento social.
Não diferente seria ao lermos a partir de Sartre que a “sinceridade, lucidez e
responsabilidade nuas do indivíduo, desprezando os valores coletivos e a “moral”
que se transformam muito amiúde em paraventos para a insinceridade” (sic) fosse
suprimida e deixada às margens do descrédito. Nesta passagem podemos observar
55
que o pensador deixa claro que no exercício de sua liberdade o homem cria, ou
melhor, constrói seus parâmetros morais, o seu contrário, ou seja, os postulados
apresentados não servem para justificar a moral deste homem, o qual somente
encontra justificativa ao realizar sua subjetividade por meio de sua liberdade.
Confirma esta inferência o trecho da obra de Albérès (1958, p.48):
Aqui o que exprime o pensamento de Sartre é bem o homem do século XX,
cada vez mais livre das leis exteriores da vida e cada vez mais
comprometido com uma responsabilidade rigorosamente pessoal. Foi dito
muitas vezes, depois de Nietzsche, que “Deus está morto”. Entre o século
XIX, e o nosso, não só Deus que está morto, é antes todo um conjunto de
valores intermediários entre Deus e o homem, um conjunto de mitos e
semideuses, o que os filósofos chamam “os valores”. É incontestável que,
mesmo se novos valores aparecem em nossa época, o sistema de valores
sobre os quais viveu o século passados conheceu um vasto
desmantelamento.
Duas são as verdades, os valores tidos como tautologias oriundas de uma
moral cristã inabalável ou quando no mínimo de um mundo composto de deuses e
criaturas mitológicas são
vazadas e reduzidas ao pó pelo pensamento
existencialista.
Quanto aos valores construídos a partir da existência do Ser, estes também
tem uma certa modulação quanto aos seus efeitos, todavia, o mais importante, se
resume em primeiro lugar que o homem não precisa de Deus ou deuses para
construir a sua moral. Livre e condenado a liberdade pode construir estes valores e
também reconstruí-los quando os valores anteriores não mais atendem a suas
necessidades.
Sartre traça um paralelo entre arte e moral, pois segundo ele ambas têm algo
em comum, pois, tanto a arte como a moral é fruto de uma criação e invenção,
nesse processo o homem escolhe a sua moral a partir de sua própria construção
que se perfaz dentro de suas circunstâncias, ficando certo que se boa ou má, uma
moral deve ser escolhida, ainda que seja pela não escolha, como condição
indeterminante da liberdade, em que funde a autonomia do para si.
A autonomia representa um status de independência a partir do exercício
concreto social, que se assenta na liberdade, questão esta vastamente discorrida
quando tratamos da autonomia em Sartre.
56
A questão da autonomia religiosa que será examinada a partir de agora é
uma questão que remonta desde os primórdios da humanidade e sempre foi um
problema insolúvel, ao que parece, um golpe dos que idealizaram Deus, lhe deram
uma roupagem, uma linguagem, um tom misterioso e o cravaram em um labirinto
infinito, elevaram-no ao eterno, ao plano este distinto dos demais, assim, o homem
não pode alcançá-lo, no máximo consegue conjecturar sobre ele.
Por que então o homem é assim?, que homem é este?, contribui para esta
compreensão o legado por Penzo e Gibellini (2002, p. 14-15):
Definir o homem, segundo a concepção clássica, como animal racional,
significa não captar a autêntica dimensão existencial do homem. A definição
clássica está circunscrita a um âmbito determinado e ressalta, no fundo,
sobretudo o aspecto negativo do homem, esclarecendo o que o homem não
é em comparação com o animal. É ressaltado apenas o aspecto da
diferença específica, a razão, graças a qual a espécie humana se distingue
da espécie animal. E, por sua vez, se reduz a essência da razão a puro
intelecto, que procede com as categorias do pensar lógico, fundadas no
princípio da não-contradição. Considerado, porém, sob o aspecto positivo,
ou seja, na sua irreptível individualidade, o homem não encontra a sua mais
profunda essência no intelecto cognoscente. O homem é, antes de tudo,
liberdade, e o horizonte autêntico da liberdade não pode ser captado
mediante o puro conhecer, que representa o modo típico de proceder à
ciência.
Complementa o autor:
Se percorrermos até o fim o caminho do conhecer, sempre nos
encontraremos diante da relação entre sujeito cognoscente e objeto
conhecido. Mas, nesse âmbito, mais do que falar de liberdade, deve se
falar, em sentido estrito, de autonomia. Isso significa que, à medida que se
percorre o caminho do conhecer, adquire-se uma consciência cada vez
maior da própria autonomia.
Também, lançar ao vazio não nos dá condições de sustentação ao que
buscamos desestabilizar a partir do pensamento Sartreano, por esta razão alguns
outros pensadores devem contribuir com seu legado neste ponto trabalho ao menos
dando nos parâmetro para alicerçar a autonomia religiosa em Sartre traçando assim
a distinção de seu pensamento.
Podemos pontuar que a essência e a existência de Deus são interpretadas
como uma coisa só, este argumento ontológico estruturado por Santo Anselmo em
seu Proslógion, encontra cristalina definição em “O Unum Argumentum de Santo
57
Anselmo”, São Paulo, 24/05/2010, em seminário de pesquisa realizado por William
Moraes da Silva, senão vejamos:
O Proslógion é considerado o principal opúsculo desenvolvido por Santo
Anselmo, datado de 1079, o Proslogion, título de origem grega, é uma
palavra de difícil tradução, geralmente interpretada, embora de modo muito
limitado, como “para os outros”. Este opúsculo é dividido em XXVI capítulos,
que podem ser separados em dois grandes grupos. A primeira parte é
constituída pelos capítulos I, II, III e IV, tendo como objetivo, a apresentação
e desenvolvimento do unum argumentum. A Finalidade principal de
Anselmo nesta obra, é a contemplatio da divina substantia: “Um argumento
suficiente, em suma, para fornecer provas adequadas sobre aquilo que
cremos acerca da substancia divina (Anselmo, 1973:103). A segunda parte
contém a maioria dos capítulos da obra, muito embora, dependa da
fundamentação apresentada da primeira. Em outras palavras, o capítulo V
em diante, aborda o que seria a natureza de Deus, os atributos presentes
na divina substantia, e, que, portanto, tem um caráter secundário.
O caráter, místico, devocional e dramático que são atributos de um Deus
paternalista, representa um hiato com relação ao pensamento existencialista. O
conceito de Deus justifica um divórcio entre o homem e a religião, se para Anselmo
Deus é um desejo da Alma, para o existencialismo Deus é um absurdo, uma
contradição.
O em si de Sartre se estabelece com condições que em tese equivale a
concepção de Deus, Deus em última análise é um axioma, uma verdade posta e
hipotética para o mundo, por outro lado, o para si como uma negação para vir a ser,
na obra O Ser e o Nada, conforme cita Cox (2007, p. 26) nos permite fazer uma
aproximação entre o transcendente e o axioma ligado ao ser para si, senão vejamos:
O ser e o nada, Sartre argumenta que qualquer tentativa de justificar aquilo
que ele descreve como irrupção do para-si do ser, produz somente
hipóteses que não podem, de forma alguma, ser válidas ou invalidas. De
acordo com Sartre, a irrupção do para-si do ser tem que ser aceita como
axiomática, assim como o ser do ser precisa ser aceito como axiomático.
A instalação da universalidade da teoria da emergência do para si é algo que
sustenta, ontologicamente, a forma de ser do para si comum aos demais organismos
conscientes. Por outro lado, Sartre ao se posicionar dessa forma se dá por satisfeito,
o que revela um esgotamento de seu intelecto como fim justificador do problema do
ser do para si.
Esta autonomia existencialista frente à religião, indubitavelmente, demonstra
a crise da religião ocidental no século XX, uma crise sem fronteiras, que se espraia e
58
toma o tecido social, outrossim, representa um acordo feito pelo ateísmo do
pensamento político frente uma religião invisível e inexplicável, como bem retrata
Dilthey, citado por Penzo e Gibellini (2002, p.45):
Essa tentativa de separar o cristianismo dos seus mistérios e convicções e
de transformá-lo num dado particular que se vincula não à natureza
humana, mas somente a um Deus nominalista, instruir funcionários com
essa particularidade, como empregados de Deus, deve atingir e cortar em
toda parte as profundas raízes do cristianismo.
Dentro do contexto filosófico, é possível sem que haja cisma de se equivocar que a
corrente existencialista goza de autonomia, que a religião representa de an passan uma
possibilidade de explicar o homem, mas que não interfere que esse seja explicado
existencialmente como uma autonomia cujo nascedouro se dá por intermédio da liberdade,
afinal de contas segundo Etiene Gilson (2002, p. 86).
Seja qual for nossa resposta final ao problema de Deus, todos concordamos
que Deus não é um fato empiricamente observável. A experiência mística
em si é ao mesmo tempo indizível e intransmissível; daí que não possa
tornar-se numa experiência objetiva. Se falarmos na ordem do puro
conhecimento natural, a proposição “Deus existe” fizer qualquer sentido,
tem de ser devido ao seu valor racional como resposta filosófica e uma
pergunta metafísica.
O existencialismo, por um outro prisma, já distante da acepção religiosa e
agora assentado na perspectiva política e filosófica tem como proposta um pacto
com o presente, torna se perceptível na medida em que percebemos na obra O Ser
o Nada como ponto fulcral o homem em sociedade, como bem destaca István
Mészáros (1991, p. 170).
O ser e o nada é uma ontologia concebida do ponto de vista da
subjetividade, e “a experiência da sociedade” é posta em jogo apenas até o
ponto em que pode oferecer ilustrações – muitas vezes brilhantemente
coloridas – do “mundo” extremamente abstrato (não o mundo empírico, mas
um construto ontológico) no qual “a realidade humana” (subjetividade ou
individualidade) se situa.
Sartre não se preocupa com o passado como seu contemporâneo Heidegger,
como bem destaca Bornheim (2005, p. 300):
Nesse particular, Sartre se revela o oposto de Heidegger; este é, antes de
tudo, o grande crítico da história da metafísica, o pensador da historicidade
dessa História, e uma extensa parte de sua obra se debruça sobre o
59
passado, perscruta-lhe as implicações, procura detectar suas modulações
mais remotas. Justamente por esta razão aponta caminhos que realmente
apresentam fecundidade para o pensamento e conseguem abrir novas
perspectivas: de dentro do passado, sendo o passado, seu pensamento é
mais do que o passado. Mesmo se se disser que esse mais se revela
escasso e até insignificante em face do que deveria ser em sua
complexidade uma ontologia da finitude, tal insuficiência decorre
precisamente do clima de profunda historicidade.
A filosofia é um exercício intelectivo e tem guarida dentro da consciência do
homem, surge dentro do existencialismo com a existência do ser que passa a dar a
esta consciência algo que não tinha, ela era um nada. A afirmação principal do
existencialismo de Sartre pode ser resumido na máxima “a existência precede a
essência”, máxima essa que marca o seu pensamento e sua relação com todas as
outras correntes filosóficas da época.
A corrente filosófica existencialista fratura o cordão umbilical com a
concepção clássica de que a essência precede a existência, para ilustrar melhor, é
interessante colecionarmos breve trecho da obra de Descartes: a Metafísica da
modernidade Franklin Leopoldo e Silva (2001, p. 46), senão vejamos:
Toda substância compõe-se de forma e matéria, e a forma é precisamente o
ato que faz com que a substância exista de maneira determinada.Ora, esse
ato constitutivo da substância, pelo qual ela existe, é a forma substancial ou
a forma da substância. É essa forma que faz com que alguma coisa exista,
primeiramente como substancia (essência) à qual se acrescentarão os
acidentes, que são as determinações não-essenciais da substância. Essa
noção desempenha papel de destaque no conhecimento dentro da filosofia
aristotélico tomista...
Como apresentado, o existencialismo tem em si sua forma, sua linguagem e
sua estrutura, possui uma autonomia filosófica que lhe faz ser o que é e não ser o
que não é, a este respeito, Mário Curtis Giordani (1976, p.19):
[...] poderíamos arriscar-nos a uma definição do que seja Existencialismo?
O leitor já terá facilmente compreendido a temeridade e quase
impossibilidade de realizar tal pretensão, pois como observa Foulquié, “há
com efeito quase tantos Existencialistas quanto filósofos existencialistas”.
Cabe aqui lembrar a opinião de Aloys Wenzl em seu trabalho Problem der
Existential-philosophie, segundo a qual o Existencialismo não constitui uma
doutrina filosófica existencialistas possuem apenas de comum o ponto de
partida, o problema e a maneira de enfrentá-lo: “não existe o
Existencialismo como doutrina comum; existe só como situação filosófica
temporal”.
Citando, Jolivet apud Giordani (1976, p. 19):
60
Conjunto de doutrinas segundo as quais a Filosofia tem por objeto a análise
e a descrição da existência concreta, considerada como o ato de uma
liberdade que se constitui ao se afirmar e que não tem nem outra origem
nem outro fundamento além dessa afirmação de si mesma.
Disso somos tangenciados a ter o existencialismo como uma corrente
filosófica autônoma como acima resvalado, todavia, ela é capaz de gerar e gerir
todos os seus conceitos e atributos, dando conta de responder aos questionamentos
que a fazem ser reconhecida como uma doutrina filosófica independente.
Doutrina, não como um engessamento ao pensamento e a forma como deve
ser compreendida em última instância o pensamento de Sartre, cuja corrente alberga
a liberdade do homem como expressão máxima de sua condição existencial, mas ao
contrário como uma forma de pensar que atraiu e ainda hoje atrai muitos seguidores.
61
4. A CONCEPÇÃO DE AUTONOMIA DO SER DISTANTE DE DEUS A PARTIR
DO PONTO DE VISTA SARTREANO
Por certo que este capítulo é o cume. Apesar disso, queremos que os demais
capítulos como figurantes de uma ideia gozem de autonomia e preponderância tanto
quanto este, e que também o animus existencial não mexa com os demais animus a
ponto de desvirtuá-lo, salvo se este for a escolha de um para si. Nesse momento
preciso, faremos um recorte dos mais profundos do ponto de vista do rompimento
com Deus onde a autonomia do ser cria um hiato mais nítido em relação à
possibilidade do Ser que é, diante do ser que não é.
A autonomia conceituada em Sartre deve ser lida literalmente dentro dos
contorno de seu pensamento, pois, qualquer semelhança nominal e/ou interpretativa
extensiva conduzirá a uma conclusão não pertinente, a autonomia em destaque
surge depois da liberdade. O para si no exercício concreto social em plena sinergia
de sua liberdade enquanto ser existencial faz emergir um resultado que podemos em
Sartre denominar ou simplesmente nominá-lo como autonomia, como podemos
extrair desse trecho de o Ser e o Nada (2007, p. 257-258).
Longe de se abstrair certas qualidades partindo das coisas, é preciso ver,
ao contrário, que a abstração, como modo de ser originário do Para-si, é
necessária para que haja em geral coisas e um mundo. O abstrato é uma
estrutura do mundo necessária ao surgimento do concreto, e o concreto só
é concreto na medida que ruma ao seu abstrato e se faz anunciar, pelo
abstrato, aquilo que é: o Para-si é revelador-abstrativo em seu ser. Vê-se
que, por esse ponto de vista, a permanência e o abstrato são idênticos. Se
a mesa, enquanto mesa, tem uma potencialidade de permanência, é na
medida que tem-de-ser mesa. A permanência é pura possibilidade para um
“isto” de ser conforme sua essência.
A abstração em Sartre representa parafraseando-o um processo pelo qual um
nada de ser passa para além do ser, onde o para si como transcendência toma
contato com isto e aquilo, ou seja, com as “coisas” que estão no mundo, por esta
razão, conseguir efetivamente selar este divórcio inacabado quando se busca
sustentar em última análise uma autonomia distante de Deus, principalmente quando
temos como baliza a obra o Ser e o Nada, obra esta cifrada onde os mais
experientes e dedicados em sua análise portam dúvidas, não é empreitada das mais
fáceis.
62
No entanto, por ser desafiador que o convite foi aceito, assim surge também
um novo pensamento, onde a linguagem consegue tocar uma nova situação no
mundo. Neste contexto, conforme mencionada na derradeira citação, se revela
salutar compreender a acepção de permanência em Sartre (2007, p. 257), senão
vejamos:
Enquanto o Para-si se nega no porvir, o isto de que se faz negação
desvela-se como lhe advindo do porvir. A possibilidade de que a
consciência seja não-téticamente como consciência (de) pode-não-ser-isto
desvela-se como potencialidade do isto de ser o que é. A primeira
potencialidade do objeto como correlato do comprometimento, estrutura
ontológica da negação, é a permanência, que perpetuamente lhe advém do
fundo do porvir. A revelação da mesa como mesa exige uma permanência
de mesa que lhe advém no futuro e não é um dado puramente constatado,
mas uma potencialidade. Esta permanência, por outro lado, não advém da
mesa de um futuro situado no infinito temporal: o tempo infinito ainda não
existe; a mesa não se desvela como tendo a possibilidade de ser
indefinidamente mesa. O tempo aqui tratado não é finito nem infinito:
simplesmente, a potencialidade faz aparecer a dimensão do futuro.
O para si, neste contexto herda a mesma dinâmica na medida em que ele
aparece para além de si, como porvir “é enquanto não sou o que sou”, onde o isto a
qual sou presente surge como algo que supera, melhor, transcende a mim mesmo,
uma espécie de totalidade destotalizadora que demonstra por um lado o
inacabamento do para si e por outro lado sua soberania face o em si, como
esclarece Sartre (2007, p. 256).
Mas, como o Para-si se constitui enquanto presença, como consciência não
posicional (de) si, faz-se anunciar a si, fora de si, pelo ser, aquilo que não é;
recupera seu ser fora, ao modo “reflexo-refletidor”; a negação
complementar, que ele é como sua possibilidade própria, é, portanto,
negação-presença, ou seja, o Para si tem-de-sê-la como consciência nãotética (de) si e como consciência tética de ser-para-além-do-ser. E o serpara-além-do-ser está vinculado ao isto presente, não por uma relação
qualquer de exterioridade, mas por um nexo preciso de complementação
que se mantém em exata correlação com a relação entre o Para-si e seu
porvir.
Como cautela, sem que se perca na alteridade do intelecto, seja pelo excesso
de confiança, seja pelo limite que este possa se assentar, restará na pior das
hipóteses a conclusão de que Deus não interfere no destino do homem, todavia esta
conclusão foi deveras tratada por outros pensadores do pensamento existencialista
63
sartreano. Por esta razão não podemos aceitar sem lutar, por hora, esta assertiva
como sendo a máxima que podemos atingir.
Dessa forma, é vital destacar inicialmente a raiz a partir de Sartre que instiganos a perfilhar a autonomia do para si de forma tão contundente como se imprime na
presente tese, na obra o Ser e o Nada (2007, p. 232) Sartre semeia esta
possibilidade que de ora em diante será explorada de forma radical, pois, o
radicalismo representa um estigma sartreano.
O concreto se nos revelou como totalidade sintética da qual tanto a
consciência quanto o fenômeno constituem apenas articulações. Mas se,
em certo sentido, a consciência considerada em seu isolamento é uma
abstração, se os fenômenos – mesmo o fenômeno de ser – são igualmente
abstratos, na medida que não podem existir como fenômeno sem aparecer
a uma consciência, o ser dos fenômenos, como Em-si que é que é, não
poderia ser considerado uma abstração. Só necessita de si mesmo para
ser, não remete senão a si mesmo. Por outro lado, nossa descrição do
Para-si mostrou, ao contrário, como este se acha o mais longe possível de
uma substância e do Em-si; vimos que era a sua própria nadificação e só
podia ser na unidade ontológica de seus ek-stases. Portanto, a relação
entre o Para-si e o Em-si há de ser originariamente constitutiva do próprio
ser colocado em relação, não devemos entender com isso que tal relação
possa ser constitutiva do Em-si, mas sim do Para-si.
O para si, representa o centro das atenções em Sartre, goza de autonomia
por ser fundador de seu conhecimento em existência, o único e capaz de explicar
por intermédio do conhecimento qualquer relação que possa se estabelecer com
relação ao em si, caso exista esta possibilidade relacional. Interessante a este
respeito trata Moller (1958, p. 81) citando breve trecho da obra O existencialismo é
um humanismo, senão vejamos:
O existencialismo não é propriamente um ateísmo no sentido em que se
esfalfará a demonstrar que Deus não existe. Mais do que isso, ele declara:
“ainda que Deus existisse, isso nada alteraria”; eis o nosso ponto de vista.
Não que acreditemos que Deus exista; achamos, porém, que o problema
não é o da sua existência; é preciso que o homem se encontre a si mesmo
e se persuada de que nada o pode salvar de si mesmo, nem sequer uma
prova substancial da existência de Deus (EH, p. 93).
Complementa Julian Marias (1952, p. 383) comentando Heidegger no sentido
de demonstrar a genuinidade da existência, no sentido de sê-la perfeita por si
mesma, descartando qualquer anomalia como ventilado no trecho da obra O
Existencialismo é um Humanismo.
64
“EXISTÊNCIA” Y MUNDO – Pero em las ciências la “existência” trata con
entes que no son forzosamente Ella misma. Ahora bien, a la “existência” le
pertenece esencialmente estar en un mundo. La comprensión del ser de la
“existência” supone, pues,
de un modo igualmente orginario, la
comprensión del “mundo” y del ser ente que se encuentra dentro del mundo.
Las ontologias de los entes que no son “existencia” están fundadas, por
consiguiente, en la estructura óntica de la “existência”. Esta es la razón de
que debamos buscar em la analítica existencial de la “existencia”
(existensiale Analytik des Daseins) la ontologia fundamental, de la que
unicamente pueden surgir todas as demás.
Neste ponto, é possível encontrar um diálogo com Sartre em O Ser e o Nada
(2007, p. 541) revelando a liberdade como expressão máxima do existencialimo que
surge do nada do para si, onde a nadificação representa o ser da liberdade como
alma do para si que se faz senhor de sua autonomia por ser ação “movimento”.
Mas a liberdade não tem essência. Não está submetida a qualquer
necessidade lógica; dela deve-se dizer o que Heidegger disse do
Dasein em geral: “Nela, a existência precede e comanda a essência”.
A liberdade faz-se ato, e geralmente alcançamo-la através do ato que
ela organiza com os motivos (razão de um ato), os móbeis (um fato
subjetivo) e os fins que esse ato encerra.
Esta movimentação existencial em busca da autonomia objetivada na
proposta parece encontrar um ponto de toque em Albérès (1958, p. 22), conforme
passo a esposar:
Deste modo, esta geração sentia a insuficiência dos valores descobertos em
sua adolescência. A lucidez e a disponibilidade se azedavam na
estagnação; o adolescente desprezador, imprudente, fantasista, que
Cocteau animara, tornava-se homem amadurecido, hipercrítico,
desabusado, que descobriu que a fantasia não dura, que o surrealismo fora
um fogo de palha, e que sentia o mundo tempestuoso de 1936-1939 pronto
a levá-lo as tormentas onde a liberdade individual não vale nada.
Abater-se frente à inércia seria aceitar a morbidez de uma verdade vendida
ao preço que o poder lhe faz, assim são as verdades que nos são vendidas quando
não questionamos ou quando questionamos sem elementos a desestabilizá-las, por
isso, existir é construir e assim é o Ser e o Nada.
Sartre propicia-nos um momento de reflexão sobre a questão da autonomia
algo que é universal ao “homem”, tanto quanto é a construção universal do homem
no mundo. Caso Deus tivesse qualquer interferência sobre o homem, este ao, ficar
inerte, mesmo assim se realizaria. Isso podemos concluir a partir da premissa
65
autonomia que Deus não existe e também que a prova da autonomia do homem
distante de Deus se faz presente na medida em que este ser somente depende de si
para ser algo de diferente do que era e de mais ninguém, nem mesmo de Deus.
Deus, então, é uma contradição incapaz de interferir em qualquer aspecto da
existência humana, diante da estrutura do para si, como bem ilustra Sartre em O Ser
e o Nada (2007, p. 235).
A negação vem do próprio Para-si. Não se deve conceber esta negação
segundo um tipo de juízo que recaísse sobre a própria coisa e negasse, a
seu respeito, que fosse o Para-si: esse tipo de negação só seria concebível
se o Para-si fosse uma substância feita e acabada, e, mesmo nesse caso,
só poderia derivar de um terceiro termo que estabelecesse de forma uma
relação negativa entre dois seres. Mas, pela negação original, é o Para-si
que se constitui como não sendo a coisa. De modo que a definição dada há
pouco da consciência pode ser formulada da seguinte maneira, na
perspectiva do Para-si: “O Para-si é um ser para o qual, em seu próprio ser,
está em questão o seu ser, enquanto este ser é essencialmente um certo
modo de não ser que, ao mesmo tempo, ele posiciona como outro que não
a si mesmo”.
O homem é, em si, uma totalidade destotalizada: através de seu corpo, seu
ego, seus costumes, seu destino, sua autonomia, está registrada sua tendência ao
nada. Através de sua negatividade e finitude em sua relação com a liberdade como
exercício dialético de sua condição existencial, Bornhein (2005, p. 300-301) nos
esclarece o surgimento do nada ontológico em Sartre:
Sem dúvidas, como toda a filosofia, também o existencialismo permanece
histórico – mas ele não se sabe histórico. E fundamentalmente por esse
motivo, Sartre é o passado; o próprio sentido da Metafísica tradicional como
que desemboca, passivamente, no existencialismo. Digamos que a
Metafísica se resolve, por dentro de si mesma, na obra de Sartre. O
existencialismo continua essencialmente platônico, com a significativa
diferença de que se processa nele uma inversão do sentido do platonismo;
quero dizer que, por razões que persistem inteiramente metafísicas (ou
platônica), a ontologia do ser se transmuta com necessidade na exigência
de uma ontologia do nada, ou seja, a existência deve agora preceder a
essência.
A moral e os demais valores como elementos dissuadem da interferência de
Deus, uma prova que demonstra a independência do homem. A moral Sartreana é
criada a partir de valores gerados pelo próprio homem que os constituem em
sociedade e os respeita praticando suas ações conforme as regras estabelecidas,
pois, em qualquer posição que se coloque Deus no bojo da corrente existencialista
66
sua participação gera insofismavelmente uma incompatibilidade, pior, que isso, uma
inconsistência absoluta diante da liberdade sartreana como constatamos em O Ser e
o Nada (2007, p. 544).
Mas, em lugar de ver nesses fins transcendências postas e mantidas em
seu ser por minha própria transcendência, iremos supor que as encontro ao
surgir no mundo: provêm de Deus, da natureza, de “minha” natureza, da
sociedade. Esses fins pré-formados e pré-humanos irão definir, portanto, o
sentido de meu ato antes mesmo que eu o conceba, assim como os
motivos, enquanto puros dados psíquicos, irão provocá-lo sem que eu
sequer dê-me conta. Motivo, ato, fim, constituem em um “continuum”*, um
pleno. Essa tentativas abortadas de sufocar a liberdade sob o peso do ser –
tentativas que se desfazem ao surgir de súbito a angústia ante a liberdade –
demonstram o suficiente que a liberdade coincide em seu fundo com o nada
que está no âmago do homem. A realidade humana é livre porque não é o
bastante, porque está perpetuamente desprendida de si mesmo, e porque
aquilo que foi está separado por um nada daquilo que é e daquilo que será.
E, por fim, porque seu próprio ser presente é nadificação da forma do
“reflexo-refletidor”. O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença
a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o
nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a
fazer-se em vez de ser.
Complementa Sartre (2007, p. 544):
Como vimos, para a realidade humana, ser é escolher-se: nada vem de
fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar. Está
inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à
insustentável necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a
liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser. Se
começássemos por conceber o homem com algo pleno, seria absurdo
procurar nele depois momentos ou regiões psíquicas em que fosse livre:
daria no mesmo buscar o vazio em um recipiente que previamente
preenchemos até a borda. O homem não poderia ser ora livre, ora escravo:
é inteiramente e sempre livre, ou não o é.
Esta postura revela o radicalismo da corrente existencialista ao declarar esta
posição, a qual transformou Deus em uma ilação ultrapassada, desnecessária e
inviável para a construção dos valores morais e éticos. Citando trecho da O
existencialismo é um humanismo (1987, p. 9), Sartre afirma:
O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incomodo que
Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qualquer
possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir
nenhum bem a priori, já que não existe consciência infinita e perfeita para
pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos
ser honestos, que não devemos mentir, já que nos colocamos precisamente
num plano em que só existem homens.
67
Em Sartre temos a sensação de uma sombra de nostalgia a respeito de Deus,
mas para todo efeito, ainda que ele existisse em nada alteraria o pensamento
existencialista, aliás, somos conduzidos a pensar que os valores morais somente
podem surgir de uma construção por meio da ação do homem, depende deste.
Por outro lado, acreditar na moral cristã seria repousar na imensidão da
vagueza na medida em que os valores cristãos dependem de um exercício homérico
de hermenêutica intelectiva em busca de compreender a moral oriunda dos textos
cifrados das escrituras religiosas, além de que sua aceitação seria fazer do homem
um não ser, por asfixiar a liberdade do para si.
Deus, neste aspecto, se revela distante e incapaz de outorgar ao homem as
regras de sua vida, considerando que estas regras somente surgem no plano da
existência, pois, antes nada existe. Para Mário Giordani (1976, p. 111), a concepção
da moral em Sartre assim é definida:
Em “Le Diable et le Bom Dieu”, Sartre põe nos lábios de Goetz estas
significativas palavras: “Il n’y avait que moi: j’ai decide Seul du Mal; Seul,
j’ai invente le Bien”. E aqui temos resumido todo o subjetivismo da moral
sartreana. Ao mesmo tempo que nega a existência de Deus, Sartre nega
também a existência de uma ordem de valores preestabelecidos no mundo:
“Sem dúvida, o homem elege sem deixar-se guiar por valores
preexistentes”. A criação ética e estética estão no mesmo nível sob o ponto
de vista moral: “temos o poder de criação e invenção na moral e na arte”.
Tudo, pois, é permitido. Ao projetar-se “cada um elege livremente sua
moral”. E temos aqui a moral da ambiguidade construída sobre um terreno
movediço e vacilante.
Isso prova que a moralidade existencialista também é instrumental, clara e
objetiva é a demonstração da autonomia do homem, que não depende de Deus para
reconhecer, respeitar, viver ou conviver com o outro em sociedade, o que faz Deus
ser uma concepção equivocada.
Segundo Mário Giordani (1976, p. 27), existe, por parte da corrente
existencialista, uma obsessão de Deus: “Sartre, considera Deus um falso conceito,
uma contradição, usa-o como tema frequente de suas dissertações”. Posição esta
assumida por Sartre em sua obra clássica O Ser e o Nada, o ser seria sua própria
causa, ou melhor, a causa de si mesmo.
Complementando o pensamento citando Giordani (1976, p. 29), notamos que:
Das teorias dos principais autores existencialistas não é difícil concluir que
as mesmas levam a um profundo irracionalismo, a uma aversão à filosofia
68
científica, a um completo subjetivismo no que tange os conceitos de
verdade e de valor, ao desprezo das essenciais, a um relativismo, à
destruição, enfim, dos fundamentos da Filosofia tradicional cristã. “não é de
admirar-se que se chegue, por essas teorias, a pôr em perigo duas
disciplinas filosóficas que, por sua natureza, estão estreitamente unidas ao
ensino da fé: a teodicéia e a ética. (Humani Generis, n.º 52)
Para Sartre o equívoco de Deus, além do estilo literário de sua filosofia
existencialista, tem por base seu ateísmo. Ao negar Deus, toma como referencial a
liberdade, pois seu exercício não teria razão de existir quanto ação se Deus
existisse, por isso, Deus seria também uma contradição histórica, como explicita
Sartre (2007, p. 543).
É através dela que o Para-si escapa de seu ser, como de sua essência; é
através dela que constitui sempre algo diverso daquilo que pode-se dizer
dele, pois, ao menos é aquele que já está além do nome que se lhe dá ou
da propriedade que se lhe reconhece. Dizer que o Para-si tem de ser o que
é, dizer que é o que não é não sendo o que é, dizer que, nele, a existência
precede e condiciona a essência, ou inversamente, segundo a fórmula de
Hegel, para quem “Wesen ist was gewesen ist” – tudo isso é dizer uma só e
mesma coisa, a saber: que o homem é livre.
A providência no mundo, enquanto algo peculiar ao homem, onde a divindade
não poderia influenciar, longe de qualquer lei moral ou valor eterno, o homem está
condenado a ser livre, ele simplesmente existe de forma gratuita. Esta situação mais
bem ilustrada por Mário Giordani (1976, p. 110) ao trazer um trecho da obra
Sartriana “Les Mouches”:
Em “Les Mouches”, Deus, sob a forma mitológica de Júpiter, é apresentado
como uma espécie de tirano que impõe aos homens uma noção petrificada
do bem. Orestes exclama: Que importa júpiter? A justiça é um negócio de
homens, eu não tenho necessidade de Deus para apreendê-la
Outrossim:
Quando a liberdade explode na alma de um homem, os deuses já nada
mais podem contra esse homem.
Este ateísmo de Sartre demonstra o perfil de seu existencialismo. Ele
pensador conseguiu transmitir algo importante, um legado que a modernidade e
contemporaneidade previa: sacar que o mundo é desprezível, diante de sua
insuficiência e desnecessidade, onde o homem atribui o significado as coisas, sem o
homem nada têm sentido, nem mesmo Deus, por isto Deus não pode ser um criador!
69
Deus não pode ser o artífice criador do homem, pois, se somos a semelhança
de um criador logo seríamos tanto quanto ele, o que por si só é contraditório, em O
existencialismo é um humanismo, (Sartre, 1987, p. 6) encontramos para a
concepção existencialista do homem a qual é, diametralmente, oposta a teoria da
criação:
O homem, tal como existencialista o concebe, só não é passível de uma
definição porque, de inicio, não é nada: só posteriormente será alguma
coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza
humana, já que não existe Deus para concebê-la. O homem é tão-somente,
não apenas como ele se concebe após a existência, como ele se quer após
esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que
ele faz de si mesmo: é o primeiro princípio do existencialismo.
O dilaceramento conceitual por si só marca a autonomia desta corrente
filosófica e nos traduz uma realidade a qual devemos aceitar, ou não, caso não
aceitemos ficaremos na contradição da frágil justificativa de nossa criação por um
ente superior.
O homem existencialista é ateu por excelência, ao menos pelo prisma
sartreano, contesta na totalidade o fenômeno da criação do homem como sendo
uma obra de Deus, o concebendo como uma verdade imposta a qual surge por meio
do equívoco da criação a partir de um ser supremo, segundo Sartre não passa de
uma contradição.
Contradição esta que nasce na medida que a paixão de Cristo é tida como
invenção, a contradição do em si, como sendo denso, imóvel, complexo, uno, dentre
outros atributos desponta na medida em se pensa sobre o questionamento de como
possuí-los? O mesmo ser livre que conhece tudo, por outro lado, também não teria
sentido lógico se Deus é um “em-si” ter que ser um em “em-si-para-si”, disso
extraímos a ideia de Deus como uma contradição na criação do homem.
Deus por esta hipótese tivesse criado o universo do nada, porém de duas
uma: ou o nada é um nada, um vazio e disso nada poderia ser criado ou em sua
oposição, o nada, é algo, pois, pensar o nada pressupõe a existência de algo, uma
essência do “nada”. No entanto, do ponto de vista existencialista, seria impossível,
considerando que a existência precede a essência.
Sartre rompe com a teoria de potência em Aristóteles, nesse aspecto
herdamos um problema a ser dissolvido, ou seja, a busca por uma resposta
70
plausível dentro do espectro ontológico sartreano, a este respeito Sartre é pontual
(2007, p. 238).
Não posso negar que sou tal ser, à distância deste ser. Se concebo um ser
inteiramente fechado em si, este ser, em si mesmo, será simplesmente o
que é, e, por isso, nele não haverá lugar seja para uma negação, seja para
um conhecimento. De fato, um ser só pode dar a conhecer a si mesmo
aquilo que ele não é a partir do ser que ele não é. Significa, no caso da
negação interna, que o Para-si aparece a si como não sendo o que não é lá
longe, no e sobre o ser que ele não é. Nesse sentido, a negação interna é
um nexo ontológico concreto. Não se trata aqui de uma dessas negações
empíricas, nas quais as qualidades negadas se distinguem primeiramente
por sua ausência ou mesmo por seu não-ser. Na negação interna, O Para-si
é esmagado sobre aquilo que nega. As qualidades negadas são
precisamente a que há de mais presente ao Para-si; é delas que o Para-si
toma sua força negativa e a renova perpetuamente.
No mais, desde o século passado e retrasado quando do surgimento deste
radicalismo com que imprimi a concepção existencialista, a Igreja lançada a
examinar sua estrutura e sua forma de pensamento. Tal atitude demonstra que a
certeza da criação do homem por Deus não convence nem mesmo seus maiores
mentores, questão esta que encontramos em Giordani (1976, p.13) “... Pio XII,
através da memorável Encíclica Humani Generis, chama a atenção: ... em segundo
lugar, porque, às vezes, até nas teorias falsas encontram-se escondido um resquício
de verdade...”.
Embora a igreja tenha no existencialismo uma doutrina falsa, não menos
diferente tem o existencialismo como falsa a doutrina da igreja, a qual embriaga seus
fiéis com a cicuta da fé, a qual põe Deus no status de um Ser supremo, na medida
em que ilustra este possuir todas as perfeições.
Esta ilação é equivocada na medida em que, do ponto de vista
existencialista, a existência não pressupõe necessariamente a essência, pois a
existência precede toda e qualquer essência à medida que é uma construção
histórico-concreta, essa essência é tida assim por Sartre em o Ser e o Nada (2007,
p. 257) O existente não possui sua essência como uma qualidade presente. É
inclusive negação da essência: o verde jamais é verde. Mas a essência vem do
fundo do porvir ao existente como um sentido que nunca é dado e o infesta sempre.
Por outro lado a perfeição atribuída a Deus não passa de um recurso da
linguagem por se deparar com o esvaziamento do intelecto ou na vã tentativa de
71
sustentar uma teoria ou no mínimo evitar que seus propulsores fossem ateados na
fogueira por ser questionador da verdade imposta pela igreja.
Apesar de ser uma contradição, a suspensão do juízo sempre declinou no
sentido de considerar a ideia de Deus em todos os seus limites, por considerá-lo
necessária e absoluta como temos no pensamento Cartesiano.
No entanto, esta afirmação é desguarnecida de veracidade na medida em que
o homem não se vê preso existencialmente à necessidade de Deus, o homem
existe. A obrigatoriedade de Deus no plano existencial é afastada diante de sua
desnecessidade. Quanto ao homem, mesmo que sua existência fosse contingencial,
se considerarmos Deus como artífice do homem este também poderia ser
contingencial considerando a autonomia do homem por ter uma existência gratuita e
possuir liberdade.
Então a concepção de que Deus seja necessária e absoluta frente a corrente
existencialista não se justifica. Ora, se estes são atributos que fazem Deus ser Deus,
podemos afirmar que se Deus é um ser supremo ele pode ser sem estes atributos,
pois o homem se quer precisa destes atributos para existir, no mais, conforme
vaticinava Descartes citado por Franklin Leopoldo e Silva (2001, p. 84) :
Mesmo que seja o arbítrio de Deus – em vez de estarem vinculadas a uma
necessidade. Para Descartes esse problema não existe , visto que sendo a
vontade de Deus igual a sabedoria, de vez que são ambas infinitas, Deus
nunca seria arbitrário no sentido em que um homem pode ser arbitrário. Ou
seja, Deus nunca determinaria algo como verdadeiro sem que houvesse
razões para isso. Essa compatibilidade entre vontade e entendimento é que
configura a sabedoria e a principal questão relativa a sabedoria humana
será a de averiguar até que ponto essas duas faculdades são compatíveis
no homem.
Dessa passagem, podemos comprovar que tanto Deus como o homem
possuem o livre arbítrio o qual também representa um atributo, o que nos leva a
pensar que a debilidade, anterior ao pensamento existencialista, sempre conduziu o
homem a ter Deus como seu ópio, cedendo um espaço a catalogá-lo como superior
“vontade e sabedoria infinitum” e neste contexto dar a este uma tonalidade sempre
distinta do homem, colocando este sempre em relação de dependência para com
aquele por ser finitum. No entanto, a vontade também é tributária do para si
embrionária na liberdade segundo Sartre (2007, p. 548).
72
Mas não é só: a vontade, longe de ser a manifestação única ou pelo menos
privilegiada da liberdade, pressupõe ao contrário, como todo acontecimento
do Para-si, o fundamento de uma liberdade originária para poder constituirse como vontade. A vontade, com efeito, coloca-se como decisão refletida
em relação a certos fins. Mas esses fins não são criados por ela. A vontade
é, sobretudo, uma maneira de ser em relação a ela: decreta que a
perseguição a esses fins será refletida e deliberada.
Sartre enfatiza que a existência precede a essência, sendo assim, se esta é a
lógica estrutural do existencialismo seu contrário seria uma contradição. A propósito,
em O ser e o nada, o ateu Sartre polemiza esta questão onde Deus é uma ideia ou
uma simples obrigação nos dada a exercitar quando nada compreendemos, é uma
atrocidade feita ao homem, nu, indefeso é posto a consumir o pior dos produtos da
existência. Na obra As palavras Sartre é categórico (1964, p. 65):
Acabo de contar uma história de uma vocação falha: eu tinha necessidade
de Deus, ele me foi dado, eu o recebi sem compreender o que procurava.
Por não tomar raiz em meu coração, vegetou em mim algum tempo, depois
morreu.
Nestas condições o homem recebe Deus como uma criança recebe um doce
de seu pai, oculta a intenção, sem talvez ter sentido, sem compreensão, quando
então adulto desconfia de que, partindo daquilo que recebe de Deus, não pode ter
sido esse o seu criador e percebe que aquele doce era um remédio disfarçado de
doce, se fosse estaria considerando que a essência precede a existência o que não
prevalece por ausência de logicidade.
Distante do critério fundador do existencialismo em decorrência da base
fundadora da psicanálise freudiana e diante do psicologismo interno e externo
proposto por este psicanalista, citar Freud torna-se interessante na medida em que é
possível compreender melhor a relação de autonomia em Sartre diante da
concepção impar sobre a dependência do homem e um ser supremo plasmada na
obra O futuro de uma ilusão, Freud (1997, p.38-39):
A libido segue aí os caminhos das necessidades narcisísticas e liga-se aos
objetos que asseguram a satisfação dessas necessidades. Dessa maneira,
a mãe, que satisfaz a fome da criança. Torna-se seu primeiro objeto
amoroso e, certamente, também sua primeira proteção contra todos os
perigos indefinidos que a ameaçam no mundo externo – sua primeira
proteção contra a ansiedade, podemos dizer.
73
Continua o pensador...
Nessa função [de proteção] a mãe é logo substituída pelo pai mais forte,
que retém essa posição pelo resto da infância. Mas a atitude da criança
para com o pai é matizada por uma ambivalência peculiar. O próprio pai
constitui um perigo para a criança, talvez por causa do relacionamento
anterior com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o
admira. As indicações dessa ambivalência na atitude para com o pai estão
profundamente impressas em toda religião, tal como foi demonstrado em
Totem e Tabu. Quando o indivíduo em crescimento descobre que está
destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá
passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a
esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si
próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não
obstante, confia sua própria proteção.
Deus, como foi mencionado, é uma contradição. O seu conceito não atende a
prova de existência, pois todas as tentativas conduzem a necessidade de fé, no
mínimo de uma necessidade e dependência como aludido por Freud, porém,
esvaziado em sede do juízo de constatação. Por outro lado, se reconhecermos a
sua existência, ele tanto quanto o ser para si será contingente, caso contrário
possuiria essência e entraria em rota de colisão com o conceito definidor do
existencialismo.
Outra contradição, citada por Jolivet, (1968, p. 45) nos apresenta um outro
prisma da injustificada existência de Deus como criador:
Sartre apresenta um outro argumento que pretende igualmente provar ser a
noção de Deus contraditória em si mesma, consistindo em dizer que Deus
não é senão o pseudoconceito, absolutamente impensável, da perfeita
identidade do em-si com o para-si. Para apreendermos o sentido dessa
argumentação cumpre lembrar que o para-si (consciência ou subjetividade)
só se funda enquanto nega, referindo-se a si, um ser ou uma maneira de
ser, isto é, o ser-em-si. Mas o ser-em-si não pode deixar de ser o próprio ser
que niilizo. Logo, a realidade humana é seu próprio nada: seu sentido é
propriamente ser um si-como-ser-em-si-falho, pois o para-si é uma tentativa,
jamais bem sucedida, de coincidir plenamente com o ser-em-si que ele é.
Originariamente, o homem é um nada, e não possui natureza preexistente ou
uma essência. Assim, livre e sem determinação que o acolha, ele constitui suas
essências e suas verdades. O homem escolhe e escolhe desde muito cedo existir e
assumir a fatalidade da liberdade, como descreve Régis Jolivet (1968, p. 32):
Escolho, pois, existir como homem e sou responsável por meu nascimento.
Talvez que essa conseqüência pareça absurda. Trata-se, porém, de um
aspecto da absurdidade inerente ao para-si, o qual, como o em-si não tem
74
justificativa fora de si. A liberdade que é uma fatalidade, será, pois, também
uma “maldição” porque faz com que a existência jamais possa ser uma
estrutura estável a repousar em si mesma, mas, antes, “um perpétuo
desequilíbrio, um permanente desligar-se de si.
Superada a questão da origem do homem, podemos deduzir partindo de uma
concepção extremada que sua fecundidade é assexuada, ou seja, o homem advém
de um “Nada” a partir de uma estrutura que se desenvolveu dentro do plano
existencial, em decorrência do fluxo do ser para si, conceito este balizado na
doutrina existencialista que também ilumina a facticidade do para si segundo Sartre
(2007, p. 549).
O Para-si é integralmente ipseidade e não poderia haver “eu-profundo”, a
menos que se entenda por isso certas estruturas transcendentes da psique.
A liberdade nada é senão a existência de nossa vontade ou nossas paixões,
na medida em que tal existência é nadificação da facticidade, ou seja,
existência de um ser que é seu ser à maneira do ter-de-ser.
Nesse contexto, nos permitimos concluir que como a negação do ser, ser
para si é o nada em si mesmo. Segue-se dessa sentença, portanto, que a
consciência, existe no módulo do para si como totalidade incompleta e que também
é criada em si mesmo a partir do nada do para si dentro de uma temporalidade que
se dá no plano existencial, como define Sartre em o Ser e o Nada (2007, p. 207).
Assim, o tempo da consciência é a realidade humana que se temporaliza
como totalidade, a qual é para si mesmo seu próprio inacabamento; é o
nada deslizando em uma totalidade como fermento destotalizador. Esta
totalidade que corre atrás de si e se nega ao mesmo tempo, que não
poderia encontrar em si mesmo qualquer limite a seu transcender, por ser
seu próprio transcender e porque se transcende rumo a si mesmo, em
nenhum caso poderia existir nos limites de um instante. Jamais há instante
no qual se possa afirmar que o Para-si é, porque, precisamente, o Para-si
jamais é. E a temporalidade, ao contrário, temporaliza-se totalmente como
negação do instante.
Segundo Gary Cox (2007, p. 55) encontramos maior sustentabilidade,
inclusive com relação a celeuma do ser para si e a possibilidade de superação da
temporalidade, como equivalência do ser em si, senão vejamos:
Sartre reafirma sua máxima de que o ser do para-si não é para ser aquilo
que é, e é para ser aquilo que não é em termos especificamente temporais:
“No presente [o para-si] não é aquilo que é (passado), e é aquilo que não é
(futuro)”. O presente precisa ser igualado ao para-si e definido
negativamente. Igualar o para-si com o presente e descrevê-lo em termos
75
temporais revela o senso da reivindicação, aparentemente absurda, de que
o para-si não é aquilo que é, e é aquilo que não é. Se o para-si fosse uma
positividade auto-idêntica, ao invés de uma negação expressa, então a
realidade humana seria impossível. A experiência do ser é possível somente
para um ser que não é ser, um ser que se experiência como uma relação
para um ser que não é. Como negação do ser, o para-si não pode ser copresente com o ser-em-si; caso contrário, seu vôo temporal seria impedido,
e ele seria reduzido ao ser-em-si.
Dessa interpretação, podemos supor que se a consciência é um módulo do
ser em si e esta precisa da temporalidade para se constituir como citado em a partir
de Sartre, podemos concluir que a temporalidade é evento que em tese separa os
mundos do ser para si do ser em si, no entanto, se o ser para si realizasse seu
processo dialético no mundo, em um nível onde o tempo não sofresse os efeitos da
temporalidade,
tornando-se
atemporal,
nessa
plataforma
seria
plenamente
sustentável a equivalência do ser para si em relação ao ser em si.
Isto também seria suscetível, pois, Sartre ao definir o ser em si atribui a este
plena positividade por talvez não conseguir alcançar com sua linguagem uma
realidade possível de existir a priori, isto é, possível ao examinarmos a obra o Ser e
o Nada e não encontramos vestígios dessas tentativas inacabadas, melhor, é pensar
o porque Sartre consegue implementar seu pensamento, o que faz ser denominado
assim e quais as razões de um empreendimento niilista.
Sartre cinde os mundos, seu rompimento para alguns é acanhado, no
entanto, ao superar a neblina da miopia, é possível identificarmos em sua obra o Ser
e o Nada esta distinção (2007, p. 245-246).
Em outras palavras, a presença ao Mundo do Para-si só pode se realizar
por sua presença a uma ou várias coisas particulares, e, reciprocamente,
sua presença a uma coisa particular só pode se realizar sobre o fundo
ontológico da presença ao mundo, e o mundo se devela concretamente
como fundo de cada percepção singular. A presença do Para-si ao ser como
totalidade decorre do fato de que o Para-si tem-de-ser, à maneira de ser o
que não é e não ser o que é, sua própria totalidade como totalidade
destotalizada. Com efeito, na medida que o Para-si se faz ser, na unidade
de um mesmo surgimento como tudo aquilo que não é o ser, o ser se
mantém diante dele como tudo aquilo que o Para-si não é. A negação
originária, com efeito, é negação radical. O Para-si, que se mantém frente
ao ser como sua própria totalidade, sendo ele mesmo o todo da negação, é
negação do todo. Assim, a totalidade inacabada pela qual o ser da
totalidade surge ao ser. É por meio do mundo que o Para-si faz-se anunciar
a si mesmo como totalidade destotalizada, o que significa, por seu próprio
surgimento, o Para-si é revelação do ser como totalidade, na medida em
que tem-de-ser sua própria totalidade de maneira destotalizada.
76
Outrossim, continua o pensador:
Assim, o próprio sentido o Para-si está fora, no ser, mas é pelo Para-si que
o sentido do ser aparece. Esta totalização do ser nada acrescenta ao ser; é
somente a maneira como que o ser se desvela como não sendo o Para-si,
maneira como há ser; totalização esta que aparece fora do Para-si,
escapando de todo alcance, como aquilo que determina o Para-si em seu
ser. Mas o fato de desvelar o ser com o totalidade não significa alcançar o
ser, do mesmo modo como o fato de se contar duas taças sobre a mesa
não alcança essas taças em sua existência ou sua natureza. Não se trata,
contudo, de pura modificação subjetiva do Para-si, uma vez que é somente
por este, ao contrário, que toda subjetividade é possível. Mas e o Para-si há
de ser o Nada pelo qual “há” ser, só pode haver ser originariamente como
totalidade. Assim, portanto, o conhecimento é o mundo; para falar como
Heidegger: o mundo e, fora disso, nada. Só que esse “nada” não é
originariamente aquilo em que emerge a realidade humana como negação
radical pela qual o mundo se desvela.
Sartre assenta recorte na interjeição de Deus e em um antimaterialismo
contestável, como veremos, tanto quanto o idealismo. Sua doutrina existencial está
estribada no cogito, onde a consciência é a base inquestionável e irreduzível, e o ser
do homem é o ser da consciência. No entanto, o fundamento do ser se encontra no
nada, ou seja, o ser não tem lastro nem em objeto, nem no em si, destaca-se
também que esta consciência não está no ser, separada pelo nada, o ser do homem
é pura negatividade, esta relação trilateral entre ser, nada e consciência é o que
representa o questionamento ontológico do ser, Bornhein (2005, p. 304) ilustra:
Se o homem, é assolado, por exemplo, por uma experiência como a
náusea, sente-se irremissivelmente condenado a ficar preso a sua
imanência. Não há fé, não há alegria, não há convívio humano que possa
isentar o homem das experiências negativas, a começar pelas radicais.
Dentro de tal contexto, Deus se revela perfeitamente inútil e, em definitivo, a
realidade humana fica abandonada de si mesma, a sua contingência
radical. No fundo, Sartre queixa-se de Deus: Deus não resolve nada. Ou
melhor: não resolve o nada, não pode curar o homem dessa sua “doença
mais profunda”, que o leva até a nadificação.
A este respeito Sartre em O Ser e o Nada (2007, p. 255-256) ilumina este
engôdo relacionado com a relação original do para si da seguinte forma:
Tratamos o problema da relação original entre o Para-si e o ser como se o
Para-si fosse simples consciência instantânea, tal como pode revelar-se ao
cogito cartesiano. Para dizer a verdade, já tínhamos encontrado a fuga a si
do Para-si enquanto condição necessária à aparição dos istos e dos
abstratos. Mas o caráter ek-stático do Para-Si estava ainda implícito. Se
procedemos assim visando à clareza da exposição, não devemos concluir
por isso que o ser desvela a um ser que seja primeiramente presença para
77
só depois constituir-se como futuro. Mas é a um ser que surge como por-vir
para si mesmo que o que o ser-Em-si se desvela. Significa que a negação
que o Para-si se faz ser em presença do ser tem uma dimensão ek-stática
de porvir: é enquanto não sou o que sou (relação ek-stática às minhas
próprias possibilidades) que tenho de não ser o ser-Em-si como realização
reveladora do isto. Significa que sou presença ao isto no inacabamento de
uma totalidade destotalizadora.
A temporalidade em Sartre registra a presença do realismo e do idealismo
transcendental em seu pensamento. Na temporalidade o ser se destaca pela
consciência, ela demonstra que o ser é diferenciado pela consciência, sem
consciência o ser para si estaria libertado do tempo ou ao contrário, sem a
necessidade desta, ou seja, da consciência poderia estar no mesmo plano do ser
em si ou equivalente, pois como o em si não teria que ter justificativa fora de si, seria
plena positividade, albergando assim um materialismo, inconciliável com o
existencialismo.
Por esta via, é suscetível perceber que o ser é singular, individual,
independente, existencial, não resta dúvida que seja sua própria causa, pois, seu ser
é distinto de qualquer outro, sob pena de cair na contradição do em si, com isso, se
releva essencial observar que Sartre toca nessa passagem ontológica em O Ser e o
Nada (2007, p. 250).
Nesse sentido, toda qualidade do ser é todo ser; é a presença de sua
absoluta contingência, sua irredutibilidade de indiferença; a captação da
qualidade nada acrescenta ao ser, a não ser o fato de que há ser como isto.
Nesse sentido, a qualidade não é um aspecto exterior do ser, pois, o ser,
não tendo um “dentro”, não poderia ter um “fora”. Simplesmente, para haver
qualidade, é preciso que haja ser para um nada que, por natureza, não seja
o ser. Todavia, o ser não é um em si qualidade, mesmo que não seja nem
mais nem menos que isso. Mas a qualidade é o ser integro revelando-se
nos limites do “há”. Não é o fora do ser; é todo o ser, na medida que não
pode haver ser para ser, mas somente para aquele que se faz não ser o
ser. A relação do Para-si com a qualidade é relação ontológica. A intuição
da qualidade não é a contemplação passiva de algo dado, e a mente não é
um Em-si que permaneça o que é nesta contemplação, ou seja, permaneça
à maneira da indiferença em relação a isto contemplado. Mas o Para-si fazse anunciar pela qualidade aquilo que não é.
Também poderíamos considerar um mundo em que o registro das
informações ficassem em outra espécie de armazém, que não fosse o da
consciência, distinto da consciência que não estivesse no plano temporal. A
temporalidade demarca o ontologia existencial do ser e suas distinções, eis uma das
questões mais questionadas pelos filósofos em todos os tempos, o “tempo”, segue
78
alguns fragmentos de um texto Os dois tempos exclusivos do homem: a mão e o
tempo de Pio Collonnelo e José Gaos y González Pola (S/R), para melhor ilustração
do tema:
Finalmente anota Gaos, nós representamos o tempo como “um movimento
sem mobilidade”, um movimento absolutamente puro. Todavia, é a final de
contas representante de tal movimento, sem que nos represente umas
coisas em ato de mover-se, por mais abstrata que elas sejam? Os
momentos do tempo não são móveis e o tempo não é movimento desses
móveis? Em verdade, nossa inadequada representação se deve ao fato
de que nossa noção do tempo é uma abstração totalmente forçada do
tempo concreto, em dizer sobre os mesmos movimentos dos móveis. A
distinção do tempo, em relação com as coisas e seu vazio homogêneo é a
expressão cumprida dessa abstração, que é mais imaginativa que
conceitual e, por tanto, imprecisa, imperfeita. Há que reiterar então que é
um erro conceber o tempo como um recipiente que contém todas as demais
coisas: melhor concebê-lo como uma abstração extremadamente
cuidadosa. (o negrito é meu).
Outrossim...
Sem embaraço, somente o tempo concreto é real: o outro não é senão uma
artificial elaboração nossa. É, portanto oportuno voltar a apresentação
inicial: “em vez de ser as coisas no tempo, é o tempo que está nas
coisas, nas coisas finitas em seu movimento finito”. Cada um dos
móveis tem assim um movimento próprio, distinto dos demais. Os
seres móveis ou temporais se distinguem dos seres imóveis ou
temporais precisamente pelo dito movimento, que é a temporalidade.
Mas se somente o tempo concreto é real, como chegar ao centro do
problema, como se questiona na pergunta “que é o tempo?” não através
da teoria do conhecimento, considerando, por exemplo, o tempo como uma
“forma a priori de sensibilidade”. Nem a ciência nem a filosofia, segundo
Gaos, estão em condições de oferecerem o talismã ou a chave da
questão.
Segundo ele, a via mestre do problema do tempo está em análise
cuidadosa, meticulosa, das expressões correntes, que encontramos nas
linguagens diárias: “tem tempo” “ganhar ou perder tempo”, “passar o
tempo”, “matar o tempo”, expressões que conotam uma relação entre
o homem e o tempo, como no se dá entre nenhum outro ser e o tempo.
Estas expressões, em efeito, não podem aplicar-se mais que a um ser
humano. De qualquer outro ente, seja uma pedra, uma planta ou também
um animal, até os seres imortais, os anjos, Deus, não pode dizer se perdem
ou ganham tempo. “A existência de tais expressões já significa que o saber
comum, pré-filosófico, sabe algo da relação entre homem e o tempo: a
filosofia não pode fazer outra coisa que potencia a este conhecimento
comum, pré-filosófico [...] qual é então o significado comum - e último,
radical, filosófico de tais expressões? Quais fenômenos ou realidades,
comuns e radicais se referem?” (o negrito é meu).
79
O tempo, ou melhor, seu questionamento é algo essencial para o plano
existencial, ainda sobre Gaos, este procura dar uma resposta a questão sobre o que
é o tempo?
Concluamos então brevemente. Seguimos a Gaos por um longo e enredado
caminho largo que este formulou a pergunta filosófica por excelência,
“porque então o ente é melhor que nada?” às vezes quase em baixa voz, às
vezes gritamos com paixão, com frequência reiteramos na melhores obras
da filosofia do homem, onde com esta pergunta há traçado o problema do
tempo. Já observamos que essa obra, interrogando-se a respeito do ente,
não vimos no Ser o fundamento do mundo, senão que assumiu muito
melhor a constituição moral do homem como origem das categorias
metontológicas e as correlativas categorias ontológicas. Em dois exclusivos
do homem: a mão e o tempo, interrogando-se acerca do tempo, dividiu se
uma vez mais o “Abgrund”, o não fundamento e o abismo: o defeito do
pensamento e da linguagem na palavra logos, para dizer o tempo. Como
faria falta uma linguagem capaz de dizer nomes do Ser, do não Ser ou
fundamento, assim faz falta uma linguagem apropriada para expressar o
tempo, se dispensa – opina Gaos – as expressões da vida diária.
Perguntamo-nos, sem embaraço, se não havia outros meios de tirar a luz do
rosto do tempo. Não existe acaso a linguagem que confia a potência do
símbolo ou a experiência mística em alusão a metáfora? E deixando de lado
a toda arrogância intelectual, não fica a possibilidade de ficar a escutar o
silêncio – não que é mudo calar, senão a extrema chave da capacidade de
significado da palavra ou da manifestação da uma “ulterioridade” expressiva
de ficar a escutar, dizíamos, de todas as vezes que se levanta sobre o
cenário do mundo, como a voz dos rios e o mar e o vento? A voz amiga do
vento que, passando entre as folhas das árvores e fazendo-las murmurar,
pode avocar na alma o poeta da infinitude do tempo, a eternidade em que
confluem e desaparecem as estações humanas e naturais, até “a presente e
viva, e seu som”. E se a razão tem que renunciar a busca do pensamento
predicativo não pode dizer mais, podendo afirmar somente o que não é
ficando ao doce abandono do intelecto no infinito do tempo evocado pela
sábia mágica da arte: “enquanto o vento escuta/sopra por essas plantas e
esse grande silêncio infinito em suas vezes vou comparando: o eterno me
lembro, das idades mortas, da vida que aqui presente sonha. Assim que
está a imensidade que se afoga na minha alma: e naufraga-me no doce
deste mar”.
Desta reflexão, sobre o tempo podemos presumir que a temporalidade surge
com a existência do ser para si, com o contínuo sair de si na busca daquilo que falta
em si, o conhecer do objeto exterior na factualidade do mundo que desconhece. O
tempo existencial é assim... a partir de então como menciona Sartre em O Ser e o
Nada (2007, p. 247).
O espaço não é o fundo nem a forma, mas a idealidade do fundo na medida
que é sempre capaz de desagregar-se em formas; não é o continuo nem o
descontínuo. A existência do espaço é a prova de que o Para-si, ao fazer
com que haja ser, nada acrescenta ao ser, é a idealidade da síntese. Nesse
80
sentido, é ao mesmo tempo totalidade, na medida em que extrai do mundo
sua origem, e nada, por resultar em abundância de istos. Não se deixa
apreender pela intuição concreta, porque não é, mas sim é continuamente
espacializado (spatialisé). Depende da temporalidade e aparece na
temporalidade, uma vez que não pode vir ao mundo salvo por um ser cujo
modo de ser é a temporalização, pois, o espaço é a maneira como este ser
se perde ek-staticamente para realizar o ser.
Um mundo em que se constrói o sentido das coisas, em que sua significação
decorre daquele e não dessa, sendo que a consciência é consciência de algo.
Verificamos assim, que a consciência existencial e temporal precisa de um corpo o
que representa questão a ser enfrentada analisando-o pelo prisma do fenômeno
psíquico. Segundo Gary Cox (2007, p. 75), o corpo representa um fenômeno
psíquico e que merece melhores considerações para nosso propósito, senão
vejamos:
[...] um olho vendo a si mesmo em um espelho e um olho vendo o outro
diretamente – comprovam que a consciência não é um fenômeno psíquico,
magicamente atado ao corpo que pode ser observado dentro dos olhos, na
forma de ver e ser visto. Ao contrário, o corpo de uma pessoa, assim como
é para a própria pessoa, é totalmente psíquico; ele é o para-si. O corpo
representa situação imediata e inescapável do para-si que o para-si
perpetuamente supera em direção às situações futuras. O corpo é o
contingente dado que o para-si transcende perpetuamente.
Neste mesmo sentido, e complementando o pensamento, Gary Cox (2007, p.
75-76):
Entretanto, o para-si é perpetuamente recapturado pelo corpo, pois o corpo
é a possibilidade, a base, da transcendência do para-si. Em outras palavras,
o para-si é aquele que supera perpetuamente o corpo sem nunca ser capaz
de considerá-lo, finalmente e completamente superado. “O corpo é aquilo
que eu niilífico. É o em-si que é superado pelo para-si niilificador e que
capturado o para-si nesta superação” (BN 309). Se o para si fosse capaz de
superar o corpo de uma vez por todas, ao invés de ser uma perpétua
superação dele, o para-si imediatamente deixaria de existir.
Dessa forma, o para si seria o em si, portanto, a supressão do corpo como
agente psíquico colocaria o homem nas mesmas condições do em si, o que se
mostra ser possível, considerando a possibilidade dessa superação.
Sartre é rigoroso e tem como foco o homem. Nesta relação, como já
apresentado, antes do homem não se tem nada. Porém com a sua existência e seu
lançar no mundo as coisas passam a ter significado e, por esse caminho, podemos
81
pensar como seria o mundo onde o homem não existisse, Deus também não poderia
se quer ser Deus. Ora ser Deus pressupõe ser Deus de algo, de alguém, do outro...
a relação de superioridade parece ser uma questão conturbada embora resolvida no
plano existencial.
Sartre desconsidera o psicologismo antigo que sugeria a existência de dois
mundos um interior e outro exterior, esta forma de pensar livra o ser de um mundo
obscurecido por falsas verdades, desconhecido e explorado de forma maliciosa à
atormentar as consciências menos evoluídas, surge então com a existência a
consciência em Sartre.
Estruturalmente a consciência revela a inexistência do passado segundo
pensamento Sartreano, não há vida anteriores, nem após a morte, não existe
encarnação para este pensador, ou em tempos mais remotos uma reminiscência
Platônica de vidas passadas, sugerindo uma evolução da alma, onde esta, do ponto
de vista dualista, estava aprisionada pelo corpo.
Na modernidade e em nosso cotidiano não houve nenhum outro momento em
que os “trapaceiros” segundo a linguagem de Sartre abusaram de uma realidade
que jamais existiu, criando um mundo interior para aprisionar uma falsa existência.
Dessa maneira, a formação de um conhecimento psicológico no existencialismo é
superado pelo conhecimento lógico advindo do existir, onde o homem é único e
exclusivo responsável por uma consciência nadificada.
Nesse sentido, ou melhor, ilustrando o psicologismo Sartreano a partir do
comentários de Albérès (1958, 66-67) que conseguimos compreender como ele se
funda:
Tal é sentido desta peça, encenada pela primeira vez em 1944, onde Sartre
reuniu no inferno três personagens somente para mostrar como cada um
tem necessidade dos outros para se iludir sobre si mesmo. [...] Estelle, Inés
e Garcin são condenados a uma existência falsa, com a qual nesta vida se
contentam infelizmente, muitos homens. [...] Esta imagem, no fundo, é uma
mentira que imploramos aos outros e que lhes impomos posando diante
deles e lhes enganando sobre nós. Mas se o outro recusa este papel, então
torna-se nosso carrasco: “Não é necessário grelha, o inferno são os outros”.
Estelle acaba por jogar sobre Garcin sua responsabilidade, a qual ele não
quer aceitar. “GARCIN: Estelle, é verdade que sou um fraco? – ESTELLE:
Mas nada sei disto, meu amor, não estou na sua pele. Isto cabe a você
resolver”. Esta última frase resume o que sabemos até aqui sobre a moral
de Sartre, e é chave de toda sua psicologia, que é o estudo das poses e das
comédias que fazemos diante dos outros, para evitarmos nossas próprias
decisões.
82
Dessa forma, encontramos no pensamento sartreano a fórmula da construção
da “personalidade”, o outro é necessário, a relação de intersubjetividade, alteridade
e liberdade com o outro emerge a psicologização existencial, outrossim, nos olhos
do outro é por onde nos vemos como uma coisa, uma imagem, um objeto, onde ao
mesmo tempo faz o Ser para se ver e iludir se para si mesmo.
O problema da impossibilidade da criação do ponto de vista metafísico
Sartreano tem assento na absurdidade total da existência e da realidade humana
como tal, Deus foi uma construção arbitrária para contemporizar um mundo aonde a
sagacidade vem imperando e justificando um direito que é voltado a justificar a
existência humana, tomam do homem o seu direito magno a vida, dos bens, da
disposição de si ao mundo, da governança e da vida após a morte.
É uma realidade que Régis Jolivet (1968, p. 25), nos estampa. Ao mesmo
tempo em que choca, fortalece o compreender:
A trapaça é, pois, um “dever” e mesmo o único dever. Os “sórdidos”
carecem, a um tempo, de lucidez e de coragem. Sua falta capital é esconder
a si próprios obstinadamente a gratuidade da existência, enquanto que
evidentemente, diz Roquetin, “tudo é gratuito, este jardim, esta cidade e eu
mesmo”, sendo que, quando chega a compreendê-lo, “o coração revira e
tudo põe a flutuar”.
Dessa forma, o homem em Sartre não é fruto de Deus, pois se assim for,
teremos que conviver com ausência de sentido para esta criação. Para Jolivet (1968,
p.28):
O em-si, revelação específica da náusea, é o próprio ser, maciço, opaco,
tenebroso e empastado de si mesmo. Dele nada mais pode dizer senão que
é, porque não comporta absolutamente nenhuma relação, nem interna nem
externa. É tão fraco que não pode impedir-se de ser. Mas donde vem o emsi ou ser? Vem de nada, de parte alguma. Ele é, sem razão, injustificável,
absurdo, “demais para sempre”. É e prolifera horrivelmente,
“obcecadamente”. Qualquer tentativa de explicá-lo será vã, impossível
justificá-lo a partir de Deus, porque em primeiro lugar, Deus não existe,
sendo contraditório em si, e, além disso, a ideia de criação carece de
sentido...
A passagem nos conduz a concepção da teologia do absurdo de Sartre onde
a consciência é um módulo peculiar do para si, natural da condição humana após
sua existência, observando sempre o rompimento com a essência ou “natureza
humana”
que
pressupõe
também
essência.
Portanto,
Deus
diante
desta
83
inconsistência, passa a ser um problema humano e que deve ser resolvido dentro do
contexto existencial, nos limites da realidade humana.
Em sendo Deus um problema humano, cabe ao homem buscar uma solução
que o satisfaça a ponto evitar qualquer equívoco ou viver sobre uma superfície
instável e incômoda, Jolivet (1968, p. 38) ilumina esta questão, senão vejamos:
Sartre não deixou de notá-lo muitas vezes com bastante firmeza,
notadamente no artigo Gide Vivant (1951), onde escrevia: “O problema de
Deus é um problema humano que diz respeito à relação dos homens entre
si, um problema total para o qual cada um traz solução mediante toda a sua
vida, e essa solução reflete a atitude que se escolheu relativamente aos
outros homens e a si próprio”.
O homem então percebe ser inútil a crença de um Deus criador, sua
insistência somente lhe enveredará em uma seara repleta de armadilhas que visa
cooptá-lo. A filosofia da cristandade não prova sua tese do ponto de vista racional,
então a pensar o homem conclui eu criei Deus. Para que? Talvez um passa-tempo,
ou, como dizia Sartre, dentro de uma “existência falsa” do ser para si.
Podemos então ser levados a pensar que o homem no mundo é uma
justificativa da exclusão de Deus, citando Régis Jolivet, (1968, p. 48) obteremos
maior nitidez:
Se Deus existe, diz Goetz,o homem é nada; se o homem existe, Deus não
é. E dirigindo-se a Hilda: “Digo te que Deus morreu. Não temos mais
testemunha. Como és verdadeira desde que ele não é mais”. Urge ficar só,
com o céu vazio sobre nossas cabeças. Em outras palavras: o homem
abdica sua liberdade desde que admite que o bem e o mal existem
independentemente de suas opções próprias. A moral principia pela
negação de Deus e correlativa expulsão dos valores objetivos e
constrangedores da conduta humana.
O homem, seria mais do que isto, este para si seria insubstituível, como
exemplifica Sartre em o Ser e o Nada (2007, p. 251).
É a determinação absoluta da negatividade: pois, não basta que o Para-si,
por uma negação originária, não seja o ser, nem que não seja este ser; é
necessário ainda, para que sua determinação como nada de ser seja
plenária, que o Para-si se realize como certa maneira insubstituível de não
ser este ser; e tal determinação absoluta, determinação da qualidade como
perfil do isto, pertence a liberdade do Para-si; ela não é; ela é como “a ser”.
84
O para si é um marco insubstituível, elementar a compreensão do mundo e
das coisas que nele aparece, onde suas ações imprimem suas responsabilidades,
as quais são legitimadas por sua liberdade ser existencial. O Risco da ambiguidade
humana e a serviência a Deus leva diante do medo do Diabo como retratado na
peça o Diabo e bom Deus leva o homem a refletir que o ateísmo o conduz a
verdade, pois se a atividade se der pelo amor de Deus ou pelo medo do Diabo, isto
somente demonstra que o homem abdicou de sua responsabilidade. Por esta razão
a existência do homem também neste aspecto justifica a exclusão de Deus.
Outra questão tratada por Sartre estaria pelas cercanias da razão humana,
onde também podemos extrair elementos para justificar concepção de autonomia do
Ser distante de Deus a partir do ponto de vista Sartreano. Deus como puro sujeito,
ou melhor, como positividade é um mistério, tratado pela fé e os princípios
dogmáticos instituídos pela igreja nas pessoas do pai, filho e espírito santo.
Neste aspecto percebemos que neste meandro a razão humana encontra seu
limite, diante da necessidade de outra linguagem, a qual talvez inexista por isso a
desconhecemos. No entanto, como cingido por Etiene Gilson (2002, p. 85), não
parece a acepção que temos de Deus ser confiável à aceitá-lo.
Os convites naturais para que o homem aplique a sua inteligência na
resolução do problema vem de origens muito diversas. E são exactamente
as mesmas origens que outrora fizeram surgir não apenas a mitologia grega
mas todas as outras mitologias. Deus oferece-se espontaneamente à
maioria de nós, mais como uma presença confusamente sentida do que
como uma resposta a qualquer problema, quando nos encontramos
confrontados com a vastidão do oceano, com a pureza tranqüila das
montanhas ou com a vida misteriosa de uma noite de Verão estrelada.
Longe de serem sociais em sua essência, estas tentações fugazes de
pensar em Deus geralmente visitam-nos nos nossos momentos de solidão.
Mas não há solidão mais solitária do que a de um homem sofrendo uma
profunda dor ou confrontando com a perspectiva trágica do seu fim
eminente. <<Morremos sozinhos>>, afirma Pascal Talvez seja por essa
razão que tantos homens finalmente encontram Deus esperando por eles
no limiar da morte. E o que provam esses sentimentos? Absolutamente
nada.
Temos a isto uma distinção, que Sartre busca solução dentro de sua teologia
do absurdo, porém, se observarmos a composição da trindade notamos que existe
ali uma consciência perfeita formada pelas três pessoas. Então podemos ter uma
noção de que Deus é um contingente residindo, assim, no plano existencial,
85
portanto, mais uma consciência dentre às consciências, mas a consciência de Deus
seria então da totalidade, como? Régis Jolivet (1968, p. 52) aclara esta passagem:
Efetivamente, diz ele, a antinomia da totalidade resiste a qualquer tentativa
de redução. Para suprimi-la, seria preciso que pudéssemos apreender de
fora a totalidade, sobrevoando-a. Isso é irrealizável quanto a nós, pois
somos partes do todo e somente existimos em função desse todo. Ora,
acrescenta Sartre, essa compreensão da totalidade seria impossível ao
próprio Deus, porque, se ele é consciência (para-si), integra-se na
totalidade, ao passo que, se o concebêssemos como um em-si que fosse o
fundamento de si mesmo, a totalidade se lhe anteporia, sejam como um
objeto e, por conseguinte, como um limite de seu para-si, seja como um
sujeito e, consequentemente não sendo ele esse sujeito, não poderia senão
experimentá-la, sem conhecê-la. Nos dois casos, ei-lo limitado pela
totalidade, ou seja, pelo mundo, o que contradiz o conceito de Deus, como
propõem as filosofias.
Então, o status supremo de Deus é expropriado diante da impossibilidade, ou
melhor, da limitação frente à totalidade, seu pensamento revela que esta
impossibilidade de Deus demonstra que ele não está mais presente, Deus então
está morto como propalado por Nietzsche desde o século XIX, dessa maneira
podemos mencionar que o mundo está aí, por isso, segundo Deleuze (2007, p. 86),
“A grandeza do Homem é que ele é uma ponte e não um fim; o que podemos amar
no Homem é que ele é uma transição e perdição.
Pensar em um Deus criador é contraditório ao menos do ponto de vista
argumentativo, que em verdade exterioriza não somente o seu pensamento como
sua forma metodológica de exposição, a linguagem com já resvalado por certo foi
uma das grandes aliadas de Sartre neste processo doutrinário, Moller (1958, p. 6667), deixa claro esta assertiva:
[...] se existisse, Deus seria um “para-si”, quer dizer um “ens causa sui”,
causando-se continuamente a si mesmo, fazendo-se existir; seria um ser
onde a existência precede a essência. Somente, como Deus, seria “para-siabsoluto” ou, o que vem a dar na mesma, uma subjetividade absoluta. Esta
noção é impensável, porque não há “para-si em estado puro”, visto a
consciência ser essencialmente projeção fora dela mesma para o “em-si”;
sendo toda a consciência “consciência de”, Deus não poderia ser
consciência absoluta; se existisse, estaria perpetuamente apontado para
outra coisa que não ele mesmo, para o “em-si”.
E mais...
Por outro lado, se Deus existisse, deveria ser igualmente um “em-si”, seria
então um “plenum”, uma totalidade bruta, desprovida de qualquer
86
significação, de qualquer relação com outra coisa que não ele mesmo. Seria
uma espécie de bloco de gelo perdido na solidão abismal de uma
inconsciência cósmica; coincidiria consigo mesmo, mas ignorá-lo-ia por
completo. Seria preciso, pois se Deus existisse, que ele fosse ao mesmo
tempo consciência pura, absoluta, e consciência de um “em-si”, do qual se
distinguiria e não distinguiria, que seria e não seria identicamente e sob o
mesmo aspecto. Esta noção do “em-si-para-si”, sendo contraditória deve ser
rejeitada.
Se o mundo esta aí, como afirma Sartre e Deus está morto, o homem está
distante de Deus. Nesse sentido, o homem estaria vivendo com liberdade e
autonomia. Para complementar este raciocínio transcrevemos um trecho magistral
da obra de Régis Jolivet (1968, p. 53):
Quanto a existência do existente, toda pesquisa chega a um “isto é”, que
representa a intuição direta da contingência absoluta e injustificável da
existência do mundo, pela qual nos sentimos “demais”, provocando o
sentimento da náusea. A vontade de criar, que se atribui a Deus, é, pois,
absolutamente inconcebível, porque não poderia exercer-se de fato senão
produzindo o ser que, criado, necessariamente escaparia ao criador para
fechar-se logo em si e assumir seu “ser”. Em uma palavra, o criado se
colocaria como absoluto, autônomo e independente: Deus, criando-se,
negar-se-ia e destruir-se-ia a si mesmo.
Sartre é senhor de seus critérios, ou melhor, sua filosofia existencialista se
auto-explica. Por esta razão não se pode desviar de seu raciocínio, sob pena de se
perder na selva do seu pensamento, de onde muitos viajantes jamais retornaram
para relatar. Por isso, destaca Gerd Bornhein (2005, p. 303), “Sartre é homem do
asfalto, o enamorado dos arranha-céus de Nova Iorque, o ateu coerente. Como
entender esse ateísmo que configura, de resto, a própria situação de nosso tempo?”
O homem no mundo é plena atividade, como isso é liberdade a qual lhe
garante o sentido ao seu mundo, a criação é uma contradição injustificável, Sartre
neste ponto escandaliza, esta é efetivamente sua verdadeira intenção, atrair atenção
e elevar sua filosofia ao patamar de uma tautologia. O homem é um ser histórico,
como bem enfatiza Moeller (1958, 36):
O homem está no tempo; é determinado por ele, está atolado nele; não
pode desembarcar-se dele para se refugiar numa solidão idealista, a das
“boas intenções”; mas por outro lado também não pode deixar-se “tragar”
pelo tempo, deixar-se pregar a este mundo da “existência obscena”, que é
coisa presente “aí, estupidamente aí” para sempre. O homem não é uma
coisa, nem uma consciência pura; é “consciência encarnada”; não pode
viver com o mundo, nem viver sem ele. Aquilo que a doutrina bíblica chama
de “fragilidade da criatura”, descreve-o o existencialismo ateu como a
87
encarnação de uma consciência que, em face do mundo, retoma a frase de
Ovídio: “Nem contigo, nem sem ti”. Enquanto o “historicismo” não atinge os
valores dogmáticos, que são sobre naturais, limitando-se ao mundo terrestre
contingente, exprime uma verdade profunda, que aliás Sartre não inventou.
É perceptível a tentativa da linguagem cristã ocidental busca distorcer a
realidade do homem, enquanto ser existencial, tentando lhe ceifar sua liberdade e
dar lhe uma essência inútil diante de uma interpretação contraditória que adorna a
doutrina bíblica.
Quanto à liberdade, esta é destacada por Albérès (1958, 56), como segue:
Se ele se define como a possibilidade de dar uma significação às coisas, é
todo atividade. Esta atividade, esta necessidade de escolher em cada
minuto como vemos o mundo, constitui a liberdade. Uma tal liberdade
contém, paradoxalmente, sua própria antinomia: somos livres de dar, não
importa que sentido e não importa que coisa, mas somos obrigados a dar
um sentido a alguma coisa, a pensar, a interpretar, a escolher.
A existência é, portanto, exercício da liberdade, bem como, comprovação de
uma consciência que dentro de uma certa dialeticidade é responsável pela
construção do ser e de dar a este sentido no interior do mundo. O homem, a cada
instante, assumindo e renovando sua posição, prova assim sua autonomia. Ao
mesmo tempo em que o homem se descobre como ser livre, por este mesmo
caminho mostra que Deus é uma contradição, diante de sua inoportunidade
participativa na existência do homem.
Talvez, como vaticinado anteriormente, no âmago da doutrina bíblica com
relação à questão da “fragilidade da criatura” representa um aspecto sedutor que
conduza o homem a desacreditar de sua própria existência. No entanto, esta
dificuldade existencial é imanente a sua condição como sintoma de sua angústia,
cuja superação nasce da ideia de não parar de escolher, renascendo sempre
novamente como antídoto capaz de afastar o ser de uma consubstancialização
inerte, definitiva e acabada.
A existência de Deus e sua justificativa seria um problema da razão humana
em busca de uma explicação ontológica do ser, ora a razão teria sido contaminada
por uma doutrina que lhe impõe uma ideia perfeita, irretocável do bem. Segundo
Albérès (1958, 111) “Porque Sartre vê no cristianismo uma doutrina que impõe uma
88
ideia completa do bem, uma espécie de farisaísmo, concepção muito incompleta,
mas acredita, sem dúvida, sinceramente, exata”.
Ainda segundo o mesmo comentador de Sartre (1958, 112):
Resta apenas Goetz, como último recurso, desligar-se desta crença opondo
a vida dos homens à lei de Deus: “É esta carne e esta vida que amo. Só se
pode amar sobre a terra e contra Deus”, e abandonando a teoria do Bem e
do Mal, que fez com que errasse, proclama: “Quero ser um homem entre os
homens”. Em As Moscas também, Deus, sob a forma mitológica de Júpiter,
apresenta-se como uma espécie de tirano que impõe aos homens uma
noção petrificada do Bem: “Porque o mundo é bom; eu o criei segundo a
minha vontade e eu sou o Bem”. Sartre pinta na maior parte das Vezes um
Deus enfatuado de sua pessoa e de sua criação: “O Bem está em ti, fora de
ti, penetra-te como uma foice, esmaga-te como uma montanha, carrega-te e
te faz rolar como um mar. [...] A justiça é negócio dos homens e não preciso
de Deus para ensinar-me, Goetz grita: “Não havia nada além de mim: decidi
sozinho o Mal: sozinho inventei o Bem”. Porque o homem é livre: “Quando a
liberdade explode numa alma de homem, os Deuses nada mais podem
contra ele”. Em suma, Sartre repreende o velho tema da incompatibilidade
filosófica da liberdade divina e da liberdade humana.
A transcendência poderia ser uma saída para explicar a existência do homem.
Porém, em Sartre ela é uma via obstruída na medida em que Deus não existe.
Outrossim, ainda que houvesse a possibilidade de contar com a colaboração de
Deus para explicar existência do homem pela transcendência esta via se revelaria
impossível pela forma como foi definido o ser em si por Sartre, como sendo rígido,
imóvel, determinado, perfeito, pura positividade, por este atributo Deus é pura
contradição do ponto de vista sartreano, portanto, impossibilidade de ser o criador
do homem.
Esta concepção se assemelha ao legado por Parmênides, segundo o artigo
de Rômulo Conceição:
O ser é, portanto, alheio a todo devir, está além de toda geração e
corrupção; é uno e contínuo, porque a razão não permitiria nascer algo além
dele, determina-o, pois, indivisível, igual ao todo, não pode ser maior ou
menor que ele mesmo e caso houvesse mais de um ser, à unidade
retornaria, já que por imposição lógica ente a ente adere. O ser é imóvel e,
pousado em si mesmo, permanece imobilizado em seus limites. O ser é
perfeito, pois não é carente; se de nada é carente, não é possível que seja
imperfeito e inacabado.
Em Parmênides, o um é o todo e o todo é um. Se existissem dois todos, um
limitaria a abrangência do outro. Como o ser é infinito, ilimitado, só pode ser
um. Ele refere-se a uma esfera. Não se pode deduzir daí que o ser tem o
atributo da corporeidade. Trata-se de uma simples imagem, evidentemente
influenciado pelas idéias cosmológicas de Anaximandro que geometrizou o
89
espaço, até então aritimetizado. No caso, a esfera dá mais a noção de
infinitude, de algo que nunca termina. Quando o poema fala de uma
"verdade bem redonda", a imagem que nos vem à mente é a do ser
"esférico", ou seja, sem começo e sem fim, sem dobras, sem quebras,
indivisível, imutável, sempre idêntico a si mesmo.
Embora Sartre não assuma ser nem idealista nem realista, por uma questão
estrutural, em busca de uma resposta no campo ontológico, há que caracterizar sua
filosofia como sendo de cunho híbrido. Diante de sua postura conceitual da
existência, onde idealismo e realismo são faces de uma mesma realidade, o
fenômeno do ser é um postulado que se manifesta, onde não existe nada anterior.
Talvez esteja aqui o início da linha do carretel que conduz a uma explicação
do problema ontológico em Sartre, vital para demonstração da autonomia do Ser
distante de Deus como pressuposto da tese defendida. Sendo o ente o que é, ou
seja, o em si denso, rígido, simplesmente perfeito, qualquer outro ser estaria
aniquilado pela exclusão. Todavia, uma resposta a esta questão é asseverada por
Bochénski (1955, 194), cujo trecho vale apena transcrever:
A resposta a esta pergunta dispõe assim: ele é possível porque o mundo,
apesar dos entes plenos, rígidos e determinados pelo “em-si” há um outro
tipo muito diferente de Ser: ser-para-si, um ser especificamente humano.
Todavia como tudo que é, deve ser ente, é decidir, ser um em-si deduz
Sartre que este outro tipo de ser, não pode ser, senão um não ser, pois, é
dizer, que consiste em um nada. Advém o ser homem graças a aniquilação
do ente.
Outrossim, o reforço a esta análise ontológica encontra respaldo dentro da
acepção de Sartre quando procura demonstrar que o mundo do em si possui um
certo materialismo originário, a este respeito com propriedade que lhe é peculiar
que transcrevemos breve trecho de Jolivet (1968, 63):
Denominamos materialista toda doutrina segundo a qual a realidade do ser
se reduz à matéria e suas modificações, com exclusão de qualquer princípio
de natureza imaterial ou espiritual (alma ou espírito). O materialismo evita
sistematicamente toda interpretação metafísica da ordem vital e
especialmente da realidade humana.
Sartre por sua vez, combate o materialismo atacando os seguintes pontos, se
compreender a consciência pela matéria presume-se que a consciência possui uma
90
matéria anterior, ou seja, essência, por outro lado. Compreendendo a incidência do
materialismo na consciência esta realizaria um reflexo frente aos objetos do mundo,
porém, impossível, refletir tudo que estaria no mundo, a medida em que o cérebro
representa apenas parte do mundo e não sua totalidade.
A objeção identificada no pensamento sartreano está lastreada no contexto
da impossibilidade da forma como é apresentada, pelo materialismo dialético, ou
pelo materialismo e a dialética. Para o pensador existencialista o materialismo
considerado é um outro, o da “atitude humana” não discutido neste momento e
quanto a dialética a que encontra guarida seria a dialética da ideias com relação
liberdade do ser no mundo, nestas condições o homem se define por sua existência,
segundo o legado por Jolivet (1968, 67):
O homem, com efeito, não se reduz ao “ser, como as coisas: define-se pela
existência, que é uma capacidade de emergir fora da opacidade maciça do
ser. Ora, essa própria capacidade resulta de uma espécie de
descompressão do ser, a qual introduz neste uma falha do nada. Esse nada
situado no âmago do ser, como um verme, é a consciência ou subjetividade:
o ato do para-si consiste, pois, em “niilizar o em-si que ele é”. A realidade
humana como tal explica-se, assim, não a partir da matéria, mas a partir
daquilo pelo que nada vê ao ser, que é o para-si.
O ser em Sartre, é tido como existência, está distante e ao mesmo
tempo é consciência, uma consciência vazia, estranha e que se perfaz fora de si,
detentora de uma realidade como sujeito a partir de um idealismo, distinto, daquele
que busca converter toda realidade em espírito. É importante destacarmos que tanto
o realismo como o idealismo em Sartre não aparecem como estruturantes de sua
filosofia, mas tão somente como elementos que fazem a junção de sua corrente a
qual encontra sustentação no comentário de Pecoraro (2009, p. 107), A consciência
não é substância nem ente lógico, mas o simples movimento na direção das coisas.
Estamos, portanto, livres de qualquer configuração de um ego interno, seja ela
pensada em termos reais ou numa acepção puramente lógica.
E complementa o comentador.
A fenomenologia representa, assim, dois aportes decisivos à filosofia de
Sartre. Em primeiro lugar a possibilidade de entender a consciência sem
vinculá-la ao naturalismo psicológico ou a metafísica do sujeito; em segundo
lugar, a possibilidade de uma descrição fenomenológica das condutas
subjetivas isenta dos compromissos tradicionais com as definições de
consciência
91
É interessante a questão espiritual em Sartre ao se notar que em todos os
seus personagens não identificamos certa interioridade, suas personagens se
realizam sempre fora de si, no exercício de sua liberdade. Talvez seja algo patente
em sua filosofia, ou melhor, no recorte dado entre o homem e o sobrenatural
contraditório este, propagado pela fé cristã ocidental. Sartre identifica o
existencialismo com ateísmo, nesse aspecto sua doutrina defende que na medida
em que Deus não existe, o homem existe ainda sem estar plenamente definido.
Um ser sem essência, um ser possuidor de existência, um ser sem natureza,
essas seriam as características do homem capaz de sustentar o divórcio com Deus,
o que demonstra a incompatibilidade entre a existência e Deus, revelando assim
uma contradição conforme já acenada.
A partir da leitura da obra o Ser e o nada, podemos inferir que Sartre tem
Deus como algo já resolvido. Conforme ilustrado, Sartre não escreve um capítulo
atribuído a Deus! E por quê? Porque Deus é um absurdo, questão resolvida. No
entanto, para melhor compreensão pedagógica é salutar que compreendamos o seu
ateísmo. Apoiado em Husserl, segundo a qual “... toda consciência é consciência
de...” é a “intencionalidade”, onde a consciência projeta-se para fora de si, o que faz
desta consciência um arcabouço vazio. Segundo Moeller (1958, p. 60):
Compreende-se agora o que significa a expressão “fenômeno do ser”: o
“em-si”, outra coisa não é que a imagem invertida do “para-si”; de um lado
há falta de consciência consigo; do outro, coincidência perfeita. É assim que
o ser aparece à consciência; eis o que esta revela no seu próprio “projeto”.
Continua o autor:
Se, portanto, o “em-si” é o “fenômeno do ser”, a maneira como o ser
aparece, supõe um “ser do fenômeno”, isto é uma espécie de “suporte” dos
perfis sucessivos, dos Abschattungen que aparecem a consciência. É em
virtude de uma espécie de “argumento ontológico” que Sartre postula a
existência deste “ser do fenômeno”
Neste contexto, define Salanskis (2006, p. 59) o cerne da concepção de
intencionalidade a partir de suas propriedades.
Como várias vezes anunciado, é preciso chegar agora aquilo que
corresponde , em Husserl, a uma “definição” da intencionalidade: a algumas
referências que ele nos dá, à luz das quais podemos compreender mais
precisamente o que ele assim nomeia e como a intencionalidade opera.
Porque em Hursserl, primeiramente a intencionalidade designa a
92
propriedade que a consciência tem de produzir acontecimento, a atividade
por excelência da consciência. Esta consciência que é antes de tudo fluxo
dos vividos sabe cristalizar-se ou ligar-se a tal forma que ela se faz ato, o
que, desde as investigações lógicas, como já dissemos, de sua parte
significa ao mesmo tempo apontar para, visar. A intencionalidade satisfaz a
uma função de visada, mas ela sempre se efetua em atos, que são também
acontecimentos [...] Contudo, para Hursserl a propriedade que a consciência
tem de ser consciência é atribuída a certos vividos, dos quais dizemos que
“participam da intencionalidade”.
Sartre não envereda a explorar os fenômenos à substância do ser, o que o
conduziria a um estudo metafísico. Sartre aqui busca não só garantir a
concatenação lógico-formal do seu pensamento como ao mesmo tempo romper com
a concepção de alma. Restringindo-se ao ser do fenômeno, diante da estrutura de
sua corrente filosófica, Sartre estabelece que a existência precede a essência e,
dessa forma, o ser do fenômeno é um postulado como pressuposto.
O ser do fenômeno está sustentado sobre os auspícios do conhecimento, tem
que ser assim, para que seja possível a compreensão. A consciência, neste caso,
não o alcança, pois, geraria uma contradição em decorrência da essência. Para
pressupor e sustentar esta possibilidade tem que ser, segundo o pensamento
sartreano, com base no idealismo.
Sendo, portanto, o ser do fenômeno um postulado, é nodal que se
compreenda o diálogo do ser para si e do ser em si. Esse diálogo é importante, para
que seja possível a visualização da consciência vazia e, por esta razão, não
permanece em si mesma, necessitando sair de si, como bem expõe Pecoraro (2009,
p. 109).
Isso implica que a realidade humana tem seu ser fora de si, na medida em
que ele está sempre em processo de constituição. Essa forma de existir
Para-si é balizada pela noção de projeto. A realidade humana tem seu ser
fora de si porque, estando sempre em constituição, o ser da realidade
humana é constantemente projetado como aquilo que virá-a-ser ou que se
constituirá no decorrer do processo. O ego nunca repousa a si mesmo,
porque seu ser consiste em projetar-se para constituir-se. O projeto
existencial se define como esse constante lançar-se adiante de si e na
direção de si. A realidade humana se constitui fora de si.
Por isso, se a consciência existisse em si mesma, isolada, neste contexto
ideológico individual, o homem não existiria. Porém, esta não é a realidade da
consciência, mas ela arrisca-se ao sair de si, correndo o rico de perder-se.
93
O para si tem como intenção desconectar-se do em si. O para si factualmente
está atrelado ao seu corpo e ligado ao em si, no entanto, sendo ainda reflexo do em
si o para si se vê distinto, diferente do em si, esta relação forja a liberdade do para si
em relação ao em si, o para si independente, pleno de si, destacado do em si, um
“vazio” que surge no interior do “pleno” do para si, revela o para si livre. Com plena
liberdade ele é uma consciência vazia, onde Deus representa uma concepção vazia,
incapaz de interferir no destino deste para-si.
A este respeito, com o conhecimento de causa que lhe é peculiar
transcrevemos um trecho da obra Ética e literatura em Sartre, segundo Franklin
Leopoldo e Silva (2003, 31):
Assim, é na contingência e a partir da facticidade que o “homem é um
absoluto”.[...] É a solidão do para-si que impõe a consciência o absoluto de
sua liberdade, é uma consciência despojada de tudo, aquela que se lança
adiante de si por sua conta e risco. E quando o sujeito lançado no mundo
encontra a densidade da história, um passado herdado compulsoriamente,
um presente já constituído, um futuro incerto, será a partir dessa fragilidade
originária que ele irá situar-se e projetar-se, razão pela qual ele só pode
mesmo ser a origem absoluta de suas escolhas, isto é, de si próprio,
inventando-se absolutamente no embate com a relatividade histórica. A
presença do absoluto no relativo constitui sempre a singularidade de cada
situação. Mesmo que não se viva a todo o momento uma situação limite
como no caso da tortura, a historicidade vivida na irredutibilidade da
consciência em todas as situações se configura sempre como um tipo de
convergência entre o absoluto e a história.
Deus, para Sartre é uma noção contraditória. Superado o desejo de que o
para si tem como sonho ser um em si, é suscetível que seja enquanto fora de si, no
mais, é necessário compreendermos um trecho da obra de Moeller (1958, 66):
Sartre explica no epílogo de L’être et le néant, que tudo se passa como se
um sismo primitivo, original, tivesse produzido essa fenda ontológica no seio
de um conjunto primitivo que seria “em-si-para-si”; ao mesmo tempo causa
de si e identidade consigo. O ser atual parece supor uma “desintegração” a
partir de uma “integração” original. Caberia a metafísica, diz ele, explicar
esta aparição, este “nascimento” do “para-si” no seio do “em-si”. Já tive
ocasião de dizer que, segundo a sua própria confissão, a resposta a esta
pergunta, apesar de primordial, pertence ao domínio da hipótese
incontrolável.
Torna se difícil extrair uma posição relacional entre o ser para si e ser em si,
diante da contrariedade patente, pois, sendo Deus a causa de si mesmo –causa sui
94
– ele seria um para si absoluto, ou seja, estaria circunscrito dentro dos contornos
existencialista, onde a existência precede a essência.
Impossível, o para si não pode ser absoluto na medida em que está em
constante movimento para fora de si, sendo Deus consciência absoluta, estaria
inclinado ao em si, seria em Deus pura positividade e plenitude, porém como
compatibilizar com a acepção de totalidade do mundo, como também propalado por
Bochénshi, Deus é uma contradição, logo ele é impensável.
Embora não nos resolva o cerne da questão, temos dessa retomada uma
perspectiva para compreender o pensamento sartreano em busca de justificar a
autonomia do Ser distante de Deus, no bojo da filosofia de Sartre.
Temos um problema que não pode ser deixado de lado, pois, a fenda pela
qual emerge o para si do em si demonstra a priori uma das grandes celeumas da
ontologia existencialista. Originariamente temos em comum, embora comentado por
prismas diversos, que o para si tenha se destacado do em si por uma
descompressão fenomenológica parcamente explicada a qual em última análise não
se vê forte o suficiente para explicar não somente a oposição entre o para si e o
em si ou sua convergência, considerando a força argumentativa de Sartre a qual
conduz seus receptores a diversas aporias.
Sartre então busca desvencilhar-se deste problema elevando esta passagem
a um apoio fenomenológico para explicação desse, e mais, colocando o ser do
fenômeno como um postulado ante a impossibilidade de uma outra explicação ao
menos no plano do sensível, isso, nos conduz a estreitar a autonomia do ser, para
que consigamos prová-la ao menos por um ponto, considerando que Sartre repele in
totum a paternidade cristã, como bem frisado por Moller (1958, p. 80):
O autor de L’être et le neánt prova aliás uma assombrosa ignorância
perante a realidade cristã; ele escreve, sem pestanejar, que a “experiência
mística não é uma experiência privilegiada”, como se ignorasse a soma da
ascese e de renúncia que supõe o fato: pode-se pensar que uma
experiência baseada em tais renúncias nada tem de original a ensinar-nos,
que seja, por exemplo, exatamente da mesma ordem da de um homem
sensual? Temos que dizê-lo: Sartre apaga, com uma penada, vinte séculos
de história cristã, sem uma investigação séria, apenas em virtude de uma
opção prévia em favor do “racionalismo materialista”, ou, se se prefere,
segundo Gilbert Varet, do “empirismo dialético”.
95
Há que se ponderar que o seu pensamento merece recortes, como postulado
comum a todos os pensadores. Sartre, ao delinear seu pensamento, rompe por
completo com a preexistência e se filia a existência, por esta razão a história cristã
não tem relevância.
De outro modo, seu pensamento esta estabelecido no plano do sensível e
não do sobrenatural e, por esta razão, sua fenomenologia ontológica deve ser
simétrica ao seu pensamento, sob pena de não se chegar a lugar nenhum.
Sartre já sabia da grandiosidade de seu desafio, e dos riscos das mais
diversas e variadas críticas que seu pensamento poderia sofrer. Porém, senhor do
seu destino, optou pelo desafio, desviou se do mundo sobrenatural ao decepar esta
possibilidade entre a incompatibilidade de seu pensamento e a transcendência
cristã, também não se posicionou radicalmente contra a existência de Deus
“antiteísmo”, muito embora tenha se declarado ateu por uma estratégia
implementada em sua corrente filosófica. Como constatamos, na obra O
existencialismo é um humanismo, podendo ostentar um certo radicalismo somente
dentro da teoria da linguagem, a qual também forja o homem “Sartre” identificando-o
com suas obras.
Sua ontologia fenomenológica está mais voltada para a moral, a autonomia
moral do ser. Segundo Moller (1958, 87):
A única regra que pode formular é a de que é necessário promover um
regime humano e político que garanta o máximo de liberdade a cada um,
visto a liberdade ser o único valor do homem. [...] Tomando consciência do
equívoco inevitável de todos os compromissos políticos e humanos, o
homem sartriano só poderá encontrar alguma grandeza na decisão de
assumir lucidamente a seu ato de homem; assim faz Hugo, no final de
Mains Sales.
Complementa...
Esta atitude estóica, porém de um estoicismo despojado de todos os seus
prolongamentos místicos, seduz o homem moderno; ao mesmo tempo,
impede toda a fuga para um mundo do sobrenatural, o da fé e o da Graça.
Gabriel Marcel escreveu que a filosofia de Sartre é o sistema mais lógico
que jamais houve de negativa de graça, de toda a graça. Sartre o disse,
absolutamente nada do exterior pode entrar no homem; este acha-se por
completo sozinho e entregue a si mesmo.
Talvez a lógica não guarde relação com a verdade, mas qual a verdade que
menos importa senão a impossibilidade de provar a existência de um Ser supremo
96
denominado Deus pela fé. Por isso, Sartre parte da premissa de que Deus é algo
não importante, ou importante apenas para justificar seu pensamento. Nesse
sentido, Deus não seria mais do que um adorno, um apoio para Sartre.
Manter o homem distante de Deus é a garantia de que este homem não sofra
das mazelas de um psicologismo trapaceiro e insano, possibilitando ao homem ser
ele mesmo, no gozo de sua liberdade no exercício de sua autonomia em decorrência
da sua liberdade em ação, o homem é o construtor de seu próprio edifício e, nesta
perspectiva, a moral torna-se a modalidade de cada um.
A subjetividade existencial torna-se autêntica através do pleno e eficiente
exercício dialético da consciência para fora de si, onde o outro, a relação de
alteridade com a liberdade da coletividade e da historicidade factual, demonstra, de
forma meridiana, a impossibilidade de justificar alguma coisa dentro do pensamento
sartreano não alija sua corrente filosófica.
Ao contrário fortalece, segundo Santos (2010, p.100):
Dessa forma, conforme destacado, não podemos negar a propriedade da
subjetividade Sartreana, a qual se perfaz a partir da existência dentro de um
processo (movimento) de existir. Nesse ponto, a confluência das águas
filosóficas nos conduz a necessidade de compreender a concepção de
liberdade, pois, segundo Pecoraro “[...] é neste movimento pelo existir, que
identificamos a liberdade em Sartre e a indeterminação fundamental que
constitui a liberdade” (Pecoraro, 2009, p. 108-109).
A existência é liberdade, onde qualquer oposição gera a impossibilidade da
existência. Por esta razão, se o homem existe, ele além de ser livre aniquila com a
existência de Deus. Porém, mesmo que Deus existisse, o homem por sua
singularidade, ontologicamente seria livre, livre por ser um ser existencial.
No entanto, ainda há o que considerarmos, no campo da ontologia. Notamos,
que por este viés é possível encontrarmos entre Deus e o Homem um abismo que
Sartre busca justificar, o homem é o pastor do nada, conforme elucida Gerd
Bornheim (2005, p. 304-305):
Assim, como Heidegger afirma que o homem é pastor do ser, poderíamos
dizer que, segundo Sartre, o homem se faz pastor do nada, cada homem é
pastor de seu próprio nada, e ninguém pode transcender o nada em
direção à coisa, ao outro ou a Deus. A maldição do homem – ou a sua
culpa, com o diz Sartre – é esta: a de não poder esquecer o nada que cada
homem é. Se a realidade humana se conserva escrava dessa imanência
97
negativa, se não consegue despojar-se de sua gratuidade fundamental,
Deus termina completamente absurdo.
Nessa seara ontológica, o homem é o nada e o nada é a origem e o elemento
fundante do homem, onde ocorre o fenômeno do ser negativo, onde sua positividade
se constitui dentro de uma relação externa, no mundo. O método de Sartre se
mostra evidente quando ele analisa a simplicidade da estrutura, a qual não poderia
ser diferente diante da gratuidade da liberdade, o ser é.
No entanto, não do ponto de vista real, mas tão somente racional, para
justificar sua existência, a consciência é vazia por ser pura intencionalidade e o nada
é mar que separa o homem de Deus. Essa separação ontológica é necessária e visa
justificar a doutrina existencialista por meio da filosofia e não da fé. Caso contrário,
se Sartre se deixasse conduzir pelas palmilhas da fé, o existencialismo sartreano
jamais viria a ser o que é.
O ser existe junto com a consciência. À medida que o ser participa das ideias
da consciência que se faz fora de si, é uma relação cronológica e ao mesmo tempo
lógica pelo perfeito encadeamento existencial. A este respeito, confirma Gerd
Bornhein (2005, p. 307):
Sartre persiste integralmente metafísico no seu modo de compreender
Deus; o conceito de Deus é pensado, hegelianamente, como síntese do emsi e do para-si. Mas a síntese tornou-se finalmente impossível, os termos
que a deveriam compor ficam emperrados na contradição e resultam
inconciliáveis. Se Deus fosse provido de consciência, abrigaria o nada em
seu ser, visto que a consciência é, por definição, ontologicamente
intencional.
Sendo assim, o nada é modalidade do ser, enquanto homem, peculiar a este
e fundador deste. Esta assertiva radicaliza e conduz ao problema de que seja o
existencialismo uma gnosiologia, como vaticina Gerd Bornheim (2005, p. 309):
[...] o existencialismo não passa de uma gnosiologia transposta a um plano
ontológico, mas de um ontológico que fica irresolvido, que não consegue
alcançar à igualdade do diverso. A consequência imediata pode ser vista na
cisão fundamental entre sujeito e objeto, entre para-si e o em-si. E tudo o
que a fenomenologia sartreana faz redunda em concentrar o homem em
sua própria particularidade, em isolá-lo ontologicamente de todo outro que
não ele. Daí a pobreza do mundo das coisas: “a madeira morta, a vértebra
ressequida, a concha vazia, eis o ‘ser’ para Sartre”...
98
Sartre gera um Deus finito e mortal e, por isso, em diversas de suas obras
constatamos a vontade do homem ser Deus. Ele faz de seu projeto existencial uma
gestação do homem a partir do nada e, nesse sentido, sua obra é mais importante,
O Ser e o Nada, este homem é um deus, é seu criador, é seu senhor, é seu
edificador, um homem niilista, um homem, que aprende a viver em condições áridas,
desoladora frente a um mundo que ele mesmo criou. Nessa perspectiva, em Sartre,
o homem é um Ser que goza de autonomia distante de Deus, por ser o que é e
ainda não é como realidade humana em constante constituição fora de si.
99
CONCLUSÃO
Concluir um trabalho não pode ser sinômino de encerramento, a literalidade
da palavra sede estrada para um outro vértice... do continuísmo, considerando que o
saber advindo pelo processo lento e árido do conhecimento tem relação direta com o
desenvolvimento da ciência, a conclusão estará buscando ser fiel ao seu tempo, ao
seu instante, onde o trabalho propõe este recorte sem que a ideia jamais possa sêla.
A concepção de autonomia do ser distante de Deus a partir do ponto de vista
sartreano, vem trazendo neste estágio o afunilamento necessário, onde a
decantação das ideias refletem o extrato mais puro extraído do pensamento de
Sartre.
Nesse aspecto da proposta, o diálogo com Sartre e seus inveterados
estudiosos demonstram que ainda existe muito de Sartre para ser explorado, seu
pensamento enviesado justifica as dificuldades em dar o arranjo correto em seu
pensamento, principalmente quando nos propomos a defender um grande embate
entre dois pensamentos e uma verdade!
Sartre ao verbalizar Deus como sendo um absurdo, sabia da dificuldade do
seu trabalho em o Ser e o Nada, sabia que o Ensaio de Ontologia Fenomenológica
poderia lhe conduzir a uma trincheira, mas não se desapegou de pensar de que
Deus também ao ser submetido a concepção filosófica não poderia exaurir
justificadamente sua razão de ser, por isso, Deus é um absurdo!
Sendo Deus um absurdo, não resta dúvidas de que o homem é, no sentido
existencial, não interpretemos é, como perfeito, acabado, esférico e irretocável, pois,
o para si, ele existe sem nenhum desses atributos, pois, o para si existe em
contradição e não em identidade, poderíamos relevar a palavra identidade para
definir tão somente sua distinção e singularidade diante dos demais para si, bem
como identidade para identificar que o para si tem sua identidade distinta da
identidade do em si, por serem originários de fontes distintas!
A fonte da distinção nos projeta ao legado da autonomia, a qual será
artesanalmente evidenciada, outrossim, não podemos nos olvidar de que a
fenomenologia, ou melhor, como surge as coisas e a ontologia como acontece as
coisas são critérios importantes e merecem transparência hermenêutica.
100
Sendo o para si contradição e o em si identidade, não podemos nos furtar
dessa diferença, no mais, sendo um pura negação e o outro pura perfeição,
impossível sê-los gêmeos homozigotos e/ou heterozigotos! Existe aí uma total e
irrestrita necessidade de independência, seja no plano do fenômeno seja no plano
ontológico.
Do ponto de vista fenomenológico o ser para si é existencial a partir do nada,
disso ainda teremos muitas linhas a discorrer, enquanto do ponto de vista ontológico
o ser para si está alicerçado em uma consciência que é pura negação, o para si, tem
como estatuto individual a consciência, que lhe é própria, enquanto o em si, não a
tem. Caso possuísse, como o para si, seria contingente, seria consciência, aliás
mais uma consciência entre as consciências, por esta razão, ontologicamente, o
para si acontece no mundo por intermédio de uma consciência cujo ser não é no
sentido de perfeição e pura positividade, enquanto o em si detém estes atributos.
A contingência atribuída ao em si também ganha compreensão na medida de
sua desnecessidade frente a existência do para si, na proporção em que o em si não
deixa ser percebido, ocultando seu ser de forma misteriosa, omitindo sua criação ou
sua causa primeira, mas que também não reflete nenhum problema ao para si diante
de sua contingência e negatividade.
Disso, podemos deduzir que o ser do para si é um ser que se faz da
consciência nadificada, por outro lado o ser do em si, é no sentido mais puro da
perfeição, isto nos conduz a prova de que o mundo de um e do outro são diferentes,
em sendo diferentes, cada ser tem que possuir seus próprios recursos para existir,
portanto, o para si é autônomo em seu mundo, por uma condição natural tanto
fenomenologicamente como ontologicamente, sendo estes mundos fielmente
divididos pelo oceano do nada, com seus próprios fundamentos.
Difícil, para não dizer impossível ser convencido de que o para si tem seu
fundamento no em si, por aquele encontrar se na ilha da consciência, enquanto este
repousa em um fenômeno inalcançável pelo viés da filosofia, reduzido a um
postulado, se é válido este argumento, porque não elevar o para si também a um
postulado.
Para todo efeito, por uma questão de contradição o em si não pode ser o
fundamento do para si, não se faz comprável a ideia de que o para si tenha
adquirido sua negação oriunda de uma fenda em decorrência de uma
101
descompressão no seio do em si, sendo a perfeição do em si totalmente
incompatível com qualquer hipótese do nada, mas parece plenamente possível e
defensável o para si carregar em si sua própria causa.
O argumento é frágil e de pronto, revela incoerente na medida em que o em si
é pura positividade, por consequência não tem fendas e nem brechas, isto seria
reduzi-lo ao amenos a imperfeição. Não diferente seria equiparar diante da
existência de dois mundos, os fundamentos tanto fenomenológico como ontológico
entre o em si e o para si, ambos são distintos, considerando que por pertencerem a
mundos heterônomos o ser de cada um seria também distintos.
O ser do para si está para consciência e o ser do em si está para uma pura
positividade, embora, essa positividade possa ser questionada, considerando que a
relação com o mundo do para si é contraditória, por ser o para si, ser, ser do que é e
ainda não é.
A inacessibilidade do em si, deixa o para si totalmente independente, ao
mesmo tempo que impede que se tenha acesso a sua estrutura interna, digno
inclusive de desconfiança, digno de ser atribuída a esta esferacidade total e irrestrita
absurdidade.
Quanto o para si, sendo senhor do conhecer e pelo conhecer, esta relação
com o mundo e no mundo também o põe em patamar impar com em si, que diante
de sua estrutura somente demonstra ao menos em tese que a formação do
conhecimento é indiferente diante de sua plena perfeição, portanto, o continente do
conhecimento é seara palmilhada somente pelo para si.
A negatividade do para si, pode representar um obstáculo a autonomia do
para si, se houvesse a consideração de que o nada somente pode advir de um ser,
ou melhor, do ser do em si enquanto positividade, todavia, não podemos sustentar
esta hipótese pela razão de que o ser do em si é oposto ao ser do para si, para
aquele temos a positividade e para este a consciência vazia.
Existe um hiato entre estes seres, intransponível, onde o ser para si,
enquanto consciência do nada, se sustenta em seu nada que em última instância,
tem sustentabilidade em um postulado do nada, caso não possamos convencer de
que o para si seja a sua própria causa a partir do nada do para si.
Seria, portanto, esse o ponto irradiador dessa consciência fenomênica
e
ontológica do ser para si. O nada de algo positivo como o em si, não pode, ser
102
interpretado em sua literalidade, esta leitura somente representa o passaporte para
transformar o existencialismo de Sartre em um Cristianismo Existencial ou outra
coisa que negue o existencialismo ateísta de Sartre
Posição improvável diante da forma com foi arquitetada a obra o ser e o nada,
pois do seu garimpo, a menor preocupação de Sartre foi o tratamento para com
Deus, o em si, o homem, o para si, recebeu trato diferenciado, interpretar o nada
advindo do miolo do ser em si, será sepultar Sartre pela segunda vez, ou ao menos
fazer uma leitura turva das escrituras sagradas da obra destacada nesse parágrafo.
A ligação entre o ser em si e o para si é inconcebível, diante do perfil arrojado
de Sartre, a radicalização da liberdade é o que respalda a radicalização da
autonomia, se por um lado da moeda ainda que Deus o em si existisse ainda assim,
o existencialismo sartreano encontraria adorno, merece retoque.
Primeiro, para os que sustentam ser a corrente existencialista uma falsidade
diante de sua indemonstrabilidade, a resposta deve ser proporcional ao agravo, ou
seja, seus opositores não conseguem justificar a existência de Deus pela via da
filosofia ou da experiência mística, no entanto, a filosofia é capaz de fazer do
existencialismo uma corrente compreensível e justificável.
No mais, em segundo lugar, a clareza da autonomia do para si
cristalina
é tão
a ponto de refletir o quanto ele pode ser, enquanto possibilidade
existencial de se fazer o que não é frente ao seu inacabamento, onde a consciência
demonstra a profunda cisão entre o em si e o para si.
O para si transcende para a construção da moral, da subjetividade, e os
demais conceitos fundamentais em Sartre fazendo do para si ser o que o em si
jamais poderá ser! Livre e a totalmente autônomo dentro de sua corporeidade como
começo e fim materializadores da existência, parafrasendo Sartre o homem é o que
traz o nada ao mundo, por isso, o homem é autônomo na concepção mais
extremada da palavra, senhor do seu destino, fundador da sua existência a partir do
nada como postulado ou do seu nada originário de si mesmo.
Esta perspectiva se mostra plausível diante da condição do para si, pois se
sua existência é contingencial seu fim que se dá com a morte também será, dessa
forma, o para si coleciona em seu âmago a finitude existencial, por isso, a origem do
nada somente pode se dar por intermédio de si mesmo e não do em si, diante do
contexto em que funde sua realidade. Outrossim, o para si como negação, pura
103
negatividade sua autonomia não me parece prejudicada pela positividade do em si,
ao contrário se revela plenamente possível e factível.
O para si, dentro do contexto da obra o ser e o nada irradia a concepção de
autonomia do ser distante de Deus conforme se avalancha os fundamentos
esposados, o isolamento do tema, encontra vigor de tese pela janela da liberdade
que se processa a constituição da subjetividade do ser para si como exercício
evidente de sua autonomia.
O estudo da fenomenologia e da ontologia sartreana tendo com epicentro o
homem, defende automaticamente a autonomia do para si, onde consegue de forma
meridiana apresentar como se manifesta a consciência e a subjetividade do para si,
esta manifestação também revela de forma irrefutável a autonomia do ser.
Este raciocínio cristaliza a autonomia do homem por intermédio do ateísmo de
Sartre, pois se por um lado para justificar seu ateísmo ele radicaliza a liberdade, ser
ateu corrobora para demonstrar que Sartre constitui o homem em liberdade, como
em autonomia. Não seria possível colocar Sartre a serviço do cristianismo, embora
seu rompimento com a igreja seja conseqüência de sua postura como fundador de
sua corrente.
Todavia, por dentro de seu pensamento, ao procurar elementos a dar
embasamento a tese em questão, o respeito a seus objetivos nos instrumentaliza
com o conhecimento que faz premente para justificar os fins perseguidos, Sartre não
está preocupado em fazer uma metafísica do para si e do mundo, nem tão pouco
enveredar para o labirinto da psicologia. O homem, como já verbalizado como centro
de sua atenção para a ser descrito subjetivamente em termos de conduta dentro do
mundo a partir de sua existência.
Isso nos leva a crer que o pensamento de Sartre não pode ser tido como uma
panacéia para o mundo, mas a partir dessa acepção de mundo e objetivo enquanto
pensado, possibilita o reconhecimento de uma realidade imanente ao homem, a
realidade da autonomia na qual está o homem enquanto liberdade como fluxo
perpétuo de sua existência frente a Deus.
O mundo de Deus não é o mundo do para si de Sartre, pois, caso Sartre
pretendesse façanha diversa, o para si jamais seria objeto de sua reflexão, tudo
seria tão somente em si, o para si é presença, é moral, é liberdade é autonomia que
se faz em uma dialética externa do ser, a partir do seu ser que é pura negação é um
104
ser do nada. Sartre não precisa de Deus para salvar sua corrente existencial,
somente precisa do homem em quanto existência o qual é auto suficiente para existir
e construir o seu ser.
Por isso, estabelecer dois mundos e ao mesmo tempo colocar em cada um
desses mundos o ser que nele deve residir, se revela curial, na medida em que
Sartre ilustra de forma clara em sua obra magna O Ser e o Nada que todas as
maneiras de manifestação do para si demonstram sua liberdade e nesta, a ação do
para si radicalmente registra sua autonomia.
Esta afirmação não parte de uma objetivação da subjetivação do para si
enquanto existente, mas ao contrário das linhas outrora trilhadas até este momento
podemos obter de forma meridiana e evidente uma descrição objetiva do para si
enquanto ser fenomenologicamente advindo do seu nada e ontologicamente
perfilhado no mundo a partir de uma estrutura singular propiciada pelo
existencialismo que explica o para si no contexto de uma realidade sensível,
diametralmente distante da metafísica transcendental, embora a guisa de informação
possamos dada a unção polissêmica das palavras tê-lo como metafísico ao explicar
o para si como consciência negativa máxime na transcendência do ego.
Houve então, pelo aspecto de fundo esmiuçado a certeza de que a missão
proposta conseguiu superar o abismo das palavras e penetrar de forma sutil na
questão da autonomia do ser distante de Deus a partir do ponto de vista sartreano,
considerando o êxito da explicação do para si enquanto existência no mundo, pois,
não seria seguro conduzir Sartre a explicar a essência, quando seu pensamento
descarta literalmente esta possibilidade diante de sua peculiar estruturação no
campo do existencialismo.
A autonomia perseguida teve seu estabelecimento radicalmente posto como
uma forma de dar ao para si absoluta singularidade, o para si se mostrou justificar
este atributo por ser um ser em ação, em exercício enquanto detentor de uma
liberdade gratuita indeterminada, soberana e fundadora de toda realidade do homem
coporeificado dentro de um lapso temporal que o cristaliza e o faz ser histórico
demarcando sua essência oriunda da existência.
A liberdade do para si consagra sua autonomia em todos os sentidos,
justificando o divórcio com qualquer doutrina que venha a pretender explicar a
existência do para si, inclusive Deus, por ser um falso conceito ao existencialismo.
105
Uma inferência no mínimo lógica, que detêm autenticidade por força das
razões apresentadas as quais amparam a totalidade do pensamento artesanalmente
costurado a partir de Sartre, o resgate do pensamento deste pensador fez com que
ele saísse da hibernação e nos trouxesse o legado a verdade que ali repousava.
Sua envergadura literária é de seu tempo, é de nosso tempo, ela é atual,
comprometida e compromissada com a reflexão que se arraiga em nossa
contemporaneidade no sentido real de certificar que o homem é, no sentido de
existir, é mais do que isso, ele goza de uma autonomia distante de um nome, de
uma falsa e pedante verdade cultivada na história e que jamais esteve imanente ao
homem chamado Deus.
106
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