Canadá. A primavera do Quebec

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Canadá. A primavera do Quebec
JUVENTUDE
Canadá
A Primavera
do Quebec
CLARA SARAIVA Y VINÍCIUS ZAPAROLI (PSTU-BRASIL)*
N
o dia 17 de março de 2011, o exprimeiro ministro do Quebec,
Jean Charest, anunciou o reajuste das taxas anuais de matrícula nas
universidades da província. A proposta
do governo era aumentar as taxas de US$
2.168 para US$ 3.793, em cinco anos. Ou
seja, um acréscimo de 75%.
A decisão do governo do Partido Liberal do Quebec acarretou uma série de
mobilizações, que culminaram na histórica greve estudantil, deflagrada em 13
de fevereiro de 2012. Os números da Polícia de Montreal dizem que ocorreram
170 protestos na cidade desde o início da
luta, com marchas de dezenas de milhares de estudantes todos os meses.
O movimento estudantil conquistou o
apoio e a adesão da maioria da população, transformando sua luta na maior
mobilização popular do país desde o
pós-guerra. Os liberais no poder tentaram, por meio da repressão, silenciar e
desmobilizar os estudantes. A Lei 12,
aprovada pela Assembleia Nacional do
Quebec, previa a restrição do direito à
manifestação e à organização políticas,
além de multas aos estudantes grevistas.
O impacto da greve resultou na queda
vertiginosa da popularidade de Charest,
que convocou eleições provinciais antecipadas para o dia 4 de setembro, com o
intuito de renovar seu mandato. No entanto, o tiro saiu pela culatra e as eleições provinciais do Quebec foram
vencidas pela oposição, o Partido Quebequense, de orientação separatista.
Assim que assumiu o mandato, Pauline Marois, a nova primeira ministra,
pressionada pela força do movimento,
decretou o congelamento das taxas
anuais das matrículas universitárias e revogou a maior parte da Lei 12. Uma
NOVEMBRO DE 2012
grande vitória dos estudantes e do povo
do Quebec que conseguiram juntos, depois de meses de aulas paralisadas, de
protestos radicalizados e enfrentamentos
com a Polícia, barrar esse grande ataque
aos jovens da província.
Por que lutaram os estudantes
do Quebec?
O Quebec é a província mais rica e populosa do Canadá, contando com mais
de sete milhões de habitantes. Com mais
de 80% de cidadãos francófonos, o Quebec é a única província de maioria francodescente do Canadá. A província é de
tradição conservadora e católica. Para se
ter uma idéia, a Igreja controlava todo o
sistema educacional até o final da década de 50, quando menos de 3% dos jovens francófonos tinham acesso ao
ensino superior.
Depois de vários anos de domínio do
partido conservador União Nacional (de
1930 a 1959), a chegada do Partido Liberal do Quebec ao poder, em 1960, desencadeou uma onda de reformas
econômicas e sociais de caráter progressista e nacionalista. Esse período é conhecido pelo nome de “Revolução
Tranquila”, quando cresceram as medidas de controle estatal da economia, sobretudo através da nacionalização da
produção e da distribuição de energia
elétrica.
Nesses anos, os governos liberais se
empenharam em permitir uma relativa
democratização do acesso aos estudos
superiores, com o intuito de gerar uma
elite intelectual e cultural francófona. As
principais medidas na área da educação
foram o congelamento das taxas de matrícula, a criação dos Colégios de Ensino
Geral e Profissional e a formação de uma
rede de Instituições de Ensino Superior,
a partir da Universidade do Quebec. A
província permanece até hoje, mesmo
com todos os ataques, com taxas anuais
de matrícula universitária menores do
que a metade da média nacional.
Atualmente, mais de 80% dos jovens
entre 15 e 24 anos são escolarizados em
tempo integral. No caso do ensino superior, 45% dos universitários são chamados de “primeira geração”, pois nenhum
de seus pais teve o estudo universitário.
No entanto, esse modelo de educação
superior vem sendo atacado permanentemente há décadas, sob o comando dos
mesmos políticos liberais. As matrículas
aumentam progressivamente, principalmente por meio das taxas aferentes, que
tratam do conjunto dos custos administrativos e do ingresso dos alunos nos
centros esportivos e culturais das universidades. O próprio governo Charest já
havia, em 2007, realizado um aumento
do valor das matrículas de US$ 500, levando as taxas ao seu montante atual de
US$ 2.168.
Segundo o Statistique Canada, os custos com os estudos subiram 200% entre
1995 entre 2005, elevando a proporção
de secundaristas que desistem de ingressar no ensino superior. Dois terços dos
universitários do Quebec não moram
mais com os pais, 40% não recebem
ajuda financeira da família e 80% estudam e trabalham. Essa situação leva ao
endividamento de milhares de estudantes, quase 60%, que necessitam de empréstimos para custear os estudos1.
O aumento das taxas de matrícula proposto pelo antigo primeiro-ministro, no
início de 2011, agravaria qualitativamente a realidade do ensino superior do
Quebec. Segundo o Ministério da Educa21
JUVENTUDE
ção, o reajuste das taxas poderia bloquear o acesso de sete mil estudantes ao
ensino superior.
Uma geração em luta
por justiça social
Porém, não é só a educação que está
ameaçada no Quebec. Cada vez mais os
serviços públicos tornam-se pagos, as tarifas de eletricidade estão subindo e a lógica da concorrência e da competição já
foi introduzida na gestão dos órgãos públicos.
É evidente, por isso, que as motivações
da luta dos estudantes do Quebec ultrapassaram o aumento das matrículas. O
conflito estudantil só pode ser compreendido como parte da resistência ao conjunto dos ataques que os serviços
públicos do Quebec vêm sofrendo. Existe
um processo permanente de desmonte
dos benefícios sociais que a população
da província adquiriu durante a década
de 60, que está se acentuando com a
evolução da crise econômica internacional.
Essa totalidade do processo político explica a unidade conquistada pelos estudantes com setores importantes da classe
trabalhadora, as centrais sindicais, organizações de pais e de professores, e com
vários movimentos sociais.
Os jovens grevistas contaram com a
ajuda de familiares, artistas e atletas. As
organizações estudantis chamaram o
conjunto da população a participar das
grandes marchas e manifestações, principalmente depois da aprovação da Lei
12, quando as passeatas tornaram-se
mais radicalizadas, com fortes enfrentamentos com a Polícia.
A greve teve um foco claro de combate
ao aumento das taxas de matrícula, mas
representou, além disso, uma resistência
global às políticas do governo Charest.
Por isso, o movimento unificou outros
setores sociais, colocando o futuro da
sua luta nas mãos da população, que
saiu às ruas com panelas todas as noites,
protestando contra a Lei 12 e contra outras arbitragens do governo.
Até o movimento operário se mobilizou em solidariedade aos estudantes. Os
operários da fábrica de alumínio Rio
Tinto Alcan, em Alma, chegaram a se
somar à greve estudantil. Em entrevista
ao principal periódico do Quebec, Le
Journal de Montréal, um dos dirigentes
operários disse: "Nós nos manifestamos
contra a obra de Charest. Chegou a hora
da voz do povo se fazer ouvir. Nós queremos denunciar a venda da eletricidade
estatal à Hydro-Québec, mas também
nossa solidariedade aos estudantes. O
conflito é um conflito da sociedade contra o governo"2.
Os estudantes do Quebec lutaram não
só contra a mercantilização da educação
e pelo direito ao conhecimento, mas
também por justiça social. A grande
greve estudantil que polarizou a sociedade foi, sem dúvida, um elemento fundamental de politização de toda uma
geração.
A Coalizão Ampla que dirigiu a greve
“Enquanto estão florescendo em todos
os lugares novos espaços democráticos,
eles devem ser usados para continuamente pensar um novo mundo. Nós não
vamos pagar em declaração de princípios, mas em ação: se nós hoje fazemos
um chamado à greve social é para
amanhã encontrar a população do Quebec inteira na rua. Juntos, construiremos
o novo. Nós somos o futuro!”3. Assim
termina o manifesto da Coalizão Ampla
da Associação pela Solidariedade Sindical Estudantil (CLASSE), principal direção da mobilização estudantil.
O manifesto reflete uma organização
estudantil forjada no calor da luta, forte
e representativa, fundamental para dar ao
movimento um caráter democrático e totalmente independente do governo provincial. A CLASSE é um comando
ampliado da greve, impulsionado pela Associação pela Solidariedade Sindical Estudantil (ASSE), que permitiu que os
estudantes de base determinassem os
rumos de sua luta, através da democracia
direta do movimento estudantil, por meio
das assembleias gerais e congressos.
A ASSE foi a única entidade estudantil
que boicotou o “encontro de parceiros da
educação”, o qual preparou os ataques do
antigo governo liberal. Um verdadeiro espaço de cooptação do movimento, com
representantes da administração das universidades, da iniciativa privada, do movimento sindical e do movimento
estudantil.
A constituição de um organismo dirigente da greve, baseado numa concepção
de movimento estudantil combativo, independente e democrático, é uma grande
conquista dos estudantes do Quebec.
Ainda mais porque há uma particularidade no movimento estudantil da província.
Desde os anos 80, as entidades estudantis são enquadradas pela legislação
enquanto associações de alunos e estudantes e, por isso, funcionam com uma
lógica parecida aos sindicatos de trabalhadores. Cada aluno deve, obrigatoriamente,
pertencer
e
contribuir
financeiramente a uma Associação, e esta
deve pertencer a uma União. Todos os estudantes dispõem supostamente do direito de voto nas assembleias, que
funcionam por maioria simples.
Assim, as entidades estudantis são
muito fortes, representativas e bem organizadas, além de contar com um bom financiamento, seguro e regular. Tais
condições materiais privilegiadas e estáveis pressionam as entidades estudantis
a se distanciarem da base e procurarem
sempre uma política de conciliação com
os governos.
Porém, a forte mobilização estudantil
questionou essa política de conciliação da
maioria das direções do movimento e impulsionou o crescimento de direções alternativas, primordialmente a CLASSE,
que se organiza com a seguinte estrutura:
O Partido Quebequense capitalizou
eleitoralmente o descontentamento
estudantil.
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CORREIO INTERNACIONAL
JUVENTUDE
“O funcionamento da CLASSE se assenta
nos seus congressos, onde são decididas
de forma coletiva as grandes orientações
do movimento. No seio do congresso da
CLASSE, todas as associações estudantis
têm o direito de voto equivalente, seja
membro ou não da ASSE (...) O funcionamento da CLASSE é baseado na democracia direta: são os estudantes que, através
de suas assembleias gerais, tomam posições sobre questões importantes. Depois,
as decisões são debatidas no congresso
com todas as associações membros”4.
A luta continua:
ensino superior gratuito já!
A greve terminou devido ao atendimento de suas principais reivindicações,
pelo novo governo que tomava posse. Todavia, a luta continua e tende a se estender, principalmente porque a primeira
ministra Pauline Marois pretende atrelar
o valor das taxas de matrícula aos índices
de inflação.
Enquanto isso, o movimento estudantil
se prepara e se reorganiza para seguir defendendo suas bandeiras históricas, acumuladas desde a década de 60, de
educação superior gratuita, livre de todas
as taxas e da influência das corporações
econômicas privadas. Esse é o único programa que pode garantir o direito ao ensino universitário a todos e todas.
Agora, o atual governo, do Partido Quebequense, está chamando uma Cúpula da
Educação para debater o futuro das universidades do Quebec, composta por 1/3
de estudantes, 1/3 de representantes do
governo e 1/3 de organizações da “sociedade civil”. Estes setores que o novo governo chama de “sociedade civil” não são
nada além de empresários e representantes da iniciativa privada.
Um dos porta-vozes da CLASSE, Jérémie Bérdard-Wien, explica de que forma
os estudantes devem encarar essa iniciativa do governo: “Nós devemos, primeiramente, nos assegurar de que a Cúpula não
seja falsa, de que não seja moldada pelos
administradores das universidades e pelo
setor privado. São eles que o ministro da
Educação, Pierre Duchesne, convidará à
cúpula. Devemos também procurar outros
participantes para discutir seus próprios
planos e, audaciosamente, juntá-los sob a
bandeira: educação livre e gratuita”5.
ventude. Na Europa, os planos de austeridade e os ataques aos direitos sociais
impedem qualquer perspectiva das gerações de hoje desfrutarem das mesmas
condições de vida de seus pais.
As revoluções do Norte da África e do
Oriente Médio continuam evoluindo.
Agora, a Primavera Árabe está em solo
sírio. Mesmo com todo o massacre que o
governo Assad está realizando, com dezenas de milhares de mortos, os rebeldes
começam a tomar a cidade de Aleppo.
Mesmo nos países onde há crescimento econômico, já começam a se esboçar sinais de desaceleração. Com o
objetivo de se preparar para dificuldades
econômicas no futuro, os governos começam a aplicar medidas anticrise, cortando
os gastos públicos das áreas sociais e atacando, especialmente, a educação.
Todos esses processos econômicos e
sociais são, essencialmente, políticos.
Desenvolvem-se no campo da luta de
classes das mais variadas formas, como
greves gerais, marchas, revoluções democráticas e até guerra civil. Porém, existe
um elemento comum a todos eles: o
papel protagonista da juventude. Novos
movimentos juvenis surgem a cada momento, como resposta à burocratização
das organizações tradicionais, dando expressão à insatisfação de milhões de estudantes e jovens trabalhadores.
A Primavera do Quebec é mais um capítulo dessa resistência. Os estudantes da
província se reconhecem nos jovens em
luta na Europa e no resto do mundo. A
referência é clara e vista por todos nos
cartazes, nas canções e nos métodos de
luta.
A greve estudantil do Quebec é, dessa
maneira, uma síntese que combina elementos dos movimentos amplos de juventude, como o Occupy Wall Street e os
Indignados espanhóis, com elementos
das lutas estudantis tradicionais contra a
mercantilização da educação, como as
mobilizações dos estudantes do Chile e
a própria greve nacional da educação no
Brasil.
Para nós da LIT, a maior lição desse
processo é a possibilidade da unidade
concreta, baseada num programa de reivindicações comuns e na democracia de
base, entre estudantes e trabalhadores. A
experiência do Quebec deve ser estudada
pelos ativistas de todo o mundo e deve
servir de exemplo.
A fusão do caráter explosivo e criativo
das mobilizações estudantis com os métodos de luta e a energia do proletariado
podem polarizar a opinião pública, sensibilizar as classes médias e colocar em
risco o poder da burguesia. Esse aprendizado, sem dúvidas, será fundamental
para os próximos enfrentamentos contra
as consequências da crise econômica internacional.
* com a colaboração de Thame Gomes
Ferreira e Guilherme Rodrigues
1
Jovens no mundo
todo em defesa da Educação
O aprofundamento da crise econômica
internacional atinge principalmente a juNOVEMBRO DE 2012
http://www5.statcan.gc.ca/subject-sujet/ themetheme.action?pid=1821&lang=fra&more=0
http://www.journaldemontreal.com/2012/05/26/les-lockoutes-dalma-manifestent
3
http://www.bloquonslahausse.com/
4
Idem
5
http://socialistworker.org/2012/10/02/the-tide-turns-in-quebec
2
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