revista 27 nº2

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revista 27 nº2
Revista OABRJ
volume 27, número 2
julho a dezembro de 2011
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25/10/2012, 23:10
R 454
Revista OAB/RJ – n. 1, v. 24 (2008).
Rio de Janeiro: Ordem dos Advogados do Brasil/ Rio de Janeiro,
2008.
v. 1, n. 24.
Título anterior v. 1 (1975 ) - v. 23 (1986)
Semestral.
ISSN: 1984-2627.
1. Advocacia 2 . Direito – Periódicos I – Centro de Documentação
e Pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil – Rio de Janeiro.
CDD - 340.05
CDU - 34(05)
Revista OABRJ
Av. Marechal Câmara, 150 - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20020-080
Telefones (21) 2730.6525 / (21) 2272.2055
www.revistaoabrj.com.br
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Revista OABRJ
Publicação semestral da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Rio de Janeiro
Política Editorial
Na perspectiva de ampliar o diálogo entre os intérpretes do Direito, em suas
múltiplas dimensões, a Revista OABRJ é editada pela Seccional do Estado do Rio
de Janeiro, tendo como objetivo disseminar a produção qualificada e competente
da advocacia nacional, consoante avaliação qualitativa realizada de modo
independente por seu Conselho Editorial. De periodicidade semestral, tem sua
estrutura composta por seções diversas, nas quais serão publicados artigos
científicos, doutrina jurídica, análise da jurisprudência, pareceres, petições e outros
trabalhos destacados realizados na prática da advocacia, além de notícias da área.
A Memória da Advocacia também será prestigiada, com o resgate da trajetória de
vida e profissão de profissional destacado. As opiniões emitidas são de inteira
responsabilidade de seus respectivos autores, não expressando necessariamente
a opinião da Diretoria da OABRJ.
Diretoria Estatutária
Presidente
Wadih Nemer Damous Filho
Vice-Presidente
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Secretário-Geral
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Secretário-Geral Adjunto
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Tesoureiro
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Conselho Consultivo do Centro de Documentação e Pesquisa
Alexandre Barenco Ribeiro
Gabriela Muniz Pinto
Joselice Aleluia Cerqueira de Jesus
Ricardo-César Pereira Lira
Rosângela Lunardelli Cavallazzi
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Editoras
Daniele Gabrich Gueiros
Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Conselho Editorial
Antônio Celso Alves Pereira
Carlos Roberto Barbosa Moreira
Carlos Roberto Siqueira Castro
Claudia Lima Marques
Cláudio Pereira de Souza Neto
Cristina de Cicco (Universidade de Camerino, Itália)
Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux
Erik Jayme (Universidade de Heidelberg, Alemanha)
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Gilberto Bercovitch
Gisele Guimarães Cittadino
Gilles Paisant (Universidade de Savoie, Chamberry, França)
José Geraldo de Sousa Júnior
José Ribas Vieira
Luis Alberto Warat (Universidade de Buenos Aires, Argentina) (in memoriam)
Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca
Mario G. Losano (Universidade Del Piemonte Orientale, Itália)
Miguel Lanzellotti Baldez
Paulo Eduardo de Araújo Saboya (in memoriam)
Ricardo-César Pereira Lira
Ricardo Lorenzetti (Universidade de Buenos Aires, Argentina)
Ronaldo Coutinho
Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Tercio Sampaio Ferraz Junior
Vicente Barreto
Wadih Nemer Damous Filho
Conselho Científico
Alexandre Barenco Ribeiro
Carlos José de Souza Guimarães
Daniela Ribeiro Gusmão
Daniele Gabrich Gueiros
Flavio Villela Ahmed
Gabriela Muniz Pinto
Marcello Augusto Lima de Oliveira
Maria Antônia da Conceição Silva
Secretaria
Débora Fortunata Bastos Rodrigues
Revisão e projeto gráfico
Claudio Cesar Santoro
Capa
Thiago Prado
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Sindicato dos Advogados do Rio de Janeiro
Diretoria
Presidente
Álvaro Sérgio Gouvêa Quintão
Vice-Presidente
Naide Marinho da Costa
1° Secretário
Charles Soares Aguiar
Secretário Adjunto
Luiz Alexandre Fagundes de Souza
Tesoureiro
Claudio Goulart de Souza
Procurador
Guilherme Peres de Oliveira
Diretores
Aderson Bussinger Carvalho, Adilza de Carvalho Nunes, Anley Sleyman da Costa,
Antonio Erlan Carneiro de Alencar, Antonio Silva Filho, Carlos Henrique de
Carvalho, Cathelen Vilaça Gromoski, Clito Lugão da Veiga, Custódio Luiz Carvalho
de Leão, Jansens Calil Siqueira, Jonas Lopes de Carvalho Neto, Jorge Luiz Cardoso
da Cruz, Juan Camilo Avila Uribe, Matheus Vieira de Almeida Fereira, Myrna da
Luz Almeida Cardoso da Cruz, Nilson Xavier Ferreira, Ricardo Oliveira de Menezes
e Tito Mineiro da Silva.
Conselho Fiscal Efetivo
José Antônio Galvão de Carvalho, Paulo Renato Vilhena Pereira, Sandra Cristina
Machado. Suplente: Marina Burges.
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Editorial
“Como a prerrogativa essencial da dignidade é a liberdade, eu trairia
minha fé e minha própria razão de ser, se calasse ao ver a liberdade
ofendida ou renegada.” (Sobral Pinto, Revista Visão, 16 dez. 1987)
A OAB/RJ este ano homenageia o jurista Sobral Pinto, que também
passa a dar nome à sede da Seccional. O lançamento deste número da Revista
OABRJ coincide com o do filme Sobral – o homem que não tinha preço, que
contou com o merecido apoio da OAB/RJ.
Neste número, analisam-se o paradigma do Estado de Direito e sua efetivação, os desafios a serem superados para a democratização das relações de
trabalho, a problematização das transformações urbanas na Zona Portuária
do Rio de Janeiro, destacando os conflitos urbanos simbólicos, centrados nos
Morros da Conceição e da Providência, e a questão ambiental, com focos diferenciados, na biodiversidade e no etnodesenvolvimento. São analisadas ainda
a necessidade da fixação de limites e possibilidades do uso das biotecnologias
na persecução penal, e questões referentes ao direito de convivência familiar.
Em comum, a preocupação com soluções democráticas, participativas, com o
respeito à alteridade, preocupação tão cara a Sobral.
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Em mais de uma oportunidade, destacamos que Sobral doou seu conhecimento, sua coragem e sua fé em defesa do Estado Democrático de Direito.
Nossa entrevistada, Eny Moreira, advogada, companheira de trabalho de Sobral
por longos anos, revelou um pouco de suas histórias e das histórias da militância deste grande jurista.
Lembramos que a Medalha Sobral Pinto, instituída na OAB/RJ, foi conferida neste ano de 2012 para 32 advogados do estado do Rio de Janeiro com
mais de 50 anos de advocacia. Nos tempos atuais, marcados pela ausência de
compromisso com as instituições e com os homens, homenagear Sobral Pinto
significa não só reconhecer o seu valor mas reencontrar o nosso caminho.
Rio de Janeiro, outubro de 2012.
Wadih Damous
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Sumário
MARCOS CONCEITUAIS DO CAMPO JURÍDICO,
11
Cipriana Nicolitt, 13
O paradigma do Estado de Direito
Elida Séguin, 41
Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento
Flávio Ahmed, 69
Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização
sustentável
Rosângela Lunardelli Cavallazzi, Cláudio Rezende Ribeiro, 95
Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva, 115
Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
Wilson Ramos Filho, Nasser Ahmad Allan, 141
A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum
e a regulação do trabalho no Brasil
DIÁLOGOS ENTRE A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA,
173
Marcela Rodrigues Souza Figueiredo, 175
A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre
o Poder Estatal e o Poder Familiar
FRONTEIRAS COM A PRÁTICA JURÍDICA,
199
Maria Auxiliadora Minahim, 201
Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
MEMÓRIA DA ADVOCACIA,
223
Entrevista com a Advogada Dra. Eny Raymundo Moreira, 225
DIREITO EM REVISTA,
257
Notícias do Centro de Documentação e Pesquisa, 259
NORMAS DE PUBLICAÇÃO,
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MARCOS CONCEITUAIS DO
CAMPO JURÍDICO
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O paradigma do Estado de Direito
Cipriana Nicolitt
Como estudar o Estado? Esta é uma questão que ronda todos os que
partem para buscar uma definição, uma sistematização sobre este ente abstrato 1.
Embora em um primeiro momento possa parecer uma tarefa simples, sob o
plano metodológico presume um esclarecimento sob o ponto de vista conceitual, objeto de estudo, qual seja, o próprio Estado. Com efeito, o termo Estado
pode ser utilizado em diferentes níveis. Garantidor e motor da organização
política, ele encarna o olhar da autoridade suprema. Autoridade esta que se
exerce sobre determinada população, geralmente em um território delimitado, através do clássico monopólio do exercício da “violência legítima”, segundo Weber – se é que a violência em algum momento pode ser definida como
tal.
De um ponto de vista histórico, na Europa, o termo Estado se difunde a
partir do Renascimento, contudo, é com os Tratados de Vestfália, de 1648, que
põem fim às guerras religiosas, que podemos dizer que o Estado Moderno
nasce. Outrossim, dadas as diferentes realidades que comportam e sustentam
1
Nesse sentido, Curtis (2012), do Departamento de Sociologia da Universidade de
Carleton, Ottawa.
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 13-40, jul./dez. 2011
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Cipriana Nicolitt
o Estado, o limite espaço-temporal reveste-se aqui, em nosso sentir, de importância secundária.
Tradicionalmente, a especificidade do Estado se estabelece em oposição
a uma realidade distinta, normalmente a sociedade civil. Assim, a formação
do Estado nacional constitui em certa medida a própria formulação ou reformulação da sociedade civil. A tese de Jürgen Habermas sobre a colonização
interna no espaço da formação do Estado Europeu ao longo do período seguinte à Segunda Grande Guerra mostra que os governos deflagraram lutas de
classes e criaram novas formas de “estandartes” políticos graças às políticas de
apoio social que lhes permitiram retornar ao campo político.
Ao analisar o paradigma do Estado de Direito, por obediência ao critério
metodológico, claro se mostra como pressuposto uma análise em torno do
que poderia ser considerado Estado de Direito. Nesse sentido, buscaremos
apresentar tal ente em uma análise nos planos terminológico, estrutural e
conjuntural. Isso se explica, uma vez que não raro tais planos não estão necessariamente entrelaçados ou dialogando. O Estado de Direito se manifesta para
além da Teoria Constitucional. A realidade nos comprova que a análise de tal
expressão não deve se esgotar em uma biblioteca. Algo está acontecendo e
não podemos deixar de tentar dar respostas a algumas questões aparentemente
controversas que a vida real revela.
Pretendemos uma reflexão sobre os limites e dimensões do Estado contemporâneo, que, embora celebre sua vinculação – ao menos no mundo ocidentalizado – com os direitos humanos e com o chamado Estado de Direito,
não raro dá mostras de ainda permanecer, em plena atualidade, preso à velha
lógica maquiaveliana do poder. “O Estado moderno é o terreno, senão o agente,
de males extraordinários, como, por exemplo, Auschwitz e o Gulag, crimes
que não precisam ser recontados” 2.
Dalmo de Abreu Dallari 3 explica que a denominação Estado aparece pela
primeira vez em 1513 no Príncipe de Maquiavel, passando a ser usada pelos
italianos sempre que queriam relacionar ao nome de uma cidade a sua posição
de independente. Assim, o nome Estado, “indicando uma sociedade política,
só aparece no século XVI” 4. Ainda na esteira dos ensinamentos de Dallari,
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2
Morris (2005, p. 33).
3
Dallari (1998, p. 51).
4
Ibid.
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O paradigma do Estado de Direito
algumas são as teorias que buscam explicar o aparecimento do Estado, que
podem ser reduzidas, basicamente, a três posições fundamentais 5: 1. O Estado
sempre existiu, sendo ele um elemento universal na organização social humana;
2. O Estado foi constituído para atender às necessidades e conveniências de
grupos sociais, logo não houve concomitância na formação do Estado em diferentes lugares, uma vez que o requisito para seu aparecimento eram as condições concretas de cada lugar; 3. O conceito de Estado é histórico concreto, o
que implica dizer que surge com a idéia e a prática da soberania, o que só
ocorreu no século XVII.
Assim, podemos dizer que dois grandes blocos de teorias se formam
buscando explicar a formação originária do Estado, quais sejam, as teorias
naturais e as contratualistas. As primeiras afirmam que a formação do Estado
foi espontânea, não derivando de um ato voluntário. Podemos agrupar as
mais expressivas da seguinte maneira 6: “origem familial; origem em atos de
força, violência ou de conquista; e origem em causas econômicas ou patrimoniais”. Já as teorias contratualistas apontam para a vontade dos homens como
fator de criação dos Estados.
A teoria não contratualista ou natural sobre a formação do Estado que
mais teve destaque foi a que lhe atribui uma origem econômica ou patrimonial.
Alguns autores mencionam que Platão teria indicado esta à formação do Estado
quando assim se expressou: “Um Estado nasce das necessidades dos homens;
ninguém basta a si mesmo, mas todos nós precisamos de muitas coisas” 7. Entretanto, os autores que mais se destacaram foram Marx e Engels. Este, em sua obra
A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, além de negar que o
Estado tenha nascido com a sociedade, afirma que ele “é antes um produto da
sociedade, quando ela chega a determinado grau de desenvolvimento” 8.
O estado selvagem, considerado por Engels a infância do gênero humano,
é sucedido pelo estágio da barbárie, que tem como marco a utilização da cerâmica,
bem como a domesticação e criação de animais. Com o surgimento do sedentarismo, sedimentação dos povos em territórios, buscou-se evitar um próximo
caos, e, assim, uma nova instituição era reclamada: o Estado; nesse sentido:
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5
Ibid., p. 52.
6
Ibid., p. 54.
7
Platão. A República. Livro II. Diálogos.
8
Engels (1997, p. 43).
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A riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as
antigas instituições das gens são pervertidas para justificar-se a aquisição
de riquezas pelo roubo e pela violência. Faltava apenas uma coisa: uma
instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra
as tradições comunistas da constituição gentílica. [...] uma instituição
que, em uma palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade
em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não
possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda.
E essa instituição nasceu: inventou-se o Estado. 9 [Grifo nosso]
A crença da origem do Estado dessa forma representa importantes reflexos da teoria marxista sobre ele: a sua rotulação como objeto da burguesia
para exploração do proletariado e a afirmação de que, não tendo existido nos
primeiros tempos da sociedade humana, poderá ser extinto no futuro, uma
vez que se trata de uma criação artificial para a satisfação dos interesses de
classes dominantes, a minoria.
Assim, Norberto Bobbio afirma que, malgrado Marx não ter desenvolvido
uma obra específica sobre Teoria do Estado, pode-se reconstruir seu pensamento sobre o mesmo por meio das menções esporádicas em suas obras de
economia, história e política; nesse sentido 10:
Para reconstruir o pensamento de Marx sobre o Estado é preciso, portanto, recorrer às indicações esparsas com que nos deparamos nas obras
econômicas, históricas e políticas [...] ainda que não exista nenhuma
obra de Marx que trate especificamente do problema do Estado, também
não existe obra sua de que não se possam extrair, sobre este mesmo
problema, passagens relevantes e esclarecedoras.
Arremata Bobbio 11:
Marx considera o Estado – entendido como o conjunto das instituições
políticas, no qual se concentra a máxima força imponível e disponível em
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9
Ibid., p. 24.
10
Bobbio (2006, p. 151).
11
Ibid., p. 155.
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uma determinada sociedade – pura e simplesmente como uma superestrutura com respeito à sociedade pré-estatal, que é o lugar em que se formam
e se desenvolvem as relações materiais de existência e, enquanto superestrutura com respeito à sociedade estatal, que é o lugar em que se formam e se
desenvolvem as relações materiais de existência, e enquanto superestrutura como algo destinado a desaparecer na futura sociedade sem classes.
Podemos afirmar que, para Marx, o Estado é o aparelho ou conjunto de
aparelhos dos quais o determinante é o repressivo, cuja função principal é,
pelo menos em geral e exceção feita a alguns casos excepcionais, impedir que
o antagonismo degenere em luta perpétua, não mediando os interesses das
classes opostas, mas reforçando e contribuindo para manter o domínio da
classe dominante sobre a classe dominada 12. Marx afirma, em A Ideologia
Alemã, que o Estado “nada mais é do que a forma de organização que os burgueses se dão por necessidade, tanto externa quanto internamente, a fim de
garantir reciprocamente sua propriedade e seus interesses” 13.
Assim, das teorias que afirmam que o surgimento do Estado foi natural,
involuntário, destacamos aquela segundo a qual o mesmo surge em causas
econômicas ou patrimoniais. Nela, Marx e Engels podem ser apontados como
autores de referência.
Outrossim, existem teorias que não compatibilizam o surgimento do
Estado a uma conseqüência natural, pelo contrário, vislumbram no Estado a
celebração do racionalismo da sociedade que, temendo ser destruída, acorda a
criação de um ente abstrato que tutelaria sua existência. Nesse sentido, são as
lições de Thomas Hobbes 14:
A causa final, fim ou desígnio dos homens (que apreciam, naturalmente,
a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir a restrição a si
mesmos que os leva a viver em Estados, é a preocupação com sua própria conservação e garantia de uma vida mais feliz. Ou seja, a vontade de
abandonar a mísera condição de guerra, conseqüência necessária (conforme dito anteriormente) das paixões naturais dos homens, se não
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12
Nesse sentido, ibid., p. 157.
13
Marx e Engels (1984, p. 56).
14
Hobbes (2009, p. 123).
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houver um poder visível que os mantenha em atitude de respeito, forçando-os, por temor a punição, a cumprir seus pactos e a observar as
leis naturais. (Grifo nosso)
Outros fundamentos da teoria contratualista podem ser levantados,
como o proposto por Locke, que tem no Estado um árbitro imparcial posto
acima das partes, que impede a degeneração natural da sociedade. Jean-Jacques
Rousseau, por sua vez, entende o Estado como expressão da vontade geral,
através da qual cada um, renunciando à liberdade natural em favor de todos os
outros, adquire a liberdade civil ou a moral e é mais livre do que antes 15.
Na teoria, de acordo com Christopher Morris: “os Estados são ‘soberanos’
em seus territórios e reivindicam o monopólio do uso de força legítima dentro
deste espaço” 16.
Passadas essas premissas conceituais mais especificamente sobre o ente
Estado, cabe-nos agora uma análise sobre o Estado de Direito. O sentido que a
expressão Estado de Direito assume no debate filosófico-jurídico é de fundamental importância para identificarmos a área problemática em cujo centro se
põe o Estado de Direito. A complexidade dos sentidos que giram em torno da
expressão não é recente; nesse sentido:
A complexidade do campo semântico “Estado de Direito” não é um
fenômeno recente, mas um traço que caracterizou toda a parábola histórica da expressão: uma expressão inseparável das sociedades e das
culturas nacionais nas quais ela surgiu e foi concretamente utilizada;
uma expressão ligada a projetos e a conflitos político-jurídicos, congenitamente dotada de múltiplos sentidos, sobrecarregada de valores,
ideologicamente imbuída de significados 17.
Assim, ao tratar da categoria Estado de Direito, seria ingênuo levarmos
o leitor para o caminho conceitual e simplificado do senso comum, que se
limita a conceituá-lo como o Estado no qual há o domínio da lei, há a limitação
do Estado pela lei. Não podemos nos furtar de apresentar seus vários significados
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15
Bobbio (2006, p. 152).
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Morris (2005, p. 33).
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Costa, Zolo e Santoro (2006, p. XII).
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que, em certa medida, continuam a pesar sobre nosso presente. Nesse passo,
seguiremos na esteira de Daniel Zolo, para quem a análise histórico-semântica,
embora indispensável, desempenha “papel propedêutico, a investigação sobre
o passado do Estado de Direito não tem um valor autônomo, mas é o horizonte
no interior do qual é preciso estudar o destino atual dessa fórmula teórica”18.
Não buscamos dessa forma oferecer uma reconstrução analítica e exaustiva do
Estado de Direito. Buscaremos, com Zolo, o confronto entre as diversas imagens,
historicamente sedimentadas do Estado de Direito, com a finalidade de fazer
emergir alguns traços recorrentes e característicos desta noção:
São esses traços [...] que oferecem um importante ponto de referência
para o debate atual: de um lado, a idéia – antiga e sempre ressurgente –
de um poder normado e, por isso, vinculado e controlável; de outro, a
exigência recente, rica de internas tensões, de instaurar o nexo funcional
entre o poder e os sujeitos 19.
Assim, podemos afirmar que, uma vez posto em seu horizonte históricogenético, o Estado de Direito destaca o problema da relação entre os sujeitos,
os direitos e o poder.
ESTADO DE DIREITO E O RULE OF LAW
Pode-se dizer que no período que ficou conhecido como o pós-guerra, o
Estado de Direito afirmou-se como uma das fórmulas mais felizes e almejadas
da filosofia política e jurídica do ocidente. Ao lado da expressão européiacontinental “Estado de Direito” (Rechtsstaat, État de Droit, Stato di Diritto,
Estado de Derecho), firmou-se a expressão Rule of Law, típica da cultura anglosaxônica, mas universalmente difundida. A questão que se apresenta é que não
raras vezes as expressões “Estado de Direito” e “Rule of Law” aparecem como
sinônimas, entretanto, não é pacífica sua coincidência conceitual, embora seja
possível sua equiparação desde que depois de uma acurada argumentação,
tanto do ponto de vista histórico como do conceitual 20.
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18
Ibid.
19
Ibid., p. XIV.
20
Nesse sentido, Zolo (2006, p. 5).
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Por óbvio, seria ingênuo pensar em uma definição semanticamente unívoca e ideologicamente neutra de Estado de Direito. Além disso, tal opção
interpretativo-teórica deverá ignorar as teses dos teóricos nazistas que, diferentemente de Carl Schmitt e, às vezes, em polêmica com ele, não rejeitaram
o modelo de Estado de Direito, mas procuraram torná-lo compatível com a
experiência de um estado totalitário. Nesse sentido:
O nationaler rechtsstaat era um Estado de Direito, argumentavam, enquanto “Estado legal” (Gesetsstaat), que fazia uso da “lei” como instrumento normativo “geral e abstrato” e garantia a independência política
do poder judiciário 21.
Assim, escravidão, apartheid, patriarcalismo, proibição do voto feminino, já se fizeram presentes como discurso inserto no Estado de Direito. No
Brasil, por exemplo, apenas após a Constituição de 1946 foi dado às mulheres
o direito de participarem da vida política do País; durante anos a escravidão
foi amparada e incentivada pelo Estado.
Quando falamos em Estado de Direito, fundamentalmente quatro modelos se sobressaem, quais sejam, 1. Rechsstaat alemão; 2. Rule of Law inglês;
3. Rule of Law americano; e 4. État de Droit francês. Pode-se afirmar que os
modelos teóricos que emergem dessas quatro experiências podem ser organicamente recompostos em um modelo geral 22.
O RECHTSSTAAT
A expressão “Estado de Direito” foi utilizada pela primeira vez por Robert
Von Mohl, nos anos 30 do século XIX, no tratado Die Polizeiwissenschaft nach
den Grundstätzen des Rechtsstaates 23, no qual a liberdade do sujeito já é concebida como um objetivo central da ação estatal.
Kant e Humboldt foram inspiradores dessa doutrina, que contrapunha
o Estado de Direito ao Estado Absolutista. O primeiro, preocupado com a
consagração dos direitos fundamentais e, sobretudo, com a limitação do poder.
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21
Ibid., p. 10.
22
Seguiremos, nesse sentido, a metodologia proposta por Zolo (2006).
23
Mohl (1832-1834).
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O paradigma do Estado de Direito
A Teoria dos Direitos Públicos Subjetivos, defendida por Jellinek, ganha espaço,
assim como a Legalidade, entendida como a preponderância da lei tida como
um sistema de regras impessoais, abstratas, gerais e não retroativas.
O Rechtsstaat alemão abandona a soberania popular como responsável
pela criação dos direitos individuais, tese defendida pelos revolucionários franceses. A única fonte originária e positiva de direito é o próprio legislador do Estado,
no qual se expressa a identidade espiritual do povo. Podemos questionar o uso
arbitrário do poder legislativo, mas tal idéia não importava para essa teoria do
Estado de Direito, uma vez que se presume a perfeita coincidência entre vontade
geral dos cidadãos e vontade estatal, legalidade e legitimidade moral. Isso levou
o Estado de Direito alemão a ser reduzido a um puro Estado Legal. Nesse sentido:
O Rechtsstaat não teria sido senão o “direito do Estado” (Staatsrecht),
caracterizado por um conceito de lei puramente técnico-formal (a generalidade e a abstração das normas). Desvinculado de qualquer referência a valores éticos, conteúdos políticos, e não submetido a controles
jurisdicionais de constitucionalidade, esse direito estatal teria se revelado paradoxalmente arbitrário. 24
Assim, podemos afirmar que o Estado de Direito alemão se aproximava
de um Estado legalista, desvinculado de valores efetivos propriamente ditos.
Mais preocupado com a legalidade que com a efetividade ou consagração dos
direitos individuais. Isso pode ser comprovado com a eliminação do texto
constitucional do direito de resistência.
O RULE OF LAW
O que marca fundamentalmente o Estado de Direito inglês é o estabelecimento dos chamados guiding principles, que compreendem: a igualdade jurídica dos sujeitos; sinergia entre o Parlamento e as Cortes Judiciárias; e a
tutela dos direitos subjetivos 25.
O primeiro “princípio-guia” propõe a igualdade jurídica dos sujeitos,
independentemente de sua classe social e das condições econômicas. Embora
24
25
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Zolo (2006, p. 14).
Ibid., p. 15
21
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Cipriana Nicolitt
as desigualdades sociais sejam flagrantes, todos os cidadãos devem ser submetidos às regras gerais da ordinary Law, sobretudo no que tange às sanções penais
e à integridade patrimonial. Nesse sentido: “O vento e a chuva podem entrar na
cabana do pobre, o rei não. Todo cidadão inglês, não importa se funcionário
público ou nobre, está submetido, de igual modo, à lei e aos juízes ordinários” 26.
Podemos afirmar que tal princípio-guia seria o marco do que chamamos
hoje de Devido Processo Legal, de caris tão fortemente inglês.
A sinergia normativa entre o Parlamento e as Cortes Judiciárias é o segundo “princípio-guia”. Ele se traduz no fato de que a decisão sobre um caso
concreto se dá, necessariamente, através da emanação de vontade de duas
fontes igualmente soberanas, o Parlamento e o Judiciário.
De um lado, existe a legislative sovereignty do Parlamento, ou seja, da
Coroa, da Câmara dos Lordes e da Câmara dos Comuns, conforme a
célebre fórmula do King in Parliament; de outro, a tradição da common
law, administrada por juízes ordinários. A primeira é uma fonte jurídica
formal; a segunda, uma fonte jurídica “efetiva”. As Cortes Ordinárias
não têm nenhuma atribuição para controlar os atos do Parlamento e
não podem, certamente, arvorar-se em “defensoras da Constituição”.
Elas são, obviamente, obrigadas à aplicação rigorosa da lei e, todavia,
o são em um sentido muito complexo por estarem igualmente vinculadas
ao respeito dos “antecedentes”, ou seja, da própria autônoma tradição
jurisprudencial. 27
No cumprimento desse segundo princípio-guia, é de se observar a completa soberania da lei no Estado de Direito inglês, seja ela emanada do Parlamento ou da mediação jurisprudencial das Cortes da Common Law.
O último, mas não menos importante, princípio-guia é a tutela dos direitos subjetivos. Essa tutela foi assegurada na história secular do constitucionalismo inglês, muito mais pelo esforço de construção jurisprudencial das
Cortes da Common Law do que pelo Parlamento. Elas exerceram um extraordinário papel de resistência contra as pretensões absolutistas da monarquia, o
que favoreceu o nascimento das “liberdades dos ingleses”:
07.pmd
26
Cf. Hearn (1867), apud Zolo (2006, p. 89-91).
27
Zolo (2006, p. 16).
22
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O paradigma do Estado de Direito
Os próprios atos legislativos como os Habbeas Corpus Acts de 1679 e de
1816 foram precedidos por um longo trabalho jurisprudencial que o
Parlamento, em substância, ratificou. Além disso, as decisões judiciais
desempenharam a função de proteção dos direitos de liberty and property contra o possível arbítrio não apenas da burocracia administrativa
(subordinada à Coroa), mas também do Parlamento. 28
O que marca uma especificidade do Estado de Direito da Common Law
é justamente esta igualdade diante das esferas legislativa e judiciária; o caráter
difuso dos poderes, sobretudo:
Na Inglaterra, o caráter difuso ou diferenciado dos poderes não se deve
a atos de comando do Estado ou da “vontade geral” de uma assembléia
constituinte, expressão “contratualista” da soberania popular. [...] Na
Inglaterra, o Parlamento pode modificar a Constituição em qualquer
momento, e não existe nenhum órgão delegado ao controle da constitucionalidade dos atos legislativos. 29
O Estado de Direito inglês fundamenta-se na tradição, em grande parte
não escrita, baseada nos costumes e na Ancient Constitution, cuja validade é
encontrada não na vontade geral ou do Estado, mas especificamente na sua
própria antiquity que depende da peculiaríssima qualidade de law of the land,
respeitada e transmitida de geração em geração.
Dessa forma, podemos afirmar que o Rule of Law inglês difere substancialmente do “Estado Legislativo” alemão, no qual os juízes, funcionários públicos, se limitam a aplicar a lei emanada do Estado e os direitos individuais já
instituídos pelo Parlamento.
O RULE OF LAW NA VERSÃO NORTE-AMERICANA
Albert Venn Dicey, que é considerado um pensador clássico do direito
constitucional inglês, vislumbrava na estrutura constitucional dos Estados
Unidos um exemplo típico de Rule of Law pelo simples fato de seus fundadores
07.pmd
28
Ibid., p. 17.
29
Ibid., p. 18.
23
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terem se inspirado diretamente nas tradições inglesas. Entretanto, algumas
especificidades marcam o Rule of Law americano, influenciadas, sobretudo,
pelo federalismo republicano de Alexander Hamilton e James Madison, muito
mais próximos da teoria da soberania popular francesa e do primado do poder
constituinte 30. Motivações de caráter religioso, estranhas ao Rule of Law inglês
e ao Rechtsstaat germânico se mostraram presentes. Nesse sentido é o detalhamento de Danilo Zolo 31:
O regime constitucional estadunidense mostrou bem cedo uma precisa
inclinação para soluções inspiradas no liberalismo moderado, revelandose escassamente sensível ao tema da representatividade democrática e
da dinâmica conflitual dos interesses sociais. Ao contrário, foi muito
mais sensível ao tema, que estaria no centro do liberalismo aristocrático
de Alexis Tocqueville, da necessidade de prevenir, em termos formais, a
ameaça representada pelas maiorias parlamentares hostis às liberdades
individuais. E o remédio cogitado, além de um tendencial enrijecimento
da Constituição escrita, foi o recurso à judicial review of legislation e à
atribuição, a partir da sentença do juiz Marshall no processo Marbury v.
Madison, de 1803, de um controle de constitucionalidade sobre atos
legislativos por parte da Corte Suprema.
Nesse contexto, percebe-se que o poder do Parlamento foi sensivelmente
diminuído no modelo de Estado de Direito do Rule of Law americano. Entendeu-se que os juízes, mais técnicos e especialistas, poderiam melhor assegurar
a correta aplicação do conteúdo constitucional, através de uma tutela imparcial
e metapolítica dos direitos individuais, ao passo que no Rule of Law inglês a
tutela das chamadas “liberdades inglesas” era confiada à tradição secular da
jurisprudência. Sem contar que, na Inglaterra, assim como no resto do continente europeu, as cartas constitucionais permaneceram flexíveis, à disposição
do legislativo.
07.pmd
30
Cf. ibid., p. 20.
31
Ibid.
24
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O paradigma do Estado de Direito
L’ÉTAT DE DROIT
A reflexão sobre o Estado francês remonta a Jean Bodin sobre o conceito
de soberania. Esta, tida como potência absoluta que se exerce sobre um território e a população. O soberano, por sua vez, pode ser o monarca (solução
preconizada por Bodin) ou pode ser o povo (a “vontade geral” preconizada
por Rousseau). Mas, em ambos os casos, o detentor da soberania está no ápice
da hierarquia e fixa as regras que são aplicáveis a todos. Rousseau, nesse sentido, expôs que “a essência da potência soberana é de não poder ser limitada;
ela pode tudo ou ela não é nada”. É esta idéia de um poder ao qual não se
impõe nenhuma regra que é progressivamente contestada. De acordo com o
pensamento contra-revolucionário, de início, que clama às tradições e aos corpos intermediários do Antigo Regime que limitam a potência do Estado central
e do monarca. Já para os teóricos do direito natural, as leis devem ser conformes
ao direito natural para serem legítimas. A idéia de que a soberania, seja nacional
ou popular, deve se exercer sem limites pode explicar por que na França nenhum
controle de constitucionalidade existiu antes da V República.
A doutrina atribui a Raimond Carré Malberg 32 a formação de uma teoria
sobre o Estado de Direito nas primeiras décadas do século XX (tida como tardia
pela doutrina), no contexto da Terceira República. Essa teoria sofreu clara
influência da teoria alemã e também da norte-americana. Carré Marberg “tenta,
substancialmente, fazer uma síntese entre essas duas experiências que possa
ser aplicada às instituições francesas” 33.
Assim como para os juristas alemães, a tutela dos direitos subjetivos,
para Carré Malberg, é o objetivo central do Estado de Direito, que, para esse
fim, “autolimita” o seu poder soberano, submetendo-o a regras gerais, válidas
erga omnes. Nas palavras do teórico francês:
L’Etat de droit est un Etat qui, dans ses rapports avec ses sujets et pour la
garantie de leur statut individuel, se soumet lui-même à un régime de
droit, et cela en tant qu’il enchaîne son action sur eux par des règles,
dont les unes déterminent les droits réservés aux citoyens, dont les autres
07.pmd
32
Malberg (1920-1922).
33
Cf. Zolo (2006, p. 23).
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fixent par avance les voies et moyens qui pourront être employés en vue
de réaliser les buts étatiques. 34
Essa concepção de um Estado submisso ao direito destaca uma dificuldade maior, qual seja, é o Estado que produz o direito ao qual está submetido.
Em outras palavras, se o Estado é soberano, como sua ação pode estar limitada?
Várias são as respostas que podem ser apresentadas. Os teóricos alemães estabeleceram como premissa o conceito de autolimitação: o Estado é soberano,
mas ele aceita, por si só, submeter-se a uma ordem jurídica que ele não pode
decidir sobrepor sob pena de ruírem suas próprias bases de ação. Por sua vez,
a tradição francesa repousa sobre uma aproximação dedutiva. No topo da
hierarquia encontra-se a Declaração de Direitos do Homem, que reconhece
direitos naturais, inalienáveis e até mesmo sagrados; depois estão a Constituição, as leis e os demais textos regulamentares. Nessa perspectiva, é a conformação do conteúdo das leis aos princípios fundadores dos Direitos do Homem
que define o Estado como de Direito. Durante muito tempo, entretanto, a
ausência de controle de constitucionalidade depreciou o acabamento do Estado de Direito, e a França denunciou fortemente a potência parlamentar no
exame da conformidade das leis com a Constituição 35. Hans Kelsen, teórico de
ponta do positivismo jurídico, considera que a fórmula Estado de Direito é
pleonástica, pois as normas jurídicas são necessariamente produzidas pelo
Estado. Para Kelsen, há identidade entre o Estado e o Direito. A produção de
regras de direito não está submissa a restrições de forma (hierarquia das normas
sem consideração de seu conteúdo). De acordo com seu ponto de vista, todo
Estado é um Estado de Direito. Entretanto, Kelsen é levado a afirmar que essa
asserção é verdadeira na teoria; de fato, só podemos falar em Estado de Direito
07.pmd
34
Malberg (1920-1922, p. 140).
35
Na França, o surgimento do Conselho Constitucional pela Constituição de 1958
constituiu uma das maiores inovações. Em 1971, o Conselho Constitucional estendeu sua competência integrando o “bloc de constitutionnalité” ao preâmbulo da
Constituição de 1958 e, por conseqüência, a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, à qual seu preâmbulo fez referência. Se alguns autores consideram
que tal fato referia-se a um progresso do Estado de Direito, outros afirmam que, ao
contrário, essa decisão prendia as instituições “sur la pente glissante du gouvernement des juges”. Nesse sentido, Terré (2000, p. 95).
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no qual os governantes são responsáveis por seus atos, os tribunais são independentes e os cidadãos tenham garantido um determinado número de direitos 36.
DO ESTADO DE DIREITO
Fundamentalmente, um Estado de Direito significa que os poderes públicos devem ser exercidos sobre balizas estabelecidas pelo ordenamento jurídico. Podemos remontar a Platão e a Aristóteles a concepção de um poder
submetido a uma ordem superior. Mas é sobretudo no fim da Idade Média que
ela ganha maiores contornos. De acordo com Bobbio, em tal sistema, os homens
seriam livres porque não seriam submetidos à vontade e caprichos de seus
governantes, mas somente às leis 37. Nos últimos anos, a expressão “Estado de
Direito” conheceu alguma sorte de matizes, nesse sentido:
Apelar-se ao Estado de Direito pode servir, conforme os pontos de vista,
para opor liberdade ao totalitarismo, ou para reivindicar a importância
dos direitos ou, ainda, para exaltar a autonomia dos indivíduos contra
a intromissão da burocracia.
Ao analisar o Estado de Direito, um escorço histórico nos levaria a buscar
as nuanças, ou a fórmula deste no chamado “Stato di diritto” na Itália ou no
“Rechtsstaat” alemão, ou no “État de Droit” francês ou no “Rule of Law” inglês.
Pietro Costa propõe o que ele denomina de pontos cardeais do Estado de
Direito, que devem ser encontrados em todos os seus modelos, independentemente do país no qual o mesmo seja adotado, quais sejam: “o poder político (a
soberania, o Estado), o direito (o direito objetivo, as normas), os indivíduos” 38.
Seriam essas três grandezas que possibilitariam os sentidos do Estado de Direito, uma vez que este se daria através de uma conexão entre Estado e Direito.
Conexão esta que se manifesta, em geral, vantajosa para os indivíduos, nesse
sentido: “O Estado de Direito apresenta-se, em suma, como meio para se atingir
um fim: espera-se que ele indique como intervir (através do direito) no ‘poder’
com a finalidade de fortalecer a posição dos sujeitos” 39.
36
37
38
39
07.pmd
Troper (1992, p. 59).
Bobbio (2004, p. 95-96).
Costa, Zolo e Santoro (2006, p. 96).
Ibid.
27
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27
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Dessa forma, podemos concluir que cumpre ao Estado que se diz de
Direito, proporcionar uma situação de vantagem para o individuo que ocorre
por meio da concretização de um leque de direitos dos quais o indivíduo passa
a ser o titular. A partir de quando?
Blandine Barret-Kriegel, em sua obra L’État et les esclaves, identifica
como origem do Estado de Direito o surgimento dos Estados modernos, organizados e, ao menos em tese, limitados pelo direito, com a primeira afirmação
das grandes monarquias nacionais 40 ; entretanto, embora legítima, estamos
com Pietro Costa no sentido de que é possível atribuir ao problema do Estado
de Direito uma dimensão temporal mais ampla, mais propriamente coincidente com a história político-intelectual do ocidente, uma vez que é nesta que
surge o que, para nós, é uma das temáticas centrais do Estado de Direito, qual
seja, a inevitável tensão (e inevitável conexão) entre poder e direito 41. Tal
autor italiano propõe um corte temporal-circunstancial em três etapas, as quais
exporemos em apertada síntese ao leitor, in verbis:
Proponho uma divisão em três “tempos”, que apresento em ordem de
decrescente proximidade com o nosso tema. O primeiro tempo é a história, em sentido estrito, do Estado de Direito: é uma história que tem
início desde o momento no qual existe a expressão lexical em questão,
quando diante do grande e recorrente problema da relação entre poder,
direito e indivíduo não só se define uma solução peculiar, mas se encontra para ela também um nome correspondente (exatamente, o Estado
de Direito). Existe, contudo, para nossa “fórmula” também uma préhistória: ou seja, os contextos e os tempos nos quais, embora ainda
faltasse o “nome”, já existia a “coisa”, isto é, são reconhecíveis os traços
de uma posição que encontrará no Estado de Direito a sua explícita
formulação. A pré-história do Estado de Direito, como o conjunto das
condições próximas que tornaram possível o seu surgimento, é portanto,
o segundo tempo do nosso acontecimento. Ainda mais atrás abre-se o
terceiro tempo: um tempo no qual a tematização da relação poder/
direito é, sim, rica e completa, mas também culturalmente muito dis-
07.pmd
40
Barret-Kriegel (1989, p. 27 et seq.).
41
Nesse sentido, Costa, Zolo e Santoro (2006, p. 99 et seq.).
28
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tante das visões político-jurídicas que constituíram a precondição (a
pré-história) da expressão (e do conceito) de Estado de Direito.
Outrossim, a teoria constitucional tradicional entende o Estado de Direito como o Estado em que o poder é exercido, em regra, dentro dos limites
constitucionais. Assim, sendo o exercício do poder dentro dos limites constitucionais a regra, essa teoria entende que o poder exercido fora dos limites de
uma Constituição constitui-se como desvio, corrupção e exceção, o que levou
muitos autores a afirmar o surgimento de uma nova categoria constitucional,
qual seja, o Estado de Exceção permanente. Podemos afirmar que a teoria
constitucional sempre justificou a existência das Constituições em razão da
necessidade de se limitar o poder estatal. Nesse sentido, a Constituição seria o
ordenamento supremo do Estado 42, surgindo, então, o Estado de Direito, entendido, em linhas gerais, como o Estado submetido ao império de uma Constituição. São de Canotilho as palavras:
O Estado de Direito cumpria e cumpre bem as exigências que o constitucionalismo salientou relativamente à limitação do poder político. O
Estado constitucional é, assim, em primeiro lugar, o estado com uma
constituição limitadora do poder através do império do direito. 43 [Grifo
do autor]
Essa conceituação representa o triunfo político e doutrinário de ideologias que se impõem desde as grandes revoluções burguesas do século XVIII.
Essas se consubstanciavam numa idéia fundamental: a limitação de uma autoridade governativa 44. Na mesma esteira, segue Jorge Miranda 45, que defende
que ao Estado de Direito não cabe apenas enumerar direitos fundamentais,
mas, sobretudo, garanti-los e promovê-los. Norberto Bobbio 46 esclarece que
“ao longo de toda a história do pensamento político repõe-se com insistência
a seguinte pergunta: ‘Qual o melhor governo, o das leis ou dos homens?’”. O
07.pmd
42
Bonavides (2007, p. 36).
43
Canotilho (2003, p. 98).
44
Bonavides (2007, p. 36).
45
Miranda (2000, p. 195-196).
46
Bobbio (1996, p. 151).
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direito constitucional seria, então, uma técnica neutra de controle e limitação
do poder, que através da separação dos poderes 47 e da declaração dos direitos
fundamentais construiria uma esfera dentro da qual o poder poderia mover-se.
A esfera em questão, evidentemente, possuía uma dimensão substantiva
que foi sendo denunciada como fruto dos interesses da classe dominante,
uma vez que, nas lições de Konrad Hesse 48:
A Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela
não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão
de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em
conta essa realidade. A Constituição jurídica não configura apenas a
expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela
ordena e conforma a realidade política e social. [...].
A Constituição não está desvinculada da realidade histórica e concreta
de seu tempo.
Nessa perspectiva, a crise social do século XX, considerada por Hobsbawm 49
inserta na “era das catástrofes 50”, aguçou a crítica ao modelo liberal individualista de Constituição, fazendo emergir um novo modelo Constitucional 51 e,
conseqüentemente, um novo modelo de Estado. Não houve propriamente
uma substituição no rol das grandes liberdades declaradas nas primeiras Cons-
07.pmd
47
Essa separação, tida na perspectiva não estanque ou exclusiva, uma vez que hoje
se considera a teoria da separação dos poderes tal qual idealizou Montesquieu um
“mito”. Tem-se, na verdade, uma “combinação de poderes”. Nesse sentido, vide
Canotilho (2003, p. 114-115).
48
Hesse (1991, p. 24-25).
49
É de se mencionar o sentimento de perda recentemente deixado pela morte de um
dos maiores historiadores marxistas de nosso tempo, Eric Hobsbawn.
50
Hobsbawn (2011, p. 113).
51
Convém destacar alguns dados trazidos por Hobsbawn: “Em resumo, o liberalismo
fez uma retirada durante toda a era da catástrofe, movimento que se acelerou
acentuadamente depois que Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha em
1933. Tomando-se o mundo como um todo, havia talvez 35 ou mais governos
constitucionais e eleitos em 1920 (dependendo de onde situamos algumas repúblicas
latino-americanas). Até 1938, havia talvez dezessete Estados, em 1944, talvez
doze, de um total de 65. A tendência mundial parecia clara”. (Ibid., p. 115)
30
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tituições, mas somou-se a essas um rol de direitos sociais que demandavam
um novo modelo de Estado.
O novo Estado é um Estado social ou um Estado democrático de direito
comprometido com a promoção de uma justiça social. Esse Estado se agiganta
e passa a dirigir a marcha social, sendo a própria Constituição responsável por
exigir essa postura do poder estatal. O Estado não é apenas garantidor de
contratos, mas também promotor de direitos.
O colapso do socialismo real e o triunfo do capitalismo planetário catalisaram um processo de superação do modelo de Estado social. Catalisaram
porque o modelo de Estado em questão, extremamente custoso, não mais se
justificava em razão da superação da ameaça que representava o mundo socialista. Numa leitura rápida, o fracasso dos modelos socialistas reais contribuiu
para que no mundo capitalista ocidental fosse acelerado um processo de questionamento do Estado social.
Do processo, ainda não terminado, de superação do modelo de Estado
social surgem inúmeras propostas sobre o conteúdo desejável das Constituições e, por conseqüência, o modelo de Estado no século XXI. Essas propostas
aparecem como ondas – as teses neoliberais na última década do século XX e o
discurso ecológico atualmente – que alcançam certa ressonância, mas não parecem tão dominantes como foram os modelos liberais e de bem-estar social
em suas respectivas épocas.
Nesse percurso histórico, as Constituições e os Estados mudaram, mas
o cerne do constitucionalismo permaneceu. Assim:
A noção jurídica e formal de uma Constituição tutelar direitos humanos
parece, no entanto, constituir a herança mais importante e considerável
da tese liberal. Em outras palavras: o princípio das Constituições sobreviveu no momento em que foi possível discernir e separar na Constituição o
elemento material de conteúdo (o núcleo da ideologia liberal) do elemento formal das garantias (o núcleo de um Estado de Direito). Este, sim,
pertencente à razão universal, traz a perenidade a que aspiram as liberdades humanas. O neoliberalismo do século XX o preserva nas Constituições democráticas do nosso tempo, porquanto, se o não acolhesse, jamais
poderia com elas exprimir a fórmula eficaz de um Estado de Direito 52.
52
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Bonavides (2007, p. 37).
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O fio condutor em todos os modelos de Constituição não é um conteúdo
específico, mas um elemento formal de garantia contra os abusos do poder. A
essência de uma Constituição se traduz no desejo de impor ao poder certos
limites constitucionalmente desenhados. Da tentativa de imposição desses
limites nasce uma tensão entre poder e Constituição e uma diferenciação entre
o poder que se exerce sob o império da Constituição e o poder que se exerce
fora da Constituição. Este último, dito como corrupção, desvio ou exceção.
Nos períodos de normalidade constitucional, costuma-se afirmar que a
Constituição prevalece, sendo o exercício do poder fora de seus limites um
desvio ou uma corrupção que deve ser combatida. Os momentos de crise ou
ruptura – em que o poder de fato (exercido fora dos limites constitucionais)
prevalece sobre o desejo constitucional – exigem uma resposta que pode ser
aqui traduzida pela doutrina tradicional como Estado de Exceção 53.
Esse Estado de Exceção teria vez nos momentos em que a Constituição
enquanto norma fundamental estabilizadora das relações sociais estivesse
em perigo ou perdido sua capacidade de controle sobre o poder. Quando a
Constituição não mais consegue domar o poder, quando a Constituição está
ameaçada por um poder de fato metajurídico, então é necessário que fique
suspensa para que um poder aja ao mesmo tempo fora de seus limites e em
nome dos mesmos para lidar com a ameaça ao Estado constitucional.
A idéia de Estado de Exceção se justificaria num paradoxo. Para a preservação da Constituição nos momentos de crise, seria necessário que o Poder
deixasse de se submeter a ela para preservá-la 54.
Ora, uma observação das práticas estatais ao longo do século XX e início
do século XXI levaram muitos a afirmar 55 que as práticas associadas ao Estado
de Exceção tinham se tornado cotidianas, mesmo nos períodos de “normalidade” constitucional. Essa crítica cita como exemplos bem acabados dessa
realidade o Estado Nazista – que teria se desenvolvido em um Estado de Exceção
permanente – e o Estado americano em sua atual guerra contra o terror 56.
07.pmd
53
Cf. Schmitt (2006).
54
Sobre a concepção de ditadura comissária, vide ibid.
55
Nesse sentido, Luiz (2007); Corval (2007).
56
Nesse sentido, foram editados pelo Governo de J. W. Bush o USA Patriotic Acts I e
II e a Military Order em resposta aos atentados terroristas de 11 de setembro.
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Esses Estados teriam assumido técnicas de governo com medidas só
admissíveis num verdadeiro Estado de Exceção 57. Essa percepção teria levado
os críticos a defender a tese de que o Estado de Exceção teria se transformado
numa regra e que, portanto, a teoria constitucional deveria considerar a exceção
permanente como uma categoria fundamental para o correto entendimento
das práticas atuais dos Estados e sua relação com o direito constitucional 58.
Assim, o Estado constitucional estaria sendo dominado por uma série
de práticas não admissíveis a um Estado de Direito, e a exceção passava agora
a ser permanente. A força dessa crítica é evidente na medida em que se consideram as práticas dos Estados em questão. Mas não parece ser o fato de a
exceção ter se tornado regra o ponto a ser descoberto. Não seria a “exceção
permanente” a questão mais fundamental para a crítica ao exercício do “poder
cru” e sua relação passada e atual com as Constituições.
A questão que se apresenta é: existe a relação regra/exceção?
Para falarmos em exceção, obrigatoriamente teríamos de entender que
existe uma regra. Em sua tese VIII, sobre o conceito de história, Walter Benjamin
afirma que:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual
vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê
conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o
real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o
fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último,
em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este
fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos “ainda” sejam possíveis no século XX não é nenhum
espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos
que seja de mostrar que a representação da história donde provém aquele
espanto é insustentável. 59 [Grifos nossos]
07.pmd
57
São exemplos, no Estado norte-americano, as escutas telefônicas, que violam a
privacidade de milhões de americanos; os constrangimentos em aeroportos, a
situação dos imigrantes, dentre outros.
58
Nesse sentido, Corval (2007).
59
Benjamin, apud Löwy (2005, p. 83).
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Benjamin confronta duas “concepções sobre a história”. Concepções
essas que podem ser transportadas para a teoria constitucional quando da
análise da relação entre Constituição e Poder ou da relação entre poder exercido
dentro e/ou fora dos limites constitucionais.
A primeira concepção sobre a história estaria fundada numa doutrina
“progressista” sobre a história e identificaria o Estado constitucional como
um avanço na história da humanidade. Nesse sentido, Michel Löwy, interpretando as teses de Walter Benjamin, é cristalino 60:
Benjamin confronta, aqui, duas concepções da história – com implicações políticas evidentes para o presente: a confortável doutrina progressista, para a qual o progresso histórico, a evolução das sociedades no
sentido de mais democracia, liberdade e paz, é a norma, e aquela que
ele afirma ser seu desejo, situada do ponto de vista da tradição dos
oprimidos, para a qual a norma, a regra da história é, ao contrário, a
opressão, a barbárie, a violência dos vencedores.
Assim, a idéia de que o Estado submetido à Constituição representaria
um passo à frente e de que as práticas assumidas por determinados Estados,
resumidas na idéia de exceção permanente, constituiriam um retrocesso, um
declínio em relação ao Estado de Direito. Desse modo, o Estado de Exceção
permanente, caracterizado no passado pelo Estado nazifascista e no presente
pelo Estado americano e sua guerra contra o terror, deveria ser denunciado
como uma corrupção ao Estado de Direito.
O “espanto” afirmado por Benjamin se deve a uma visão progressista que
considera que mais democracia, mais liberdade e maior controle do Poder constituem uma regra histórica. Se o Estado de Direito desenhado pelas Constituições nos dois últimos séculos constitui um avanço, então a sua transformação
em Estado de exceção permanente deveria ser denunciada como retrocesso.
A outra concepção da história não enxerga o Estado de exceção permanente como retrocesso. O “conceito de história que se dê conta disso” que
deseja Benjamin entende a regra da história como opressão, barbárie e violência dos vencedores 61. Assim, a idéia de Estado de Exceção como momento de
07.pmd
60
Löwy (2005, p. 83).
61
Ibid.
34
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crise do Estado de Direito não faria sentido, pois os elementos caracterizadores
da exceção – autoritarismo, violência, não garantia de direitos fundamentais
etc. – estariam presentes no Estado de Direito.
Não se trata propriamente de negar a idéia de “exceção permanente”,
mas de assumir, a partir de uma perspectiva realista, que a exceção não se
tornou permanente, mas, antes, que a mesma sempre esteve presente, invalidando, dessa forma, a idéia de Estado de Exceção. Agamben arremata bem tal
questão ao afirmar que:
O que ocorreu e ainda está ocorrendo sob nossos olhos é que o espaço
“juridicamente vazio” do estado de exceção (em que a lei vigora na
figura – ou seja, etimologicamente, na ficção – da sua dissolução, e no
qual podia portanto acontecer tudo aquilo que o soberano julgava de
fato necessário) irrompeu de seus confins espaço-temporais e, esparramando-se para fora deles, tende agora por toda a parte a coincidir com
o ordenamento normal, no qual tudo se torna assim novamente possível. 62 [Grifo do autor]
Em outras palavras, a idéia de Estado de Direito sempre cumpriu uma
função ideológica de mascarar uma realidade em que o poder ora se exerce sob
o manto da lei e ora se exerce de maneira crua 63 de acordo com os interesses
em jogo.
Ora, na análise sobre a relação entre Estado de Direito e Estado de Exceção, cabe questionar em que momento histórico a Constituição conseguiu evitar
totalmente o exercício do poder fora de seus limites. E, também, em que momento histórico no Ocidente as Constituições deixaram de ser derrubadas ou
violadas quando a manutenção do sistema exigia tais medidas.
Do exposto, podemos concluir que o Estado de Direito e o “Estado de
Exceção” servem como justificativa para o exercício do Poder que existe para
além das reais possibilidades constitucionais. Na realidade cotidiana, os “abandonados” sofrem ordinariamente os efeitos do poder cru, o discurso do Estado
de Direito serve como ideologia que mascara a realidade do exercício do poder
07.pmd
62
Agamben (2001, p. 44).
63
O “poder cru” é aqui concebido como aquele que é exercido na vida real, fora de
uma delimitação jurídica.
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que existe para além do direito e, com isso, dificulta o exercício de uma resistência que tem na política seu local de atualização.
Sobre o papel do Estado na produção-organização da ideologia, Nico
Poulantzas 64 adverte:
O Estado tem um papel essencial nas relações de produção e na delimitação-reprodução das classes sociais, porque não se limita ao exercício
da repressão física organizada. O Estado também tem um papel específico na organização das relações ideológicas e da ideologia dominante.
O poder da ideologia capitalista reside, justamente, na apropriação do
hábito, individual e coletivo, de vincular a atividade produtiva e seus resultados
à finalidade de autoconservação, associando esta finalidade ao seu oposto,
ou seja, a expansão e crescimento do capital. O capitalismo depende da confiança absoluta da população no Estado ou no componente da superestrutura 65
que mantém, pela violência, as relações de produção que foram violentamente
estabelecidas 66. Como se não bastasse a miséria, o luxo fascina.
Para Poulantzas, a ideologia vai além do conjunto de idéias ou representações, compreendendo também uma série de práticas materiais extensivas
aos hábitos, aos costumes, ao modo de vida dos agentes, e assim enrijece as
práticas sociais políticas e econômicas. Segundo o autor, as relações ideológicas
são essenciais na constituição das relações de trabalho no seio das relações de
produção:
O Estado não pode sancionar e reproduzir o domínio político usando
como meio exclusivo a repressão, a força ou a violência “nua”, e, sim,
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64
Poulantzas (2000, p. 26).
65
Mendes (2009, p. 64), seguindo as deduções de Spinoza: “todas as instituições,
sejam as que instituem e preservam a liberdade, sejam as que fundam a tirania,
parecem ter uma raiz comum: a superestrutura composta pelo direito, pela religião e pela moral”.
66
Muitos autores marxistas recorreram a teorias freudianas sobre a relação entre
cultura e aparelho psíquico. Nesse sentido, Max Horkheimer debate em que medida
o processo de socialização humana constitui “apenas a interiorização ou, pelo
menos, a racionalização e complementação da violência física” (Horkheimer,
1990, p. 182).
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O paradigma do Estado de Direito
lançando mão diretamente da ideologia, que legitima a violência e
contribui para organizar um consenso de certas classes e parcelas dominadas em relação ao poder público. A ideologia não é algo neutro na
sociedade, só existe ideologia de classe 67. [Grifo do autor]
Assim, podemos concluir que vivemos ideologicamente sob o manto de
um Estado de Direito. Em outras palavras, existe uma falsa percepção da realidade quando se fala em regra/exceção. O que existe é o exercício do poder nu
e cru, ora revestido de um viés de legalidade e constitucionalidade, ora não. O
que cabe a nós? Encontrar um espaço de luta no qual seja possível a instauração
do real Estado de Direito, fruto de lutas seculares. Não se trata propriamente
de negar o Estado de Direito: não! Este pode ser considerado uma das grandes
conquistas da sociedade. Mas, antes, criar instrumentos por meio dos quais o
mesmo possa se manifestar de forma mais efetiva.
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Poulantzas (2000, p. 27).
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Cipriana Nicolitt
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RESUMO
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ABSTRACT
O presente artigo visa contribuir para
uma análise sobre a formação deste
ente denominado Estado, que hoje reconhecemos em muitas sociedades, em
especial na nossa, como a matriz de um
Estado de Direito. Apresentaremos
desde aspectos terminológicos até
substanciais sobre o Estado de Direito,
discutindo, por último, a existência da
relação regra/exceção, contemporaneamente debatida na doutrina.
This article aims at providing an analysis of the formation of the State, recognized in numerous societies, especially
ours, as parent of the rule of law. We
will part from terminological to substantial aspects of the rule of law and,
lastly, discuss the existence of the rule/
exception relation, which has currently been debated in legal doctrine.
Palavras-chave: Estado; Estado de
Direito; Estado de Exceção.
Keywords: State, rule of law, State of
emergency.
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Cipriana Nicolitt
Cipriana Nicolitt é Advogada, Doutora pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, com Estágio Doutoral na École des Hautes Études, Paris I,
Sorbonne, Coordenadora Adjunta e Professora de Direito Penal do curso de
Direito da Faculdade Ibmec - RJ e Professora da Pós-Graduação em Direito
Penal, Processo Penal e Criminologia da UCAM.
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Justiça ambiental e o
etnodesenvolvimento
Elida Séguin
INTRODUÇÃO
Desde a década de 80 do século passado, a comunidade mundial preocupa-se com a repartição equitativa dos ônus ambientais do desenvolvimento, tradicionalmente suportados por hipossuficientes econômicos, por
minorias ou grupos vulneráveis.
Os Direitos Humanos, que se originaram do sentimento de solidariedade,
ao serem declarados pela primeira vez, em 1948, não previam o meio ambiente
ecologicamente equilibrado entre o rol enunciado. A Convenção de Estocolmo,
de 1972, incluiu o meio ambiente como um Direito Humano. Numa seqüência
natural, a Carta de Direitos Humanos de Nairóbi, Quênia, de 1981, no Art. 24,
assegurou que todos os povos têm direito a um meio físico satisfatório e global,
propício a seu desenvolvimento integral, sendo a saúde um bem e direito
metaindividual só plenamente atingido combatendo-se a poluição, que acarreta o surgimento de inúmeras doenças. Esse documento menciona, adotando
um conceito amplo de saúde, que “toda pessoa tem direito de viver em ambiente
sadio e de beneficiar-se dos equipamentos coletivos essenciais”.1
1
Séguin (2006, primeira parte, passim).
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 41-67, jul./dez. 2011
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Elida Séguin
Nos dias atuais, os Direitos Humanos destacam-se no cenário internacional, tanto assim que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 4°, determina que em suas relações internacionais o Brasil rege-se, entre outros
princípios, pela prevalência desses direitos. Lamentavelmente, a Carta Magna
não é tão explícita quando se refere às relações internas, assim, injustiças
ambientais continuam sendo cometidas em nome da preservação ambiental
enquanto, quando se trata de grandes interesses econômicos, estes são “flexibilizados”. 2 Direitos Humanos e Justiça Ambiental são institutos que devem
caminhar de mãos dadas, posto que ambos buscam proporcionar ao ser humano uma vida digna e despida de preconceitos estrábicos.
Inegavelmente, as questões de etnicidade estão ligadas a injustiças
ambientais, posto que, em nome da preservação ambiental, condenam-se as
comunidades indígenas e as comunidades tradicionais a viverem na idade da
pedra, sem usufruir dos mais comezinhos confortos proporcionados pela
modernidade, como luz elétrica, saneamento e inclusão digital. 3 Os direitos
dessas comunidades estão agasalhados pelos Direitos Humanos e das Minorias,
como bandeira a ser defendida universalmente, tanto nos países subdesenvolvidos quanto nos desenvolvidos.
As questões étnicas não impedem a sustentabilidade ambiental, que é
factível em terras indígenas sem impedir o crescimento econômico. 4 Estão os
povos indígenas excluídos da proteção dos Direitos Humanos? A utilização
de recursos naturais existentes em reservas indígenas, preponderantemente
em caráter de subsistência, exclui o desenvolvimento socioeconômico da
comunidade? No modelo de gestão dos recursos ambientais deve ser garantida
a preservação da cultura indígena e suas tradições? É isto que analisarei, no
intuito de desmistificar etnopreconceitos, afastar a injustiça ambiental e permitir a implementação de um regime peculiar de desenvolvimento nas comunidades indígenas, a meu ver perfeitamente possível.
No etnodesenvolvimento, recebem destaque a identidade cultural das
comunidades indígenas e o estabelecimento de instrumentos ou programas
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2
Um exemplo de flexibilização é o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), quando
empresas agem de forma contrária aos interesses ambientais, para depois ser ajustada a conduta que deveria estar dentro dos padrões legais desde o início.
3
Em 2012, foi publicada a determinação de que, em processos de licenciamento
ambiental em atividades em terras indígenas, estes seriam consultados.
4
Nesse sentido, registrem-se os trabalhos de Morón (2012) e Alencar (2011).
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com o fim precípuo de preservá-la. Discute-se a possibilidade de as comunidades indígenas alcançarem o desenvolvimento em todos os aspectos, aproveitando as tradições culturais que lhes são peculiares.
A QUESTÃO INDÍGENA
A Constituição Federal, no Art. 231, reconhece aos índios o direito à
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Os indígenas teriam direitos originários sobre as terras que habitam em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Cabe-lhes apenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes, num tratamento diferente ao dispensado aos quilombolas, 5 no Art. 68 das Disposições Transitórias, em que se reconheceu a titularidade do direito de propriedade. Estas terras são inalienáveis e indisponíveis,
e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
A Declaração de Barbados, elaborada durante o Simpósio sobre a fricção
interétnica na América do Sul, no período de 25 a 30.01.1971, trouxe a lume
a imprescindibilidade de o Estado garantir amparo específico aos grupos indígenas e regrar as frentes de expansão nacional iniciadas, por volta de 1900,
quando o Decreto n° 8.072, de 20/06/1910, criou o Serviço de Proteção aos
Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). 6
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5
Quilombolas é designação comum aos escravos refugiados em quilombos ou aos
descendentes de escravos negros cujos antepassados, no período da escravidão,
fugiram dos engenhos de cana-de-açúcar, fazendas e pequenas propriedades onde
executavam diversos trabalhos braçais para formar pequenos vilarejos chamados
de quilombos. Existem mais de duas mil comunidades quilombolas espalhadas pelo
território brasileiro que se mantêm vivas e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras.
6
Em 1918, o SPILTN passa a se chamar apenas SPI (Serviço de Proteção aos Índios).
A parte referente à “Localização de Trabalhadores Nacionais” é transferida para o
Serviço de Povoamento do Solo, vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria
e Comércio.
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Elida Séguin
A CF garante que as comunidades indígenas afetadas pelo aproveitamento dos recursos hídricos, disciplinados pela Lei n° 9.433/1997, dos potenciais energéticos, da pesquisa e da lavra das riquezas minerais sejam ouvidas
e que a competência para autorizar esses aproveitamentos dependerá do Congresso Nacional, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra,
na forma da lei. A forma como a Constituição afasta a incidência dos §§ 3° e 4°
do Art.174, 7 induzindo a crer que, em reservas indígenas, não atuarão cooperativas de garimpeiros, as quais, num passado próximo, tiveram péssima atuação ambiental, em especial em Serra Pelada e Tepequem (RR).
As comunidades indígenas só podem ser removidas de suas terras, ad
referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população. No interesse da soberania do País, essa remoção
dependerá de prévia deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
O caso da Raposa Serra do Sol, em que arrozeiros tiveram que ser retirados da reserva após sua demarcação, está fincado no § 6° do Art. 231 da CF,
que prevê a nulidade e a extinção de atos que tenham por objeto a ocupação,
o domínio e a posse das terras indígenas, ou a exploração das riquezas naturais
do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. É feita ressalva quando houver
relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar,
ainda não editada, não gerando a nulidade e a extinção do direito a indenização
ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas
da ocupação de boa-fé.8 A questão foi decidida pelo STF, que determinou a
08.pmd
7
§ 3° - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas,
levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social
dos garimpeiros.
§ 4° - As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais
garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o
Art. 21, XXV, na forma da lei.
8
A demarcação das terras indígenas é regulada pelo Decreto n° 1.775/96. Uma das
etapas previstas no procedimento de demarcação é a desocupação da terra por não
índios, que deverão ser reassentados (Art. 4° do Decreto n° 1775/96) e indenizados
pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (Art. 231, § 6°, CF/88). Raposa
Serra do Sol é uma área de terra indígena (TI) situada no nordeste de Roraima, nos
municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os rios Tacutu, Maú,
Surumu, Miang e a fronteira com a Venezuela, destinada à posse permanente dos
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Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento
desocupação da terra pelos arrozeiros, através da Petição 3.388-4 Roraima,
em que foi relator o Ministro Carlos Britto.
Para a defesa dos direitos indígenas, o Art. 232 atribui aos índios, suas
comunidades e organizações, legitimidade processual, com obrigatória participação, na forma do Art. 84 do CPC, do Ministério Público. Essa participação
é ineficaz enquanto o grupo não tiver condições de efetivamente optar. A falta
de informação e formação pode induzir a que eles sejam enganados facilmente.
As diretrizes delineadas pela Constituição de 1988 forneceram uma nova
base para a relação entre sociedade nacional e povos indígenas, mas que, na
prática, permanece ainda mais virtual que real. A proteção do conhecimento
indígena da diversidade biológica também auxilia a mudança de situação.
ETNODESENVOLVIMENTO
Darcy Ribeiro, em 1957, traçou um panorama dramático da situação
indígena no Brasil, em particular da Amazônia brasileira. Com o advento da
Constituição de 1988, os índios teriam, magicamente, passado da iminência
de extinção ao reconhecimento de seus direitos sobre 12% do território nacional, incluindo mais de 20% da Amazônia.
No censo de 2000, 400 mil habitantes citadinos se declararam índios.
O IBGE informou, em censos anteriores, que a população indígena brasileira
chegava a 770 mil pessoas, número que divergia das informações da Funai e
da Funasa, que noticiavam, em 2007, estar este contingente com cerca de 500
mil pessoas.
No censo de 2010, o IBGE acrescentou ao seu questionário pergunta
sobre a etnia do entrevistado. A dúvida reside se essas pessoas podem estabelecer um vínculo comunitário direto com o povo indígena a que dizem pertencer,
em especial ante a recente decisão do STF sobre cotas nas universidades. 9
grupos indígenas ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e uapixanas. Foi
demarcada pelo Ministério da Justiça, através da Portaria N° 820/98, posteriormente modificada pela Portaria N° 534/2005. A demarcação foi homologada por
decreto de 15.04.2005, da Presidência da República.
9
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O STF, no processo RE/597285, em que foi relator o Min. Ricardo Lewandowski,
por maioria e nos termos do voto do Relator, conheceu e negou provimento ao
recurso extraordinário, reconhecendo a Constitucionalidade da reserva de vagas
nas universidades públicas.
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Muitos dos brasileiros que se autodeclaram indígenas não sabem dizer de onde
vieram e a qual povo pertencem.
Existe um tratamento diferenciado na situação indígena no País. A concentração da assistência internacional na Amazônia faz que as comunidades
fora daquela região estejam em situação muito pior, em termos de conflitos
fundiários, abuso de direitos humanos, violência e condições de vida drasticamente empobrecidas. 10
A ajuda internacional tem prós e contras. É benéfica ao dar visibilidade
às más condições de vida dessas comunidades, mas produz distorções decorrentes da ausência de gestão para coordenar uma multiplicidade de ações e
fontes de financiamento, com objetivos variados, e as verdadeiras demandas
indígenas. As comunidades ficam na encruzilhada entre o respeito às suas
tradições e a tentativa de atender às diretrizes desenhadas pelos “benfeitores”.
É também confuso para os doadores estabelecer diretrizes gerais, pois as diversas etnias têm ritos e culturas diferentes. É preciso que índios e doadores
percebam e aceitem as intenções mútuas para que ambas as partes fiquem
satisfeitas.
Na tentativa de absorção, podem ocorrer suicídios, prostituição e dependência alcoólica, entre outros problemas sociais decorrentes dos choques
culturais provocados pela perda da identidade. O melhor é sempre que se
proceda às tentativas de inclusão e não de absorção. Naquela, a comunidade
indígena terá preservada a sua cultura, evitando choques culturais, com respeito à diferença cultural existente, como é o objetivo do etnodesenvolvimento,
posto que o desenvolvimento de comunidades indígenas não pode estar apartado da sua identidade cultural.
O etnodesenvolvimento é uma maneira de garantir o progresso econômico e a preservação ambiental utilizando o diferencial da etnicidade. Para
que tenha sucesso, é essencial conhecer os hábitos do grupo e estabelecer
uma estratégia de aproximação. A preservação cultural 11 e o direito ao de-
08.pmd
10
Grünewald (2003) aponta como principal problema dos indígenas do Nordeste a
falta de demarcação de suas terras.
11
Cultura (do latim colere, que significa cultivar) é um conceito de várias acepções,
sendo a mais corrente a definição genérica formulada por Edward B. Tylor, segundo
a qual cultura é “aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a
arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos
pelo homem como membro da sociedade”.
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senvolvimento devem desembocar no desenvolvimento sustentável 12 e no
etnodesenvolvimento, nova vertente do desenvolvimento, intimamente ligada
ao conceito de sustentabilidade ambiental em terras indígenas.
O projeto ou programa de etnodesenvolvimento, para ter sucesso, deve
priorizar os interesses das comunidades envolvidas, observando suas reivindicações políticas e necessidades econômicas, mas sem abrir mão da educação,
pois é esta que promoverá o verdadeiro etnodesenvolvimento.
O desenvolvimento alternativo está voltado para a auto-sustentação,
nos níveis local, nacional e regional, devendo estar fincado, sempre que possível, no uso dos recursos locais quer sejam naturais, técnicos ou humanos 13,
o que é dificultado pela falta de acesso à informação e à tecnologia.
Nas discussões para a elaboração do Pacto de São José da Costa Rica
(1981), especialistas pontuaram que o etnodesenvolvimento é “contraponto
crítico e alternativo às teorias e ações desenvolvimentistas e etnocidas”, à visão
míope de que as sociedades indígenas e as comunidades tradicionais são obstáculos ao desenvolvimento, o que justificaria o etnocídio.
Antes da preocupação internacional com os Direitos Humanos, as minorias e os grupos vulneráveis foram vítimas de um tratamento etnocida, 14
em que o objetivo era a assimilação do grupo e não o respeito à sua cultura,
08.pmd
12
Desenvolvimento Sustentável é um conceito sistêmico que se traduz num modelo
de desenvolvimento global que incorpora os aspectos de desenvolvimento
ambiental. Foi usado pela primeira vez em 1987, no Relatório Brundtland, elaborado
pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada em 1983
pela Assembléia das Nações Unidas. A definição mais usada para o desenvolvimento
sustentável é: o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração
atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas
próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização
humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da
terra e preservando as espécies e os habitat naturais.
13
Stavenhagen (1984, p. 18-19).
14
Ibid., p. 33. Stavenhagen define etnocídio “como a política de destruição da identidade cultural de um grupo étnico, devendo, assim, ser distinguido dos processos
naturais ou espontâneos de aculturação e mudança cultural. [...] As políticas da
maioria dos governos latino-americanos, em relação a suas próprias populações
indígenas, chamadas de ‘indigenismo’, e apoiadas nas melhores intenções e na terminologia desenvolvimentista, são etnocidas em seu conteúdo e nos resultados.”
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sob a justificativa confortável da irrelevância da sua contribuição para a ciência
e dos obstáculos para o “progresso”, numa visão economicocêntrica, em que
pese ser reconhecido pela ciência o valor do conhecimento tradicional. 15
O etnodesenvolvimento e a Conversão da Diversidade Biológica superam esse dogma, apontando como o conhecimento tradicional é útil para o
desenvolvimento. Os Direitos Humanos, por sua vez, demonstram as vantagens da diversidade cultural, afastando o preconceito ideológico.
A aplicação do etnodesenvolvimento às políticas públicas indigenistas
pressupõe o redimensionamento do tempo produtivo dos grupos indígenas,
com a priorização da produção de bens destinados a um mercado que valorize
as sociedades indígenas e suas tradições/conhecimentos, bem como das formas de produção que levem em conta a preservação ambiental. Para que o
etnodesenvolvimento se torne efetivo, é essencial que as comunidades indígenas contem com apoio financeiro em mecanismos de fomento ligados aos
novos modelos de gestão da política indigenista, com base no Princípio da
Cooperação que norteia o Direito Ambiental. Ou seja, para que dê certo e se
torne efetivo, o etnodesenvolvimento deve contar com a participação de todos.
O surgimento do conceito de etnodesenvolvimento, entre as décadas
de 1980 e de 1990, é perfeitamente justificado pelas discussões preparatórias
para a Convenção Rio 1992, fincadas no Relatório Brundtland de 1987, 16 que
tratou do desenvolvimento sustentável e da diversidade biológica.
Foram a academia, algumas lideranças indígenas e ONGs que introduziram o termo etnodesenvolvimento, atualmente já incorporado ao discurso
de agências governamentais, que defendem o respeito a valores alienígenas,
sem imposição de cultura geral, na busca de uma convivência pacífica e produtiva, com o uso sustentável dos recursos naturais por essas populações. Esse
sistema possibilita alcançar uma sustentabilidade econômica e ambiental em
níveis.
Discutem-se analogias e contrastes entre o etnodesenvolvimento e as
concepções vinculadas ao sucesso econômico. Registre-se que a própria socie-
08.pmd
15
A Convenção da Diversidade Biológica, assinada em 1992, durante a Rio 92, e incorporada ao direito positivo brasileiro pelo Decreto n° 2.519, de 16 de março de 1998,
reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais e seu valor econômico.
16
O documento recebeu este nome em homenagem a Gros Brundtland, então Ministra
da Noruega, publicado no Brasil pela Fundação Getulio Vargas sob o título “Nosso
Futuro Comum”.
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dade tradicional vem alterando seus indicadores de “progresso”, como aconteceu com o PIB, renda per capita, que passou a usar novos parâmetros. 17
O diferencial para o etnodesenvolvimento é o envolvimento efetivo da
comunidade nessa nova dinâmica, atribuindo-lhe o manejo dos recursos naturais. Mas, apenas o envolvimento não é suficiente se não for acompanhado
da imprescindível capacitação do grupo, permitindo o exercício e a continuidade desse processo. O Decreto n° 6.861, de 27.05.2009, com uma visão étnica,
ao dispor sobre educação escolar indígena, determina que esta seja organizada
com a participação da comunidade, observada a sua territorialidade e respeitadas suas necessidades e especificidades. Reconhece-se às escolas indígenas
a condição de escolas com normas próprias e diretrizes curriculares específicas, voltadas ao ensino intercultural e bilíngüe ou multilíngüe, gozando de
prerrogativas especiais para a organização das atividades escolares, respeitados o fluxo das atividades econômicas, sociais, culturais e religiosas e as especificidades de cada comunidade, independentemente do ano civil.
Nesse sentido, em 2009, o estado de Roraima fez um concurso público 18
para professores indígenas. Após a nomeação, os concursados não foram aceitos pela comunidade indígena, que indicou os seus: todos nativos e poucos
falando português. Leiam estas linhas como um depoimento que faço, um
conhecimento direto, pois os professores indicados pela comunidade ficaram
hospedados no mesmo hotel em que eu estava. Entendo que essas indicações
contrariam a Constituição Federal, que exige o concurso público para ingresso
no serviço público, e os ideais de etnodesenvolvimento, vez que para a inclusão
das comunidades é essencial que os indígenas sejam bilíngües, ou nunca iremos transpor o abismo entre as culturas.
A combinação entre a problemática do desenvolvimento e o reconhecimento da diversidade cultural “introduz um conjunto de novos temas no seio
do espaço público dos Estados nacionais”. Seus efeitos são sentidos em dois
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17
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mede os avanços de um país com
base em três dimensões básicas: esperança de vida ao nascer, educação (alfabetização de adultos e taxa bruta de matrículas nos níveis primário, secundário e universidade combinados) e Produto Interno Bruto (PIB) per capita, determinando
que quanto mais próximo de 1 for o índice, mais alto o desenvolvimento humano.
18
A exigência de concurso público de provas e títulos vem da Constituição Federal.
Apesar de os concursados falarem alguns idiomas indígenas, a comunidade não os
aceitou.
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planos: político e econômico. No primeiro, dando um recorte étnico à autodeterminação dos povos e questionando as noções excludentes de soberania
nacional. No segundo, constatando-se que as práticas de etnodesenvolvimento
tendem a ocupar o lugar de “alternativas” econômicas, particularmente onde
a ideologia neoliberal é predominante 19.
A Lei n° 6.001, de 19.12.1973, conhecida como o Estatuto do Índio, seguindo o Código Civil de 1916, considerou os indígenas “relativamente capazes”, sendo tutelados por um órgão estatal. Atualmente, cabe à Fundação
Nacional do Índio a tutela estatal. Em seu primeiro artigo, a lei estabelece
que seu objetivo é “integrar os índios à sociedade brasileira, assimilando-os
de forma harmoniosa e progressiva”. 20
A CF/88 reconhece a identidade cultural própria e diferenciada (organização social, costumes, línguas, crenças e tradições) das comunidades indígenas, assegurando o direito de permanecerem como índios, e explicita,
como direito originário (que antecede a criação do estado), o usufruto das
terras que tradicionalmente ocupam, cabendo ao Estado zelar pelo reconhecimento desses direitos por parte da sociedade. O papel do Estado passa, então,
da tutela de pessoas para a tutela de direitos.
O meio ambiente interfere e condiciona o ser humano, que vive dentro
de uma teia de relações, a que Bronfenbrenner denominou de desenvolvimento contextualizado. Qualquer hipótese de mudança ou integração introduzida nas pessoas, por ambientes ora receptivos ora adversos, está fincada
no cotidiano, não devendo ser imposta externamente. Assim, o etnodesenvolvimento não é algo isolado ou instantâneo.
TIPOLOGIA DO MEIO AMBIENTE E A QUESTÃO CULTURAL
O Direito Ambiental é um conjunto de regras, princípios, ações governamentais e políticas públicas que busca a harmonização do homem com o
meio ambiente. Envolve aspectos naturais, culturais, construídos e do trabalho.
Apesar de o meio ambiente ser indivisível, sua diversidade dá origem a uma
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19
Little (2002, p. 8).
20
Os tribunais tendem a flexibilizar esta “incapacidade” na esfera penal, admitindo a
responsabilidade dos indígenas que estejam aculturados e tenham condições de
entender o caráter anti-social de sua conduta.
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tipologia. Para alguns, uma dicotomia: Natural e Humano, neste compreendido o Cultural, o Construído e o do Trabalho. A Convenção de Estocolmo
fala em meio ambiente natural e meio ambiente artificial.
Mantenho, para fins didáticos, esta tipologia: natural, construído, cultural e do trabalho, considerando que possuem regulamentação própria, com
institutos jurídicos diferentes, e que, topograficamente, a Constituição Federal
situou-os em oportunidades diferentes (artigos 225; 215/216; 182/183 e 200,
respectivamente).
Neste trabalho analiso, sob a ótica da Justiça Ambiental, o meio ambiente
natural, através da sustentabilidade de seus bens, e o meio ambiente cultural,
ao considerar aspectos culturais de comunidades indígenas e a questão econômica ligada ao desenvolvimento social e econômico.
O meio ambiente cultural é constituído dos patrimônios artístico, histórico, turístico, paisagístico, arqueológico, espeleológico 21 e cultural que
englobam os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (Art. 215 da CF).
Inicialmente, a cultura era confundida com o aprimoramento da capacidade
de produção intelectual do homem, identificada com a erudição. Assim, só a
elite poderia produzir cultura, pessoas simples ou indígenas, sob essa ótica,
não teriam cultura, apenas costumes.
No século XVIII, cultura passa a ser sinônimo de civilização, evolui para
a educação recebida pelo homem, englobando as obras, as invenções e o avanço
tecnológico. Posteriormente, o termo cultura abrangeu também as relações
humanas, tornando-se sinônimo de História, e transformou-se num repositório
de aspectos sociojurídicos de uma comunidade.
O Pacto Social de 1988 modificou o conceito de cultura, que deixa de
ser produzida apenas pela educação formal, tornando-o mais abrangente,
agasalhando bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, incluindo as formas
de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas
21
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Espeleologia (do latim spelaeum, do grego σπηλαιον, “caverna”) é a ciência que estuda
as cavidades naturais e outros fenômenos cársticos, nas vertentes da sua formação,
constituição, características físicas, formas de vida, e sua evolução ao longo do tempo.
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e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios
de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Pela leitura do caput do Art. 216, poder-se-ia imaginar que todos os bens
culturais ficaram automaticamente protegidos. Contudo, esse artigo não é
autoaplicável, ou seja, necessita de lei que viabilize sua aplicação, que não
está prevista na CF, como a identificação do bem e a forma de proteção. Claro
que o Decreto-Lei n° 25/1937, que regulamenta o tombamento, foi plenamente
recepcionado pela nova ordem constitucional, mas é insuficiente para a proteção desse patrimônio.
O § 1° do Art. 216 da CF prevê como forma de proteção cultural o inventário, o registro, a vigilância, o tombamento e a desapropriação, abrindo ainda
a possibilidade de outras formas de acautelamento e preservação sem discriminar quais sejam, deixando que os estados e municípios exerçam sua criatividade na matéria, ao adotarem os institutos que sejam mais apropriados a
cada região ou local.
Convém consignar que a Lei n° 9.605, de 12.02.1998, que trata de crimes
ambientais, não distingue a forma de proteção para tipificar como crime o
dano a bens culturais, sejam quais forem as esferas de proteção, se administrativa, judicial ou decorrente de lei. Mas, protege apenas os bens materiais,
não tipificando nenhum crime contra bens imateriais.
JUSTIÇA AMBIENTAL
O desenvolvimento sustentável e o respeito à cultura de etnias vêm ao
encontro dos princípios da Justiça Ambiental. O provérbio “a corda sempre
arrebenta na parte mais fraca” parece ter sido aplicado, por muito tempo,
para determinar que segmento social suporta os ônus ambientais.
A busca pela equidade era a principal reivindicação do movimento de
Justiça Ambiental, pleiteando a isonomia de acesso aos bens ambientais disponíveis, para fruição racional. Como dimensão substantiva, tinha-se que os
ônus decorrentes do desenvolvimento econômico, especialmente os alcançados de forma irresponsável por agentes públicos e empresários, deveriam ser
preferencialmente eliminados ou, pelo menos, suportados igualmente por
toda a coletividade, enfatizando o controle social e a participação dos segmen-
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tos afetados pelas ações/omissões governamentais. Na prática, verifica-se que
são os grupos vulneráveis e as minorias de pouca ou nenhuma representatividade política ou financeira, por questões de discriminação religiosa, étnica
ou econômica, que suportam o maior fardo ambiental. A Justiça Ambiental
contesta a ineficácia da legislação ambiental, que deixa de alcançar todas as
camadas sociais, marginalizando, ainda mais, comunidades já excluídas economicamente.
Nos EEUU ressurge a discussão ambiental, no início da década de 1980,
com leis sobre poluição atmosférica e hídrica: “Clean Air Act” e “Clean Water
Act”. Em 1982, o movimento de “racismo ambiental” identificou a desigualdade de ações governamentais através do repúdio à instalação de aterros de
resíduos perigosos próximos a bairros residenciais de negros e protestou que
tais medidas trariam benefícios à classe média em detrimento das comunidades vizinhas aos empreendimentos que pertenciam a grupos desfavorecidos
e a minorias raciais.
Lamentavelmente, as minorias e os grupos vulneráveis, como os indígenas e os hipossuficientes financeiros, são afetados desproporcionalmente
pelas ações/omissões das ações governamentais. Eles estão mais expostos a
danos à saúde e, em geral, são os que têm menor acesso à água potável, ao
saneamento básico, aos serviços públicos eficientes e à segurança fundiária.
Por esse motivo, é necessário garantir que efetivamente possam participar
das decisões que os afetem e pleitear medidas compensatórias pelos gravames
que suportam, numa forma efetiva de controle social.
O resultado da pesquisa da Environmental Protection Agency (EPA) norteamericana, sobre a distribuição de riscos ambientais, foi decisivo para o movimento. A investigação, apesar da dificuldade em estabelecer a correlação entre
patologias e danos ambientais pela falta/negação de dados, constatou diferenças nas taxas de doença/morte e na exposição a determinados poluentes
conforme critérios socioeconômicos e raciais. O que eram reivindicações contra o “racismo ambiental” (environmental racism) passou à “justiça ambiental”
(environmental justice), quando o governo federal norte-americano, na década
seguinte, determinou que todas as agências federais considerassem a justiça
ambiental nos seus processos de decisão.
O Professor Robert Bullard construiu sua doutrina a partir da vivência
das injustiças e exclusões e é considerado o “pai” da Justiça Ambiental. A consciência da origem do sofrimento de que partilhavam os membros do grupo
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vitimizado provocou-lhe uma transformação, que passou a adotar uma postura pró-ativa e exigir papel significativo nos processos de tomada de decisões.
Em 1991, a Cúpula dos Povos de Cor pela Justiça Ambiental (First National
People of Color Environmental Leadership Summit), realizada em Washington,
divulgou a Declaração dos Princípios de Justiça Ambiental. Na década de 1990,
o movimento adquiriu uma dimensão planetária e intergeracional. Em 2003,
durante o workshop Improving Environmental Justice in Central and Eastern
Europe, foram analisadas as injustiças cometidas por regimes comunistas que
priorizavam o desenvolvimento.
Leis, atos de gestão e políticas públicas, norteados pelo “tráfico de influência”, distinguem os diversos segmentos sociais, na alocação de recursos
ou na instalação de equipamento/mobiliário urbano, apesar de os recursos
serem oriundos de arrecadação entre contribuintes sem vínculo com a questão.
Além da distribuição dos benefícios, riscos e gravames, a Justiça Ambiental
possui um viés de cidadania, tirando do papel as políticas públicas ambientais,
preservando a saúde do cidadão, diminuindo diferenças sociais e promovendo
a inclusão social, o que é perfeitamente aplicável ao etnodesenvolvimento.
O Brasil nasceu sob a égide da injustiça social e econômica, visto por
Portugal como um “fornecedor” de matérias-primas, com um sistema de exploração e de destituição da dignidade dos trabalhadores escravizados, o que
ainda se perpetua.
Aqui os exemplos de injustiça ambiental são muitos e sempre graves,
como o Césio de Goiânia ou a Cidade dos Meninos em Duque de Caxias. Desabamentos nas cidades do Rio de Janeiro (Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis), em geral por falta de saneamento básico (drenagem), são constantes
nos meses de dezembro e janeiro, quando há grande precipitação pluviométrica. As questões indígenas são muitas, no dia-a-dia, mas difíceis de indicar
pelo silêncio da mídia em torno do tema, salvo quando há mortes de nãoindígenas, o que reforça a idéia de que a etnia é violenta e selvagem e não
merecedora de apoio financeiro para o seu desenvolvimento.
A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), criada em 2001, incentiva ações que articulem as lutas ambientais com as lutas por justiça social.
No Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania,
realizado em Niterói de 24 a 27 de setembro de 2001, foram formuladas denúncias sobre a dimensão ambiental das desigualdades econômicas e sociais
existentes nos países representados, concluindo-se que a injustiça ambiental
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caracteriza o modelo de desenvolvimento dominante no Brasil, em especial
quando se fala em meio ambiente do trabalho.
A RBJA destaca a necessidade de assegurar a isonomia e a isogoria,
sem distinção de etnia, raça ou classe, com acesso justo e equitativo aos recursos ambientais do País. Para tanto, é essencial o acesso às informações
relevantes para a proteção de riscos ambientais. A facilitação para a participação popular e a constituição de organizações populares auxilia a construção
de modelos alternativos de desenvolvimento que assegurem a democratização
do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. 22
Existem danos, decorrentes da flexibilização de normas, que produzem
vantagens apenas para um pequeno grupo de pessoas em detrimento de uma
comunidade, como aconteceu na demarcação da Reserva Indígena Raposa
Serra do Sol, em Roraima, reserva contínua, mas com a inserção de diversas
etnias, algumas tradicionalmente inimigas.
DIREITO DAS MINORIAS
Impossível dissociar grupos vulneráveis e minorias da luta internacional
pelo reconhecimento dos Direitos Humanos. A angulação do problema é ampla,
exsurgindo a indagação: todos são iguais? Acredito que não, que somos plurais,
e é da desigualdade que surge o direito de resistência, de se opor ao injusto,
de lutar para que as diferenças sejam minimizadas e não se aprofundem. Assim,
22
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Considera: “a - asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de
classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais,
estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; b - asseguram
acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país; c - asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais
e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como
processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas
e projetos que lhes dizem respeito; d - favorecem a constituição de sujeitos coletivos
de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas
na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso.”
Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/
pagina.php?id=229>. Acesso em: 23 dez. 2009.
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as etnias indígenas são distintas, mas com previsão constitucional de proteção,
com direito à inclusão fugindo-se da simples absorção.
Erroneamente, a designação pode induzir a que “minorias” são contingentes quantitativamente insignificantes, como grupos de indivíduos, posto
que alguns segmentos sociais, apontados como minorias, são numericamente
significativos. 23 Esses paradoxos são a essência de uma discriminação que não
deveria existir.
O texto da Declaração da Assembléia Geral das Nações Unidas, de
18.12.1992, sobre Direitos de Minorias, reiteradamente, sem estabelecer uma
definição, faz referência a persons belonging to national or ethnic, religious and
linguistic minorities (pessoas que pertencem a minorias nacionais ou étnicas,
religiosas e lingüísticas).
Uma definição de minorias, em Direito Internacional, pode impedir o
processo de fixar padrões e excluir os que não tinham sido incluídos na Declaração; a lei tem procedido na realidade sem definições precisas para preservar
a flexibilidade, a franqueza e a possibilidade de progresso.
Existe certa confusão entre minorias e grupos vulneráveis. As primeiras
seriam caracterizadas por ocupar uma posição de não-dominância no país
onde vivem, como o exemplo indígena. Os grupos vulneráveis podem constituir um grande contingente, numericamente falando, como as mulheres, crianças e idosos. Para alguns, são grupos vulneráveis, destituídos de poder, mas
detentores da cidadania e dos demais elementos que poderiam transformálos em minorias. Na prática, tanto os grupos vulneráveis quanto as minorias
sofrem discriminação e são vítimas da intolerância, motivo que nos levou, no
presente estudo, a não nos atermos à diferença existente.
Outro aspecto interessante de grupos vulneráveis é que, com certa freqüência, não têm sequer a noção de que estão sendo vítimas de discriminação
ou de que seus direitos estão sendo desrespeitados: não sabem sequer que
têm direitos. É necessário primeiro despertar-lhes a consciência para depois
propor-lhes posicionamentos de reivindicação de direitos adormecidos.
23
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A questão de gênero é significativa, pois as mulheres já constituem mais da metade
da população mundial e são consideradas minoria. O mesmo ocorre com os idosos,
quase beirando os 8% da população mundial, ainda não reconhecidos como grupo
com características e interesses próprios.
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O DIREITO DE TODOS AO DESENVOLVIMENTO
Existe uma preocupação internacional de minimizar as diferenças e
estabelecer metas para um crescimento contextualizado, plural e globalizado
do ser humano. Busca-se riscar a possibilidade de que um entendimento anacrônico permita que situações nefastas sejam repetidas. A Organização das
Nações Unidas (ONU), através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), tenta dinamizar o desenvolvimento humano e fomentar
o respeito aos Direitos Humanos, ou seja, o direito de ter direitos. O direito ao
desenvolvimento pressupõe a autodeterminação econômica, a soberania permanente sobre a riqueza e os recursos naturais e emergentes, a interdependência
do direito ao desenvolvimento e a observância de todos os direitos humanos.
Em outra oportunidade 24, destaquei que todos os aspectos do direito
ao desenvolvimento são indivisíveis e interdependentes, abrangendo os aspectos econômicos, sociais e culturais, sem esquecer os direitos civis e políticos.
O direito ao desenvolvimento pressupõe o direito de livre escolha (direito de
participação) do sistema econômico-social; situação como o crescimento do
desemprego, da pobreza e da fome, a falta de acesso a serviços básicos de
saúde e educação, são incompatíveis com o direito ao desenvolvimento.
Já se definiu desenvolvimento como “um processo de aperfeiçoamento
em relação a um conjunto de valores” 25. Claro que se os valores da sociedade
mudam, o desenvolvimento deverá se adaptar aos novos padrões. Essa constante mutação dificulta uma conceituação precisa de desenvolvimento.
No passado, o desenvolvimento confundia-se com o progresso econômico, numa concepção restritiva e sem vinculação socioambiental, associado
ao grau de industrialização e de crescimento econômico de um grupo. Se o
desenvolvimento era sinônimo de uma projeção meramente econômica, é
óbvio que valores como cultura e meio ambiente, que poderiam aumentar
custos, deveriam ser desconsiderados. Essa visão consumista e antiambiental
é o oposto do etnodesenvolvimento e do desenvolvimento sustentável. Essa
postura pode ser percebida no discurso de Getulio Vargas, em visita realizada
em 1940 à Amazônia. 26
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24
Séguin (2006, p. 133).
25
Colman e Nixson (1981).
26
Davis (1978, p. 46). Discurso de Getulio Vargas: “Não vim à Amazônia com o ponto
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Esse conceito de desenvolvimento vinculado a desempenho econômico,
num enfoque capitalista e economicocêntrico, apenas aumentava os abismos
sociais. O crescimento econômico é um pressuposto do desenvolvimento, mas
não seu único enfoque, devendo ser agregados outros valores, como os sociais,
culturais, ecológicos, ambientais etc.
Tal visão míope e restritiva levou países a priorizar a produção de bens
para exportação, enquanto necessidades básicas internas do próprio país não
eram supridas e atendidas.
É necessário repensar o modelo de crescimento econômico e progresso,
para priorizar o atendimento das necessidades da humanidade sem prejuízo
das gerações futuras, pois os modelos antigos são insustentáveis, pondo em
risco o futuro do planeta.
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada pela
primeira vez em 1972 em Estocolmo, deu início às negociações de um movimento para o desenvolvimento compatível com a proteção e a preservação
ambiental.
A visão tradicional de desenvolvimento desatendia aos anseios sociais
e ao estado da técnica, provocando uma tendência mundial que defendia um
desenvolvimento em que a figura central é a preservação ambiental e não o
lucro. O Desenvolvimento Sustentável pauta-se no equilíbrio entre os valores
econômico, social e ambiental. Benchimol 27 ressalta que o processo de crescimento significa ficar maior, enquanto desenvolver expressa o ficar melhor.
Considera o termo um pleonasmo,
pois enquanto o crescimento econômico implica expansão da produção econômica, em termos quantitativos, o desenvolvimento exige sempre mais qualidade: produção maior, porém melhor, mais
abundante, menos agressiva, gestão superior da produtividade inde vista de um turista, que aqui encontra tantos motivos de espanto e leva consigo
impressões profundas. Vim com o propósito de ver possibilidades práticas de pôr
em execução um plano para a exploração sistemática da riqueza e do desenvolvimento econômico do grande vale.”
27
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Benchimol (2001, p. 22).
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corporando valores extra-econômicos, como os sociais, biológicos,
físicos, políticos, sociais e éticos.
Desenvolvimento sustentado surge como um densificador da preservação
ambiental, diferenciando-se do sustentável e dando margem ao surgimento
do Princípio do Cuidador/Recebedor e do etnodesenvolvimento.
Minimizar os efeitos de atuar que sejam ambientalmente prejudiciais é
dever a que nenhum gestor, público ou privado, pode ou quer se furtar. Os
maus gestores são apresentados como poluidores, mas empresas ecoeficientes
estão na vanguarda utilizando-se do marketing ambiental como forma de promoção de seus produtos.
Para Azanha 28, o desenvolvimento sustentável “pretendeu impor limites
à escala dos processos de industrialização, qualificando ou reputando como
‘sustentáveis’ apenas os processos industriais e tecnológicos que reinvestem
parte da riqueza na reposição e conservação dos recursos naturais.” A nosso
ver, não é suficiente o reinvestimento de parte da riqueza, este deve ocorrer
considerando valores culturais e sociais que o grupo social entenda importante. Ou seja, não basta o retorno parcial do investimento, se este for feito
em algo que seja irrelevante para a sociedade.
A Comissão Brundtland definiu o desenvolvimento sustentável como
um novo caminho de progresso social e econômico que: “[...] procura atender
as aspirações do presente sem comprometer a possibilidade de atendê-las no
futuro”. Porém, existem obstáculos a superar para atingir o patamar de sustentabilidade, implementando alternativas de gestão, abandonando a tradição
de usar os bens naturais como se eles fossem infinitos e inesgotáveis.
A publicação do Relatório, em 1987, trouxe a falsa concepção de que os
danos ambientais decorrentes da industrialização seriam corrigíveis com o
pagamento de taxas de reposição. Essa idéia foi refutada posto ser duvidosa a
contabilização dos custos ambientais. Convém consignar que a CF de 1988,
no Art. 170, subordina a atividade econômica à proteção ambiental. O desenvolvimento sustentável não é uniforme, sendo impossível inferir que as necessidades das futuras gerações serão iguais às atuais.
No Brasil, o conceito de desenvolvimento sustentável foi introduzido
pela Lei n° 6.803/1980, que dispôs sobre o zoneamento industrial em áreas
28
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Azanha (2002, p. 30).
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críticas de poluição. A Lei n° 6.938/81, no Art. 2°, fala em “desenvolvimento
socioeconômico”.
ETNODESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL
O etnodesenvolvimento, segundo Azanha 29, deve priorizar e valorizar:
1. a satisfação de necessidades básicas de pessoas em vez do crescimento
econômico;
2. a resolução dos problemas e necessidades locais;
3. o conhecimento e a tradição locais na solução dos problemas;
4. a manutenção da relação equilibrada com o meio ambiente;
5. a auto-sustentação e a independência de recursos técnicos/pessoal,
com atividades mais participativas.
Para atingir esses objetivos, devem ser utilizados os seguintes parâmetros:
a) aumento da escolaridade, tornando os jovens aldeados bilíngües;
b) direito ao desenvolvimento e à dignidade da pessoa humana, com a
satisfação do mínimo existencial, inclusive segurança alimentar plenamente
atingida;
c) geração, na aldeia, de recursos de forma sustentável e não predatória, e
d) pleno domínio das relações com o Estado e as agências de governo,
permitindo que essas relações sejam definidas sem prejuízo para a comunidade indígena e consoante os princípios da legalidade, da isonomia, da eficiência e da transparência.
Inegavelmente, o etnodesenvolvimento é instrumento de política pública indigenista, tornando efetiva a relação entre os índios e os recursos naturais. Junto com isso, busca-se estabelecer uma visão convergente entre o
enfoque da preservação cultural e de costumes dos indígenas e o da proteção
do meio ambiente, recorrendo-se a abordagens interdisciplinares, por exemplo, à antropologia e à ciência ambiental.
Constata-se a necessidade do surgimento de um novo modelo de gestão
da política pública indígena, através da inclusão e não da absorção, da garantia
ao acesso à educação e à informação e do surgimento de parcerias entre as
ações governamentais e o terceiro setor.
29
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Ibid., p. 31.
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A discussão acadêmica impõe um novo modelo de gestão, com a imperiosa reformulação das políticas governamentais indígenas, banindo atitudes
oportunistas, antiambientais ou etnocidas. O índio tem que ser visto como
possuidor da proteção dos Direitos Humanos!
As questões indígenas possuem uma especificidade a ser sopesada na
busca de soluções, junto com a utilização racional e sustentável do meio ambiente, com ênfase no regionalismo das populações e na pluralidade étnica e
ecológica existentes no Brasil, um país de dimensões continentais.
Para que o etnodesenvolvimento seja efetivo, é essencial investir em
educação, inclusive ambiental, capacitando o índio a tornar-se senhor do seu
destino, que ele ainda não o é. Ele terá que se capacitar para ser o gestor de
seu próprio desenvolvimento.
Gallois 30 destaca as restrições à autogestão, repudiando a terminologia
de “proteção”, ou a limites à “participação” dos índios na tomada de decisões
de seu próprio desenvolvimento, em “condições que não atendem às reivindicações de soberania reclamadas pelos representantes indígenas”.
O etnodesenvolvimento reveste-se de entraves quando existem grupos
pluriétnicos numa mesma nação (sociedades etnicamente heterogêneas), uns
dominantes e em número maior e outros em minoria. Constatada essa realidade, geralmente surgem conflitos, pois os grupos dominantes tentam controlar as minorias, ou, ainda, as minorias brancas acabam prevalecendo em
detrimento dos grupos indígenas, que são em número maior. Essa realidade
denomina-se etnocracia. 31
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30
Gallois (2001, p. 169).
31
Nesse sentido, Stavenhagen (1984, p. 30-31): “Quando o grupo étnico dominante é,
também, a maioria numérica, as relações entre os grupos étnicos definem-se em termos de ‘problemas de minorias’. [...] A maioria branca vive preocupada porque as
maiorias (negros, latinos, hispânicos e orientais) podem, realmente, tornar-se uma
maioria demográfica no futuro. [...] Em algumas etnocracias, o grupo étnico dominante é uma minoria numérica. Quando isto ocorre na situação colonial clássica,
temos o caso nítido de luta de libertação nacional. Mas nem sempre é assim, como
demonstra o trágico exemplo contemporâneo da etnocracia da África do Sul. Em
algumas sociedades latino-americanas (notavelmente a boliviana e a guatemalteca),
o grupo étnico dominante minoritário são os mestiços ou descendentes dos espanhóis,
e a maioria são os índios nativos. Os primeiros identificam a nação consigo mesmos,
enquanto os últimos questionam cada vez mais o modelo vigente de Estado nacional
etnocrático. O conceito de nação tende a rejeitar a idéia de pluralismo étnico.”
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Deve ser ressaltado que o respeito à identidade cultural não se restringe
à do grupo dominante, inexistindo o mesmo respeito aos grupos minoritários
ou culturas oprimidas no interior dos estados-nações, ou ter-se-á uma minoria dentro de uma minoria. Em geral, o enfrentamento cultural e de Direitos
Humanos é omitido, não tendo a economia e a política sido capazes de solucionar os impasses étnicos. Stavenhagen 32 sugere que ignorá-los “representa,
não uma omissão, mas um ponto-cego paradigmático, pois, certamente, é
impossível afirmar que os fenômenos étnicos sejam insignificantes e não mereçam atenção”, como comprovado por inúmeros conflitos sangrentos que a
história universal registra, nos quais a questão étnica é central. Na opinião do
ilustre autor, “uma possível razão para isto é que os paradigmas da moderna
teoria social não incluíram o fator étnico como relevante para as perguntas
feitas à realidade.”
Outro enfoque de grande importância está ligado à autonomia dos índios, considerados relativamente incapazes, com suas tradições e saberes
desvalorizados, com “a construção de instrumentos que localizem as áreas
que melhor asseguram o direito à diferença e se prestam à troca de saberes e/
ou de bens entre as sociedades indígenas, os segmentos sociais dominantes e
a administração indigenista.” 33
A declaração da ONU de 1986 sobre o Direito ao Desenvolvimento concebe o desenvolvimento como uma meta a ser alcançada por meio da participação ativa e livre da população concretizada por intermédio de um processo
global, econômico e político, sem demonstrar preocupação com as peculiaridades e representatividade das comunidades indígenas e outras minorias, pois
se sabe que as questões referentes à autodeterminação e à soberania sobre
seus territórios e recursos naturais não parecem estar asseguradas.
A dicotomia entre tutela do Estado e autodeterminação dos povos obstaculiza a consecução do etnodesenvolvimento em sua acepção mais ampla.
CONCLUSÕES
O desenvolvimento sustentável só floresce numa democracia participativa, em que a responsabilidade pela preservação ambiental englobe o Estado,
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32
Ibid., p. 24-25.
33
Souza Lima e Barroso-Hoffmann (2002, p. 20).
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Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento
a sociedade organizada e os cidadãos, unidos no objetivo de melhorar a qualidade de vida e preservar os recursos naturais para as futuras gerações.
O direito ao desenvolvimento é um direito humano subjetivo, posto que
ninguém pode ser entregue à própria sorte, vivendo na Idade da Pedra quando
o mundo já conquistou o espaço sideral.
As etnias indígenas estão sob a proteção dos Direitos Humanos e não
podem ser dissociadas da sustentabilidade ambiental, como foi inicialmente
considerado, sendo perfeitamente possível a sua compatibilização, desde que
as ações governamentais respeitem os costumes indígenas e fomentem a participação da comunidade em seus destinos, já que o direito ao desenvolvimento pressupõe o direito de livre escolha do sistema econômico-social e a
autodeterminação desses povos.
Os recursos naturais existentes em reservas indígenas, resguardadas
as características culturais do grupo, devem ser utilizados para fomentar o
desenvolvimento socioeconômico da comunidade de forma sustentável.
A adoção e a implementação de políticas públicas ambientais indigenistas, bem como as ações governamentais correlatas a serem desenvolvidas
em prol do desenvolvimento e progresso do respectivo grupo étnico, devem
zelar pela preservação cultural indígena.
Para viabilizar o etnodesenvolvimento, é necessária a adoção de uma
política indigenista interativa, com fomento da educação clássica, que preserve a cultura étnica e valorize a diversidade cultural quando da implementação de políticas públicas.
O etnodesenvolvimento engloba aspectos interdisciplinares, num modelo que agrega o desenvolvimento da cultura indígena, a preservação do
meio ambiente habitado por esses grupos e o domínio do estado da técnica.
Os entraves do etnodesenvolvimento surgem não em decorrência dos
seus postulados, mas, principalmente, da equivocada interpretação desse processo pelas entidades governamentais e não-governamentais, bem como dos
seus dirigentes.
REFERÊNCIAS
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Um Respeito Étnico. Manaus; Boa Vista, 2011. Dissertação (Mestrado Interinsti-
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63
64
Elida Séguin
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RESUMO
ABSTRACT
Desde a década de 1980 se discute a
Justiça Ambiental como forma de serem partilhados equitativamente os
ônus do desenvolvimento. As questões
relacionadas à etnicidade inserem-se
nas discussões mundiais sobre Direitos Humanos. Este artigo propõe uma
análise da correlação entre Justiça
Ambiental e etnodesenvolvimento,
passando por sustentabilidade e Direitos Humanos. É perceptível que as
questões étnicas associadas à idéia de
sustentabilidade ambiental em terras
indígenas são vistas como obstáculo
ao crescimento econômico, o que
equivale a condenar esse grupo a viver
na Idade da Pedra sem as vantagens e
a dignidade que o desenvolvimento
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65
Since the 1980s, there have been discussions about Environmental Justice
as a means of equally sharing the burden of development. Issues related to
ethnicity have been included in the
global discussion of Human Rights.
This article proposes an analysis of the
correlation between Environmental
Justice and ethnodevelopment, sustainability and Human Rights. We perceived
that the ethnic issues associated to the
idea of environmental sustainability on
indigenous lands have been viewed as
obstacles to economic growth, which
is analogous to condemning this group
to live in the Stone Age, without dignity
and the advantages of development.
The urgent need for these people to use
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Elida Séguin
proporciona. A premente necessidade
de esses povos utilizarem os recursos
naturais existentes em suas terras, não
somente em caráter de subsistência,
mas também para o desenvolvimento
socioeconômico da comunidade, exige um modelo de gestão que garanta
a preservação de sua cultura e tradições. Neste trabalho, analisa-se o meio
ambiente cultural, considerando os
aspectos culturais de grupos que compõem a sociedade brasileira e a questão econômica do direito de todos ao
desenvolvimento e à dignidade. Nesse
contexto, é possível considerar o etnodesenvolvimento como instrumento
de política pública indigenista ligada
à seara ambiental, reconhecendo assim a estreita relação entre os índios
e os recursos naturais. Conclui-se, por
fim, que o etnodesenvolvimento veio
romper com um paradigma de injustiça ambiental, demonstrando que é
possível alcançar o desenvolvimento
de uma comunidade respeitando as
suas diferenças culturais e promover
a Justiça Ambiental. Ressalta-se que
os objetivos propostos pelo etnodesenvolvimento somente serão atingidos se
houver uma efetiva participação indígena nesses projetos, pois as principais reivindicações dessas sociedades
são o controle de suas terras e o reconhecimento de sua capacidade de autodeterminação.
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the natural resources from their lands,
not only for subsistence, but also for
the community’s socio-economic development, demands a management
model which guarantees that their
culture and traditions are preserved.
This paper analyzes the cultural environment and considers the cultural
aspects of the groups that make up
Brazilian society and the economic
issue of the universal right to development and dignity. In this context,
ethnodevelopment can be considered
an instrument of indigenous political
policy with the environment, therefore recognizing the close relationship
between the indigenous populations
and natural resources. In conclusion,
ethnodevelopment has ruptured with
a paradigm of environmental injustice, by showing that it is possible to
develop a community, respect cultural
differences and promote Environmental Justice. However, it must be observed that the objectives proposed by
ethnodevelopment can only be fulfilled if there is effective participation
of the indigenous populations in these
projects, for the main demands of these
societies are the control of their lands
and the recognition of their capacity
for self-determination.
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Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento
Palavras-chave: Justiça Ambiental,
desenvolvimento sustentável, etnodesenvolvimento, meio ambiente, Direitos Humanos.
Keywords: Environmental Justice,
sustainable development, ethnodevelopment, environment, Human Rights.
Elida Séguin é Advogada, Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro,
Doutora em Direito Público, Membro da Associação Professores de Direito
Ambiental do Brasil (APRODAB), do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública
(IBAP) e do Instituto de Advogados do Brasil (IAB), e Professora Adjunta da
UFRJ (aposentada).
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Biodiversidade e sua proteção jurídica:
os desafios para sua utilização
sustentável *
Flávio Ahmed
A biodiversidade é tema originariamente vinculado à tutela do meio
ambiente natural. Veremos, ao longo do presente trabalho, como se estabelece
sua tutela jurídica, como é vital para a existência humana, essencial à sua
sadia qualidade de vida, à sua dignidade, e como, sob nossa perspectiva, articula-se com outros campos da atividade do homem.
No ano de 2010, foi divulgado o relatório Panorama Global da Biodiversidade 3 para subsidiar os passos a serem adotados na 10ª Reunião da Convenção sobre Diversidade Biológica, que teve lugar em Nagóia, Japão, em
outubro desse mesmo ano, cujos resultados foram decepcionantes.
Tal relatório, publicado em maio daquele ano, trouxe dados alarmantes
que revelavam um quadro catastrófico em matéria de perda da diversidade
biológica, registrando taxas de extinção mil vezes maiores do que as médias
históricas e demonstrando fatos já discutidos pela comunidade acadêmica,
mas ignorados por grande parte da população.
*
O presente trabalho é uma versão do texto Unidades de Conservação e Biodiversidade: usos e valoração (Ahmed, 2011).
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 69-94, jul./dez. 2011
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Flávio Ahmed
Segundo o panorama nele traçado, os ecossistemas estão no limite, e sua
exploração insustentável prejudicará a produção de alimentos e as indústrias,
indicando que a biodiversidade diz respeito à segurança alimentar e ao desenvolvimento econômico e científico.
O referido relatório apontou números elevados no que tange ao prejuízo
resultante da perda da biodiversidade, da ordem de 2 a 4,5 trilhões de dólares
anuais. Ainda que se critique o modo como foram estimados, o certo é que
sua quantificação já demonstra a clara percepção do conteúdo econômico da
biodiversidade e que sua perda resulta em prejuízos financeiros significativos
para toda a humanidade.
Atestou, portanto, o total fracasso das metas firmadas na reunião realizada na África do Sul em 2002 (com prazo limite em 2010), tais como proteção
de um mínimo de 10% da biodiversidade, controle de espécies exóticas, regras
rígidas para o comércio internacional, tendo sido taxativo em detectar a queda
de um terço dos vertebrados, como mamíferos, peixes e pássaros, no período
entre 1970 e 2006.
Mas não é só. Mais de 60% dos ecossistemas do planeta estão ameaçados. Desse total, 35% são mangues e 40%, florestas. Na América do Sul, a
devastação das florestas alcançou 4,3 milhões de hectares, dos quais 3,5 milhões no Brasil.
Devastar insensatamente é destruir não apenas cobertura vegetal, mas
as vidas que nela residem, se multiplicam e interagem formando novas vidas,
oferecendo um espectro de material genético que se multiplica ao longo do
tempo e produz algo que não se produz em laboratório, mas que os laboratórios
e centros de pesquisa científica podem usar para uma vida melhor em prol do
homem e da própria natureza.
Destruir cobertura vegetal é destruir ecossistemas como ambientes complexos, íntegros e integrados, e com isso aniquilar memória genética essencial
à sadia qualidade de vida, na forma como preconiza o Art. 225, da CF. Daí a
razão inicial pela qual preservar o verde é tão importante para preservar a
diversidade biológica que cada ecossistema abriga e multiplica.
Portanto, a preservação da diversidade biológica de início diz respeito
à preservação de um patrimônio, biológico e genético, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida e à dignidade da pessoa humana.
François Jacob, professor de Genética Celular do College de France e
Nobel de Medicina em 1965, lembra que “o que caracteriza o mundo dos seres
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
vivos é simultaneamente sua aparente diversidade e sua unidade subjacente” 1.
Daí que, se a unidade se rompe, instaura-se o desequilíbrio, violam-se a vida
e a Constituição que prescreve o equilíbrio ecológico 2.
Tais números, constatações e conclusões nos dizem respeito de modo
imediato, como veremos a seguir.
As ameaças ao equilíbrio ecológico e à destruição da cobertura vegetal
geralmente caminham juntas, mas de todo modo revelam poder mais impactante em ambientes mais sensíveis e em locais que possuem riqueza maior,
como é o caso do Brasil.
O Brasil detém cerca de 23% de toda a biodiversidade do planeta. Alguns
autores falam em megadiversidade biológica, e outros, exageradamente, equiparam o Brasil a uma autarquia ambiental, como se fosse possível o País prescindir de germoplasma de outros países – “variabilidade genética total
disponível para uma espécie.” 3 Os potenciais presentes na nossa fauna e flora
no início da década passada já eram comparados às riquezas do cartel do petróleo. 4 Que dirá hoje, não porque tenham aumentado, mas porque o avanço
da ciência pode melhor quantificá-los e aferir suas qualidades.
O certo é que sabemos que, além da riqueza de biodiversidade, da megadiversidade ecológica, alguns biomas brasileiros como a mata atlântica 5 e
o cerrado 6 são considerados hotspots (zonas prioritárias) para a conservação
da diversidade biológica, pelo elevado grau de degradação que se operou sobre
eles e de sua riqueza endêmica.
Como se pode verificar, diante desse cenário e dentro do quadro traçado
pelo próprio relatório, a avaliação do patrimônio genético mundial e, em particular, do brasileiro, ganha um sentido especial não somente pelo seu valor
ambiental mas também pelo seu valor econômico, sendo dignas de nota tais
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1
Jacob (1989, p. 77).
2
Conceito distante de imutabilidade, como será demonstrado ao longo deste trabalho.
3
Para tanto, ver a crítica de Paulo de Bessa Antunes (2002, p. 5).
4
Arnt (2001, p. 52-64).
5
A mata atlântica abriga mais de 21 mil espécies de plantas vasculares, anfíbios,
aves, répteis e mamíferos. Além disso, entre 16% e 60% dos vertebrados são
endêmicos (Lopes et al., 2010, p. 60).
6
O cerrado é um dos biomas mais ricos do mundo, com mais de 12 espécies de plantas, 44% endêmicas (Cavalcanti et al., 2010, p. 68).
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percepções e tais ênfases. Sem trocadilhos, tais avaliações são naturais, em
razão de tais recursos possuírem valor econômico e também de serem limitados. E ainda: sua multiplicação é de difícil, se não impossível, recomposição
no caso de degradação.
Decerto, em virtude dos invocados valores imanentes, é necessário que
o direito venha a protegê-lo, e aqui se impõe o desafio de expor, de forma
sucinta, o balizamento da proteção existente da biodiversidade, de modo que,
sem embargo do panorama jurídico singelo e sistemático que exporemos, ficará consignada a tônica que visualizamos repousar sobre a questão mais
importante relacionada ao tema, que é o uso sustentável desse acervo monumental que é o patrimônio genético em proveito do homem.
Vejamos.
A proteção da biodiversidade se insere no campo da proteção do meio
ambiente natural. A Lei n° 6.938/91, que instituiu a Política Nacional do Meio
Ambiente no seu Art. 3°, inciso I, definiu meio ambiente como “o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica,
que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, e, no seu Art. V,
dentre os recursos ambientais houve por inserir “os elementos da biosfera, a
fauna e a flora.”
A menção do Art. 3° da referida lei, ao menos para as conclusões do
presente trabalho, não pode vir desacompanhada à do Art. 4° da mesma lei e
de alguns dos seus incisos, que deverão ser aqui transcritos:
Art 4° - A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
I - à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a
preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico; [...]
III - ao estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental e de normas relativas ao uso e manejo de recursos ambientais;
[...]
IV - ao desenvolvimento de pesquisas e de tecnologias nacionais orientadas para o uso racional de recursos ambientais;
V - à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, à divulgação de dados e informações ambientais e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade
ambiental e do equilíbrio ecológico;
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
VI - à preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas
à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo
para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida.
Pode-se notar que, dentre os objetivos da política nacional de meio
ambiente, a preservação, a utilização racional e o desenvolvimento andam
juntos, o que é perfeitamente compatível com o texto constitucional.
É sempre bom lembrar que o Art. 225 da CF, ao estabelecer a todos o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, visando assegurar a
efetividade desse direito, incumbiu ao Poder Público nos incisos do § 1°:
preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
[...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies [...].
Ou seja, a preservação do patrimônio genético e biológico é indissociada
do uso que dele se faz, e tal uso tem por escopo a dignidade da pessoa humana.
Outro ainda não é o sentido do que vem subscrito na Agenda 21, gestada
na ECO-92, em que, no seu item 15.2, se consigna que
os bens e serviços essenciais de nosso planeta dependem da variedade
e variabilidade dos genes, espécies, populações e ecossistemas. Os
recursos biológicos nos alimentam e nos vestem, e nos proporcionam
moradia, remédios e alimento espiritual. Os ecossistemas naturais de
florestas, savanas, pradarias e pastagens, desertos, tundras, rios, lagos
e mares contêm a maior parte da diversidade biológica da Terra. Os
campos agrícolas e os jardins também têm grande importância como
repositórios, enquanto os bancos de genes, os jardins botânicos, os
jardins zoológicos e outros repositórios de germoplasma fazem uma
contribuição pequena mas significativa. O atual declínio da diversidade biológica resulta em grande parte da atividade humana, e representa uma séria ameaça ao desenvolvimento humano.
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Verifica-se nesse item a associação dos ecossistemas naturais como locus
de genes, e tal fato possui especial significado quando se fala em unidades de
conservação (UCs), pois elas se afiguram como verdadeiros bancos genéticos.
Não apenas clima, captura de carbono, mas repositório de vida e pluralidade
de vidas é que constituem o fundamento da preservação integral ou sustentável de determinadas áreas verdes sempre em proveito da dignidade da pessoa
humana. O problema reside no significado de proveito em prol da dignidade
humana, pois as interpretações são as mais díspares, havendo consenso apenas
no que a afeta negativamente. Mas inexiste um conceito unívoco sobre o proveito em seu favor.
Mas, sem nos desviarmos do nosso percurso sobre a tutela jurídica da
biodiversidade, cabe destacar a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB),
com algumas notas a seu respeito.
A CDB é um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD) (Rio 92), realizada
no Rio de Janeiro, em junho de 1992. É um dos mais importantes instrumentos
internacionais relacionados ao meio ambiente e funciona como um guardachuva legal/político para diversas convenções e acordos ambientais mais específicos. É o principal fórum mundial na definição do marco legal e político
para temas e questões relacionados à biodiversidade (168 países assinaram a
CDB e 188 países já a ratificaram, estes últimos constituindo Parte da Convenção).
A Convenção encontra-se em plena vigência. Foi aprovada pelo Congresso Nacional mediante a expedição do Decreto Legislativo n° 02, de
03.02.1994, e promulgada pelo Decreto Presidencial n° 2.519, de 16.03.1998.
Possui, portanto, força de Lei Federal, nos termos do que prevê o inciso VIII,
do Art. 84, do texto constitucional. Dentre os seus princípios, destacam-se a
valorização da biodiversidade, que passa a ser vista como fundamental na
manutenção do processo ecológico e não mais como recurso natural a ser
explorado; o reconhecimento da soberania dos países sobre seus recursos ambientais; a obrigatoriedade dos signatários em conservar sua biodiversidade.
Como seus objetivos mais relevantes, podem-se sublinhar a conservação
da diversidade biológica; a utilização sustentável de seus componentes; e a
repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, donde se verifica que o uso e a conservação dos recursos são
pontos de destaque da CDB.
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
O STF vem decidindo pela supremacia dos Tratados, desde que subscritos pelo Brasil, o que não significa abolir a soberania. A esse propósito, em
relação à biodiversidade é sempre bom lembrar as palavras de Paulo de Bessa
Antunes, para quem, verbis:
há uma soberania responsável em relação aos demais países da comunidade internacional, na medida em que os Estados têm a obrigação de assegurar que atividades sob a sua jurisdição ou controle
não causem dano ao meio ambiente de outros Estados [...] dado o
fato de que a diversidade biológica é um interesse de toda a humanidade, está claro que o direito soberano dos Estados não inclui o de
destruí-la [...] Porém esse princípio de solidariedade em nada afeta
o conceito de soberania, já que o reconhecimento de que os Estados
têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos
afasta de plano a idéia de que a diversidade biológica existente em
cada um dos Estados é um patrimônio comum da humanidade. Se
aceita a tese do patrimônio comum, a conseqüência lógica seria o
estabelecimento de algum mecanismo internacional que se encarregasse de geri-lo. Não há, portanto, uma gestão internacional sobre
a diversidade biológica de cada um dos países. 7
No plano infraconstitucional, não é só a Convenção que regula a matéria.
Internamente, o patrimônio biológico ou, mais propriamente, seu acesso vem regulado ainda hoje pela Medida Provisória n° 2.186/2001, a qual,
por força do Art. 2° da Emenda Constitucional n° 32/2001, transformou-se
em Lei Federal. 8
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7
Antunes (2002, p. 5).
8
Até hoje não foi editada a respectiva Lei. Um primeiro projeto de Lei, elaborado
pela Senadora Marina Silva, não vingou. No Governo Lula, foi submetido para consulta pública um outro anteprojeto de Lei que, tendo sofrido inúmeras críticas pela
sociedade científica, notadamente por setores ligados à pesquisa, já que o referido
projeto não distinguia a pesquisa para fins privados dos científicos – inclusive porque
agravava os defeitos contidos na MP em vigor –, acabou por ser arquivado. Agora,
após a reunião em Nagóia, o Governo acena com um novo projeto, sem que se tenha
tido acesso aos seus termos. Para tanto, ver Angelo (2010, p. 9).
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A verdade é que a Medida Provisória n° 2.186/2001 é o diploma que
instrumentaliza a garantia ao direito à repartição de benefícios por meio da
celebração de contratos com cláusulas obrigatórias sobre propriedade intelectual como requisito para a concessão de autorização para fins de bioprospecção e desenvolvimento tecnológico. Nela, vem ainda consignada a
definição de patrimônio genético como sendo
a informação de origem genética, contida em amostras do todo ou
em parte de espécime, vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na
forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes
seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos,
encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em condições ex situ, desde que coletados in situ no território nacional na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. 9
Ela dispõe sobre a preservação do patrimônio genético em condições
in situ, já que tal preservação visa à conservação de ecossistemas e habitat e à
manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies em seus meios
naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde
tenham desenvolvido suas propriedades características.
A MP em questão possui e possuiu um papel muito importante num
cenário em que crescia a biopirataria e em que o Brasil possui um destaque
especial em termos de riqueza de biodiversidade, posto que, dos 23% de biodiversidade já aqui referidos, incluem-se cerca de 56.000 espécies de plantas
superiores já descritas. Com relação aos animais, o País abriga a maior diversidade biológica do mundo, em dois grupos: mamíferos, que representam 27%
do total mundial; e peixes, com mais de 3 (três) mil espécies de água doce.
A MP veio, portanto, no intuito de regular esse acesso, definindo biopirataria como a remessa de patrimônio genético para o exterior sem autorização
do órgão do país de origem, sem o consentimento do Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético, órgão especialmente instituído por ela para regular e autorizar o acesso ao patrimônio genético, regulamentado pelo Decreto n° 3.945,
de 2001. A biopirataria pode ser praticada pelo simples transporte de células,
que podem ser levadas em canetas, frascos de perfumes ou no bolso de uma
9
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§ 1°, Art. 7.
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
roupa, assim como pela remessa de animais ou plantas pelo correio. Há casos
de transporte de substâncias transportadas em roupas no próprio corpo.
Destaque-se, ainda, a propósito, a existência do Decreto n° 5.459, de
2005, que veio regulamentar a MP em questão no tocante às sanções a serem
impostas em caso de uso indevido da biodiversidade, que, juntamente com
ela, são importantes instrumentos da administração para atuar no combate à
biopirataria em defesa dos recursos naturais do Brasil, em prol da sua soberania, como também, e principalmente, para assegurar insumos necessários ao
seu desenvolvimento, evitando a evasão desse patrimônio singular cujos proveitos tanto ecológico quanto econômico devem reverter prioritariamente em
favor dos brasileiros.
Algumas palavras são necessárias acerca do uso da biodiversidade tal
como disposto na MP e seu regulamento. Seu uso não prescinde de autorização
do referido Conselho 10. Lembre-se que a CDB criou o instituto jurídico do consentimento prévio e autorizado de populações tradicionais aos recursos genéticos de um país e, no caso, do Brasil, órgão deliberativo do Ministério do
Meio Ambiente, conforme previsto no Art. 11 da Medida Provisória n° 2.186/
2001.
É possível, portanto, a utilização privada. Mas ela deverá submeter-se a
algumas hipóteses, a saber: a) pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico; b) formação e capacitação de recursos humanos; c) intercâmbio de informações; d) intercâmbio entre instituições de pesquisa; d) consolidação de
infra-estrutura de pesquisa científica e de desenvolvimento tecnológico; e) exploração econômica em parceria de processo derivado do uso competente do
patrimônio genético; f) estabelecimento de empreendimento conjunto de base
tecnológica.
O Art. 24 da Lei 11 estabelece a repartição dos benefícios resultantes da
exploração econômica ou do produto ou processo desenvolvido com base na
amostra do patrimônio genético. Essa repartição poderá ocorrer por meio de
divisão de lucros, royalties, acesso e transferência de tecnologias, licencia-
09.pmd
10
O Decreto n° 3.945, de 2001 disciplina seu funcionamento.
11
Emenda Constitucional n° 32/2001, Art. 2°: “As medidas provisórias editadas em
data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida
provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.”
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mento livre de ônus, ou ainda capacitação de recursos humanos (Art. 25). E o
Art. 26 estabelece uma penalidade para a exploração econômica em desacordo
com a Lei fixando a indenização de no mínimo 20% do faturamento bruto
obtido na comercialização dos produtos.
Importante destacar que a Lei fixa ainda formas de acesso. São elas o
“acesso ao patrimônio genético”; o acesso ao “conhecimento tradicional associado”; e a “bioprospecção”. De forma bem sucinta e atentos às definições
legais, podemos afirmar que a primeira consiste na atividade destinada à obtenção da amostra desse patrimônio, que visa isolar, identificar ou utilizar
informação de natureza genética com a finalidade de pesquisa, desenvolvimento tecnológico, com vistas à sua aplicação industrial ou de qualquer outra
natureza 12; a segunda consiste na obtenção de informação sobre conhecimento
ou prática individual ou coletiva, associada ao patrimônio genético de comunidade indígena ou local para fins de pesquisa, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico13 ; e a terceira é meio, ou seja, é atividade exploratória que
tem por finalidade identificar qual o componente do patrimônio genético e a
informação sobre conhecimento tradicional associado possuem potencial de
uso comercial. 14
Dito isso, não podemos deixar de sublinhar as críticas que repousam
sobre a MP. São várias e praticamente unânimes.
Com efeito, a Lei em vigor é tímida no sentido de assegurar uma compensação e distribuição equilibrada dos custos e benefícios de acesso e utilização dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional associado; certas
populações tradicionais em que as unidades de conservação ainda se encontram sem a titularidade regularizada ficam completamente alheias nas decisões quanto à coleta e ao acesso desses materiais; os conselhos não garantem
a participação efetiva das populações tradicionais, haja vista sua composição
paritária até hoje com membros do Governo como votantes; a MP adotou o
conceito de “anuência prévia”, que é um mecanismo muito mais tímido que o
previsto na Convenção de biodiversidade que fala em “consentimento prévio
fundamentado”; não há um tratamento diferenciado para pesquisa, o que
acarretou a prisão de cientistas sob a égide da biopirataria, portanto se de-
09.pmd
12
Art. 7°, inciso IV.
13
Art. 7°, inciso V.
14
Art. 7°, inciso VII.
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
fende um tratamento legal diferenciado para a pesquisa com uso comercial e
para a estritamente científica.
O próprio Estado brasileiro reconhece a deficiência. Eduardo Velez, exdiretor de patrimônio genético do Ministério do Meio Ambiente afirmou que
essa lei é reconhecidamente ruim. Ajuda a confundir ciência e biopirataria. Louvo a fiscalização, mas se for uma caça às bruxas, essa
investigação é estrategicamente inadequada. O governo precisa encaminhar com urgência projeto de lei, definindo um novo marco
regulatório. 15
A declaração veio após as pesadas multas que empresas estavam sofrendo por parte do Ibama, que alega a prática de biopirataria. As empresas
alegam que estão regulares e que o CGEN demora na autorização do uso, quando, inclusive, as próprias comunidades já autorizaram, resultando em prejuízo
para o País e em entraves ao desenvolvimento. 16
Tecidas tais considerações, importa agora destacar que as unidades de
conservação possuem importante papel na conservação da biodiversidade.
Como a abordagem jurídica reclama, nosso objetivo está relacionado à tutela
legal e aos objetivos traçados pela Lei, pelo que a hermenêutica se faz necessária para que seja vislumbrada a interseção entre os dois temas.
José Carlos Barbosa Moreira discorria em suas conferências que há certas coisas que não podemos nunca deixar de repetir, ainda que incorramos
em redundância, de tão importantes que são, pela primariedade e pela fundamentalidade que representam. Portanto, lembremos que a palavra ecologia
vem do grego “oikos”, que significa casa comum, morada.
Áreas protegidas são a morada da vida. Não é por acaso que a Convenção
sobre Diversidade Biológica (CDB) em seu Art. 8° estabeleceu que:
Art. 8°. Cada parte contratante deve, na medida do possível, e conforme o caso:
09.pmd
15
Malchik (2010a, p. 31).
16
A operação novos rumos realizada pelo Ibama multou a Natura em R$ 112,2 milhões
por suposta prática de biopirataria. Dezenove instituições de pesquisa foram advertidas (id., 2010b, p. 31).
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a) Estabelecer um sistema de áreas protegidas ou áreas onde medidas
especiais precisam ser tomadas para conservar a diversidade biológica;
b) Desenvolver, se necessário, diretrizes para seleção, estabelecimento e administração de áreas protegidas ou áreas onde medidas
especiais precisem ser tomadas para conservar a diversidade biológica;
c) Regulamentar ou administrar recursos biológicos importantes para
conservação da diversidade biológica, dentro ou fora das áreas protegidas, a fim de assegurar sua conservação e utilização sustentável.
Como assinalam Rodrigo Medeiros e Irene Garay,
as áreas protegidas são consideradas pela CDB instrumentos importantes na conservação in situ da biodiversidade não somente por
serem depositárias dos recursos biológicos, mas também por constituírem sítios onde a pesquisa e a utilização sustentável destes recursos
podem ser desenvolvidas. 17 (Grifos nossos)
Digno de nota é o posicionamento de Antonio Herman Benjamin, para
quem, verbis:
Nesse esforço, agora corriqueiro, de tutela da flora, fauna e habitat,
ênfase particular é dada aos chamados instrumentos jurídicos de
prevenção (mais recentemente também da precaução) e de conservação in situ, aí incluídas as unidades de conservação (rectius, áreas
protegidas). Filiando-se a essa corrente de pensamento, a Convenção
da Biodiversidade declara que “a exigência fundamental para a conservação da diversidade biológica é a conservação in situ dos ecossistemas e habitat naturais, e a manutenção e recuperação de populações
viáveis de espécies no seu meio natural”. 18
Ou seja, como bancos genéticos, destinam-se à conservação e à pesquisa.
Não só a elas, mas também a elas. Tais pontos são importantíssimos para que
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17
Medeiros e Garay (2006, p. 177).
18
Herman Benjamin (2001, p. 283-284).
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
evitemos certos equívocos interpretativos que conduzem a uma destinação das
unidades de conservação não endereçadas ao seu destinatário maior, o homem.
Portanto, a própria criação de uma lei dispondo sobre unidades de conservação, no caso a Lei n° 9985/2000, que em 2010 completou 10 (dez) anos,
diz respeito a uma demanda volitiva da sociedade, a qual vem baseada em
valores culturais de preservação em prol de uma sociedade melhor.
Nesse sentido, são bastante elucidativas as palavras de Cristiane Derani,
para quem:
Criar espaços especialmente protegidos por norma jurídica é instituir, pela idealização, ambientes racionalmente delimitados e de
ação humana programada a priori. O Direito, neste movimento, cria
aquilo que antes as sociedades, segundo sua cultura, instituíam: ocupações diferenciadas para ações antrópicas. Aqui não são movimentos exclusivamente materiais que definem a distribuição geográfica
dos seres humanos. O que se passa é, a partir de constatações objetivas, a criação, pela imposição normativa, de uma ordem geográfica
diferenciada com um fim específico: o de criar melhores condições
de vida humana pela conservação de espaços povoados por outras
espécies animais e vegetais. 19
A autora destaca que o SNUC, instituído pela Lei n° 9.985/2000, dividese em dois momentos normativos, sendo o primeiro o “da criação de tipos
ideais, universais e genéricos, encontrados no SNUC. O segundo é, a partir
dos tipos criados pela Lei, a subsunção de espaços concretos àquelas criações
racionais, num processo de racionalização do espaço.” 20
Alicerça a autora a criação jurídica das unidades de conservação sob 3
(três) perspectivas do ponto de vista da proteção ambiental, sendo elas “espaços geográficos retirados do modo de apropriação moderno; 2) planejamento territorial; 3) espaço técnico- científico.” 21
Como nosso tema aqui é biodiversidade, é dessa última perspectiva que
iremos nos dedicar de modo mais contundente.
09.pmd
19
Derani (2001, p. 232).
20
Ibid., p. 239.
21
Ibid.
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Antes de enfocarmos juridicamente a questão do aspecto científico da
biodiversidade e como ela encontra sua moldura no quadro jurídico instituído
pelo Sistema Nacional das Unidades de Conservação, são necessárias algumas
palavras sobre a situação fática das mesmas, numa perspectiva de avaliação
do que significaram os dez anos de criação desse sistema.
Como se viu, é necessária a implantação, após a criação. O Estado brasileiro, nesses dez anos de criação das UCs, tem dado demonstrações de total
incapacidade de gestão e implantação efetiva de tais modelos.
A questão vem bem assinalada por Jose Eduardo Ramos Rodrigues, que
destacou que “a maior parte das unidades de conservação de domínio público
existe apenas no papel” e que “apesar disto, todo ano, em todo dia comemorativo, o Poder Público está criando mais e mais espaços protegidos apenas
para fazer figuração” 22.
Marcelo Buzaglo Dantas, por sua vez, sublinha que, verbis:
É fora de qualquer dúvida, portanto, que a criação de UCs somente
“no papel” ou “de papel” não significa, em absoluto, atendimento
ao disposto no mandamento constitucional que estabelece o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E, menos ainda, que
seria necessária a criação desta espécie de espaço protegido para
que se pudesse dar cumprimento à legislação protetora do meio
ambiente. Muito ao contrário, as agressões ao meio ambiente são
coibidas através da adoção de políticas públicas adequadas, com licenciamento e fiscalização executados de modo sério e efetivo. A
legislação ambiental brasileira em vigor é das mais avançadas do
mundo e, se bem cumprida, por si só, é mais do que suficiente a
garantir a conservação do meio ambiente para as presentes e futuras
gerações. 23
Os dados confirmam tais considerações, a saber:
Estudos do MMA demonstram que a efetiva implantação do sistema
federal de UCs necessitaria de aportes anuais de R$ 543 milhões para
09.pmd
22
Rodrigues (1996, p. 140).
23
Dantas (2010, p. 221).
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
gastos correntes e R$ 611 milhões para investimentos. Dados de 2008
mostram terem sido destinados R$ 306 milhões no ano do total para
as UCs Federais, deixando clara a distância entre a oferta e a necessidade. Enquanto entre os anos de 2011 e 2008 houve um aumento de
16,35% na receita do MMA destinada às UCs, essas áreas tiveram uma
expansão de 78,46%. O orçamento do MMA, incluindo o Ibama e a
Agência Nacional de Águas, se manteve em torno de 1 bilhão ao ano
nos últimos cinco anos, como um dos menores entre todos os ministérios (0,125 do orçamento da União). 24
A situação nos estados e municípios não é diferente. Levantamento da
Câmara Técnica de Unidades de Conservação do Conselho Municipal de Meio
Ambiente do Rio de Janeiro no ano de 2010 traz dados alarmantes. Das unidades de conservação do município do Rio de Janeiro, apenas 7% possuem
conselho gestor. Também insignificantes 7% possuem plano de manejo. E o
que é mais importante: 60% das unidades de conservação do município possuem atributos naturais relevantes para que tais unidades sejam protegidas,
ao passo que expressivos 40% não possuem.
Ou seja, criam-se espaços fictícios, vedando a presença humana, sem
que tal criação venha acompanhada da respectiva implantação, pelo que tais
espaços ficam sem serventia para os fins jurídicos para os quais foram criados.
É claro que esse quadro de coisas afeta a perspectiva de pesquisa ambiental, tema maior de nosso foco no presente estudo e do qual trataremos a seguir.
Ao contrário do que se vitupera, as unidades de conservação não são
santuários incólumes da natureza. Como já se pode antever das diversas passagens aqui transcritas e como já demonstraremos, são espaços fundamentais
para o desenvolvimento científico em prol da vida humana. Áreas de preservação, sim, onde se devem manter o equilíbrio e a interação das espécies que
compõem aquele determinado espaço, mas cuja criação deve ser precedida
de estudos que avaliem a singularidade e ações que promovam sua proteção
a fim de que se alcancem os objetivos consignados na Lei.
Essa dimensão da biodiversidade vem contemplada por diversos de
nossos autores. É o que se lê em Celso Fiorillo e Adriana Diaféria, verbis:
24
09.pmd
Wey de Brito (2010, p. 14).
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A preocupação com a preservação da biodiversidade de nosso planeta
tem se acentuado cada vez mais, especialmente após o advento da
revolução industrial, e, mais recentemente, com o intenso crescimento
demográfico concentrado em determinadas regiões do globo. O aperfeiçoamento tecnológico veio a facilitar, em muito, o processo de desenvolvimento da maior parte dos ramos do conhecimento humano,
possibilitando que se interferisse nos ecossistemas com maior intensidade, principalmente no que diz respeito à utilização dos recursos
naturais como matéria-prima, a fim de atender às necessidades de
grandes massas populacionais, ansiosas por uma sobrevivência digna
e saudável. 25
Nesta perspectiva, a Lei criou Unidades de diversos tipos, mas em todas
elas permitindo a pesquisa científica, com maior ou menor grau de restrição.
Abordar o tema importa considerar que a Lei n° 9.985/2000, em seu Art. 4°,
marca a relação entre o SNUC e a biodiversidade em diversos de seus incisos, verbis:
Art. 4° O SNUC tem os seguintes objetivos:
I - contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais; [...]
IV - promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos
naturais;
V - promover a utilização dos princípios e práticas de conservação
da natureza no processo de desenvolvimento; [...]
X - proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental;
XI - valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica.
Como se verifica, a pesquisa científica e a valorização econômica e social
da biodiversidade estão entre os objetivos da Lei, em escorreita observância
ao que dispõe a CDB e outros diplomas aqui citados.
É certo ainda que a pesquisa científica vem consagrada nas unidades
de proteção integral, com expressa previsão, portanto, naquelas onde impera
maior grau de restrição à atuação do homem, tão-somente porque sua inter25
09.pmd
Diaféria e Fiorillo (1999, p. 16).
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
ferência pode afetar negativamente o ecossistema, mas não porque a biodiversidade não possa ser utilizada.
Assim é que o Art. 9° da Lei assevera que “a Estação Ecológica tem como
objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas”,
encontrando-se consignado no seu § 3° que “a pesquisa científica depende de
autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está
sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas
previstas em regulamento” e no seu § 4° que “na Estação Ecológica só podem
ser permitidas alterações dos ecossistemas no caso de: [...] coleta de componentes dos ecossistemas com finalidades científicas.” 26
O mesmo se verifica no tocante à Reserva Biológica 27, ao Parque Nacional 28, ao Refúgio de Vida Silvestre 29.
09.pmd
26
Inciso III. Comentando a questão, Morato, Avila e Fontana (2001, p. 384) destacam
que, verbis: “a pesquisa científica é um dos objetivos das estações ecológicas, mas a
realização não é totalmente livre. São necessários diversos procedimentos e autorizações para a efetuação das pesquisas. Faz-se indispensável, em todo o procedimento, o prévio controle público.”
27
“Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e
demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana
direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de
seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais.[...] § 3° A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável
pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este
estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.” (Grifos nossos)
28
“Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas
naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização
de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
[...] § 3° A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável
pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este
estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.” (Grifos nossos)
29
“Art. 13. O Refúgio de Vida Silvestre tem como objetivo proteger ambientes naturais
onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória. [...] § 4° A pesquisa
científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração
da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como
àquelas previstas em regulamento.” (Grifos nossos)
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A pesquisa também é uma tônica nas unidades de uso sustentável, por
óbvio, como se verifica no caso das Áreas de Proteção Ambiental 30, das Florestas Nacionais 31, da Reserva Extrativista 32, das Reservas de Desenvolvimento
Sustentável 33, variando a forma como a pesquisa e o uso são permitidos.
09.pmd
30
“Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo
grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou
culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das
populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica,
disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.[...] § 3° As condições para a realização de pesquisa científica e
visitação pública nas áreas sob domínio público serão estabelecidas pelo órgão gestor
da unidade.” (Grifos nossos)
31
“Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos
recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração
sustentável de florestas nativas. [...] § 4° A pesquisa é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e àquelas previstas em
regulamento.” (Grifos nossos)
32
“Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas
tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente,
na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem
como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e
assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. [...] § 4° A pesquisa
científica é permitida e incentivada [...]” (Grifos nossos)
33
“Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga
populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção
da natureza e na manutenção da diversidade biológica. [...] § 1° A Reserva de Desenvolvimento Sustentável tem como objetivo básico preservar a natureza e, ao
mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e
a melhoria dos modos e da qualidade de vida e a exploração dos recursos naturais
das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações. [...]
II - é permitida e incentivada a pesquisa científica voltada à conservação da natureza, à melhor relação das populações residentes com seu meio e à educação ambiental
[...].” (Grifos nossos)
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
Não poderia deixar de ser diferente. Inclusive porque constam dentre
os objetivos do Estado brasileiro, consagrados nos Arts. 218 e 219 da Constituição, promover e incentivar “o desenvolvimento científico, a pesquisa e a
capacitação tecnológicas” 34, dando tratamento prioritário à pesquisa científica básica, “em vista do bem público e do progresso das ciências” 35, de modo
que o mercado interno que integra o patrimônio nacional seja incentivado
para viabilizar “o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem estar da
população e a autonomia tecnológica do país.” 36
Subjaz à idéia de que a pesquisa que se realiza a partir da biodiversidade
é um instrumento de emancipação do homem e do país, insumo para a melhor
qualidade de vida e essencial à dignidade da pessoa humana.
Como vimos repetindo ao longo deste trabalho, a biodiversidade representa riqueza enorme. Dela depende, por exemplo, o mercado de remédios,
dos quais essa biodiversidade é insumo, através da utilização de princípios ativos
de plantas e de fungos. É imenso o potencial a ser explorado. Só para se ter uma
idéia, apenas 1% das plantas floreadas foram pesquisadas, sendo o conhecimento tradicional bastante vasto, conhecimento esse que deve ser protegido.
Nesse sentido, importa destacar as palavras de Herman Benjamin:
além de nos fornecerem recursos naturais com valor econômico (tanto
de uso de consumo como de uso produtivo), cruciais à nossa sobrevivência e ao funcionamento do mercado, como alimentos, medicamentos, fibras, madeira e combustível, e de nos garantirem opções estéticas
e recreativas, os ecossistemas e organismos vivos prestam-nos, permanentemente e a custo zero, serviços ecológicos de fato insubstituíveis
mesmo quando nos apoiamos na mais avançada tecnologia disponível.37 (Grifos do autor)
Ao mesmo tempo não se pode descurar que entre o tempo de descoberta
e o tempo de produção de um produto farmacêutico e sua efetiva utilização
há um longo percurso, com custos milionários, o que acarreta uma concentração
09.pmd
34
Art. 218, caput.
35
Art. 218, § 1°.
36
Art. 219.
37
Herman Benjamin (2001, p. 279).
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da produção, às vezes muito danosa a países como o Brasil, com deficiências
tecnológicas graves.
A proteção, portanto, é mais do que necessária, e o investimento em
pesquisa é inevitável. Concessões para uso da biodiversidade devem ser examinadas com muito zelo e cautela e direcionar-se à preservação, para o desenvolvimento do País e na perspectiva de sua soberania.
Nesse sentido, as palavras de Adriana Diaféria, para quem, verbis:
a concessão de privilégio temporário para a utilização de invenções
industriais deve atender ao interesse social e ao desenvolvimento
tecnológico e econômico do país. Nesse sentido, a concessão de patente, ao mesmo tempo que resguarda o direito individual do inventor
de explorar economicamente sua invenção, deve estimular e promover o desenvolvimento econômico do país, viabilizando o acesso
seguro às informações tecnológicas geradas, de forma a estimular a
inovação, dinamizando a livre concorrência e o desenvolvimento
de novas idéias inventivas industriais. 38
Não obstante a riqueza de biodiversidade, o Brasil é paupérrimo em
patentes. 39 Um dos maiores exemplos ocorreu nos anos 1960. Sérgio Ferreira,
da USP, descobriu o potencial do veneno da jararaca para remédios contra
hipertensão, publicando artigos a respeito. Anos depois, o laboratório MyersSquibb patenteou a técnica do princípio ativo e comercializa o medicamento
Capotem. Paulo Feldman, professor da USP, critica, afirmando que “os projetos
de pesquisa das academias são voltados às carreiras dos professores e não ao
mercado”, e prossegue: “o preconceito de interação contribui para que a inovação de dentro da faculdade não vire negócio.” 40
Também não se deve perder de vista que a biodiversidade é uma construção cultural. Nesse sentido, as palavras de François Jacob, verbis:
Vivos ou não, os objetos complexos são produtos de processos evolutivos em que intervêm dois fatores: as constrições, por um lado,
09.pmd
38
Diaféria (2007, p. 167).
39
Fusco (2011, p. B1).
40
Ibid.
88
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
determinando em cada nível as regras do jogo e marcando os limites
do possível; por outro lado, as circunstâncias que regem o curso real
dos acontecimentos e realizam as interações dos sistemas. Encontram-se em todos os níveis a combinação entre as constrições e a
história, embora em proporções diferentes [...] Mas é sempre preciso
atribuir um lugar à história, mesmo em física, uma vez que o próprio
universo e os seus elementos constitutivos têm uma história. 41
As afirmações supra não conduzem à conclusão de que a biodiversidade
seja uma construção humana. Não. A interferência nesse processo deve ser a
menor possível, pois o que hoje possuímos de diversidade ambiental traduz o
resultado de milhares de anos.
É o mesmo autor quem nos traz preciosas lições a respeito do tema,
verbis:
A evolução biológica encontra-se, desta sorte, fundada sobre uma
espécie de engenhoca molecular, sobre a constante reutilização do
velho para fazer o novo. Isto é documentado pelas homologias de
seqüências observadas não somente entre o DNA dos organismos
diferentes e até filogeneticamente distantes, como também no DNA
de um mesmo organismo. 42
[...]
Trata-se sempre de utilizar os mesmos elementos, de os ajustar, retalhando aqui e ali, de os dispor em diferentes combinações para
produzir objetos novos de complexidade crescente. Trata-se sempre
de fazer engenhocas. 43
Não só o cuidado, mas a pesquisa séria deve balizar a questão do uso e
da preservação da biodiversidade, evitando-se, com isso, análises superficiais.
Em primorosa exposição no painel de debates no IV Congresso Nacional
de Direito Ambiental, realizado em São Luis, no Maranhão, em 2010, e coordenado pelo Prof. Samir Jorge Murad, de que participamos e que proporcionou
09.pmd
41
Jacob (1989, p. 65).
42
Ibid., p. 79.
43
Ibid., p. 86.
89
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a elaboração do presente trabalho, o biólogo Márcio Costa Fernandes Vaz dos
Santos trouxe números reveladores sobre a lista de animais em extinção, com
questionamentos contundentes sobre os critérios científicos que balizam tais
listas. Afirmou ele que os Estados Unidos da América possuem “estimativa de
120 mil espécies” e prosseguiu informando que, “em 2010, os EUA listaram
1.375 espécies ameaçadas de extinção (considera vertebrados e invertebrados - aquáticos e terrestres) e plantas com flores e sem flores.” Ao passo que
no Brasil, na sua avaliação, pelo seu levantamento, há “estimativa de 170 a
210 mil espécies”, sendo que “em 1989 lista 219 espécies ameaçadas de extinção e em 2003 lista 400 (quatrocentas) espécies ameaçadas de extinção (não
considera peixes ou invertebrados aquáticos).”
Na comparação entre os dois países, o Brasil sai perdendo, considerando
que sua biodiversidade é muito maior.
Sem nenhum menoscabo ao papel que desempenham os grandes predadores em extinção, insetos são tão ou mais importantes, como, por exemplo,
besouros ou abelhas. Só para ficar nos besouros, Thomas M. Lewinsohn informa que entre 350 a 400 mil espécies de besouros já foram descritas 44. Não
se verifica tamanha preocupação na avaliação sobre sua importância. As abelhas, que são polinizadoras, têm tido papel destacado, por estarem sendo extintas, com conseqüências dramáticas 45.
Demais disso, não hesita o pesquisador em apontar evidências de subjetividade na avaliação da importância da biodiversidade, eis que se verifica
“predomínio de espécies de grande porte e mamíferos nas listas de espécies
ameaçadas”, “resistência para inclusão de espécies de interesse econômico
estratégico na lista de espécies ameaçadas” e ainda “reduzido número de espécies definidas como exóticas.”
A proteção da biodiversidade e os seus critérios balizadores, portanto,
devem possuir como parâmetros avaliações científicas e não meramente ideológicas ou de marketing. A natureza assim exige.
09.pmd
44
Lewinsohn (2010, p. 44).
45
Tal extinção tem sido atribuída aos inseticidas ministrados, notadamente os
neonicotinóides, que contaminam as plantas. Osmar Malaspina, professor da Unesp,
pesquisou de 2008 a 2010 a região de Rio Claro, em São Paulo, num raio de 200 km
e detectou a perda de 10 mil colméias, sendo que de 800 a 1.000 apresentavam
sinais de neonicotinicóides (Falcão, 2011, p. 26).
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Biodiversidade e sua proteção jurídica: os desafios para sua utilização sustentável
Grande desafio, contudo, é conciliar preservação e desenvolvimento.
A biodiversidade possui um valor econômico e ambiental imenso. O
aperfeiçoamento dos instrumentos jurídicos revelam-se essenciais para a proteção do bem ambiental de que se constitui a biodiversidade e dos valores a
ela imanentes. Encontramo-nos à míngua de um diploma legal que enfrente
a dimensão da realidade socioambiental brasileira e supere o falso dilema
supramencionado. Uma ampla discussão envolvendo sociedade e diversos
segmentos, como o científico e o industrial, poderá apontar caminhos para
que possamos aprofundar as discussões fornecendo ao legislador elementos
aptos para que se promovam o desenvolvimento e a sustentabilidade, sem
que seja necessário abrir mão das grandes conquistas ambientais. Ou antes
ainda: solidifique-as.
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ABSTRACT
RESUMO
Este artigo trata da importância da
biodiversidade e de sua tutela jurídica
e reflete sobre sua importância para a
existência humana, a fim de aprimorar sua qualidade de vida e sua dignidade, e sobre o modo como se articula
com outros campos da atividade humana. Por meio de análise de dados
divulgados em relatórios sobre a temática biodiversidade, sustenta que o
diálogo que envolve a sociedade e diversos segmentos, como o científico e
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This article is about the importance of
biodiversity and its legal protection
and reflects on its importance to human existence in order to improve quality of life and dignity; and about how it
articulates with other fields of human
activity. By analyzing data published in
reports about biodiversity, it sustains
that the dialogue between society and
different segments, such as the science and industry, will provide the
grounds for deepening the discussion
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o industrial, indicará o norte para que
se possam aprofundar as discussões
em torno do valor do aperfeiçoamento
dos instrumentos jurídicos para a proteção do bem ambiental.
about the value of perfecting juridical
tools for environment protection.
Palavras-chave: biodiversidade, dignidade humana, meio ambiente, proteção do bem ambiental.
Keywords:: biodiversity, human dignity, environment, protection of environmental assets.
Flávio Ahmed é Advogado, Cientista Social Presidente da Comissão Permanente de Direito Ambiental da OAB-RJ, Membro da Comissão Nacional de Direito
Ambiental da OAB (Conselho Federal), Elaborador, Coordenador e Professor
do curso de Direito Ambiental da ESA-RJ (Escola Superior de Advocacia da OABRJ - VIII edição), Membro do Conselho do Programa de Direito e Meio Ambiente
da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-RIO) e Professor de Direito Ambiental da Escola de Direito da FGV-RIO nos cursos de Graduação e
Pós-Graduação.
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Entre dois morros: disputa simbólica
na paisagem urbana carioca *
Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Cláudio Rezende Ribeiro
INTRODUÇÃO
Em seu clássico “A conquista da América”, Todorov 1 dá destaque, em
certo momento da obra, à figura de Malinche, mulher oferecida aos espanhóis
pelos astecas que tem como característica especial dominar também a língua
maia. Essa mulher torna-se personagem fundamental no processo de conquista
quando aprende também o espanhol e, servindo de tradutora e elo entre três
línguas e culturas, facilita a negociação entre as duas civilizações em pleno
reconhecimento e choque. A comunicação e o convencimento são armas poderosas no processo de conquista, o que torna Malinche uma figura central para
os conquistadores (e, supõe-se, também para os conquistados, não se pode atribuir apenas um papel de entrega à Malinche, pois os registros dessa conquista
constituem a história dos vencedores). Há também outro processo narrado
*
Este artigo é uma versão um pouco alterada de um trabalho apresentado no Second
International Conference of Young Urban Researchers (Sicyurb), que foi realizado
no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa em outubro de 2011.
1
Todorov (2003).
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 95-113, jul./dez. 2011
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
por Todorov que diz respeito à relação conquista e comunicação que merece
um relato breve neste início de discussão: antes de executarem os povos americanos no atual território mexicano, os conquistadores espanhóis liam, em
voz alta, unicamente em sua própria língua, as condições pacíficas de rendição
a que deveriam se submeter os índios, que, por sua vez, não tomando conhecimento de tais condições que nunca chegaram a compreender e, supõe-se,
nunca sequer nelas reconhecendo alguma negociação, eram, no entanto, percebidos como confrontadores da norma e, por isso, podiam ser massacrados
de forma legalmente legitimada.
Estas duas imagens, a figura de Malinche e o ritual da leitura legal legitimadora do massacre pelos espanhóis, podem ser bastante úteis para compreender alguns dos processos observados no início de uma pesquisa sobre
as novas formas de transformação urbana do Rio de Janeiro que aqui serão
relatadas em forma de artigo. Antes, porém, de compreendermos como se dá
essa relação entre duas formas diferentes de conquista territorial, vamos nos
deter em uma descrição mais objetiva do que ocorre, hoje, na produção do
espaço urbano dessa cidade sul americana.
A TRANSFORMAÇÃO DINÂMICA DO ESPAÇO URBANO CARIOCA
CONTEMPORÂNEO E A REGIÃO PORTUÁRIA – A CONSTRUÇÃO DO
PROBLEMA
A cidade do Rio de Janeiro abrigará dois grandes eventos esportivos
mundiais nos próximos cinco anos: Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos
de 2016 2. Essa concentração de eventos globais em um mesmo espaço urbano
aprofunda as pressões sociais, políticas e econômicas sobre o território e evidencia as disputas que o configuram.
Internamente ao município, dentre as diferentes regiões da cidade afetadas pelas propostas de transformação urbana, é a Zona Portuária a que recebe
maior pressão. Isso se dá por sua localização próxima tanto do centro da cidade
quanto do mar (Figura 1), além de ser área há muito tempo cobiçada pelo
2
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Além desses eventos, houve os Jogos Mundiais Militares em 2011 e haverá a Copa
das Confederações da Fifa em 2013. Recentemente, o encontro mundial da juventude católica decidiu que sua próxima sede será também o Rio de Janeiro. Na outra
ponta, houve também o encontro Rio + 20, que debateu a questão ambiental global
20 anos após a chamada Eco ’92...
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
capital imobiliário carioca que, apenas agora, com a realização dos jogos,
mediante recente e casuística regulamentação, tem possibilitada a exploração
do solo de maneira satisfatoriamente rentável para os padrões do mercado
imobiliário local e global.
Figura 1: A localização da área do Projeto Porto Maravilha em relação ao
município do Rio de Janeiro
Fonte: Google Earth, editado pelos autores.
Essa regulamentação ocorreu, em grande parte, a partir de um concerto
político entre os governos federal, estadual e municipal, que, ao se alinharem
após os últimos resultados eleitorais, permitiram que suas áreas de competência, incluindo “suas terras”, fossem transformadas para receber o projeto
Olímpico. Esse alinhamento era fundamental, pois a maior parte do solo onde
está situada a área do porto é de domínio público e, principalmente, pertencente à União, especialmente a área de aterro realizado no início do século XX
pelo presidente Rodrigues Alves e pelo prefeito Pereira Passos – à época, o
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Rio de Janeiro ainda era capital federal. Durante muito tempo houve diversos
projetos pensados e tentados nessa região, mas sempre se encontrava, dentre
outras coisas, essa barreira político-fundiária que impedia qualquer tentativa
de mudança de maior vulto para a área.
Nesse mesmo espaço, encontram-se duas localidades fundamentais para
a história, formação e cultura urbanas do Rio de Janeiro: os Morros da Conceição e da Providência. O primeiro é um dos locais mais antigos de ocupação
da cidade, representando, juntamente com o de São Bento, os únicos morros
sobreviventes aos desmontes realizados durante o século XX que apagaram a
memória da fundação do Rio de Janeiro ao transformarem os Morros do Castelo e de Santo Antônio em aterros. O Morro da Providência, por sua vez, é o
local onde surgiu uma das primeiras favelas brasileiras no final do século XIX
e que ainda hoje lá resiste às pressões de mais de um século de existência
(originalmente chamado Morro da Favella, emprestou seu nome às ocupações
urbanas dos brasileiros pobres desde então).
A semelhança entre esses morros termina em sua morfologia, pois possuem configurações históricas e sociais bastante distintas, que talvez, apenas
agora, sob a pressão dessas novas transformações comecem a se encontrar. O
Morro da Conceição é habitado principalmente pela classe média, em grande
parte ocupante tradicional daquele morro que, abrigando equipamentos militares do exército (como a Fortaleza da Conceição) e localizando-se perto do
Porto do Rio e de suas inseparáveis estruturas da marinha, acaba denunciando
a origem de parte de seus ocupantes mais antigos: funcionários públicos,
militares do exército e da marinha. O Morro da Providência, por sua vez, abriga
uma população pobre; sua ocupação se deu, em grande parte, a partir da expulsão de moradores dos cortiços demolidos na virada do século passado e
também dos moradores dos outros morros 3 que ficaram sem lugar no centro
da cidade a partir do desmonte de seu chão.
Além dessa configuração socioeconômica diferenciada, as diferentes
trajetórias desses espaços ficam reforçadas pela diferença de reconhecimento
institucional com forte repercussão simbólica dado aos dois pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Tal diferença é significativa
pois representa, de certa forma, a maneira como parte das instituições sociais
3
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Referimo-nos principalmente aos Morros do Senado e do Castelo, que foram demolidos na primeira metade do século XX.
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
brasileiras enxergam a história da produção de seu espaço. O Morro da Conceição, sendo considerado uma das ocupações originais da cidade, recebe um
tratamento de preservação legal de sua ambiência integral, ou quase integral.
Como exemplo, a portaria n° 2, de 14/03/1986, do Iphan, que, dentre outras
coisas, “[determina] as especificações para construções, inclusive reformas e
acréscimos, [...] [no] conjunto arquitetônico do Jardim e Morro do Valongo;
o Palácio Episcopal e a Fortaleza da Conceição, no Morro da Conceição” 4. Já
o Morro da Providência, apesar de possuir alguns bens tombados de forma
isolada, que são somente os relacionados à época colonial, notadamente bens
da igreja católica, não tem nenhuma proteção normativa que garanta que este
espaço centenário que originou, inclusive, a palavra favela receba alguma
proteção institucional e simbólica. Essa vulnerabilidade social e simbólica dos
habitantes e do espaço da Providência acaba por facilitar o retorno de práticas
há décadas abolidas do vocabulário do planejamento urbano brasileiro: as
remoções de moradores de favelas. Mas há que se fazer também a seguinte
pergunta: a proteção institucional de caráter simbólico nacional existente no
Morro da Conceição é capaz de salvaguardá-lo da pressão do capital internacional que o patrimônio cultural e paisagístico sofre hoje? Talvez esta pressão
global, esta nova dinâmica urbana, seja o que acabará unindo, pelo viés da
vulnerabilidade, esses dois espaços.
Este artigo vai iniciar um debate a respeito dos conflitos advindos dessa
nova dinâmica urbana por que passa hoje o território carioca, a partir da comparação das mudanças ocorridas nesses dois morros. Como ocorre o contato
dessa forma recente e agressiva de transformação do território com espaços
simbolicamente diferenciados: aquele espaço que é regulado, mais protegido
e menos vulnerável simbolicamente está mais protegido das mudanças rápidas?
Como observar, qualitativamente, as diferenças desses encontros e desencontros de lógicas tão distintas de produção espacial: a do capital internacional,
a do patrimônio nacional, a da informalidade? A vulnerabilidade social dos
habitantes da Providência se torna mais presente em função da sua maior
vulnerabilidade simbólica? O reconhecimento cultural do Morro da Conceição
produz algum tipo de proteção às pressões do capital global? Essas perguntas
fazem parte do caminho que começa a partir de uma longa pesquisa da qual
este artigo é apenas um início de problematização.
4
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Brasil (1986).
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O CONCEITO DE ESPAÇO CORDIAL E A DISPUTA DO QUE É SER
URBANO – SITUANDO O PROBLEMA
A análise proposta por este trabalho pretende evidenciar a possibilidade
de existência de fissuras tanto no discurso quanto nas ações empreendidas
atualmente sobre o tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro. A necessidade
de tal evidência é dupla: primeiramente, ressaltar que há diferentes formas
de se conceber uma cidade, e, em segundo lugar, reconhecer que essas formas
podem representar uma chave para o fomento de uma pluralidade social capaz
de garantir o direito à cidade.
Essa evidência se dará, no entanto, por seu viés negativo, ou seja, a
reprodução do espaço estudada aqui nega a possibilidade de manutenção de
diferentes formas e conteúdos espaciais em nome de uma lógica única de intervenção na cidade que chamaremos de espaço cordial. O espaço cordial
necessariamente nega a existência do urbano como local do conflito, do encontro, da diversidade e do barulho. O espaço cordial se produz a partir do
silêncio travestido de cumplicidade, ou do autoritarismo travestido de eficiência, e, como não poderia deixar de ser, da política travestida de técnica. Em
trabalho anterior, já se afirmou que:
O espaço cordial será produzido onde e quando houver a convivência
de discursos inconciliáveis que não se evidenciem como tal em forma
de conflito. Essa relação sempre se dará de forma opressiva e extremamente individualizante, por exemplo, quando espaços públicos se
transformam, disfarçadamente, em privados, em nome de um progresso técnico. A técnica, aliás, nesse espaço, será sempre naturalizada, posto que a naturalização de uma atividade humana é, por si só,
conciliação de discursos opostos. [...] Junte-se a isso que o espaço
cordial também será produzido onde e quando houver esse híbrido
de legalidade e ilegalidade, formalidade e informalidade, inserido em
uma lógica normativa que parte de ideais necessariamente alheios à
realidade de sua aplicação e que, portanto, servem ora a uma configuração social, ora ao seu oposto, criando um estigma de incerteza e
insegurança urbana que só não é sentido por quem faz parte da criação e do domínio dessas lógicas. A eficácia jurídica das normas não
acompanha seu par social. Trata-se de um espaço que se molda, assim,
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
na continuidade social enrijecida por uma autoridade técnico-política e alheia à possibilidade de debate e de conflito social legitimado. 5
Esse silêncio, essa pseudoneutralidade, que impede o conflito social
delimitador do que é o urbano, se vê revelado e concretizado na forma espacial que lhe é própria e é melhor compreendido a partir da relação dessa forma
com seu conteúdo, notadamente seu conteúdo normativo, que acaba por delimitar os processos de realização desse silêncio ao mesmo tempo que revela as
mesmas fissuras oriundas da própria cordialidade, que é, como já foi dito,
filha da indefinição do que vem a ser legalidade, do que vem a ser direito. A
partir dessa complexa relação entre a forma e a norma, vai se tentar aproximar
do espaço carioca contemporâneo, com o intuito de produzir novos sentidos
no processo de interpretação e novas maneiras de questioná-lo.
Ora, o recorte realizado neste estudo perpassa o entendimento da reprodução desse espaço cordial renovado por dinâmicas contemporâneas (e
complexas) de realização do capital no território urbano. Podemos assim voltar
a Todorov, pois essa forma complexa e moderna (no sentido de contemporânea
ao regime econômico capitalista) de ocupação territorial somente poderá ser
entendida a partir de reflexões históricas que revelem processos de relações
humanas que iluminem as formas contemporâneas.
Para compreender como têm se dado as transformações nos dois morros
citados, foram realizados estudos que incluíram visitas a esses espaços (as
primeiras visitas foram já bastante reveladoras da complexidade do processo
a ser desvelado e interpretado – Figura 2).
A visita ao Morro da Conceição (Figura 3), acompanhada por um arquiteto que lá reside há 7 anos, nos apresentou, dentre diversas outras questões,
uma que chama bastante a atenção do processo de intervenção do poder público (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) naquele espaço: a equipe responsável pela intervenção 6 se reuniu com os moradores daquele morro para
10.pmd
5
Ribeiro (2010, p. 118-119).
6
Esta intervenção, chamada de Porto Maravilha (disponível em: <http://www.
portomaravilha.com.br>), é uma complexa Operação Urbana Consorciada, incluindo uma Parceria Público-Privada aplicada ao território tema desta pesquisa coletiva
desenvolvida por outros colegas do nosso Laboratório. Muitas vezes não se sabe
identificar onde o poder público está atuando, onde o poder privado está interferindo: eis uma das novas formas de reprodução do espaço cordial.
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
apresentar as obras que lá seriam feitas; não se tratava, no entanto, de consulta prévia sobre um possível plano futuro a ser realizado com a participação
da população, mas do anúncio dos resultados que lá deveriam ser concretizados. Na ocasião 7, como o arquiteto e urbanista teve mais facilidade de entendimento das propostas, “serviu” de intérprete, uma Malinche, num primeiro
momento, entre o empreendedor da obra e os moradores da Conceição 8.
Figura 2: Os dois morros em detalhe na foto aérea. O roteiro da visita
realizada no Morro da Providência (03/09/2011) e o roteiro
percorrido no Morro da Conceição (20/08/2011)
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7
Segundo depoimento do arquiteto e urbanista que nos acompanhou. Privilegiamos
a fala de moradores nos dois morros por compreendermos que ela nos revelaria a
maneira como as informações de transformação do espaço chegam aos habitantes
de forma mais reveladora dos atuais processos de controle e negociação urbanos.
8
De forma breve, pelo que se pôde apreciar, as obras no Morro da Conceição estão
focadas em uma atualização da infra-estrutura urbana do lugar feita por um consórcio privado que passará a explorar esses serviços. Ainda não se conseguiu compreender a totalidade dessas obras, tal é a instabilidade desse projeto (instabilidade
que, cada vez mais, se mostra como estratégia de implementação).
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
Fonte: GoogleEarth, editado pelos autores.
Figura 3: Algumas visadas do Morro da Conceição
Fonte: acervo do Laboratório de Direito e Urbanismo (Ladu).
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
Essa tarefa foi percebida pelos técnicos 9 empreendedores, que passaram
a chamá-lo sempre a participar das reuniões na posição de tradutor das vontades dos moradores para os técnicos e vice-versa, até que, em determinado
momento, segundo depoimento desse morador, se viu agindo contra sua própria vontade, uma espécie de legitimador indireto de um processo complexo
do qual discordava e não desejava participar. Resolveu, assim, em certa reunião
na sede do poder público, levar consigo diversos moradores exigindo que os
técnicos debatessem diretamente com os representantes que considerava os
legítimos interlocutores daquele espaço. Essa recusa nos diz algo. Malinche
se nega a falar o espanhol e anuncia: aprendam vocês a dialogar com os maias.
Trata-se de uma ruptura de resistência e negação de um processo que não se
mostra, até agora, legitimado pela população ali residente.
De forma semelhante, esse morador narrou que há uma série de transformações em curso no ano corrente (2011) que derivam indiretamente das
mudanças advindas com a implementação dos atuais projetos do Porto Maravilha e que se assemelham ao processo denominado no meio acadêmico do urbanismo como gentrificação. Como esse espaço está carregado de significação
construída pela população ao longo dos anos, de relevância cultural na cidade,
seu valor simbólico protegeu sua paisagem por muito tempo, mas é agora capitalizado e transformado em valor paisagístico mais amplo, em ativo econômico
para futuros empreendedores que enxergam ali a oportunidade de criar um
novo ambiente de consumo do estilo de vida internacional da “burguesia pósmoderna” 10: um circuito “cultural”, no caso: ateliês de artistas que começam a
ocupar o morro; restaurantes, cafés... Se por um lado a proteção do Iphan serviu
como forma de reconhecimento e manutenção de um território, parece que, no
momento de alteração da dinâmica econômica, tal proteção acaba surtindo efeito diverso 11. Françoise Choay relata isso de forma clara quando afirma:
10.pmd
9
Na atual conjuntura, ainda é difícil de explicar quais eram ligados ao poder público
municipal ou à iniciativa privada do consórcio vencedor da licitação. Talvez sejam
mesmo ligados a ambos, ou talvez o que se chama aqui de ambos seja apenas uma
coisa só.
10
O trabalho de David Harvey “A condição pós-moderna” ainda é a melhor descrição
deste fenômeno em sua origem.
11
Esta relação do Iphan com espaços dinâmicos é complexa, posto que a proteção começa a se dar segundo outras relações de poder. Em estudo anterior, isto foi analisado
para o caso da cidade de Ouro Preto ao longo do século XX (cf. Ribeiro, 2010).
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
A palavra mágica: valorização [mise-en-valeur]. Expressão-chave, da
qual se espera que sintetize o status do patrimônio histórico edificado,
ela não deve dissimular que hoje, como ontem, apesar das legislações
de proteção, a destruição continua pelo mundo, a pretexto de modernização e também de restauração, ou à força de pressões políticas,
quase sempre irresistíveis. [...] Essa expressão-chave, que deveria nos
tranqüilizar, é na realidade inquietante por sua ambigüidade. Ela remete a valores do patrimônio que é preciso fazer reconhecer. Contém,
igualmente, a noção de mais-valia. É verdade que se trata de maisvalia de interesse, de encanto, de beleza, mas também de capacidade
de atrair, cujas conotações econômicas nem é preciso salientar. 12
Essa situação de vulnerabilidade, apesar do reconhecimento, valorização e proteção simbólica nacional, demonstra o quão complexa e dinâmica é
a capacidade de adaptação desse capital contemporâneo que se realiza no
espaço. Diante de toda essa situação, no entanto, mesmo levando-se em consideração essa aproximação inicial que explicita apenas uma forma de interpretação do espaço do Morro da Conceição, pode-se afirmar que há aí uma
disputa por diferentes espaços que se revela na recusa do interlocutor em legitimar as alterações que hoje ocorrem. Resta saber se esta recusa, se este conflito, se esta disputa serão, em algum momento, incorporados à produção
desse novo espaço ou se o silêncio permanecerá reforçando a cordialidade.
O Morro da Providência (Figura 4), por sua vez, revela uma outra forma
de produção do espaço pelo mercado que pode ser mais facilmente compreendida também a partir da narrativa da conquista da América feita por Todorov
(de alguma forma, a possibilidade de interpretação desses dois espaços a partir
da leitura de um mesmo fenômeno (anterior, distante, mas único) não deixa
de ser um indicativo de que, em algum momento, haverá a possibilidade de
interpretar os dois morros a partir do mesmo viés). A leitura paralela com a
história das conquistas por parte dos espanhóis das condições de rendição
que legitimavam o massacre indígena acaba por nos ajudar a interpretar o
que foi visto até então na visita a esse morro 13.
10.pmd
12
Choay (2001, p. 212. Grifo nosso).
13
Além dessa visita ao Morro da Providência, houve anterior participação de pesquisadores deste Laboratório de Direito e Urbanismo em reuniões públicas com repre-
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
Figura 4: Algumas visadas do Morro da Providência
Fonte: acervo do Laboratório de Direito e Urbanismo (Ladu).
sentantes da ONU junto com a comunidade, em audiências públicas do Ministério
Público Federal, que investiga as atuais ações no território carioca por parte deste
Porto Maravilha, em debates na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo com representantes dos moradores e dos empreendedores, em debates com representantes
da Câmara dos Vereadores e da Comissão de Desenvolvimento Urbano da Região
do Porto etc. (Vários destes relatos estão em nosso blog: <http://www.direitoe
urbanismo.wordpress.com>).
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
Nesse território historicamente pautado pela resistência popular a uma
situação de instabilidade jurídico-espacial e vulnerabilidade simbólica, a
exemplo do caso anterior, também não houve reunião prévia com a população
para apresentação dos projetos que serão executados e muito menos de como
seriam realizados. Houve, no entanto, o aviso, a leitura das condições de entrega do território que se concretiza na pintura ameaçadora da sigla SMH
(Secretaria Municipal de Habitação – Figura 5) 14 seguida de algum número
que, segundo relatos, representa a “necessidade” futura de remoção da casa
marcada. A dimensão simbólica de ter sua casa pintada é incalculável: por
um lado, há uma tentativa do empreendedor em legitimar o processo de forma
técnica ao inserir o misterioso número que nada significa a quem lá habita,
fazendo crer que se trata de informação, legítimo direito à informação, constituindo, entretanto, de fato, tão-somente um signo, uma exterioridade do
pseudoplanejamento, organização, de quem fez a marcação legível apenas
para ele; por outro lado, reforça e amplia a situação da vulnerabilidade temporal do morador da favela, que, sem saber quando e como deverá ser expulso,
se mantém em uma constante instabilidade emocional e precariedade espacial.
Figura 5: Algumas casas do Morro da Providência com a pintura SMH
(Secretaria Municipal de Habitação) seguida da numeração
indecifrada
Fonte: ac,ervo do Laboratório de Direito e Urbanismo (Ladu).
14
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Chama a atenção esta técnica de demarcação do território pela pintura da sigla
SMH nas paredes das casas, dentre vários motivos, por repetir a demarcação
territorial utilizada pelos anteriores “dominadores” dos morros pobres do Rio de
Janeiro, os comandos de venda e produção de drogas que pintavam suas siglas nas
paredes das casas de seus espaços de controle.
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
Houve mais de um relato de moradores cujas casas estavam marcadas
há mais de um ano, que, por conta disso, não recebiam tratamento de manutenção e melhoria de seu dono, posto que sempre havia a possibilidade da
remoção que significaria perda imediata do dinheiro gasto com as melhorias
destruídas no momento que não chega, mas que pode ser no dia seguinte. Os
relatos também narravam que não havia definição para onde seriam deslocados os habitantes de tais casas (muitas delas ocupadas há muitas décadas), o
que oferecia uma sensação de insegurança generalizada, regulada, programada. Esta insegurança programada reforça o que se compreende como sendo
a reprodução do espaço cordial, posto que, nessas condições, as normas imprecisas aparentemente frágeis o são exatamente para gerar uma sensação
de dependência pessoal com o poder público e uma incapacidade institucional
de resolução, pulverizando a resistência e o conflito. A pintura da casa era a
única marca de que o empreendedor havia passado por ali, e sua ação mais
destacada foi gerar instabilidade ao criar um código do qual somente ele, o
empreendedor, é capaz de interpretar com segurança. Nessa perspectiva, percebe-se a identidade com a lógica do campo jurídico que está duplamente
determinada; conforme bem ensina Bourdieu 15, o campo jurídico é formado
por duas dimensões, quais sejam: a) a das relações de força específica entre
os agentes e as instituições; e b) a das normas e doutrinas, a estrutura simbólica ou o direito propriamente dito.
A NECESSIDADE DO CONTROLE DO PROCESSO DE
TRANSFORMAÇÃO – IDENTIFICANDO O PROBLEMA
Trabalhar com a questão da produção do espaço contemporâneo não é
tarefa simples e muito menos realizada de forma definitiva e certeira. Há que
se aproximar de um objeto complexo em constante mutação e há que se tentar
compreender o que essas transformações têm a dizer ao pesquisador. Assumindo a impossibilidade da totalidade analítica, ganha o pesquisador em densidade quando define o recorte de seu problema de forma a direcionar sua
capacidade crítica para categorias que, aos poucos, vão se concretizando segundo o processo de investigação e somente a partir dele.
15
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Bourdieu (2007).
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
Esta pesquisa, em conjunto com diversas outras que integram o corpo
de um trabalho coletivo, quer compreender como ocorrem as alterações do
espaço urbano atual do Rio de Janeiro, que se vê capturado pela dinâmica do
capital internacional, a partir do entendimento de como essa dinâmica se
concretiza em dois espaços que se assemelham em diversos matizes, mas que
se diferenciam segundo seu conteúdo social, político, histórico, simbólico.
Ao se aproximar desses territórios, foi possível observar que a diferença que
inicialmente aguçava a curiosidade dos pesquisadores, isto é, a vulnerabilidade
simbólica de um em contraste com a proteção histórico-nacional do outro, tendia
a se pasteurizar diante do processo de apropriação dessa nova forma de produção espacial. Em ambos os casos-referência, cada um segundo suas características, percebeu-se a ampliação da vulnerabilidade diante do processo de
controle do seu espaço: não há autonomia do habitante em relação ao seu
território. É provável que a chave do entendimento ocorra, cada vez mais, nos
processos de controle, na transmissão das transformações. Sobre esse aspecto,
Zizek traz uma possibilidade de esclarecimento do que deve ser atacado hoje
pela crítica que auxilia o entendimento do problema a ser estudado:
Os usuários [dos novos computadores que se comunicam pelo sistema
de nuvem] acessam programas e arquivos guardados muito longe,
em salas climatizadas com milhares de computadores ou, segundo
um texto de propaganda da computação em nuvem: “Os detalhes são
abstraídos dos consumidores, que não têm mais necessidade de conhecer nem controlar a infra-estrutura da tecnologia ‘na nuvem’ que lhes
dá suporte”. Aqui, suas palavras são reveladoras: abstração e controle
[...]. O paradoxo, portanto, é que, quanto mais o funcionamento do
pequeno item [...] que tenho na mão for personalizado, fácil e “transparente”, mais a configuração toda tem de se basear num trabalho
realizado em outro lugar, num vasto circuito de máquinas que coordena a experiência do usuário; quanto mais não alienada é essa experiência, mais regulada e controlada por uma rede alienada ela é. 16
Ora, essa experiência não alienada de que fala Zizek a respeito do domínio dos meios digitais é assim descrita pelo fato de que, cada vez mais,
16
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Zizek (2011, p. 9).
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
esses aparelhos se mostram mais integrados às necessidades dos usuários...
Mas qual seria, devemos perguntar, a necessidade do “usuário de uma cidade”?
Qual é a cidade personalizada? Esta resposta simplesmente não existe: a cidade se realiza no conflito e o usuário da cidade se configura em uma multiplicidade que, por sua vez, realiza a riqueza e a complexidade daquilo que se
chama urbano. Caso a cidade seja “personalizada”, ou seja, caso haja uma
forma única de se transformar o espaço na qual todos os seus usuários se sintam satisfeitos, perderemos, sem dúvida, a própria essência da cidade, pode
ser que tenhamos encontrado sua morte a partir da homogeneização do espaço: o silêncio das disputas sociais. No entanto, quando há um único modelo
hegemônico da cidade que se impõe, ele acaba por parecer não alienado àquele
que o deseja, isto é, o modelo de cidade adequado a um único tipo de usuário
acaba por seduzi-lo como uma mercadoria que fora pensada exclusivamente
para si. Esse espaço, quando realizado, ganhará legitimidade e será celebrado
como a retomada, a revitalização, a readequação e mesmo a reurbanização
de um espaço antes negado.
Ora, quem habitava esse espaço anteriormente, caso não esteja de acordo com sua formatação, possui duas opções: ou será descartado ou deverá
resistir. Para resistir, no entanto, parece cada vez mais necessário compreender
a forma de transmissão, a forma de regulação e controle desse espaço, que,
como nos lembra Zizek a respeito de outras esferas, são cada vez mais alienadas. Há que identificar o problema a ser atacado. Uma das tarefas do pesquisador é desembaraçar esse processo, é preciso que se compreenda como essa
nova técnica se dissemina, da mesma forma é preciso compreender quais os
métodos de controle 17 podem ser criados para resistir ao espaço único, ao
espaço do silêncio, da neutralidade: o meio técnico-científico-informacional,
assim como a técnica, pode funcionar a favor do pluralismo. Parece que o
entendimento da dinâmica de alteração desses dois morros pode ser uma das
chaves de explicação do processo de reprodução do espaço cordial que, caso
se deseje a permanência e reforço do urbano, deve ser alterado: entre esses
dois morros reside o problema a ser investigado, e a localização do problema,
17
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De modo algum quer se afirmar aqui que as respostas aos problemas sociais devam
partir da academia. No entanto, há que se assumir a universidade como integrante
da sociedade e que, do mesmo modo como ela age como consultora ao provocar o
que aqui se denomina problema, é legitimo que ela atue na resistência a esse fenômeno.
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
que contém também a raiz das respostas, como se sabe, é cada vez mais fundamental para a sua solução, de modo que este artigo cumpre assim parte de
sua função investigativa.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
311 p.
BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Portaria n° 02
de 14 de março, 1986. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/
baixaFcdAnexo.do;jsessionid=278097F43EC9DC9DDB6DDF9ACE980E60?
id=317>.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001. 282 p.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2004. 145 p.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2000.
RIBEIRO, Cláudio Rezende. A relação entre o patrimônio histórico e a disputa
urbana da memória no espaço cordial. In: CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli;
RIBEIRO, Cláudio Rezende (Org.). Paisagem urbana e direito à cidade. Rio de
Janeiro: Prourb, 2010. p. 97-122.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. 387 p.
ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo,
2011.
RESUMO
ABSTRACT
A cidade do Rio de Janeiro abrigará
dois grandes eventos esportivos mundiais nos próximos cinco anos: Copa
do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos
de 2016. Dentre diferentes regiões da cidade afetadas pelas propostas de transformação urbana, na Zona Portuária
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111
The city of Rio de Janeiro will be the
host of two great world sports events
in the next five years: the 2014 World
Cup and the 2016 Olympic Games.
Within the different regions of the city
which will be affected by the urban
reform lies the Port Zone, where there
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Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Cláudio Rezende Ribeiro
encontram-se duas localidades fundamentais para a história e cultura urbanas do Rio de Janeiro: os Morros da
Conceição e da Providência. Este artigo
vem debater os conflitos urbanos simbólicos que se evidenciam ao se compararem os significados atribuídos à
história dos dois diferentes morros em
relação às políticas que lhe são direcionadas neste momento singular da cidade. Com o intuito de evidenciar os
conflitos urbanos, o artigo propõe o
entendimento e a complexificação de
perguntas como: de que forma se manifestam as pressões realizadas pela
investida da sociedade de mercado nesses dois diferentes territórios? A vulnerabilidade social dos habitantes da
Providência se torna mais aguda devido à sua vulnerabilidade simbólica?
O reconhecimento cultural do Morro
da Conceição produz algum tipo de
proteção às pressões do capital global? O entendimento dessas questões
auxilia o discernimento de qual o problema que deve ser enfrentado pelo
pesquisador que deseja compreender
e superar as articulações políticas e
econômicas no processo atual de produção do solo urbano carioca.
are two traditional neighborhoods of
fundamental importance to the history
and culture of the city: Morro da Conceição and Morro da Providência. This
article discusses the symbolic urban
conflicts that take place when comparing the history of the two neighborhoods in relation to the policies aimed
at them during the city’s singular moment. With the intent of pointing out
the urban conflicts, this article proposes to understand and unfold issues, such as: how does the pressure
inflicted by market investment in
these territories take place? Does the
social vulnerability of the inhabitants
of Morro da Providência worsen due
to its symbolic vulnerability? Does the
cultural recognition of Morro da Conceição protect it from the pressures of
global capital? Understanding these
issues helps pinpoint the problems
that researchers wish to comprehend
and helps overcome the political and
economic articulations in the current
production process of the urban area
of Rio de Janeiro.
Palavras-chave: urbanismo, vulnerabilidade simbólica, direito à cidade,
Porto Maravilha, Rio de Janeiro.
Keywords: urbanism, symbolic vulnerability, right to the city, Porto Maravilha, Rio de Janeiro.
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Entre dois morros: disputa simbólica na paisagem urbana carioca
Rosângela Lunardelli Cavallazzi é Professora, Pesquisadora e Orientadora
de teses do PROURB/FAU/UFRJ e da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro e Líder do Laboratório de Direito e Urbanismo (LADU), vinculado ao
Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq.
Cláudio Rezende Ribeiro é Doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ,
Arquiteto e Urbanista pela EA-UFMG, Professor Adjunto do Departamento de
Urbanismo e Meio Ambiente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ
e Pesquisador do Laboratório Direito e Urbanismo (LADU) do Programa de PósGraduação em Urbanismo da FAU-UFRJ.
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Direitos fundamentais, garantismo e
direito do trabalho *
Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
APRESENTAÇÃO
A reconstrução jurisprudencial de um direito do trabalho desregulado é
fenômeno recente em países latino-americanos. Trata-se de atividade decisória
na qual, com a aplicação de princípios e de normas constitucionais e internacionais, Cortes Supremas vêm negando aplicabilidade a leis de desregulamentação ou flexibilização de direitos por considerá-las inconstitucionais. Segundo
se tem notícia, indica movimento jurisprudencial ocorrido na primeira década
dos anos 2000 em diversos países do continente, que se contrapõe diretamente àquela conduta de desconstrução de direitos, em verdadeiro ativismo
judiciário negativo, típico dos anos 1990. É, em certa medida, uma reação à
flexibilidade jurisprudencial, que ocorre quando, pelas mãos de decisões judiciais,
a normatividade do trabalho é flexibilizada em prejuízo dos trabalhadores, como
ocorreu em larga escala nos anos 1990. Ambos os conceitos foram cunhados
pelo jurista uruguaio Oscar Ermida Uriarte; o primeiro, com o otimismo do
jurista (2007), e o segundo, com o realismo do pesquisador do direito (2004),
*
Este artigo foi publicado na Revista do TST, v. 77, n. 3, jul./set. 2011.
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 115-140, jul./dez. 2011
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Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
e, em certa medida, expressam os giros paradigmáticos que as Cortes trabalhistas são capazes de empreender no tempo. 1
Assim iniciamos essas linhas, com dupla finalidade. Saudar os 70 anos
da Justiça do Trabalho, instituição construída e integrada por variegados atores, juízes, advogados, servidores. E, sobretudo, pelos atores sindicais e trabalhadores que, ao postularem novas teses, ao exigirem o cumprimento de
seus direitos, possibilitam à instituição sua reconfiguração e abertura às expectativas democráticas. 2 E homenagear uma de nossas maiores referências
teóricas no âmbito juslaboral, Oscar Ermida Uriarte, diante de seu passamento.
11.pmd
1
Sobre a possibilidade de ocorrer uma reconstrução jurisprudencial do direito
desregulado, reportamo-nos à Ermida Uriarte, que, em entrevista publicada no Brasil
(Ermida Uriarte, 2007), quando indagado se “os operadores do Direito, de modo
especial os juízes do trabalho, podem resistir à flexibilização do Direito do Trabalho
oriunda do Parlamento e, algumas vezes, da própria cúpula do Poder Judiciário, e
como reagir”, foi assertivo: “Sim, podem. Claro, sempre que atuarem com independência, valentia e criatividade. E aqui têm um papel fundamental os princípios e a
aplicação direta das normas constitucionais e internacionais. Por isso, eu me referi à
‘reconstrução jurisprudencial’ do Direito do Trabalho. Já se avançou nesta linha nos
tribunais superiores de alguns países [...]”. Ermida Uriarte refere-se especificamente
à Corte Suprema de Justiça argentina, aos tribunais constitucionais do Peru e da
Colômbia e à Sala Constitucional da Corte Suprema de Costa Rica. Já a flexibilidade
jurisprudencial indica o processo no qual, na ausência de mutações legislativas, “a
jurisprudência modifica sua orientação para interpretações desreguladoras ou mais
favoráveis ao empregador do que as que até então vinha sustentando” (Ermida Uriarte,
2004a, p. 221), adotado largamente no Brasil dos anos 1990 (Silva, 2008).
2
Não se olvide que no contexto de formação institucional da Justiça do Trabalho, em
especial de seu tradicional poder normativo, percebia-se um movimento simultâneo
de “reconhecer e deslegitimar a capacidade das classes sociais (e da própria sociedade)
em formular noções e códigos de sociabilidade” (Paoli, 1994, p. 106), o que, segundo
Maria Célia Paoli, se deveria ao fato de a Justiça do Trabalho “não se comprometer
com as idéias de justiça ou de igualdade, mas de paz social, e ‘solução’ dos conflitos
pelo pressuposto da colaboração de classes”, eliminando “de início a noção de uma
interlocução real” (ibid., p. 108). À referência específica sobre o tradicional tratamento dado aos conflitos coletivos do trabalho em julgamentos de dissídios coletivos
se acresce a reflexão da socióloga no contexto da consolidação democrática, que
sublinhava a existência de uma ampla demanda em prol da democratização do judiciário e um questionamento/reivindicação acerca da possibilidade de a Justiça do Trabalho atuar como espaço de práticas democráticas, provenientes de diversos segmentos
sindicais, sociais e mesmo de integrantes do Judiciário trabalhista (Paoli, 1994).
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
Reconstruções jurisprudenciais não existem sem formulações críticas
e práticas sociais instituintes. Nesse sentido, considerações sobre fundamentos
do direito, do Estado e da regulação constitucional podem contribuir para tal
intento. O objetivo deste ensaio é, pois, apresentar os elementos constitutivos
do garantismo, teoria que abre ricas possibilidades para o tratamento de temas
como a aplicação dos direitos fundamentais nas relações laborais individuais.
Enquanto a atuação do Estado e de seus poderes segue sendo o objeto
do interesse dos juristas orientados pela tradição liberal, o mercado e os poderes privados com suas coerções econômicas merecem cada vez maior atenção
dos constitucionalistas, que sem descuidar da necessária contenção dos poderes coercitivos estatais, principalmente quando exercidos contra os mais
débeis, afirmam um sistema de garantias fundado no reconhecimento de direitos fundamentais. Nesse quadro se insere o trabalho do jurista italiano Luigi
Ferrajoli, centrado nos conceitos de democracia constitucional, de garantismo
e de direitos fundamentais, que nos propicia ricas reflexões teóricas no âmbito
da filosofia e da teoria do direito contemporânea.
Em trabalho anterior, também em diálogo com Luigi Ferrajoli, compreendemos a liberdade sindical como direito fundamental intrínseco a um sistema
de garantias, conjugando o conceito formal de direitos fundamentais, com a
necessária superação das dicotomias: liberdades negativa e positiva, obrigações de fazer e não fazer, para assegurar a efetivação dos direitos sociais, políticos e civis. 3 No presente artigo, a partir da proposta teórica de um garantismo –
que expande seus domínios para além do direito penal e acena com uma revalorização dos aspectos publicistas dos direitos do trabalho –, pretendemos
refletir sobre uma concepção de direitos fundamentais, com incidência direta
sobre os locais de trabalho. Busca-se estabelecer pressupostos para a eficácia
horizontal dos direitos civis, políticos e de participação dos trabalhadores nas
empresas, compreendidos como verdadeiros direitos fundamentais dos mais
débeis.
Um dos critérios utilizados por Ferrajoli para identificar os direitos fundamentais no plano axiológico é o que identifica direitos fundamentais com
3
11.pmd
Trata-se do ensaio “Direitos fundamentais e liberdade sindical no sistema de garantias: um diálogo com Luigi Ferrajoli”, que publicamos na Revista da Faculdade
de Direito de Campos, ano VI, n. 6, jun. 2005. Quando as referências a Ferrajoli
(2008) estiverem em português, trata-se de tradução livre das citações de Democracia y garantismo.
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Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
as expectativas vitais dos mais fracos. Afinal, racionalidade jurídica abstrata
não dá conta de fundamentar direitos conquistados historicamente em processos de lutas que desvelam “o véu de normalidade e naturalidade oculto na
opressão ou discriminação precedente” 4. Por outro lado, a eleição de tal critério axiológico denota que a oposição entre fortes e fracos, entre poderosos
e destituídos de poder, segundo De Cabo e Pisarello, encontra-se pressuposta
nas preocupações ferrajolinas. Nesse sentido, “los derechos fundamentales
son valiosos en tanto contribuyan a la paz, a la igualdad, al aseguramiento de
la democracia y, sobre todo, a la protección de los más débiles” 5, e tal concepção é coerente com os pressupostos de um direito, como o do trabalho, que
reconhece a desigualdade, organiza as condições para a reprodução de tais
relações de classe, mas aspira a uma pretensão emancipatória de proteção
dos vulneráveis.
Afinal, desde a segunda metade do século XX, a fonte de legitimação
das instituições políticas do estado constitucional se deslocou da noção de
soberania estatal para os direitos fundamentais dos cidadãos 6, invertendo-se
a relação entre cidadania e instituições políticas, com a consolidação da democracia constitucional.
Entretanto, a perda de memória das tragédias do passado e a ausência
de garantias e de instituições garantidoras contribuem, ao lado do fenômeno
da globalização econômica, para uma “bio-economía de la muerte” 7. O crescimento das desigualdades e da pobreza, a concentração da riqueza e a expansão das discriminações expõem a crises a democracia constitucional, com
a hegemonia de um liberalismo que afirma
que a autonomia empresarial não é um poder, e enquanto tal, sujeito
à regulação jurídica, senão uma liberdade, e que o mercado não somente não tem necessidade de regras senão que tem necessidade,
para produzir riqueza e emprego, de não ser submetido a limites. 8
11.pmd
4
Ferrajoli (2008, p. 51).
5
De Cabo e Pisarello (2001, p. 16).
6
Ferrajoli (2008, p. 309).
7
Ibid., p. 310.
8
Ibid., p. 59.
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
A contrariedade de tal lógica com o estado de direito constitucional é
flagrante, pois essa concepção não admite poderes legibus soluti, e, neste sentido, é denunciada por nosso jurista:
Contra esta regresión de la economía y de relaciones de trabajo al
modelo paleocapitalista y contra la rehabilitación de la guerra como
medio de solución de las controversias internacionales, no existen
otras alternativas más que el derecho y la garantía de los derechos
así como, obviamente, una política que se los tome en serio. 9
Desse modo, para a afirmação plena dos direitos fundamentais em uma
sociedade globalizada, é necessário reconhecer que certo paradigma de democracia constitucional estaria em crise.
GARANTIAS E GARANTISMO
Garantias, tal qual definidas pelo direito civil, visam a assegurar o adimplemento das obrigações e a tutela dos direitos patrimoniais. Em termos jurídicos mais amplos, garantia designa “qualquer técnica normativa de tutela
de um direito subjetivo” 10, e garantias constitucionais referem-se à tutela reforçada nos sistemas estruturados com base em constituições rígidas. Para
Ferrajoli, garantia constitui “toda obrigação correspondente a um direito subjetivo, entendendo por ‘direito subjetivo’ toda expectativa jurídica positiva
(de prestações) ou negativa (de não lesionar)”, sendo possível falar em garantias positivas e negativas 11.
Garantismo, por sua vez, é neologismo que se refere a técnicas de tutelas
dos direitos fundamentais12 e, embora tenha sido aplicado originalmente no
campo do direito penal, estende-se, “como paradigma da teoria geral do direito,
a todo campo de direitos subjetivos, sejam estes patrimoniais ou fundamentais, e
a todo o conjunto de poderes, públicos ou privados, estatais ou internacionais” 13.
11.pmd
9
Ibid.
10
Ibid., p. 60.
11
Ibid., p. 63.
12
Ibid., p. 61.
13
Ibid., p. 62.
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Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Fala-se em garantismo liberal ou penal (defesa dos direitos de liberdade frente
ao arbítrio policial ou judicial), garantismo patrimonial (tutela dos direitos
de propriedade), garantismo internacional (para tutelar os direitos humanos
estabelecidos em pactos internacionais) e garantismo social, “para designar o
conjunto de garantias, em boa medida ainda ausentes ou imperfeitas, dirigidas
à satisfação dos direitos sociais, como a saúde, a educação e o trabalho e outros
semelhantes” 14.
Tais dimensões específicas prenunciam que o garantismo como técnica
de tutela jurídica designa:
el conjunto de límites y vínculos impuestos a todos los poderes –
públicos y privados, políticos (o de mayoría) y económicos (o de
mercado), en el plano estatal y en el internacional – mediante los
que se tutelan, a través de su sometimiento a la ley y, en concreto, a
los derechos fundamentales en ella establecidos, tanto las esferas
privadas frente a los poderes públicos, como las esferas públicas frente
a los poderes privados. 15
Tal concepção constitucional fixa uma esfera subtraída da deliberação
majoritária (esfera de lo indecidible) com proibições que garantam liberdades
e com vínculos que asseguram os direitos sociais. Portanto, o garantismo se
inscreve dentre as concepções de democracia substantiva ou substancial, no
âmbito do constitucionalismo democrático,16 com o qual em grande medida
se confunde ao se redefinir como um “modelo de direito fundado sobre a rígida
11.pmd
14
Ibid.
15
Ibid.
16
As possibilidades de o garantismo contribuir para fundamentar o processo de reconstrução jurisprudencial do Direito do Trabalho, de que nos falava Oscar Ermida
Uriarte (2007), decorrem da própria modificação da concepção de jurisdição e de
atuação judicial no âmbito do constitucionalismo substancial: “cambia la naturaleza
de la jurisdicción y de la ciencia jurídica, a las que ya no corresponden unicamente
la aplicación y el conocimiento de unas normas legales cualesquiera, sino que
asumen, además, un papel crítico de su invalidez siempre posible” (Ferrajoli, 2008,
p. 66). Acrescer ao controle formal também o controle material, substancial do
conteúdo das normas legais às promessas constitucionais pode contribuir para uma
consistente invalidação de regras que suprimem direitos conquistados.
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
subordinação à lei de todos os poderes e sobre os vínculos impostos para garantia dos direitos consagrados nas constituições” 17.
DESENVOLVIMENTO DO PARADIGMA GARANTISTA NO ÂMBITO
LABORAL
O paradigma do constitucionalismo substancial e garantista se projeta
muito além de institutos específicos aplicáveis no âmbito do direito penal, do
qual se origina. Na obra de Luigi Ferrajoli, mereceram tratamento específico,
como três modelos de desenvolvimento do paradigma garantista, temas diversos, tais como a renda mínima, as relações entre liberdade de informação
e meios de comunicação e a regulação laboral concretizada na Itália pelo Estatuto dos Trabalhadores.
Interessam-nos em especial as reflexões sobre a Constituição e o Estatuto dos Trabalhadores italiano, porque as diretrizes daquela Constituição
expressariam a mudança de paradigma na regulação jurídica do trabalho no
sistema constitucional. No dizer de Ferrajoli 18, a introdução da Constituição
nos lugares de trabalho, estendendo a aplicação dos direitos fundamentais
em locais nos quais são subtraídos, tais como as fábricas, denota uma mudança
de paradigmas do ponto de vista da teoria do direito, com uma conotação
publicista que passa a ser conferida às relações de trabalho. Trata-se da agregação da dimensão horizontal – dos direitos fundamentais como direitos dos
indivíduos oponíveis a outros sujeitos privados – à tradicional dimensão vertical dos direitos fundamentais como direitos em face do Estado 19.
Os direitos fundamentais, ao representarem garantias inovadoras para
os trabalhadores em face das empresas e do Estado, não apenas se inserem
nas relações laborais, mas, principalmente, em uma específica formação social,
o lugar de trabalho, talvez a mais importante entre todas aquelas formações
sociais nas quais se desenvolve a personalidade do homem 20.
A tutela legal de direitos que asseguram aos trabalhadores a) liberdade
de manifestação de idéias, b) liberdade de consciência, com proibição de in-
11.pmd
17
Ibid.
18
Ibid.
19
Ibid., p. 286.
20
Ibid.
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vestigar suas opiniões, c) direito à intimidade, com proibição de implantar
instalações audiovisuais que tenham como finalidade controlar à distância
suas atividades, d) direito de igualdade e vedação de discriminações, e) direito de associação sindical e liberdade de ação dentro da fábrica e f) garantia
de readmissão aos despedidos injustamente (dentre outros assegurados pelo
estatuto italiano) tem forte repercussão. A positivação representa muito mais
do que o reconhecimento da exigibilidade de tais direitos ou garantias para o
exercício de tais liberdades nas relações laborais. Traduziria uma conversão
da natureza do espaço de trabalho e do próprio direito laboral:
Gracias a la introducción de estos derechos, la fábrica, en cuanto lugar de trabajo, deja de ser un lugar privado – una simple propiedad
inmobiliaria del patrono – y se convierte en un lugar público. También
adquiere una dimensión pública la relación de trabajo, dentro de la
cual el trabajador deja de ser una mercancía y se convierte en sujeto
de derechos fundamentales: o sea, de derechos inviolables y no negociables, que tienen el valor de leyes del más débil como alternativa a
otros límites y vínculos a la “libertad salvaje y desenfrenada” [...]. 21
Se a metamorfose do trabalho subordinado se põe em marcha desde as
origens do moderno direito do trabalho com o desenvolvimento de sua natureza publicista, uma mudança de paradigma ocorreria quando se introduz a
relação de trabalho na lógica dos direitos fundamentais universais e indisponíveis 22. Mas que dimensão pública é esta? A que reduz a liberdade de ação
dos trabalhadores subsumindo-a à esfera da vontade do Estado? A antiga idéia
de que todo o conjunto normativo seria cogente, público, advindo da normatividade estatal? De modo algum, refuta Ferrajoli, para quem público não se
confunde com estatal. A esfera pública se define, ou deveria constituir-se,
como “todo lo que tiene que ver con el interés de la cosa pública o común, o
sea, con el interés de todos; mientras que ‘privado’ es todo aquello que tiene
que ver únicamente con el interés de los individuos” 23.
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21
Ibid., p. 287.
22
Ibid., p. 288.
23
Ibid., p. 289.
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
Deste modo, quando se está diante de situações nas quais todos são
titulares, como as que envolvem direitos fundamentais ou são exercidas no
interesse de todos, falamos em esfera pública. À esfera privada pertencem,
na opinião de Ferrajoli, todas as situações nas quais cada um possa ser titular
com exclusão de outro e poderes conferidos em função de interesses pessoais
e direitos patrimoniais 24. A dicotomia esfera pública/esfera privada, aqui, não
se estabelece como critério clássico de definição da natureza jurídica das regras
trabalhistas, mas para reafirmar os espaços permeados pelos direitos fundamentais em oposição aos que se regem pela dinâmica do mercado, pela desigualdade e pela primazia dos direitos patrimoniais.
A esfera pública é a que tem como finalidade, observa o autor, “garantir
por meio dos direitos fundamentais a dignidade das pessoas e, com ela, a
igualdade ou, ao menos, níveis mínimos de igualdade” 25. Se os particulares
manejam funções que versam sobre direitos fundamentais, tais funções são
públicas e se subtraem da lógica do mercado, tanto quanto as que implicam o
exercício de poderes coercitivos. Sob tal ponto de vista, não somente o “desenvolvimento do direito do trabalho se configura como uma progressiva expansão de sua dimensão publicista”, como também reformas legislativas
orientadas para uma remercantilização estão em dissonância com a orientação constitucional:
las políticas de reducción de las garantías de los trabajadores contradicen profundamente la naturaleza del trabajo en nuestro sistema
constitucional: que no es (y no debe ser) una mercancía, intercambiable y fungible, siendo una dimensión de la persona; que no puede
ser objeto de mercado, siendo sobre todo sujeto de derechos fundamentales. 26
Embora aspectos histórico-normativos distingam as normas italianas e
brasileiras infraconstitucionais de regulação do trabalho humano, e em especial sejam completamente distintos os sentidos da dimensão publicista presente em cada uma delas por se inscreverem em paradigmas regulatórios
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24
Ibid.
25
Ibid.
26
Ibid., p. 290.
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diferenciados, a perspectiva constitucional parece-nos assemelhada. Em ambas
as Constituições democráticas, os direitos dos trabalhadores são considerados
direitos fundamentais, o projeto constitucional objetiva a redução das desigualdades e anuncia a promessa de subordinação da ordem econômica à ordem
social e do trabalho. 27 Assim, a conclusão de Ferrajoli sobre o desenvolvimento do paradigma garantista no mundo do trabalho guarda consonância,
do ponto de vista normativo, com a ordem brasileira, pois também aqui:
el trabajo es una manifestación de la persona de la misma manera
que lo son el pensamiento, la palabra, la conciencia y otras similares.
Como tal, no puede subordinarse a la lógica privada del mercado,
sino que exige ser tutelado – como lo impone nuestra Constitución –
contra las arbitrariedades de los poderes no solo públicos, sino también, y diría sobre todo, de los privados. 28
Conquanto, no limite, a tese equivalha a uma ruptura com uma tradição
laboral que deslocou o direito do trabalho para o campo das relações privadas,
o que não está imune a críticas, 29 a lógica da subtração do trabalho da ordem
11.pmd
27
No Brasil, enquanto os valores sociais do trabalho são considerados fundamento
do estado democrático de direito (Art. 1°, IV, CRFB) ao lado da “livre iniciativa”, os
objetivos da República não poderiam ser mais eloqüentes: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária (Art. 3°, I, CRFB), b) garantir o desenvolvimento nacional (Art. 3°, II, CRFB) e c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais (Art. 3°, III, CRFB). Na Itália, determina-se à República que se volte à remoção dos obstáculos da ordem econômica e social que, ao
limitar de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na
organização política e econômica (Artigo 3°, CI), e à promoção de condições que
assegurem o efetivo direito de todos os cidadãos ao trabalho (Artigo 4°, CI). Ou
seja, os Títulos I e II da Constituição guardam certa sintonia com aspectos da Constituição italiana, texto normativo referencial para Ferrajoli. Constitucionalmente,
a ordem econômica está subordinada ao primado do trabalho, e a República deve
estar fundada na ordem social.
28
Ferrajoli (2008, p. 291).
29
A nosso ver, é no campo das relações entre autonomia individual e autonomia coletiva e no âmbito dos espaços da contratação coletiva que as teses de Ferrajoli devem
ser recebidas com maior cautela, embora o próprio autor reconheça alguns desses
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
mercantil permeia o paradigma constitucional brasileiro e tem como conseqüência imediata assegurar a subordinação dos particulares às obrigações de
tutela e de garantia como se pública fosse a relação laboral. Assim, com tal
abordagem teórica, parece-nos que não haveria espaço para os conflitos que
opõem direitos fundamentais dos trabalhadores a direitos de propriedade
privada dos empregadores, nem para construções que, ao identificá-los como
conflitos entre direitos fundamentais, buscam resolvê-los por meio de fórmulas
liberais de ponderação e razoabilidade, que podem acabar estabelecendo fortes limites ao exercício das liberdades individuais e coletivas dos trabalhadores
no âmbito dos locais de trabalho, concebidos como locais privados.
O reconhecimento dos direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais denota uma expansão da dimensão pública das relações laborais. No
caso brasileiro, mais que um deslocamento topográfico, a subtração da regulação do trabalho do Capítulo da ordem econômica promovida pelo constituinte
de 1988 e seu deslocamento para o Título II significaria o reconhecimento de
que o local de trabalho, no que concerne ao exercício dos direitos fundamentais
dos trabalhadores, é um espaço público por excelência. A vitalidade de uma
concepção mais ampliada de direitos fundamentais pode auxiliar na constituição de sujeitos autônomos e menos submetidos aos constrangimentos do
mercado e ao poder empregatício. Em uma sociedade em que o controle do
trabalhador se projeta também para o espaço público, em que os limites fáticos ao pleno desenvolvimento da personalidade humana já não estão mais
definidos apenas pelos muros físicos das fábricas e pela vigilância no local de
trabalho, é axial que os mecanismos normativos de emancipação se espraiem
para outros territórios.
Assim como o constitucionalismo se afirmou em face do Estado absolutista, o constitucionalismo garantista deve se afirmar em face do absolutismo
do mercado. Sendo as coerções econômicas e as manifestações de poder do
empregador os mecanismos que conduzem a potenciais lesões aos direitos
fundamentais, o desenvolvimento do paradigma garantista no âmbito do direito do trabalho buscará conter a privatização dos espaços e das normas de
trabalho.
problemas ao se antecipar e defender que a subordinação das relações contratuais
coletivas a vínculos públicos estabelecidos pela lei não significa a “homologación
de todos los trabajadores, ni mucho menos exclusión de la contratación individual
o colectiva” (ibid.).
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Diante do reconhecimento de que assegurar liberdades nos espaços de
trabalho é um dos modos de garantir a Constituição e que as concepções que
suprimem os locais de trabalho da incidência direta dos direitos fundamentais
dos trabalhadores se afastam do princípio democrático, a memória nos traz
os ensinamentos de Norberto Bobbio. Conquanto se insira em outra tradição
jusfilosófica, os relatos autobiográficos sobre a participação de Bobbio em
congresso operário na Turim de 1957 são primorosos e merecem a longa transcrição:
Este congresso sobre as liberdades civis nas fábricas deve oferecer a
oportunidade de colocar em discussão um dos problemas mais graves
do direito constitucional contemporâneo: o problema da defesa dos
direitos de liberdade não apenas no confronto com os poderes públicos, mas também nos confrontos com os poderes que continuam
a ser chamados privados. Uma Constituição que tenha solucionado
o primeiro problema e não o segundo não pode ser considerada democrática. [...] Constituição democrática é aquela que não apenas
consolida as liberdades civis, mas cria órgãos e leis que ajudem no
sentido de que essas liberdades tenham realidade e sejam salvaguardadas, e que ali, onde os bastiões erguidos contra os abusos de poder
desmoronem ou estejam ameaçados de ruir, possa rapidamente
mobilizar-se para erguer novos redutos. A nossa Constituição é dotada dos dispositivos que permitem enfrentar esse perigo. Mas para
fazê-lo são necessários três fatores: a consciência de que esse perigo
existe, um exame preciso dos remédios e a vontade unânime de viver
numa sociedade democrática. 30
No referido congresso, protestava-se contra a discriminação política
promovida por grande empresa automobilística italiana que, ao estabelecer
políticas de discriminação entre trabalhadores colaboradores e críticos, entre
integrantes de duas centrais sindicais distintas, cerceava a liberdade de atuação política dos trabalhadores de certo segmento sindical. 31
11.pmd
30
Bobbio (1998, p. 165-166).
31
No texto publicado originalmente em 1958, Risorgimento, VIII, 1, p. 19, por ocasião dos Anni Duri alla FIAT, Bobbio afirma: “O significado fundamental de uma
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
Estabelecidos estão os pressupostos doutrinários para assegurar a incidência direta de toda sorte de direitos fundamentais – e não apenas os sociais,
sobretudo os civis e políticos – aos locais de trabalho e às relações de trabalho.
Cabe, agora, perquirir se existem conexões entre garantismo e jurisprudência
e, mais especificamente, entre garantismo e reconstrução jurisprudencial do
direito do trabalho.
JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E O GARANTISMO: EXAME DE CASOS
SELECIONADOS
Um primeiro campo para a concretização do garantismo está no estabelecimento de limites ao exercício do poder diretivo e disciplinar dos empregadores. No limite, trata-se de indagar sobre as possibilidades de controle
constituição democrática é afirmar que o poder sobre os homens, seja ele exercido
por determinado grupo ou pessoa, deve ter limites juridicamente estabelecidos, e
nada existe de mais contrário à atuação de uma estável e pacífica convivência entre
os homens, na qual está o objetivo do Estado, que um poder ilimitado na sua natureza e arbitrário em seu exercício. [...] Sendo assim, a afirmação das liberdades
civis continuaria letra morta e a finalidade principal à qual tendem as garantias
constitucionais estaria excluída se as liberdades do cidadão, afirmadas contra os
órgãos do Estado, não fossem igualmente definidas e protegidas contra o poder
privado. Um dos disparates da hodierna sociedade capitalista é a concentração de
grandes poderes nas mãos de instituições privadas. Sabemos que esses poderes são
amplos a ponto de suspender, minorar ou até mesmo tornar vãs algumas liberdades
fundamentais que até agora pareciam ameaçadas apenas pelos órgãos do poder
estatal. [...] A nossa Constituição reconhece e protege a liberdade de pensamento.
Suponhamos que uma grande empresa coloque como condição para a admissão
dos seus funcionários a adesão a certa corrente política. Neste caso, mais uma vez,
o cidadão seria livre para ter opinião própria perante o Estado. Mas já não seria
livre para sustentá-la diante da empresa privada. Pergunto-me: em tal situação,
ainda existiria ou já não existiria mais a liberdade política? Poderíamos objetar que
o privado, qualquer coisa que faça, não impõe uma crença ou uma opinião política;
mas considera uma e outra como condição para garantia de trabalho. Respondo
que do mesmo modo poderíamos sustentar que até o Estado mais tirânico não impõe
uma crença ou uma opinião, mas se limita a estabelecer certas condições para sermos considerados cidadãos com plenos direitos, permitindo assim que haja liberdade de escolha entre aceitar a crença ou a opinião do Estado, ou acabar na prisão.”
(Ibid., p. 165-167)
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(pela jurisprudência) do poder de comando (do empregador) nos marcos de
uma sociedade de controle (e não apenas de vigilância).
Conceitos jurídicos originários da dogmática civilista vêm sendo (bem)
utilizados para conter e limitar o poder disciplinar e o poder de comando do
empregador. Proibição de abuso de direito, responsabilidade por infligir dano
moral, responsabilidade extrapatrimonial, boa-fé objetiva, são institutos que
permitem ao direito dar conta de resolver progressivas demandas por dignidade pessoal nas relações laborais. Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, entretanto, observa ser necessário distinguir o modo de incidência dessas figuras
de direito privado daquele que ocorre quando entra em campo a proteção
que tem índole constitucional, qualificada como direito fundamental 32, pois
enquanto no primeiro caso está-se diante de uma incidência vertical e mediata,
no segundo, a eficácia é horizontal ou imediata. Nesta hipótese, a proteção
“não apenas observa os cânones da hermenêutica constitucional, como também, por seus predicados, sobrepõe-se e até mesmo invalida outras normas,
sejam elas infraconstitucionais, mesmo emanadas do poder constituinte derivado” 33.
Reconhecendo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não
desconhece a perspectiva da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas
relações de trabalho 34, Antonio Rodrigues de Freitas Júnior salienta não ser
ousado atribuir eficácia direta a direitos fundamentais quando está em jogo o
exercício da autoridade de gestão dos empregadores, do poder diretivo e punitivo. Afinal, para um ambiente de respeito à tolerância, à diversidade e à
alteridade, o autor observa ser necessário ultrapassar a “proteção à pessoa do
indivíduo vitimado” e reconhecer a eficácia do direito fundamental “para conferir às relações intersubjetivas – uti universi – que se estabelecem no interior
do ambiente social de trabalho uma grandeza qualitativamente mais fraterna
11.pmd
32
Freitas Júnior (2009, p. 25).
33
Ibid.
34
Freitas Júnior cita como exemplos da aplicação, pelo STF, da perspectiva de eficácia
imediata para garantia dos direitos de personalidade no âmbito das relações
laborais, o RE n. 160.222-RJ (invalidação de cláusula contratual de sujeição à revista íntima), o RE n. 161.243-DF (extensão de benefício de regulamento interno
para empregados originariamente excluídos do campo de aplicação em virtude da
nacionalidade) e o RE 158.215-RS (utilização da cláusula do devido processo legal
para invalidar exclusão de sócio de cooperativa) (ibid., p. 27).
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e tolerante” 35. O controle das despedidas arbitrárias se apresenta como campo
fértil de exercício de uma jurisprudência garantista que admita a incidência
direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações de trabalho e no exercício do poder disciplinar.
O direito fundamental de proteção em face das despedidas arbitrárias
também foi aplicado pela Corte para invalidar inovações legais de conteúdo
flexibilizador, introduzidas na Consolidação das Leis do Trabalho no bojo das
reformas neoliberais promovidas pelo Executivo Federal, no contexto das privatizações e reforma gerencial do Estado brasileiro. O Supremo Tribunal Federal rechaçou a fixação de regra que instituía modalidade de despedida
arbitrária ou sem justa causa, sem indenização correspondente. E em decisão
garantista, deu ampla interpretação ao princípio constitucional da proteção
contra a despedida arbitrária ou sem justa causa (CF, Art. 7°, I) e declarou a
inconstitucionalidade dos §§ 1° e 2° do artigo 453 da CLT (com a redação
dada pela Lei n° 9.528/97). 36
11.pmd
35
Ibid., p. 28.
36
Estamos nos referindo a três decisões, em particular. Publicado no Diário de Justiça
do dia 29 de junho de 2007, o acórdão da ADI 1.721-3-DF recebeu a seguinte ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 3° DA MEDIDA PROVISÓRIA N° 1.596- 4/97, CONVERTIDA NA LEI N° 9.528/97, QUE ADICIONOU AO
ARTIGO 453 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO UM SEGUNDO PARÁGRAFO PARA EXTINGUIR O VÍNCULO EMPREGATÍCIO QUANDO DA CONCESSÃO DA APOSENTADORIA ESPONTÂNEA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Já o segundo
acórdão foi publicado no Diário de Justiça do dia 01/12/2006 com a seguinte ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. READMISSÃO DE EMPREGADOS
DE EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. ACUMULAÇÃO
DE PROVENTOS E VENCIMENTOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO POR
APOSENTADORIA ESPONTÂNEA. NÃO CONHECIMENTO. Na primeira ADI, foram
requerentes o Partido dos Trabalhadores - PT e o Partido Comunista do Brasil - PC
do B, tendo se apresentado como interessado na inconstitucionalidade a Federação
Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Correios e Telégrafos e Similares FENTECT. Na segunda ADI 1.770-4/DF foram requerentes o Partido Democrático
Trabalhista - PDT e o Partido Comunista do Brasil - PC do B, não tendo se apresentado como amicus curie nenhuma entidade sindical ou organização de aposentados.
O julgamento final das duas ADIs ocorreu na sessão plenária de 11.10.2006, sob a
presidência da Ministra Ellen Gracie, e estando presentes à sessão os ministros
Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto,
Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandovski e Marco Aurélio de Mello, sendo que este
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A atuação garantista da Suprema Corte em aplicar direitos fundamentais
sociais como contenção às reformas in pejus aos trabalhadores não se limitaria
ao controle de constitucionalidade de leis em sentido formal. O reconhecimento de direitos fundamentais de minorias desprestigiadas em convenções
coletivas provenientes do exercício da autonomia coletiva também foi objeto
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Diante de acordos coletivos de trabalho que estabeleciam o requisito
de comunicação formal da gravidez para que a empregada adquirisse a garantia de emprego durante o ciclo gravídico-puerperal, eximindo o empregador
das obrigações de proteção, caso não houvesse prova de sua ciência inequívoca, o Tribunal Superior do Trabalho em um primeiro momento flexibilizou a
proteção constitucional. 37 Assim, como, segundo um paradigma garantista,
ministro foi vencido nas duas ações, na ADI 1.770-4, em parte, pois dava procedência
em menor extensão ao pedido, e na ADI 1.7210-3, porque a julgava improcedente.
É digno de registro que em ambas as ações o Ministério Público, na pessoa do Procurador-Geral da República, opinou pela constitucionalidade dos dispositivos e
improcedência do pedido das ações, sustentando que a aposentadoria extinguiria
o contrato de trabalho. Por fim, destacamos a decisão do STF proferida no RE
463.629 (RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA TRABALHISTA. ART. 453 DA
CLT. EXTINÇÃO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO PELA APOSENTADORIA VOLUNTÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. A interpretação conferida pelo Tribunal Superior do
Trabalho ao Art. 453 da CLT, segundo a qual a aposentadoria espontânea do empregado importa na ruptura do contrato de trabalho (Orientação Jurisprudencial
n° 177 da SDI-1), viola o postulado constitucional que veda a despedida arbitrária,
consagrado no Art. 7°, I, da Constituição Federal. 2. Precedentes: ADI 1.721-MC,
ADI 1.770-MC e RE 449.420. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido). Diante
das decisões do Supremo Tribunal Federal, o TST cancelou a Orientação
Jurisprudencial 177 da SDI, que afirmava ser a aposentadoria voluntária por tempo
de serviço modalidade de extinção contratual (ainda que mantida na realidade a
relação de emprego), sendo inviável considerar a integralidade do tempo de serviço
para fins de apuração da base de cálculo para cálculo da indenização pela despedida
sem justa causa (40% do FGTS).
37
11.pmd
“Orientação Jurisprudencial N° 88. Gestante. Estabilidade provisória. Inserido em
28/04/1997. O desconhecimento de estado gravídico pelo empregador, salvo previsão contrária em norma coletiva, não afasta o direito ao pagamento da indenização
decorrente da estabilidade (Art.10, II, b, ADCT). A ausência de cumprimento da
obrigação de comunicar à empregadora o estado gravídico em determinado prazo
após a rescisão, conforme previsto em norma coletiva que condiciona a estabilidade
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“todos os direitos fundamentais dos trabalhadores positivados são inderrogáveis tanto pela discricionariedade administrativa, como pela autonomia
privada, individual ou coletiva” 38, para o Supremo Tribunal Federal não estão
sujeitos à deliberação (e, portanto, à transação pela autonomia coletiva) os
direitos fundamentais sociais 39 diante da natureza irrenunciável dos direitos
constitucionais dos trabalhadores e do princípio da norma mais benéfica.
Em um contexto no qual o direito do trabalho passou a ser flexibilizado
in pejus, em detrimento dos direitos fundamentais sociais tanto pelas mãos
do legislador quanto pelas vias da negociação coletiva e de decisões judiciais
de cortes trabalhistas, o Supremo Tribunal Federal contribuiu, ainda que timidamente, para a reconstrução jurisprudencial de um direito do trabalho se não
desregulado, ao menos flexibilizado.
Jurisprudência garantista em matéria de direitos coletivos envolve não
uma reconstrução, mas uma construção concretizadora do direito fundamental à greve, positivado no Artigo 9° da CRFB. Em confronto com uma memória
repressiva, encontramos decisões recentes do Tribunal Superior do Trabalho
a esta comunicação, afasta o direito à indenização decorrente da estabilidade.” Posteriormente foi dada nova redação à OJ 88: “Gestante. Estabilidade Provisória. O
desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade. (Art. 10, II, “b”, ADCT). Legislação: CF/1988”, entendimento consubstanciado atualmente na Súmula 244 do
Tribunal Superior do Trabalho.
11.pmd
38
Ferrajoli (2008, p. 291).
39
Trata-se de decisão proferida em recurso extraordinário em que a Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal reformou decisão do TST e restabeleceu sentença de
primeira instância da Justiça do Trabalho que determinara o pagamento da indenização pela dispensa arbitrária de empregada grávida, não obstante previsão constante em cláusula convencional, assim ementada: “Estabilidade provisória da
empregada gestante (ADCT, Art. 10, II, b): inconstitucionalidade de cláusula de
convenção coletiva do trabalho que impõe como requisito para o gozo do benefício
a comunicação da gravidez ao empregador. 1. O Art. 10 do ADCT foi editado para
suprir a ausência temporária de regulamentação da matéria por lei. Se carecesse
ele mesmo de complementação, só a lei a poderia dar; não a convenção coletiva, à
falta de disposição constitucional que o admitisse. 2. Aos acordos e convenções
coletivos de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer
limitações a direito constitucional dos trabalhadores que nem à lei se permite.”
(Brasil, STF-RE 234186-3, 2001)
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seguindo tal intento ao rechaçar argumentos patronais que identificam greve
política como greve abusiva e ao sublinhar a existência de “movimentos grevistas que se dirigiram a interesses estranhos aos estritamente contratuais”,
tais como as “greves de solidariedade e as greves políticas, que não são vedadas
pela Constituição Federal.” 40 A afirmação da amplitude do direito de greve e
da reserva à autonomia coletiva de competência exclusiva para deliberar sobre
a oportunidade do exercício do direito e decidir acerca de que interesses serão
defendidos na greve expressa uma opção nitidamente garantista de concretização do direito fundamental e de reconhecimento da legitimidade constitucional de movimentos paredistas, contendo reivindicações políticas que buscam
a melhoria das condições de vida dos trabalhadores.
40
11.pmd
Trata-se de importante decisão da Seção de Dissídios Coletivos do TST, proferida
em 09 de novembro de 2009, nos autos do processo TST-RODC-548/2008-000-1200.0, com a seguinte ementa: “RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO.
AMPLITUDE DO DIREITO DE GREVE. A Carta Magna brasileira de 1988, em
contraponto a todas as constituições anteriores do país, conferiu, efetivamente,
amplitude ao direito de greve ao determinar que compete aos trabalhadores a decisão sobre a oportunidade de exercer o direito, assim como decidir a respeito dos
interesses que devam por meio dele defender (caput do Art. 9°, CF/88). A teor do
comando constitucional, portanto, não são, em princípio, inválidos movimentos
paredistas que defendam interesses que não sejam rigorosamente contratuais,
ilustrativamente, razões macroprofissionais e outras.” O Acórdão, de relatoria do
ministro Maurício Godinho Delgado, é claramente garantista: “Ao contrário, a Carta
Magna brasileira, de 1988, em contraponto a todas as constituições anteriores do
país, conferiu, efetivamente, amplitude ao direito de greve. É que determinou competir aos trabalhadores a decisão sobre a oportunidade de exercer o direito, assim
como sobre os interesses que devam por meio dele defender (caput do Art. 9°, CF/88).
Oportunidade de exercício de greve e interesses a serem nela defendidos, ambos sob
decisão dos respectivos trabalhadores, diz a Carta Magna. A teor do comando constitucional, portanto, não são, em princípio, inválidos movimentos paredistas que defendam interesses que não sejam rigorosamente contratuais, ilustrativamente, razões
macroprofissionais e outras. A validade desses movimentos será inquestionável, em
especial se a solidaridade ou a motivação política vincularem-se a fatores de significativa repercussão na vida e trabalho dos grevistas. Essa é a hipótese dos autos em que
os trabalhadores, unidos em uma mobilização nacional, reivindicaram legitimamente
melhorias nas relações do trabalho portuário. Dessa forma, é inevitável a conclusão
de que o simples fato de ter o movimento paredista cunho estritamente político, conforme alega o Suscitante, não torna o movimento abusivo, visto que os trabalhadores
apenas exerceram em sua plenitude um direito constitucionalmente garantido”.
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
Em um cenário de abertura do Tribunal Superior do Trabalho a interpretações garantistas, quiçá o Supremo Tribunal não enverede por interpretações em desprestígio dos princípios do direito constitucional do trabalho.
Posições liberais em matéria constitucional podem provocar uma erosão na
interpretação da constituição do trabalho e um retrocesso na concretização
dos direitos. Referimo-nos especialmente a recentes debates havidos no Supremo Tribunal Federal em torno de institutos e temas caros aos juslaboralistas. Sob a aparência de concretização de princípios constitucionais, o Supremo
Tribunal Federal determinou a suspensão da nova redação da Súmula 228 do
TST 41 e inicia debate sobre a constitucionalidade da prescrição trintenária do
FGTS, resolvida na Justiça do Trabalho com a edição da Súmula 362 do TST. 42
Trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário 522.897, no qual se
discute a constitucionalidade do artigo 23 da Lei n° 8.036, de 11 de maio de
1990, que reafirmou, depois da nova ordem constitucional, a prescrição trintenária para cobrança de parcelas não depositadas no Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço. A tese da inconstitucionalidade aduzida pelo empregador
(no caso, o estado do Rio Grande do Norte) foi acolhida nos votos dos Ministros
Gilmar Mendes e Ellen Gracie, tendo sido suspenso o julgamento no último
dia 04 [de agosto de 2011] com o pedido de vista do Ministro Carlos Ayres de
Brito. A tese da inconstitucionalidade sustenta que na nova ordem constitucional o Fundo de Garantia corresponderia a um crédito trabalhista, prescritível
em cinco anos, a teor do inciso XXIX do artigo 7° da CRFB. Conquanto a natureza
complexa do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço não permita concluir
tratar-se exclusivamente de uma modalidade de crédito trabalhista, ainda que
assim o fosse, tal conclusão não levaria à inconstitucionalidade do artigo 23 da
11.pmd
41
Trata-se da decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes, que deferiu medida
cautelar nos autos da Reclamação 6266 - DF, atendendo a requerimento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) para suspender os efeitos da Súmula 228 do
E. Tribunal Superior do Trabalho, que em nova redação afirmara: “Adicional de
insalubridade. Base de cálculo. A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação
da Súmula Vinculante n° 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em
instrumento coletivo.”
42
Súmula TST n° 362 - FGTS. Prescrição: “É trintenária a prescrição do direito de
reclamar contra o não-recolhimento da contribuição para o FGTS, observado o prazo
de 2 (dois) anos após o término do contrato de trabalho.”
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Lei n° 8.036, de 1990. Afinal, o caput do artigo 7° da Constituição Federal não
somente não veda que os direitos nele enunciados sejam ampliados pela legislação infraconstitucional, como constitucionaliza o princípio trabalhista
que prestigia a norma mais favorável. Em matéria trabalhista, com expressa
garantia constitucional, a norma mais favorável é sempre o vértice do ordenamento, constituindo os direitos materiais previstos no artigo 7° (CRFB) o
piso, não um teto para a proteção.
Não se deve olvidar “que o Art. 7° da Constituição revela-se como uma
centelha de proteção ao trabalhador a deflagrar um programa ascendente,
sempre ascendente, de afirmação dos direitos fundamentais”, consoante
magistério de Augusto César Leite Carvalho, que assevera:
Quando o caput do mencionado preceito enuncia que irá detalhar o
conteúdo indisponível de uma relação de emprego e de logo põe a
salvo “outros direitos que visem à melhoria de sua condição social”,
atende a um postulado imanente aos direitos fundamentais: a proibição de retrocesso 43.
Sabe-se que o direito fundamental reconhecido no inciso XXIX do artigo 7° da Constituição é o da ampla garantia do direito de ação trabalhista 44 e
que o lapso temporal fixado objetivava, em seu tempo, aumentar o prazo prescricional estabelecido originalmente na Consolidação das Leis do Trabalho. A
adequada interpretação para o Artigo 7°, inciso XXIX, é a que extrai do direito
constitucional não uma interpretação textual, mas aquela que, referenciada
na tendência progressista e progressiva dos direitos fundamentais, 45 reafirma
os direitos fundamentais como direitos dos mais fracos:
11.pmd
43
Carvalho (2007).
44
Camino (2004), Carvalho (2007).
45
Como manifestação das potencialidades do garantismo para sustentar um processo
de reconstrução dogmática do direito do trabalho, o excelente artigo do Ministro
Augusto César de Carvalho que afirma a incompatibilidade entre o artigo 219, §5°,
do CPC (que em nova redação alberga a possibilidade de declaração ex-ofício da
prescrição), ao constatar que “a mudança de sentido fere a proibição de retrocesso
em relação ao direito de ação trabalhista elevado à categoria de direito fundamental
pela Constituição e por esta já delimitado”, prosseguindo: “por seu turno, o credor
da prestação salarial tem interesse prevalente quando comparado, com esteio no
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
Centrando o foco, portanto, na matriz constitucional [...] exaure-se
na percepção de o conceito de prescrição considerado pelo constituinte, em restrição que fez ao direito de ação trabalhista, ser insusceptível de mutação pelo legislador ordinário sempre que assim não
suceder para melhorar as condições sociais do trabalhado. 46
As potencialidades do garantismo para a reconstrução jurisprudencial
dos direitos do trabalho estão dadas e já são exploradas em casos específicos.
Parafraseando Ferrajoli, afirma-se que o futuro dos direitos dos trabalhadores
também depende de nós, de nossa consciência, de nossa responsabilidade
civil e política, de nosso atuar 47. Instigada por uma leitura que conjuga o processo de positivação dos direitos do trabalho na desigual sociedade brasileira
com o estabelecimento de um horizonte para as aspirações utópicas de uma
classe em construção, 48 concluímos o artigo tomando por empréstimo de
Douzinas 49 a epígrafe de Oscar Wilde: “Nem vale a pena olhar para um mapa
do mundo que não inclua a Utopia, pois ele exclui o único país onde a humanidade está sempre aportando.”
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ordenamento constitucional e mesmo legal, ao desejo de o devedor trabalhista eximir-se das obrigações que contraiu ao apropriar-se da energia de trabalho.” (Carvalho, 2007)
11.pmd
46
Ibid., grifo nosso.
47
Ferrajoli (2008, p. 292).
48
A referência aqui é ao instigante ensaio de Cardoso (2010, p. 806), para quem “a
consciência de classe dos trabalhadores brasileiros foi, por muito tempo, a consciência do direito a seus direitos, cuja efetividade esteve sempre em processo e, nesse
sentido, foi, sempre e renovadamente, utópica.”
49
Douzinas (2009).
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135
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EACMS%2E+ADJ2+158215%2EACMS%2E%29&base=baseAcordao>.
Acesso em: 24 ago. 2011.
11.pmd
136
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Direitos fundamentais, garantismo e direito do trabalho
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Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
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RESUMO
ABSTRACT
O artigo disserta sobre dois conceitos
do Direito do Trabalho cunhados pelo
11.pmd
139
This article discusses two concepts of
Labor Law coined by Uruguayan jurist
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Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
jurista uruguaio Oscar Ermida Uriarte.
O primeiro trata de atividade decisória
na qual, com a aplicação de princípios
e de normas constitucionais e internacionais, Cortes Supremas vêm negando
aplicabilidade a leis de desregulamentação ou flexibilização de direito por
considerá-las inconstitucionais. O segundo é, em certa medida, uma reação à flexibilidade jurisprudencial, que
ocorre quando, por meio de decisões
judiciais, a normativa do trabalho é
flexibilizada em prejuízo dos trabalhadores. Desse modo, o artigo possui
dupla finalidade: saudar os 70 anos da
Justiça do Trabalho e homenagear
Oscar Uriarte.
Oscar Ermida Uriarte. The first concept is about the following decisionmaking process: Supreme Courts are
considering constitutional and international norms and principles unconstitutional and have been denying
their application due to the fact that
they bring deregulation or flexibility
to Labor Law. The second concept is,
in a way, a reaction to law flexibility,
which happens when, through judicial decisions, the labor law is “flexed”
against workers’ rights. Therefore,
this article has two purposes: celebrate 70 years of Labor Law and pay
homage to Oscar Uriarte.
Palavras-chave: Justiça do Trabalho,
direitos fundamentais, interpretação,
garantismo.
Keywords: Labor Law, fundamental
rights, interpretation, guaranteeism.
Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva é Desembargadora do TRT
da 1ª Região pelo Quinto Constitucional da Advocacia, Doutora em Direito e
Mestra em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Professora
Adjunta da Faculdade Nacional de Direito e do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UFRJ, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e do
Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior (IBDSCJ), e Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.
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A Doutrina Social da Igreja e o
corporativismo: a Encíclica Rerum
Novarum e a regulação do trabalho
no Brasil *
Wilson Ramos Filho
Nasser Ahmad Allan
INTRODUÇÃO
Em maio de 2011, completaram-se cento e vinte anos da edição da Encíclica Rerum Novarum, documento sempre lembrado como uma das fontes
de inspiração para o Direito do Trabalho brasileiro, ao lado dos demais documentos eclesiásticos que compõem a chamada Doutrina Social Católica. Na
memorização que se produziu, principalmente depois da Consolidação das
Leis do Trabalho na década de 1940 1, a influência desta Doutrina geralmente
*
Este artigo foi publicado em Gunther e Villatori (2011).
1
Um dos mais importantes integrantes da Comissão responsável pela Consolidação
das Leis do Trabalho, Arnaldo Süssekind, relatou que seu trabalho consistiu em
“quatro procedimentos distintos: a) sistematização das normas de proteção individual
do trabalho então em vigor, com algumas modificações e adaptações, em geral inspiradas em Convenções da OIT e na Rerum Novarum: decretos legislativos de 1930-34,
leis de 1934-37 e decretos-leis de 1937-41; b) compilação, sem alterações, da legislação
da ‘véspera’, adotada em decorrência de preceitos constitucionais ainda vigentes:
decretos-leis de 1939-40, sobre a organização da Justiça do Trabalho; e decretos-
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 141-172, jul./dez. 2011
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Wilson Ramos Filho e Nasser Ahmad Allan
vem referida como um dos elementos do processo de humanização do capitalismo brasileiro, por intermédio da regulação estatal das relações de trabalho
subordinado, silenciando sobre a não menos importante influência daquela
Doutrina nos elementos corporativistas que caracterizaram e, de certa forma,
ainda singularizam o Direito do Trabalho no Brasil.
Neste artigo pretende-se discorrer brevemente sobre os objetivos da
Igreja Católica ao editar a festejada encíclica e da Doutrina Social que inaugura e sobre a significativa inter-relação desta com o ideário corporativista,
especialmente no período compreendido entre 1891, data da edição da Rerum
Novarum, e o final do Estado Novo, configurando de modo perene o modelo
de relações de trabalho implantado no Brasil.
AS ENCÍCLICAS SOCIAIS: RERUM NOVARUM E QUADRAGESIMO ANNO
Para além dos valorosos esforços em resgatar os aspectos positivos da
Rerum Novarum, considera-se importante também resgatar o contexto político
e social que presidiu aquela inflexão política da Igreja Católica e o daquela
que, quarenta anos mais tarde, a atualizará para constituir de modo mais orgânico a Doutrina Social Católica.
Em apertada síntese, a primeira encíclica só pode ser compreendida
como reação – conservadora – ao intenso processo de lutas sociais que se desenvolvera na Europa ao longo do século XIX em face das condições de vida e
de trabalho sob os postulados do liberalismo econômico, que permitiam acumulação de capital sem limites enquanto impunham a miséria à maioria da
população, ensejando movimentos contestatórios da ordem estabelecida 2,
com a qual sempre convivera bem a Igreja Católica.
Os termos da encíclica permitem vislumbrar seus verdadeiros objetivos políticos, no sentido de condenar o socialismo fomentando a defesa da
leis de 1939-42, sobre a organização sindical; c) atualização e complementação de
disposições superadas ou incompletas, constantes de decretos legislativos, decretos regulamentares e portarias, sobre segurança e higiene do trabalho, contrato
coletivo do trabalho, inspeção do trabalho e processo de multas administrativas; e
d) elaboração de novas normas imprescindíveis à configuração e à aplicação do
sistema, com fontes materiais diversas.” (Biavaschi, 2007, p. 118)
2
12.pmd
Allan (2010, p. 130).
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
manutenção da desigualdade entre as classes sociais e propugnando pela preservação da propriedade privada 3.
A visão dispensada pela Igreja Católica às classes subjugadas na ordem
liberal evidencia o paternalismo próprio da caridade cristã, ao retratar a necessidade de “conceder direitos aos mais pobres”, a fim de retirá-los da miséria
por “amor ao próximo”, e não como resultado dos processos de luta social
que então se desenvolviam. A partir de então, nos textos católicos, o reconhecimento de direitos não aparece como conquista das classes subalternas, mas
como doação pelas classes dominantes motivada pela comiseração, vez que
não se almejava a emancipação do operariado, mas a preservação de seu controle, apresentando a Igreja Católica como a única instituição capaz de compelir o capitalista a respeitar a condição humana dos operários 4.
A perspectiva elitista e discriminatória da Encíclica de Leão XIII resta
evidenciada também pela negação do direito à igualdade entre os homens,
pela tentativa de justificar a desigualdade social e econômica, como destacado
por um dos expoentes do fascismo brasileiro, em texto publicado em 1938:
Suposta a colaboração orgânica, para a tranqüilidade, a doutrina
católica reivindica para o Estado a dignidade e a autoridade de defender vigilante e previdente dos direitos divinos e humanos, sobre
os quais as Sagradas Escrituras e os Padres da Igreja freqüentemente
12.pmd
3
“7. Os socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra
os que possuem, e pretendem que toda propriedade de bens particulares deve ser
suprimida [...]” (Brasil, 1981, p. 11); e “8. Mas semelhante teoria, longe de ser
capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática.
Outrossim, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários,
viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social.
[...] o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como conseqüência
necessária, as riquezas estancadas na sua fonte, enfim, em lugar dessa igualdade
tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria.” (Ibid., p. 16)
4
“[...] Os instrumentos de que ela [Igreja Católica] dispõe para tocar as almas, recebeu-os, para este fim, de Jesus Cristo, e trazem em si a eficácia duma virtude divina.
São os únicos aptos para penetrar até às profundezas do coração humano, que são
capazes de levar o homem a obedecer às imposições do dever, a dominar as suas
paixões, a amar a Deus e ao seu próximo com uma caridade sem limites, a esmagar
corajosamente todos os obstáculos que dificultam o seu caminho na estrada da
virtude.” (Ibid., p. 23)
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insistem. Não é verdade que na sociedade civil todos temos direitos
iguais, e que não exista hierarquia legítima. Basta que nos reportemos às Encíclicas de Leão XIII, acima citadas [...]. Nelas encontra o
católico com muita clareza expostos os princípios da razão e da fé,
que o tornarão capaz de precaver contra erros e perigos da concepção
comunista do Estado. 5
Segundo a síntese realizada por um comentarista da época em que o
fascismo e a Doutrina Social Católica se confundiam na Itália, na visão do
Vaticano sobre a pobreza,
1) A propriedade privada, sobretudo a fundiária, é um “direito natural”, que não pode ser violado nem mesmo através de altos impostos
[...] 2) Os pobres devem contentar-se com sua sorte, já que as diferenças de classe e a distribuição da riqueza são disposições de Deus
e seria ímpio tentar eliminá-las; 3) A esmola é um dever cristão e
implica a existência da pobreza; 4) A questão social é antes de mais
nada moral e religiosa, não econômica, devendo ser resolvida através
da caridade cristã e dos ditames da moral e do juízo da religião. 6
Nesse plano, insere-se a proposta defendida na Rerum Novarum de agrupar os operários em organizações católicas, pautadas não na luta de classes,
mas na concórdia entre capital e trabalho sob a proteção de Deus. Tais organismos deveriam reproduzir o espírito harmônico e colaboracionista das antigas corporações. Intencionava-se, portanto, a pacificação das relações de
trabalho subordinadas a partir de sua regulação pelo Estado, a fim de inibir o
avanço socialista mediante contrapartidas, entre as quais a garantia de mínimas condições de vida aos operários.
Efetivamente, quando da edição da encíclica, o movimento social europeu já se encontrava razoavelmente estruturado, articulando críticas anticapitalistas, seja por intermédio do ideário socialista, seja pelo movimento
anarquista. Tais críticas sociais, que enfatizavam a estreita ligação da Igreja
Católica com o empresariado e com as oligarquias agrárias, representadas
12.pmd
5
Barroso (1938, p. 129-130).
6
Gramsci (2007, p. 153).
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regulação do trabalho no Brasil
nos Estados nacionais, pouco a pouco conquistavam mais adeptos entre aqueles que, por não terem outra maneira de sobreviver, vendiam sua força de
trabalho. No final da década de 1880 e nos primeiros anos da seguinte, logo,
em período contemporâneo ao da edição da Encíclica Rerum Novarum, o
movimento operário socialista engendrava grandes avanços, proporcionados
pela instituição da Segunda Internacional dos Trabalhadores, e perceptíveis
na Europa pela proliferação de partidos socialistas em diversos países, com
conquistas de posições parlamentares, como na Alemanha, onde o Partido
Socialdemocrata (SPD) dobrou sua representação entre 1887 e 1893 (de 10,1%
a 23,3%) 7.
Apesar de as relações de trabalho durante o século XIX se basearem
principalmente na escravidão, também no Brasil se encontram elementos
caracterizadores do mal-estar laboral decorrentes do liberalismo econômico 8.
De modo coevo à Rerum Novarum, em nosso país registram-se inúmeros conflitos entre as classes sociais, principalmente a partir da proclamação da República. De fato, findo o Império, ocorrem greves em 1891 (dos ferroviários da
Central do Brasil, que paralisou o Rio de Janeiro) e em 1890 (dentre as quais
a convocada pelos estivadores e a dos sapateiros, que durou dois meses), ensejando a realização do Primeiro Congresso Socialista Brasileiro no Rio de
Janeiro e de tentativas de criação de partidos políticos para representar os
trabalhadores, inspirado em experiências similares verificadas na Europa. 9
12.pmd
7
Hobsbawn (2007, p. 176 et seq.).
8
Ainda antes da República, é corrente a referência à greve efetuada pelos gráficos
dos três jornais do Rio de Janeiro, em 1858, considerada a primeira mobilização
operária no Brasil, convocada pela Associação Tipográfica Fluminense. Essa greve
ocorreu em importantes jornais da capital do país em decorrência de péssimas condições de trabalho. Segundo a crônica historiográfica, “trabalhava-se quinze horas
por dia nas oficinas desses jornais; a iluminação a gás era deficiente, o que prejudicava a vista dos que trabalhavam noite adentro. O custo de vida tinha subido muito
desde dezembro de 1855, data do último aumento recebido pelos gráficos.”
Deflagrada a greve, que envolvia oitenta operários, “nenhum jornal circulou pelas
ruas do Rio de Janeiro durante aqueles dias, e os patrões solicitaram ‘medidas enérgicas’ à polícia” (Hardman, 1991, p. 102).
9
Frustrados com a República, que não havia melhorado suas condições de vida, os
trabalhadores “partem para a organização de sociedades de classe e partidos que
pudessem pressionar o governo para a inserção social de diferentes categorias. A
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Nesse sentido, o recrudescimento da organização operária e de suas
lutas por melhores condições de vida, por intermédio de estratégias de ação
direta (por parte dos anarquistas) ou de sua participação parlamentar (por
parte dos partidos socialistas), passa a preocupar não apenas os governos liberais, mas também as elites econômicas e sua eterna aliada, a Igreja Católica.
É nesse contexto que deve ser compreendida a Encíclica Rerum Novarum.
Objetivamente, não foi o espírito caridoso do cristianismo – invocado no documento como fundamento para proteção aos mais pobres – o motivo determinante na inflexão do Vaticano em direção às classes populares (afinal aquela
instituição se calara durante todo o século XIX, período durante o qual as condições de trabalho e de vida das classes subalternas se degradaram e se tornaram ultrajantes), mas uma reação conservadora que visava estabelecer um
contraponto ideológico às propostas de transformação social, visando à manutenção do status quo.
Com o passar dos anos, os intelectuais e militantes católicos conseguiram tornar corrente a percepção da encíclica como algo inovadora; divisora
de águas; vanguardista; características que, salvo nas mistificações, não possui.
Enfim, as referências são as mais elogiosas, muitas vezes galgando-a à condição
de propulsora do direito do trabalho nos mais diversos países. No Brasil, isso
não foi diferente. A idealização da encíclica e do Papa Leão XIII evidencia-se
nas palavras de um antigo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho:
organização dos trabalhadores tem início em 1890, quando se formaram os primeiros partidos operários. Foi fundado o Partido Operário, liderado pelo jornalista
e ex-militar Gustavo de Lacerda, que defendia a criação de cooperativas em vez de
sindicatos militantes e era contra a greve. No mesmo ano, Luis França e Silva formou
outro partido operário, seguindo linha ideológica semelhante à de Gustavo de
Lacerda.” Ambos os partidos praticamente desapareceram com a derrota nas eleições de 1890 (Azevedo, 2005, p. 24), em face do sistema eleitoral então implantado
no Brasil, no contexto de organização dos trabalhadores em partidos classistas em
vários países do mundo, na virada do século XIX para o XX, período durante o qual
se fortaleceu o Partido Socialdemocrata Alemão (SPD), no qual um militante socialista passou a integrar o gabinete francês. Na Austrália, os socialistas chegaram ao
poder “por pouco tempo em 1904 e com frequência após 1908”, até que, em 1910,
se assistiu ao primeiro esboço de regime socialista na Nova Zelândia, país no qual
“o governo administrava muitas indústrias e quase todas as estradas de ferro, além
de pagar pensões para os idosos e proporcionar educação gratuita”, servindo de
inspiração para o movimento socialista em outros lugares (Blainey, 2009, p. 45).
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
O Chefe da Igreja, do documento imortal de maio de 91, já nos advertia da conveniência de virmos, com medidas prontas e eficazes,
em auxílio às classes inferiores, atendendo a que, na maioria dos
casos, “os seus membros estão numa situação de infortúnio e de
miséria imerecidos”. Não é tudo. Para que mais se evidencie como o
Soberano Pontífice fixou o verdadeiro sentido do Direito Social [...] 10
Trata-se de visões míticas. Não se pode olvidar a relevância histórica do
texto da Igreja; contudo, deve-se compreendê-lo exatamente quanto ao que
se propõe. A encíclica não significou avanços significativos, salvo no plano
discursivo. A chamada de atenção dos governos e da sociedade à “questão
social” ocorreu com um século de atraso. Mesmo as medidas defendidas em
favor dos operários o foram timidamente, dentro de padrões paulatinamente
assimilados pelas classes dominantes e aquém dos patamares (há muito) reivindicados pelos movimentos de trabalhadores. Convém recordar que exigências de regulamentação de salário mínimo, de limitação do número diário de
horas de trabalho, de melhores condições de trabalho em geral, constavam
na pauta de movimentos de trabalhadores desde o início daquele século. Podese ilustrar com a Inglaterra, onde os operários e tecelões lutavam por essas
melhorias desde o início do século XIX, ainda que com maior desenvoltura a
partir da década de 1830. 11
A jornada de oito horas já era bandeira empunhada pelos movimentos
de trabalhadores em grande parte do mundo. Em sentido contrário, a encíclica
papal, ao tratar da limitação à jornada de trabalho dos operários, não foi além
de uma recomendação, como se apreende de seu texto:
Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se por mais tempo do que
as forças permitem. Assim o número de horas de trabalho diário não
deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso
deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias
do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários. 12
12.pmd
10
Menezes (1953, p. 26).
11
Thompson (2004, p. 435).
12
Brasil (1981, p. 30).
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O conservadorismo imanente da encíclica também pode ser percebido
nas menções em relação ao trabalho da mulher, ou melhor, na recomendação
para a mulher não trabalhar fora de casa, pois deveria restringir-se aos cuidados com o lar e com a família 13, excluindo das condições de acesso a bens
metade da população mundial.
Em sentido diverso da memorização conservadora, razoável se configura a compreensão de que a principal virtude da Encíclica Rerum Novarum
consistiu em estabelecer claramente os contornos de uma contra-revolução
ao propugnar explicitamente pela organização operária em associações de
espírito colaboracionista. Aliás, algo que será bem aproveitado pela encíclica
editada para comemorar o quadragésimo aniversário de sua publicação.
Se, em 1891, Leão XIII condenara o socialismo basicamente por pregar
o materialismo – que representava o ateísmo e a ausência de espiritualidade,
contrários aos interesses do Vaticano – e a coletivização da propriedade privada, além de disseminar no operariado a ilusão da possibilidade de obter-se
a igualdade entre os homens 14, depois das revoluções sociais na Rússia e no
México em 1917 e da frustrada revolução alemã em 1919, o inimigo mostravase mais perigoso. Tão ameaçador que mereceu atenção especial da Igreja
Católica na Encíclica Quadragesimo Anno, de 1931, e, no contexto do crescimento do fascismo e do nazismo na Europa, enquanto calava em relação a
ambos, motivou o Vaticano a editar encíclica específica, em 1937, a Divinis
Redemptoris, ainda durante o papado de Pio XI, na qual o comunismo era
apresentado como “intrinsecamente mau e não se pode admitir em campo
algum a colaboração com ele por parte de quem pretenda salvar a civilização
cristã”. 15
Visando preservar a manutenção das relações entre as classes sociais,
na Encíclica Quadragesimo Anno, 12 de seus parágrafos destinaram-se a abordar os males propiciados pelo comunismo e pelo socialismo à fé cristã, apresentando-os como indesejáveis por pregar a destruição da propriedade
12.pmd
13
“Trabalhos há também que se não adaptam tanto à mulher, a qual a natureza destina de preferência aos arranjos domésticos, que, por outro lado, salvaguardam
admiravelmente a honestidade do sexo, e correspondem melhor, pela sua natureza,
ao que pede a boa educação dos filhos e da prosperidade da família.” (Ibid., p. 31)
14
Ibid., p. 10 et seq.
15
Texto da Encíclica Papal Divinis Redemptoris (Cabral, 1949, p. 12).
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
privada, fomentar a desarmonia entre as classes sociais e pregar o ódio contra
a Igreja e contra Deus. 16
Na luta contra o comunismo adotaram-se várias estratégias. Mostravase imprescindível a difusão do movimento operário católico, e para atingir
esta finalidade foram lançadas três tendências importantes: a afirmação dos
valores tradicionais e cristãos; nova noção das relações entre política econômica e social; criação de instituições corporativistas. 17 Do mesmo modo, forjou-se a imagem do “anjo decaído” associada aos comunistas, pois estes seriam
contrários aos principais valores da sociedade “criada por Deus: a família, a
Pátria, o Estado, a religião”. Representariam a negação a Deus e ao sagrado.
A construção da imagem da negação, de satanização do comunismo, foi elaborada a partir de textos em publicações religiosas, assim como integrada ao
cotidiano das paróquias, com os incessantes pedidos de orações dos fiéis aos
católicos da Espanha, México, Rússia etc., que sofriam com a perseguição dos
comunistas. 18
A partir da estigmatização dos movimentos sociais políticos que pregavam uma diferente relação entre empregados e empregadores, ao contrário
do que busca fazer crer a memorização conservadora, a Doutrina Social Católica se apresenta como antinômica em face das reivindicações de distintas
relações entre as classes sociais, inclusive em suas formulações menos “radicais” ou “mais brandas”, como as que reivindicavam o “socialismo”. Segundo
a visão católica, a apresentação dessas reivindicações do socialismo, como
algo mais “brando”, seria fruto da mentira e da astúcia (predicados do demônio) do inimigo, de modo que jamais os católicos deveriam convergir com
seus interesses. Ou, na síntese do maniqueísmo católico do período: “a humanidade se acha dividida em dois campos, em dois mundos: o cristianismo e o
marxismo”, a ponto de ser atribuído o caráter de traidor ao católico que encetasse esforços em favor dos sindicatos ou de partidos políticos de inspiração
marxista. 19
Assim, de forma análoga ao que pregavam o fascismo e o nazismo naquele período, de acordo com os preceitos da Igreja Católica a sociedade deveria
12.pmd
16
Brasil (1981, p. 76).
17
Golob (s/d, p. 546).
18
Farias (1998, p. 74 et seq.).
19
Cabral (1949, p. 13).
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estruturar-se de maneira harmônica, com a negação da luta de classes e com
o predomínio da concórdia nas relações de produção, pois deveria sobressairse o espírito de colaboração entre capital e trabalho. Esse mesmo pressuposto,
como se sabe, embasava a Doutrina do Corporativismo, bastante funcional
ao ideário católico, em suas distintas vertentes.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que a Encíclica Quadragesimo Anno
corroborou os preceitos preconizados na Rerum Novarum, com maior profundidade em alguns temas. Na encíclica anterior havia mera menção ao papel
do Estado na defesa e “proteção dos pobres”, pois naquele período ainda permeava o ideário liberal, o que não ocorria em 1931, quando aquele modelo
do Estado entrava em crise, com crescente recrudescimento de regimes autoritários na Europa 20 e, como se mencionará no tópico seguinte, também no
Brasil.
As quatro décadas posteriores à publicação da Rerum Novarum não se
mostraram suficientes à modificação de concepção da Igreja Católica em relação à mulher, mantendo-se a noção de que seu trabalho deveria voltar-se
aos “cuidados domésticos”. 21 Não haveria de ser diferente, pois tanto Pio XI
como seus antecessores “eram fundamentalmente conservadores”. 22
Outro ponto relevante relaciona-se com as corporações e com o corporativismo que na Rerum Novarum foram apenas mencionados, enquanto mereceram maior atenção na encíclica comemorativa de seu quadragésimo
aniversário. Afinal, a doutrina corporativista desenvolvera-se, ganhara adeptos e possuía um importante paradigma: o Estado fascista de Benito Mussolini.
Aliás, interessa reproduzir a constrangedora menção elogiosa ao modelo italiano formulada por Pio XI, propositadamente sonegada pelos autores católicos
ao tratarem da encíclica:
Basta refletir um pouco, para ver as vantagens desta organização
[Estado fascista], embora apenas sumariamente indicada: a pacífica
colaboração de classes, repressão das organizações e violências socialistas, a ação moderada de uma magistratura especial, e em har-
12.pmd
20
Eric Hobsbawn (2003, p. 115) demonstra que em 1920 havia, ao menos, 35 governos
democráticos no mundo, enquanto em 1938 existiam 17 e apenas sete em 1944.
21
Brasil (1981, p. 65).
22
Mainwaring (2004, p. 43).
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
monia com os princípios gerais acima recordados e com o que em
breve acrescentaremos, devemos contudo dizer que não falta quem
receie que o Estado se substitua às livres atividades, em vez de se
limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio [...] 23
Essa aproximação da Doutrina Social Católica com o fascismo, nesse
sentido, não deve causar espanto, vez que a Igreja Católica também almejava
a pacificação nas relações de produção para mantê-las mediante a imposição
da harmonia entre capitalistas e operários, um dos fundamentos do corporativismo.
IGREJA CATÓLICA E CORPORATIVISMO NO BRASIL
Sem pretender exaurir os diversos significados atribuídos ao corporativismo, na concepção de Philippe Schmitter, define-se como
sistema de representação de interesses no qual as unidades componentes são organizadas num número limitado de categorias singulares, compulsórias, não competitivas, ordenadas hierarquicamente
e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou licenciadas (se não
criadas) pelo estado e providas de um monopólio representativo
deliberado dentro de suas respectivas categorias observando em troca
certos controles em sua escolha dos líderes e articulação de exigências e apoios. 24
O corporativismo caracteriza-se por ser uma forma vertical (de cima
para baixo) de organização hierárquica, em que se considera o indivíduo parte
do Estado, pois compõe uma estrutura pertencente à máquina estatal. Nela
não há lugar para os interesses individuais ou coletivos, disputas políticas ou
classistas, pois devem ser sobrepostos pelos interesses nacionais. 25 Sua finalidade, portanto, resta evidenciada na promoção de harmonia e na colaboração
12.pmd
23
Brasil (1981, p. 72).
24
Schimitter, apud Stepan (1980, p. 92).
25
D’Araujo (2003, p. 220).
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entre as classes sociais em nome de valores superiores identificados com a
nação 26, arbitrados pelo Estado. 27
Para a manutenção da paz nas relações de produção revelara-se imprescindível ao Estado submeter ao seu controle os sindicatos de trabalhadores,
em moldes corporativos. Para tanto, a atuação como órgãos de representação
de classe apenas seria permitida aos reconhecidos pelo poder estatal. Somente
poderiam participar das corporações os sindicatos oficiais, pois nelas exerceriam função pública, agindo como organismos auxiliares do Estado. A subserviência se garantiria com o impedimento ao reconhecimento de mais de um
sindicato ou corporação com a finalidade de representar as mesmas atividades
profissionais ou econômicas. 28
Uma das manifestações concretas do corporativismo denominou-se “corporativismo social” ou de associação, sendo mais corriqueira a católica, em
que os “grupos são independentes do estado e na verdade penetram neste”. 29
A despeito de necessitar de chancela estatal com outorga de reconhecimento
para que existam e exerçam suas funções, as corporações não se constituem
em órgãos de direito público ou mesmo integram o aparato do Estado. 30 Podese asseverar que há reconhecimento estatal para que as corporações e os sindicatos possam exercer funções que são concebidas como públicas, logo,
tratar-se-ia de uma espécie de descentralização do poder do Estado, segundo
os parâmetros de um “internacionalismo não internacionalista” e com fundamento na “colaboração entre as classes sociais” 31.
12.pmd
26
Sá (1942, p. 46).
27
Barassi (1934, p. 58).
28
Ibid., p. 79 et. seq.
29
Stepan (1980, p. 100).
30
Sá (1942, p. 29-30).
31
Um dos principais formuladores da Doutrina corporativista em Portugal, fortemente
influenciado pela Doutrina Social da Igreja, sustentava à época da edição da
Quadragesimo Anno que “a idéia materialista e utilitarista (um utilitarismo, aliás,
absolutamente unilateral) da civilização dividiu o Mundo da produção em dois
sectores: o sector do capital, preocupado em ganhar dinheiro, e o sector do proletariado, considerado apenas como aglomerado de máquinas ou como rebanho de
gado, obrigado a contentar-se com aquilo que o outro sector quer dar-lhe para seu
sustento”. Conclui citando o “Dr. Oliveira Salazar”, então e por muitos anos depois
ditador de Portugal: “a riqueza, os bens, a produção não constituem em si próprios
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
A base ideológica dessas doutrinas guarda relação com o sentimento
de nostalgia em relação a um passado luminoso – na Alemanha, o império
destruído ao final da Primeira Guerra; na Itália, o glorioso Império Romano;
na Espanha, o passado colonial; em Portugal, o antigo Império Português,
que, à época da implantação do corporativismo como política de Estado, se
resumia a umas poucas colônias africanas e asiáticas – ou a um porvir radiante
(na América Latina), cada nacionalismo apresentando-se como “país do futuro”, como “celeiro do mundo” ou como “nação predestinada ao progresso”,
desde que os interesses nacionais, confundidos com os interesses da produção
nacional, prevalecessem, em ordem e harmonia, em face dos interesses individuais e egoístas.
Tais nacionalismos se contrapunham a duas tendências internacionalistas distintas: a da Internacional Vermelha, que influía no movimento operário, seja na Europa, seja em países periféricos independentes, seja em países
submetidos ao domínio colonial; e a da Internacional Dourada, representada
pelo capitalismo internacional 32. Na doutrina corporativista, tanto o internacionalismo comunista – defensor da tese de que “a classe operária é internacional” – quanto o internacionalismo capitalista, sustentando a necessidade da
criação de um sistema-mundo integrado pelos parâmetros da sociedade de
consumo de massas, eram apresentados pelos seus teóricos como “apátridas”.
Diante desses dois internacionalismos “nocivos”, o corporativismo pregava a
necessidade de criação de outra Internacional, Branca, que, potencializando
o nacionalismo, se opusesse às outras duas propostas. Conforme a Doutrina,
fins a atingir, têm de realizar o interesse individual e o interesse coletivo; nada
significam se não estão condicionados à conservação e elevação da vida humana.
A esse objetivo devem obedecer o conjunto da produção nacional e a atividade
administrativa do Estado, dispostas, uma e outra, o mais possível segundo a ordem
racional das necessidades dos indivíduos e da Nação” (Costa, 1934, p. 52).
32
12.pmd
Na Doutrina corporativista, a Internacional Vermelha, comunista, seria, a só um
tempo, “o principal inimigo do Homem, procurando sua reabilitação, e o principal
inimigo da sociedade, procurando a sua reforma”. De outro lado, haveria a Internacional Dourada, resultado da influência dos banqueiros e dos capitalistas internacionais (plutocratas) – apresentados muitas vezes como majoritariamente judeus,
de modo a potencializar o racismo e a repulsa dentre os cristãos –, corrompendo os
políticos para permitir a entrada nos países dos produtos estrangeiros, em decorrência do “livre comércio”, que seria prejudicial aos interesses da “indústria nacional”
(ibid., p. 159-161).
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“se, para o Socialismo, o trabalhador não tem pátria: a sua pátria é em toda
parte onde encontra trabalho. Para a Plutocracia, o Capital não tem pátria: a
sua pátria é em toda parte onde possa ganhar dinheiro”, de modo que
a Plutocracia é tão apatriota como o Socialismo; mas ao passo que o
Socialismo pretende derrubar todas as fronteiras, por entender que a
solidariedade mundial dos trabalhadores encontra nelas uma barreira,
um obstáculo criado pela burguesia para dificultar a emancipação do
proletariado, e por isso é essencialmente internacional e internacionalista, a Plutocracia, se não se opõe a que haja fronteiras, abstrai
delas, ignora-as completamente para o efeito de seus negócios. 33
Essa Internacional Branca seria “internacional sem ser internacionalista”, constituindo-se em Internacional da Ordem contra a desordem, como se
depreende do seguinte trecho:
na Itália de Mussolini, como na Espanha de Primo Rivera, em Portugal
como na Alemanha de Hitler, o objetivo é um só: salvar a sociedade
ameaçada simultaneamente pela Internacional Vermelha de Moscou
e pela Internacional Dourada de Nova Iorque, Amsterdã, Berlin e
Londres. 34
Nesse contexto, a Igreja Católica, internacionalista por definição, teria
o papel fundamental de, preservando os valores tradicionais em cada nação,
se articular internacionalmente contra as duas outras “internacionais”.
São paradigmáticas dessas relações entre o corporativismo e a Doutrina
Social da Igreja, articulando a Internacional Branca, as contraposições ideológicas experimentadas pela Espanha a partir de 1933, quando a coalizão
partidária forjada pelos setores mais conservadores da sociedade transformou a Confederação Espanhola da Direita Autônoma no maior partido político
espanhol, congregando aproximadamente um terço do eleitorado, com base
em uma plataforma política que defendia o corporativismo católico e uma
reforma na Constituição republicana de 1931, para converter aquele país em
12.pmd
33
Ibid., p. 171.
34
Ibid.
154
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regulação do trabalho no Brasil
um “Estado corporativo autoritário”, apresentando-se como “derecha contrarrevolucionaria”, para se contrapor ao comunismo, ao socialismo e ao anarquismo 35. Esses mesmos setores, como se sabe, diante dos resultados eleitorais
de 1935 que deram vitória à coalizão da Frente Popular, influenciada pelos
socialistas, fomentaram o levante militar que, depois de sangrenta guerra civil,
conduziu ao poder o General Francisco Franco, dando início a uma ditadura
que durou quarenta anos, sempre com o apoio da Igreja Católica.
A exemplo do que ocorria em Portugal ou na Espanha, também em toda
a América Latina o ideário do corporativismo restou abraçado pela Igreja
Católica, demonstrando a concepção antiliberal nutrida na época. Essa articulação preconizava o retorno aos “valores perdidos”, 36 após a influência iluminista que acarretou a superação do período histórico em que o poder da
Igreja confundia-se com o do Estado. A retomada corporativista importava
sua tentativa de recuperar espaços nas estruturas de poder da sociedade 37, de
modo que, em todos os regimes autoritários experimentados neste continente,
de um modo mais ou menos explícito, se verificará uma relação de fortalecimento recíproco entre o ideário corporativista e a Doutrina Social da Igreja.
No Brasil, de modo análogo, a tomada do poder pelo movimento de
1930 se articulou em torno do corporativismo, ao argumento de que se fazia
necessário um Estado forte e autoritário que conduzisse o país ao desenvolvimento econômico, à industrialização, viabilizados pelo apoio das forças armadas, da burguesia industrial e com a cooptação dos trabalhadores urbanos 38,
para enfrentar os efeitos da crise capitalista iniciada em 1929.
O corporativismo brasileiro encontrava guarida nas convicções de Getulio Vargas de “harmonizar o conflito de classes e os interesses do capital e
do trabalho”, em conformidade com os postulados corporativistas de colaboração entre as forças produtivas com ação integrada de um Estado forte, refletindo os interesses da nação em contraposição aos classistas e individuais 39.
12.pmd
35
Payne (1987, p. 56 et seq.).
36
Storni (1943, p. 109).
37
Allan (2010, p. 130).
38
Fausto (2008, p. 327).
39
Um dos ideólogos brasileiros do corporativismo influenciado pela Doutrina Social
Católica, explicando o surgimento da legislação social brasileira, sustenta que “patrões, capitalistas, governos, intelectuais, todos começaram a cogitar da ‘questão
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A opção foi tomada também em decorrência de o corporativismo permitir a
divisão orgânica da sociedade a partir de ocupações econômicas, subjugando
as classes populares, ao passo que promovia a organização dos setores produtivos em novas bases. 40
O projeto corporativista tornou-se mais contundente com o Estado Novo,
em 1937, mas se apresentou desde o início do golpe militar, em 1930. Não
deve ser outro o significado da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio e com ele de todas as propostas de leis trabalhistas, além da estruturação sindical com o Decreto n° 19.770, de 1931 41. No mesmo sentido, podese citar a representação classista para compor a Assembléia Nacional
Constituinte, criada em 1933, com intuito de elaborar a Constituição de 1934 42
e, mais tarde, a partir de 1939, com o estabelecimento de diversas instituições tripartites, com representação de trabalhadores, de empregadores e do
próprio Estado, entre as quais a própria Justiça do Trabalho.
As pretensões externadas, inicialmente, indicam o escopo de articular
um corporativismo estatal a partir de corporações com funções econômicas 43,
articuladas no Brasil a partir da divisão das forças produtivas em ramos de
atividade econômica, entre empregados e empregadores, a fim de que se observasse simetria na representação entre os vendedores de sua força de trabalho
40
41
42
43
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social’ e começaram a correr atrás de fórmulas para resolvê-la. Uns, como o nosso
ex-presidente Sr. Washington Luiz, acreditavam que a ‘questão social’ se resolveria
com atropelos de patas de cavalos montados por policiais irresponsáveis. Outros,
mais sensatos, puseram-se em campo e, em contato com a realidade, puderam ver
e sentir a gravidade do problema. Começaram, então, a fazer concessões ao proletariado. Concessões que eram apenas enganosas aparências de melhoria. Enquanto
a humanidade passava por tudo isso, de que são exemplos vivos os regimes ilusórios,
recheados de aparente melhora do operário que nos apresentam a Itália fascista e
a Alemanha nazista, um fenômeno de caráter regional, exsurgido do fundo de peculiaridades psicológicas de um povo e do fundo das particularidades da organização social de uma nação, encaminhava um país para a melhor das soluções da sua
‘questão social’.” (Pimpão, 1942, p. 107) Esse “fenômeno” consistia na organização
corporativista engendrada no Brasil e em diversos países que, sem serem fascistas,
adotavam posturas autoritárias.
Araújo (2002, p. 34).
Bernardo (1982, p. 124-125).
Levine (2001, p. 66).
Rodrigues, L. (1966, p. 59).
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
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e seus compradores 44. A função estatal consistia em submeter e controlar a
vontade dos trabalhadores com o objetivo de refrear seus ânimos insurrecionais, impondo-lhes os valores caros ao Estado, à Igreja Católica e às elites, ou
seja, o crescimento econômico com ordem, paz social, além do “nacionalismo
[e da] valorização do trabalho”. 45
O modo operacionalizado pelo Estado para subjugar as classes sociais
consistiu na necessidade de reconhecimento estatal dos sindicatos. Estes organismos deixavam de ser formalmente 46 livres e autônomos, sendo obrigados
a submeterem-se às regras e fiscalização do Ministério do Trabalho. Os sindicatos passariam ao exercício de funções delegadas pelo Estado, assim, estariam
sujeitos a intervenções do poder estatal, que iniciavam com seu reconhecimento e poderiam culminar com seu fechamento temporário ou definitivo 47,
transformando os sindicatos em órgãos de colaboração com o Estado.
Com a Carta de 1937, foi recomposto o modelo criado em 1931, caracterizado (i) pelo sistema da unicidade sindical, (ii) pelo reconhecimento estatal
das entidades que teriam as prerrogativas sindicais, (iii) pela divisão da classe
trabalhadora em categorias profissionais, que seriam representadas por sindicatos únicos, reconhecidos pelo Estado, (iv) pelo princípio da colaboração
entre as classes sociais fundamentais e delas com o Estado e (v) pela consideração da greve como sendo um recurso anti-social. Com tais fundamentos
recuperados, depois do golpe dentro do golpe, a obra corporativa estava quase
completa. Faltava, contudo, uma regulamentação infraconstitucional, acorde
com a nova Ordem imposta, no âmbito das relações coletivas de trabalho.
Na justificativa do anteprojeto do futuro decreto que regulamentaria
os dispositivos constitucionais que reinstauravam o corporativismo, o Governo
considerava que a regulamentação deveria,
de um lado, preservar a vida interna dos sindicatos da contaminação
de maus elementos sociais, das intervenções estranhas e corruptoras,
44
45
46
47
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Rodrigues, J. (1979, p. 102).
Fausto (2006, p. 117).
Não se pode esquecer que em relação às entidades sindicais de trabalhadores a
liberdade e autonomia eram apenas questões formais, pois o Estado não as respeitava materialmente, dadas as inúmeras medidas repressivas adotadas contra o operariado. A esse respeito, ver Allan (2010), especialmente os dois primeiros capítulos.
Boito Júnior (1991, p. 27).
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da infiltração das ideologias perturbadoras, por outro lado, desenvolver-lhes a consciência dos seus novos deveres para com a profissão
que representam, para com a comunidade nacional a que pertencem
e para com o Estado, sob cuja disciplina estão.
Assim, buscava-se explicitar que a motivação da regulamentação visava
repelir a instrumentalização dos sindicatos por “ideologias extremistas e da
revolução social”, despudoradamente admitindo que a mesma deveria estabelecer “um sistema preventivo e repressivo dos mais rigorosos” 48.
Na nova regulamentação do Direito Sindical editada em 1939, alguns
de seus tópicos merecem destaque: (i) regulamentava a unicidade sindical
por “categoria”; (ii) estabelecimento de obrigações e deveres aos sindicatos,
na linha da “colaboração com o Estado”; (iii) instituição de regras que deveriam
estar contidas nos estatutos de todas as entidades sindicais, norma esta que
passaria a ser referida como “estatuto padrão”, impedindo que os sindicatos
se organizassem para o questionamento da ordem capitalista; (iv) controle
dos associados do sindicato, pela exigência da existência de um livro único de
registro dos aderentes; (v) controle das contas do sindicato; (vi) controle das
eleições sindicais; (vii) na exata medida do estabelecimento de algumas imunidades sindicais para os dirigentes, indução da eternização das suas docilizadas diretorias que, legitimamente, temiam deixar a condição de dirigentes
para, pouco tempo depois, ficarem expostas ao poder empresarial de despedir
empregados sem motivo justificado; (viii) instituição da estrutura sindical
vertical, tendo por base os sindicatos, organizados em federações, estaduais
ou interestaduais, e, no topo, as confederações nacionais, sempre por categoria, vedada a organização horizontal em entidades que congregassem trabalhadores de categorias profissionais diversas; (ix) regulamentação da
aplicabilidade erga omnes dos contratos coletivos, nos termos das alíneas “a”
e “b” do Art. 137 da Carta de 1937; e (x) instituição da necessidade de autorização do Ministério do Trabalho para o ajuizamento de dissídios coletivos,
perante a estrutura “judiciária e corporativa” criada em maio de 1939.
O objetivo da estrutura sindical então regulamentada, aprofundando
as características corporativas já presentes desde 1931, era vincular os sindicatos ao Estado induzindo-os a atuar como representantes do sistema de do48
12.pmd
Vianna (1978, p. 224-225).
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minação implantado pelo Estado Novo. Pela mesma norma, os dispositivos
de controle estatal sobre a atividade sindical foram amplificados pela criação
de comissões corporativamente organizadas por composição de empregadores,
empregados e funcionários do Estado.
Entre elas, a Comissão de Enquadramento Sindical 49, composta por dirigentes de sindicatos, patronais e de empregados, reconhecidos legalmente
com atribuição de deliberar, no âmbito administrativo, a divisão da classe
trabalhadora em categorias profissionais.
Também formada corporativamente era a Comissão do Imposto Sindical 50, constituída por dois funcionários do Departamento Nacional do Trabalho,
um representante das profissões liberais, dois indicados pelas Confederações
de trabalhadores e dois pelas entidades de empregadores e por mais três personalidades de conhecimento jurídico-laboral, indicados pelo Ministro. Essa
comissão se constituirá nas décadas seguintes em importante instrumento
para a estrutura que se reorganizava, ao lado de outra, a Comissão Técnica
de Orientação Sindical 51, também de composição corporativa, que visava
imprimir um papel mobilizador na estrutura sindical reorganizada e institucionalizada, para se contrapor às demais proposições de estrutura sindical
que se encontravam em debate no movimento sindical 52.
Mas a obra corporativista ainda estava incompleta. Duas outras normas
serão editadas para efetivamente assegurar ao capitalismo as mais favoráveis
condições para seu desenvolvimento, sem oposições indesejáveis.
A primeira, definindo a Justiça do Trabalho como “órgão Judiciário e
corporativo” 53, lhe atribuirá competência para julgar dissídios individuais e
dissídios coletivos de trabalho. Elaborada pela mesma comissão encarregada
de redigir o Decreto n° 1.402/39 54, à exceção de apenas um de seus membros,
a estrutura de solução de conflitos trabalhistas reinstitucionalizada guardará
estreita relação com o corporativismo sindical até a virada do século, quando,
por Emendas Constitucionais distintas, serão extintos os juízes classistas
12.pmd
49
Brasil (2011d).
50
Id., 2011e.
51
Id., 2011f.
52
Ramos Filho (2011, p. 297-332).
53
Brasil (2011a).
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Id., 2011b.
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então instituídos e será limitado o exercício do poder normativo da Justiça do
Trabalho.
A segunda norma instituirá “as contribuições devidas aos sindicatos” 55.
Conhecida como “lei do imposto sindical”, essa norma instituiu o financiamento público dos sindicatos, pela arrecadação estatal de um dia de salário
de cada trabalhador para custear a estrutura sindical instituída pelo Decreto
n° 1.402/39. Essa forma de custeio da atividade sindical com a finalidade de
cooptar as lideranças sindicais para o projeto de sociedade que se arquitetava,
mantida pela CLT, sobreviverá a todas as Constituições seguintes, permanecendo ainda hoje em vigor.
A obra iniciada com a instituição de sindicatos únicos, reconhecidos e
controlados pelo Estado, por mecanismos “rigorosos” de “repressão”, resta
complementada pela instituição da Justiça do Trabalho em moldes corporativos e pelo financiamento público do funcionamento da estrutura sindical, que,
doravante, não precisará mais contar com associados para assegurar-lhe o
funcionamento. Estava pronto o “edifício corporativo” que, assegurando a “paz
social”, permitirá o desenvolvimento capitalista, controlado e repressivo, no
Brasil.
A colaboração entre as classes sociais, sofisticada na Ordem Constitucional de 1937, é saudada pelos precursores do Direito Brasileiro do Trabalho
por pretensamente abrir “novas possibilidades para o cidadão exprimir e executar suas vontades e seus interesses que não colidam com a coletividade,
auscultando-o em todos os ramos de atividade em que ele esteja produzindo
e cooperando para o progresso e o engrandecimento da Pátria”. Segundo tais
autores, em livro publicado no ano de 1943,
levando as classes produtoras a ter no Estado a função que lhes compete, diretamente, sem intermediários políticos, o novo regime assegura forma democrática e eficiente para que se resolvam os problemas
postos em equação, sem que interesses de agrupamentos políticos
ou preponderâncias regionais possam dar custa ao retardamento e
à má orientação para as soluções necessárias. Sem a fraqueza e o
abstencionismo do regime liberal democrático, inadaptável às atuais
condições de vida dos povos e especialmente de uma Nação em
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Id., 2011c.
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marcha, sem adotar a solução corporativa integral, no caso a supressão de representação nacional eleita pelo voto, a Constituição de
1937 integrou o país em um regime – a democracia econômica –
capaz de levá-lo à posição de destaque que, pela sua riqueza, sua população, seu território e seu passado histórico, lhe compete no concerto das Nações, e de respeito e colaboração na ordem internacional
que terá de ser estabelecida após a guerra mundial que assistimos 56.
Os fundamentos ideológicos contidos nessa narrativa, coincidentes com
a Doutrina Social Católica em vários sentidos, contaminarão de modo permanente a Doutrina juslaboral que se produzirá no Brasil nas décadas seguintes.
A Doutrina Social Católica, de fato, instigou o trabalho de clérigos e de
leigos junto aos trabalhadores, a fim de organizá-los em instituições que observassem os preceitos morais e religiosos da Igreja e, especialmente, que
respeitassem a ordem instituída, com harmonia nas relações de trabalho, almejando com isso alcançar um “Estado Ético-Corporativo”, composto pela
escola, associações profissionais, família e a Igreja. 57
Com tais objetivos, a partir de 1933, a Igreja Católica pretendeu a criação de sindicatos de orientação católica articulando em um primeiro momento
propostas que defendessem a autonomia das novas organizações perante o
Estado, além de apregoar a pluralidade sindical (o racionalismo impusera o
Estado laico, o que desagradava aos católicos e os impulsionava a pretender
seus sindicatos livres do Estado e próximos da Igreja), vez que se mostrara
crucial à Igreja a criação de condições de concorrência com os sindicatos oficiais, controlados pelo Estado. Isso somente se viabilizaria com a possibilidade
jurídica de fundação de outras entidades sindicais sob influência católica.
Entretanto, o receio – que a história mostrou ser injustificado – de avanço do
comunismo nas organizações operárias induziu os católicos a abdicar da pluralidade sindical e a defender o sindicato único, controlado pelo Estado 58.
Diante de tais sobressaltos, a Igreja Católica optou pela criação de círculos operários, em que sua interferência se estabelecia a partir da indicação
pela hierarquia do assistente eclesiástico. O ocupante desse cargo, normal-
12.pmd
56
Süssekind, Lacerda e Segadas Viana (1943, p. 133-134).
57
Farias (1998, p. 60).
58
Vianna (1978, p. 154 et. seq.).
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mente alguém do clero, tinha por função fazer cumprir a linha definida pela
hierarquia da Igreja no que se referisse às relações de produção, pois lhe era
garantido o direito de veto no que se relacionava aos assuntos de fé, de moral,
sendo quem definia os rumos da ação católica entre operários, capitalistas e
nas relações com o Estado 59.
Tanto nos círculos operários católicos como nos sindicatos sob sua influência, a Igreja buscava efetivar seus valores religiosos e morais com a finalidade precípua de manutenção da ordem social. Muitas vezes, incentivava a
participação dos operários católicos nos sindicatos a fim de criar oposição
aos comunistas, de modo que as manifestações da “Doutrina Social da Igreja
eram tímidas e despolitizavam os problemas sociais”. 60 Com base na militância
católica nos círculos operários e nos sindicatos, a Igreja conseguia mobilizar
as massas ao mesmo tempo que as mantinha amorfas, e, ao cumprir este papel,
legitimava-se perante a elite política e a classe dominante, cumprindo relevante função de conduzir a resignação social do operariado 61. Ou, nas palavras
de Antonio Gramsci, “o pensamento social católico” deve ser analisado como
“elemento de ópio ideológico, tendente a conservar certos estados de espírito
de expectativa passiva de tipo religioso, mas não como elemento diretamente
ativo de vida política e histórica” 62.
Isso se mostrou possível pela difusão pela Igreja Católica junto à classe
operária dos valores caros à ordem eclesiástica, especialmente da negação da
luta de classes e da colaboração entre elas, espraiando os ideais do corporativismo no operariado. Aliados a isso, os círculos operários cumpriram a finalidade de formar lideranças católicas no meio dos trabalhadores e de realizar o
assistencialismo aos menos favorecidos.
A separação entre Igreja e Estado ocorrida com a proclamação da República e a retirada de seus privilégios 63 havia desagradado profundamente à
hierarquia católica, diminuindo-lhe a influência política e social, motivando-a,
59
60
61
62
63
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Farias (1998, p. 193).
Mainwaring (2004, p. 49).
Farias (1998, p. 153).
Gramsci (2007, p. 193).
Os mais reclamados foram a proibição de ensino religioso nas escolas e de subvenções estatais à Igreja Católica, vistos como resultado da influência da doutrina do
positivismo na Constituição de 1891, com a opção pelo “Estado leigo” (cf. Carneiro,
1981, p. 103-107).
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
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durante toda a Primeira República, a tentar “dinamizar o ensino religioso, a
participação no poder civil e a instrumentalização dos seus recursos para difundir a religião” 64. Todavia, sua influência somente será retomada, a partir do
golpe de estado de 1930, em face das identificações doutrinárias entre o corporativismo e a Doutrina Social Católica, facilitada pela afinidade entre Getulio
Vargas e o Cardeal Leme 65, culminando com a instituição de várias prerrogativas de seu interesse na Constituição de 1934: (i) o “prefácio da Constituição
coloca-a ‘sob a proteção de Deus’, marcando com isso o fim da influência positivista”; (ii) concessão de direitos cívicos aos religiosos; (iii) preservação de
personalidade jurídica, sem sobressaltos, às ordens religiosas; (iv) reconhecimento do casamento religioso; (v) proibição do divórcio; (vi) financiamento
da Igreja pelo Estado, em razão do “interesse público”; por fim, (vii) restabelecimento do ensino religioso nas escolas públicas. Tais privilégios serão incorporados também às Constituições de 1937 e de 1946. 66
Mostra-se exemplar nesse aspecto o banquete oferecido por Getulio
Vargas ao Episcopado do Brasil, realizado no Palácio Itamarati, em 1939, no
mesmo ambiente histórico em que se complementava a obra corporativista
com os decretos supramencionados, ao qual compareceram 104 representantes da hierarquia católica brasileira. Da saudação presidencial apreende-se:
Apesar de separados os campos de atuação do poder político e do
poder espiritual, nunca entre eles houve choques de maior importância; respeitam-se e auxiliam-se. O Estado, deixando à Igreja ampla
liberdade de pregação, assegura-lhe ambiente propício a expandirse e a ampliar o seu domínio sobre as almas; os sacerdotes e missionários colaboram com o Estado, timbrando em ser bons cidadãos,
obedientes à lei civil, compreendendo que sem ela – sem ordem e
sem disciplina, portanto – os costumes se corrompem, o sentido de
dignidade humana se apaga e toda vida espiritual se estanca. 67
64
65
66
67
12.pmd
Alves (1979, p. 36).
Arcebispo de Olinda e Recife; Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro entre 1921 e 1930;
Cardeal do Rio de Janeiro de 1930 a sua morte, em 1943 (cf. ibid.).
Ibid., p. 37.
Discursos do Presidente Getulio Vargas e de sua Ex. Rev. D. Augusto Alvaro da Silva,
por ocasião do banquete oferecido pelo Presidente da República no Palácio Itamarati
ao Episcopado do Brasil, em 18.7.1939.
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Sobressai do discurso a necessidade de inculcar nas classes subalternas
os valores de obediência à ordem, de disciplina, de valorização dos costumes
e do trabalho. Nesse sentido, não havia divergência com os interesses da ação
católica operária que buscava exatamente a organização do operariado em
colaboração com o capital.
Cumpre mencionar ainda a existência de um inimigo comum. Tanto o
governo quanto a Igreja Católica elegeram o comunismo como adversário a
ser combatido. Para tanto, não mediram esforços. O Estado dirigiu contra os
opositores do regime seu aparato de repressão, o que muitas vezes contou
com apoio da Igreja Católica. Convém recordar que não interessava a exata
definição de quem seriam os comunistas, pois sob pretexto de reprimir o avanço
“dos subversivos” atingiam-se todos os opositores do regime – comunistas ou
não. 68
O combate a todas as propostas que propugnavam por distintas relações
entre as classes sociais, ao argumento de se “evitar a instituição da ditadura
do proletariado”, justificou a ação colaborativa da Igreja Católica com o governo, não se restringindo à construção da imagem negativa dos comunistas
ao incentivar a disseminação na população dos preconceitos já mencionados,
mas também incitou a estreita ação junto à polícia para estimular a repressão
aos elementos taxados de subversivos. Por sua vez, o Estado apropriou-se do
simbolismo religioso como maneira de preservação das classes dominantes.
Utilizavam-se as imagens, rituais da Igreja Católica, enfim, buscava-se a “sacralização do profano”, dando publicidade à figura de Getulio Vargas sempre
cercada por membros da alta hierarquia eclesiástica. Em outra ponta, no Ministério do Trabalho – assim como em outros órgãos do Poder Executivo – vários
intelectuais católicos ocupavam cargos de destaque, contribuindo para o argumento da influência dessa linha de pensamento político na elite dirigente do
país. 69
O movimento operário católico, incentivado pela Doutrina Social Católica e pela hierarquia eclesiástica, nesse contexto, passa a ser considerado
aliado do corporativismo e do sindicalismo oficial, nas oportunidades em que
não se confundiu com este. Do mesmo modo, atuou a Igreja Católica na defesa
dos interesses da classe dominante, auxiliando o Estado e o empresariado no
12.pmd
68
Farias (1998, p. 34).
69
Ibid., passim.
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
controle da classe trabalhadora, seja na repercussão de seus valores morais e
religiosos, seja contribuindo para hegemonizar os preceitos corporativistas
de harmonia e colaboração entre as classes.
A Doutrina Social Católica, inaugurada com a Rerum Novarum, de fato,
repercutiu no Brasil tardiamente. Durante toda a Primeira República, as autoridades eclesiásticas de um modo geral continuaram a dedicar sua atenção
à aproximação com a classe dominante e com as classes médias, sem preocuparem-se com a condição miserável de vida dos trabalhadores. A mudança na
postura da Igreja Católica frente às classes subalternadas verifica-se especialmente a partir de 1930, com a adoção de medidas para efetivar a ação operária
católica, que efetivamente não resultavam da existência da pobreza, mas da
“politização dessa pobreza” 70 e de sua articulação com o modelo de intervencionismo estatal preconizado pelo corporativismo. Isso, sem dúvida, ao contrário do que muito se difundiu, não revela o caráter caridoso ou humanitário
das encíclicas, mas, sim, realça o intuito de preservação do poder das classes
dominantes com a conservação da ordem.
Um dos insultos mais freqüentemente dirigidos à estrutura sindical brasileira consiste em atribuir-lhe inspiração fascista. Essa imprecação é injusta.
Muito mais do que a Carta Del Lavoro, foi a Doutrina Social Católica, corporativista, a principal fonte de inspiração para o modelo de relações de trabalho
instituído na década de 1930, que, sobrevivendo a seis distintas Ordens Constitucionais, ainda caracteriza a estrutura sindical brasileira e as formas de
resolução dos conflitos coletivos de trabalho.
CONCLUSÃO
A Encíclica Rerum Novarum impulsionou a Doutrina Social da Igreja
Católica, contudo, seria equivocado concluir que as classes dominantes brasileiras receberam tal medida sem resistências. Do mesmo modo, mostra-se
ingênuo acreditar que sua edição resultou na atenção imediata de clérigos e
leigos católicos às condições de vida e de trabalho das classes subalternas. Ao
contrário, a preocupação por eles externada era de aproximar-se das classes
dominantes e do Estado, para retomar o espaço anteriormente ocupado pela
Igreja Católica no aparato estatal e na sociedade ao tempo do Império.
70
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Mainwaring (2004, p. 56).
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O descaso dos capitalistas católicos com as recomendações esposadas na
Rerum Novarum reflete-se nas queixas apresentadas nas encíclicas supervenientes pelos descumprimentos de seus preceitos sociais da mesma forma que
a cumplicidade da Igreja Católica com os regimes totalitários (Itália e Alemanha)
ou autoritários (Portugal, Espanha, já na década de 1930, na América Latina,
nas décadas de 1960 e 1970) demonstra que a Doutrina Social da Igreja não se
configura em preceitos para efetivamente serem seguidos, constituindo-se antes
em meras proposições discursivas tendentes a contribuir de modo conservador
e reativo no processo de guerra fria ideológica que caracterizou o século XX.
Diferentemente do que se propaga, as resistências da elite econômica e
política em admitir a interferência da Igreja Católica na chamada questão social
demonstram a tradicional postura empresarial a qualquer intervenção externa,
inclusive por parte da Igreja, na condução de seus negócios na maneira de
fruição da propriedade privada dos meios de produção, defendida pelas encíclicas que aniversariam. Sendo assim, na análise das mesmas é interessante
relembrar a natureza conservadora da Encíclica Rerum Novarum e das demais
que configuram a Doutrina Social Católica, em cujos preceitos claramente se
encontram condenações às tentativas de alterações sociais mais contundentes,
cumprindo a finalidade de defender a desigualdade social, a propriedade privada como direito natural, e de combater ferozmente todas as propostas de
alteração nas relações entre as classes sociais.
Com o passar das décadas, consolidou-se uma visão quase mítica sobre
a importância da referida encíclica para o desenvolvimento do direito do trabalho no mundo e até mesmo para a organização da classe trabalhadora. Tal
concepção mostrou-se viável pela hegemonização de um discurso propagado
incessantemente a fim de ofuscar as reais intenções da Igreja na época e de
sua funcionalidade para o modo de produção capitalista.
No Brasil, a Igreja Católica sempre objetivou a defesa dos próprios interesses visando recuperar antigos privilégios e ampliar sua influência social e
política. Com tais objetivos, apresentou-se como imprescindível seu alinhamento ideológico e político com as classes dominantes e com o Estado, prestando-se ao papel de, invocando sua mitologia, tentar arrefecer os ânimos
das classes subalternas, contendo o desenvolvimento das lutas sociais, principalmente durante os dois períodos ditatoriais.
A opção da Igreja Católica pelo corporativismo deve ser apreendida
nesse contexto, pois tal doutrina, de um lado, permitiu acomodar as classes
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A Doutrina Social da Igreja e o corporativismo: a Encíclica Rerum Novarum e a
regulação do trabalho no Brasil
subalternas na autoritária estrutura estatal, mantendo-as sob controle por
meio da força, mas também pela disseminação junto às massas de um comportamento normalizado de resignação com as desigualdades sociais e econômicas, próprias do capitalismo, mediante um discurso de negação da luta de
classes. De outro lado, combatiam-se arduamente o socialismo e o comunismo, ao passo que se propiciava o desenvolvimento capitalista com maior acumulação de riquezas. Nesse sentido, corporativismo e Doutrina Social Católica
se apresentam como autoimplicados, uma doutrina alimentando a outra.
A Doutrina Social da Igreja Católica e o corporativismo, em conjunto,
prestaram-se a estabelecer os contornos contra-revolucionários em face das
reivindicações obreiras, com a intenção precípua de acomodar e resignar as
classes subalternas às desigualdades e injustiças sociais inerentes ao capitalismo. No mesmo sentido, no Brasil cumpriram relevante função ao auxiliar a
hegemonização dos preceitos caros à ordem capitalista, especialmente para
conservação social do poder pelas classes dominantes, a partir da negação da
luta de classes e da necessidade de pacificação nas relações de produção. Assim,
não há como negar a importância da Rerum Novarum na consolidação da cultura capitalista no seio da classe trabalhadora e na própria conformação do
Direito do Trabalho brasileiro, merecendo serem comemorados, no sentido
de relembrados coletivamente, seus cento e vinte anos de existência.
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ABSTRACT
RESUMO
12.pmd
Este artigo propõe a reflexão sobre os
objetivos da Igreja Católica quando
editou a Encíclica Rerum Novarum, no
ano de 1891, que inaugura a Doutrina
Social, e sobre sua inter-relação com
o ideário corporativista, sobretudo no
período entre a edição de referida Encíclica e o final do Estado Novo, de relevância para a configuração do modelo
de relações de trabalho instituído no
Brasil.
This article proposes to reflect on the
objectives of the Catholic Church
when it edited the foundation of the
Social Doctrine, the Encyclical Rerum
Novarum, in 1891 and on its interrelation with corporate conduct, especially in the period between the referred
edition of the Encyclical and the end
of the Estado Novo, which is relevant
to the configuration of the labor relation model installed in Brazil.
Palavras-chave: Direito do Trabalho,
Doutrina Social da Igreja, Rerum Novarum, corporativismo.
Keywords: Labor Law, Social Doctrine
of the Church, Rerum Novarum, corporatism.
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Wilson Ramos Filho e Nasser Ahmad Allan
Wilson Ramos Filho é Advogado, Pós-Doutor pela École des Hautes Études
en Sciences Sociales, Doutor pela Universidade Federal do Paraná, Professor
do Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia na UniBrasil, de Direito
do Trabalho na Universidade Federal do Paraná e de Direitos Sociais na Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, Espanha.
Nasser Ahmad Allan é Advogado, Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, Professor de Direito do Trabalho e de Direito Sindical na UniBrasil e de Cursos de Pós-Graduação no Centro
de Estudos do Paraná e na Academia Brasileira de Direito Constitucional.
12.pmd
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DIÁLOGOS ENTRE A
DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA
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A intervenção estatal na convivência
paterno/materno-filial: tensões entre
o Poder Estatal e o Poder Familiar
Marcela Rodrigues Souza Figueiredo
INTRODUÇÃO. A FUNCIONALIZAÇÃO DA FAMÍLIA E O DIREITO-DEVER
À CONVIVÊNCIA FAMILIAR
A família recebe tutela estatal por ser considerada instrumento de desenvolvimento da pessoa dos seus membros. É a chamada função social da família.
A funcionalização da família e de todo e qualquer instituto jurídico parte da
mudança paradigmática de interpretação das leis infraconstitucionais, através
da qual todo o arcabouço jurídico deve ser lido sob o enfoque da Constituição,
através da leitura de seus princípios que indicam valores culturalmente construídos para cada sociedade, em um determinado tempo. Por isso considera-se que o
Direito é um sistema aberto de valores, materializando-se em princípios, que indicam uma direção a seguir, uma finalidade a alcançar. Todo instituto jurídico é criado com um determinado fim, com
uma determinada função, a qual deve ser observada na sua aplicação, sob pena de se desvirtuá-lo.1
1
Gama (2011).
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 175-198, jul./dez. 2011
14.pmd
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Marcela Rodrigues Souza Figueiredo
Assim, deve-se buscar, dentre os princípios constitucionais, qual a função,
a finalidade da família que justifica sua proteção.
A partir dessa nova leitura axiológica do ordenamento jurídico, temos
o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, a servir
de norte interpretativo para todo o sistema jurídico. A tutela da família só se
justifica, pois, na proteção da dignidade da pessoa dos seus membros. Podemos
então concluir, nos ensinamentos de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que
a família cumpre modernamente um papel funcionalizado, devendo,
efetivamente, servir como ambiente propício para a promoção da
dignidade e a realização da personalidade dos seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce
fundamental para o alcance da felicidade. 2
Constatamos, assim, que dentro desse enfoque funcionalista da família,
só temos uma família propriamente dita se houver um elo de afetividade entre
os seus membros, pois só assim ela (a família) se transforma em um espaço
privilegiado para que seus integrantes se completem, preservando a dignidade
de cada um, sendo assim considerada “o refúgio das garantias fundamentais
reconhecidas a cada um dos cidadãos.” 3 Desta feita,
a convivência familiar é direito-dever de contato e convívio de cada
pessoa com seu grupo familiar. Configura um dos mais importantes
efeitos da mudança paradigmática, no giro para realizar o macroprincípio da solidariedade familiar, conjugando-se com outro importante
princípio das relações de família, a afetividade, para além das funções tradicionais da família. 4
Quando estamos diante de filhos menores, a família ganha especial atenção, sendo a relação afetiva diuturna com os membros que lhes são importantes incentivada e exigida pelo Estado, pois é nela que recebem afeto e se sentem
14.pmd
2
Farias e Rosenvald (2010, p. 12).
3
Ibid., p. 28.
4
Lôbo (2009, p. 393).
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
acolhidos e protegidos. É nela que se molda o desenvolvimento psíquico e
emocional da criança.
Assim, a convivência familiar ganha relevo jurídico na proteção dos interesses da pessoa dos filhos menores, aparecendo como um direito constitucional
da criança dirigido à família, ao Estado e à sociedade (Art. 227, CF). Já no plano
infraconstitucional, disciplina a Convenção dos Direitos da Criança, promulgado
pelo Decreto n° 99.710/90, que é direito da criança que esteja separada de um
ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto
com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior dela. Da mesma
forma estabelece o Art. 1.589 do Código Civil, segundo o qual o pai ou a mãe
em cuja guarda não estejam os filhos poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem
como fiscalizar sua manutenção e educação. E o Art. 19 do Estatuto da Criança
e do Adolescente assim preceitua que toda criança ou adolescente tem direito a
ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família
substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária.
Percebe-se então que a convivência familiar é um direito não só da criança, mas de todos de com elas conviver, podendo ser exercido contra quem
quer que o obste, o Estado, grupo familiar, grupo social ou outro membro da
família. Da mesma forma que é um dever imposto erga omnes, na medida em
que todos, família, Estado e sociedade estão juridicamente obrigados a cumprilo e respeitá-lo.
No entanto, das relações familiares que as crianças mantêm, as mais
importantes são as que desenvolvem com seus pais, merecendo, por isso, maior
atenção dos operadores do direito. Não há dúvidas, certamente, “de que a
criança e o adolescente precisam ser nutridos do afeto dos seus pais, representado pela proximidade física e emocional, cujos valores são fundamentais
para o suporte psíquico e para a futura inserção social dos filhos.” 5
Assim, no caso de pais que vivem separados, têm os filhos menores direito de conviver com aquele com quem não residem, para que tenham todo
esse suporte psicológico e emocional necessário para crescerem de forma saudável e feliz.
Assim, as visitas têm que ser incentivadas, quando não for possível a
guarda compartilhada, para que se mantenham os vínculos de afeto entre o
5
14.pmd
Madaleno (2006, p. 152).
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filho e o genitor não guardião, tão necessários para o bem-estar físico e mental
do menor. Por essas razões, entende-se que o direito de conviver com os pais
é muito mais um interesse do próprio filho, que deve ser atendido pelos genitores, na medida em que representa um dos atributos do Poder Familiar. Quando
tal poder não é exercido de forma correta, o Estado interfere, e interfere não
como um intruso da vida privada e da forma de gestão da vida familiar de
cada um, mas como garantidor e protetor dos interesses dos menores, em
virtude de sua natural vulnerabilidade. A questão então é como se dá essa
interferência e quais os seus limites.
A EFETIVIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS E O DIREITO-DEVER À
CONVIVÊNCIA
O operador do direito comumente se depara com um paradoxo difícil
de explicar ao leigo: a previsão de leis pelo ordenamento não garante que
sejam exercidas após a prolação da sentença transitada em julgado. A questão
gira em torno então das medidas adequadas postas à disposição do magistrado
para, em termos populares, “fazer valer a lei”, sem as quais o Poder Judiciário
careceria de credibilidade. Ou seja, como tornar efetivas e eficazes as decisões
judiciais.
A problemática da efetividade e eficácia dos provimentos judiciais perpassa ainda pela discussão do próprio acesso à justiça que só seria possível
quando a pretensão perseguida se materializaria. Ou seja, só se poderia garantir verdadeiro acesso à justiça se houvesse medidas adequadas e capazes de
dar efetividade ao direito substancial. Dessa forma leciona Marinoni, segundo
o qual o
direito de acesso à justiça, atualmente, é reconhecido como aquele
que deve garantir a tutela efetiva de todos os demais direitos. A importância que se dá ao direito de acesso à justiça decorre do fato de
que a ausência da tutela jurisdicional efetiva implica a transformação
dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações
políticas, de conteúdo e função mistificadores. 6
6
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Marinoni e Arenhart (2006, p. 32).
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Poder Estatal e o Poder Familiar
Isso, de fato, transformaria “em letra morta” a lei. Ou seja, não bastaria
garantir formalmente tal acesso ao jurisdicionado, permitindo-lhe apenas o
direito de ação, mas, sobretudo, colocar-lhe à disposição uma verdadeira e
efetiva tutela jurisdicional através de um acesso à justiça substancial, ou de
um “acesso à ordem jurídica justa”, na feliz expressão de Kazuo Watanabe,
citado por Alexandre Camara 7, a qual, segundo o mesmo doutrinador, representaria a terceira fase ou onda do acesso à justiça. 8
Portanto, há muito vêm os processualistas se preocupando com a efetividade do processo através de estudos dos meios adequados para a concretização do direito material, pois o fim da tutela jurisdicional não pode terminar
com a prolação de uma sentença de mérito.
A discussão acerca da efetividade das decisões judiciais ganha maior
relevo quando se trata de direitos correlatos à família. Isto porque muito mais
que questões objetivas, os litígios familiares envolvem questões afetivas que
ultrapassam o âmbito das partes da demanda, gerando efeitos inclusive na
esfera jurídica de outros membros da família. Assim,
nestas causas, onde há grande envolvimento emocional das partes
com um peso incomensurável para as relações pessoais, cada minuto
parece uma eternidade, e os reflexos em razão da demora processual
e a sensação de impotência pela não efetividade da decisão judicial
são prejuízos morais e patrimoniais incalculáveis. 9
Portanto, além da questão objetiva, da norma ofendida, os conflitos
familiares envolvem sentimento, afeto, sem o qual o próprio conceito de família perde o sentido e cujo reconhecimento impõe adequação da proteção
jurisdicional a essa realidade.
14.pmd
7
Camara (2009, p. 35).
8
“A terceira onda do acesso à justiça é, como facilmente se verifica, a que se vive
hoje, quando estudiosos do Direito Processual de todo o planeta se preocupam em
garantir uma maior satisfação do jurisdicionado com a prestação da tutela
jurisdicional, a qual deve ser efetiva e adequada a garantir verdadeira proteção às
posições jurídicas de vantagem lesadas ou ameaçadas.” (Ibid., p. 40)
9
Miguel Filho (2009).
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Por essa razão, faz-se necessário o empenho constante do operador do
direito quanto aos estudos dos meios de operacionalização dos institutos do
direito de família e os seus limites.
Dentro desse contexto se apresenta a questão do direito à convivência
dos filhos com seus pais e como efetivá-lo judicialmente, numa constante tensão entre a autoridade parental e o poder estatal. Já sinalizava Raduam Miguel
Filho que, “das relações de família, talvez as que tragam o maior número de
conflitos e certamente as mais difíceis do operador do direito lidar são, seguramente, as questões ligadas à guarda e visita dos filhos [...]” 10, pois, não
obstante o litígio que envolve tais questões, surge um problema mais delicado
que é como fazer cumprir a convivência paterno/materno-filial fixada.
Não há dúvidas de que a criança e o adolescente têm direito à convivência familiar nos termos do Art. 227 da CF/88 11, especialmente com seus
pais, uma vez que um dos deveres correlatos ao poder familiar é o de ter os
filhos em sua companhia e guarda (Art. 1.634, II, C.C. 12), sendo-lhes ainda
cominada a pena de perda do poder familiar quando deixarem o filho em
abandono (Art. 1.638, II, C.C. 13). Assim, se consideramos que a convivência
familiar é um direito subjetivo da criança 14, os pais têm o dever jurídico que
14.pmd
10
Miguel Filho (2006, p. 812-813), apud Carvalho (2009, p. 514).
11
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
12
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
II- tê-los em sua companhia e guarda.
13
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
II- deixar o filho em abandono.
14
Na realidade, de acordo com Maria Berenice Dias, estaríamos diante de um direito
pessoal de família, o qual traz a noção de poder-função ou direito-dever, dissociando
a titularidade do poder da titularidade do interesse. Assim, essas noções se afastariam “do conceito de direito subjetivo como sendo o direito do seu titular. O exemplo clássico é o poder familiar, em que o titular do interesse é o filho, sendo o genitor
o titular do dever. Essa dicotomia é que leva ao conceito de direito subjetivo da
família, com característica funcionalista, ou seja, o titular do direito subjetivo é
obrigado a exercê-lo, pelo interesse a que serve, pela função do direito que atende
a interesse de outrem.” (Dias, 2006, p. 34-35)
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Poder Estatal e o Poder Familiar
corresponde a uma obrigação de fazer, cuja violação faz nascer a pretensão,
que é o direito de exigir o seu cumprimento forçado. O interessante é que esse
dever cabe a ambos os pais, podendo a ação que requer a regulamentação da
convivência ser considerada dúplice, pois que as posições de autor e réu se
confundem, sendo os genitores ao mesmo tempo requerente e requerido, sempre no interesse do menor. Portanto, ao pai não guardião cabe visitar os filhos e entregá-los no dia e hora determinados judicialmente enquanto ao
genitor guardião incumbe a obrigação de facilitar a visitação daquele em cuja
guarda não se encontra o filho, isso tudo independentemente de quem tenha
exigido inicialmente a prestação jurisdicional. Ademais, o Art. 22 do ECA 15
assim prevê que aos pais incumbe dentre outros o dever de guarda, cabendolhes ainda, no interesse dos filhos, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as
determinações judiciais.
Analisar-se-ão, então, as medidas existentes de materialização do direito à convivência materno/paterno-filial adequadas para a efetividade das
decisões. Em outras palavras, como o Estado pode intervir nas relações entre
pais e filhos, mais notadamente no exercício do poder familiar quanto ao direito-dever de convivência familiar, e quais os eventuais limites da responsabilidade estatal.
MEDIDAS ADEQUADAS À OPERACIONALIZAÇÃO DO DIREITO À
CONVIVÊNCIA: FORMAS DE INTERFERÊNCIA ESTATAL
A busca e apreensão
A busca e apreensão é uma medida que pode ter natureza cautelar ou
satisfativa, dependendo do caso. É utilizada, pois, no caso de frustração da
visitação por qualquer um dos genitores. Pode ser requerida quando o genitor
não guardião não devolve os filhos no dia fixado judicialmente ou quando o
genitor guardião impede o convívio do genitor visitante com seus filhos, negando-se a entregar os menores diante das mais esfarrapadas desculpas. Nesses
casos, não estaríamos diante de uma medida cautelar, mas satisfativa, exau15
14.pmd
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores,
cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as
determinações judiciais.
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rindo-se a ação com o cumprimento da apreensão das crianças. No entanto,
quando se discute a guarda, e estando presentes o fumus boni iures e o periculum in mora, é possível ação cautelar de busca e apreensão do menor, preparatória da ação principal de guarda.
É medida traumática, pois muitas vezes é necessária a intervenção de
força policial, causando constrangimentos às partes e estresse desnecessário
à criança, de forma que a aplicação de multa mostra-se medida mais adequada
no resguardo dos legítimos interesses dos menores. No mesmo sentido, entende Maria Berenice Dias:
Em face das nefastas conseqüências que podem advir à criança, subtraída a fórceps por uma ordem judicial do convívio afetivo do genitor
não guardião, melhor atende a seus interesses que, em vez de mandado de busca e apreensão, seja aplicada multa por cada dia em que
não ocorrer a entrega do filho. 16
Aplicação de multa
Se considerarmos a convivência um poder-dever dos pais que se verte
muito mais em um direito do filho em conviver com seus genitores – pois que
é dele a titularidade do interesse –, surge para eles um dever jurídico de estar
na companhia dos filhos caracterizado por uma obrigação de fazer infungível,
que deve assim ser cumprida pessoalmente. Da mesma forma, surge para o
genitor guardião a obrigação de facilitar as relações dos filhos com o genitor
visitante, incentivando a convivência entre eles. São obrigações que se constituem num facere, cujo descumprimento implicaria na tutela específica que,
no caso, se caracteriza por uma tutela inibitória através de imposição de multa,
ou astreinte, que é uma das formas de executar as sentenças mandamentais
ou executivas que impõem uma obrigação de fazer ao sujeito passivo, que,
como vimos, no caso estudado, poderão ser ao mesmo tempo o genitor guardião e o visitante, já que a ambos incumbe, no interesse dos filhos menores, a
obrigação de cumprir e de fazer cumprir as determinações judiciais, conforme
Art. 22 do ECA.
16
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Dias (2006, p. 371).
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
As astreintes são multas impostas ao devedor renitente como forma de
ameaçá-lo e coagi-lo a honrar o cumprimento de sua obrigação. Não visa a
indenizar o titular do direito ofendido, mas a pressionar psicologicamente o
obrigado, desestimulando-o a continuar resistindo à pretensão perseguida e
compelindo-o a fazer o que está obrigado. É assim um meio coativo de cumprimento de sentença, sem natureza indenizatória.
De acordo com o Art. 461, § 4°, do CPC, poderá o juiz inclusive, de ofício,
impor multa diária para o cumprimento da tutela específica. Da mesma forma,
o Art. 213 do ECA prevê que em caso de descumprimento de obrigação de
fazer ou não fazer, o juiz poderá impor multa diária, liminarmente, após a
justificação prévia ou sentença, independentemente de pedido do autor. 17 Isso
quer dizer então que a imposição de multa independe de pedido, podendo o
juiz impô-la sempre que tenha receio da ineficácia do provimento judicial (Art.
461, § 5°, do CPC).
Apesar de a lei se referir à multa diária, não necessariamente deverá
ser assim. Como as visitações ocorrem em determinada periodicidade, atenderia melhor à natureza da obrigação analisada fixar a astreinte em determinada
importância em dinheiro, por cada oportunidade que ocorrer o inadimplemento, podendo o juiz modificar sua periodicidade (Art. 461, § 6°, do CPC). 18
A multa aplicada assim reverteria em favor do filho, e não surtindo efeitos, ou seja, não servindo de pressão psicológica para o adimplemento da
obrigação, converter-se-ia automaticamente em desvantagem patrimonial que
recai sobre o demandado desobediente, podendo a decisão que a fixa ser executada para a obtenção de quantia certa contra o obrigado.
14.pmd
17
Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou
não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.§ 1°
Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após
justificação prévia, citando o réu. § 2° O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do
autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para
o cumprimento do preceito. § 3° A multa só será exigível do réu após o trânsito em
julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se
houver configurado o descumprimento.
18
Dias (2006, p. 370).
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Marcela Rodrigues Souza Figueiredo
Não obstante tal medida coercitiva ser um instrumento de efetivação
do comando judicial, através da coação de ambos os genitores obrigados a
agir no interesse do filho menor, alguns questionamentos surgem quanto aos
efeitos esperados por tal medida executiva exatamente sobre os legítimos interesses da prole.
Primeiramente, houve certa resistência de nossos tribunais quanto à
aplicação de institutos de direito obrigacional às relações familiares, sendo
assim considerada incabível a aplicação de multa em Ação de Regulamentação
de Visitas, uma vez que haveria outros meios coercitivos para fazer valer a
decisão judicial, como o mandado de busca e apreensão dos filhos menores e
uma possível ação visando à modificação de guarda. 19
19
TJRJ - 2005.002.28127 - AGRAVO DE INSTRUMENTO JDS. DES. SIRLEY ABREU
BIONDI - Julgamento: 07/06/2006 - DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL. Agravo
de Instrumento. Insurge-se a agravante contrariamente à decisão que deferiu a
antecipação da tutela em Ação de Regulamentação de Visitas que move em face de
seu marido, de quem está separada de fato no final do ano de 2004, mas INDEFERIU
o pedido de aplicação de multa para o caso de descumprimento da ordem judicial.
lncabível a aplicação de multa em Ação de Regulamentação de Visita, uma vez que
há outros meios coercitivos para fazer valer a decisão judicial favorável à agravante.
Mandado de Busca e Apreensão dos filhos menores e uma possível Ação visando a
guarda em poder da agravante são meios viáveis para a agravante ver assegurado o
seu direito a permanecer com os filhos. No caso dos autos, a decisão de indeferimento
da multa foi acertada, sendo desnecessária fundamentação ou maiores comentários,
a se ver pela própria causa que envolve integrantes de uma mesma família, o que
por si só já é um verdadeiro constrangimento e transtorno para a vida dos filhos do
casal. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
TJRJ - 2002.001.26015 - APELAÇÃO CÍVEL DES. MAURILIO PASSOS BRAGA - DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL DECISÃO MONOCRÁTICA Direito Civil. Regulamentação de visitas. O direito de visitas daquele que não tem a guarda da menor
só deve sofrer restrições ante a prova inequívoca de risco para ela. Se aquele que
não tem a guarda vem tendo, a menor em sua companhia no meio da semana, sem
transtornos para a guardiã ou para a menor, tal regra deve ser mantida. Direito
Processual Civil. Por força do § 1° do artigo 515 do C.P.C., toda a matéria discutida
no processo é submetida à apreciação e ao julgamento do Tribunal de Justiça. Se a
prova pericial é no sentido de inexistir risco a que a menor pernoite com o pai, não
se pode restringir o direito ao pernoite no meio de semana, salvante se para preservar
a saúde da própria criança, o seu direito ao repouso, às suas atividades curriculares
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
Na realidade, não podemos negar que a imposição de multa é verdadeiramente uma técnica processual adequada de intervenção do Estado a permitir a efetividade das decisões judiciais, notadamente quando estamos diante
de uma obrigação de fazer infungível, como, no caso, o dever dos pais de
conviver com os filhos ou de facilitar e incentivar tal convivência. Possui, ainda, a multa, nas lições do prof. Raduam Miguel Filho, “um sentido ético, no
momento em que faz romper a resistência insana e improba do devedor, que,
além de causar, com seu ato, prejuízo ao credor, desrespeita o Estado-juiz ao
querer impor a perpetuação de sua inadimplência.” 20
No entanto, precisamos analisar o caso concreto para identificarmos
quando a aplicação de multa a constranger o genitor inadimplente atenderá
realmente aos verdadeiros e legítimos interesses das crianças e adolescentes,
estando aí o limite de intervenção estatal. Isso porque entendemos, data venia,
que a imposição das astreintes na execução das sentenças que regulamentam
a visitação só poderá ocorrer se tiver como fim precípuo salvaguardar os interesses dos menores e não com o intuito apenas de constranger o devedor a
agir de uma forma ou de outra, pois as visitas têm
a concreta finalidade de favorecer as relações humanas e estimular
a corrente de afeto entre o titular e o menor, porém, o mais valioso é
o interesse do menor no caso de conflito, tanto que em mãos desaconchegadas pode se converter em algo particularmente mau e perigoso
para uma criança delicada e receptiva. 21
e extracurriculares. Não existindo fato autorizativo da imposição de restrição ao
direito de visitas, ele deve ser assegurado da forma mais ampla possível, mas sempre
respeitando-se os interesses da própria menor. Descabe, em sede de regulamentação
de visitas, a imposição de multa pelo descumprimento total ou parcial da regulamentação, na medida em que, se houver o descumprimento, a parte prejudicada terá que
se valer de ação própria. Tendo sido parcial a procedência, cuidando-se de regulamentação de visitas, o razoável é que se reconheça a sucumbência recíproca, cabendo à cada parte suportar os honorários de seu patrono e metade das custas
processuais. Recurso conhecido e parcialmente provido. Sentença parcialmente
reformada.
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20
Miguel Filho (2009, p. 304).
21
Madaleno (2006, p. 158).
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Ou seja, a obrigação de fazer a qual estamos nos referindo não é um
comportamento aferível objetivamente através de um simples agir do obrigado. Não se deseja, razoavelmente, uma simples presença física do genitor não
guardião, porque o filho, muito mais do que conviver com seus genitores, tem
a necessidade de receber afeto e carinho dos seus pais, importantes para seu
desenvolvimento psicológico e emocional. Nesse sentido, as astreintes não
garantiriam que tais interesses fossem atendidos, pois apesar de serem “sanções tendentes a forçar o cumprimento regular das visitas e servir como um
meio eficaz de vencer a resistência do recalcitrante genitor que cria obstáculos
para o exercício das visitas [...]”, a multa nada acrescentaria “[...] de amor
em um empedernido coração.” 22
Assim, entendemos que a aplicação da multa só teria eficácia e só atenderia aos legítimos interesses dos filhos nos casos em que o genitor guardião
criasse obstáculos para a convivência do filho com o genitor visitante 23 ou
quando o não guardião não devolvesse o menor nas datas ou dias acordados,
cumprindo as visitações de maneira desordenada, apesar de demonstrar interesse em manter vínculo afetivo com ele. Porém, quando o genitor não demonstra interesse em conviver com o filho, deve-se de forma cautelosa calcular
os ganhos emocionais para a criança que tem seu genitor em sua companhia
forçadamente. Assim, obrigar o genitor, sob pena de multa, a estar com o filho,
poderia “trazer conseqüências outras, mais sérias no desenvolvimento físico
e mental da criança. Poderá ser uma tortura para o menor, que estará diante
do pai, que o visitou apenas para se ver livre da multa.” 24
De qualquer forma, a imposição de multa para o caso de ofensa ao interesse do menor de conviver com seus pais tem sido cada vez mais utilizada
pelos nossos tribunais 25, exigindo-se, pois, cautela em sua aplicação pelo Estado-
14.pmd
22
Ibid.
23
Nesse sentido entende Madaleno (ibid., p. 165). Em sentido contrário, Maria
Berenice Dias, para quem tanto o guardião poderia vir a juízo para que o outro
cumpra com as visitas como a demanda poderia ser promovida pelo genitor que
não tem o filho sob sua guarda para assegurar o direito de ter o filho em sua companhia. (Dias, 2006, p. 370).
24
Carvalho (2009, p. 518).
25
TJRJ 003706-54.2008.8.19.0212 (2009.001.59627) - APELAÇÃO DES. ROBERTO
DE ALMEIDA RIBEIRO - Julgamento: 18/01/2010 - DÉCIMA NONA CÂMARA
CÍVEL. APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSUAL CIVIL. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS.
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
Juiz que às vezes pode falhar pela intervenção excessiva na vida íntima dos
cidadãos, tentando atuar no foro íntimo das pessoas, ou pela ausência na defesa dos interesses de quem necessita de sua proteção. O desafio é encontrar
o equilíbrio, sempre com respaldo no princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana e no do melhor interesse da criança.
Sanções previstas na Lei n° 12.318/10
Uma das causas de frustração da convivência entre pais e filhos é o ato
praticado pelo genitor guardião que visa a denegrir a imagem do outro perante
o filho comum, para que este o rejeite e não queira mais com ele conviver. Assim,
ao conjunto de atos praticados com esse fim, foi dado o nome de alienação
parental, termo cunhado na década de 1980 pelo Dr. Richard Gardner que
consiste em uma forma de abuso emocional, geralmente iniciado após
a separação conjugal, no qual um genitor (o guardião) passa a fazer
uma campanha desqualificadora do outro genitor, visando afastar dele
ACORDO HOMOLOGADO. DESCUMPRIMENTO. EXECUÇÃO. CABIMENTO. 1 - No
campo das visitas, o visitante do filho é devedor de uma obrigação de fazer, ou
seja, tem o dever de facilitar a convivência com o filho nos dias previamente estipulados, devendo se abster de criar obstáculos para o cumprimento do que fora determinado em sentença ou fixado no acordo. 2 - A transação, devidamente homologada
em juízo, equipara-se ao julgamento do mérito da lide e tem valor de sentença,
dando lugar, em caso de descumprimento, à execução da obrigação de fazer, podendo o juiz inclusive fixar multa a ser paga pelo guardião renitente. Impossibilidade de aplicação do Art. 515, § 3°, do Código de Processo Civil. Anulada a sentença,
de ofício, para determinar o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau para o
regular prosseguimento. PREJUDICADO O RECURSO.
TJRJ - 0026329-06.2007.8.19.0000 (2007.002.06816) - AGRAVO DE INSTRUMENTO.
DES. JOSÉ CARLOS VARANDA - Julgamento: 17/10/2007 - DÉCIMA CÂMARA CÍVEL.
Agravo de Instrumento contra decisão judicial que, em Ação de Regulamentação
de Visitas, indeferiu o incidente de execução de sentença pleiteado nos próprios
autos, por entender que já terminou sua atividade jurisdicional neste processo,
devendo a execução vir pela via autônoma. Obrigação de fazer. Execução nos próprios autos. Possibilidade. Aplicação dos artigos 644 c/c 461 do CPC. Nova sistemática processual. Precedentes do STJ. Princípio da economia processual. Reforma
do Decisum. Recurso provido.
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a criança e destruir o vínculo afetivo existente entre os dois, utilizando diversas manobras e artifícios para dificultar ou impedir o
contato entre eles e para “programar” a criança para rejeitar ou
mesmo odiar o outro genitor. 26
A criança, então, vítima de tais atos abusivos de um dos pais, apresenta
seqüelas emocionais e comportamentos estranhos quanto ao outro genitor,
desencadeando a chamada Síndrome da Alienação Parental (SAP).
O genitor que faz campanha contra o outro viola diretamente a dignidade da criança e do adolescente, na medida em que, por ser um indivíduo
cuja personalidade está ainda em formação, sofre abalos psicológicos sérios
que podem acompanhá-lo pelo resto da vida. Ademais, o genitor alienante,
que dificulta o contato do filho com o outro genitor, abusa do seu poder parental, caracterizando a prática de um ato ilícito 27 gerador de eventual dever
de indenizar, conforme brevemente se exporá na próxima seção.
O fenômeno da Alienação Parental há muito já vinha sendo observado
em litígios familiares, cabendo até então à doutrina sinalizá-lo e à jurisprudência tratá-lo com os meios legais existentes. Mas, em 26 de agosto de 2010,
foi sancionada a Lei n° 12.318, dispondo sobre a alienação parental e alterando
o artigo 236 da Lei n° 8.069, de 13 de junho de 1990. A referida lei conceitua
alienação parental em seu Art. 2° como
interferência na formação psicológica da criança ou adolescente
promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelo
que detenham a criança ou o adolescente sob sua autoridade, guarda
ou vigilância, para que repudie o genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
E exemplifica algumas formas de alienação em seu parágrafo único. 28
26
27
28
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Paulo (2007, p. 6).
CC, Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 2°, Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além
dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
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Tais formas de alienação deverão ser identificadas pelo juiz ou constatadas
através de perito ou de equipe multidisciplinar. Podemos aqui, desde já, questionar se o Poder Judiciário teria condições rápida e eficientemente de identificar a ocorrência de atos de alienação parental, pois, decerto, quanto mais
rápida for a prestação jurisdicional, mais adequada é a tutela, porque a criança,
vítima de alienação, sofre diariamente uma espécie de lavagem cerebral perpetrada pelo guardião, cujas conseqüências podem ser irreversíveis. Nesse
sentido,
a principal vítima dentro dessa relação é a criança e o adolescente,
e, por conseguinte, esta é a destinação do texto legal. Essa vítima
precisa ser ouvida e estudada atentamente por equipe multidisciplinar de psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras, que deverão oferecer um parecer técnico do caso, com a maior brevidade possível. 29
Uma vez caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer
conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor,
em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não,
sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos,
segundo a gravidade do caso, aplicar as seguintes medidas (Art. 6°): I - declarar
a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; II - ampliar o regime
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da
paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança
ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra
avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a
convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste
ou com avós.
29
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Correia (2011).
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de convivência familiar em favor do genitor alienado; III - estipular multa ao
alienador; IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; VII - declarar a suspensão da autoridade parental.
Várias, então, são as medidas postas à disposição do magistrado, que
poderá aplicá-las conjuntamente ou não, sempre no melhor interesse do menor
e com o auxílio de equipe técnica multidisciplinar, sem prejuízo de outras
medidas provisórias deferidas liminarmente. De qualquer sorte, precisamos
de um Poder Judiciário eficiente, humanizado e comprometido com a realidade social, que disponha de equipe técnica multidisciplinar competente e
juízes sensíveis a tais causas, sob pena de deixar desamparados e à própria
sorte a criança e o adolescente, para cuja tutela da dignidade foi criada a referida lei.
Pela análise da lei em comento, podemos concluir que ela se justifica
pelo reconhecimento de que o menor tem a legítima expectativa de conviver
com seus genitores, os quais são os responsáveis pela formação psicológica,
física e emocional dos filhos. Tal dever incumbe primeiramente à família e,
na sua falta, ao Estado, que, por meio de medidas adequadas, poderá garantir
a proteção dessa parcela de pessoas vulneráveis, o qual puxa para si o dever
de tutelá-las quando falham os pais, pois “o exercício da função parental representa o social dentro do privado, ao mesmo tempo que demarca suas fronteiras.
Ao falhar o exercício das funções parentais, humanizadoras e medidoras, a
interferência do Estado se legitima.” 30
Indenização por abandono afetivo
Quando a busca e apreensão, ou a imposição das astreintes, ou outra
forma de sanção, não surtem efeitos ou não foram aplicadas ou requeridas no
cumprimento forçado da convivência, pode surgir a pretensão por reparação
por danos se a ausência física e afetiva do genitor ausente causou comprovadamente prejuízos psicológicos aos filhos. Tema ainda controverso em nossos tribunais, a indenização por abandono afetivo levanta questões de ordens
moral e jurídica, cuja discussão não temos intenção de encerrar aqui.
30
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Groeninga (2011).
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
As principais questões giram em torno da existência de um eventual dever
de amar, que estaria dentro do âmbito da moral e fora do campo de atuação do
direito, que, nesses casos, não teria meios coercitivos adequados para impor tal
facere, até porque ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude da lei, nos termos do Art. 5°, inciso II, da Constituição
Federal. Assim, o abandono afetivo não seria considerado um ilícito civil, não
havendo assim responsabilidade civil do genitor ausente. Ademais, dentro dessa
perspectiva contrária à reparação do afeto, a indenização, se aplicada, não alcançaria sua finalidade pedagógica, pois o genitor condenado à pena pecuniária
dificilmente tentaria uma aproximação com o filho preterido.
De tal forma, no ano de 2005, posicionou-se o STJ 31, cuja relatoria ficou
a cargo do Ministro Fernando Gonçalves, que em seu voto assim questionava:
“O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou,
ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida
durante o processo litigioso?” E continua mais adiante:
Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a
amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade
positiva seria alcançada com a indenização pleiteada. Nesse contexto,
inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o Art. 159 do
Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo
como dano passível de indenização.
Assim, apesar de o STJ ter se manifestado contrário à reparação civil
por abandono afetivo, muitas eram as vozes que entendiam ser possível a indenização nesses casos, desde que presentes os pressupostos do dever de indenizar e em uma perspectiva de funcionalização da família, cuja função seria
servir de lócus à realização da personalidade de seus membros. 32
14.pmd
31
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS.
IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato
ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do Art. 159 do Código Civil
de 1916 por abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial
conhecido e provido. RECURSO ESPECIAL N° 757.411 - MG (2005/0085464-3).
Min. Relator: Fernando Gonçalves.
32
Hironaka (2006).
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Inicialmente, aduz Rolf Madaleno que
não se figura procedente afirmar que, com escora no Art. 5°, inciso
II, da Constituição Federal, ninguém será obrigado a fazer ou a deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude da lei, isto porque a própria
Carta Política expressa como direito fundamental da criança e do
adolescente ser resguardado de toda forma de negligência. 33
Assim, haveria aí uma obrigação que, além de indubitavelmente moral,
também é jurídica, portanto, exigível. Ademais, essas ações não teriam o objetivo de restabelecer o amor, uma vez que já desfeito ao longo do tempo, mas
de penalizarem a violação de tais deveres correlatos àqueles direitos dos filhos
tendentes à formação de sua personalidade. Assim, se considerarmos que a
convivência dos pais com seus filhos ampara-os afetiva, moral e psicologicamente, contribuindo para a formação de sua personalidade, a sua frustração
é considerada um ilícito civil, nos termos dos Arts. 927 c/c 186 e 187, do CC,
mas para isso será necessário comprovar que o dano psicológico existe e que
foi causado (nexo de causalidade) pela conduta culposa do genitor.
Em segundo lugar, para os defensores da possibilidade de indenização
por abandono afetivo, há muito a família deixou de ser encarada pelo direito
apenas no seu aspecto patrimonial e começou a ser tutelada dentro de um enfoque funcional, ou seja, através do reconhecimento de que a família cumpre uma
função que é servir de lugar privilegiado para seus membros melhor se estruturarem emocionalmente, de forma a justificar a proteção estatal, já que em última
análise estar-se-ia tutelando a dignidade das pessoas, com especial atenção à
pessoa dos filhos menores, sujeitos mais vulneráveis da relação familiar.
Assim, uma eventual ação que visa à indenização por abandono afetivo
não teria, como tido alhures, a intenção de exigir do Estado que obrigue as
pessoas a demonstrar amor e carinho aos seus filhos, mas a cobrar dos pais o
correto desempenho de suas funções para o pleno desenvolvimento psicossocial de sua prole,
até porque, durante muito tempo, muitos pais deixaram de demonstrar afeto, amor e carinho para com seus filhos, mas cumpriram a
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Madaleno (2006, p. 163).
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
função de autoridade (com ou sem autoritarismo) que lhes cabia e
que permitiu que os filhos se adequassem socialmente. 34
No entanto, em 2012, o STJ mudou seu posicionamento para possibilitar
a indenização por abandono afetivo, sob o argumento de que o cuidado é um
dever jurídico, portanto, um facere, cujo descumprimento deve ser considerado
ilícito civil (Art. 186, Código Civil), passível de ser reparado civilmente. 35
De qualquer sorte, o presente trabalho objetiva a análise dos limites e
eficácia das medidas utilizadas pelo Estado para operacionalizar o direitodever à convivência quando os pais não moram juntos, mas, de acordo com a
construção teórica que se apresenta acerca da possibilidade de indenização
por abandono afetivo, sinaliza a doutrina que é ainda possível uma eventual
pretensão por danos morais se a presença física dos pais não é suficiente para
14.pmd
34
Hironaka (2006, p. 134).
35
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO
POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação
das regras concernentes à responsabilidade civil e o conseqüente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo
está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas
com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa
do Art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi
descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma
de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado,
leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa
em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear
compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras
hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores
em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para
além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à
afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda,
fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem
ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor
fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial,
nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória
ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. REsp 1159242 / SP RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9. Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI. Órgão
Julgador: Terceira Turma. Data do Julgamento: 24/04/2012.
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atender às necessidades sociopsicoculturais da criança. Seriam os casos em
que os pais convivem com seus filhos diariamente, mas que se omitem quanto
ao seu dever de educação, entendido na sua acepção mais ampla 36, por meio
de atos de afeto, atenção, preocupação. Tal possibilidade é importante para o
presente estudo, na medida em que reafirma que o que se exige do genitor
não é apenas a presença física, mas atos que condizem com sua função de
educador no sentido mais amplo da palavra.
Outra questão interessante levantada pela doutrina 37, corroborando
assim a possibilidade de indenização por abandono afetivo, é o fato de que só
quem pode exigir a reparação civil são os filhos menores, cuja personalidade
ainda está sendo formada e à qual a ausência do genitor pode causar danos,
de forma que o filho maior não poderia mais pleitear tal pedido, uma vez que
já teria sua personalidade construída. Da mesma forma, não haveria reciprocidade entre pais e filhos, pois decerto e razoavelmente não se espera que o
filho menor tenha o dever de fornecer condições para a formação da personalidade dos pais, adultos.
Assim, uma vez sendo utilizada com parcimônia e cautela, conseguese, em determinados casos, vislumbrar a possibilidade de indenização por
abandono afetivo como forma de tornar efetiva a letra da lei, sem a qual haveria
verdadeiro retrocesso ante os avanços pelos quais passaram a doutrina e a lei
no reconhecimento de que o direito hoje deve ser funcionalizado, na medida
em que a tutela dos interesses só tem fundamento se cumprir sua função social,
que, no caso das famílias, é atender à realização da personalidade da pessoa
dos seus membros, mais notadamente da pessoa dos filhos menores. E é pelo
fato do reconhecimento da vulnerabilidade das crianças e adolescentes que a
intervenção do Estado se justifica, de forma que “a legitimação da interferência
na família se dá na falha no exercício do poder com que são investidos os que
exercem a função parental.” 38 Não haveria, pois, um caráter punitivo à indenização, mas apenas ressarcitório dos danos comprovadamente sofridos pelo
filho. Ademais, no entendimento de Maria Celina Bodin de Moraes,
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36
“o dever de educação da prole incumbe aos pais como forma de se garantir aos
filhos uma perfeita conformação moral e intelectual. Os pais devem, assim, desempenhar as funções de educadores e de autoridades familiares para que a criança
possa se formar enquanto pessoa humana.” (Hironaka, 2006, p. 136)
37
Costa (2005).
38
Groeninga (2011).
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A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o
Poder Estatal e o Poder Familiar
para a configuração do dano moral à integridade psíquica de filho
menor, é preciso que tenha havido o completo abandono por parte
de pai (ou da mãe) e a ausência de uma figura que o substitua. Se
alguém “faz as vezes” de pai (ou de mãe), desempenhando suas funções, não haverá dano a ser indenizado, não obstante o comportamento moralmente condenável do genitor biológico. 39
No entanto, o tema ainda é controverso e indefinido, tanto na doutrina
como na jurisprudência, sendo a maioria contrária à possibilidade de indenização em qualquer situação, sob o temor sempre presente de se mercantilizarem as relações familiares e de se precificar o afeto, o carinho e o amor,
necessidades não palpáveis e que estariam no âmbito apenas da moral.
CONCLUSÃO
Na tensão do público com o privado, o exercício do poder familiar foge
à esfera íntima de gerenciamento de cada família, recebendo a interferência
do Estado quando há abuso dos que exercem a função parental. Assim, poder
familiar e poder estatal estão em constante tensão e interação quando estão
em jogo os interesses de menores, numa obrigatória simbiose que busca o
tempo inteiro o equilíbrio, talvez impossível de ser alcançado.
Cabe aos pais conviver com os filhos, dever-poder que lhes compete em
virtude do poder familiar. Conviver não é apenas presença física, é garantir
às crianças e adolescentes educação na acepção mais ampla da palavra, é demonstrar preocupação não só de promover a formação intelectual do filho,
mas também de dar-lhe educação moral, carinho e limites. Isso é afeto, pois
amar é educar. Assim, mesmo diante da separação dos pais, continua íntegro
para ambos o exercício do poder familiar, cabendo-lhes sustentar os filhos,
tê-los em sua companhia e guarda, dirigir-lhes a educação e a criação.
É o que podemos chamar de espaço de liberdade do sujeito. Mas essa
liberdade não é ilimitada e no caso é ponderada pela dignidade da pessoa dos
seus filhos e sempre exercida no interesse destes, e abusa o genitor desse poder quando o seu exercício não contribui adequadamente para a formação e a
construção da personalidade da prole. Nesses casos, a interferência do Estado
39
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Moraes (2010, p. 450).
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Marcela Rodrigues Souza Figueiredo
acontecerá, pois também lhe cabe assegurar aos menores com absoluta prioridade a convivência familiar (Art. 227, CF). A questão então sempre complexa
é como e quando intervir no respeito à liberdade positiva dos sujeitos.
Este trabalho apresentou as formas de intervenção estatal, através de
diversas medidas postas à disposição do juiz para proteger os menores quando
têm desrespeitado o direito de conviver com seus pais. Para nós, parece-nos
claro que, quando o genitor guardião estiver criando obstáculos para a visitação do filho ao outro genitor ou quando o visitante desrespeita as regras da
convivência, sempre entregando o filho em horários e dias diferentes dos fixados judicialmente, o interessado poderá valer-se de diversos meios coercitivos
e punitivos para tornar efetivas as leis e decisões judiciais. No entanto, ainda
são um pouco nebulosas a eficácia e a adequação da imposição de multa para
obrigar o pai não guardião a visitar o filho ou a indenização por abandono
afetivo para qualquer caso, estando aí a indagação dos limites da responsabilidade do Estado no que concerne à convivência entre pais e filhos e às questões
morais envolvidas, sendo certo que, dependendo da natureza dos deveres, a
execução forçada pode ser contraditória.
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Marcela Rodrigues Souza Figueiredo é Advogada, Mestranda em Ciências
Sociais e Jurídicas do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense, Professora das áreas de Direito de Família e
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Marcela Rodrigues Souza Figueiredo
das Sucessões do Núcleo de Prática Jurídica Evandro Lins e Silva da Faculdade
de Ciências Sociais Aplicadas do Grupo Ibmec - Rio e Pesquisadora do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF) - Niterói/RJ.
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FRONTEIRAS COM A PRÁTICA JURÍDICA
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Bancos de perfis genéticos para fins
de persecução criminal *
Maria Auxiliadora Minahim
INTRODUÇÃO
O processo de identificação por ADN saltou do campo experimental
para a vida prática, tornando-se importante recurso de identificação criminal.
A técnica, embora esteja sendo louvada por muitos, recebe também a oposição
de defensores dos direitos humanos, os quais temem que possa haver uso inadequado das informações pessoais obtidas.
É bem verdade que geneticistas afirmam que as amostras retiradas integram a parte do ADN que não pode fornecer nenhum outro dado além daquele
necessário para distinguir uma pessoa de outra. Em face disso, os temores
poderiam soar desproporcionais. Ocorre, no entanto, que ainda assim há justos
motivos para uma atitude prudente, acauteladora diante da introdução da
*
Este trabalho resulta de relatório da autora para o Projeto Impactos jurídicos do
acesso e da exploração de informações genéticas humanas: bancos de perfis genéticos
para fins de persecução criminal, foi vencedor do edital 001/2001 do Projeto Pensando o Direito, vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Ministério da Justiça, cuja coordenação geral é do Programa de Pós-graduação
em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 201-222, jul./dez. 2011
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Maria Auxiliadora Minahim
técnica, na medida em que o seqüenciamento do genoma abriu um universo
de possibilidades das quais nem todas são conhecidas pela ciência. Assim, o
que hoje pode parecer inócuo, no futuro poderá ter sua função desvelada.
Ademais, em um país, cuja trajetória democrática tem sofrido desvios, o receio de que o emprego da técnica venha a estigmatizar ainda mais alguns
grupos cujos direitos jamais foram efetivamente preservados, não é irracional.
Por isto mesmo, os recursos a serem convocados para promover a segurança
pública – que também é dever do estado democrático – devem estar perfeitamente harmonizados com o projeto constitucional de 1988.
Outras objeções decorrem da mesma Carta e de prerrogativas nela inseridas, realçando-se a que assegura o direito ao silêncio, devido a qualquer
pessoa que sofra persecução penal instaurada pelo Estado. De acordo com
essa prerrogativa, ninguém pode compelir outrem a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que possam comprometer sua defesa,
logo, conclui-se, nenhuma pessoa pode ser obrigada a fornecer material genético que possa incriminá-la. É possível que se trate de hermenêutica excessivamente protetora, mas que talvez se justifique em razão de um passado
autoritário e de um presente discriminador. Nos Estados Unidos, onde está
situado o segundo maior banco de dados genéticos do mundo, esse direito
tem sido interpretado restritivamente, entendendo-se que está limitado aos
casos em que a produção de prova é de natureza comunicativa.
CONSTRUÇÃO DA REDE NACIONAL DE BIOBANCOS
A construção de uma rede integrada de perfis genéticos constituída por
bancos de dados, portanto, se admitida, deverá, necessariamente, resultar de
ponderação feita entre os princípios democráticos, duramente incorporados
à constituição, e a defesa social.
É possível, todavia, afirmar que há uma perceptível tendência a sua
admissão em razão da vasta estrutura já existente para esse fim, à espera de
instrumento legal que permita seu pleno funcionamento. Projeto de Lei do
Senado de n° 93, sem discutir a legalidade da coleta de amostras genéticas,
pretende inserir, no artigo 4° da Lei n° 12.037, de 2009 (Lei de Identificação
Criminal), um parágrafo que inclui, dentre os meios de identificação, a coleta
de material biológico. Teve-se o cuidado, porém, de restringir a obtenção do
ADN ao pressuposto estabelecido no artigo 3° da mesma Lei que cinge a dupla
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Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
identificação aos casos em que esta “for essencial às investigações policiais,
segundo despacho da autoridade judiciária competente”.
Apesar de ainda encontrar-se na Câmara dos Deputados e de não existir,
dessa forma, qualquer norma que autorize a coleta de material genético no
Brasil, o STF já teve oportunidade de manifestar-se sobre o assunto. Isto ocorreu na Reclamação 2.040/DF, quando a placenta de uma extraditanda, à disposição daquela Corte, foi cedida para fins de exame de material genético,
contra sua vontade, atendendo a pretensões da Polícia Federal. O argumento
então utilizado pelo STF foi a afetação de bens jurídicos constitucionais como
“moralidade administrativa”, “persecução penal pública” e “segurança pública”, somados ao direito fundamental à honra e à imagem de policiais federais
acusados de estupro da mesma extraditanda, nas dependências da Polícia
Federal. Tais direitos preponderaram sobre aquele argüido pela reclamante:
à intimidade e à preservação da identidade do pai de seu filho. Como se vê,
foi do confronto entre os bens que surgiu a decisão do órgão. É com base
nessa mesma possibilidade de ponderação entre valores que se pode desenhar
um sistema no Brasil, calcado nos princípios constitucionais que asseguram
os direitos e as liberdades individuais. Deve-se admitir, porém, que a proporcionalidade pode sempre ser interpretada a favor dos interesses da parte mais
poderosa.
Banco de perfis genéticos no Brasil: estado de arte
Os bancos de dados de ADN são laboratórios que armazenam informações genéticas para fins específicos. Um banco de perfis genéticos para fins
de persecução criminal pretende contribuir para a identificação de criminosos
por meio da comparação de informações genéticas.
O Brasil já dispõe, na verdade, de uma rede integrada de Bancos de
Perfis Genéticos que é composta por 17 bancos com finalidade de perícia criminal. Desses 17 bancos, um é nacional, o qual ainda não entrou em operação
oficial, mas já foi usado em diversos testes, entendendo-se que, tecnicamente,
está pronto para ser utilizado. A estrutura é semelhante à dos Estados Unidos,
onde há um banco nacional e laboratórios estaduais. Aqui, como lá, foi previsto que cada estado deve alimentar e gerenciar seu próprio banco de dados,
o qual será integrado aos demais pelo banco nacional, permitindo comparações interestaduais.
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Portaria do Ministério da Justiça de n° 1.707/2010 constituiu um Grupo
de Trabalho com o fim de propor ações, normas e critérios de funcionamento
da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, de forma que, desde o ano
de 2010, existem normativas tratando da matéria. 1 Importante produto do
Grupo de Trabalho consistiu na elaboração de proposta de Decreto, criando o
Banco Nacional de Perfis Genéticos e institucionalizando a Rede Integrada
de Bancos de Perfis Genéticos e seu Comitê Gestor. Definiu também as categorias de amostras que serão inseridas.
Há 15 bancos estaduais (AM, AP, BA, CE, ES, MG, MS, MT, PA, PB, PR,
RJ, RS, SC e SP) e um banco da Polícia Federal. O banco da Polícia Federal já
está em funcionamento, e nele encontram-se perfis genéticos de vestígios
encontrados em locais de crime de competência da Polícia Federal.
O funcionamento dos bancos depende da coleta de dados genéticos.
Existem dois tipos de dados que são armazenados, um constituído de amostras
coletadas em locais de crime e outro com os perfis genéticos retirados de suspeitos. Quanto à coleta do primeiro, não há qualquer restrição na legislação,
ao contrário, aquela colhida no local de crime (amostra-vestígio) é atividade
obrigatória da Polícia Judiciária e dos peritos quando se trata de crimes que
deixam vestígios. O problema reside na coleta de material de uma pessoa em
razão de sua natureza invasiva.
Nos Estados Unidos, o sistema é o mesmo, estruturado a partir dos dois
arquivos diferentes de perfis genéticos, armazenados em locais distintos, que,
em regra, são gerenciados por instituições diversas.
Nos países onde há lei disciplinando a matéria, as duas amostras são
cruzadas para fins de comparação e identificação. Dessa forma, é possível,
em caso de autoria desconhecida, confrontar o perfil colhido no local do crime
com todas as amostras de referência existentes no banco. Isso tem permitido
a identificação da autoria de diversos crimes que permaneceriam impunes,
de outra forma. Os defensores irrestritos do uso do recurso lembram que algu1
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O RIBPG é composto por especialistas dos Estados e da União, incluindo representantes de cada região do Brasil, um representante da Senasp, um representante da
Secretaria dos Direitos Humanos e um representante do Ministério Público. As decisões relativas ao funcionamento do Banco Nacional, bem como as diretrizes para
o funcionamento de toda a Rede são tomadas por um órgão colegiado instituído
pela mesma Portaria - MJ. Seria de todo adequado que fosse somado ao grupo um
representante da Defensoria Pública da União.
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Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
mas vezes foi possível, graças ao emprego desse conhecimento, também inocentar pessoas, a exemplo do que já ocorreu nos Estados Unidos. 2
A rede de laboratório de genética no Brasil tem capacidade para realizar
exames modernos, como análise de ADN mitocondrial e de Mini-STRs. Ocorre,
porém, que os bancos criminais estão sendo alimentados, basicamente, com
perfis genéticos de vestígios, à falta de legislação que trate da matéria e permita, ou não, a coleta de material dos suspeitos.
Atualmente, na esfera criminal, a contribuição prestada pelo emprego
da tecnologia está restrita à constatação de autoria reiterada em dois ou mais
crimes em razão da identidade dos marcadores encontrados nas cenas onde
os mesmos ocorreram.
Em alguns estados, quando a pessoa permite a coleta de material genético, é feita comparação entre a amostra-vestígio e a amostra-referência, critério que deve ser questionado, na medida em que a liberdade de consentir
nesses casos está seriamente afetada pela situação de vulnerabilidade em que
se encontra o preso 3.
O Codis
Além das providências referentes à edição de normas de natureza administrativa, o Brasil caminhou mais adiante na construção de uma rede integrada de perfis genéticos com banco de dados. Em 2009, foi assinado termo
de compromisso com o FBI para uso do software Codis (Combined ADN Index
System), programa de gerenciamento de perfis genéticos desenvolvido pelo
FBI.
O Codis começou a ser utilizado nos Estados Unidos em 1990, como
resultado da colaboração de 14 laboratórios especialistas em questões forenses.
Em outubro de 1998, foi então operacionalizado em âmbito nacional, e, já em
2004, todos os 50 estados, incluindo Porto Rico, além das Forças Armadas e
do FBI, estavam usando o sistema. Foram também aprovadas leis autorizando
a coleta de ADN de criminosos condenados pela prática de crimes sexuais.
Kennneth Josto adverte 4, porém, que a idéia de criar banco de dados é ante-
16.pmd
2
Jost (1999, p. 453).
3
Ibid., p. 13.
4
Ibid., p. 462.
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rior (1988), tendo ganhado força tão logo foi introduzida nas audiências realizadas pelo poder judiciário ou pela polícia.
Além desse, existem outros programas de informática voltados para a
análise e comparação de ADN no mundo, podendo-se referir o Projeto Fénix,
na Espanha, cuja aplicação está voltada para a identificação de desaparecidos
e para a investigação de paternidade. No Brasil, todavia, desde os anos 1990,
já havia sido estabelecida uma relação com especialistas americanos do FBI,
para cursos de treinamento visando à implantação da tecnologia no país.
Em 2010, foi feita a instalação do programa Codis nos bancos nacionais,
incluindo 15 laboratórios estaduais e o laboratório federal 5. O programa dispõe de recursos para efetuar a referida comparação entre os ADNs colhidos e
os armazenados nos Bancos, com o fim de identificação não só de criminosos,
mas também de pessoas desaparecidas. Com esse fim, já foi inclusive utilizado
para reconhecimento das vítimas quando ocorreu o acidente da Air France.
Sugeriu-se que o Brasil não transpusesse, simplesmente, a metodologia
do Codis, uma vez que isso poderia implicar em altos custos, devendo-se, quando do processo de escolha sobre o sistema mais adequado, envolver o Ministério de Justiça, o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Academia Brasileira
de Ciências para fazer essa tomada de decisão 6. O Codis, todavia, teria sido
cedido ao Brasil sem custos.
Com essas informações, pretende-se demonstrar que já existe um sistema montado que dispõe de recursos como o Codis, cuja qualidade técnica
não pode ser contestada, haja vista sua aplicação eficaz nos Estados Unidos,
onde, até o ano de 2004, havia possibilitado a identificação de 19 mil suspeitos.
A grande questão a ser discutida quando se trata de coleta de material
genético para fins criminais não reside no campo técnico, mas no estabelecimento de meios que possam, a um só tempo, reafirmar a prerrogativa do silêncio, como direito fundamental inscrito na Constituição, e garantir a
segurança pública.
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5
Nessa ocasião, foi feita a maior instalação do Codis fora dos Estados Unidos, instalando-se o programa Codis 5.7.4 nas máquinas físicas e o 6.1 em máquinas virtuais
com a utilização do Programa VMwere Server, segundo Aguiar et al. (2011).
6
Pena (2011).
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Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
AMOSTRAS GENÉTICAS: COLETA E SUAS IMPLICAÇÕES
Conforme exposto, o funcionamento dos bancos depende da coleta dos
dois tipos de dados genéticos que são armazenados no banco: um constituído
de amostras coletadas em locais de crime e outro, de perfis genéticos retirados
de suspeitos ou condenados. Quanto à coleta do primeiro, não há qualquer
restrição na legislação, ao contrário, aquela colhida no local de crime (forensic
samples/crime scene samples) é atividade obrigatória da Polícia Judiciária e
dos peritos quando se trata de crimes que deixaram vestígios, conforme afirmado supra. Isso decorre do disposto nos artigos 158 e 160 do Código de Processo Penal conjugado com o artigo 564, o qual trata da nulidade do processo
quando faltar o termo referente ao exame do corpo de delito em tais formas
de crime. Essa obrigação, naturalmente, não se estende à identificação dos
criminosos, pela via de coleta de amostras de ADN, embora se confundam
por vezes as duas situações.
As amostras colhidas no local do evento devem ser comparadas com as
recolhidas do suspeito e podem consistir em tecidos diversos como sangue,
sêmen, cabelo, saliva, urina, pele, unhas, ossos, líquido amniótico, músculos,
além de fezes e suor.
As chamadas amostras-referência mais utilizadas são as obtidas por
meio da raspagem da parte interna da bochecha e do sangue 7.
A primeira delas, retirada de amostra de saliva com o emprego de swabs
(espécie de cotonete), é a mais freqüentemente utilizada para a operação.
Obtêm-se as células para análise, esfregando-se o material no interior da boca
do suspeito. Em seguida, os swabs passam por uma secagem em temperatura
ambiente para evitar a proliferação de bactérias e, logo após, são embalados
individualmente e encaminhados ao laboratório.
Muito freqüentemente, peritos referem-se à saliva e ao cabelo como
sendo material mais comumente utilizado para tipagem do ADN. É possível
7
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O sangue é normalmente recolhido através de pulsão venosa, armazenado em tubos
de “vacuntainer”, acrescido de anticoagulante, o EDTA. As amostras são identificadas
e refrigeradas a 4° C, devendo ser transportadas rapidamente ao laboratório forense
onde serão realizadas as decodificações. Outro método de recolhimento das amostras sanguíneas é o da punção digital, através do qual são obtidas gotas do tecido
retiradas da lateral do dedo do suspeito e posteriormente armazenadas em cartões
de FTA e secas à temperatura ambiente, protegidas da luz e do calor.
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que essa alusão tenha como objetivo sedimentar a idéia de que é possível proceder à coleta sem que sejam necessários procedimentos invasivos. É certo, porém,
que em outros produtos do corpo também é possível encontrar as mesmas
moléculas de ADN presentes em todas as células, que podem identificar alguém. Sangue, tecidos moles, restos de pele, esperma e pêlos são exemplos,
por excelência, de material achado em cena de crime ou na vítima.
No que diz respeito à saliva, por exemplo, é possível encontrar resíduo
em guimbas de cigarro, envelopes, copos, goma de mascar e outros utensílios.
A facilidade para obter ADN de material salivar tem motivado agentes do sistema criminal, na Espanha, a criar expedientes para burlar a proibição de extração de amostra diante da negativa do sujeito em fornecê-la. Com o fim de
obter o material desejado, agentes oferecem copos com bebidas, bem como
cigarros, para colher o ADN neles deixado. Costuma-se também esperar que
o preso cuspa ou escarre para obter as informações necessárias 8.
Já na Inglaterra, a retirada de cabelo ou de material da boca com o uso
de swabs pode ser feita mesmo sem o consentimento da pessoa. Outras amostras, mais íntimas, também podem ser colhidas, mas estas dependem do consentimento do suspeito.
A questão do consentimento volta a ser analisada neste tópico apenas
para rejeitar a possibilidade de sua validade em tais circunstâncias. Embora
erigida a uma posição de destaque na sociedade contemporânea, que pretende
legitimar até mesmo a morte, como na eutanásia, a anuência do sujeito só
confere validade a uma situação uma vez atendidos alguns requisitos. Dentre
eles, destaca-se a necessidade de a anuência ser livre e consciente. Ora, não
se pode supor que uma pessoa em situação de vulnerabilidade consinta livremente em produzir prova contra si mesmo quando poderia confessar ou indicar
outros elementos capazes de sustentar a confissão feita se assim desejasse.
Outros discursos afirmam que restos deixados pelos suspeitos devem
ser considerados res nullius e, por isso, passíveis de apropriação pelos agentes
do sistema criminal. Essa tese há de ser refutada, na medida em que, além de
possibilitar fraude para obtenção de amostras, na vida relacional, é muito
fácil deixar um rastro genético e nem por isso pode-se dizer que foi abandonado.
A impossibilidade de impedir a queda de fio de cabelo ou de marcar com saliva
a borda de um copo tornaria qualquer pessoa doadora voluntária de ADN.
8
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Guridi (2008, p. 108).
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Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
Uma vez obtidas, as amostras-referência serão comparadas, conforme
visto, com as colhidas encontradas no local do crime ou na vítima.
No que tange às amostras deixadas no local do crime, as mais freqüentes
são partículas de pele que se desprendem quando alguém toca um objeto ou
em material abandonado pelo autor encontráveis em pontas de cigarros ou
no corpo do lesado. Quando um técnico encontra um traço de ADN em perfeito estado, ele procede a sua análise após decompô-lo em segmentos. Tais
segmentos é que serão, então, comparados com os do suspeito. Havendo coincidência do quantitativo convencionado, a identificação será feita com segurança,
já que, excetuando-se os gêmeos univitelinos e os que sofreram transplante
de medula, há uma chance em milhares de se encontrarem dois indivíduos
com o mesmo ADN 9.
Os métodos de coleta, como se viu, não apresentam maiores complexidades, a não ser pelo fato de as amostras serem retiradas de uma pessoa cuja
integridade deve ser preservada.
Pautas e convenções
Na Europa, estabeleceu-se que o número de marcadores genéticos necessários para identificação deve ser, pelo menos, de sete em comum, ou seja,
fixou-se um padrão que é chamado de ESS Loci (European Standard Set of Loci).
Assim, embora cada estado possa utilizar o número de marcadores que deseje,
pelo menos esses sete devem ser comuns entre países, possibilitando a comparação de dados quando necessário. Foram incluídos, em decisão recente, cinco
novos marcadores que têm mais variáveis e maior poder de discriminação e, ao
mesmo tempo, são bastante pequenos, o que ajuda a análise de ADN parcialmente degradado, freqüentemente encontrado em locais de crime 10.
Na França, tais marcadores foram estabelecidos em Portaria expedida
no ano de 2006. A partir de então, para gerar um perfil que possa constituir
16.pmd
9
Entrevista concedida por Philippe Mallet à TF1 News. Disponível em: <http://lei.tfl.
fr/France/2006-06/ADN-reine-reine-preuves-4855775.html>. Acesso em: 1 dez.
2011.
10
Informações prestadas por Guilherme Silveira Jacques, coordenador do Grupo de
Trabalho da Rede Integrada de Perfil Genético, em entrevista com a equipe de pesquisa. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_
inter_dados_genericos.pdf>. Acesso em: 1 dez. 2011.
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uma impressão genética, tem-se recomendado a coleta de 20 marcadores genéticos.
Esses marcadores são também chamados de junk ADN ou não-codificantes, porque não trazem informação alguma sobre uma pessoa além das
necessárias para a identificação humana. Pretendem os defensores do uso
irrestrito da técnica, à luz dessa informação, superar parte das objeções sobre
o uso de ADN na prática criminal forense, embora alguns cientistas tenham
posições divergentes quanto à neutralidade dos marcadores (vide infra).
Os marcadores selecionados são os microssatélites (STRs, short tandem
repeats), exatamente em razão de sua propriedade, isto é, de conterem formas
(alelos) variáveis, que mudam de um para outro indivíduo. A análise dessas
formas e de sua freqüência entre as amostras permite a identificação genética 11.
A variação é constatada pelas diferenças no número de pequenas seqüências
repetitivas, que é uma característica dos microssatélites Obter-se-ia, a partir
daí, o que se convenciona chamar de “impressão digital genética”, para aproximar essa tecnologia daquela de identificação datiloscópica.
Romeo Casabona 12 alerta para o fato de que as biotecnologias são muitas
vezes ignoradas pelo legislador, de forma que, muitas vezes, as normas são
elaboradas contendo inúmeros equívocos. No caso do armazenamento de
material genético, por exemplo, é necessário que fique claro que a parte do
ADN necessária para armazenamento são apenas os STRs e não a totalidade
da amostra retirada, uma vez que esta contém informações que podem afetar
a privacidade da pessoa.
Visando a impedir usos impróprios das amostras coletadas, foram propostas orientações supranacionais, a exemplo das feitas pela Unesco, na Convenção sobre dados Genéticos Humanos, realizada em 16 de outubro de 2004.
Uma delas diz respeito à necessidade de cuidados especiais na manipulação e
armazenamento de dados humanos, recomendando-se que estes não deverão
estar associados a uma pessoa identificável (artigo 14) ou, em caso contrário,
que deverão ser desenvolvidos mecanismos especiais para garantir a confidencialidade dessa informação em conformidade com os direitos humanos 13.
11
12
13
16.pmd
Lima (2008, p. 9).
Romeo Casabona (2009, p. 96-97).
Declaração Internacional sobre os dados genéticos humanos. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, Divisão de Ética das Ciências e
Tecnologias.
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Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
Deve-se registrar, porém, a propósito das informações a serem consignadas sobre a amostra colhida de uma pessoa, que o RIBPG previu o registro
do sexo do suspeito.
Apesar de tais observações e recomendações, há pesquisadores que discordam da neutralidade dos marcadores, a exemplo de Catherine Bourgain,
que declara serem os segmentos não-codificantes ligados às características
genéticas da pessoa.
A geneticista oferece, como exemplo para sua tese, o marcador designado como D3S1358, que é situado sobre o cromossoma número 3, mais precisamente sobre o LARS2, o qual foi apontado em algumas publicações como
indicador de risco de diabete tipo II. Refere-se também ao marcador D18S51,
que é situado sobre o cromossoma 18, próximo ao gene BCL2, que está ligado
a certas formas de linfoma. Por fim, trata do marcador D2S1338, que foi objeto
de trabalho de pesquisadores italianos do Instituto Tigem de Nápoles, os quais
associaram o marcador D2S1338 com o ponto do ADN que permite determinar
se a doença rara denominada pseudokaliémie estava ou não presente em uma
pessoa. Ademais, lembra que o que hoje não é codificável poderá sê-lo no
futuro, em razão do crescente desenvolvimento da genética 14.
Dentre as posições desfavoráveis ao recurso da identificação por ADN,
a mais simples – e nem por isso menos importante – diz respeito à prática nos
Estados Unidos de retenção de material salivar e de sangue pela polícia, possibilitando que se retire ADN codificante, posteriormente, para quaisquer outros
fins 15. Tal objeção merece atenção, já que a coleta de material não-codificante
do ADN e o descarte das amostras com material codificante são procedimentos
que só podem ser avaliados e fiscalizados por profissional com conhecimento
na área de genética.
No Brasil, normalmente, trabalha-se com 13 marcadores, bastando 10,
no entanto, para um resultado positivo. Quando se trata de características
muito específicas, até quatro marcadores podem ser suficientes para o match 16.
16.pmd
14
Le Fnaeg, un danger pour les libertés: il n’y a pas d’ADN “neutre”. Entrevista concedida à LDH, 21 nov. 2010. Disponível em: <http://www.ldh-toulon.net/spip.php?
article4182>. Acesso em: 1 dez. 2011.
15
Jost (1999).
16
Palavra da língua inglesa que é usada pelos técnicos para referir à perfeita combinação entre as amostras comparadas.
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Padronização e internacionalização das amostras
A idéia de controle da criminalidade, em razão dos índices obtidos por
alguns países (Inglaterra, por exemplo), tem estimulado a pretensão de internacionalizar esse controle pela via da permuta de dados entre os países. Buscase, com esse fim, uniformizar padrões de coleta.
Segundo Peter Schneider 17, graças ao sucesso dos bancos na Europa –
cerca de 6 milhões de perfis arquivados –, iniciou-se um processo entre os
países que integram a CE para a elaboração de normas que permitam o intercâmbio de arquivos de ADN para investigação criminal. Essa iniciativa culminou com o Tratado de Prüm, assinado em 2005, que previa, sobretudo, que a
cooperação fosse efetivada em casos de terrorismo, imigração ilegal e crimes
transfronteiriços.
No Brasil, o uso do sistema Codis favorece essa possibilidade de permuta
de dados, o que poderia ter influenciado a doação do sistema.
Dentre os objetivos em comum entre os países, existem metas numéricas
de amostras a alcançar, projetando-se a quantidade que deve ser colhida num
dado período, o que confere prestígio ao banco mais aquinhoado.
A questão do número de perfis de um dado banco nacional está proporcionalmente ligada às garantias legais, ou seja, quanto menos restritiva é a
legislação sobre o universo de pessoas que devem fornecer material genético,
maior é o acervo do banco. A Inglaterra tem ostentado, desde a implantação
da técnica, os percentuais mais altos, exibindo, já em 2005, o expressivo número de 3 milhões e meio de amostras e, em 2011, de 5.512.776. Afirma-se
que esse número tem possibilitado identificar 3.500 autores de crimes por
mês, mas sabe-se que uma em cada cinco pessoas que têm amostras arquivadas
não possui antecedente ou responde a inquérito em curso18 . Em contrapartida,
o país já foi advertido pela Corte Européia de Direitos Humanos pela indevida
retenção de amostra 19. É evidente, porém, que, quanto maior for o número de
pessoas estudadas, maior será a chance de identificação. Essa lógica, entretanto,
16.pmd
17
Schneider (2011).
18
Australia (2002, 2003).
19
ADN database ‘breach of rights’. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/
7764069.stm>. Acesso em: 2 dez. 2011; <http://www.guardian.co.uk/politics/
2009/may/07/ADN-database-plans-condemned>.
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não pode por si só confirmar a qualidade do sistema, sendo necessário que se
avalie o uso da tecnologia à luz das disposições sobre os direitos fundamentais.
Uma alternativa possível
Com base nessas considerações, é possível entender que se deve recusar
a possibilidade de recolhimento de material contra a vontade da pessoa, ainda
que, aparentemente, os meios utilizados para tanto sejam tidos como inofensivos. A aparência de inocuidade se esvai em face da recusa do indivíduo em
permitir o acesso a seu corpo.
A legitimação pela via do pretenso consentimento do doador também
deve ser recusada pelas razões já expostas, admitindo-se mais que tal anuência
sirva apenas para conferir aparência de legitimidade ao ato.
O direito processual brasileiro dispõe de mecanismos capazes de alcançar
o objetivo desejado, talvez sem a discricionariedade usada em outros países,
mas com capacidade para atender aos objetivos desejados: recolhimento das
amostras e respeito aos direitos fundamentais do cidadão. O instituto da busca
e apreensão, previsto como providência que objetiva produzir provas ou preservar direitos, tem sido um dos recursos mais importantes de coleta de provas no
processo penal. Em grande parte dos casos, as provas obtidas por meio de tais
procedimentos acabam por constituir a base para o resultado da ação penal.
Sua finalidade encontra-se taxativamente fixada no artigo 240 do Código de
Processo Penal Brasileiro, podendo-se recorrer à letra h (colher qualquer elemento de convicção) para abrigar a hipótese sob questão, mas restringindo a
providência à busca domiciliar, conforme o parágrafo 1°. Para tanto, o magistrado
expediria mandado com esse objetivo, procedendo-se à procura de resíduos de
pele, cabelo ou qualquer outro deixado em utensílio de uso pessoal do suspeito.
Essa alternativa, embora coercitiva, já que se utiliza a força do Estado
para apossar-se de elemento de prova, contaria com a participação do Poder
Judiciário, para evitar excessos. Na Espanha, a menos que haja risco de perda
da prova, procede-se sempre com autorização judicial.
Deve-se acrescentar que, na diligência, havendo desvio dos poderes
conferidos por mandado judicial, a prova produzida será considerada ilícita,
devendo ser desentranhada dos autos. Os autores do excesso responderão
pelos abusos praticados no âmbito criminal, além de sofrerem sanções pela
repercussão produzida nos âmbitos cível e administrativo.
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GESTÃO DE BANCO DE DADOS
Toda argumentação desenvolvida em favor da preservação dos direitos
fundamentais dos suspeitos no processo penal aponta para a necessidade de
os bancos de dados serem geridos de forma a preservar a identidade do portador das amostras. Por isso mesmo, o sistema de gestão deve ser concebido
de forma a evitar que as amostras-vestígio e amostras-referência sejam administradas pela mesma instituição.
Como já explanado supra, para a utilização do sistema Codis, as amostras biológicas são decodificadas em séries de 7 a 13 marcadores, que não são
capazes de especificar elementos fenótipos de seus doadores, informando
unicamente o sexo do mesmo. Ocorre, todavia, que a amostra-referência, para
que cumpra as funções buscadas no âmbito da investigação forense, deve ser,
obviamente, referida a uma determinada pessoa.
Para evitar violações à intimidade, é recomendável que a administração
do banco de perfis seja feita de forma fragmentada e fique a cargo apenas de
entidades estatais. As amostras-vestígio podem, sem maiores problemas, ser
guardadas pela própria polícia que a recolheu. Contudo, deverá o recolhimento do material genético do suspeito ser realizado por entidade específica
e distinta da que participa diretamente das investigações e das coletas das
amostras-vestígio. Essa precaução tem em vista afastar o investigador do geneticista que realizará a análise, evitando ao máximo as possibilidades de
implantação de falsa prova.
Além desse cuidado, deve-se salientar que, de forma semelhante, não
devem ser armazenados pelo mesmo órgão a identificação dos suspeitos e os
respectivos perfis genéticos, ainda que codificados. Com essa medida, dificultam-se a identificação dos doadores das amostras biológicas e outros usos
indesejáveis das amostras.
Helena Moniz partilha esse entendimento, acrescentando que os bancos
devem ser órgãos credenciados do poder público que se incumbirão do armazenamento e preservação das amostras. Assim, evita-se, em tese, que laboratórios particulares possam vir a dar outros usos às amostras 20.
É com a mesma preocupação supra que deverão ser escolhidos os gestores e as formas de gestão desses bancos de perfis, ou seja, apenas servidores
20
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Moniz (2002, p. 234-235).
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com formação na área de genética deverão fazer a comparação entre as amostras e emitir um laudo conclusivo.
CRITÉRIO PARA SELEÇÃO DE CRIMES E AUTORES PASSÍVEIS DE
IDENTIFICAÇÃO
Um dos pontos fulcrais da coleta de dados genéticos diz respeito à definição do público cujas amostras devem ser coletadas para integrar o banco de
dados genéticos, o que está sempre ligado à gravidade da pena ou do crime.
De logo, pode-se afirmar que grande parte dos países começou com
uma legislação restritiva, limitando a coleta de amostras aos suspeitos da prática de tráfico de entorpecentes, terrorismo e crimes sexuais violentos, mas,
pouco a pouco, foi sendo alargada a fronteira, inclusive para compreender
suspeitos, menores e até pessoas inocentadas após julgamento 21.
Na França, mesmo integrantes de movimentos ecológicos que se opunham
ao plantio de sementes transgênicas foram submetidos à retirada de material
genético, embora a Lei Guigou houvesse previsto, a princípio, que apenas os
autores de crimes contra a dignidade sexual (des infractions sexuelles) constituíssem o grupo-alvo. Posteriormente, diversas leis, expressamente ou pela via da
criação de novas figuras delitivas, como a Lei Sarkozy (Lei de 18 março 2003
sobre a segurança interna), possibilitaram a inclusão de suspeitos e criminalizaram, ademais, a conduta de pessoas que se opusessem a fornecer material.
Da mesma forma, nos Estados Unidos, o banco de ADN para fins criminais continha apenas amostras de pessoas condenadas por crime sexual, o
que foi profundamente alterado para incluir diversas outras possibilidades.
Segundo autores, hoje a legislação permite a coleta de ADN como se se tratasse de uma impressão digital, autorizando também que agentes federais
coletem ADN de um imigrante ilegal, desde que detido, por qualquer motivo 22.
A Inglaterra, como se viu, tem o maior banco de dados genéticos, mas
as hipóteses que autorizam a coleta de amostras genéticas são excessivamente
amplas e vão desde a mendicância à embriaguês, à prática de desordens ou
até mesmo à participação em uma manifestação ilegal 23.
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ADN Database scandal is damaging UK race relations says expert (2009).
22
Layton (2007).
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The ADN Expansion Programme: reporting real achievement? (2006).
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A experiência tem demonstrado que tem sido difícil limitar o universo
de crimes que podem permitir o recolhimento do ADN, seja em razão de sua
gravidade, seja em razão da maior freqüência com que deixam resíduos nas
vítimas ou na cena do delito. Animados pelas situações consideradas exitosas,
a maioria dos países tende a alargar a base de dados dos bancos de ADN contra
a oposição de entidades defensoras de direitos humanos que objetam esse
pensamento em razão de violar liberdades civis.
No entanto, a idéia de expandir um banco de dados até compreender
toda a população de um país é revelada com freqüência. Isso tem ocorrido na
Inglaterra, nos Estados Unidos e mesmo no Brasil, onde sequer existe lei disciplinando a matéria. Guilherme de Oliveira, a propósito, afirma que seria desnecessário limitar o universo de pessoas das quais seriam recolhidas amostras,
entendendo que seria justo que todas as pessoas tivessem seu perfil em um
banco de dados. É justo esclarecer que o autor entende que tais dados servem
apenas, e eficientemente, para a descoberta de crimes e autoria. Assim, por ocasião do nascimento ou da identificação civil seria efetivada a doação de material
genético 24. É apenas diante da inviabilidade de alcançar essa meta, até por questões financeiras, que o autor aceita a limitação do foco a um público definido.
Alertas são feitos contra esse pensamento por setores preocupados com
a defesa social, alguns decorrentes do medo de controle político das populações através das amostras. Gene Watch, em trabalho datado de fevereiro de
2006, faz as seguintes ponderações: o objetivo de ampliar as amostras-vestígio
é possibilitar a conseqüente ampliação de crimes resolvidos, mas o desejo de
aumentar, cada vez mais, as amostras-referência poderá ter tão-só como fim –
talvez não manifesto – a geração de um grande número de suspeitos para serem
investigados em futuros crimes e, sobretudo, a reabertura de casos já arquivados sem solução 25.
A limitação por lei do universo de pessoas que podem ter o ADN recolhido deve, dessa forma, ser incisiva, para prevenir que os casos resolvidos
com a ajuda da técnica animem, ao nível do insuportável, a sua ampliação.
É bem verdade que alguns estudos minimizam a importância dos achados possibilitados pelo recurso ao banco de dados genéticos, em razão do
pequeno número de casos nos quais a comparação entre os ADNs foi o elemento decisivo para sua resolução. Acrescentam ainda que, na Inglaterra,
24
25
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Jacques e Minervino (2008, p. 13).
The ADN Expansion Programme: reporting real achievement? (2006).
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relata-se que, de fato, há uma relação pouco animadora entre amostras de
crime obtidas (apenas 0,88%) e o percentual de soluções (40%), o que significa que apenas 0,35% do total de crimes praticados (5,6 milhões) foi solucionado com a ajuda do banco de ADN.
Não é a questão quantitativa que deve legitimar a criação e o uso de
uma rede de bancos genéticos para desvendar crimes, mas a gravidade dos
delitos praticados em razão dos danos causados à vítima e do abalo provocado
na sociedade pela perda de confiança em suas instituições. Caso se considerem
apenas os números, os autores de furto no Brasil seriam os pioneiros nessa
experiência, ao passo que os crimes praticados com violência ou grave ameaça
contra a pessoa produzem maior inquietação social.
Crimes sugeridos
Os fundamentos para admissibilidade do uso de amostras de ADN fazem
que se indique um universo restrito de crimes, quais sejam, os que são alvo de
expressiva reprovação social, no caso, os crimes hediondos descritos como
tais pela Lei n° 8.072 [homicídio quando praticado em atividade típica de grupo
de extermínio, e homicídio qualificado, latrocínio, extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, estupro (Art. 213, caput e §§ 1° e 2°); estupro de
vulnerável (Art. 217-A, caput e §§ 1°, 2°, 3° e 4°)].
Esse juízo está amparado na noção de proporcionalidade, reconhecendo-se que, ao direito ao silêncio previsto na Constituição Federal, deve-se opor
o direito à segurança da população. Há crimes que provocam maior perturbação na consciência coletiva, danos irrecuperáveis às vítimas, e que desestabilizam a consciência social no que tange à sua crença na capacidade do Estado
em dar uma resposta penal à violação sofrida. Dessa forma, o direito ao silêncio, como qualquer outro direito fundamental, sem quaisquer controvérsias,
não é ilimitado, existindo restrições ao seu exercício. Da mesma forma, podese pensar, no que tange ao direito à intimidade/privacidade, que este pode
vir a sofrer limitações previstas em lei. Rodriguez, reforçando esse pensamento, lembra que o direito à intimidade pode ser restringido, excepcionalmente, em face de interesse maior, desde que o legislador não se permita sucumbir
à tentação da tecnologia para resolver problemas imediatos 26.
26
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Rodriguez (2008, p. 212).
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A própria Constituição, ao mesmo tempo que assegura, restringe direitos
fundamentais. Isso é constatável no que se refere ao civilmente identificado
que poderá ser submetido à identificação criminal nas hipóteses previstas em
lei infraconstitucional, na violação da correspondência e até mesmo com relação à vida, justificando-se sua eliminação nas hipóteses previstas no Código
Penal (legítima defesa, estado de necessidade e estrito cumprimento do dever
legal).
Dessa forma, considerando que as intervenções pessoais para recolhimento de amostras, bem como seu armazenamento, podem constituir, por si
sós, um constrangimento, o Brasil deve procurar restringir-se aos crimes retro
referidos, evitando expansão para outros delitos, o que, ao final, contribuiria
apenas para o alargamento da criminalização secundária. Aliás, a própria
aprovação de lei que permita a coleta e armazenamento de dados para fins
criminais pode intensificar a seletividade do sistema criminal, já que os delitos
praticados pelos mais pobres são, reconhecidamente, dotados de maior visibilidade. O armazenamento de seus dados contribuiria, assim, para a formação
de um banco de suspeitos fáceis à disposição dos órgãos do sistema criminal.
PERÍODOS DE ARMAZENAMENTO DAS AMOSTRAS-REFERÊNCIA
A definição do período de armazenamento das amostras é matéria também intimamente ligada aos direitos fundamentais e aos verdadeiros objetivos
do banco de dados. Se se pretende manter um arquivo com informações de
toda a população, por certo não haveria necessidade de estipular prazos. O
gigantismo da coleção de ADN, por si só, daria a impressão de controle, se
não sobre o crime, ao menos sobre o criminoso.
Não é possível negar a necessidade e também o dever do Estado de promover a paz e a segurança pública, nem ignorar tampouco o receio de uso indevido dos dados no futuro. Tendo em vista o equilíbrio entre essas duas situações
é que devem ser feitas as análises sobre o tempo de armazenamento. De outro
lado, deve-se atentar para o fato de que apenas os STRs (parte não-codificante
do ADN) bastam para realizar a identificação da pessoa, sendo assim o único
material cujo armazenamento deve interessar para efeitos criminais.
A hipótese de armazenamento definitivo das amostras soa incompatível
com o ordenamento jurídico brasileiro, no qual estão previstos institutos que
conferem ao tempo o poder de amainar ou de apagar as impressões deixadas
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Bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal
pelo crime. Se a qualidade de um banco fosse avaliada apenas em razão da
possibilidade de controle criminal, seria desejável que, a exemplo do que ocorre
com as digitais, nenhuma amostra fosse excluída, o que não é desejável em
Estados democráticos de direito.
Assim, impõem-se certas limitações. A primeira delas diz respeito à liberação do ADN de suspeitos uma vez inocentados. Apreendida por mandado
judicial, com caráter tutelar, a amostra de pessoa julgada inocente será armazenada enquanto durar a ação do processo, sendo, ao seu final, destruída,
independentemente de ação interposta para esse fim, como se exige na França.
Essa conseqüência deriva da própria natureza das cautelares cujos pressupostos (fumus commissi delicti e/ou periculum libertatis), uma vez superados
(no caso, pela identificação do verdadeiro autor do crime), obrigam a revogação da medida (destruição da amostra).
Durante as apurações, porém, na forma do artigo 170 do Código de
Processo Penal brasileiro, os peritos poderão guardar o “material suficiente
para a eventualidade de nova perícia”.
Caso se trate de perfil de condenado, a sentença vem a lhe garantir
caráter definitivo, ou seja, permitirá o arquivamento dos dados por tempo
que deve ser previsto em lei. Na Europa, a lei de cada Estado vem decidindo
de forma distinta, tomando-se, em geral, como referência, o tempo de duração
dos antecedentes nos registros. Outros países, a exemplo da Espanha, tomam
como referência o prazo prescricional de cada delito, critério que se justifica
em razão de a tradição brasileira imputar ao decurso de prazo um valor especial, seja para a consideração de reincidência, seja para a prescrição ou ainda
para a reabilitação.
No que tange aos resíduos dos quais foram obtidos as amostras com
microssatélites não-codificantes, todavia, destaque-se, ainda uma vez, é essencial que os mesmos sejam descartados tão logo se obtenha os marcadores genéticos, uma vez que outras informações podem ser obtidas a partir dos resíduos.
CONCLUSÃO
A biotecnologia tem despertado na humanidade temores e esperanças
muitas vezes exacerbadas. De um lado, receia-se que a vida possa ser manipulada com os conhecimentos obtidos sobre elementos da vida nunca antes
acessados; de outro, anseia-se pelos proveitos por eles proporcionados.
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O controle da criminalidade pela via da sanção do criminoso encontra-se
entre esses últimos desejos. A paz, ainda que ao preço da exclusão do infrator,
tem sido meta desejada por todos os grupos. Ocorre que se receia o mau uso
de certas técnicas, as quais podem produzir efeito inverso, criando uma aparência de tranqüilidade ao preço da manipulação e do cerceamento da liberdade de todos.
Sem dúvida, a possibilidade de identificar a autoria de crimes e de processar os criminosos pelo ato praticado é dever do Estado, que tem sua função
reafirmada quando faz cumprir o ordenamento jurídico. De outro lado, é exatamente o êxito, nesses casos, que pode levar a uma exagerada expansão de
coleta de amostras genéticas, sempre justificada por objetivo aparentemente
pacificador.
Ainda que a lei revista com todas as cautelas a coleta e o emprego dos
perfis genéticos para efeitos criminais, o máximo de cuidados pode ainda ser
insuficiente para impedir a violação de direitos, se, à necessidade de segurança pública, não for oposta também a do respeito a todo e qualquer cidadão.
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Maria Auxiliadora Minahim é Vice-Diretora e Professora Associada (Departamento de Direito Público) da Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia.
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MEMÓRIA DA ADVOCACIA
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Entrevista com a Advogada Dra. Eny
Raymundo Moreira *
OABRJ: Gostaríamos de saber de onde veio a Sra., por que foi buscar o Direito,
como chegou à Faculdade, como foi esse caminho, como se encantou pelo
Direito.
Eny: Para ser muito sincera, nunca tive dúvida sobre a profissão. Tenho essa
memória, que chega a ser física, de, aos quatro anos, eu responder advogada
quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse. Não sei por
quê. Lembro-me que meu pai, quando ouvia essa resposta, colocava-me em
cima do fogão de lenha, apagado, é claro, contava-me uma história e me mandava fazer a defesa. Acho que desde menina me revelei uma pessoa exibida,
falava qualquer coisa e cresci convicta de que seria advogada. Nunca tive esse
problema de vocação.
*
Entrevista realizada em 25 de maio de 2012, na sede da OABRJ, com a participação
da Dra. Daniele Gabrich Gueiros, da Dra. Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da
Silva, da Dra. Cristiane de Oliveira Igreja e da jornalista Débora Fortunata Bastos
Rodrigues.
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 225-255, jul./dez. 2011
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Eny Raymundo Moreira
OABRJ: Qual a profissão do seu pai?
Eny: Pois é, na minha família, tanto do lado paterno quanto do materno, fui a
primeira pessoa a estudar Direito. Meu pai e minha mãe são de famílias numerosas. A memória mais remota de família é de meu trisavô, bisavô de meu
pai, que veio da Espanha. Só conheci meus avós paternos. Era uma família
humilde, meu pai era um homem do povo, que na juventude chegou a passar
fome, mas um homem de posições extremamente firmes e até mesmo rígidas
com relação à honra, à moral, à dignidade. Pena que tenha morrido quando
eu só tinha doze anos; até hoje me sinto roubada. Sou a única filha mulher, e
ele tinha uma preferência descarada por mim. Minha mãe é de uma família
de libaneses que migrou toda para o Brasil, não por questão econômica, tanto
que se embrenhou em Minas Gerais e comprou terras. Minha mãe tinha sido
destinada a um patrício – hábito dos libaneses naquela época –, mas, aos 15
anos, conheceu meu pai e os dois se apaixonaram, foi paixão à primeira vista.
Eles brigaram muito com as respectivas famílias mas conseguiram se casar.
Meu pai aprendeu a profissão de alfaiate. Um dia ofereceu sociedade a um
irmão que estava em dificuldade financeira, que, numa noite de jogo, perdeu
tudo o que tinha. Para ele não ser desonrado, meu pai acabou liquidando a
alfaiataria e arranjou emprego de representante de uma empresa inglesa que
vendia tecidos, entre outros o tropical inglês brilhante. Minha mãe, que era
dona de casa, só foi trabalhar fora quando meu pai morreu. É isso...
OABRJ: Onde a Sra. estudou? Que faculdade freqüentou?
Eny: Estudei no grupo escolar Duarte de Abreu, uma escola pública em Juiz
de Fora. Nasci em Santos Dumont, mas, como tive poliomielite com um ano e
seis meses, fomos para Juiz de Fora, onde havia mais recursos. Depois, viemos para o Rio de Janeiro, onde havia mais recursos ainda, e aqui ficamos até
o final do tratamento, quando então voltamos para Juiz de Fora e lá permanecemos. Então, fui para escola pública e depois para o colégio Santos Anjos,
que, com o Stella Matutina, eram os dois colégios que ofereciam a melhor
formação para as moças de fino trato. Graças a Deus escapei disso, nunca
consegui ser uma moça de fino trato (risos). Mais tarde fiz o vestibular para
Direito em Juiz de Fora, éramos uns 100 candidatos e só passamos 28: a redação
proposta na primeira prova, eliminatória, de português, tinha por título “Mocidade Hodierna”, e apenas vinte e oito escrevemos hodierna com H (risos),
de modo que essa história de desconhecer o português vem de longe (risos).
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Entrevista
OABRJ: E qual era a faculdade?
Eny: Universidade Federal de Juiz de Fora. Eu só poderia estudar em faculdade
pública, porque meu pai já tinha morrido e minha mãe vivia e pagava os nossos
estudos com muita dificuldade.
Em 1966, lendo um número da revista Realidade cuja matéria de capa
era uma longa entrevista com o Dr. Sobral Pinto, fiquei fascinada por ele.
Falei para minha mãe que iria embora para o Rio de Janeiro e trabalharia com
ele. “Mas você não conhece ninguém no Rio, você não conhece esse homem,
como vai fazer?” Vim para o Rio, dormi em uma pensão em Copacabana. Na
entrevista, ele dissera que assistia à missa diariamente e comungava às 6 da
manhã, na capela da escola que existe até hoje na esquina da rua onde ele
morava, na Pereira da Silva, em Laranjeiras. Na manhã seguinte, às 6 horas,
lá estava eu na igreja, e já o padre havia começado a missa, com a ajuda do Dr.
Sobral. Entrei pelo lado esquerdo e fiquei mais ou menos próxima do altar
esperando a missa terminar. Ao final, depois que todos saíram, o Dr. Sobral
ainda lá permaneceu limpando e guardando o que tinha sido usado na celebração. Finalmente, desceu do altar, ajoelhou-se e começou a rezar. De repente, levantou-se, pegou o chapéu e o guarda-chuva e saiu pela nave central.
Corri, então, pelo lado e o interceptei na entrada da igreja. Tremia feito vara
verde, esta é outra memória física que guardo desse momento. Pulei na frente
dele e falei: “Dr. Sobral, sou Eny Raymundo Moreira, quero muito ser advogada, estou estudando Direito e preciso trabalhar com o senhor. Posso?” Ele
me olhou profundamente nos olhos em silêncio, uma eternidade, e disse: “Começa amanhã’, mas eu não posso lhe pagar”. Respondi: “Não tem importância”.
Louca, não é? (risos) Não tinha dinheiro, não tinha nada. Tratei de ir à Faculdade Nacional de Direito, ainda era Nacional, no Campo de Santana, e fiz um
requerimento pedindo transferência. O Helio Gomes, então diretor, de cara
indeferiu o pedido. Eu chorava feito criança. Depois de ter conseguido o mais
difícil, que era trabalhar com o maior advogado deste país, como é que iria
ser, e chorava, chorava, isso na pensão. Uma moça já mais velha que lá estava
hospedada, também de Juiz de Fora, falou: “Lava essa cara, pára de chorar e
vamos tomar um chope”. E eu, menina de 20 anos, desci com ela e nos sentamos ali mesmo na rua, na Rodolfo Dantas, perto do Copacabana Palace. Logo
em seguida, parou um carro com dois jovens senhores. Um deles dirigiu-se a
ela, e seis meses depois estavam casados, e casados estão até hoje e cheios de
filhos e netos. O outro dirigiu-se a mim: “Por que uma menina bonita como
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você está com os olhos inchados? Parece que chorou”. Contei-lhe o que estava
acontecendo, e ele pediu meu telefone. Fiquei com medo, porque em Minas
ouvíamos muitas histórias do Rio de Janeiro, mas acabei dando-lhe o número.
Dois dias depois, ele me liga: “Você tem um encontro com o Dr. Helio Gomes
na faculdade. Ele rasgou o seu pedido indeferido, é para você levar outro”.
Esse homem, Darcy Fernandes, era chefe do cartório de registros públicos e
amigo do Helio Gomes. Acho que ficou com pena de mim... Assim, para falar
a verdade, a vida tem sido generosa comigo. Como é que um homem que
nunca tinha me visto me ajuda!?
OABRJ: Isso foi em que ano?
Eny: Em 1966. Fiz um requerimento à mão mesmo, e o Helio Gomes deferiu o
meu pedido, mas me pôs de manhã. Eu, que sempre tive enorme dificuldade
de acordar cedo, comecei a faltar, a chegar atrasada. Um dia o bedel me procurou: “Você não quer estudar à noite? Tem uma moça do turno da noite que
está doida para passar para o da manhã”. Passei então para o turno da noite.
Trabalhava o dia todo no escritório do Dr. Sobral – no primeiro ano não recebia
nada, e minha mãe, com muito sacrifício, me mandava o dinheiro da pensão.
No escritório havia muitos advogados; mas, além do Dr. Sobral, dois deles,
Oswaldo Mendonça e Bento Rubião, também defendiam presos políticos.
Como eu gostava de Direito Penal, juntei-me a eles. Comecei a ajudá-los e
recebia de cada um deles, de vez em quando, 10 cruzeiros, acho que naquela
época era cruzeiro. Isso ajudava! Eu tinha a pensão paga, onde eu dormia,
tomava banho, o café da manhã, almoçava e jantava. Lembro-me que custava
100 cruzeiros. Naquela época não havia inflação aguda ainda, de modo que
esse preço se manteve até a minha formatura, quando saí de lá. Ganhava 10
aqui, 10 ali, mas não era com freqüência, servia para pagar a condução que
me levava ao escritório e o ônibus que me levava da Central do Brasil, na
Presidente Vargas, até o ponto próximo da pensão. Do escritório à faculdade
eu ia a pé.
Um tempo depois, percebi uma coisa engraçada, entrava muita gente
no escritório do Dr. Sobral, mas muito pouca gente ficava, porque ali não tinha
dinheiro, o Dr. Sobral não cobrava, a rigor ele não sabia cobrar, diferentemente dos outros advogados, que cobravam. O dinheiro que ele ganhava provinha das parcelas dadas pelo pessoal que cobrava. Havia um advogado, que
era como filho do Dr. Sobral, o Tito Lívio Cavalcante de Medeiros, que, quando
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Entrevista
aparecia um caso muito bom no Cível, era quem cobrava, ele sabia que o Dr.
Sobral não falaria em dinheiro.
Ao fim do primeiro ano, o Dr. Sobral percebeu que eu tinha mesmo
vontade de ser advogada e acabou me chamando em sua sala: “Pode dizer
para sua mãe que vou lhe pagar”. Começou então a me dar o dinheiro mensalmente para o pagamento da pensão, além de uma participação, quando
recebia um dinheiro melhor.
Em pouco tempo de escritório, percebi que todos os advogados tinham
entrado a pedido de alguém. Um porque o Juscelino era amigo da família,
outro porque era filho de um colega do Dr. Sobral na faculdade...
OABRJ: Havia muitas mulheres?
Eny: Só eu. Um dia, entrei na sala do Dr. Sobral e disse: “Dr. Sobral, todo
mundo entrou aqui com pistolão, por que o senhor me aceitou?” Ele respondeu: “Ah, porque do jeito que você é audaciosa, achei que ia dar boa coisa”
(risos). Não foi bem essa a expressão que ele usou, o Dr. Sobral não era irreverente como eu.
OABRJ: Algum caso chamou a sua atenção nesse tempo de estudante?
Eny: Quando entrei para o escritório, o primeiro caso com que me deparei foi
o da morte da Dana de Tefé, um caso tenebroso. Tenho memória boa, sorte
dos marginais que não dei para polícia! Leopoldo Heitor era o nome do acusado. Enfim, um dia estou no escritório e ele chegou, já ia para o terceiro
julgamento. Até aquele momento, o corpo não tinha sido achado, e, na época,
ausência do corpo era falta da prova cabal, logo, ele teria de ser absolvido.
Fora pedir ao Dr. Sobral para assumir o caso, e eu fiquei bastante impressionada com aquele caso.
Também houve o caso, em 1968, dos irmãos Rogério e Ronaldo Duarte,
dois cineastas, um deles marido da Dra. Rosa Maria Cardoso da Cunha, que
hoje faz parte da Comissão da Verdade, e pai de Pedro César, filho mais velho
dela, que também é cineasta. Ambos os irmãos foram presos, e o caso foi o
primeiro em que ocorreu tortura no Exército a tornar-se público. Lembro-me
que o Dr. Sobral e o Oswaldo Mendonça foram os advogados. Normalmente,
no final do expediente, depois que se atendia a todos os clientes, reuníamonos na sala do Dr. Sobral, e eu permanecia quieta, só escutando, porque era
estudante e ainda muito crua. Fiquei espantadíssima, não porque não sou-
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besse que havia tortura no Brasil – em Minas Gerais, às vezes um colega de
turma, que morava perto da cadeia, contava a nosso professor de Direito Penal,
promotor de Justiça, que ouvia gritos à noite, ao que ele retrucava: “Preso
gosta de fazer teatro”. Quando cheguei ao escritório do Dr. Sobral e percebi
que não era só o homem do povo que apanhava, que era torturado, e que o
Exército também torturava as pessoas contrárias ao governo, comecei a ficar
muito alarmada, o que acabou sedimentando em mim a vontade de seguir a
minha trajetória pelo Direito Penal.
OABRJ: O primeiro relato que a senhora ouviu foi do Rogério ou do Ronaldo?
Eny: Dos dois, ambos foram presos e torturados. A denúncia partiu do escritório e foi a primeira vez que houve repercussão pública, saindo inclusive nos
jornais. Lembro que o Dr. Sobral, que tinha trânsito na Igreja, começou a protestar e pediu auxílio ao Dom Helder Câmara.
OABRJ: Quando a Sra. se formou?
Eny:Em 1968. Fiz o vestibular em 1964, exato um mês depois de ter entrado
para a faculdade veio o Golpe. Formei-me, portanto, no AI-5, de 13 de dezembro de 1968, mas a formatura foi proibida. Recebemos o diploma individualmente no gabinete do Helio Gomes, sem solenidade, que deveria ter ocorrido
no Municipal. Só foram permitidos a missa e o baile no Copacabana Palace.
Em Juiz de Fora, o nível dos professores era altíssimo, tive uma base
sólida nos dois primeiros anos. Quando cheguei no Rio, deparei-me com uma
situação especial, o Jango decidira que naquele ano de 1964 não haveria excedente, todo mundo que tivesse passado cursaria a faculdade, tanto que a
minha turma é a maior na história da Faculdade, tínhamos aula no “maracanã”,
uma sala enorme tipo auditório, porque não cabíamos todos. O Técio Lins e
Silva, o Wladimir Palmeira, o Desembargador Antônio Carlos foram meus
companheiros de turma, que deu gente boa! Os professores, catedráticos, eram
luminares... Quer dizer, comecei a trabalhar com o Dr. Sobral, tinha aula com
os maiores nomes da advocacia, pessoas respeitadas. Alguns poucos nem se
dignavam a comparecer, arranjavam substitutos, que, aliás, não eram ruins.
Até hoje no Brasil o nome da pessoa tem um peso. Havia um professor de
Direito Penal chamado Hélio Tornaghi, que eu detestava porque apoiava descaradamente a ditadura. Para mim, uma pessoa que se dedicava ao Direito
tinha de ter uma lucidez maior, tinha de ter uma visão mais clara, tinha de ver
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Entrevista
a realidade brasileira, e ele não escondia a sua preferência. Uma vez, pedi-lhe
uma opinião sobre um caso meu – eu já tinha clientela própria, não só os
casos que o Dr. Sobral me passava, pois ele não dava conta de defender todos
os opositores que o procuravam. Tinha dia que a fila descia a escada e se prolongava até a rua. Pois bem, pedi uma opinião ao Dr. Tornaghi e ele falou:
“Não me comprometa”. Fiquei tão indignada que me recusei a freqüentar suas
aulas, até que um colega de turma me disse que, se eu não fosse, seria reprovada por ausência. Também tinha esse tipo de gente...
Há uma história que não posso afiançar porque sei de ouvir dizer. Algumas vezes a polícia política invadiu a faculdade, e muita gente, principalmente
a que freqüentava o Caco, que era o centro acadêmico, passou pelo corredor
polonês e saiu presa. Dizia-se que eram diretores e alguns professores descontentes com a “insubordinação dos alunos” e com a efervescência no Caco,
mas eu não posso afiançar... Se bem que naquela época, antes mesmo do AI-5,
a Dyrce sabe bem disso, não se podia falar nada com ninguém, desconfiavase de todo mundo. Era sabido que a repressão política infiltrava seus agentes
nos grupos de resistência.
OABRJ: A Sra. participou do movimento feminino pela Anistia antes de ser
presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia?
Eny: Não. A Terezinha Zerbini, que foi a primeira pessoa a organizar o movimento pela Anistia, sabendo da minha história de defensora dos presos políticos, convidou-me para ir a uma reunião de mulheres que ocorreria em São
Paulo. No princípio, freqüentei aqui no Rio algumas reuniões, mas eram mais
reuniões de mães, havia uma organização das mães dos presos e exilados. O
movimento feminino, talvez por ser feminino, não fazia uma ebulição capaz
de empolgar a sociedade civil organizada. Depois de certo tempo, porém, começaram a aparecer ex-presos, ex-presas e familiares, além das mães. Cogitouse, então, em criar um movimento que não fosse só feminino, surgindo o
Comitê Brasileiro pela Anistia, que ampliou a luta. Fui escolhida para ser a
presidente fundadora. Lembro-me que os carros, pelo menos no Rio de Janeiro,
andavam com plásticos “Ame-o ou Deixe-o”, “Brasil, país do futuro”. Mas, da
noite para o dia, surgiram carros circulando com plásticos “Anistia Ampla,
Geral e Irrestrita”. No princípio, havia muito medo, mas logo depois houve
tal empolgação, que a luta foi incrementada; contudo, até chegar na Anistia
muita coisa se passou.
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OABRJ: Como era advogar perante a chamada (entre aspas) “Justiça Militar”?
Eny: Eu poria as aspas na Justiça (risos).
A partir do Ato Institucional n° 2, a competência para julgar civis acusados de violar a Lei de Segurança Nacional foi estendida para a Justiça Militar,
saindo da competência da Justiça comum. No escritório do Dr. Sobral, nas
reuniões depois do expediente, eu ouvia, principalmente do Oswaldo Mendonça e do Bento Rubião, que tinha sido melhor assim porque, se as pessoas
que se opunham à ditadura continuassem a ser julgadas pela Justiça comum,
o seriam por juízes muito mais subservientes que os militares, que abaixavam
a cabeça. Eu achava aquilo estranho, e só mais tarde acabei lhes dando razão.
Foi quando caiu nas minhas mãos uma carta do juiz Portocarrero dirigida ao
presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o Murta Ribeiro – não
esse de agora, mas o pai dele –, que não fez absolutamente nada. A carta não
só puxava a orelha do presidente como o chamava às falas.
Há uma frase no filme Cinema Paradiso que me marcou muito. Quando
o personagem principal volta à cidade natal e atravessa a casa em que morava
quando criança, vê no quintal, da porta da cozinha, a árvore em que ele subia
na infância. Dirige-se à empregada e diz: “a árvore diminuiu”. Ela, então, responde: “Não devemos olhar as coisas da infância com olhos de adulto”. Por
exemplo, hoje tenho um olhar, não que negue o meu olhar dos 20 anos, mas a
minha compreensão é mais larga, fruto da experiência que se vai adquirindo.
Quando completei 10 anos de formada, estávamos na segunda auditoria do
Exército fazendo um julgamento muito importante, e o Dr. Sobral encontravase no corredor que ligava a secretaria à sala de audiência. Lá estavam Oswaldo
Mendonça, Bento Rubião, Modesto da Silveira, Alcione Barreto, Heleno Fragoso, Evaristo de Moraes, Lino Machado, Nilo Batista, Antônio Carlos Barandier, Jansen e Técio. Lembro-me que naquele dia os nomes dos militares que
faziam a escolta dos presos estavam tapados com esparadrapo, e a escolta
portava metralhadoras engatilhadas dentro da sala de julgamento. Eu tinha
medo daquelas metralhadoras, soldado em pé cansa, e elas poderiam disparar... Saí da sala de audiência e dirigi-me ao Dr. Sobral: “Não sei de onde a
gente tira tanta coragem”. Ele me olhou e disse: “Não tem nada a ver com
coragem, minha filha, tem a ver com a capacidade de se indignar”. E esta é a
verdade. Era difícil, mas a gente insistia. Por exemplo, até 1968, até o AI-5,
ainda existia o instituto do habeas corpus, então se conseguia soltar alguns
presos; outros tinham a ação penal contra si trancada, porque muitos militares
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Entrevista
não tinham competência para isso, não sabiam investigar e acabavam fazendo
muita bobagem. Com o advento do AI-5, foi abolido o habeas corpus, e, a partir
de então, houve a associação sem limites entre os militares e a polícia civil,
que tinha mais experiência no trato da investigação. Continuamos fazendo
habeas corpus para marcar a data da prisão e quebrar a incomunicabilidade,
que passou a ser de 10 dias, mas que durava às vezes 3 meses. E tem os que
estão incomunicáveis até hoje: os mortos e desaparecidos...
Mais tarde, alguns advogados que eram brilhantes, os grandes nomes
da advocacia, pelo menos aqui no Rio, entraram nessa defesa de preso político,
usaram um expediente chamado recurso em sentido estrito, que era uma
maneira de fazer um arremedo de habeas corpus. Por meio dele, podia-se pedir
a liberdade, a quebra de incomunicabilidade. Muito raramente se conseguia,
mas havia juiz que tinha uma certa sensibilidade, encontravam-se algumas
poucas sentenças lúcidas, como, por exemplo, a de um juiz que absolveu um
jornalista por perceber que a Justiça Militar estava sendo utilizada por um
político regional para servir de veículo de censura. Eram realmente muito
poucos, pois a maioria era de juízes “agachados”, “cabisbaixos”, eu não diria
envergonhados porque eram escolhidos a dedo. Eram ruins tecnicamente e
como pessoas, mas pouco importava a qualidade deles, porque o que o sistema
queria era exterminar a oposição.
Na democracia, o direito de resistência é um direito, um dever humano,
o direito/dever de combater um Estado ilegal, e o Estado ilegal não tem o
direito de julgar o seu adversário, mas era o que acontecia. Quando houve em
1969 o seqüestro do embaixador americano, imediatamente a ditadura, que
já estabelecera uma profusão de leis, baixando toda uma legislação para responder ao Estado Totalitário, fechando-se mais e permitindo que a própria
repressão tivesse uma atuação mais dura, instaurou a pena de morte e a pena
de prisão perpétua. Embora nunca tenha sido legalmente aplicada a pena de
morte, houve condenação, eu mesma atuei no primeiro caso de condenação
à pena de morte, que ocorreu na Bahia, o do Theodomiro, que hoje é juiz do
trabalho, defendi o Paulo Pontes da Silva, condenado à prisão perpétua, e
mais tarde, noutro processo, o Jesus Paredes Soto.
Acho importante registrar que, além da tortura sistemática, as “confissões” eram sempre testemunhadas, principalmente as realizadas nos Dops,
por passantes. A polícia os chamava e dizia-lhes que se tratava de um terrorista,
pedia-lhes que assinassem, com a afirmação de que o “terrorista” tinha con-
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fessado. Ao final, ficava consignado que o preso prestara aquele depoimento
por livre e espontânea vontade, sem ter sofrido nenhuma coação, e as duas
testemunhas arranjadas assinavam.
O princípio já consagrado na nossa tradição jurídica de que a confissão
no inquérito, isolada, não pode servir de prova para condenar, de nada adiantava, ela era desmentida em juízo e servia como ponto de partida da condenação. Não importava se a lei dizia uma coisa e se houvesse uma jurisprudência
dos Tribunais ou se o Brasil era signatário de convenções internacionais, o
que importava era uma punição exemplar. Isso, além da perseguição que nós,
advogados, sofremos, da prisão que nos foi imposta numa tentativa de intimidação, inclusive com tortura de alguns. O Dr. Sobral foi seqüestrado no dia
13 de dezembro de 1968, dia do AI-5 e ficou três dias preso; recusou-se a
prestar depoimento sob a alegação de que não reconhecia em ninguém no
Brasil autoridade para interrogá-lo. Também o Heleno Fragoso, o Süssekind
Moraes Rego e o George Tavares foram seqüestrados e postos em um calabouço, que, hoje se sabe, ficava numa delegacia desativada na Quinta da Boa
Vista. O Modesto da Silveira não foi seqüestrado, mas foi preso e intimidado.
OABRJ: E a sua prisão?
Eny: Ocorreu às 13:30, eu estava no escritório com o Oswaldo Mendonça,
quando chegou um policial federal – não me esqueço disso – de terno e gravatinha borboleta, rosto bexiguento, brilhantina no cabelo, e perguntou por mim.
Eu já era advogada, ele tinha na mão um papel com meu nome e a informação
de que eu mancava de uma perna; era fácil de ser identificada. Convidou-me
a acompanhá-lo, por ordem do Comandante do Primeiro Exército, para prestar
esclarecimentos. O Oswaldo Mendonça sugeriu que se ligasse para o Dr. Sobral,
ele ainda estava em casa, e se prontificou a me acompanhar. Entramos numa
kombi e fomos levados para a sede do Dops Federal, que se situava ao lado do
Museu da Imagem e do Som, na praça XV. De lá, partimos para o Dops da rua
da Relação, onde o Oswaldo me deixou e correu para buscar o Dr. Sobral,
porque, a essa altura, o Dr. Sobral não sabia onde iria me encontrar. Logo que
cheguei ao Dops, apareceu para falar comigo o Major Halfeld, de farda do
Exército, com o nome coberto por esparadrapo (soube do nome pois o delegado o chamou) – isso em 1969, já vigendo o AI-5, o Exército já se impunha,
as forças armadas já se impunham ferozes. Com o AI-5, a população começara
a tomar consciência de que havia alguma coisa estranha, pelo menos a classe
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Entrevista
média. E o Major Halfeld queria que eu vestisse o uniforme das presas, que
ficavam nas celas do andar embaixo (os homens ficavam em celas do andar
de cima).
OABRJ: E qual era a acusação?
Eny: E precisava de acusação?! Pois bem, o Major Halfeld queria que eu pusesse o uniforme, porque as presas usavam uniformes, mas eu disse que não
iria vestir uniforme, que eu era advogada e tinha o direito de ser tratada como
tal. Ele me ameaçou dizendo que me levaria para o quartel se não usasse uniforme: “A Dra. sabe como é o tratamento no quartel, não sabe?” E é claro que
tive muito medo. Nesse momento, chegaram o Dr. Sobral e o Oswaldo Mendonça e perguntaram ao Major Halfeld o motivo de minha prisão, que disse:
“Não sei, foi o Comandante do Primeiro Exército que deu a ordem”. O Dr.
Sobral prontamente replicou: “Pois o senhor vá lá e diga ao Comandante do
Primeiro Exército que eu estou preso junto com ela”. Aí tiveram de me soltar
(risos). Quando lhe contei a história do uniforme, ele me deu total razão por
não ter me submetido.
O Dr. Sobral foi meu pai profissional.
OABRJ: Em outros países da América Latina, na ditadura, os juízes apareciam
de rosto coberto. E aqui já havia essa questão dos nomes tapados, inclusive há
a foto do julgamento da Presidente Dilma, quando ela se apresenta à Justiça
Militar, em que todos estão com o rosto tapado. Gostaríamos de saber como
era, se, além dos nomes tapados, também os rostos eram tapados.
Eny: O Conselho Permanente de Justiça, nas auditorias, funcionava assim:
havia o Juiz, o Juiz togado, que fazia concurso, tinha estudado Direito e era
um juiz que conhecia as leis, pelo menos deveria conhecer; e quatro militares
que eram sorteados na tropa e eram investidos na função de juízes. Era o Juiz
togado que os instruía, segundo a lei, segundo as regras do Direito. E eles
exerciam o papel de juízes, atuando por três meses (os sorteios eram realizados
de três em três meses). A lei que instituiu a pena de morte também disciplinou
a forma de julgamento, e os militares que integravam o Conselho julgador do
acusado sujeito à pena de morte e à prisão perpétua eram nomeados pelos
Ministros da Marinha, da Aeronáutica e do Exército, entre oficiais generais,
almirantes e brigadeiros. Muitos militares que integravam o Conselho tinham
de manter a identidade em sigilo, então ninguém falava o nome deles. Sucede
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que, em várias auditorias, havia funcionários no cartório, não sei se simpatizantes ou se porque gostavam de nós, que punham em nossas mãos um papel
com o nome deles. E eu adorava quando chegava a minha vez: da Tribuna,
em vez de fazer como todo mundo, endereçando-se ao Sr. Presidente, aos
Srs. Juízes, ao Dr. Promotor, eu falava o nome e a patente de um por um. Eles
ficavam rubros de raiva.
Houve dois casos, na Aeronáutica, em que defendi pessoas que foram
submetidas a um Conselho em que havia, entre os seus membros, irmãos de
clientes meus presos. E os membros do Conselho eram muito ruins, o fato de
serem irmãos de presos que foram torturados não tornava o seu olhar mais
benevolente, admitindo tese da defesa. Respondendo à sua pergunta mais lá
atrás, houve casos em que o Juiz Auditor togado condenava e os militares
absolviam, houve casos assim, embora pouco freqüentes.
Em São Paulo, por exemplo, houve um juiz na Segunda Auditoria do
Exército, chamado Nelson Machado da Silva Guimarães, que se dizia cristão,
mas era muito ruim. O Paulo de Tarso Vannuchi, que foi meu cliente, fora
preso com 20 anos, fora barbaramente torturado e levado ao Dops para depor.
Esse depoimento, que aparece no processo, data de quatro meses depois, pois
a polícia esperou ele completar 21 anos, porque com menos de 21 anos ele
teria de ter um curador, o Código de Processo Penal Militar previa isso. No dia
da audiência de tomada de depoimento das testemunhas de acusação lá do
Dops, no processo em que ele se declarava membro da ALN (Aliança Libertadora Nacional) e participante de dois assaltos, havia uma mulher assinando
como testemunha – uma dessas mulheres passantes na calçada do Dops – de
um assalto a uma drogaria. Quando o delegado lhe pergunta se ela reconhece
o Paulo de Tarso como um dos assaltantes, ela diz que não, que não se lembra,
não tem condição de reconhecer. Em juízo, no entanto, está ela sentada em
frente ao juiz – que fica mais no alto –, de costas para o Paulo de Tarso e os
demais presos. O Dr. Nelson então dirige-se a ela: “A Sra. vai olhar para trás e
vai dizer se reconhece naqueles presos ali o assaltante” e apontava para o
Paulo de Tarso. Ela, é claro, direcionada, olha e fala que sim. Quando o juiz
me dá a palavra para interrogá-la, digo a ela que há um ano e meio, quando
ela fora chamada ao Dops, não reconheceu o Paulo de Tarso como um dos
assaltantes, como é que agora, um ano e meio depois, ela apontou para ele
com tanta segurança? “Ah! É porque lá no Dops eu não reconheci não, mas aí
o delegado mandou ele confessar e ele disse que foi ele”. Isso está no depoi-
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mento dela, mas de nada adiantou. Na hora de condenar, o juiz usou esse
depoimento como uma das grandes provas contra o Paulo. Vejam como era
mau esse juiz. Na época – o Paulo de Tarso já estava preso no Tiradentes e
depois na Casa de Detenção –, houve prisão de um outro grupo da Molipo
(Movimento de Libertação Popular), dissidência da ALN. O Paulo de Tarso é
retirado do presídio e levado para a Oban (Operação Bandeirante), que veio
a ser depois o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro
de Operações de Defesa Interna). Lá, depois de torturado, volta para o presídio
cheio de marca. Numa das tantas greves de fome que os presos fizeram, o
Carlos Alberto Brilhante Ustra, que já era o comandante do DOI-Codi, antiga
Operação Bandeirante na Rua Tutoia, manda buscar o Paulo de Tarso Vannuchi.
Como precisava de autorização do juiz, porque ele estava preso à disposição
da auditoria, o Dr. Nelson Machado assina uma ordem para que ele seja retirado do presídio para ser forçado a se alimentar – a cópia desse ofício, num
papel de seda cor-de-rosa, foi anexada ao processo. Três dias depois, o Paulo
de Tarso é levado do DOI-Codi para a Auditoria, porque haveria uma audiência
no processo do Molipo. Logo depois que eu chego à Auditoria, o trânsito é
fechado nas duas mãos da rua, pára um “brucutu”, um camburão enorme
todo fechado (a repressão em São Paulo era muito mais acintosa, aqui no Rio
era mais disfarçada), e dele desce um monte de militares armados até os dentes, que abrem a porta de trás, blindada, de onde desce aquele menino de 22,
23 anos, algemado, sem conseguir andar direito, com as pernas separadas,
com uma marca no pescoço, hematoma no olho, cheio de escoriações. Quando
lhe perguntei o que tinha havido, ele respondeu que fora torturado. Entrei no
gabinete do Dr. Nelson e contei-lhe das torturas, das marcas. Disse-lhe que
ele não podia fechar as pernas pois seu saco escrotal estava inchado de tanto
choque. O Paulo estava com muito medo, porque a escolta era do DOI-Codi,
de modo que tentei tranqüilizá-lo. Quando percebi que o Dr. Nelson não estava
acreditando, pedi que o Paulo tirasse a roupa. O juiz dirigiu-se a mim e disse:
“Mas a senhora é mulher!” E eu respondi: “Aqui sou advogada. Tira a roupa,
Paulo”. Ele não tirou a calça, claro, porque o juiz se tocou. Mas o pior dessa
história é que, quando fui pegar o processo, o papel com a ordem dele tinha
sumido. Não existia. Disse ao Dr. Nelson que ele era o responsável pelas torturas, uma vez que tinha autorizado a ida do Paulo para o DOI-Codi. “Não”,
retrucou, “a senhora está enganada, eu autorizei para que ele fosse forçado a
se alimentar”. E ele admitiu que era para ser forçado. Como é que se força
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uma pessoa? Manda para um hospital? Não, para o covil. Houve muita coisa
horrível.
A Dyrce e eu somos as únicas testemunhas, pelo menos as únicas vivas,
de uma história terrível que aconteceu com a Aurora Maria Nascimento Furtado. No dia 10/11/1972, no Jornal Nacional, o Cid Moreira leu uma nota
oficial do Primeiro Exército sobre a morte, em tiroteio, da “terrorista” Aurora
Maria Nascimento Furtado, de 26 anos. De manhã, recebo um telefonema, de
alguém da família que me pediu para tentar liberar o corpo. Até aquela época,
de vez em quando o corpo era entregue em caixão lacrado com ordem de não
ser aberto. Dirigi-me então ao Primeiro Exército, onde fui informada que deveria ir ao Dops, onde também fui informada de que o assunto não era da sua
alçada. Quando descia de elevador, um policial que me conhecia de minhas
tantas idas ao Dops disse-me que o corpo já estava no Cemitério do Caju. Fui
para lá e encontrei a Dyrce, que já tinha chegado. O corpo estava vestido com
uma roupa branca bem simples, todo coberto de flores. Era uma tentativa de
esconder as marcas da tortura, para poupar os pais de verem a filha naquele
estado. Um dos olhos estava saltado e o outro, completamente preto. Havia
um afundamento no maxilar, uma fratura exposta no braço, rasgos pelo corpo,
as unhas e os bicos do peito tinham sido cortados. Quando me aproximei da
cabeça e a toquei, meu dedo afundou, uma sensação de horror, a Dyrce já
tinha visto. E os homens que participaram dessa atrocidade estavam lá, nunca
vi tanta gente feia e desgraçada na vida, é como se os estivesse vendo agora.
Dali a pouco, chegou a irmã da Aurora com a ambulância, o caixão foi fechado
e entregue. Entraram na ambulância, que partiu para São Paulo. Eram 3 horas
quando saímos do cemitério. Pegamos um táxi, que deixou na Lagoa a Dyrce
e o Miguel Pressburger, ex-marido da Dyrce, que acabara de sair da cadeia,
era preso político também, e me deixou em Copacabana, onde eu morava. O
estranho é que a nota oficial do Exército, do Primeiro Exército, identificava a
Aurora Maria do Nascimento Furtado como terrorista morta em tiroteio, mas
o atestado de óbito registrava pessoa de identidade desconhecida. Para conseguir o atestado de óbito depois, foi outra batalha. Ela tinha sido presa numa
blitz, resistido à prisão e corrido. Os policiais da Invernada de Olaria, quando
conseguiram pegá-la num ônibus, na Avenida Brasil, levaram-na achando que
era traficante. Só na cadeia descobriram que ela era procurada. Chamaram o
Exército e o General Fiúza, então chefe do Centro de Inteligência do Exército
(CIE), que contou, com a cara mais limpa do mundo, que sabia de tudo. E
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quando os militares perguntaram se queria o corpo, ele disse: “Larga aí”. Isso
está contado também no livro do Delegado torturador Cláudio Guerra.
Dez meses antes de a Aurora morrer, foi presa, aqui no Rio, a Isis Dias
de Oliveira. Os pais dela receberam um telefonema da Aurora avisando que
ela havia sido presa e que corria risco de morte. A família veio para o Rio, foi
ao escritório do Dr. Sobral, e eu fui encarregada de cuidar do caso. Foi uma
das situações mais aflitivas que já vivi, porque a essas alturas já existia a figura
do desaparecido. Impetrei um habeas corpus, que foi negado, sob a alegação
de que ela não estava presa. Impetrei outro habeas corpus, apontando como
autoridades co-autoras o Exército, a Aeronáutica, a Marinha, o Dops, a Polícia
Federal e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), no Rio de Janeiro
e em São Paulo, que também foi negado. Aí, já se sabia que ela estava desaparecida. O pai, seu Edmundo, não agüentou e teve dois enfartes, vindo a falecer.
Dona Felícia, a mãe, morreu no ano passado. Como não se tinha nenhuma
notícia do paradeiro da Isis, impetrei cinco habeas corpus pelo país inteiro. A
Dona Felícia percorria os hospitais, as delegacias, os quartéis. Um dia, ela
chegou ao Arsenal de Marinha, onde se situava a Auditoria, na Praça Mauá, e
um marinheiro sem graduação, sugeriu a ela que fosse falar com Maria do
Carmo Oliveira, então assistente social do Hospital da Marinha. Dona Felícia
dirigiu-se para lá e contou a história à Maria do Carmo, que telefonou para o
marido, ele era oficial da Marinha. Foi informada que a filha estava na Ilha
das Flores. Dona Felícia saiu de lá correndo, e não tinha ninguém na Ilha das
Flores. No dia seguinte, foi pega por uma viatura e levada para o Cenimar. Lá,
na presença da Maria do Carmo, um oficial da Marinha lhe disse que tinha
havido engano, que a informação estava errada, e ficou por isso mesmo. Essa
moça, Maria do Carmo de Oliveira, deve ser de grande relevância para a Comissão da Verdade, decerto ela não tirou essa história do chapéu, do nada,
não é? Durante muito tempo, a coitada da Dona Felícia, mulher humilde, que
acreditava em tudo que lhe contavam, ficou sabendo, por meio de um policial,
seu vizinho, que em uma excursão que ele tinha feito na Europa, vira em Londres uma guia de turismo muito parecida com a filha. Dona Felícia, então, fez
um sacrifício enorme, arrumou dinheiro emprestado e partiu para lá com o
filho, porque o marido não podia viajar, já estava enfartado. Chegou lá, a moça
não tinha nada a ver com a filha. Depois lhe disseram que ela estava em Cuba,
e lá foi ela a Cuba. Morreu sem saber do paradeiro da filha. Na mitologia grega
e em todas as culturas há essa tradição de enterrar seus mortos, é necessário
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o corpo, sem o corpo, não há explicação, não há pista. Agora o assunto está
começando a vir à tona. O delegado Cláudio Guerra confessa espontaneamente que pelo menos dez corpos foram incinerados.
Eu queria voltar um pouquinho lá atrás, quando vocês me perguntaram
como é que era a Justiça, e dizer uma coisa que acho que precisa ser dita
sempre, até em solidariedade às gerações futuras. Quando um juiz não se
curvava, era sumariamente eliminado. Haja vista, por exemplo, as cassações
do Ministro José Aguiar Dias, do Tribunal Federal de Recursos, e dos Ministros
Evandro Lins e Silva, Dr. Hermes Lima e Dr. Vitor Nunes Leal, do Supremo
Tribunal Federal. O presidente, na época o Ministro Gonçalves de Oliveira,
teve de se aposentar. E alguns juízes, muito poucos, uns dois ou três, no máximo, da própria Justiça Militar, também foram defenestrados.
Mas, apesar dessa tragédia toda, há também na Justiça um lado ridículo,
grotesco. Vale a pena relatar, até para não nos tornarmos uma geração de
velhos amargos...
Um dia, eu era recém-formada, o Dr. Sobral irrompeu cedo no escritório,
em horário incomum, com uma petição na mão que sua secretária datilografara em casa, porque ele trabalhava em casa na parte da manhã. Ele me falou:
“Corre lá na Marinha e despacha essa petição com o juiz. Rápido, rápido, porque daqui a pouco começará a audiência”. E eu saí correndo do escritório.
Quando cheguei na Auditoria, a sessão já tinha começado. Sentei-me então
nos lugares destinados ao público. O Juiz togado e os Militares da Marinha do
Conselho estavam começando a interrogar um marinheiro, de pé, com a escolta de cada lado. O Juiz tinha acabado de ser empossado, não posso falar o
nome dele (risos), porque ele me pediu que nunca contasse que fora ele, não
queria que os filhos soubessem. Ele tinha acabado de passar num concurso, e
naquela época, não sei agora, quem tirasse o primeiro lugar poderia escolher
a comarca, e ele escolheu ficar aqui no Rio, na Marinha. E ele já chegou à
Marinha com a fama de saber muito português, ele falava e escrevia em português escorreito. Na Auditoria, só havia o Conselho, o preso, a escolta e eu.
O Juiz pergunta: “O senhor está sendo acusado de ter percorrido os caminhos
da lascívia, é verdadeira a acusação?” Ao que o preso responde: “O quê?” E o
Juiz tenta explicar: “O senhor está sendo acusado da prática de atos ilícitos e
libidinosos.” “Ato de quê, Dr.?”, pergunta o preso. E o Juiz: “Aqui quem pergunta sou eu!” E o preso: “Mas eu não tô entendendo.” O Juiz: “O senhor
praticou ato de homossexualismo com o Tenente.” Nesse momento, o rapaz
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Entrevista
bate as botas, bate continência e fala: “Ah! Doutor, eu comi, mas foi sob ordem
(risos).
Na Auditoria da Aeronáutica, havia um juiz que bebia feito um gambá,
não digo o nome, vivia bêbado. Entrava no elevador e ficava encostado, o
elevador chegava no 4° andar, ele dava um galeio e parava na mureta que
existia em frente à escada, depois se virava, dava um novo galeio e ia direto
até a Auditoria. Volta e meia a audiência era adiada porque ele não tinha condição de presidi-la. Um dia, o Dr. Sobral chegou ao escritório, já se formara
aquela tradicional fila de gente para ser atendida, e entre elas se encontrava
uma linda mulher negra, toda paramentada, vestida de mãe-de-santo. A secretária anotava os nomes e passava a lista para o Dr. Sobral. Como não dava
conta de todos, ele encaminhava alguns casos políticos para o Oswaldo, o
Bento e eu e se encarregava do restante. Ele mandou o Bento atender essa
mãe-de-santo, que lhe disse: “O meu marido sumiu, tem alguns dias que não
aparece. No trabalho ninguém sabe dele. Ele é um pai exemplar, um marido
de primeira, a vida dele é da casa para o trabalho e do trabalho para casa.
Ontem apareceu um homem na minha casa dizendo para eu procurar um
advogado que tivesse a ver com política. Eu não acredito não, mas procurei
em tudo que é lugar, delegacia, hospital, até que vim para cá”.
Não demorou muito e o Bento descobriu que o marido dela havia sido
preso pelo Exército e estava com prisão preventiva pela Aeronáutica, na Auditoria do “bebum”. Ela então exigiu ser levada ao juiz. “Que história é essa
que meu marido está preso? Meu marido não anda com política”. O Bento a
levou para falar com o juiz. Ela, toda de branco, cheia de patuás e mais não
sei o quê. Que mulher bonita! Os dois entraram. O Bento Rubião era um advogado fantástico. Tinha uma cultura invejável, não era só cultura jurídica. E
tinha muito humor, era extremamente fino, brilhante, era um dos melhores
advogados que conheci. E generoso! Já na presença do juiz, ela falou que ele
precisaria soltar o marido, que tinha havido algum engano. O juiz retrucou
que não tinha engano nenhum, que o marido era um subversivo perigosíssimo,
que estava atentando contra o governo, que queria derrubar o governo brasileiro, que queria instaurar uma ditadura comunista. Mas ela insistia que o
juiz estava enganado, que o marido não era nada disso. Mas de nada adiantou.
Quanto mais ela falava que o marido não era nada daquilo, mais o juiz falava
coisas horríveis do marido. E ela foi ficando esquentada. O Bento foi tirá-la
do gabinete: “Não adianta, vamos sair, depois eu dou um jeito nisso”. Ela saiu
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e ficou perto da porta; dali a pouco, do lado de fora, vem o juiz com o Conselho
dirigindo-se pelo corredor para a sala da audiência. E ele, que bebia demais,
cambaleava. Maria achou que ele estava com algum problema na perna, olhou
para ele e disse: “Vai perder essa perna”. Ele parou, estufou o peito e falou:
“Revogue esse despacho senão eu lhe prendo” (risos).
Havia uma paróquia em Oswaldo Cruz, cujo pároco, padre Daniel, organizava os trabalhos sociais realizados por jovens – Grupo da Juventude Católica. Um belo dia, a polícia prendeu todos os rapazes e moças, prendeu todos.
E o Padre Daniel foi chamado para depor como testemunha no Dops. O Dr.
Sobral sofria de nevralgia do trigêmeo, e seu caso era muito raro, porque atacava os dois lados. Às vezes, era internado, pois só conseguia se alimentar por
meio de soro na veia. Ele estava hospitalizado quando Dom Eugênio pediulhe que acompanhasse o Padre Daniel ao Dops. Ele não podia, não conseguia
falar. Pediu-me então, por escrito, que eu fosse com o Padre Daniel. No princípio, o delegado me deixou ficar na sala, ao lado do padre, mas, ao perceber
que o padre falava demais, não houve jeito, mandou-me sair da sala. Fiquei lá
fora umas duas horas, uma agonia danada. De repente, vejo o Padre Daniel
de macacão amarelo com as letras enormes, pretas “DOPS - PRESO” indo para
a cela. Saí de lá correndo, fui ao hospital contar para o Dr. Sobral. Enquanto
eu contava, o Dr. Sobral foi se vestindo, arrancando os tubos. Descemos e
pegamos um táxi em direção ao Dops. Lá havia um elevador antigo, e o gabinete do delegado era no terceiro andar. Ao sair do elevador, virava-se à esquerda e deparava-se com uma grade no início do corredor. Do lado de dentro
da grade, onde ficavam o gabinete do delegado e as celas dos presos, havia
uma mesinha com um policial, que anotava o nome e os documentos de quem
entrava. O Dr. Sobral, muito educado, parou e me deu a vez. Entreguei minha
carteira de advogada, o policial olhou, anotou meu nome e perguntou aonde
íamos. Falei que tínhamos vindo para falar com o delegado. Ele anotou a hora,
o nome do delegado, e me devolveu a carteira. Quando o Dr. Sobral apresentou seus documentos, o policial falou: “Não precisa, o senhor está com ela,
pode entrar” (risos). A partir desse dia, em todas as cartas e bilhetes que o Dr.
Sobral escrevia para mim, ele assinava “de seu humilde servidor” (risos).
OABRJ: E o Movimento pela Anistia?
Eny: Como já disse, a Terezinha Zerbini foi a primeira pessoa no Brasil a organizar a luta pela Anistia. A meu ver, embora o seu mérito seja incontestável, o
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fato de ser um movimento feminino a inibiu. Ela chegou a me convidar para
integrar o movimento. Organizou uma reunião em São Paulo, à qual compareci e para a qual vieram pessoas que lideravam o movimento feminino nos
vários estados do Brasil, entre outras, Dona Helena Greco, de Belo Horizonte.
Houve uma proposta de alguns grupos do Movimento Feminino pela Anistia
que sugeria a sua ampliação, para que viessem mais pessoas, mais organizações, para tirar-lhe o caráter estritamente feminino. Mas como a proposta
partiu de uma minoria, acabamos sendo vencidas e o movimento permaneceu
Movimento Feminino. Aqui no Rio, eu dava assessoria jurídica ao Movimento
das Mães, mães de presos e exilados, que se juntaram para reivindicar direitos
básicos do preso, direitos básicos do cidadão brasileiro, mesmo exilado, direito a ter um passaporte, por exemplo, que o governo negava. Até que um
dia, numa reunião de que participaram o Movimento das Mães, ex-presos
políticos, alguns exilados que tinham voltado, familiares de desaparecidos e
alguns advogados que às vezes compareciam, surgiu a idéia de se criar um
movimento que pudesse empolgar a campanha da Anistia. Para isso, foi proposta a criação de um outro movimento que integrasse a sociedade civil, os
estudantes, os profissionais liberais, os sindicatos, surgindo a idéia do Comitê
Brasileiro pela Anistia. Na reunião seguinte, propuseram o meu nome para
figurar como presidente fundadora desse Comitê, todos sabiam que eu era
advogada comprometida com os Direitos Humanos e com a luta pela volta da
democracia, mas não tinha vínculo com partido algum, nem “legal” – na época
só havia o MDB e a Arena –, nem clandestino, nem mesmo não-clandestino.
Então fundamos o Comitê Brasileiro pela Anistia, lançado no dia 18 de fevereiro de 1978. Eu não estive presente na solenidade de lançamento, porque
tinha feito uma operação na perna para corrigir uma diferença de uns centímetros, última operação que fiz. Fiquei seis meses engessada até a cintura,
deitada na mesma posição, imaginem! Eu, irrequieta do jeito que sou...
OABRJ: Quebrou o gesso... (risos)
Eny: Não quebrei o gesso, mas quase quebrei a cabeça do médico (risos). Achei
que ia sair da operação com uma perna cor-de-rosa linda (risos).
No dia do lançamento, o pessoal que compunha a direção do Comitê,
Abigail Paranhos, Artur Miller, convidou o General Peri Bevilacqua, integrante,
na época do golpe militar, do Tribunal Militar. Ele prestou um enorme serviço
à causa da Anistia e à luta pela redemocratização. Nesse dia, diante da im-
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prensa, contou a história do Para-Sar, proposta feita pelo Brigadeiro Burnier
para que o Para-Sar, tropa de elite da Aeronáutica, participasse do processo
de desmoralização da esquerda, do movimento de resistência. A idéia do Brigadeiro era que o Para-Sar pusesse bombas no gasômetro, na Central do Brasil e
em outros lugares, para que morresse gente que nem formiga e a culpa fosse
jogada nas pessoas que resistiam, chamadas de terroristas. Essa história chegou ao General Peri Bevilacqua, porque o então capitão Sérgio Macaco (Sérgio
Ribeiro Miranda de Carvalho) se recusara a participar e denunciara o plano.
Pois bem, o General, no dia do lançamento do Comitê Brasileiro pela Anistia,
narrou esse episódio, estampado na manhã seguinte em todas as manchetes
de jornais. A partir de então, o movimento ganhou força e adesão, inclusive
da Ordem dos Advogados. Acho que já comentei – conto essa história para
todo mundo – o que aconteceu logo em seguida, que foi um marco e um sinal
de que o povo já estava começando a perder o medo. Automóveis começavam
a circular com o adesivo “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, quando só se via
até então o adesivo “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. Os militares tinham se apropriado de todos os símbolos da Pátria, até do Hino Nacional.
Não se pode ser ingênuo ao ponto de achar que a Anistia foi uma conquista apenas do povo brasileiro, àquela altura os EUA, que tinham fomentado,
principalmente nos países do Cone Sul da América Latina, as Ditaduras Militares, haja em vista a Argentina, o Paraguai, o Uruguai, o Chile, o Brasil, a
Bolívia, começaram a perceber que os militares não estavam mais obedecendo
às suas ordens, tomavam atitudes até contrárias às suas diretrizes. Um dos
exemplos foi, no Governo Geisel, a Aliança Tripartite. O governo fez uma aliança com a Alemanha, contra o desejo e a orientação dos EUA, dando origem a
um movimento, também na Matriz – como a gente se referia na época aos
EUA –, para que os militares saíssem, dessem lugar a um governo civil.
OABRJ: A Sra. está falando de 1976?
Eny: Sim. O Comitê de Anistia foi em 1978, mas um pouco antes já havia
sinais dele. Em 1979, antes da Lei da Anistia, o Comitê Brasileiro pela Anistia
e o Movimento Feminino pela Anistia promoveram aqui no Brasil, precisamente em São Paulo, um congresso internacional em defesa da anistia. Várias
instituições do mundo ligadas à luta pelo direitos humanos – a Anistia Internacional, a Comissão de Juristas Católicos, a Comissão Internacional de Juristas,
o Conselho Mundial de Igrejas, o Cimade, organizações de vários países da
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Entrevista
Europa, dos EUA, do Canadá, da América do Sul – enviaram representantes.
Lembro-me que no dia da abertura desse Congresso, quando o Ulysses Guimarães, que representava o Parlamento, falava “Vamos lutar pela anistia!”, a
platéia, que tinha lotado o teatro, gritava “Ampla, geral e irrestrita”. Veio então
a Lei da Anistia, que foi votada no Congresso em 22 de agosto e promulgada
pelo General Figueiredo em 29 de agosto de 1979.
A meu ver, há uma interpretação escabrosa sobre o artigo primeiro dessa
lei, segundo o qual estão anistiados todos os que cometeram crimes políticos
e crimes conexos aos crimes políticos. Com isso, tem vencido até hoje a tese
de que os torturadores estariam anistiados, por isso a anistia teria sido ampla,
geral e irrestrita. Isso é uma mentira deslavada, é uma interpretação extremamente oportunista que, lamentavelmente, acabou tendo a guarida do Supremo
Tribunal Federal, ao afirmar que a anistia foi ampla, geral e irrestrita pois
anistiou os dois lados. Primeiro, essa história de dois lados é um equívoco,
não houve dois lados, é um equívoco histórico que não pode continuar, porque
não se pode perder de vista que um governo ilegal não tem o direito de julgar
os seus opositores, um governo ilegal que usurpa um governo legalmente constituído é de certa forma uma associação criminosa, e a resistência contra o
tirano é legítima, desde John Locke, é reconhecida em todos os governos democráticos. Não é à toa que os comunistas na França que resistiram ao nazismo
são considerados heróis. Em vários países onde houve resistência ao poder
tirano, os resistentes são considerados heróis, desde o Evangelho é assim... É
quase obrigação, é um direito, um dever humano resistir à tirania.
Mas, voltando ao Supremo, a base da decisão de considerar que a anistia
alcançou os torturadores repousa sob o argumento de que houve um acordo,
mas que acordo foi esse no qual a sociedade não participou? E eles argumentam que o Parlamento, na época o Congresso, a Câmara e o Senado, concordou
com isso. É verdade, só que se esquecem de que quase a metade do Senado
era de biônicos, não foram eleitos pelo povo, não representavam a população
brasileira. Que acordo é esse? Que acordo canhestro é esse? Além do mais, é
uma vergonha o Supremo Tribunal Federal passar recibo em uma questão
jurídica que é mais clara que a luz do sol, a tortura nunca pode ser considerada
crime conexo a crime político, a tortura é um crime hediondo, é um crime
contra a humanidade, é um tenebroso crime. Como é que se iguala o crime do
torturador à ação de um homem do povo que luta contra a opressão, contra a
mentira, contra a barbárie? São coisas absolutamente distintas, e o Supremo
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Tribunal Federal não pode ignorar que crime conexo é ação da qual depende
o crime principal. Imaginem se para derrubar a ditadura eu preciso me aliar a
torturador! O que é isso? Isso é um escândalo! Não sei como o Supremo votou
de cabeça erguida, é uma vergonha para a Nação. Não é à toa que o Brasil
hoje é um pária do Direito Internacional, a ponto de ser necessário que um
Tribunal Internacional o obrigue a apurar crimes contra a humanidade, a
apurar o que o Exército executou na Guerrilha do Araguaia. O que se sabe
hoje é que até mulheres de camponeses que abrigavam os guerrilheiros eram
postas dentro de aviões e jogadas na mata, eram estupradas, tinham a cabeça
decepada. Estranho...
Eu sempre digo que eu precisava ter dez bocas para dar conta de tanto
assunto, porque tem muita coisa entrelaçada...
Por que os militares jamais processaram os poucos sobreviventes da
Guerrilha do Araguaia? Não há processo instaurado contra os que sobreviveram, Genuíno, Glênio Sá. Este foi meu cliente, ele foi preso e já estava na lista
de desaparecidos depois de um ano e nove meses da prisão. Quando se chegava perto, os militares trocavam o Glênio de lugar, por isso ele foi posto na
lista de desaparecidos, até que foi largado numa penitenciária comum e proibido de falar com quem quer que fosse. Sem ouvir a voz de um ser humano,
ele conseguiu passar um pedacinho de papel com o nome e o endereço do
pai, que morava no interior do Ceará. Num dia de visita de família, um preso
comum entregou o papel ao pai, que, depois de ter atravessado vários estados,
conseguiu chegar ao pai do Glênio. Este, que era um sujeito extremamente
humilde, ligou para o irmão do Glênio, um grande cientista brasileiro, o único
brasileiro a pertencer à Academia Mundial de Ciência, que morava fora do
Brasil. Quando aqui ele chegou, procurou-me, por indicação de parentes que
eram meus clientes em São Paulo. Depois de todo o relato, entramos na sala
do Dr. Sobral para que ele tomasse conhecimento do ocorrido. Imediatamente,
o Dr. Sobral telefonou para Dom Eugênio Sales e pediu-lhe que me recebesse,
tratava-se de um caso urgente. Logo que ficou a par do caso, Dom Eugênio
telefonou para o Comandante do 1° Exército, se não me falha a memória era
o Sizeno Sarmento, um dos fundadores do DOI-Codi. Disse-lhe que sabia onde
estava o rapaz, que tinha provas e que queria pelo menos uma autorização
para visita. Dois dias depois, vindos do corredor que dava acesso ao escritório,
ouvimos passos de pessoas como se estivessem marchando e chegam dois
militares fortemente armados com esparadrapo no nome e um rapaz magro,
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cheio de olheiras, olhar assustado. Mandaram-me chamar. A secretária entra
na minha sala e me leva a eles. Entregam-me o Glênio e um recibo para que
eu assine. Imaginem se eu assino o recibo! Eles pegariam o menino lá embaixo
e diriam que eu é que tinha desaparecido com ele. Recusei, mas mesmo assim
eles deixaram o Glênio comigo. Ele tinha muito medo, não estava entendendo
nada, nunca tinha me visto, não sabia de nada. Tive de contar-lhe toda a história, como eu tinha chegado a ele. Levei-o para minha casa no final do dia,
onde permaneceu por dois dias. Como não conseguisse dormir, tranqüilizei-o,
disse-lhe que aqui em casa não correria perigo, todos já sabiam que estava
comigo. Disse-lhe que eu estava tentando falar com a sua família, que logo o
poria num avião para que fosse para casa. Assim foi feito. Mas o Glênio nunca
foi processado por ter participado da Guerrilha do Araguaia. Não há processo,
e isso é sintomático. Por que não há processo? Porque se esses sobreviventes
abrissem a boca, imaginem o que teriam para contar.
Com a anistia, os exilados começaram a voltar e os presos começaram a
ser libertados. O governo foi muito inteligente, porque segundo a Lei da Anistia, no parágrafo primeiro ou segundo, não estavam abrangidos pela lei os
que cometeram crimes de sangue, ou seja, os chamados terroristas. Engraçado
como a terminologia foi mudando também com o passar do tempo: quando
houve o golpe, eram comunistas, um pouco depois, em 1967, eram subversivos
e, finalmente, eram terroristas. Mas, simultaneamente à decretação da anistia,
surgiu a reforma da Lei de Segurança Nacional, que reduziu a pena de crimes
como, por exemplo, assalto a banco e seqüestro. Já tinha caído a pena de morte.
Com isso, as pessoas que não tinham sido beneficiadas puderam sair da prisão,
pois, como a pena fora reduzida, elas já tinham cumprido mais tempo do que
a lei previa. E a população não percebeu isso, não ligou o fato de que a volta
dos exilados coincidiu com a reforma da lei e com a abertura das grades dos
presídios. Assim, vigorou a idéia de que a anistia tinha sido ampla para os
resistentes ao regime.
OABRJ: A Sra. acabou de falar sobre a pena de morte em extinção, e é muito
importante o registro de que a Sra. foi advogada do primeiro preso condenado
à pena de morte no Brasil. E esse preso, hoje, está vivo e integra a Magistratura.
Quais foram os meios processuais que usou para postergar a execução?
Eny: Há um ligeiro engano aqui. A história é a seguinte: o advogado do Theodomiro era o Joaquim Inácio dos Santos Gomes; o Paulo Pontes da Silva, que
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estava sendo processado junto com o Theodomiro, é que era meu cliente.
Ambos foram condenados na Auditoria da Bahia, o Theodomiro, à pena de
morte, e o Paulo, à prisão perpétua. Essas penas tiveram a seguinte origem: o
Paulo, o Theodomiro e um outro indivíduo, de cujo nome não me lembro,
estavam no Dique Tororó quando surgiu uma patrulha de militares que deu
voz de prisão a eles, porque lhes parecia que os três estavam com atitude suspeita. O Theodormiro e o Paulo foram presos mas o terceiro conseguiu fugir.
Os militares cometeram um erro: o Theodomiro carregava uma pastinha debaixo do braço e os militares não o revistaram; o seu braço direito foi algemado
ao braço esquerdo do Paulo. Os dois, assim algemados, foram postos no banco
de trás de um jipe, dirigido por um militar tendo ao lado outro militar. Um
outro militar, fora do veículo, corria atrás do terceiro indivíduo. No escuro, o
Theodomiro, embora sendo destro, abriu com a mão esquerda, o fecho ecler
da pasta onde havia um revólver e atirou em um dos militares. Os dois foram
processados, mas o Paulo não tinha nada a ver com essa morte, porque estava
ao lado, olhando a perseguição do terceiro militar ao companheiro, que acabou
fugindo. Os dois foram condenados, o Theodomiro, à pena de morte, e o Paulo,
à prisão perpétua. O Paulo era de família muito pobre e não podia pagar advogado, não tinha condição de ter um advogado que viesse da Bahia ao Tribunal
Militar, sediado aqui no Rio. O julgamento foi no dia 14 de junho de 1971. O
Dr. Sobral e eu participávamos de uma sessão no Tribunal Militar quando
apareceu o ajudante de ordem do Presidente do Tribunal, que era o Almirante
Waldemar Figueiredo Costa, dizendo que ele queria falar comigo no gabinete,
após o término da sessão. Eu, além de ser irreverente, era muito audaciosa
mesmo – com 25 anos a gente não tem medo, se acha imortal, vai salvar o
mundo. Mas fiquei com medo, o presidente do Tribunal me chamando no
gabinete dele, pedi ao Dr. Sobral que fosse comigo. Mas ele se negou: “Não,
ele quer falar com você, eu até posso esperar, mas não entro no gabinete, ele
chamou você”. Eu realmente estava com medo. Entrei no gabinete, ele me
disse: “Doutora, haverá julgamento depois de amanhã do processo da pena
de morte, e o Paulo Pereira da Silva não tem advogado. Gostaria de nomeá-la
defensora ad hoc, a senhora aceita?” E eu, abusada do jeito que sou, com apenas três anos de formada, respondi-lhe que aceitava. Falei com o Dr. Sobral,
que me parabenizou: “É uma demonstração de respeito do Presidente do Tribunal a você” (aliás, tenho uma carta maravilhosa do Dr. Sobral sobre esse
julgamento). O Dr. Sobral me aconselhou a procurar o advogado do Theodo-
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Entrevista
miro, para que ele conversasse com o Paulo no presídio e pedir-lhe que mandasse uma procuração para mim. Por quê? Vejam a sabedoria do Dr. Sobral:
“O rapaz está condenado à prisão perpétua, você está sendo requisitada pelo
Presidente do Tribunal. Se esse rapaz tiver mantida ou agravada a pena, vai
ter todo o direito de suspeitar que você estava em conluio com o regime. Falei
com o Inácio, advogado do Theodomiro, e ele foi ao presídio junto com a mãe
do Paulo, contou quem eu era, que eu trabalhava no escritório do Dr. Sobral.
Imediatamente chegou a procuração por avião. Lembro que tive acesso aos
autos e, quando li como é que tinha se passado a história, concluí que ele era
inocente, que não havia participado da ação que resultara na morte do militar.
Pedi ao irmão de uma cliente minha, que já estava em liberdade, arquiteto e
muito bom desenhista, para fazer dois cartazes: um deles com os réus sentados
algemados no banco com a pasta; o outro, com a pasta com o fecho ecler aberto,
o Theodomiro com o revólver e o Paulo olhando para fora. Pedi, então, a um
funcionário do Tribunal que mostrasse os cartazes enquanto eu na Tribuna
narrava a história. Consegui absolver o Paulo, mas não por unanimidade, um
dos Ministros togados entendeu de reduzir a pena para 30 anos. Só vim a ser
advogada do Theodomiro durante a campanha de anistia, quando ele se tornou
o único preso político. Durante a ditadura, fui advogada de vários padres e
bispos dominicanos, pois o advogado do Frei Beto, do Frei Fernando, do Frei
Tito e de outros dominicanos em São Paulo, o Mário Simas, também ótimo e
primoroso advogado, extremamente ético, fazia a ponte com o escritório do
Dr. Sobral. Assim, acabamos, o Dr. Sobral e eu, ajudando na defesa dos dominicanos. E, mais tarde, no decorrer da minha profissão, defendi padres em
Minas Gerais e aqui no Rio de Janeiro. Também por meio do Dr. Sobral, eu
tinha um trânsito bom na Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB),
que tinha ido para Brasília. Não posso dizer quem me procurou e pediu que
ajudássemos o Theodomiro a fugir porque ele seria morto na cadeia ou no dia
em que saísse, ele estava jurado de morte pelos militares. Um belo dia alguém
me diz que ele havia fugido, notícia que apareceu na imprensa. Teríamos de
ajudá-lo a sair do país. Peguei um avião, fui a Brasília, chamei o secretário da
CNBB, que fora meu cliente, contei-lhe o que se passava e pedi-lhe que pusesse
o Theodomiro na Nunciatura. A Nunciatura tinha status de diplomacia, é território onde ninguém pode entrar sem licença. Lembro-me que o secretário
ficou vermelho feito pimentão, mas acabou concordando. Enquanto isso, o
Theodomiro era levado de carro para Brasília, e todo mundo rezava para que
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não fosse pego nas paradas de polícia. Finalmente ele chegou. Foi instruído a
escrever uma carta com cópia a ser distribuída para a imprensa e a levar o
original para entregar ao Núncio Apostólico, deixando outra cópia conosco.
Chegando na Nunciatura, o táxi com o Theodomiro entrou pelo portão, que
ficava aberto. Ele desceu do táxi e entrou na Nunciatura. Ficamos sabendo
depois que o Núncio estava dormindo (risos). Houve um tumulto lá dentro
quando o Theodomiro se identificou e disse que estava pedindo asilo. Acordaram o Núncio, que quis mandá-lo de volta. Porém, quando o Theodomiro
entregou a carta e disse que os advogados e a imprensa estavam lá fora, o
Núncio teve de asilá-lo. Passado um tempo, o governo deu salvo-conduto e o
Theodomiro foi embora. Assim, fui, por vias transversas, advogada dele, mas
advogada fora do Tribunal.
OABRJ: Retomando o tema lá do início, a Sra. advogando na Justiça Militar...
Eny: Os advogados mais velhos logo me ensinaram, assim que comecei a advogar na Justiça Militar, que a ditadura só processava e julgava quem escapava
da tortura, da morte e saía vivo, porque os militares queriam mostrar ao mundo
que aqui não tinha ditadura, que aqui era uma ilha de paz e tranqüilidade,
que os opositores do governo eram julgados e tinham direito de defesa. Eles
precisavam dar impressão de legalidade do regime e para isso utilizavam os
tribunais. Muitas vezes lutávamos pela aplicação da lei, que era o mínimo
que podíamos fazer, e o código do processo penal militar era aplicado subsidiariamente às leis de segurança nacional. A rigor, o que os militares realmente queriam era transformar o Brasil em um grande quartel, onde a ordem
unida imperasse, onde não houvesse voz dissonante.
Há uma história bastante interessante. Durante o governo do Jânio
Quadros, Jango era o vice-presidente, o Jânio tentou estabelecer relações diplomáticas e comerciais com a China, pois naquela época ele já tinha a idéia
de que a China era um mercado promissor para o Brasil. Veio, então, para cá
uma comissão mandada pelo governo da China e foi daqui para lá uma comissão chefiada pelo Jango. Quem comunicou ao Jango que ele fora nomeado
pelo governo para dirigir essa comissão foi o Ministro das Relações Exteriores,
Afonso Arinos de Mello Franco. Quando sucedeu o golpe militar, a missão
brasileira chefiada pelo Jango estava na China, e os militares providenciaram
a prisão dos nove militares que estavam aqui. O pretexto para essa prisão era
provar que o Jango era comunista e, por isso, tinha sido derrubado do poder.
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Entrevista
Com os noves chineses foram apreendidos documentos, agendas, que foram
chamadas pelos militares de diários, tudo em chinês. Os militares nomearam
um perito, que fez uma tradução completamente errônea. O Dr. Sobral, o
Oswaldo Mendonça e o Bento Rubião prontificaram-se a defender os chineses.
Esse foi o primeiro processo instaurado pela ditadura militar que foi julgado
na Justiça Militar, embora tenha começado na Justiça comum, pois, com o
AI-2, passou para a competência da Justiça Militar. O Dr. Sobral conseguiu,
do Conselho de Justiça, a nomeação de um tradutor de absoluta confiança
que sabia chinês. O tradutor verificou que não havia nada de comunismo,
nada de diário, era simplesmente uma agenda com os compromissos, tudo a
convite do governo, com conhecimento do governo. Durante todo o tempo
em que os nove chineses permaneceram no Brasil, foram vigiados de perto
pelas forças de segurança. O Dr. Sobral conseguiu fazer prova da inocência,
mas mesmo assim os chineses foram condenados a dez anos de prisão. Para
que não ficassem presos, o Dr. Sobral conseguiu que o governo os expulsasse
e eles se foram. Anos depois, um deles foi nomeado ministro do governo da
China. Lendo o processo, percebe-se que o Dr. Sobral conseguiu deixar claro
que o objetivo dos militares com a prisão dos chineses era comprometer o
Jango.
Há outra coisa que, em prol da verdade, preciso relatar com todas as
letras. A repressão não tinha respeito nenhum por nós, advogados. Poucos
não foram presos, mas na Justiça Militar, com raras exceções, os juízes e os
serventuários nos respeitavam, ao contrário do que acontece hoje na Justiça
comum. O advogado, hoje, na Justiça comum é visto como um sujeito que
atrapalha, que toma tempo. Acho que também há um pouco de culpa de alguns
advogados, que não reagem. Eles desconhecem o próprio estatuto. Pode-se
observar como aumentou nos últimos anos o número de prisões de advogados
por desacato ao juiz. Esquece-se facilmente que entre juiz, promotor e advogado não há hierarquia e que a Justiça não funciona sem uma dessas três
figuras fundamentais.
Mesmo com muita dificuldade, mesmo lutando contra mentalidades
extremamente obtusas de juízes e militares que compunham o Conselho de
Justiça e até mesmo de Ministros do Tribunal Militar, às vezes conseguimos
salvar algumas vidas, mas isso não serve de alento, porque até hoje há desaparecidos políticos, até hoje há famílias que não sabem se ainda têm marido,
mãe, pai, filho, irmão...
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Mas nem tudo está perdido. Acho que uma parcela das novas gerações
está fazendo bonito. Há, por exemplo, essa turma que está realizando o movimento do esculacho, que vai para a porta das casas dos torturadores e os denuncia, porque os vizinhos ignoram, as famílias não sabem.
Outro caso interessante que merece ser contado, pois até hoje há muita
confusão em torno dele. Com certeza, muita gente já ouviu falar que o Dr.
Sobral invocou a lei de proteção aos animais para o Luis Carlos Prestes. Mas
isso não é verdade. O que aconteceu foi o seguinte: o Dr. Sobral foi advogado
do Luis Carlos Prestes e do Harry Berger, um estrangeiro vinculado ao Partido
Comunista, que foi preso e barbaramente torturado. Ele era um homem de
estatura enorme, que teve de permanecer durante seis meses debaixo de um
socavão de escada, agachado, sem tomar banho, sem trocar de roupa. Passado
esse tempo, o Dr. Sobral conseguiu que o Tribunal de Segurança lhe desse
autorização para visitar o Berger. Lá chegando, mal conseguiu chegar perto
do cliente, pois ele exalava um cheiro fétido, estava todo sujo, descabelado e
enlouquecido, ninguém suporta uma situação dessas. O Dr. Sobral, indignado,
saiu de lá, foi direto ao Tribunal de Segurança, que funcionava ali na Av. Oswaldo
Cruz, onde hoje é a Escola Barth, narrou na petição o estado em que se encontrava o Harry Berger e invocou a aplicação da lei dos animais. O Harry
Berger morreu louco na prisão. Isso não diminui em nada a violência praticada
contra o Prestes e a Olga. O próprio Getulio Vargas mandou a Olga, grávida,
para o campo de concentração.
Por essa e por outras, foi importante a nossa ação, de recolher, mesmo
clandestinamente, a cópia dos processos, o que resultou no livro Brasil: Nunca
Mais. As únicas cópias que existem dos processos do Estado Novo são as do
Prestes e do Berger, porque o Dr. Sobral as fez e guardou. E agora, com essa
tradição de se queimar tudo... O próprio Rui Barbosa mandou queimar a documentação sobre a escravidão para evitar que os donos dos escravos pedissem
indenização ao governo. E o resultado disso é uma tragédia, pois hoje nenhum
negro brasileiro que queira saber a sua origem consegue. É como se não tivesse
passado.
OABRJ: Ninguém desconfiava do que vocês estavam fazendo?
Eny: Eles viam, era legal. Chamava a atenção, porque uma vez por semana eu
estava lá tirando cópia de processo. Certo dia, um dos funcionários do arquivo
me perguntou o motivo de tanta cópia de processo. Respondi-lhe que, com a
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Entrevista
Lei da Anistia, alguns foram anistiados e outros não, de modo que precisávamos fazer a prova de quem estava e de quem não estava anistiado. Ficou por
isso mesmo. Só quando o livro foi publicado é que se descobriu o que estávamos
fazendo. Todos os processos estão no STM, mas o acesso a eles ficou proibido.
Agora, com a Lei de Acesso à Informação, não há mais a proibição.
Depois que terminamos de escrever o Brasil: Nunca Mais, foram feitas
uma cópia em microfilme que foi enviada para fora, uma em xerox que foi
para fora e outra que ficou conosco, sempre sob a proteção de Dom Paulo
Evaristo Arns. Quando sentíamos algo estranho no local de trabalho, mudávamos de lugar; o projeto nunca ficou por muito tempo no mesmo lugar, mesmo
as pessoas que trabalharam com os dados (foram 30 digitadores), armazenando-os no computador, não sabiam o que queríamos com aquilo. Havia um
grupo aqui no Rio, mas Dom Paulo pediu que o projeto fosse desenvolvido em
São Paulo, porque aqui não contávamos com o apoio da Igreja. Sábia decisão,
apesar de os advogados do Rio não poderem mais continuar a ir a São Paulo.
Mudou também o enfoque do projeto, porque eu queria dar ênfase ao papel
da Justiça, e o destaque foi mais para a tortura. Mas mesmo com a mudança
do projeto inicial, ele teve grande mérito. Houve pessoas, inclusive da minha
família, que não acreditavam que houvesse tortura, que mudaram então de
idéia quando o Brasil: Nunca Mais veio a público. Na época, todos tinham
muito medo. O que se ouvia no Jornal Nacional era só isso: terrorista morto
em tiroteio. As pessoas não sabiam de nada mesmo, o medo imperava.
É preciso compreender que o dano causado pela ditadura não foi individual. A sociedade toda sofreu. É imprescindível que hoje se perceba a importância, o significado, dessa Comissão da Verdade, é preciso compreender
que a ditadura não foi só militar, foi também civil, porque uma parcela enorme
da população civil a apoiou e a sustentou.
Voltando à história da anistia, que novamente está em evidência. O Brasil
cometeu a façanha de não processar nem punir os torturadores e os corruptos
daquela época. A tortura e a corrupção estavam interligadas, a bárbara repressão e a deslavada corrupção. A maioria da população não sabe ou se esquece
de que na época da ditadura a corrupção foi muito pior. Basta lembrar dos
casos Coroa Brastel, Baumgarten, Banco Econômico, Lutfalla, ponte Rio-Niterói, Transamazônica e tantos outros. Acho que a Comissão da Verdade vai ter
de trabalhar esse elo entre as grandes empresas que financiaram a repressão
na montagem da Operação Bandeirantes, que depois virou DOI-Codi. Não é à
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toa que muitas empresas que hoje são acusadas de participarem de corrupção
com dinheiro público têm ligação com a repressão que vigorava naquela época.
Muitas delas ajudaram a montar o aparelho repressivo, por isso nada acontece
com elas. A Comissão da Verdade vai ter de apurar isso.
É absurda essa formulação de que havia dois lados. Não havia. O que
houve, e a gente precisa ter a coragem de dizer, foi um Estado ilegal com uma
política ilegal de Estado. E a população, vítima dessa brutalidade, tinha o direito legítimo de resistir. Em todas as culturas, há a compreensão de que é
legítimo impedir o tirano de agir, até mesmo assassinar o tirano. Falamos há
pouco que no mundo ocidental civilizado as pessoas que se opuseram e sobreviveram ao nazismo são consideradas heróis. Volto a repetir, é preciso ter plena
consciência de que resistir a um governo ilegítimo é um direito humano e
uma obrigação de cidadania. Essa história de dois lados é uma história cômoda
para quem não quer pensar. O que existia era uma política de Estado destinada
a exterminar qualquer forma de oposição. E não se diga que o pessoal que
optou pela luta armada foi o pessoal que partiu para o terrorismo, que partiu
para as ações violentas, isso não é verdade. Os sindicalistas não participaram
da luta armada, os estudantes não participaram da luta armada, a Igreja não
participou da luta armada. Vamos acabar com essa história de dois lados. Os
militares que até hoje estão pregando essa tese são os covardes, os medrosos,
os terrivelmente comprometidos com essa barbárie de que o Brasil inteiro foi
vítima.
OABRJ: Espanta-nos porque era uma parte da juventude.
Eny: Mas é uma parte da juventude que é filha de parte da classe média que
saiu na passeata da família com Deus pela liberdade, que apoiou o golpe, que
se beneficiou, no governo Médici, do Milagre Econômico e que hoje é contra
o Lula e a Dilma.
Eu estive presente na posse da Comissão da Verdade, acho que aquele
dia foi um marco histórico no país. Pude observar os quatro militares, o Comandante do Exército, o Comandante da Marinha, o Brigadeiro da Aeronáutica e o General que comanda as Forças Armadas. Não moveram um músculo,
aplaudiram ao final do discurso da Presidente Dilma, mas não quando havia
aplausos durante o discurso. Gostaria que a imprensa tivesse registrado a solenidade, a platéia numerosa dirigindo-se para a frente onde estavam os presidentes, os representantes dos Tribunais, e os militares levantando-se, dando
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Entrevista
meia volta para pegar o elevador e partindo. Acho que os representantes das
três Armas cometem um erro hoje, porque há provas tão eloqüentes dos crimes
cometidos pelo Estado, que é preciso que entendam que não foram as Forças
Armadas, como um todo, que torturaram, mataram, que sumiram com tanta
gente. Havia pessoas dignas nas Forças Armadas, havia pessoas contra o que
se passava, que inclusive foram banidas e processadas. Acho que seria mais
digno e justo que aqueles comandantes viessem a público e, em nome das
Forças Armadas, pedissem desculpas às famílias dos desaparecidos e aos torturados. Eles se engrandeceriam aos olhos da Nação, aí sim poderia haver o
corte que a verdade faz. A verdade não une, ela corta. Aí sim poderia pensarse em conciliação. Mas uma conciliação sem pedido de perdão, como? O que
se dirá para uma mulher que até pouco tempo não podia abrir um inventário
porque não sabia se o marido estava morto? A ditadura, enquanto durou, exigia que a família pedisse na Justiça uma declaração de desaparecimento. Não
fazendo isso, as Forças Armadas continuam omissas diante da história, prolongando essa prática do Brasil de esconder a verdade. O dia em que vier à
tona o que aconteceu na guerra do Paraguai, vamos ter vergonha de sermos
brasileiros? Não quero ter vergonha do meu país!
Eny Raymundo Moreira é Advogada, formada pela Faculdade Nacional de
Direito (UFRJ), Pós-Graduada em Direito no Ciberespaço pela Fundação Getulio
Vargas. Admitida como estagiária no escritório do Dr. Heráclito Fontoura Sobral
Pinto em 1966, onde permaneceu, depois de formada, até 1982, atuando na
defesa de inúmeros prisioneiros políticos. Nomeada, em 1979, Presidente Fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia, idealizadora e co-autora do livro Brasil:
Nunca Mais, sob a chancela do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Desde 1983,
em escritório próprio, milita na área de Direitos Autorais, em defesa das obras
de compositores, artistas plásticos, fotógrafos, escritores, chargistas, atores, e
dá assessoria a algumas editoras musicais e produtoras.
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Dilma instala Comissão da Verdade
No dia 16 de maio de 2012, a Comissão da Verdade foi instalada pela
presidente Dilma Rousseff. A missão de seus integrantes, no curto prazo de
dois anos, será apurar violações aos direitos humanos cometidas por agentes
do Estado no período de 1946 a 1988. O trabalho da Comissão vai ao encontro
das premissas da campanha que a OAB/RJ realiza desde 2010, pela abertura
dos arquivos da Ditadura Militar.
O presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, que, a convite da Presidência
da República, participou da cerimônia juntamente com a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Seccional, Margarida Pressburger, e o conselheiro federal Cláudio Pereira, manifestou na ocasião sua esperança de que
sejam apontados os responsáveis pelas torturas, mortes e desaparecimentos
forçados de perseguidos políticos.
Integram a Comissão da Verdade a advogada Rosa Cardoso, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Gilson Dipp, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, o advogado
e ex-secretário de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro, a psicanalista e
escritora Maria Rita Khel, e o advogado e escritor José Paulo Cavalcanti.
Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 259-266, jul./dez. 2011
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Notícias do Centro de Documentação e Pesquisa
O ato reuniu ex-presidentes da República e os mandatários do Supremo Tribunal Federal (STF), da Câmara dos Deputados e do Senado, além de
entidades da sociedade civil e parentes de vítimas.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos participa de
missão na ONU sobre direitos humanos
A presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária
(CDHAJ) da OAB/RJ, Margarida Pressburger, esteve em missão em Honduras
no início de maio de 2012 para verificar, como integrante do Subcomitê de
Prevenção à Tortura das Nações Unidas, o cumprimento de recomendações
em relação à violação dos direitos humanos nas prisões e outros locais de
privação da liberdade. O grupo foi recebido pelo presidente hondurenho Porfírio Lobo e pela ministra da Justiça, Ana Piñeda. Margarida poderá ser reeleita para cumprir mais um mandato. A decisão sai até o final do ano.
39° Prêmio Jurídico – Evaristo de Moraes de Filho – OAB/RJ
Tema: 70 anos da Justiça do Trabalho
Autoras: Miriam Azevedo Perez obteve o primeiro lugar na categoria
Advogado e Marviane Silva de Souza, na categoria Estagiário, e receberam os
prêmios de R$ 12 mil e R$ 4 mil, respectivamente.
Conclusão [Miriam Azevedo Perez]: Francisco de Assis Carvalho e Silva
(60 Anos da Justiça do Trabalho no Brasil. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.
br/xmlui/bitstream/handle/2011/19165/60_Anos_da_Justi%c3%a7a_
do_Trabalho_no_Brasil.pdf?sequence=4>. Acesso em: 25 out. 2011) observa
que, não obstante o sistema judicial trabalhista vigente não ser perfeito, ultrapassa, na sua concepção, em muito, os modelos dos denominados “países avançados”, que, em países como Alemanha, Austrália, Egito, Grã-Bretanha e Israel,
constituem ramo da Justiça especializada. Em países como Argentina, Chile,
Espanha e Itália, a Justiça do Trabalho é um ramo da Justiça Comum.
A Justiça do Trabalho deve ser rápida, de baixo custo e efetiva, equilibrando as desigualdades sociais e econômicas existentes entre as partes. O
autor destaca que tais objetivos são cumpridos pela Justiça Laboral, a despeito
das dificuldades que são inerentes à Administração Pública em geral, provenientes de distorções seculares da nossa cultura, das classes empresarial e
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política, que ainda persistem no desrespeito aos mais elementares direitos
dos trabalhadores.
Há que destacar as observações de Raquel Veras Franco (Breve Histórico da
Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Disponível em: <http://www.amatra14.
org.br/pdf/historia_justica_do_trabalho_no_brasil.pdf>. Acesso em: 25 out. 2011):
No Brasil, entretanto, o Direito e a Justiça do Trabalho teriam surgido
de uma matriz ideológica diversa, qual seja: a ideologia da outorga,
do corporativismo, da absorção, pelo Estado, do Sindicato – o que
teria neutralizado politicamente esse importante instrumento de
mudança social, em especial a partir do Estado Novo. Se o Direito e a
Justiça Trabalhista foram engendrados sob a ideologia da outorga,
conseqüentemente seriam caracterizados pelo artificialismo – ou porque a legislação social era “avançada demais” para a estrutura produtiva e financeira da sociedade, ou porque os trabalhadores brasileiros
não mereciam aquilo pelo que não teriam lutado para conseguir.
Não se pode negar completamente que tenha existido uma “ideologia
da outorga” no engendramento do Direito e da Justiça Trabalhista
no Brasil. Mas é preciso que se problematize tal fato. Primeiro porque
as leis trabalhistas não foram uma concessão desinteressada e generosa de Getúlio Vargas. Não foram um beneplácito de um Estado
forte – antes tiveram sua origem “num Estado nacional fraco que
tentava desesperadamente construir uma firme base social para o
seu poder”. Depois, as teses da outorga e do artificialismo acabaram
por ocultar as lutas e estratégias de resistência dos trabalhadores
brasileiros durante as primeiras décadas do século XX. Lutas e resistências que não se pode dizer que tenham sido a causa direta da
concepção da CLT – mas que tampouco devem ser desconsideradas
por não terem se assemelhado às lutas dos trabalhadores europeus.
É preciso aí um esforço para se entender as especificidades das massas
trabalhadoras brasileiras ao invés de simplesmente qualificá-las como
submissas, desorganizadas ou desprovidas de consciência política:
Um reconhecimento da fraqueza essencial dos trabalhadores perante
seus patrões, especialmente em São Paulo, não implica uma “culpa”
dos próprios operários (a “ideologia do atraso” de Weffort), mas sim
aponta para o enorme poder global dos seus opositores. Nem tampouco
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implica – como presumem as teses da outorga e da artificialidade – que
o baixo nível de poder exercido pelos operários urbanos em 1930 fosse
inerente à classe ou à realidade social brasileira. [...] As péssimas condições de vida e trabalho, relatadas inúmeras vezes em jornais operários
e mesmo em documentos oficiais, ensejaram, sobretudo nos anos
de 1917 e 1920, diversas agitações proletárias nas regiões mais industrializadas do país. Mas, de modo curioso, esses trabalhadores e seus
movimentos foram ‘apagados’ de nossa História. A tentativa de trazêlos à tona tem grande importância porque, a despeito de suas particularidades, a conquista de uma Justiça e de um Direito do Trabalho no
Brasil, se não foi conseqüência direta das lutas operárias, teve nelas
uma de suas razões de ser. Ao mesmo tempo, a justiça e a legislação
trabalhista serviram “para moldar a demanda dos trabalhadores por
justiça, para constituir um horizonte cultural comum do que deveriam
ser dignidade e justiça nas questões de trabalho”. (Grifos do autor)
A importância da Justiça do Trabalho também pode ser aferida ainda
pela quantidade crescente de processos por ela julgados, tanto nos Tribunais
Regionais, quanto no Tribunal Superior do Trabalho (Silva, 2011).
Desse modo, a essencialidade da Justiça do Trabalho se afigura cada
vez mais presente, constatando-se a necessidade de respeito à sua independência e atuação firme, a fim de efetivamente serem solucionados os conflitos
sociais e ver distribuída a Justiça “como fonte de harmonia nas relações entre
o capital e o trabalho” (ibid.).
Janaína Rigo Santim e Alex Faverzani da Luz (A Evolução Histórica da
Justiça do Trabalho e os Direitos Sociais no Brasil. Revista do Corpo Discente
do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, v. I, 2, n. 4, nov. 2009.
p. 11-12. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/10629/
6895>. Acesso em: 25 out. 2011.) observam, por sua vez, que a Justiça do
Trabalho vem sendo procurada com frequência para solucionar “conflitos que
ultrapassam os modelos tradicionais”, notadamente considerando-se que a
realidade social atravessou grandes alterações no final do século passado,
especialmente com a globalização da economia:
[...] Assim, o panorama que se projeta para um futuro não tão distante, é o de uma Justiça do Trabalho cada vez mais exigida pela
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sociedade, em razão do constante crescimento de demandas, questão
pela qual deverá ter um processo mais simplificado, porém seguro e
sem afastar o seu rigor técnico.
Regina Lucia M. Morel e Elina G. da Fonte Pessanha (A Justiça do Trabalho. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n2/a03v19n2.pdf>.
Acesso em: 25 out. 2011) observam que houve uma redefinição dos papéis
dos atores envolvidos no conflito trabalhista, assim como em relação às regras
do jogo, às reformas recentes que afetam direta ou indiretamente a Justiça do
Trabalho. Concluem as autoras que, se por um lado a Reforma do Poder Judiciário ampliou a atuação da Justiça do Trabalho, por outro, as reformas sindical
e trabalhista podem pôr em questão os seus limites:
[...] O maior ou menor papel concedido ao Estado e mais especificamente à justiça, o lugar atribuído à lei na hierarquia das normas
sociais, o papel das instituições na configuração do mercado de trabalho e direitos de cidadania, o reconhecimento dos sindicatos como
órgãos de representação legítima de interesses coletivos continuam
se apresentando como dimensões centrais dessa disputa.
Carlos Alberto Reis de Paula (O Papel da Justiça do Trabalho no Brasil.
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, 29 (59),
p. 53-62, jan./jun. 1999. p. 61-62) salienta, ao se referir ao Tribunal do Trabalho, que aprimorá-lo é elogiável, estimulá-lo é um dever de todos e extinguilo é uma proposta tipicamente neoliberal, pois “ao neoliberalismo não convém
a solução dos conflitos do trabalho dentro de uma jurisdição especializada e
fortemente iluminada pela eqüidade e justiça social.”
Hélcio Luiz Adorno Júnior (Apontamentos sobre a história do Direito
do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 140, 2010, p. 79) conclui que o papel social do Estado
evidencia a finalidade social da Justiça do Trabalho, que deve pautar-se pela
efetivação da prestação jurisdicional em consonância com sua função social.
Nesse sentido, o juiz do trabalho deve exercer sua atividade jurisdicional utilizando-se de instrumentos que efetivem a função social da Justiça do Trabalho,
aplicando adequadamente as normas trabalhistas.
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Conclusão [Marviane Silva de Souza]: Portanto, a Justiça do Trabalho
fora criada, oficialmente, no ano de 1931. Entretanto, como demonstrado no
presente trabalho, essa escolha se deu por mera conveniência política. Assim,
de fato, o que criou essa justiça especializada foi a realidade social, visualizada
por meio das Comissões Mistas de Conciliação e das Juntas de Conciliação e
Julgamento.
As Comissões e Juntas inauguram, em âmbito nacional, mesmo que de
maneira precursora e de forma administrativa, uma especialização relativa
aos conflitos de trabalho. Entretanto, elas se limitaram a uma tentativa de
conciliação e não possuíam poder de executar suas próprias decisões. Além
disso, eram vinculadas ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Entretanto, em 1922, no estado de São Paulo, fora criado o Tribunal
Rural, constituindo-se na primeira tentativa de se organizar uma Justiça do
Trabalho em âmbito nacional.
Assim, até 1941, teve-se uma Justiça do Trabalho Administrativa, tendo em vista sua vinculação com o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Apesar de sua autonomia ter-lhe sido concedida, a Justiça do Trabalho somente passou a ser integrante do Poder Judiciário em 1946.
Quanto aos juízes leigos, instituto presente desde a criação dessa justiça
especializada, teve seu fim estabelecido em 1999. É importante destacar que
esse instituto era a concretização da especialização da própria justiça. A representação paritária poderia em muito contribuir para uma justiça mais consciente dos conflitos trabalhistas, ou seja, mais humanitária e realista. Por fim,
foram destacadas algumas temáticas pertinentes à Justiça do Trabalho.
No tocante ao jus postulandi das partes no processo trabalhista, foi constatada sua sobremaneira inviabilidade prática. Assim, entendemos pela indisponibilidade do advogado, pois do contrário, ocorreria uma desigualdade
processual, já que uns teriam auxílio técnico enquanto outros não.
Além do mais, não se estaria ferindo o direito constitucional de acesso
à Justiça, pois tal garantia não se limita a um direito de postulação. Desse
modo, com data vênia, poderia solucionar-se tal impasse com a criação de
uma Defensoria Pública Trabalhista, o que garantiria o amplo e efetivo acesso
à Justiça e que, definitivamente, tornaria inócuo o jus postulandi.
No tocante às Comissões de Conciliação Prévia, concluímos que sua
obrigatoriedade seria inconstitucional, pois obstruiria o princípio da inafastabilidade do acesso à Justiça. E outra, não se pode exigir uma etapa pré-
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processual obrigatória que se justificaria apenas como mecanismo para “desafogar” o Poder Judiciário. Assim, melhor seria reformular a própria Justiça
do Trabalho para torná-la mais célere, como, por exemplo, com sua expansão
no número de serventuários e de magistrados.
Por fim, a Justiça do Trabalho permanece cumprindo o papel para o
qual fora esculpida, qual seja, ser uma justiça especializada nas causas oriundas de conflitos da relação laboral. Fora esculpida para ser uma Justiça mais
célere, menos onerosa e com menor formalismo. Todavia, tais objetivos ainda
não foram alcançados e ainda se encontram distante de serem.
Nota-se que a Justiça do Trabalho tem se tornado cada vez mais técnica
e formalista. A celeridade já não mais ocorre, diante de inúmeros processos
que se abarrotam. E por último, vem a ser tão onerosa quanto a Justiça Comum, e diante do tecnicismo pleitear em juízo sem o auxílio de um advogado
se torna cada vez mais inviável.
Porém, deve-se salientar a importância da Justiça do Trabalho hoje e
nos seus setenta anos de existência, cumprindo seu papel de ser uma justiça
especializada nos dissídios trabalhistas.
Sayonara Grillo toma posse no TRT-1
A desembargadora Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva tomou
posse, no dia 25 de junho de 2012, no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª
Região. Ela preenche vaga do Quinto Constitucional da Advocacia, ocupando
o lugar decorrente do falecimento de José Maria de Mello Porto, assassinado
em 2006.
I Encontro Estadual de Advogados Trabalhistas – ENEAT
Nos dias 10 e 11 de maio de 2012, ocorreu na sede Seccional o I Encontro
Estadual de Advogados Trabalhistas (ENEAT). O evento debateu assuntos
como Constituição, trabalho e capitalismo; conflitos coletivos; terceirização;
indispensabilidade do advogado na Justiça do Trabalho, honorários e Comissão da Verdade.
Ao abrir o Encontro, o presidente da Seccional, Wadih Damous, ressaltou
a necessidade de se atentar para a flexibilização excessiva do Direito do Trabalho. Também participaram da mesa de abertura os presidentes da Caarj,
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Felipe Santa Cruz, e da Comissão de Justiça do Trabalho (CJT) da OAB/RJ,
Ricardo Menezes, o secretário-geral da Seccional, Marcos Luiz Oliveira, o
membro da CJT Nilson Xavier e a diretora do Centro de Documentação e Pesquisa, Daniele Gabrich Gueiros.
Oitenta anos da OAB
As comemorações dos 80 anos foram abertas com uma festa que reuniu
2 mil advogados no Píer Mauá. Durante o evento, os convidados puderam
assistir à exibição de um vídeo que contou a história da OAB ao longo dessas
oito décadas e, em seguida, curtir uma apresentação de Gilberto Gil, que cantou
alguns dos seus maiores sucessos, como Andar com fé, Palco, A paz, Procissão,
Domingo no parque, Não chore mais e Esotérico. O evento, que incluiu também
uma esquete de humor, foi totalmente custeado por patrocínios.
OAB/RJ apóia documentário sobre Sobral Pinto
Reconhecido como um dos maiores juristas brasileiros da história e ferrenho defensor dos direitos humanos, Sobral Pinto é tema de documentário
financiado com o apoio da OAB/RJ. O convênio nesse sentido foi assinado no
dia 24 de janeiro pelos presidentes da Seccional, Wadih Damous, e da Caarj,
Felipe Santa Cruz, e pelos produtores Augusto Casé e Paula Fiuza (também
diretora do longa).
O documentário, Sobral – o homem que não tinha preço, que concorre
ao prêmio do festival em sua categoria, destaca momentos simbólicos da atuação do advogado, como a célebre petição em que invocou a Lei de Proteção
aos Animais em favor do dirigente comunista Harry Berger, que estava preso
e sendo torturado.
Dando continuidade à homenagem prestada a esse grande jurista, a
OAB/RJ anunciou que Sobral Pinto dará nome ao prédio da sede da Seccional.
Durante o ato, o presidente Wadih Damous concluiu: “Fecho com chave de
ouro minha gestão, prestando a Sobral este tributo, mais do que merecido, da
advocacia”.
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a) Livro
LIRA, Ricardo-César Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. 400 p.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2006.
b) Artigo
HABERMAS, Jürgen. O falso no mais próximo: sobre a correspondência Benjamin/Adorno. Novos
Estudos Cebrap, São Paulo, n. 69, p. 35-40, jul. 2004.
c) Capítulo de livro
PEREIRA, Antônio Celso Alves. Apontamentos sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
In: GUERRA, Sidney Cesar da Silva. (Org.). Temas Emergentes de Direitos Humanos. Campos dos
Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006. p. 29-42.
d) Dissertações e Teses
MARQUES, Ana Flávia. Novos parâmetros na regionalização dos territórios: estudo do zoneamento
ecológico-econômico (ZEE) na Amazônia legal e das bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul.
Santa Cruz do Sul, 2006. 189f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2006.
e) Artigo e/ou matéria de revista em meio eletrônico
WACQUANT, Loïc. Elias no gueto. Rev. de Sociologia e Política, Curitiba, n. 10, jun. 1998. Disponível
em: <http://www.humanas. ufpr.br/publica/revsocpol>.
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