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Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá e
Escola da Magistratura Mato-Grossense, v. 4, p. 149-174, jan./dez. 2016
A versão ou o fato: uma discussão necessária
Lourembergue Alves1
R esumo
Este artigo procura discutir a supervalorização da versão em
detrimento do fato nos discursos jurídico e político. Discursos que,
definitivamente, não assumem uma posição neutra. E eles podem ser
avaliados quando confrontados com os interesses diferentes de seus
enunciadores.
Palavras-chaves: Discurso. Retórica. Fato. Versão
Introdução
Neste artigo, de certa forma, tenta-se prolongar a reflexão do
texto anterior, publicado também por esta revista2. A escolha do tema
agora, então, se prende ao planejamento anterior. Novamente tendo
como impulso reflexivo obras literárias. Estas, estranhamente, passam
longe das salas de aula do curso de Direito. Isto é bastante grave.
Bem mais do que se possa imaginar, pois vende a falsa ideia de que
uma única área do saber (a Ciência Jurídica) monopoliza o poder
de responder a todas as indagações da sociedade. Trata-se, portanto,
de um pensamento equivocado, repetido em seminários e nas ditas
semanas jurídicas. Ainda que se tenham, nestes encontros, assuntos
amplamente estudados pela sociologia, antropologia, psicologia e
1
Professor da Faculdade de Direito/Universidade de Cuiabá/Kroton. Membro do Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso e ocupa a Cadeira número 6 da Academia Matogrossense de Letras. Mestre em Educação, Historiador, Cientista Político e autor de 9 livros,
dos quais 8 são sobre a política e ao jogo político-eleitoral da região mato-grossense. Está
escrevendo mais 3 obras. Além disso, já escreveu mais de 16 mil textos – na imensa maioria
deles sobre as questões políticas, mas também fazem parte desta lista contos e artigos
científicos - publicados em jornais e revistas especializadas. Articulista do Jornal A Gazeta e
Comentarista político do programa CBN/Cuiabá e da TV Pantanal, Canal 22.
2
Ciência Política, História e Literatura: um diálogo através do “Espelho”. Revista Jurídica da
UNIC/EMAM. Cuiabá, v. 1, n. 1, jul./dez. 2013. Disponível em: http://emam.org.br/arquivo/
documentos/9c3d7c94-37a7-43d4-901a-d68890954862.pdf Acesso em: 17 out. 2015.
A versão ou o fato: uma discussão necessária
história. Profissionais destas ciências, contudo, não se fazem presentes
nos ditos encontros promovidos por professores e alunos do curso de
Direito. Estranho!
Este artigo científico, portanto, sai fora deste pensamento
único. E o motivo é óbvio: inexiste fronteira entre as áreas do saber.
O que permite que haja uma troca, um intercâmbio entre elas.
O resultado disso é sempre muitíssimo bom. Por isso, este estudo
recorre sim às obras literárias para melhor entender o assunto
proposto, e entre tais obras, a principal delas, “O Estrangeiro”, de
Albert Camus. Afinal, conhecer é trazer para perto do sujeito algo
que se coloca como objeto.
Por falar em objeto. Tem-se aqui como objeto de estudo
a versão em detrimento do fato nos discursos jurídico e político.
Tema já discutido, mas ainda não esgotado. Nem mesmo agora.
Isto porque obra alguma, ou estudo algum pode se dar ao luxo de
se colocar como dono da verdade. Ainda que se tenha o discurso
como alvo de reflexão.
O discurso e a ação, no dizer Hannah Arendt, são os modos
pelas quais os homens se manifestam uns aos outros, revelam suas
identidades pessoais e singulares e apresentam-se ao mundo humano3.
E o tal processo, o de revelar-se e apresentar-se, tem como condição
básica a própria pluralidade.
Por isso, vale lembrar, a pluralidade humana é a argamassa da
política, cujo espaço não é outro senão o público, e está centrada
na liberdade – uma espécie de oxigenação do viver no Estado, na
cidade e, enfim, na polis, numa referência aos gregos. Ainda que
cheia de conflitos, e, em meio a estes, ou até por conta destes, a força
da palavra, ou para ser mais preciso, a força do “bem falar”, que é a
própria retórica – a corruptora do conteúdo dos discursos, assim como
também a encobridora do real, no entender de Nietzsche4. A palavra,
3
ARENDT, Hannah. Condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005. p. 188.
4
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Tratados filosóficos. Traducción, introducción y notas de
Eduardo Ovejero y Maury. Buenos Aires, Argentina: M. Aguilar, 1957, p. 54 (Obras completas
de Frederico Nietzsche).
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neste caso, serve igualmente aos interesses daqueles que, ocupando o
poder, pronunciam seu discurso em detrimento dos demais.
Neste cenário, grávido de discursos, seria importante, então,
perguntar: que tipo de interesse os discursos escondem? Indagação
que deve ser feita em quaisquer situações e, igualmente, a todo
movimento, ação, conduta e práticas.
Indagação que deve ser feita também pelo telespectador,
ouvinte e leitor. Até porque o escritor lança mão dos mesmos recursos
que estão disponíveis, pois inexistem recursos retóricos exclusivamente
literários. Razão pela qual se pode encontrar o estilo culto, elevado,
gíria, arcaísmo, opulento, opacidade, claro e até figuras que causam
ou não estranhamento.
Justifica-se, portanto, o buscar obras literárias para o
desenvolvimento deste artigo.
Justifica-se, por outro lado, o tema deste artigo. Bem mais
quando se tem ciência da supervalorização da versão e pouquíssima
atenção ao fato. Isso não apenas no campo político, onde a fala
consiste em negar o interesse próprio do representante em proveito
dos interesses do representado – dando, assim, fundamento ao
princípio da representação -, mas também no discurso jurídico.
Os crimes e suas versões
Um crime, duas sentenças. A primeira levou a cassação do
prefeito de Rondonópolis e a segunda, absolveu o candidato derrotado
a prefeitura de Cuiabá. Mesmo que a legislação eleitoral tipifique como
crime o abuso do poder econômico e proíba a distribuição de brindes
aos eleitores, a exemplo de camisetas5. A menos que as camisetas,
5
Os brindes eram proibidos em 2008, tanto quanto os são agora, conforme a Resolução
do TSE 23.370/2011. Nesta, no seu artigo 9º, inciso IV e parágrafo 3º. “São vedadas na
campanha eleitoral confecção, utilização, distribuição por comitê, candidato, ou com a sua
autorização, de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer
outros bens ou materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor, respondendo o
infrator, conforme o caso, pela prática de captação ilícita de sufrágio, emprego de processo
de propaganda vedada e, se for o caso, pelo abuso de poder (Lei nº 9.504/97, art. 39, § 6º,
Código Eleitoral, arts. 222 e 237, e Lei Complementar nº 64/90, art. 22) [...]” (Disponível em:
http://www.presp.mpf.gov.br/index.php?option=com_remository&Itemid=255&func=startd
own&id=888 Acesso em: 09 ago. 2012).
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conforme apregoou o advogado de defesa, sejam “entregues a cabos
eleitorais no início da eleição”, e não a eleitores6, como se aqueles não
fossem também votantes.
Percebe-se, aqui, uma inversão, a saber: o direito deixou de ser
convencimento para se transformar em persuasão. Nada vale, então,
o fato. Mas, isto sim, a versão que é dada pela palavra, pelo discurso.
Denúncia que aparece, claramente, em “O estrangeiro”7, em especial
quando o advogado de defesa, “já sem paciência”, gritou: “Afinal”,
Mersault, seu cliente, “é acusado de lhe ter morrido a mãe ou de matar
6
“O empresário Mauro Mendes (PSB) foi absolvido, por unanimidade, pelo Tribunal Regional
Eleitoral das acusações de compra de votos, gastos irregulares e abuso de poder econômico,
pela aquisição e distribuição de 5,6 mil camisetas com a logomarca de seu antigo partido,
o PR. As acusações são referentes à campanha eleitoral de 2008, quando Mendes disputou
a Prefeitura de Cuiabá, pela coligação “Compromisso por Cuiabá”. Foi absolvido das
acusações pela juíza da 51ª Vara Eleitoral, Rita Soraya Tolentino de Barros. Ela entendeu
que as camisetas não foram distribuídas aos eleitores, e sim utilizadas pelos cabos eleitorais
do então candidato, como uniformes para trabalhar na campanha. O mesmo entendimento
foi acolhido pelos integrantes do Corte Eleitoral. Já o relator do processo, André Luiz de
Andrade Pozete, destacou que, quanto às doações de camisetas, o que supostamente teria
sido caracterizado como compra de voto, não foi comprovada a existência do ilícito eleitoral.
Mauro Mendes também teve ao seu favor o parecer do Ministério Público Eleitoral, que foi
pelo desprovimento do recurso. O procurador eleitoral, Marcellos Barbosa Lima, ratificou o
posicionamento do procurador Thiago Lemos de Andrade, que avaliou que o fato em análise
não foi possível afirmar que “o então candidato quis comprar votos dos eleitores com a doação
das camisetas”. Durante a sustentação oral, o advogado de Mauro Mendes, Paulo Taques,
explicou que o candidato contratou cinco mil pessoas para a campanha política. Destas,
cerca de dois mil cabos eleitorais receberam duas camisetas para usarem como uniforme.
“Esse processo ganhou relevância por conta da Lei da Ficha Limpa”, disse. “Esse processo não
é análogo aos demais já julgados pelo Tribunal Eleitoral, pois não houve benefício nenhum aos
eleitores, as camisetas não foram distribuídas, e sim entregues aos cabos eleitorais”, destacou.
O juiz Pedro Francisco da Silva afirmou que a única semelhança existente entre o processo de
Mauro Mendes e do prefeito cassado de Rondonópolis, José Carlos do Pátio (PMDB), são apenas
referentes ao pleito de 2008 e por envolver compra de camisetas (...)” “O problema é que, no caso
de Zé do Pátio, as camisetas tiveram um efeito surpresa, foi feito nas vésperas da campanha. A
quantidade de camiseta não era condizente com as da equipe de trabalho. Esses são os elementos
fundamentais que levaram a cassação de mandato”, disse” (SOUZA, Laíce. Mauro Mendes é
absolvido pelo TRE e garante candidatura. Midianews. Cuiabá, 29 jun. 2012. Disponível em:
http://www.midianews.com.br Acesso em: 20 jul. 2012).
7
Livro dividido em duas partes. Na segunda parte, Camus trata do crime, prisão e julgamento
de Mersault – que tem como característica básica a indiferença pela própria mãe e ao
restante da sociedade e do mundo. Perfil marcado pelo conflito existencial, o qual, na
verdade, é traçado na primeira parte do romance. A ideia do seu autor – acertada, por sinal
- é familiarizar o leitor com o personagem. Trata-se de um jovem escriturário, trabalhador
e que paga suas contas em dia e se relaciona com mulheres. Porém, sem ambições,
conformado com a vida que tem, sem muita empatia social. Toca o seu dia-a-dia apenas com
contentamentos imediatos como nadar ou dormir com sua namorada, Marie. Para ele, tanto
faz uma posição melhor no escritório, morrer jovem ou velho. Até o instante em que comete
um assassinato e vai para julgamento. Aqui, há uma grande crítica ao sistema judiciário, mais
precisamente como o julgamento pode ser falho (CAMUS, Albert. O estrangeiro. São Paulo:
Circulo do Livro, 1975, 122 p.).
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um homem?”8. Indagação sem sentido para o promotor, a quem “as
duas ordens de fatos havia uma relação profunda, patética, essencial”9.
Tanto havia relação que ele, o promotor, preferiu falar mais da
atitude. Pois “no dia seguinte à morte de sua mãe, este homem tomava
banho de mar, iniciava um relacionamento irregular e ia rir diante de um
filme cômico [...] Matou” o árabe “por motivos fúteis e para liquidar um
inqualificável caso de costumes”10.
O silêncio tomou conta do Tribunal. Mas, antes que alguém
tivesse tempo para rememorar o acontecido, o representante do
Ministério Público assim pronunciou: “Provarei o que digo, senhores, e
eu o farei duplamente. À luz ofuscante dos fatos, em primeiro lugar, e, em
seguida, sob a iluminação sombria que me será fornecida pela psicologia
desta alma criminosa”11.
Nova pausa. Desta feita, bem curtinha, para imediatamente
prosseguir com o resumo dos fatos, a partir da morte da mãe de
Mersault. Relembrou a insensibilidade do criminoso que, sequer,
tinha conhecimento da idade de sua genitora – largada no asilo. O
promotor falou novamente do banho de mar, do filme de Fernandel12
8
Idem, p. 96.
9
Ibidem, p. 96.
10 Ibidem, p. 94, 96.
11 Ibidem, p. 100.
12 “Ator do cinema francês, nascido em Marselha, conquistou a fama além das fronteiras de
seu país nos anos 50 com a interpretação memorável do religioso Dom Camilo, personagem
de grande apelo popular criado pelo italiano Giovanni Guareschi. Quando a guerra fria
estava no auge, ele interpretava o cura católico que falava com Cristo e estava em conflito
permanente com o prefeito comunista da cidade, personificado por Gino Cervi. Seu sucesso
no cinema proporcionou a filmagem de três episódios, entre eles, O Pequeno Mundo de
Dom Camilo, em 1951. Seguiram-se diversas comédias onde Fernandel passou a personificar
um palhaço, como em Férias em Paris (Paris Holiday, 1958, ao lado de Bob Hope), Patrão
Gangster (1959), O Grande Chefe (1960) e uma ao lado do ator italiano Totó, A Lei é a
Lei (1959). Com uma carreira iniciada em 1934, ao atuar no filme dramático Angele, sua
filmografia inclui cerca de vinte participações nas telas, entre elas, Fruto Proibido, de 1962.
Sempre divertido em suas entrevistas, Fernand Contadin certa vez comentou: “O beijo
de cinema só oferece realmente um perigo para os artistas: é quando um deles está resfriado.
No mais, o beijo dado diante das câmaras é absolutamente inócuo, embora nem sempre seja
completamente inodoro”. A partir do início da década de 60, não mais solicitado pelos
diretores, Fernandel viu a trajetória artística desaparecer quase que por completo. Chegou
a representar novamente o palhaço numa comédia musical, sua última performance dois
anos antes de seu falecimento em Paris, ocorrido em 26 de fevereiro de 1971, aos 67 anos de
idade. Filmes que participou: 1934: Angele (Angèle)
1937: Carnê de Baile (Un Carnet de Bal)
1939: Fric-Frac (idem)
1951: O Pequeno Mundo de Dom Camilo (Le Petit Monde de Don Camillo)
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e, por fim, chegou à história de Raymond – amigo do assassino – e
quem foi ferido na praia por seus inimigos, entre eles o árabe.
Encontro casual. Não para o promotor, cuja narração ganhava
força quando Mersault – armado – voltou sozinho à praia, unicamente
com o fim de abater o árabe com cinco balas, “calmamente, com
firmeza, de uma forma de certo modo consciente”13. Opinião que se
acompanhava do “esperar que a justiça dos homens soubesse castigar
sem fraquejar”. Não sem antes reafirmar do horror que o dito crime
lhe inspirava, bem mais depois da comprovada insensibilidade de seu
autor. Pois, na opinião dele, “um homem que matava moralmente a
mãe devia ser afastado da sociedade, exatamente como o que levantava
a mão criminosa contra o autor de seus dias”14. “Em todos os casos, o
primeiro preparava os atos do segundo, anunciava-os, de certa forma,
e legitimava-os”15. Daí o pedido de pena de morte. Fazia-o “sem
escrúpulos”. Isso porque, ao longo da sua carreira profissional, jamais
sentiu como agora este “penoso dever tão compensado, equilibrado,
iluminado pela consciência de um mandamento sagrado e imperativo
e pelo horror” que sentiu “diante de um rosto humano onde nada” se
1951: A Estalagem Vermelha (L’Auberge Rouge)
1952: Cabeleireiro das Arábias (Coiffeur pour Dames)
1973: A Volta de Dom Camilo (Le Retour de Don Camillo)
1954: Ali Babá e os Quarenta Ladrões (Ali-Baba et les Quarante Voleurs)
1954: O Carneiro de Cinco Patas (Le Mouton à Cinq Pattes)
1956: A Volta ao Mundo em 80 Dias (Around the World in Eighty Days)
1957: Os Amores de Dom Juan (El Amor de Dom Juan)
1958: Férias em Paris (Paris Holiday)
1959: A Vaca e o Prisioneiro (La Vache et le Prisonnier)
1959: Patrão Gangster (Le Grand Chef)
1959: A Lei é a Lei/Contrabandista à Muque (La Legge è Legge)
1960: O Grande Chefe (Le Caïd)
1962: Fruto Proibido/O Diabo e os 10 Mandamentos (Le Diable et les 10 Commandements)
1964: A Idade Ingrata (L’Âge Ingrat)
1965: Don Camilo em Moscou - Il Compagno Don Camillo” (Memorial da fama. Disponível
em: http://memorialdafama.com/biografiasEI/Fernandel.html Acesso em: 28 ago. 2012).
13 Ibidem, p. 101.
14 Isso porque Mersault não acredita em Deus, e quem não crê no criador do universo e
dos homens, no entender do promotor, tem mãos criminosas, pois estão sempre erguidas
contra “o autor de seus dias”. É inacreditável ter alguém que não acredita em Deus, pois
todos os homens acreditavam, mesmo os que lhe viravam o rosto. “Nunca vi uma alma tão
empedernida quanto a sua” – dissera o juiz a Mersault (CAMUS, Albert. Op. cit., p. 69). Este, na
verdade, foi condenado pela sua maneira de ser, e porque nele não há lugar para emoções
em tudo que observa. Nada o toca. Tanto que vai ao enterro da própria mãe, e lá não
demonstra qualquer dor, apenas a sensação de querer estar longe dali.
15 CAMUS, Albert. Op. cit., p. 102.
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pode ver, a não ser o retrato de um monstro16.
“Eis a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade”17.
Frase, no contexto da obra, que representa uma nova crítica de Camus
às instituições jurídicas, em especial o julgamento como evento social,
o descomprometimento da justiça com os fatos e, enfim, por condenar
um homem que é incapaz de adaptar-se à vida social.
A repressão, então, passa a ser algo normal da sociedade.
Balzac mostrou bem tal situação, mas foi Kafka18 quem viu de que
maneira a função de reprimir adquiriu um sentido transcendente, ao
ponto de tornar a sua própria finalidade, e, quando isso ocorre, diz,
ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
Explica-se, portanto, a descrença na justiça. Pune-se, ainda que
inexista motivo, e, o pior, a materialidade da culpa perde o sentido19.
Prevalece, aqui, o chamado “xadrez das palavras”. Neste, sobressai
o que não diz as coisas como elas são, uma vez que prefere valerse do jogo que sempre existe entre as palavras e as coisas, entre
aquelas e as ideias, e, como diz Warin, “serve-se do poder perturbador
16 Diferentemente, portanto, da leitura do advogado de defesa, que lera que Mercsault “era um
bom homem, um trabalhador metódico, incansável, fiel à casa que lhe deu emprego, além de
ser amado por todos, participando das desgraças dos outros”. Para ele, Mersault “era um filho
modelo, que sustentara a mãe enquanto conseguira”. Tanto que “esperava que um asilo desse
à idosa senhora o conforto que seus meios” não permitiam oferecer-lhe. A defesa confessou
se surpreender com o barulho por causa do dito asilo. Porque afinal, se fosse preciso dar
uma prova da utilidade e da grandeza dessas instituições, teria de acentuar que “é o próprio
Estado que as subvenciona”. Para concluir, o advogado mencionou o fato de que os jurados
“não gostam de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario;
e pediu as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos
castigos”, seu cliente já arrastava consigo. De nada, porém, adiantou, ele foi condenado
(CAMUS, Albert. Op. cit., p. 103-105).
17 Frase pronunciada pelo advogado de defesa, e dita em um tom peremptório; enquanto
o promotor conservava a fisionomia fechada, mesmo diante do riso do público (CAMUS,
Albert. Op. cit., p. 92).
18 Em seu mais famoso romance, o protagonista Joseph K. foi acusado e executado sem nem
mesmo ter a culpa formada ou a identidade criminal verificada. A fórmula de Feuerbach é
simplesmente inexistente: não se sabe qual o crime. Joseph K. também não pôde ter acesso
aos autos de acusação. O advogado faz parte da engrenagem do sistema, simplesmente
existindo. As audiências eram marcadas em domingos (para não atrapalhar a vida do
protagonista). Não se sabe quem é o juiz ou quem de fato julgará. Isso porque, na lógica do
medo, o poder é diluído (Foucault), não se sabendo a autoridade coatora. Constrangedor,
árido, real, secreto e privado são alguns adjetivos passíveis ao romance. Sua identidade
central, entretanto, nos revela que o processo kafkiano é um mecanismo unilateral, só
existindo para acusar (KAFKA, Franz. O processo. Traduzido por Modesto Carone. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, 272 p.).
19 CANDIDO, Antonio. A verdade da repressão. Revista Discurso. São Paulo, n. 10, p. 5, jun. 2000.
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que a linguagem traz em si, mesmo quando não se refere a nada, para
impressionar, enfeitiçar, comover – como já assinalava Berkeley” –
embora “esvaziada de significação, continua um falar que não sabe do
que fala, nem o que diz é verdadeiro” 20.
Até porque no discurso prescritivo ou persuasivo, diferentemente
do demonstrativo, categórico e descritivo, a única indagação que
cabe “é saber se a conclusão sugerida é aceita ou reprovada”21.
Entende-se, agora, o porquê o discurso jurídico é
fundamentalmente persuasivo. Caráter determinado e imposto, aliás,
pela própria relatividade dos direitos. E é este mesmo caráter que,
por sua vez, determina a presença das falácias em seu conteúdo.
Existências, na verdade, inevitáveis. O que abarca toda classe de
recursos argumentativos, que tendem “a impor uma conclusão”, não
derivada logicamente, mas “que logra sua aceitação por associação
psicológica e emotiva”, e ademais por “coincidência valorativa, que
se desperta e que faz decidir a escolha de uma alternativa significativa,
desejada e sugerida pelo emissor”22.
Nesse sentido, cabe tomar de empréstimo as teses de defesa dos
réus do mensalão23 que, para livrá-los de condenação pelos crimes de
20 WARIN, François. O império das palavras. Traduzido por Gilda de Mello e Souza. Revista
Discurso. São Paulo, ano I, n. 2, 1971, p. 30.
21 WARAT, Luis Alberto. As falácias jurídicas. Traduzido por Horácio Wanderlei Rodrigues.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/16702/15255.
Aceso em: 10 dez. 2013.
22Idem.
23 Mensalão é o nome dado pela mídia a um caso de denúncia de corrupção política mediante
compra de votos de parlamentares ainda no primeiro mandato do governo de Luís Inácio
Lula da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores). Tal compra de votos foi denunciado pelo
deputado federal Roberto Jeferson (PTB/RJ), que se sentiu pressionado pela acusação
de envolvimento em processos de licitações fraudulentas, praticadas por funcionários da
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), ligados ao PTB, partido do qual ele era
presidente. De acordo com sua denúncia, os parlamentares mensaleiros seriam do PL (Partido
Liberal), PP (Partido Progressista), PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e
do próprio PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Inestigações foram feitas, chegando a um
núcleo responsávlel pela compra dos votos e também pelo suborno por meio de cargos em
empresas públicas. José Dirceu, então ministro da Casa Civil, foi apontado como o chefe do
esquema; enquanto o empresário Marcos Valério, que detinha – a época – o maior número
de contrato de trabalho publicitário com órgãos do governo, seria o arrecadador do dinheiro
junto a empresas estatais e privadas (a exemplo das empresas controladas por Daniel Dantas,
Brasil Telecom, controladora da Telemig e da Amazonia Telecom) e em bancos, através de
empréstimos que nunca foram pagos; ao passo que os pagamentos aos mensaleiros eram
realizados por Delúbio Soares – tesoureiro do PT. Estabelecia, desse modo, o cerco. E isso
levou a cassação dos mandatos de deputado federal de Jefferson (14 de setembro de 2005)
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corrupção ativa e corrupção passiva, convergiam na prática de caixa
2 eleitoral, e não um esquema de compra de votos de parlamentares,
conforme a peça de acusação.
Um dos advogados, por exemplo, alegou não saber “qual é o
crime antecedente” a ser enfrentado. “Não está escrito na denúncia. Não
vem nas alegações finais”. Sabia – isto sim – “que se tratava de dinheiro
não declarado, mas o seu cliente desconhecia sua possível origem ilícita”,
e o sacou apenas porque cumpria ordens e quem o recebeu não sabia
do que se tratava. Assim, “se o dinheiro foi lavado, ele já chegou limpo no
diretório regional do PT”, com o qual se pagou “dívidas de campanha”,
sustentou24; no mesmo instante em que, ao lado dos demais colegas
profissionais, se valiam de artifícios totalmente alheios às verdades dos
autos, tais como trechos de músicas, da telenovela “Avenida Brasil”,
da Rede Globo, e houve até quem recorresse à poesia mística: “Vejo
uma pinta negra nas asas da sétima pomba. Hoje, naquele vale, o povo
fala de sete pombas negras que levantaram voo rumo aos cumes da
montanha nevada”, do poeta Gibran Khalil Gibran25. “Não se justifica
o injustificável”, observava, em sessão anterior, o Procurador-Geral
da República, Roberto Gurgel, para quem o “esquema” de desvio do
erário ocorria enquanto “dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem
e de José Dirceu, que já havia deixado a Casa Civil (1º. de dezembro de 2005). Assim,
em agosto de 2007, mais de dois anos após ser denunciado o esquema, o STF (Supremo
Tribunal Federal) acatou a denúncia da Procuradoria Geral da República e abriu processo
contra quarenta envolvidos no escândalo do Mensalão. Entre os réus, estão: José Dirceu,
Luiz Gushiken, Anderson Adauto, João Paulo Cunha, Marcos Valério, Roberto Jefferson, os
quais responderão por crime de corrupção passiva e ativa, formação de quadrilha, lavagem
de dinheiro, entre outros. Sete anos após o caso vir à tona, no dia 2 de agosto de 2012
começou o julgamento dos 38 réus acusados de envolvimento no esquema de compra de
apoio político da Câmara nos dois primeiros anos do governo Lula. Doze foram absolvidos
e um teve o caso desvinculado do processo. Somadas, as penas atingem 282 anos de prisão
e o pagamento de multa de, pelo menos, R$ 22,7 milhões. Após oito anos da revelação do
escândalo, o Supremo Tribunal Federal determinou execução das penas de condenados por
envolvimento no esquema do mensalão. Dos 25 condenados, dezoito cumprem pena e o
ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, que estava foragido na Itália, foi preso
pela polícia italiana no início de fevereiro de 2014, por porte de documentos falsos. Sua
extradição, contudo, ainda deve demorar – se é que um dia possa a vir ocorrer.
24 CASTELO BRANCO, Zanuja. Defesa reforça tese de caixa dois e nega outros crimes. Carta
Maior. Disponível em: http://blogdoitarcio.blogspot.com.br/2014/02/a-carta-capital-esta-seendireitando.html. Acesso em: 10 dez. 2013.
25 BORGES, Laryssa. Da novela das oito a Rui Barbosa: o sarau do mensalão. Veja. São Paulo,
10 ago. 2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/de-novela-das-oito-a-ruybarbosa-o-sarau-do-mensalao Acesso em: 03 set. 2012.
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perceber que era subtraída em tenebrosas transações”26 – resumia tudo
neste trecho de um dos versos de Chico Buarque.
Ocorria, assim, o contraditório. Porém, o direito se resumia em
um duelo da retórica. Isso se dá porque a parte defensora se recusava
adentrar-se “a porta da verdade”, parafraseando aqui Carlos Drummond
de Andrade, e não porque a tal porta “só deixava passar meia pessoa de
cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade”. Não foi por isso,
contudo,queadefesa“optouconformeseucapricho,suailusão,suamiopia”27.
De todo modo, entretanto, cabe recordar que as falas,
a literatura, os textos e, enfim, os discursos de uma forma geral
admitem muitas interpretações, sem ser, contudo, qualquer
interpretação. Isso significa que se devem procurar pistas textuais
capazes de conduzirem à correta leitura do texto – ainda que este
venha em forma de uma defesa oral. A propósito, vale retomar a
leitura do poema “Verdade”, de Carlos Drummond de Andrade.
Afinal, a verdade e o ideal são relativos, e, como tais, são mediados
pelo sujeito. Nesse sentido, filosoficamente, a verdade, como
valor absoluto, existe, ainda como “porta”, “toda ela”. Entretanto,
individuo algum a atinge. Mesmo que seja um representante dela.
Certamente porque a verdade que cada sujeito assume resulta-se
de uma escolha determinada por razões subjetivas. Por isso o poeta
fala em “seu capricho, sua ilusão, sua miopia”. E Drummond sabia que
as razões subjetivas são alheias ao que se convencionou entender
por verdade, em conformidade com o real, exatidão, realidade.
Falseiam-se, então, as realidades. Detalhe bastante claro, por
exemplo, na defesa de Raul Fernando do Amaral Street – assassino
confesso da própria mulher, Ângela Diniz. Segundo a denúncia do
Ministério Público, no dia 30 de dezembro de 1976, Doca Street
retornou a residência da vítima para reatar a ligação amorosa, horas
antes acabada. Ângela, porém, recusou qualquer reconciliação. O
casal chegou a discutir, e, quando a mulher se encontrava na direção
26
BORGES, Laryssa. Op. cit.
27 ANDRADE, Carlos Drummond de. Verdade. Disponível em: http://drummond.memoriaviva.
com.br/alguma-poesia/verdade/. Acesso em: 10 dez. 2013.
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do banheiro, Raul a interrompeu. Desferiu vários tiros contra a face
e o crânio de Ângela, que morreu imediatamente. Preso, Doca foi
julgado em 1980. Na ocasião, seu advogado, Evandro Lins e Silva,
iniciou por saudar os jurados, elogiou de forma explícita a cidade de
Cabo Frio, anunciou que aquele seria o último júri em que participava
e, finalmente, disse não haver razão para mandar o acusado para a
prisão, uma vez que este era uma pessoa que podia ser útil a sua família
e à sociedade. Cortou este raciocínio para dizer que o júri é uma
instituição democrática e que ao julgar as causas os jurados necessitam
conhecer as personagens envolvidas. Isso para melhor estabelecer até
que ponto a participação da vítima contribuiu para o resultado final.
Em seguida, Evandro Lins falou sobre a personalidade, família
e formação de Doca Street. Não sem antes deixar de acrescentar que
seu cliente era um passional, um criminoso de ocasião, e não um
delinquente habitual. Encontrava-se perdidamente apaixonado por
aquela mulher. Mas a paixão não era boa conselheira. Ainda mais em
se tratando de uma “mulher fatal”.
Cada palavra sua provocava uma doze de emoção nos
presentes. Estes novamente tiveram que ouvir que aquele seria o
último júri do advogado, o qual finalizou do seguinte modo:
Jurados julguem-o. Eu confio na vossa justiça! Eu sempre confiei
no Tribunal do júri do meu país. Absolvam-o, jurados, e tereis feito
justiça! (Aplausos prolongados, o orador não contém as lágrimas e é
cumprimentado por seus colegas.28
O resultado, porém, não poderia ser outro senão a aceitação
da tese do excesso culposo no estado de legítima defesa. A pena
foi fixada em apenas dois anos de detenção, com a concessão do
direito ao sursis29. Também, pudera, a argumentação da defesa fugiu
28 PAULO FILHO, Pedro. Grandes advogados, grandes julgamentos. 3. ed. Campinas: Millennium,
2003. p. 213.
29 O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, contudo, anulou o dito julgamento. Isso
levou Doca Street a um novo julgamento. Neste, que Evandro Lins e Silva não participou,
o réu foi condenado a cumprir pena de homicídio. Condenação que se deu em razão da
repercussão que o dito crime tomou no seio da sociedade. Pois o tema de “quem ama não
mata” preencheu pautas dos meios de comunicação, e estes instigaram a população, que
passou a discutir e a exigir outro resultado.
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A versão ou o fato: uma discussão necessária
completamente dos fatos. A questão afetiva ganhou destaque, e foi
trabalhada como se o Doca Street tivesse sido acusado por amar
demais. A imputação da responsabilidade da tragédia caiu sobre a
vítima – “mulher fatal”. A emoção tomou conta dos jurados. Inclusive
por aquele ser o último júri de Evandro Lins e Silva. Advogado que
soube tão bem se valer do poder de persuasão.
Persuasão foi personificada, pelos atenienses, como a deusa
cívica Peito30 – a da democracia. Eurípedes, por exemplo, em
uma de suas peças a respeito de Antígona, diz que persuasão é
associada ao logos, o discurso racional. Ésquilo, contudo, em
a peça Níobe, chega a afirmar que somente a morte é imune à
persuasão. Diferentemente, portanto, de Platão, que a trata com
certo desdém. Tanto que em um trecho do diálogo de Fedro podese ler o seguinte:
Ouvi dizer que aquele que pretende tornar-se orador não precisa saber
o que é realmente justo, e sim o que deve parecer justo à multidão que
tomará as decisões, e não o que é realmente bom ou nobre, e sim o
que parece sê-lo.31
Sarcasticamente, Platão arremata: “a persuasão decorre do
que parece verdadeiro, e não da verdade”32. Assim, pode-se afirmar
que o discurso persuasivo engana tanto quanto esclarece. Se bem
que Sócrates foi condenado por causa do que ele disse, e não por
nada que tivesse feito. Mas, no entender de Stone, se Sócrates tivesse
se defendido utilizando o argumento da liberdade de expressão e
invocando as tradições fundamentais de sua cidade, facilmente teria
conseguido fazer com que o júri vacilante se decidisse em favor da
30 Era símbolo da transição para o governo por consentimento e consenso popular, mediante
o debate e a persuasão. Sua estatura política refletia no teatro. Até porque o caráter singular
da poesia ática provém da própria democracia. Segundo Pausânias, o culto da Persuasão
fora originalmente instituído por Teseu, o mitológico primeiro rei de Atenas. Demóstenes
e Isócrates também incluem Peito entre os deuses da cidade e mencionam sacrifícios
anuais em sua homenagem. Homenagens que se estenderam a estatuas, tais como as que
foram erguidas perto da Acrópole, e outras erigidas por Praxíteles e Fídias (STONE, I. F. O
julgamento de Sócrates. Tradução de Paulo Henrique Brito. São Paulo: Companhia das Letras,
1988. p. 209-210).
31 PLATÃO. Fedro. Apud. STONE, I. F. op. cit., p. 210.
32 Idem, p. 211.
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absolvição33. Sobretudo porque os júris atenienses eram notoriamente
influenciados por uma retórica graciosa ou por apelos à piedade.
Tanto que Hermógenes indaga a Sócrates: “Não vê que os tribunais
atenienses muitas vezes se empolgam com um discurso eloquente e
condenam inocentes à morte, e muitas vezes absolvem o culpado
porque sua fala agrada-lhes os ouvidos”34. Ele, então, falou:
O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido com o manejo dos meus
acusadores, não sei; o certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia
de mim mesmo, tão persuasivos foram. Contudo, não disseram nada de
verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima
de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado
para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.
[...] Essa me parece a sua maior imprudência se, todavia, denominam
“hábil no falar” aquele que diz a verdade. Porque, se dizem exatamente
isso, poderei confessar que sou orador, não porém à sua maneira.
Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada
disseram da verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua
claridade.
Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadãos atenienses,
discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou adornados
como os deles, mas coisas ditas simplesmente com as palavras que
me vierem à boca, pois estou certo de que é justo o que eu digo, e
nenhum de vós espera outra coisa [...]
E, todavia, cidadãos atenienses, isto vos peço: se sentirdes que me
defendo com os mesmos raciocínios com os quais costumo falar nas
feiras, ou nos lugares onde muitos de vós me tendes ouvido, não
vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor, porquanto, é esta a
primeira vez que me apresento diante de um tribunal, e com mais de
setenta anos de idade!
Por isso, sou quase estranho ao modo de falar daqui [...] assim
também agora vos peço uma coisa que me parece justa: permitime, em primeiro lugar, o meu modo de falar – e poderá ser pior, ou
33 STONE, I. F. op. cit., p. 202.
34 XENOFONTE. Apud. STONE, I. F. op. cit., p. 188.
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A versão ou o fato: uma discussão necessária
mesmo melhor – depois, considerai o seguinte e só prestai atenção a
isto: se o que eu digo é justo ou não. Essa, de fato, é a virtude do juiz,
do orador: dizer a verdade.35
Sócrates, entretanto, adotou para a sua defesa a dialética, como
costumava debater sobre todo tipo de coisas com as pessoas e, em
especial, com seus discípulos. Razão pela qual, conforme Arendt, não
foi capaz de persuadir os juízes36. Isso, contudo, fez Platão “duvidar
da validade da persuasão”. Ainda que Pethein, persuasão, “era a
forma especificamente política do discurso”. Tanto que os atenienses se
orgulhavam de “conduzir seus assuntos políticos em forma de discurso
e sem coação, consideravam a retórica, a arte da persuasão, a mais
elevada das artes, a arte verdadeiramente política”37. Aliás, o discurso
de Sócrates, na Apologia, é um de seus maiores exemplos, e a própria
figura deste filósofo, uma figura política, particularmente na medida
em que a interrogação socrática poderia ser compreendida como
uma tentativa de legitimação discursiva. Esta, na verdade, se encontra
na base da vida política. Até porque os princípios da ação política
devem ser apreendidos na sua aparência.
Neste sentido, vale à pena recorrer a Patrick Charaudeau, a
quem o discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de
máscaras, pois cada uma de suas palavras deve ser tomada ao mesmo
tempo pelo que ela diz e não diz38. Recomendação bastante clara,
inclusive, em Maquiavel, quando este sugere que o príncipe deve ser
um grande “simulador e dissimulador”39. Isso não caiu por terra na
modernidade ou na pós-modernidade, e permanecerá nos períodos
vindouros, uma vez que o político sempre tem como tarefa primeira
35PLATÃO. Apologia de Sócrates. Disponível em: www.virtualbooks.com.br/. Acesso em: 11 set. 2012.
36 ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Júnior. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2008. p. 54.
37 Idem, p. 47.
38 CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Tradução de Fabiana Komesu, Dilson Ferreira da
Cruz. São Paulo: Cortez, 2006. p. 34.
39 Em um de seus trechos, em “O príncipe”, Maquiavel, ao se referir aos homens, afirma: “Cada
qual vê o que parece ser; poucos têm o sentimento daquilo que de fato és; e estes poucos não
ousam contrapor-se à opinião dos muitos” (MAQUIAVEL, Nicolau di Bernardo de. O príncipe.
Traduzido por Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 88).
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Lourembergue Alves
a construção de sua imagem (ethos) para fins de credibilidade e de
sedução, da dramatização do ato de tomar a palavra (pathos) com
intuito de persuadir, da escolha e da apresentação dos valores com o
objetivo de fundamento do projeto político40.
Construção que tem a ajuda preciosa, importante e necessária
dos meios de comunicação e das redes sociais. O discurso político,
então, se fortaleceu e passou a ser também objeto da indústria do
espetáculo. Tudo se dá de uma forma teatral. Sobretudo durante as
campanhas eleitorais, nas existe toda uma preparação para o uso
das melhores palavras, das mais significativas frases, ainda que sejam
vagas – mas não vagas a ponto de fazer com que o candidato perca
a sua credibilidade. Até porque lida a todo tempo com os símbolos,
que dão textura e vida as ideias, e procura ser razoável em seus
argumentos, com vistas a torná-los inteligíveis de sentido. A propósito,
Cícero, no “Orator”, faz a seguinte observação:
[...] é absolutamente necessária ao que quer falar com elegância, não
somente como dizem Aristóteles e Teofrasto, esteja sujeito a uma lei e
não se estenda indefinidamente, sem mais travas do que as exigências
da respiração ou os pontos e as vírgulas da escritura, senão porque o
discurso harmonioso tem muito mais força que o solto e descolorido.
O falar com muito aparato, mas sem ideias, é loucura; o falar
sentenciosamente sem ordem nem eloquência nas palavras,
puerilidade; mas nisso costumam incorrer não somente os néscios,
mas também muitos varões prudentes. De fato, o orador que busca
não somente aprovação, senão admiração e aplauso, deve sobressair
em tudo e envergonhar-se de outro que o supere e seja ouvido com
mais gosto que ele.41
Seleção que, igualmente, se faz necessário – e é imprescindível
– no discurso jurídico. Isso porque “advogar é persuadir, é argumentar
40 CHARAUDEAU, Patrick. Op. cit., p. 84.
41 CÍCERO, Brutus. Orator. The Classics Page: In The Latin Library. Disponível em:
<http://www.thelatinlibrary.com/cicero/orator.shtml>. Acesso em: 20 set. 2008. Apud.
SIQUEIRA, Ernane Alves. Probare, delectare, electere: eloqüência e retórica no Pro Murena
de Cícero. Dissertação (Mestrado em Letras). Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários
– Universidade Federal de Minas Gerais.
volume 4, p. 149-174, janeiro/dezembro de 2016
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A versão ou o fato: uma discussão necessária
a favor de uma das partes”42. A respeito disso, Aristóteles já dizia que a
oratória forense comporta a acusação ou a defesa de alguém; uma ou
outra tem sempre que ser sustentada pela parte em um caso43. O que
leva o orador a cativar o auditório, juiz e/ou júri, pois uma sentença
também é uma decisão44, e, disposto a isso, ele advoga que “os fatos
são o que o proponente de uma medida afirma que são”, sob o respaldo
da legislação. Não quando esta se coloca contra o caso, pois, nesta
situação, recomenda o estagirita, “é necessário recorrer à lei comum e
à equidade como sendo mais justa. É preciso dizer que julgar “segundo
a própria consciência” não significa recorrer a todo rigor da letra da lei
escrita”45, porém, se esta dá respaldo, tem de insistir “no juramento de
julgar segundo a consciência não deve ser entendido no sentido de fazer
os juízes darem um veredicto que contrarie a lei”46.
Mesmo sem ter lido Aristóteles, muitos profissionais têm se
valido de tais expedientes. Ainda que se saiba da existência de outros
tantos que abrem mão da peça arrebatada de apenas sentimento
e melodramática, substituindo-a por uma mais técnica. Reforçada,
aqui, pela ciência de que as provas não retóricas têm importância
significativa, ou preponderante, uma vez que não se devem ignorar
as leis, portarias, regulamentos, decretos – considerados parte do
discurso jurídico. Talvez, por isso, diz-se que a oratória passa a ser
mais demonstrativa, com vista a alcançar a razão em detrimento
da sensibilidade.
Acontece, entretanto, que essa parte substancial do discurso
não atua sozinha. E é justamente a interpretação discursiva dos fatos
que permite a subsunção às normas. Assim, as três provas técnicas
aristotélicas – ethos, pathos e o logos – exercem uma função relevante
na argumentação das partes envolvidas.
A retórica, por outro lado, exige pitadas de emoção e da razão.
Até mesmo em função de que o discurso jurídico pode ser – e deve ser
42 WARAT, Luiz Alberto. Op. cit., p. 1.
43ARISTÓTELES. Retórica. Traduzido por Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011. p. 53.
44 Idem, p. 122.
45 Ibidem, p. 67.
46 Ibidem, p. 68.
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visto como o elo entre o homem, a lei e as instituições. Realça, portanto,
o alcance social e o pragmatismo, cuja jurisdição é, evidentemente, o
do poder. Roteiro palmilhado por estereótipos normativos e os superheróis das histórias em quadrinhos. Aqui, no entender de Warat, o
Estado, através dos estereótipos normativos47, sublinha as situações
de insegurança em que vive o cidadão e, assim, os “sistemas jurídicos
então se afirmam como realizadores de uma eficiente justiça material,
guardiã do compromisso de segurança”48. Mais adiante, esse mesmo
autor afirma ser possível observar como os discursos persuasivos
lançam mão dos estereótipos normativos ao lado de uma série de
estratégias discursivas, com o fim de construir e apresentar ao leitor
47 “Nas CJs, seus produtores manipulam discursivamente uma série de estereótipos (sociais e
normativos), crenças, valores, representações, etc., com o propósito de produzir determinadas
relações associativas, orientando os leitores para que aceitem a realidade ali apresentada.
Nesse sentido, diversas categorias lingüístico-discursivas podem ser apontadas evidenciando
o propósito manipulador dos produtores das CJs. Por limites de espaço, iremos nos restringir
aqui à análise das nominalizações nos textos das cartilhas. 12 Vale ressaltar que, mais do que
realizações ‘meramente’ linguísticas, as nominalizações constituem poderosos mecanismos de
ação discursiva e ideológica usados pelos produtores das CJs, objetivando a naturalização das
estereotipias normativas e a conseqüente adesão do leitor.
Observem-se agora os seguintes enunciados das CJs em análise:
1. Poder Judiciário. É composto pelos Juízes, Desembargadores e Ministros, que garantem o
cumprimento das leis. (CJ1, p. 08) 2. A Constituição Federal trata da organização do Brasil, dos
direitos dos cidadãos, da cultura e da ciência tecnológica do nosso País, da reforma agrária, da
educação e dos esportes. (CJ1, p. 11) 3. Proteção ao Meio Ambiente. A lei protege as árvores
e os animais para garantir uma vida saudável... (CJ2, p. 09) 4. ‘No Brasil, a discriminação
é proibida!’ (CJ2, p. 11) 5. Agora a sociedade / Tem como fiscalizar / As contas das gestões
públicas [...]. (CJ4, p. 01) 6. Inclusive a lei contém / Qualquer esclarecimento / De cumprimento
de metas / Publicação de orçamento / Mas isso só é possível / Se houver planejamento. (CJ4, p.
01) 7. Governante organizado / Tem ideia decisiva / Reúne as comunidades / Apoia a iniciativa
/ Do município que tem / Gestão participativa // Com essa iniciativa / O povo tem confiança /
À saúde funciona / A educação avança / E o voto é a arma forte / Do processo da mudança.
(CJ4, p. 07) 8. Toda criança tem direito à igualdade, sem nenhuma discriminação de raça,
cor, sexo, religião, nacionalidade... (CJ5, p. 04) 9. Toda criança tem direito à proteção especial
para o seu desenvolvimento físico, mental e social. (CJ5, p. 06) 10. Toda criança tem direito
à alimentação, moradia e assistência médica adequada, para ela e para a sua mãe. (CJ5, p.
10) 11. Toda criança física ou mentalmente incapacitada tem direito à educação e a cuidados
especiais. (CJ5, p. 12) Nos enunciados acima, as nominalizações apresentam as tensões e as
contradições nos discursos dos produtores das CJs. Ao lançar mão de grupos nominais em vez
de ações, as cartilhas ofuscam os participantes dos processos, contribuindo para a manutenção
das estereotipias normativas, das relações hegemônicas e da reprodução da realidade social tal
como exposta” (MODZDZENSKI, Leonardo. O papel dos estereótipos jurídicos na divulgação
do direito e da cidadania: uma abordagem crítica. In: COLARES, Virgínia (org.). Linguagem
e direito. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010. p. 95).
48 WARAT, Luis Alberto. A produção crítica do saber jurídico. In: PLASTINO, C. A. (Org.).
Crítica do direito e do Estado. Rio Janeiro: Graal, 1984. p. 110. Apud. MOZDZENSKI,
Leonardo Pinheiro. Análise crítica do discurso jurídico. Revista da Faculdade de Direito de
Caruaru/Asces. Caruaru, v. 42, n. 1, jan./jun, 2010. Disponível em: http://www.asces.edu.br/
publicacoes/revistadireito/edicoes/2010-1/discurso_juridico.pdf) Acesso em: 28 ago. 2012.
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A versão ou o fato: uma discussão necessária
uma determinada versão das realidades49. Inclusive as “vozes da lei” e
as “vozes do mundo da vida”, no sentido usado por Habermas50, figuram
nas Cartilhas jurídicas dentro de um processo de luta hegemônica e
ideológica, o que provoca sérios impactos nas práticas discursivas
e sociais vivenciadas pelos seus participantes e no modo como as
realidades sociais são construídas e apresentadas às pessoas leigas.
Percebe-se, então, que a linguagem não é, e nunca foi ou será
um depósito neutro. Ela é evidentemente um instrumento de domínio
e poder social, além de servir também para legitimar a organização
das relações de poder e igualmente ideológico.
A respeito da persuasão ideológica, Geder Parzianello e Neuza
Demartini fazem a seguinte observação:
A persuasão ideológica ressignifica o valor de verdade. Desse modo,
é bem possível que a célebre frase enunciada por Giebbels (1975)
de que uma mentira dita mil vezes convence como verdade já não
alcance mais correspondência em termos de vida social nos domínios
da política. É bem provável que se possa admitir que tais quais os
desejos ocultos nos consumidores, também eles se encontrem entre os
eleitores e forcem novas práticas de enunciação, mais coerentes com
o jogo contemporâneo das formas de poder. No jogo contemporâneo
de poder, instaura-se uma exigência em torno da atualização da
Dialética, enquanto conceitualmente renovada, deixando o caráter
oposicionista de argumentos para o exercício deliberado da crítica
e a coexistência de raciocínios distintos de forma a se tolerarem
mutuamente. Diferentemente da época de exclusão de uma posição
em nome de uma única verdade, agora coexistirão verdades distintas,
e será necessário que esse acento não esteja apenas na ordem dos
discursos, mas na regra que orientará as condutas em sua maioria.51
49 WARAT, Luis Alberto. A produção crítica do saber jurídico. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Crítica
do direito e do Estado. Rio Janeiro: Graal, 1984. p. 110. Apud. MOZDZENSKI, Leonardo
Pinheiro. Op. cit.
50 HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1989. Apud. MOZDZENSKI, Leonardo Pinheiro. Op. cit.
51 PARZIANELLO, Geder; GOMES, Neuza Demartini. O apagamento das forças do discurso
persuasivo ante a racionalização das condutas: uma reflexão sobre o poder da fala política
na sociedade contemporânea em tempos de CPIS. Conexão – Comunicação e Cultura, UCS,
Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 67, jan./jun. 2006. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/
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Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá e Escola da Magistratura Mato-Grossense
Lourembergue Alves
No discurso jurídico, entretanto, a ideologia é relegada. Ainda
que seja inerente a ele, pois se lida a todo tempo “com a língua da
essência do poder estatal, ideológico por excelência”, e, por outro lado, “o
sentido não está na literalidade da lei, mas sim no sujeito ideologicamente
determinado”52. Por isso, evidentemente, os profissionais do direito
têm opiniões, muitas vezes, opostas a respeito de um mesmo assunto.
Assim, ao prolatar decisões judiciais, o julgador interpreta as
normas legais e os fatos tentando apagar as marcas ideológicas e
fazendo parecer, como intérprete, ser aquele o sentido único possível
no caso, o verdadeiro ou o mais justo.
Acontece, porém, que toda interpretação é incompleta. Pois não
abarca a tudo. Mas é ela, a interpretação, a base da prática jurídica,
a qual se encontra ancorada na ordem do discurso. Um discurso que,
lá na frente, cria um imaginário de que as leis, estatutos e normas,
por si só, teriam o poder de inventar a justiça a despeito de qualquer
assimetria entre classes sociais; de eliminar crimes e violências que
se encontram latentes na estrutura de desigualdade entre a fartura
e a miséria e, por fim, de que todos os brasileiros poderiam sentir-se
igualmente confortáveis perante a lei, donos dos mesmos deveres e
direitos, representados com as mesmas possibilidades diante do sistema
vigente. Assim, fica desenhada a ficção de que o Estado nacional é
democrático, acolhe e contempla todos da mesma forma e representa
os cidadãos em condições de igualdade. Também é engendrada a
ilusão de que a lei é una e o direto, por si só, é capaz de equacionar
os desajustes para manter a ordem53. A propósito afirma Lagazzi:
“Todos os homens são iguais perante a lei”. É nessa máxima que
se fundamenta o Direito e a Justiça, levando-nos a acreditar na
imparcialidade da jurisprudência, no fim dos privilégios. “Todos têm
os mesmos direitos e deveres”. A Justiça sustenta-se, pois, por esse
index.php/conexao/article/viewFile/204/195 Acesso em: 20 nov. 2012.
52 SILVEIRA, Cristina Cattaneo da. A interpretação do/no discurso jurídico. In: COLARES,
Virgínia. Linguagem e direito. Recife: Universitária de UFPE, 2010, p. 133. Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/viewFile/204/195. Acesso em: 10
dez. 2013.
53 ROMÃO, Lucília Maria Souza; ROMÃO, Arquilau Moreira. O discurso sobre a democracia
brasileira ao longo dos últimos vinte anos. Revista Achegas, São Paulo, n. 22, p. 30, mar/abr. 2005.
volume 4, p. 149-174, janeiro/dezembro de 2016
167
A versão ou o fato: uma discussão necessária
engodo teórico, uma vez que a desigualdade entre os homens, marcada
pelo modo de produção, não se desfaz em nenhum outro modo.54
Interpretar, contudo, não é atribuir sentidos, mas expor à
opacidade do texto, e, assim, fazer com que a interpretação seja clara.
Aqui, então, a linguagem assume seu caráter de transparência. Caráter
assumido, vale dizer, porque a ideologia subtraiu da própria linguagem
a sua opacidade, ao mesmo tempo em que apaga a materialidade do
sentido. E este, até pelo mecanismo ideológico, funciona como se não
fosse fruto de um processo discursivo que lhe dá sustentação.
Processo contido em todo texto. Inclusive no literário55 que,
de acordo com Cid Seixas, é “um jogo de linguagem”, e, como tal,
“sugere um leque de possibilidades interpretativas, onde a textura do
que é dito resvala em sentidos outros, em restos de saberes antigos e
novos escondidos por entre as frestas da frase”56. E isso, pelo seu turno,
leva o leitor a participar ativamente da história contada, “trazendo
sua experiência de vida, sua sensibilidade e sua bagagem afetiva e
intelectual constituem cadeias de relações dos seus conhecimentos com
as projeções da obra lida”57. Nesse sentido, vale acrescentar, “o texto
literário registra uma viagem exploratória: ao mesmo tempo em que tenta
descobrir, permite ao leitor acompanhar o processo de descoberta”58.
54 LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988, p. 41. Apud. ROMÃO, Lucília
Maria Souza; ROMÃO, Arquilau Moreira. Op. cit., p. 33.
55 “A expressão vem de littera, letra, modo de escrever, ou mesmo, carta. A partir daí, literatura seria
tudo que é escrito, como bula de remédio, bibliografia sobre doenças, anúncio de cartomante, livro
de Arnaldo Antunes etc. Com uma sutil diferença – a inicial maiúscula –, Literatura seria, para
alguns estudiosos, a arte da escrita criativa. Ou o conjunto de obras artísticas de natureza verbal.
Mas, nem sempre, os estudiosos estiveram de acordo entre si, quanto à observação deste critério
definidor. Na idade média, por exemplo, quando a escrita era uma arte dominada por poucos,
quase tudo que era escrito se confundia com literatura. A Literatura Brasileira inclui no seu acervo
textos como a Carta de Pero Vaz de Caminha ou os vários tratados e impressões de viajantes do
século XVI sobre a terra descoberta. Escritor é aquele que escreve, não importa o quê, se tratados de
botânica, manuais de ética ou histórias de ficção. Supondo que o leitor considere literatura, mesmo
escrita com inicial minúscula, como apenas a obra de arte verbal, podemos estabelecer algumas
distinções básicas entre a linguagem literária, de natureza estética, e a linguagem científica, de
natureza pragmática. Tais distinções valem ainda para outras modalidades de discurso, como o
informativo, o emotivo, o coloquial etc” (SEIXAS, Cid. Texto literário e texto científico: distinções
fundamentais. Jornal A Tarde, Salvador, 17 jan. 1998, p. 7. Disponível em: http://cidseixas.
blogspot.com.br/2007/09/texto-literrio-e-texto-cientfico.html. Acesso em: 10 nov. 2013).
56 SEIXAS, Cid. op. cit., p. 7.
57Idem.
58Ibidem.
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Percebe-se, então, a construção social do texto literário.
Construção, na verdade, presente em todos os discursos. Por isso,
evidentemente, que eles, os discursos, devem ser analisados e
entendidos dentro dos contextos sociais que estão inseridos, sem
perder de vista, é claro, que o discurso é a linguagem organizada
e dirigida a um fim. Fim que não tem sentido de término, mas de
objetivo. A partir deste que se pode dizer, com tranquilidade, que o
discurso jurídico é o desenvolvimento organizado da linguagem do
direito com vistas a influenciar no raciocínio ou, quando menos, nos
sentimentos do ouvinte ou do leitor59.
É nítido, então, o caráter persuasivo – muito já mencionado ao longo
deste artigo. Persuadir, porém, não é tarefa única do discurso jurídico. O
difícil, aliás, encontrar organizações discursivas que escapem à persuasão,
pois quase todas elas – exceto, talvez, jogos verbais e um ou outro texto
marcado por elemento lúdico – procuram convencer um auditório
sobre a validade de uma tese, conceito ou a validade de um enunciado.
Nesse processo de convencimento, com os símbolos se
entrelaçando uns com os outros. Entrelaçamento, no entanto, onde
as palavras perdem sua neutralidade – se é que algum dia elas foram
neutras. Pois passam a ser escolhidas e organizadas de tal modo até
chegarem à formação de frases, em uma estreita relação entre o signo,
ideologia e construção do discurso.
Volta-se, assim, a questão da retórica. Particular que remete
o leitor ao início deste artigo, no qual se falou que o direito se
transformou em um duelo de versões do fato, não o próprio fato, que
são dadas pelas palavras, pelo discurso.
59 “O discurso jurídico é, portanto, o elo entre o homem, a lei e as instituições, sendo através dele que
se procura convencer e angariar opiniões. Se o direito por si só já é elemento de poder, o discurso
jurídico é a linguagem organizada que permite o alcance social e dota o poder de pragmatismo.
Busca-se um convencimento, uma persuasão e a partir daí a formação de repetidores que
darão força aos conceitos e conclusões incutidos no discurso proferido. Para o direito, ciência
essencialmente humana, o discurso é o instrumento primordial para o aprendizado. O professor
não se vale de outras ferramentas cientificas, tão só da palavra. Assim, de forma breve, o discurso
jurídico é o desenvolvimento organizado da linguagem do direito com vistas a influenciar no
raciocínio ou, quando menos, nos sentimentos do ouvinte ou do leitor” (NOGUEIRA, Cláudia
Albagli. O poder do discurso jurídico na órbita educacional: limites e legitimidade da atividade
docente. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/
claudia_albagli_nogueira.pdf. Acesso em: 10 dez. 2013).
volume 4, p. 149-174, janeiro/dezembro de 2016
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A versão ou o fato: uma discussão necessária
Considerações finais
Persuasão, convicção, valores e discursos são algumas das
palavras-questões que permeiam as páginas constitutivas deste
artigo. Elas, as laudas, foram enriquecidas com trechos literários,
em especial os que foram sacados, a título de empréstimo, de “O
estrangeiro”.
Livro que narra o que de mais trágico existe na condição
humana: o absurdo, o limite entre aspirações e realidade. E é, em
meio a essa descoberta do absurdo, que o Mersault – indiferente
aos valores morais e as regras do jogo – viu-se preso. No seu
julgamento, o fato de ter sacado o revólver, puxado o gatilho e
acertado por cinco vezes o corpo do estrangeiro, motivo, aliás, de
sua prisão, passou a ser uma ação menor. Ganha relevância extrema
os pormenores de sua vida cotidiana, tais como o de ter fumado
no enterro de sua mãe e, no dia seguinte, ido a praia, ao cinema,
iniciado um caso amoroso com Marie e se distraído alegremente
com o filme de Fernandel. É, então, taxado de incessível, um
homem sem alma, considerado um forasteiro quanto aos ditames
da sociedade. Seu advogado, diante disso, pouco pode fazer e
Mersault recebe sentença de morte.
O direito apresenta-se como fenômeno do poder. Brecha para o
autor do referido livro, Albert Camus, tecer duras e acertadas críticas
à justiça e ao judiciário.
Leitura que se faz, portanto, necessária pelos acadêmicos do
curso do Direito, assim como tantas outras existentes, entre as quais
as já citadas neste artigo e nas páginas do anterior, intitulado Ciência
Política, História e literatura: um diálogo através do “espelho”.
As provas não retóricas, vale acrescentar, – ainda que ignoradas
no julgamento de Mersault – têm papel preponderante. Mas também
tem a interpretação discursiva dos fatos.
Assim, dúvida inexiste, quando se observa que a preocupação
do discurso jurídico é com o resultado – as partes e o juiz buscam a
persuasão. Mas o convencimento pode ser atingido.
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Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá e Escola da Magistratura Mato-Grossense
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Convencimento que também pode ser atingido pelo discurso
político, muito embora as versões dadas pelas palavras recheiem este
tipo de discurso, tanto quanto o jurídico.
Sabe-se, assim, que tanto campo político quanto no jurídico, o
jogo de palavras é bastante aceito, e, nesse sentido, o chamado “bem
falar”, a retórica. É, aqui, infelizmente, que a versão ganha mais peso,
sobrepõe-se ao próprio fato.
Não se deve, então, estranhar com o direito deixado de ser
convencimento para se transformar em persuasão. Nada vale o fato,
conforme se viu em “O estrangeiro” e no caso de abuso do poder
econômico, com a distribuição de camisetas aos eleitores, citado no início
deste texto. Neste, prevaleceu à versão do advogado de um dos acusados,
e naquele, a do promotor. Os fatos, desse modo, foram ignorados.
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