Renda, rendeira, renascença: arte, mercado e

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Renda, rendeira, renascença: arte, mercado e
IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE
Grupo de Trabalho 38. Etnoarqueologia, Tecnologia, Interpretatividade do Registro
Arqueológico e Patrimônio Cultural
Renda, rendeira, renascença: arte, mercado e patrimonialização
Carla Gisele Macedo S. M. Moraes
[email protected]
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Resumo
Esta comunicação trata da produção, valorização, divulgação e comercialização da renda
renascença na Paraíba. A renda renascença é produzida predominantemente no Nordeste
brasileiro, sendo feita na Paraíba por artesãs do Cariri Ocidental, nos municípios de Monteiro,
Camalaú, São João do Tigre, São Sebastião do Umbuzeiro e Zabelê. As mais de quatro mil
rendeiras do Cariri paraibano estão organizadas em associações e há iniciativas de fomento e
apoio à produção e valorização da renascença, como o Projeto Rendas do Cariri
(Parai'wa/SEBRAE/UFPB) e o pleito de reconhecimento das rendeiras com o Selo de
Indicação Geográfica junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Entretanto,
pesquisas sobre o assunto e entrevistas realizadas com artesãs, gestores culturais e
pesquisadores evidenciam a desvalorização do trabalho das rendeiras, a baixa remuneração
das detentoras deste saber, a exploração econômica feita pelos “atravessadores” e a exclusão
das artesãs nas representações fotográficas que se fazem da produção de renda renascença
para além do contexto local. Na conjuntura nacional, o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), ao reconhecer como Patrimônio Cultural Brasileiro o modo de
fazer renda irlandesa em Divina Pastora, Sergipe, valorizou, em detrimento de outros saberes,
um conhecimento assimilado e originário da renda renascença. O Registro realizado pelo
IPHAN traduz um processo de seleção/exclusão que não compreende a referência cultural em
sua totalidade, mas está vinculado a uma representação estética do saber – o produto final –,
em detrimento do significado intrínseco do patrimônio cultural enquanto “modo de criar,
fazer e viver” definido na Constituição Federal de 1988.
1
Renda, rendeira, renascença: arte, mercado e patrimonialização
Carla Gisele Macedo S. M. Moraes
A “cultura da renda renascença” na Paraíba: uma aproximação
Nesta comunicação, apresento as reflexões iniciais da pesquisa sobre a renda
renascença na Paraíba, na qual busco compreender as dimensões de produção,
comercialização e valorização da atividade na Paraíba no contexto recente de reconfiguração
produtivo-comercial1.
A renda renascença é uma atividade artesanal surgida no século XVI tendo origem
provável na Itália. Chegou ao Brasil pelas mãos das mulheres dos colonizadores e passou a
fazer parte das tradições rurais do Nordeste brasileiro também por influência de freiras
estrangeiras que, nos conventos, ensinavam este tipo de trabalho às alunas (IPHAN, 2009,
p.31). No Brasil é produzida na Paraíba, Pernambuco, Ceará, Sergipe e Bahia.
Na Paraíba, recorte proposto para a pesquisa, os municípios que concentram a
produção da renda renascença são Monteiro, Camalaú, São João do Tigre, São Sebastião do
Umbuzeiro, Prata, Congo, Sumé e Zabelê, situados no Cariri Ocidental, tendo-se registro de
pouco mais de quatro mil artesãs, aproximadamente 20% da população feminina da região.
A atividade destas rendeiras está ligada aos municípios do Agreste pernambucano, que
possuem também forte tradição de produção da renascença. O Jornal do Commercio, que
possui um portal na Internet dedicado à renascença, faz uma interessante descrição do caráter
tradicional e do aprendizado e transmissão familiar do ofício em Pernambuco, demonstrando
um contexto cultural que se reproduz também nos municípios paraibanos.
No Agreste pernambucano, mais precisamente nas cidades de Pesqueira e
Poção, é difícil achar uma casa onde ninguém saiba fazer renda. Em cada
terraço, as histórias se repetem, a renascença aparece e as almofadas em
formato de rolo acabam parando no colo das mulheres. A cultura da renda não
distingue idade. As meninas, desde muito cedo, não tiram os olhos das mãos
habilidosas de suas mães, tias ou avós. Ninguém para pra ensinar. A aula é
silenciosa. Os olhos são os grandes responsáveis pelo aprendizado e pela
1
Com o título provisório de “A Renda Renascença Ressignificada: reconfiguração produtivo-comercial da atividade na
Paraíba”, a pesquisa, iniciada em 2013, está sendo desenvolvida no âmbito do Doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação do professor Dr. Roberto Véras de Oliveira.
2
delicadeza do trabalho. Nos lares onde a renda faz morada, a principal herança é
a habilidade. A perpetuação da arte é de mão para mão. De geração em
geração2. (Jornal do Commercio, 2012).
Atualmente, existem no estado cinco associações de rendeiras, todas na região do
Cariri: Associação dos Artesãos de Monteiro; Associação Comunitária das Mulheres
Produtoras de Camalaú; Associação das Produtoras de Arte de Zabelê; Associação dos
Artesãos de São João do Tigre e Associação de Desenvolvimento dos Artesãos de São
Sebastião do Umbuzeiro (FECHINE, 2005, p.3)3.
Esta pesquisa, iniciada a partir do conhecimento da realidade desta atividade no
município de Zabelê, no Cariri paraibano, possibilitou o contato com a produção de renda
renascença, com os problemas relacionados à valorização do ofício, aos atravessadores e às
ações de fomento e reconhecimento da renda renascença na Paraíba e sua repercussão no
cotidiano, na organização social e na vida econômica das rendeiras.
Para as reflexões iniciais aqui apresentadas, foi fundamental a consulta de trabalhos
monográficos sobre a questão dos atravessadores, a consulta ao dossiê de Registro da renda
irlandesa como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), informações dos portais virtuais do Instituto Nacional de
Propriedade Intelectual (INPI), do Governo da Paraíba, do Serviço Brasileiro de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), do Projeto Rendas do Cariri, portais de notícias na
Internet e de designers e estilistas nacionais que utilizam renda renascença nas suas criações.
Às fontes consultadas, se somaram depoimentos, fotografias e dados coletados em
campo. Gostaria de ressaltar, no entanto, que a pesquisa está no início, sendo os apontamentos
ora apresentados apenas iniciais. Até o momento, foi visitado somente o município de Zabelê,
devendo a pesquisa de campo ser estendida no decorrer do doutorado aos demais municípios
contemplados no recorte proposto.
A atividade da rendeira, assim como outras atividades manuais, é constituída no
âmbito doméstico e predominantemente por mulheres (ZANELLA, BALBINOT, PEREIRA,
2000, p. 238). Ocorre tradicionalmente nas cidades e predominantemente na zona rural do
Cariri paraibano como parte do processo de socialização das crianças, que aprendem o ofício
com as mães. É uma atividade executada também por homens, em proporção bem reduzida,
2
Fonte: TRAMAS da Renda: Especial [online]. Jornal do Commercio, 2012, Disponível em:
<http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/tramas-da-renda/index.php>. Acesso em 12 jul. 2013.
3
O Sebrae-PB possui um site onde apresenta os endereços das cinco Associações de Rendeiras. Disponível em:
<http://www.sebraepb.com.br/artesanato/produtos/renda.jsp>. Acesso em 26 mai. 2013.
3
sobretudo na infância, quando as mães ensinam o ofício sem a preocupação com a distinção
entre atividades próprias do sexo masculino ou feminino.
Em muitas famílias da região, embora a atividade da rendeira seja a principal fonte de
renda da residência, é vista de forma subsidiária e complementar à renda gerada pelo homem,
não sendo muitas vezes sequer declarada como meio oficial de comércio. De qualquer
maneira, entre as artesãs e costureiras, as mulheres que detêm o conhecimento do saber-fazer
a renda renascença obtêm distinção em relação àquelas que só trabalham como agricultoras e
donas-de-casa e não possuem habilidades manuais ou executam outras atividades manuais
que exigem menor complexidade de execução (ALBUQUERQUE, MENEZES, 2007).
O modo de fazer renda renascença foi demonstrado pelas artesãs da Associação das
Produtoras de Arte de Zabelê (APAZ) Maria da Conceição, Ana Doracy, Maria Eliane, Maria
Aparecida, e pelas colaboradoras Lucineide Maria e Yara Barbosa.
Na produção é utilizada linha própria para renda renascença em diversas cores, agulha,
tesoura, fitilho (fita de algodão encontrada em diversas cores, também chamada por algumas
rendeiras de “lacê”), cola, papel manteiga, eventualmente um dedal, tecido de algodão ou
linho e goma para finalizar a lavagem da peça. As rendeiras têm uma almofada cilíndrica feita
em tecido que usam como apoio para realizar o trabalho.
O risco constitui-se no principal roteiro para a produção da renda renascença, pois
projeta no papel o desenho da peça concebida pela artesã. Esta habilidade é restrita a poucas
rendeiras, pois conseguir a harmonia, regularidade, proporção e distribuição de volteios em
uma peça não é fácil. Quem sabe riscar está em patamar diferenciado em relação a outras
rendeiras e é, em geral, mestra do ofício (IPHAN, 2009, p.53).
Imagens 1 e 2: Riscos da renda renascença existentes na Associação das Produtoras de Arte de Zabelê (APAZ).
Fotos: Carla Gisele Moraes, 2012.
4
A renascença é um bordado delicado, de grande beleza e complexidade na execução.
Uma peça pode levar meses para ficar pronta, dependendo de sua extensão e dos pontos
utilizados. O processo se inicia com a transferência do “risco” para o papel manteiga (ou
papel seda) usando caneta esferográfica ou hidrocor. As duas folhas devem ser prendidas com
alfinetes para evitar que o desenho se mova. Em todo o verso do risco é espalhada cola e o
desenho é colado no tecido de algodão. O fitilho é alinhavado no contorno do risco com
agulha e linha.
Imagem 3: Transferência do “risco” para o papel
manteiga pela rendeira Maria Eliane.
Imagem 4: Alinhavo do fitilho no contorno do risco
com agulha e linha executado pela rendeira Ana
Doracy.
Fotos: Carla Gisele Moraes, 2012.
Para alinhavar, deve-se ter o cuidado de pegar apenas o papel, e não o tecido, pois ele
será retirado ao final do bordado. A fita deve seguir o desenho e a rendeira deve procurar
esconder as pontas do fitilho para evitar que as emendas fiquem expostas.
Para garantir a firmeza do bordado, o tecido deve ser enrolado num rolo de tecido. O
bordado deve ser executado de acordo com a legenda de pontos. Terminado o trabalho, devem
ser cortados os fios do lado avesso do tecido para soltá-lo do papel manteiga. A peça deve ser
virada para o lado direito e cuidadosamente solta do papel. Por fim, a peça deve ser lavada e
colocada na goma para adquirir firmeza. Depois de concluída, embora demonstre extrema
delicadeza, a peça de renda renascença é bastante resistente.
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Imagem 5: Execução do bordado pela rendeira Maria
Aparecida de acordo com a legenda de pontos.
Imagem 6: Corte dos fios do avesso do tecido para
soltá-lo do papel manteiga feito por Lucineide.
Fotos: Carla Gisele Moraes, 2012.
As rendeiras produzem memórias de ofício, com a identificação e amostra de diversos
pontos da renda renascença, a fim de possibilitarem a difusão dos pontos, facilitarem a
execução dos mais difíceis e garantirem que o desenho não será perdido e que sua transmissão
às jovens rendeiras estará assegurada.
Imagens 7, 8 e 9: Exemplos de pontos da memória de ofício das rendeiras da Associação de Produtoras de Arte
de Zabelê (APAZ).
Fotos: Carla Gisele Moraes, 2012.
6
Reconfiguração produtiva com vistas à “renascença da renda”
Na última década, iniciativas de apoio e valorização da produção da renda renascença
promovidas por instituições governamentais, entidades privadas, universidades e sociedade
civil organizada tiveram forte repercussão no trabalho das artesãs locais. Uma experiência
recente, empreendida no âmbito do Plano de Desenvolvimento do Governo da Paraíba com o
apoio do Sebrae-PB, é o Pacto Novo Cariri, do qual resultaram iniciativas como o Projeto
Rendas do Cariri, o Programa de Artesanato Paraibano, o Programa Empreender-PB e o pleito
de reconhecimento da produção de renascença com o Selo de Indicação Geográfica junto ao
Instituto Nacional de Propriedade Industrial.
O contexto local de inserção desses novos atores sociais era bastante singular e pouco
coeso, constituído por rendeiras que trabalhavam em suas residências para suprir uma
pequena demanda de consumo localizado, normalmente desvinculadas umas das outras,
estabelecendo com a renda uma relação produtiva subsidiária, em complementaridade aos
ofícios e ocupações principais de donas-de-casa e agricultoras.
A constituição de redes sociais e novas pontes de interação e coesão social com os
novos atores, como Sebrae-PB e Governo da Paraíba, ocasionou a reconfiguração da atividade
no estado, por meio da reestruturação produtiva, da mudança na forma de organização das
artesãs instaurando a lógica cooperativista, do aumento do capital social das produtoras locais
e do fortalecimento das redes sociais e das identidades locais e regionais (COSTA,
FERREIRA, 2010, p.34-35). A inserção social das rendeiras nas ações econômicas do Cariri
paraibano e sua imbricação relacional e estrutural entre si e com os demais atores sociais
criou redes e laços entre os agentes envolvidos nos processos econômicos (GRANOVETTER,
2001, p.1363; RAUDI-MATTEDI, 2005, p.60).
O diferencial destas iniciativas recentes, em oposição aos modelos anteriores de
políticas públicas, é que têm como objetivo “a parceria ou cooperação público-privada,
emanada de um consenso em que há participação dos atores sociais locais no desenho das
estratégias de desenvolvimento” (COSTA, FERREIRA, 2010, p.35) e as novas agendas de
discussão, que privilegiam o empreendedorismo, o protagonismo dos atores sociais locais e o
cooperativismo. As ações de gestão local, a construção de redes sociais entre os atores
envolvidos na gestão e execução das políticas públicas e a exploração e afirmação dos
recursos locais proporcionou o aumento do capital social da comunidade local, a formalização
da atividade artesanal e uma articulação mais horizontal, configurada numa complexa rede de
7
relações econômicas.
Neste contexto, as interações sociais adquiriram um papel fundamental, por
movimentarem os indivíduos em relações pessoais de confiança e relações comerciais de
compra e venda e unirem, por meio de pontes, diversas redes de interação, podendo modificar
o lugar de cada agente na rede social e determinar quem obtém destaque nestas imbricações
(RAUD-MATTEDI, 2005, p.66). As associações e cooperativas de artesãs estabeleceram
laços anteriormente inexistentes entre as rendeiras e fortaleceram a constituição de grupos,
que puderam se afirmar frente ao contexto maior de organização dos artesãos paraibanos e se
situar num lugar de relevância, passando a integrar a lógica mercadológica estabelecida pelo
governo estadual em parceria com o Sebrae-PB.
Um exemplo do lugar que algumas destas rendeiras obtiveram no contexto regional
pode ser vislumbrado na notícia veiculada na Internet pelo Governo da Paraíba sobre o
empoderamento de uma rendeira do Cariri paraibano:
Um grupo de quinze mulheres artesãs de 12 Estados vai apresentar peças
artesanais na exposição “Mulher Artesã Brasileira”, na sede da ONU em Nova
York, nos Estado Unidos, entre os dias 2 e 13 de setembro de 2013. Entre elas,
está a paraibana Dorinha Ramos da Silva, que trabalha há mais de 40 anos com
a renda renascença.
Dorinha foi selecionada por uma comissão composta por profissionais do
Programa do Artesanato Brasileiro, do Ministério da Indústria e Comércio
Exterior, Sebrae e a Associação Brasileira de Exportação do Artesanato
(ABEXA).
A paraibana, que é presidente do Ateliê Renascença de São Sebastião de
Umbuzeiro, disse que vai representar não somente as 50 artesãs da sua
associação, mas sobretudo o artesanato paraibano. “Eu estou muito feliz em
poder representar a Paraíba e os mais de quatro mil artesãos do nosso Estado.
Agradeço a todos eles, a minha família e também ao Governo do Estado, por
meio do Programa de Artesanato da Paraíba que tem nos dado todo o apoio”,
comemorou Dorinha. Ela revelou que, além de receber capacitação do
programa, expandiu seus negócios após fazer um financiamento junto ao
Empreender-PB com investimento em matéria-prima4. (Portal do Governo da
Paraíba, 2013)
Nesta situação, como em outras de natureza similar, ocorre que um determinado
indivíduo obtém certo capital simbólico, enquanto outros, por estarem à margem dos
processos de legitimação ou por não possuírem capital suficiente para ascensão, não
conseguem o mesmo reconhecimento, estabelecendo um campo de disputas onde estas
4
Notícia veiculada no Portal do Governo da Paraíba, de 17 de junho de 2013, com o título “Artesã paraibana é selecionada
para participar de exposição na ONU”. Disponível em: <http://www.paraiba.pb.gov.br/71112/artesa-paraibana-e-selecionadapara-participar-de-exposicao-na-onu.html>. Acesso em 12 jul. 2013.
8
posições dos indivíduos estão sempre em movimento (BOURDIEU, 2007). Nessas redes
sociais, os atores buscam tanto o desenvolvimento do capital econômico como do capital
social presente em valores como legitimação, reconhecimento, estatuto e poder
(GRANOVETTER, 2001).
Imagem 10: Rendeira Dorinha Ramos da Silva, de São
Sebastião de Umbuzeiro.
Imagem 11: Coordenadora do Programa de Artesanato
da Paraíba, Pâmela Bório e Dorinha Ramos da Silva.
Fonte: Notícia veiculada no Portal do Governo da Paraíba, de 17 de junho de 2013, com o título “Artesã paraibana é
selecionada para participar de exposição na ONU”. Disponível em: <http://www.paraiba.pb.gov.br/71112/artesa-paraibana-eselecionada-para-participar-de-exposicao-na-onu.html>. Acesso em 12 jul. 2013.
A reconfiguração da atividade da renda renascença na Paraíba ocorreu, ao que parece,
a serviço de novos processos econômicos, tendo anuência e adesão da maior parte das
rendeiras, no escopo das políticas públicas de turismo, de desenvolvimento socioeconômico,
de fomento ao empreendedorismo e de certificação industrial. Neste processo de
ressignificação, se tornou necessário aperfeiçoar a atividade artesanal para adequação às
novas exigências dos mercados consumidores.
Alguns processos de exploração, dominação e legitimação por meio da apropriação de
saberes e exclusão de sujeitos, interferências externas à tradição existente, modificações
sucessivas no processo de confecção da renascença e tentativas de aperfeiçoar e industrializar
a produção artesanal são especialmente interessantes para a análise, pois, ao que parece,
desmantelam a lógica tradicional e a relação anteriormente estabelecida pelas rendeiras com a
atividade de rendar e com as peças produzidas.
Um dos empreendimentos de fomento e apoio à atividade das artesãs é o Projeto
Rendas do Cariri, realizado pelo Coletivo Parai’wa com apoio da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) e do Sebrae-PB5.
5
O projeto “Rendas do Cariri” é promovido pelo Parai’wa Coletivo de Assessoria e Documentação, com apoio do Programa
Artesanato Paraibano do Sebrae e da Universidade Federal da Paraíba, através da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários e
9
Segundo informações obtidas no site do Projeto, já foram atingidas metas propostas
inicialmente, entre as quais, a criação da Oficina-Escola de Rendeiras de Camalaú, a
capacitação vinte jovens e adolescentes no ofício, a realização de censo da população
produtora da renda renascença no município de Camalaú, a realização da memória do ofício
da renda renascença nos municípios de Camalaú e São João do Tigre, a capacitação de
desenhista para os riscos da renda renascença, a implantação da Casa da Rendeira, em
Monteiro e a efetivação de políticas públicas na área da saúde com a realização de mil exames
oftalmológicos na população rendeira.
Outras metas do projeto pretendem ser alcançadas nos próximos anos, como
elaboração de uma cartilha contendo a técnica da renda renascença, a publicação de um
catálogo de produtos, a criação de um Museu e Centro de Estudos da Renda Renascença na
cidade de Monteiro, a criação de uma cooperativa regional de rendeiras, a realização de
cursos em gestão de associativismo e cooperativismo, a criação da marca “Rendas do Cariri”,
com produtos que os idealizadores do projeto denominam “socialmente corretos” e de uma
franquia da marca “Rendas do Cariri”.
Iniciativas como o Projeto Rendas do Cariri consolidam, promovem e fortalecem a
transmissão do ofício e descortinam uma perspectiva interessante de reconhecimento do saber
das artesãs e de projeção desta arte em locais de destaque. Por outro lado, o projeto vislumbra
a estandardização dos processos e dos produtos ao promover ações que interferem na forma
tradicional de produção e transmissão do saber artesanal.
Algumas reconfigurações propostas por este Programa percebidas na pesquisa são,
entre outras, a introdução de uma nova técnica – a serigrafia – no processo produtivo da renda
renascença, com o objetivo de melhorar a qualidade do “risco” (desenho a partir do qual se
faz o bordado), geralmente excluindo a atuação da mestra no ofício, responsável pelo ensino
do desenho a mão livre; criação de uma marca comercial que pretende reunir e padronizar a
diversidade da produção da renda nos municípios do Cariri, voltada para coleções de
temáticas regionais na linha de moda, decoração, cama, mesa e utilitários, alterando a
dinâmica existente de produção de cada rendeira, conforme a necessidade e as demandas
cotidianas; e o aperfeiçoamento de rendeiras em cursos de capacitação para a produção com a
qualidade exigida pelo mercado consumidor nacional e internacional, geralmente em oficinas
ministradas por professores externos de renome regional ou nacional convidados pelo Sebrae.
da Coordenadoria de Extensão. O site do Programa está disponível em: <http://www.paraiwa.org.br/rendas/>. Acesso em 26
mai. 2013.
10
Este aperfeiçoamento da técnica concorre para a mercantilização e uniformização do
saber original e do estilo próprio de cada rendeira, podendo prejudicar a originalidade,
especificidade e espontaneidade natural do processo artesanal. A industrialização de alguns
estágios do processo leva à inserção de “linhas de produção” voltadas para o mercado
consumidor, podendo desvirtuar as rendeiras de seus riscos e desenhos tradicionais e
modificar o processo produtivo.
A título de exemplo, em notícia recente veiculada no Portal Paraíba Total, o SebraePB divulgou a realização de cursos de modelagem a fim de que as artesãs mais jovens estejam
preparadas para fazer peças mais facilmente aceitas no mercado e a promoção de treinamento
de risco para que as artesãs não precisem mais recorrer às mestras que dominam a técnica do
desenho para obter os riscos a partir dos quais fazem renda. Se por um lado, estes cursos
proporcionam acesso ao conhecimento da renda renascença por jovens artesãs, por outro
excluem as mestras do ofício do processo de aprendizado, introduzindo uma lógica
diferenciada de oficinas de transmissão em salas de aula, enfraquecendo a tradição do
aprendizado que se dá continuamente nem sempre estando vinculado à profissionalização da
atividade.
Além do curso de modelagem, as artesãs participaram de outro treinamento de
risco, uma das etapas mais importantes no processo de criação. Antes, elas
precisavam recorrer às mestres artesãs, as únicas que dominavam essa
técnica. “Outro problema era em relação à modelagem. Como elas só
produziam peças do mesmo tamanho, perdiam algumas vendas porque nem
todo mundo tem o mesmo manequim. Com esses dois cursos, as rendeiras estão
preparadas para fazer peças com cortes perfeitos e tamanhos diversos, o que vai
melhorar a qualidade dos produtos”, disse João Jardelino da Costa Neto, que
coordena o Artesanato do Cariri Paraibano no Sebrae6. (Portal Paraíba Total,
2013; grifos meus)
A intervenção de instituições como o Sebrae-PB e o Governo do Estado provocou um
processo de formalização e organização destas mulheres, por meio de associações, da
participação em feiras de artesanato dentro e fora do estado e do intercâmbio com artesãs de
outros municípios, como Pesqueira e Poção, no Agreste pernambucano, onde com frequência
compram riscos e materiais para a renascença.
A existência dessas associações diminui mas não extingue a presença dos
6
Fonte: Notícia do Portal Paraíba Total [online], de 22 de abril de 2013, intitulada “Cursos oferecidos pelo Sebrae-PB
melhoraram
produção
da
renda
renascença
no
Cariri”.
Disponível
em:
<http://www.paraibatotal.com.br/noticias/2013/04/22/17286-cursos-oferecidos-pelo-sebrae-pb-melhoraram-producao-darenda-renascenca-no-cariri>. Acesso em 26 mai. 2013.
11
atravessadores, que adquirem peças produzidas em renda renascença a preços baixos e
revendem a valores superiores, deixando uma margem de lucro muito pequena para as
rendeiras.
Alguns estilistas conhecidos nacionalmente, como Martha Medeiros e Ronaldo Fraga,
utilizam a renda renascença como matéria-prima de suas criações, realizando encomendas de
peças às rendeiras paraibanas e criando coleções com a temática da renda renascença.
Imagem 12: Home Page do Portal virtual da estilista Martha Medeiros.
Fonte: Portal virtual de Martha Medeiros na Internet, disponível no link: <http://marthamedeiros.com.br>.
Todas as rendeiras entrevistadas até o momento na pesquisa citaram a estilista Martha
Medeiros como a principal compradora da renda renascença produzida na Paraíba, ressaltando
que o volume de vendas é significativo, representando grande parte do seu faturamento, pois a
estilista paga pelas peças um valor superior ao oferecido por outros clientes. Os dados da
Agência Sebrae de Notícias da Paraíba corroboram a informação:
A maioria das peças é vendida à estilista alagoana Martha Medeiros. O
excedente é comercializado em feiras. As artesãs da região estão ligadas a
associações ou cooperativas e recebem apoio do Sebrae, que presta cursos e
consultorias sobre empreendedorismo e gestão7. (Portal Paraíba Total, 2013)
Martha Medeiros fabrica roupas de alto padrão divulgadas num site da Internet 8 e
7
Fonte: Notícia do Portal Paraíba Total, intitulada “Cursos oferecidos pelo Sebrae-PB melhoraram produção da renda
renascença no Cariri”, disponível em: <http://www.paraibatotal.com.br/noticias/2013/04/22/17286-cursos-oferecidos-pelosebrae-pb-melhoraram-producao-da-renda-renascenca-no-cariri>. Acesso em 26 mai. 2013.
8
Disponível em: <http://www.marthamedeiros.com.br>. Acesso em 26 mai. 2013.
12
vendidas em boutiques em todo o Brasil e no exterior. Possui clientes famosas e obteve fama
e reconhecimento internacional no campo da moda. Em reportagem da Revista Veja acerca de
seu trabalho, revela que sua produção é consumida pelas “cultas, que são as que gostam de
artesanato”, pois “como são viajadas, sabem que meus modelos não têm cara de feirinha”9.
Imagens 13 e 14: Veiculação das peças de renascença da estilista Martha Medeiros na mídia impressa e virtual.
Nas imagens, a atriz Juliana Paes e a apresentadora de TV Ana Maria Braga e a estilista Martha Medeiros.
Fonte:
Portal
de
Martha
Medeiros,
disponível
no
link
“Quem
usa
<http://www.marthamedeiros.com.br/category/quem-usa/famosas/page/3/>. Acesso em 12 jul. 2013.
>
Famosas”:
Na reportagem da Revista Veja, Martha Medeiros esclarece que as rendeiras
precisaram se adaptar à sua forma de trabalhar. A renascença, inicialmente feita na cor
branca, precisou ser produzida em outras cores, causando certa resistência inicial, sobretudo
pelo uso do preto que para as rendeiras trazia má sorte. O coordenador do Programa de
Artesanato do Cariri Paraibano no Sebrae-PB, João Jardelino da Costa Neto, reforça esta
tendência na Paraíba:
9
Trechos de depoimento de Martha Medeiros, extraídos de reportagem de autoria de Dolores Orosco intitulada “Olê, mulher
rendeira”, na seção “Estilo” da Revista Veja, edição de 19 de setembro de 2012. Disponível em:
<http://www.marthamedeiros.com.br>. Acesso em 26 mai. 2013.
13
Segundo Jardelino, o segredo do sucesso da renda renascença produzida no
Cariri é a junção da tradição com a ousadia. “Há dois anos, quando propomos a
criação de peças coloridas, as artesãs resistiram, mas depois perceberam que era
importante inovar para atingir novos mercados. A ideia deu tão certo que hoje
95% das peças são coloridas e apenas 5% são brancas, a cor tradicional”,
disse10. (Portal Paraíba Total, 2013)
A estilista também determina que as rendeiras passem álcool em gel nas mãos a cada
quinze minutos para manter a alvura da renda. Além disso, as 250 costureiras que fornecem
renda para Martha, residentes nos estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, não fabricam
peças inteiras, mas apenas faixas rendadas de 1 metro por 38 centímetros, de cor única, que
são utilizadas pela estilista para a confecção dos modelos.
O estilista Ronaldo Fraga já realizou uma coleção utilizando a renda renascença como
matéria-prima principal, conforme podemos verificar em notícia do Portal PB Notícias, tendo
incorporado à sua equipe durante a concepção da coleção, como estagiária, a rendeira
paraibana Fátima Suelene, representante da Associação dos Artesãos de São João do Tigre
(ASSOARTI).
Conhecido como o maior evento da moda Brasileira que reúne os mais
renomados estilistas do país, em 2010 o São Paulo Fashion Week (SPFW)
recebe em sua passarela a Renda Renascença paraibana. As peças do
artesanato do estado serão parte integrante de peças da nova coleção do
mineiro Ronaldo Fraga. O estilista fez uma parceria com a artesã Fátima
Suelene, líder da Associação dos Artesãos de São João do Tigre – ASSOARTI,
para a elaboração das roupas.
Em Belo Horizonte, onde está localizado o atelier do estilista, a artesã
participa durante esta semana, junto com Ronaldo Fraga e sua equipe de
criação, de um estágio do qual sairão os desenhos das peças e os moldes de
como a Renda será empregada nas roupas e acessórios. As roupas vão compor a
próxima coleção do estilista que será lançada durante o São Paulo Fashion
Week, que acontece no mês de junho, em São Paulo, onde serão desfiladas as
tendências do verão 2011.
[...]
A parceria entre Ronaldo e Fátima surgiu a partir de uma oficina realizada pelo
projeto de Artesanato do Sebrae Paraíba e o Programa do Artesanato Paraibano
ministrado pelo estilista. A oficina aconteceu em março deste ano, na região do
Cariri paraibano, e na ocasião Ronaldo conheceu de perto o trabalho dos
artesãos de Camalaú, Zabelê, São Sebastião do Umbuzeiro, São João do Tigre
e Monteiro, realizou contatos e mostrou mais uma vez sua admiração pela
10
Fonte: Notícia do Portal Paraíba Total, intitulada “Cursos oferecidos pelo Sebrae-PB melhoraram produção da renda
renascença no Cariri”, disponível em: <http://www.paraibatotal.com.br/noticias/2013/04/22/17286-cursos-oferecidos-pelosebrae-pb-melhoraram-producao-da-renda-renascenca-no-cariri>. Acesso em 26 mai. 2013.
14
delicadeza e sofisticação do artesanato local11. (Portal PB Notícias, 2010; grifos
meus)
Imagem 15: Ronaldo Fraga ministrando “oficina para
novas alternativas na renda renascença”, em Monteiro.
Fonte: Notícia “Programa de Artesanato promove oficina
sobre renda renascença”, de 23 de março de 2010, publicada
no
Portal
iParaíba.
Disponível
em:
<http://www.iparaiba.com.br/noticias.php?noticia=175867&
categoria=3>. Acesso em 12 jul. 2013.
Imagem 16: Rendeira Fátima Suelene e Ronaldo
Fraga, no ateliê do estilista em Belo Horizonte.
Fonte: Notícia veiculada no Portal PB Notícias em 16 de
abril de 2010, com o título “Renda Renascença paraibana
desfila nas passarelas da SPFW”. Disponível em:
<http://www.pbnoticias.com/images/fotos_p2_news/127141
2633.jpg>. Acesso em 12 jul. 2013.
De forma semelhante a Martha Medeiros, na oficina que ministrou para as rendeiras,
Ronaldo Fraga propôs novas alternativas para o trabalho com a renda renascença, assim como
na sua coleção, quando misturou os pontos da renascença com os padrões coloridos da chita,
influenciou o contexto local de produção das rendeiras. Esta intervenção provavelmente
causou mudanças e ressignificou a forma como as rendeiras se relacionam com o seu
trabalho.
11
Fonte: Notícia veiculada no Portal PB Notícias em 16 de abril de 2010, com o título “Renda Renascença paraibana desfila
nas passarelas da SPFW”. Disponível em: <http://www.pbnoticias.com/index.php?categoryid=21&p2_articleid=3039>.
Acesso em 12 jul. 2013.
15
Patrimonialização e busca por reconhecimento
Esta ressignificação da renascença trazida pelo Sebrae e pelo Governo da Paraíba,
estimulou também iniciativas coletivas de legitimação da atividade das rendeiras e na busca
de reconhecimento e diferenciação da renda produzida em território paraibano, como a
solicitação do Selo de Indicação Geográfica (IG) para a produção da renda renascença da
Paraíba, em trâmite no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) desde 201212.
A IG é um instrumento regulado pela Lei de Propriedade Industrial, conferido a
regiões que ganham fama por seus produtos ou serviços, podendo ser um fator decisivo para
garantir diferenciação. Segundo o INPI: “Esta IG delimita a área de produção, restringindo
seu uso aos produtores da região (em geral, uma Associação) e onde, mantendo os padrões
locais, impede que outras pessoas usem o nome da região com produtos de baixa
qualidade”13.
A IG das produtoras de renda renascença, do tipo “Indicação de Procedência” (IP),
ainda não foi concedida pelo INPI, mas pode representar um eficiente instrumento de
empoderamento das rendeiras paraibanas e valorização do ofício, que, na esfera da
propriedade intelectual, possibilitaria meios possíveis de afirmação de identidade,
reivindicação do direito autoral de sua produção e garantia de remuneração compatível com a
produção de renascença frente aos atravessadores e consumidores.
Outro caminho do reconhecimento, afirmação e valorização da renda renascença
poderia se dar no âmbito institucional, através de programas e políticas públicas de
legitimação e reconhecimento da tradição e da produção artesanal das rendeiras. No entanto,
em algumas ações desta natureza ocorre o desvirtuamento deste papel do Estado, resultante de
recortes temáticos e seleções que excluem sujeitos sociais relevantes e processos produtivos
fundamentais. Um exemplo paradigmático é a política pública de reconhecimento do “modo
de fazer renda irlandesa no município de Divina Pastora, em Sergipe” como Patrimônio
Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A cidade de Divina Pastora se tornou o principal polo da renda irlandesa em razão de
condições históricas de produção vinculadas à tradição dos engenhos canavieiros, abolição da
12
Solicitação de Selo de Indicação Geográfica nº. BR402012000005-5 do tipo IP (Indicação de Procedência), referente à
localização geográfica “Cariri Paraibano”, requerida em 13/04/2012 pelo Conselho Ass. Coop. Emp. Ent. Renda Renascença
– Conarenda. O pedido foi publicado na Revista de Propriedade Industrial (RPI) nº. 2188, de 11 de dezembro de 2012.
13
Portal
do
INPI.
Disponível
no
link:
<http://www.inpi.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=68&Itemid=103>. Acesso em 23 jul. 2012).
16
escravatura e mudanças econômicas que culminaram na apropriação popular do ofício de
rendeira, restrito originalmente à aristocracia. Essa tarefa atualmente ocupa mais de uma
centena de artesãs. A renda irlandesa se diferencia da renda renascença por utilizar um cordão
flexível e brilhoso, chamado de lacê, em substituição ao fitilho, fita de algodão utilizada na
renascença. O fitilho era utilizado pelas rendeiras de Sergipe, mas foi gradualmente
substituído ao longo do século XX, sem no entanto alterar a técnica e o processo de
fabricação, os riscos e pontos da renda renascença original.
Em Sergipe, a opção das mulheres no município de Divina Pastora por
trabalharem com o lacê do tipo cordão sedoso achatado, mesmo empregando
uma técnica que é muito difundida no Nordeste, resultou na confecção de uma
renda singular, de grande beleza, ressaltada pelo relevo e brilho do lacê. Isto
confere ao produto do seu trabalho um diferencial em relação às rendas
produzidas em vários estados da Região. Desse modo, a renda irlandesa de
Divina Pastora, devido ao tipo de matéria-prima empregada, apresenta
características próprias, gerando um produto em que textura, brilho, relevo,
sinuosidades dos desenhos se combinam de modo especial, resultando numa
renda original e sofisticada. (IPHAN, 2009, p.4)
Imagem 17: Renda irlandesa
Imagem 18: Renda renascença.
Fonte:
Disponível
em:
<http://1.bp.blogspot.com/_MlajVQHCg0c/TKzVxMmeMuI
/AAAAAAAAAGY/Y_uiWIXq1ik/s1600/Renda+Irlandesa.
JPG>. Acesso em 12 jul. 2013.
Foto: Carla Gisele Moraes, 2012.
O IPHAN, ao considerar patrimônio cultural intangível em virtude da substituição de
uma matéria-prima por outra, apenas o saber relacionado à renda irlandesa, excluindo a
renascença, da qual derivou, parece desconsiderar o processo dinâmico de produção, que a
cada dia se diferencia e se reinventa, incorporando elementos, abandonando outros, mas
continuamente sendo reafirmado e reproduzido pelas mulheres rendeiras.
O artigo 216 da Constituição Federal de 1988 compreende o patrimônio cultural
17
brasileiro como os bens culturais “portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, nos quais se incluem, entre outros,
“as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver e as criações científicas, artísticas e
tecnológicas”. Na conjuntura analisada, é perceptível que o processo de valorização de
referências culturais seleciona alguns saberes em detrimento de outros, a despeito da atual
política de preservação, que aponta para o reconhecimento da diversidade cultural brasileira.
Tecendo redes e relações: apontamentos preliminares de uma pesquisa em construção
As recentes iniciativas de fomento à produção e comercialização de renda renascença
na Paraíba têm sido fundamentais para uma significativa reconfiguração da atividade, que
contempla tanto a ressignificação de aspectos tradicionais da produção, relações familiares,
transmissão de saberes, formas e modos de tecer a trama de pontos da renda, como tem
estabelecido nos níveis regional e nacional redes de interação, comunicação, escoamento da
produção, exposição dos produtos e novos arranjos produtivos.
As políticas públicas de fomento ao turismo e ao artesanato paraibano receberam forte
incremento do Sebrae-PB e de organizações da sociedade civil, como o Coletivo Parai’wa,
reestruturando a atividade de produção e comercialização dos produtos. A necessidade de se
voltar para o mercado externo, atendendo às exigências dos turistas e aumentando a qualidade
dos produtos, a possibilidade de criação de um selo de qualidade que conferiria distinção aos
produtos da renascença paraibana e o associativismo das rendeiras são empreendimentos
recentes que buscam o fortalecimento da renda como produto para consumo do turismo.
A intervenção do Sebrae-PB, do Governo da Paraíba e a inserção destes novos agentes
no processo de produção da renda renascença trouxe uma nova dinâmica à atividade, pois
estabeleceu pontes e redes sociais antes bastante improváveis, estabeleceu novos sentidos às
rendeiras que trabalhavam de forma isolada em suas residências, desmantelou antigas lógicas
e implantou novas, reestruturando de maneira bastante importante a produção e a
comercialização dos produtos.
Percebe-se, neste processo, o empoderamento de algumas rendeiras, que atingiram um
capital simbólico diferenciado em relação às outras, por sua representatividade e seu lugar
social nos grupos e interações estabelecidas com as instituições responsáveis pela
implementação das políticas de fomento à atividade.
18
Percebo nestes processos de reestruturação produtiva algumas iniciativas que
modificam o caráter da atividade, impossibilitando a reprodução de determinadas técnicas do
modo como se realizavam no passado e trazendo dinamismo à produção da renda.
Parece-me, em apontamentos preliminares, que as políticas e incentivos à produção,
divulgação e comercialização da renda renascença não levam integralmente em consideração
os traços singulares do modo de fazer tradicional, de forma que a inserção do produto no
mercado consumidor se dá com o distanciamento das referências culturais tradicionais
associadas ao ofício, talvez sendo equivocada por não compreender e tomar partido do valor
patrimonial como um aspecto diferencial, que agrega valor ao produto comercializado.
A possibilidade de conferir às artesãs de renda renascença um Selo de Indicação
Geográfica parece uma alternativa viável para garantir e proteger a propriedade intelectual
destas rendeiras, minimizando a atuação dos atravessadores e o anonimato de muitas delas,
tendo em vista que poucas delas conseguem algum reconhecimento para além do contexto
local.
Mas a política pública cultural, de turismo ou de fomento à atividade considerando seu
caráter econômico deveria avançar para além dos moldes atuais de atuação, assegurando o
reconhecimento dos reais detentores dos saberes tradicionais, assim como a justa remuneração
pelo trabalho realizado, considerando condições de produção, grau de complexidade e valor
não somente monetário, mas intelectual e simbólico da produção das rendeiras.
No processo de registro da renda irlandesa como patrimônio nacional, o entendimento
deveria partir do geral para o particular, entendendo a renda irlandesa como uma variação
derivada da renda renascença, e, portanto, considerando o caráter dinâmico das referências
culturais, que estão sempre em processo de ressignificação, e a diversidade cultural brasileira.
Da mesma maneira, talvez pareça igualmente excludente a atribuição de um Selo de
Indicação Geográfica à renda renascença da Paraíba, deixando à margem todo um contexto
socioeconômico e cultural de produção da renda renascença em outros estados do Nordeste.
Esta política pública da valorização do artesanato, e mais especialmente da renda renascença,
não deveria ter, por outro lado, um caráter inclusivo, ao invés de segmentar territórios e
categorias?
As reconfigurações produtiva e comercial recentes fazem parte, sem dúvida, dos
processos de ressignificação da atividade da renda. Resta desvendar como esses processos
têm sido recebidos pelas e de que maneira têm contribuído para transformações no caráter
tradicional desta atividade, a ponto de desmantelar toda a estrutura social a partir da qual a
19
produção se organizava tradicionalmente antes da inserção dos novos atores e redes sociais de
interação. Os dados colhidos em campo e na pesquisa documental até o momento ainda são
insuficientes para o desvendamento destas questões, que pretendo aprofundar e procurar
responder no decorrer da pesquisa.
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