voltada ao - Companhia do Latão

Transcrição

voltada ao - Companhia do Latão
Ettore Petrolini
Um gênio da
comédia que
não foi
levado a
sério
2003
junho
Um jornal pau-pra-toda-obra
4
teatro em debate
Encenação
voltada ao
ggrruupp
oo
2
O SARRAFO
Número 4
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Junho 2003
Nossos endereços
O
SARRAFO CHEGA ao seu quarto número comemorando o sucesso e a recepção que tem tido dos leitores. A sua distribuição tem chegado a Belo Horizonte,
Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Grande São Paulo. Isto tudo graças à
colaboração de grupos e amigos dessas cidades, que vêem no jornal um importante veículo para as discussões sobre o ofício teatral. Como afirmávamos em
nosso primeiro número “(...) há uma carência de publicações que discutam,
com pertinência e competência, o ofício teatral levando-se em conta a diversidade de propostas estéticas e o conjunto de problemas colocados, hoje, para os
grupos e companhias”. Até aqui, como diz Tersites de Souza, seguimos firme no
lema um “jornal pau-pra-toda-obra”.
A
S INSCRIÇÕES para a Lei de Fomento ao Teatro estão abertas. É o momento
oportuno para a classe teatral tomar consciência de suas responsabilidades com
relação ao aprimoramento e desenvolvimento da Lei. Responsabilidade essa que
tem início com a redação do projeto a ser apresentado à Lei. Vale lembrar um
velho ditado chinês – “quem não participa, quem se omite, não tem direito de
chorar o leite derramado!” No último edital essa “responsabilidade deixou a
desejar, somente metade dos responsáveis pelos projetos inscritos votaram para
escolher a comissão julgadora”. O preço da cidadania é a eterna militância!
O
S ENCENADORES das companhias e grupos que editam O Sarrafo falam sobre o processo de trabalho e de criação que orientam seus coletivos criativos.
Uma oportunidade para se conhecer os diferentes caminhos que são percorridos
para se criar o espetáculo teatral. Nestes tempos em que o fazer teatral encontra-se tão adulterado é uma ótima oportunidade para se refletir sobre a sua
singularidade e abrangência em relação às outras linguagens artísticas.
Queridos amigos do Sarrafo
Quero esclarecer o seguinte:
Na edição do texto escrito por
mim sobre o tema da crítica foi omitida a citação ao estudo de Fredric
Jameson, do livro Pós-modernismo, a
Lógica Cultural do Capitalismo Tardio.
(Ática, 2000). O trecho citado é o
seguinte: ...como “medir a temperatura de uma época em uma situação
em que nem mesmo estejamos certos
de que ainda exista algo com a coerência de uma ‘época’, ou ‘sistema’, ou
‘situação corrente’?”
Ademais, gostaria de esclarecer
que meu texto não foi enviado ao jornal como réplica ao comentário da
Atividades dirigidas ao aperfeiçoamento do
trabalho do ator e à reflexão sobre o fazer teatral.
Telefone: 3284-0290
[email protected]
www.agoranarede.com.br
COMPANHIA FOLIAS D’ARTE
Single singer bar, sextas e sábados à meia-noite no bar do Procópio
Ferreira. Estréia de Otelo, no dia 20 de junho.
Telefone: 3361-2223
[email protected]
TEATRO DA VERTIGEM
Com residência artística na Casa nº 1, centro velho de São Paulo,
oferece programação cultural aberta ao público: oficinas, grupos de
estudo, shows musicais e espetáculos.
Tel: 3241-3132 e 9114-3410
[email protected]
www.teatrodavertigem.com.br
COMPANHIA DO LATÃO
Sediada no Teatro Cacilda Becker, da Prefeitura de São Paulo,
desenvolve pesquisa em teatro dialético. Prepara espetáculo sobre a
manipulação do imaginário com estréia prevista para início de agosto.
Telefone: 3672-8939
[email protected]
www.companhiadolatao.com.br
PARLAPATÕES
Car tas
A PEDIDO
ÁGORA – CDT CENTRO PARA
DESENVOLVIMENTO TEATRAL
professora Iná Camargo Costa, inclusive porque não há essencialmente
discordância entre pontos de vista. O
texto foi solicitado pela editoria e escrito com a intenção de colaborar na
discussão do tema, não mais.
Crie-se uma seção “Erramos” e
publique-se.
Vida longa ao Sarrafo!
Abraço,
Kil Abreu
NOTA DA REDAÇAO: O texto
de Kil Abreu foi de fato solicitado pelos editores. Apesar do erro em qualificá-lo de “réplica”, acreditamos que ele
manifesta, sim, discordância em relação ao de Iná Camargo Costa.
O SARRAFO um jornal pau-pra-toda-obra
Publicação independente produzida pelos grupos Ágora, Companhia do Latão, Companhia Folias d’Arte,
Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, Parlapatões e Teatro da Vertigem.
Editores: Aline Meyer, Ali Saleh (coordenador administrativo), Hugo Possolo (coordenador de arte),
Márcio Marciano, Míriam Rinaldi, Dagoberto Feliz, Roberto Lage, Sérgio de Carvalho (coordenador editorial).
Colaboraram nesta edição: Aderbal Freire-Filho, Ademir Garcia, Ricardo Tavares, Roberto Cattani e Tersites
de Souza.
Versão para Internet e editor colaborador: Márcio Boaro, da Companhia Ocamorana.
Assistente editorial: Vanessa Bruno.
Jornalista responsável: Eucléa Bruno (Mtb 8.283). Diagramação: Pedro Penafiel.
Impressão e fotolito: Gazeta de São Paulo. Tiragem: 10 mil exemplares.
Em cartaz no Teatro Ruth Escobar, As nuvens e/ou um deus chamado
dinheiro, adaptação da obra de Aristófanes.
Tel./fax: (11) 3061-9799
[email protected]
www.parlapatoes.com.br
FRATERNAL COMPANHIA DE ARTE E MALAS-ARTES
Desenvolve o Projeto Comédia Popular Brasileira.
Prepara a montagem do novo espetáculo Auto do Migrante,
com estréia em agosto de 2003.
Teatro Paulo Eiró
Tel/Fax: 5546-0449
[email protected]
www.fraternal-cia.com
DISPONÍVEL PARA A LEITURA
Rio de Janeiro
CIA. ENSAIO ABERTO
Tel.: (21) 2274-2511
www.ensaioaberto.com
Belo Horizonte
GRUPO TEATRO ANDANTE
Tel.: (31) 3466-7827
O SARRAFO é distribuído ou encontra-se à disposição para leitura
nos seguintes locais: Universidade de São Paulo, na Faculdades de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (biblioteca) e na de Comunicação e
Artes; Escola de Teatro INDAC; PUC-SP; FAAP (Depto. de Artes
Plásticas) e nas unidades do SESC-SP.
Os grupos que editam O Sarrafo recebem o apoio do PROGRAMA
MUNICIPAL DE FOMENTO AO TEATRO para a Cidade de São Paulo
Correspondência para O SARRAFO poderá ser enviada pelo
e-mail [email protected].
Versão on-line do jornal pelo site www.jornalsarrafo.com.br
Junho 2003
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Número 4
O SARRAFO
A arte (quase) invisível
invisível
Aderbal Freire-Filho
O alfaiate do rei nu, eis o homem! Todos, está
bem, quase todos vêem os trajes que ele não fez. Seu ofício
está no extremo de uma fieira que tem o diretor de teatro no extremo oposto. Nem um, nem outro entraram na lista de ofícios que a
reportagem especial da revista Veja dedicou aos bem-sucedidos em suas carreiras. Quanto ganha e o que faz um alfaiate de rei nu, quanto ganha e o que faz um
diretor de teatro? Resposta da Revista Veja: sei lá, não quero saber, não me interessa. Bem,
é melhor ficar com biólogos, publicitários e administradores de empresas, até porque o mercado de trabalho para alfaiates de reis nus e diretores de teatro não é dos melhores. E, dos dois, pior
ainda para diretores de teatro, se considerarmos, claro, os bacharéis que se dedicam a “vestir” reis nus
(ou vestir “reis” nus; os vestir reis “nus”).
Mas porque eles são os extremos opostos de uma fieira de ofícios e profissões? Em poucas palavras: os
alfaiates de reis nus não fazem o que quase todos vêem, as roupas dos reis nus, e os diretores de teatro fazem o
que quase ninguém vê, a mise-en-scène de uma peça de teatro. Vou abandonar agora os alfaiates de reis nus, eles
que criem seu sindicato. Vou falar duas ou três coisas dos que conheço, os diretores de teatro, até porque sou um
deles. Como é isso de que quase ninguém vê o que eles fazem, se alguns são tão famosos? Se quase ninguém vê,
quem são os poucos que vêem e o que eles vêm? E o que fazem, afinal, os diretores de teatro? Não vou responder na
ordem, nem sei se vou responder.
A julgar pelo que dizem deles, o que eles fazem não é difícil de saber: eles gritam (dizem que os diretores de televisão
gritam mais). E, às vezes, eles escrevem sobre o que fazem. Bom. Como eles não estão presentes no espetáculo, como os
atores; nem estão representados no espetáculo por coisas concretas, palpáveis, como os cenógrafos estão pelos cenários,
os compositores pelas músicas, os autores pelos personagens, situações, diálogos, é natural que a identificação da sua
“obra” seja difícil. E outra conseqüência disso é também natural: os diretores “efeitistas” são mais reconhecidos, eles são
os autores dos efeitos, eles jogam para a platéia (a patuléia, na corruptela). Daí costumam sair os famosos, o que está
muito bem. O mal é quando isso vira padrão de qualidade e a qualidade verdadeira não conta.
Dou um exemplo. Peter Brook, que era famoso também aqui, enquanto quase ninguém tinha visto seus espetáculos, acaba de chegar ao Brasil. Como sua qualidade não é feita de “efeitismos”, ver a qualidade verdadeira dos seus
espetáculos foi, para muitos, decepcionante (se ele voltar outras vezes vai acabar perdendo a fama). Ouvi muita
gente saindo pela tangente: ah, ele agora está optando pela simplicidade. Ora, Brook é simples há muitos anos, seu
Timão de Atenas, de 1974 (um senhor de 30 anos), era de uma simplicidade roxa. Mas tanto lá, como agora, suas
qualidades estavam ali, escandalosas, no jogo dos atores e com os atores, na vida luminosa de um teatro vivo
(valha a redundância), na transformação da palavra em ação – e aí está o segredaço.
Chamo aqui essa transformação de revolução do princípio e a defino como a grande revolução que o
poeta da cena deve fazer para a construção, no palco, da sociedade da poesia viva: o que no princípio
era verbo, no princípio passa a ser ação. Mas isso é difícil de ser visto. A autoria do espetáculo, no
final, se confunde tanto com a do autor e a dos atores que mesmo os colaboradores próximos
muitas vezes não percebem. Mas é natural que seja assim. Os primeiros diretores de teatro
foram os próprios autores; os diretores de teatro de hoje, portanto, são Sófocles vivo,
Shakespeare vivo, Molière vivo, quando não ele mesmo – o diretor – inaugurando
outra dinastia do Fantasma. É assim a imortalidade dessa arte efêmera.
Enfim, esse papo é só um começo de conversa, não dá tempo de
Aderbal Freire-Filho
esmiuçar. Arrisco uma generalização, dizendo que tudo o que o
é diretor e está em cardiretor de teatro faz, ou pode fazer, é fruto da sua constaz no Teatro FAAP
ciência da natureza da ilusão particular do
com a peça A Prova.
teatro. Não gritar também é bom.
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Número 4
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Junho 2003
Fotos de Lígia Jardim
O Sarrafo reuniu
cinco dos
diretores teatrais
que compõem o
grupo editorial do
jornal. Ednaldo
Freire, Roberto
Lage, Hugo
Possolo, Marco
Antônio
Rodrigues,
Antônio Araújo.
No dia do
encontro, antes
que o debate
tivesse curso,
cada um deles
fez um
depoimento
relatando sua
experiência com
o ofício. Optamos
em manter a
mesma estrutura.
O SARRAFO
Encenação repensada
EDNALDO FREIRE – Não tem função mais efêmera que a do diretor. Fim
do espetáculo, os atores continuam e
o diretor fica naquela penumbra...
HUGO POSSOLO – Ah... mas você
não vai lá perturbar?
FREIRE – Eu não perturbo... eu não!
POSSOLO – Não? Pra mim, o espetáculo é mutante.
FREIRE – Não quer dizer que não
seja, mas é efêmero, porque ele é um
agente da contemporaneidade. Hamlet, por exemplo. Você o torna um
contemporâneo porque o texto é eterno. A função do diretor é a função
do presente, de refletir a relevância
do trabalho. Isso é o que norteia a
escolha do que fazer do nosso grupo,
dentro desta proposta celebrativa do
teatro popular, a vertente que abraçamos. Agora, se a função existe, para
alguma coisa há de servir.
POSSOLO – Abujamra diz que é a
arte de se fazer desnecessário...
MARCO ANTÔNIO RODRIGUES –
Da mesma forma que o ator está preocupado com o que vem antes, o diretor também quer instigar o que tem
antes do texto, antes do ator estar em
cena, digamos, o que está no mundo.
Este papel é a especificidade do diretor. Em geral, os atores lêem muito
menos do que deveriam, criam muito menos do que deveriam e se não
houver essa figura por trás potencializando, sendo provocado e provocan-
do, não dá em nada.
POSSOLO – Não estou querendo
esvaziar a função, mas dar a ela outra
atualidade. O que interessa é a disponibilidade ao fazer artístico. A maneira
como você se põe para realizar devido
a diversas razões, conteúdo, capacidade efêmera que o teatro tem e, em contrapartida, de ser eterno nas emoções
e no pensamento de quem o assistiu.
RODRIGUES – Eu invejo, confesso, os caras que você têm. Primeiro,
porque eu tenho preguiça de estar entrando em cena. Também já tentei escrever, mas achei muito solitário, gosto mesmo da coisa coletiva. Entrar
em cena todo dia é heróico, bonito,
mas não tenho mais saco.
Sempre me neguei a ser um mestre-de-obra do texto, do dramaturgo, deste textocentrismo que alguns pregam, que o diretor seja apenas um
intérprete do autor. Esta postura sempre foi uma preocupação para mim, que sempre trabalhei em grupo porque este processo nos obriga a questionar
formas autoritárias de impor o trabalho criativo. Já vimos na história várias tendências, inclusive recentes, do diretor-autor e, agora, no trabalho que
realizamos, realmente participativo – não do ponto de vista babaca do teatro coletivo, que na década de 70 se pensava ser ideal.
Temos a felicidade de estarmos com o autor próximo e até costumamos brincar ao dizer que autor bom, para nós, é autor vivo. Autor morto nada
tem a dizer. Em nosso grupo, cada um tem seu ponto criador, compartilhado em algum momento. Não tem aquela do autor ser um engenheiro, o
diretor um mestre-de-obra e os atores, pedreiros. Todos querem participar
do projeto. Assim não há conflito: o autor escreve o texto, a gente trabalha
a direção. Evidentemente, há um momento onde o conflito se estabelece.
Agora mesmo vivenciamos isso. Como utilizar o material das entrevistas
sobre o migrante, nascido de uma investigação sobre as sagas familiares
da região sul. O autor iniciou a concepção só depois de todas as idéias
serem colocadas e debatidas. Foi um parto difícil.
Minha visão como diretor, uma palavra até um tanto autoritária, é a de ser
um regulador de idéias que, além de organizar o espetáculo cênico, ajuda a
organizar as idéias como um todo. Teatro é arte coletiva e, como tal, só pode
ser feito de forma coletiva. Não dá para impor. E se alguém estiver impondo
alguma coisa, algo está errado.
ednaldo freire
POSSOLO – E vaidosa.
ROBERTO LAGE – A questão do teatro participativo/colaborativo não está
clara porque, para mim, sempre foi assim. Mesmo num espetáculo tradicional que eu tenha participado, onde as
figuras estão absolutamente colocadas
como cenógrafo, figurinista, iluminador, diretor, ator, a queda-de-braço
sempre existiu. É isso que eu quero entender melhor. Por exemplo, vou fazer
um trabalho com o cenógrafo, na acepção da palavra, ele sempre tem três ou
quatro opções para apresentar. Brigase, discute-se muito para chegar à cenografia final. Em outros, a discussão
se estende à equipe. Eu nunca participei de um trabalho onde um não desse
um pitaco no trabalho do outro.
POSSOLO – As pessoas que estão
querendo se formar ou se voltar ao
teatro, às vezes enxergam modelos
que chegam a elas muito mais fortes.
Modelos de publicidade, por exemplo, de televisão, onde na produção
este modelo não está inserido. Nem
estou falando apenas de um teatro
comercial. Me refiro a uma produção
industrial, que é o da televisão, do
cinema, da publicidade, por decorrência, um gênero bem inferior, colocado como modelo para a garotada
que está chegando. Muitas vezes, em
oficina de figurino, tem o artista de
visão romântica, com desenho intocável, que não se discute, que não é
coletivizada. Porém, o teatro tem uma
abrangência coletiva de pensamento.
RODRIGUES – O fato de você trabalhar com uma equipe por muito
tempo, como é o caso do Galpão, dá
um tipo de intimidade, onde a interferência se dá sim. O que não signifi-
Junho 2003
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ca que cada um não domine suas coisas. Mas não é uma criação coletiva,
não passa perto e nem quer ser. Tem
uma assinatura.
POSSOLO – A gente usa muito o
termo processo colaborativo para repensar o jeito do trabalho, em contraponto à criação coletiva. Por que? Na
criação coletiva, você tem o desejo de
apagar as funções. Já no processo colaborativo, há as funções. Tem alguém
que responde pela luz, pela dramaturgia, pela direção que, em casos de conflitos insolúveis, dá a palavra final. No
teatro convencional, me parece que
estas funções têm limites mais rígidos.
Você virar para um dramaturgo e dizer que não gostou de determinado
trecho, poderia ser visto como um super desrespeito. No nosso trabalho,
meter a mão na cumbuca do outro, é
super bem vindo.
LAGE – Está muito claro. Por
exemplo, no Ágora, que a médio ou
curto prazo vamos nos tornar um grupo, estamos trabalhando um texto de
Camus. Por isso, estamos mergulhados nele. Conseqüentemente, vamos
todos juntos discutir uma concepção
para esta peça. Fora do Ágora, como
diretor contratado, dirigindo Mário
Prata ou Maria Adelaide Amaral, este
bate-bola também existe. E é grande. Já cheguei a mudar toda a ordem
de uma cena por causa da interferência de um sonoplasta.
RODRIGUES – Tem uma diferença
de grau, Lage. Você não pode, dentro
de um grupo, por princípio ético, tirar
alguém. Mas sim achar um caminho,
uma solução. Há questões que batem
de frente. No caso, estou dirigindo,
você é o produtor e tem o cenógrafo.
A gente ensaia e nada funciona. Não
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O SARRAFO
Número 4
O que me move a fazer teatro é, antes de mais nada, a possibilidade de interferir e
levar um conjunto social à reflexão. Para mim, o que interessa é a questão do conteúdo,
mais do que o fenômeno estético. Com esse interesse, a função que melhor desempenho é a direção. E como não trabalho com um único grupo, mas sou, muitas vezes
contratado por grupos, organizo um conjunto de pessoas.
Não tenho preconceito com nenhuma linguagem, nenhum gênero ou forma de fazer
teatro, desde que o conteúdo bata com a minha maneira de pensar e acredite ser pertinente ao momento e à sociedade. A partir daí, o tratamento a ser dado é o que eu considere mais adequado. Não vou obsessivamente atrás de uma única estética nem trabalho
em cima de um único gênero. Ao contrário. Quanto mais diversifico minha experiência e
vivência com as diversas linguagens, processos e procedimentos, mais me agrada.
Quando vou trabalhar, por exemplo, em uma escola de teatro, como na EAD ou no
Soeur Helena, estabeleço um processo de trabalho muito mais didático. Procuro fazer com que o ator tenha absoluta consciência do que está acontecendo, do porquê está acontecendo. Tento oferecer a este indivíduo em processo de formação ou conclusão de curso, um procedimento que sirva para
ele como uma instrumentação de trabalho, o leve a perceber, e isso é fundamental, sobre sua responsabilidade pelo ofício que escolheu.
Num esquema mais convencional, meu trabalho é muito mais ditatorial, pelo fato de não existir uma estética a ser discutida, na maioria das
vezes, com esse conjunto. Eu fecho uma idéia do espetáculo, determino a estética mais adequada e ponho as pessoas a cumprir este trabalho.
Entendo que estou lá mais significativamente pelo conteúdo do trabalho, estou lá também pela grana que estou ganhando e não é um segmento de
realização de espetáculo onde se possa correr grandes riscos. É um comportamento totalmente distinto do que tenho dentro de uma escola de
teatro. Igualmente quando trabalho no Ágora, que é um centro de estudos antes de mais nada, e não um grupo de teatro, e abriga ali alguns atores
interessados em estudar desde técnicas de interpretação até processos mais investigativos do fazer teatral. É quando tenho comportamento bastante didático/pedagógico, e nossa relação é coletiva, de troca, um trabalho realmente coletivo. Nesse caso, minha função é muito mais colaborar
e oferecer minha experiência profissional e também de ordenar e coordenar a criação.
O outro lado – já que minha paixão é conteúdo – é quando sirvo ao autor e ao ator, elementos básicos com os quais inicio o trabalho. Se eu não
concordo com o texto eu não faço; se não concordo com o tratamento dado ao texto, também não trabalho, por não querer subverter o autor. Na maioria
das vezes não tenho um projeto pré-estabelecido de encenação. Ele flui a partir de pressupostos que melhor se adaptem à apresentação deste conteúdo
e também na minha relação com os atores nos ensaios.
roberto lage
dá outra, ou eu ou ele. O produtor vai
ter que resolver isso. Essa é a questão
da responsabilidade.
POSSOLO – Mas, em grupo, também se pode ter esse choque, Marcão.
RODRIGUES – Mas em grupo a
relação foi construída ao longo do
tempo. Existe um alfabeto particu-
lar onde você se comunica e encontra o caminho. Em outras situações,
não há tempo, a formação é muito
diversa e aí tem que definir. Acho
que existe uma diferença de gradação. No grupo, você tem uma relação. Na produção convencional, a
história é outra.
FREIRE – Mesmo dentro do grupo, você não pode dispensar as habilidades e as competências. É por isso
que a gente se junta. Cada um na sua,
mas juntos para criar o projeto. Acho
que é complicado isso tudo porque a
gente fala muito em grupo e dá a impressão que é uma coisa ideal. Mas
A questão de trabalhar com arte é de primeiro compreender, de tentar entender; segundo, de tentar expor. O que me interessa muito é tentar, mesmo que egoisticamente, entender onde estou, o que está ao redor.
Para exemplificar, se trabalha Otelo agora, no Folias. Se está fazendo Otelo porque, institucionalmente, no Brasil, se estabeleceu uma diferença de um pacto político,
até então aristocrático no comando dos 500 anos do país. Mais recente se passou a ter um pacto da aristocracia com a classe trabalhadora. A relação político-econômica
mudou e vai bater na gente, de alguma forma. Esta situação passa a me interessar para tentar entender o que pode vir daí e o que pensar sobre ela. Talvez esse
entendimento possa ser socializado e trazer, de alguma forma, um tipo de pensamento. Essa é a questão da arte, de entender e expor.
Um amigo nosso, o Pedro Paulo Bogossian, define bem o que é diretor. Para ele, diretor é aproveitador de talento alheio. Concordo, mas exige uma cer ta
habilidade de saber explorar as potências, trazer para fora, o que não é simples, numa época onde está plantado o agradar a qualquer preço, a massificação
dos compor tamentos humanos. Essa riqueza que fica escondida tem que ser escavoucada de alguma forma para poder ser compreendida. Stanislavsky e Brecht revelam estruturas de compor tamento individual, como elas se inserem dentro de uma estrutura macro
e interferem entre si.
Como dar instrumental ao ator para sair dali, no Folias, pensando, ser um criador e não um
macaco com quinhentas técnicas, e de acordo com a solicitação, ele puxa uma. O que interessa
é que em algum momento, por conta da própria evolução burguesa, o teatro passou a privilegiar
o verbo em detrimento das outras técnicas.
É nesse momento que se dá o rompimento daquilo que a cultura indica como a cultura
elevada e a cultura popular, como sendo menor, a da comédia e outros estilos. Passou a interessar muito para nós reunir as coisas da dança, do circo, da música como raízes da nossa formação e recusar esse artista aristocrático, que ainda hoje vinga institucionalmente no teatro. O
protagonista é o próprio teatro.
marco antônio rodrigues
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O SARRAFO
Número 4
Fazer dramaturgia e atuar vem não só de um processo de grupo, mas também de
uma trajetória individual, onde fui tomando consciência de uma questão que seria pertinente voltarmos a falar. Existe uma tendência predominante na sociedade em que vivemos, de cidade pós-industrial, das profissões acabarem se segmentando em atividades
específicas. Curiosamente, o fato de eu trabalhar em comédia, teatro de rua, com um
caldo de elementos populares, acaba trazendo um envolvimento que não tem essa especificidade. Isso tudo para dizer assim: nunca me pensei exatamente ator, nunca me pensei exatamente autor e muito menos diretor.
Reflete um pouco essa maneira de realizar o espetáculo, que acabou gerando o Parlapatões. Ele traduz, de certa forma, cada um de nós ali inseridos, tanto os que circulam
no núcleo principal, os do segundo núcleo e os convidados. O que se coloca para os que chegam é exatamente o da apropriação do que se está
fazendo, ou seja, não existe piada autoral. Ela pertence a um coletivo.
Quando dirijo para a Unicamp, para a ECA, onde a postura didática vem também da exigência de uma ética profissional, não pego os alunos
achando que eles têm que aprender, até porque, no caso, são trabalhos de formatura. Digo: “ou vocês aprenderam o melhor desta profissão ou isso não
serve para você. Vai fazer outra coisa porque eu não quero gente que não tenha entendimento ético da profissão”. Exerço um papel radical, mais
autoritário. Não sou, no caso, nada didático. Vou fazê-los entender que o mundo é cruel, que não se está mais na fazendinha da Unicamp, da ECA,
fazendo teatrinho com seus amiguinhos.
Um outro aspecto é que, dentro dos Parlapatões, eu não me penso como diretor do espetáculo, mas penso o direcionamento que o grupo vem a ter. Não no
sentido de apontar o rumo onde ele deve chegar, porque a gente nunca sabe, mas o sentido de refletir e pensar o teatro que se está fazendo. A gente não faz só
o espetáculo. A gente produz um pensamento em torno de um espetáculo, que é direcionado, de certa forma, independente de eu estar dirigindo ou não.
Por isso, é que eu provoco e pesquiso. E acredito que isso acende outras possibilidades. No exemplo recente de As Nuvens, foi o que aconteceu. Na
avaliação do elenco, o processo do grupo foi o dono do espetáculo. E onde o grupo, por incrível que pareça, deu a maior parte da concepção, da
estética, de mecânica, que é como chamo a marcação, porque em comédia, primeiro a gente trabalha arquitetando, depois deixa fluir a emoção. Eu me
pego nisso. E quando percebo que tenho resposta – com os atores que estão no grupo ou convidados –, elas entendem que precisam se apropriar,
precisam tomar conta porque, do contrário, não vai significar nada ao público.
Claro, há uma série de conflitos, na verdade, e eles são colocados com um ímpeto mais vigoroso, que acaba se traduzindo em cena e acho que esse vigor existe
porque todo mundo se sente dono, embora tenha uma direção. O que quero é romper com o específico, com a profissão setorizada, que me incomoda muito.
hugo possolo
ela é só utópica. Na verdade, eu não
conheci nenhum grupo, desde a época de 70 até hoje, que não tivesse a
cabeça de um líder.
LAGE – Alguém precisa dar unidade.
FREIRE – Ou alguns líderes que,
de certa maneira, contaminem com
seu pensamento.
POSSOLO – Não queremos repetir o modelo que a gente recebeu
como herança, como a figura do predestinado. Mas acho que se acaba
criando uma discussão até para se
defender e não ser confundido com
esse tipo de modelo da década de 80,
que me incomoda e eu acho um pouco utópico.
LAGE – Incomodava a todos nós,
tanto é que estamos aqui hoje.
POSSOLO – Há quem defenda que
o processo colaborativo foi uma ótima expressão para se dizer que não
se fazia mais a criação coletiva da década de 60 e 70. Mas, fazemos uma
coisa que todos interferem, desde que
haja responsabilidade do dramaturgo. O mesmo ocorre na direção. Na
verdade, a função da direção não perdeu a importância.
ANTÔNIO ARAÚJO – Sinto que
esse tipo de trabalho é fruto da criação coletiva para não demonizar a década de 80, como também não correr o risco de não demonizar a criação coletiva. Talvez a maneira como
esteja ocorrendo seja diferente, por
isso a tentativa de achar outros nomes para definir este processo. Mas,
essa via – partir de um tema e desenvolver parte desse tema em um espetáculo – vai acontecer de novo, no
trabalho do Vertigem, porém, um
pouco diferente. Este trabalho coloca o ator em confronto com o pensar
o todo e não só a parte. No caso, a
concepção da obra não é só do diretor, ela passa por todos.
RODRIGUES – Mas com responsabilidades. Estamos conversando
aqui hoje porque o trabalho destes
grupos e de outros tantos conseguiram uma exceção, a ponto de fazer
com que as políticas reconhecessem
que a arte é um segmento importante da cultura na formação do país. Estaríamos num grupo amador, mimeografando este veículo, mas não tendo uma tiragem gráfica de 10 mil
exemplares. Por que? Porque a sociedade brasileira avançou. A luta não
está ganha e isso não é uma babaquice proselitista, mas existem responsabilidades. Pertenço a um grupo com
mais de 50 pessoas, sete formam a gerência que, se não segurar a peteca,
daqui a um mês o grupo acaba. Não
que os demais não sejam estimulados
a fazê-lo. Ninguém quer ficar de diretor, de gerente, de administrador.
O fato objetivo é que sem algumas
competências, as coisas não andam e
as pessoas lavam as mãos.
POSSOLO – Eu gosto disso que
você fala porque desindividualiza isso
de precisar de um líder. Não é de um
líder que se precisa, mas sim de lideranças, que às vezes lideram coisas
diferentes dentro de um grupo. Porque se não, podemos cair de novo naquela idéia de associá-lo àquele diretor. Quando provocadas, todas as pessoas têm a capacidade de liderança,
de ação e de responsabilidade.
LAGE – Se o projeto não é coletivo, não se tem o espetáculo...
POSSOLO – O público sente isso.
No fundo, a gente faz para quem vai.
Ele lê facilmente e sente que a coisa
está setorizada, sem sentido coletivo.
FREIRE – O Fellini falava que “os
velhos são gagos e os novos são gagás”. Eu acho que é a eterna discussão a respeito da concepção de se fazer porque, na realidade, ninguém tem
a solução. A nossa geração nasceu do
Arena, do Oficina. Tivemos essa referência levada à prática, que leva a
outra criação . É assim que as coisas
caminham. A diversidade viva. Viva
a diversidade! Mas não dá para dizer
que no Arena não se trabalhou coletivamente, mesmo tendo a cabeça do
Boal como o grande autor intelectual.
O mesmo no Oficina. Pode ser que sejamos diretores de uma arte nova, que
está querendo também ser autônoma,
que quer ter vez e não ser apenas o artesão do espetáculo ou do autor.
◆
Junho 2003
RODRIGUES – Quando eu insisto
na questão da responsabilidade, assim como responsabilidade cível e criminal. Por exemplo: quem é o responsável pelo Volksfarra? Não pode
ser uma criação coletiva. As coisas
têm responsabilidades. Não é que o
diretor seja responsável pelo espetáculo. Eu não acho isso. Mas existem
responsabilidades éticas com relação
a este ofício.
POSSOLO – Mas os processos que
eu tomei foram todos em cima de
mim mesmo. Eu fui lá e os respondi.
RODRIGUES – O democratismo
não se mistura com a democracia, por
isso não é fácil definir isso. Quando
o espetáculo está lá é um projeto de
todo mundo, se não, ninguém iria
atrás porque é duro trabalhar quatro,
cinco meses, um ano. Não existe essa
energia individual que possa mobilizar isso, porque grana não é. Sexo não
é porque não dá tempo. Existe um
motor que é de todo mundo. Aí é que
entram as responsabilidades éticas específicas. Do contrário, parece que
no caso do Volksfarra, o Ministério
da Cultura não tem nada com ele; o
Abujamra não tem nada com ele; e a
própria empresa também não tem
nada com ele. Foi uma coisa que nasceu de geração espontânea, que nasceu do seio da sociedade.
ARAÚJO – No caso do Vertigem,
a responsabilidade é de todos. Se você
perguntar de quem é a autoria, diremos que é de todos. Mas dentro da
autoria, existem as funções. Só desconfio um pouco sobre o entendimento do que falou o Lage, de servir o
autor. Na Mancha Roxa, uma peça
vigorosa, teatralmente falando, com
muito palavrão você traz um outro
componente, que é um componente
de delicadeza, de suavidade, de sussurro. Não acho que você serviu ao
autor. Ou temos que repensar o que
você chama de servir.
LAGE – Então a gente tem de repensar o que chamo de servir. Por um
lado é assim, quando eu li ou leio a
dramaturgia do Plínio Marcos, eu sinto ela, ela me permeia. Eu entendo
os personagens. Entendo aquelas
questões de uma determinada maneira que, em 99% das montagens que
eu assisti, não faziam jus ao texto.
Quando tratei a Mancha Roxa daquela maneira, objetivamente, foi o
que eu pretendi mesmo. A intimidade, a delicadeza, é porque eu acho
que o teatro do Plínio é assim. Não
essa coisa gritada, exacerbada. Esses
tipos de personagens têm aspectos que
normalmente não são cuidados nem
valorizados. Quando falo em servir,
não é no sentido de submissão, nem
subserviência. O servir está no sentido de como eu entendo este autor. E
já que concordo com sua escrita, penso qual seria a melhor maneira de tratar o texto e seus personagens.
Junho 2003
◆
ARAÚJO – Mas é uma leitura sua...
LAGE – É uma leitura minha, evidentemente. Não dá para não ser. Talvez eu nunca faça uma peça do Plínio
como ele a imaginava. Mas, trazendo
este texto para o meu mundo presente,
para o público de hoje. Da mesma maneira quando me refiro ao ator. Como
posso me relacionar para que ele seja o
melhor possível, dono do seu trabalho.
POSSOLO – Tem uma coisa bem
antiga, que é aquela concepção do diretor que se volta mais ao espetáculo
e o que se volta mais ao ator. Como
vocês pensam isso?
FREIRE – Posso acrescentar uma
terceira? Como cada um enxerga o
público em tudo isso?
POSSOLO – De certa forma, já
passamos perto disso. Como cada um
de nós concebe o espetáculo?
RODRIGUES – A gente funciona
muito mais como o cara que ajuda, de
algum jeito, a fazer surgir um caldeirão de coisas para todos entendermos.
E tem um segundo momento, onde as
funções se separam, que é quando o
ator vai lidar com aquele trabalho, eu
vou lidar com o trabalho dele e como
essa cena vai se organizar. Essa coisa
da compreensão, esse tempo, que é
longo, consome o tempo do grupo
todo. Acho que é uma tendência, também, na escolha de temas, que é fugir
do que é auto-referencial. O teatro é,
em si, muito isso. Hoje em dia isso é
um mote político importante do ponto de vista daquilo que institucionalmente a grande massa lê como teatro.
Ele fala do público, do atraso do público, do celular tocando. É um pouco a extensão da revista Caras. Então
o auto-referencial, por mais nobre que
seja, mesmo que ele seja o sonho de
uma noite de verão, acaba carregan-
7
O SARRAFO
Número 4
do água para este moinho. Ele é alienante. Então, temos uma preocupação
com o público, de socializar uma coisa que seja você enquanto gente e não
você enquanto coisa especifica. A
preocupação da gente enquanto gente ficou muito divorciada, ficou cifrada, porque a gente se desconectou.
POSSOLO – Há uma diferença em
uma produção de espetáculo eventual, quando ele tem um ponto de
partida qualquer de concepção, de
texto, e quando ele pode estar revelando as inquietações de um determinado coletivo. Um grupo não realiza um espetáculo que se encerra em
si mesmo, ele parte de uma busca, de
anseios de várias pessoas que não se
resolvem no espetáculo. Desse, você
apronta outro e mais outro. Nas seqüências dos espetáculos, vai se formando um caldo, onde todos os que
estão envolvidos vão beber.
ARAÚJO – Essa história de diretor
de espetáculo e diretor de ator, que se
teve por algum tempo, é um desvio,
uma excrescência. Para mim, o diretor
cuida da cena, como cuida do diretor.
POSSOLO – E tem muito por aí.
Para mim, essa é uma das razões para
o público ter se afastado do teatro. O
espetáculo não chega no público. Isso
não significa fazer o que o público
quer, chegar no público tem uma intenção que nem sempre é revelada
por esses dois caminhos – espetáculo
e ator –, que deveriam se juntar.
ARAÚJO – No momento da criação, não estou preocupado com o público. Eu me volto para os problemas,
as angústias daquele coletivo que está
construindo a obra e nisso a gente vai
fundo. O tempo necessário, um ano
até, dentro de uma sala de ensaio. Depois é que vem a preocupação com ele.
Tivemos recentemente com o Apocalipse, uma experiência muito positiva,
o ensaio aberto. Houve uma interação muito grande com as pessoas convidadas e, a medida em que eles comentavam, nós retrabalhávamos as
cenas. Considero isso uma vantagem
do teatro em comparação com as outras artes, como a pintura, o cinema.
FREIRE – Eu já tenho uma grande
preocupação com o público, até por
conta do alicerce do nosso projeto, que
é a comédia popular brasileira, porque
ela envolve a linguagem usada para falar com o público. Essa preocupação da
linguagem pode ser traduzida por uma
estética que o grupo vai construindo e
que alguns chamam de teatro popular.
Eu não concordo. Porque teatro popular é uma instância muito superior, onde
o povo não é só protagonista, mas também faz junto, como, por exemplo, se
joga futebol. Mas que tem essa referência e emana desta cultura. Para nós,
é uma postura política, não é um teatro político, embora tenha uma política estética, uma vez que a gente trabalha dentro de uma vertente da cultura
brasileira. Tem que se tentar buscar
uma linguagem brasileira, o que pode
ser uma utopia, mas se não acreditarmos, não daria para fazer nada.
RODRIGUES – Se você pega uma
coisa muito arraigada no imaginário
coletivo, como por exemplo Cristo,
você mexe comportamentalmente
com ele, de maneira subversiva e
transgressora. Estou fazendo este registro, porque isso pode dar uma outra leitura sobre o que se estava dizendo: a preocupação com o público
é a grande questão de Brecht, não o
discurso em si, mas a transgressão
comportamental e como ele mexe na
estrutura da família, na relação de
posse, na religiosidade. Está tudo lá e
acho que é uma preocupação intrínseca de quem está fazendo.
POSSOLO – O Antônio falou didaticamente que, em um segundo
momento, ele se preocupa com o público. Mas, o Ednaldo fala que está
só se preocupando com ele. E isso é
pôr em choque valores que o público
poderia dizer que não aceita.
FREIRE – A questão é levar justamente o público em conta nas discussões. Não é o bastante o meu coletivo
achar que é legal porque isso pode levar a uma arte fechada. Na época de
70, comecei a fazer teatro pelas portas
do Nacional Popular, que era fazer teatro político no ABC, um grande caldeirão a explodir, até que explodiu
mesmo. Em determinado momento, a
gente se agarrou ao teatro como ferramenta de luta, mera ingenuidade, mas,
naquela ocasião, importante. Muito
mais importante pelo fato que iniciamos um questionamento de como chegar a um público tão preconceituoso,
provinciano, oprimido pela ditadura.
Como fazer nosso teatro, que cara ele
vai ter, era a pergunta.
A gente tinha essa coisa quixotesca de querer ser herói e achar que
o teatro poderia transformar as pessoas, quando na verdade, as pessoas
não queriam ser transformadas. A
arte só transforma quando as pessoas
querem. A gente queria fazer teatro
sem saber. Punha o político à frente,
saía tudo muito mal feito. Para mim,
aí vem a história da linguagem, da
gente querer buscar uma linguagem
para aquele público nosso, na época
do amadorismo. A resposta, hoje, é
se apossando da raiz da cultura.
Edição: Eucléa Bruno
O fato de ter passado pela dramaturgia e trabalhado como ator foi fundamental na minha
experiência como diretor porque gerou uma sensibilidade para estas áreas.
O Teatro da Vertigem é resultado de um grupo de estudos. Essa forma marca meu trabalho
como diretor, marca o grupo, onde não existe hierarquia, ninguém é mais importante que ninguém dentro do processo de criação. Naquele momento, acredito que éramos oito atores, mais
o dramaturgo e o diretor, se completando, se atiçando, mas sem que nenhum desses pólos
tivesse mais voz ou mais peso. Essa não hierarquia equivale a uma travessia do grupo, denotando o desejo talvez de trabalhar de maneira diferente. Opondo-se ao que tínhamos na década
de 80, onde se tem a figura do diretor como o mais genial, o grande senhor da cena e, para nós,
esta figura central passa a não existir.
Eu tenho birra da expressão “servir ao texto” porque não gosto da palavra servidão.
Acredito que ninguém serve a ninguém. Gosto de provocar o dramaturgo, que ele me
provoque, provocar os atores, que me provoquem, o mesmo com os outros criadores
ar tísticos. Tanto quanto não gosto de uma cenografia que sirva à encenação, de uma
iluminação que sirva à encenação. A imagem que eu gosto de pensar é a de uma queda-de-braço, uma provocação mútua.
Nesse tipo de trabalho, esse processo coletivo que se está falando, que chamamos de processo colaborativo, recoloca essa função do diretor. Qual o papel do diretor
dentro de um teatro de grupo a medida que ele não é mais este encenador todo poderoso? Eu acho que ele entra em crise sim.
Por outro lado, também não me interessa teatro de texto, teatro de ator, teatro de autor. Mas sinto que, no caso da direção, seu papel tem de ser redimensionado, a
partir do trabalho em grupo ou coletivo. Também me pergunto: como fica o diretor dentro disso? Assim só como um guarda de trânsito, coordenador, só organizador.
Assim não me interessa, pois tem a questão da voz autoral, artística, que, na verdade, o diretor tem. Tem que ter.
antônio araújo
8
O SARRAFO
EXPERIÊNCIAS
DA CONTRAMÃO
O SARRAFO tem recebido alguns relatos sobre movimentos artísticos
regionais, que refletem o esforço geral de se fazer teatro no país hoje. Este
texto, decorrente de um trabalho na cidade de Diadema, foi enviado por
Ademir Garcia ao grupo Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes.
O teatro periférico como
base para a formação humana
A
CIDADE DE DIADEMA está localizada na região do grande ABC e tem um dos
maiores índices de violência de São Paulo (o maior problema em saúde pública são
mortes por homicídios). Esse dado é importante para refletirmos sobre o processo de
criação de grupos teatrais em um local onde as autoridades públicas não conseguem
reverter esse quadro que se mantém, praticamente, inalterado desde a sua emancipação política de São Bernardo do Campo.
Diadema tem 43 anos, é ainda jovem, assim como os movimentos culturais da
cidade. Ela tem cerca de 15 centros culturais e a idéia em outras administrações
municipais seria levar algum tipo de lazer a crianças e adolescentes que permaneciam o dia inteiro em contato com a violência local. Acho que essa idéia não deu
certo, e creio que isso é muito bom, pois as pessoas começaram a freqüentar os
centros culturais; e eu sou uma dessas que não havia tido ainda contato com a arte.
Depois de freqüentar as oficinas dos centros culturais nos bairros de periferia, um
grupo de novos artistas começou a se engajar mais nas decisões em relação às diretrizes culturais da cidade. Esse grupo começou a participar de plenárias do orçamento
participativo, reuniões no departamento de cultura e a colocar suas idéias.
Infelizmente, os políticos não entendem que a arte é uma brincadeira de pessoas
sérias e, nós jovens artistas, percebemos naquele momento o quanto ela transformou nossa visão de mundo. Apesar da falta de compreensão do poder municipal,
quatro grupos teatrais independentes organizaram a 1ª Mostra de Teatro do Centro
Cultural Serraria. Alguém conhece Serraria? Com certeza apenas os moradores de
Diadema. E esse foi um dos grandes desafios enfrentados por nós. Ninguém sabe
onde fica esse bairro e com certeza é muito arriscado andar por essas ruas à noite.
A mostra provou que as pessoas se interessam por arte. Em 99, os espetáculos
teatrais obtiveram grande aceitação popular. É lógico que nem todos entenderam
muito bem o que estava acontecendo no palco e nem sempre o público respeitou os
artistas. Mas foi só o início de uma verdadeira inquietação no meio teatral na cidade.
Assumi uma oficina abandonada no Centro Cultural Serraria e montamos nosso
primeiro espetáculo Pluft, o Fantasminha, com jovens atores periféricos como eu.
Sem incentivo, sem um olhar diferente sobre as dificuldades, mas cheios de sede da tal
arte. Agora, em 2003, realizaremos mais uma mostra e contaremos com a apresentação de 11 espetáculos, sendo que o grupo de maior participação é o Catulos, com
espetáculos e pesquisa sobre teatro Elisabetano.
Gostaria de colocar um ponto de reflexão a vocês leitores. Como realizar teatro
com adolescentes, moradores de bairros violentos, estudantes de escolas públicas
com problemas graves relacionados ao ensino, com famílias pobres e sérios problemas sociais?
Apesar dos esforços de todos que realizam teatro em Diadema, o governo ainda
não consegue respeitar os artistas independentes, não destinando verbas para a realização de espetáculos, por vezes colocando-se contra nosso direito de expressão, boicotando todos que resolvem desafiar a política cultural quadrada da nossa cidade.
Ademir Garcia é ator e diretor do grupo teatral Catulos, em Diadema.
HUMOR
Número 4
◆
Junho 2003
Coluna Anti-Social
Tersites de Souza é colunista, mas também
costura para fora. Está animado a leiloar seus
pertences em qualquer festa solidária da cidade.
Bonum habe animum, ne formida. Homo quidamst
qui scit quod quaeris ubi sit.
(Tem ânimo, não temas. Há um homem que sabe onde está o
que buscas).
IDENTIDADE
Uma encantadora funcionária de um
Serviço Social tido como Ministério da
Cultura local telefonou a dois dos editores
deste mensário desconfiada de minha identidade. Desgostou-se, segundo depoimento dos rapazotes, com minha defesa da censura aos teatros de sua instituição. A encantadora funcionária impôs como critério de seleção de projetos a norma saneadora de que ensaios das peças sejam vistos
por sua equipe, antes de que o “encenese!” seja pronunciado. Acreditou que eu
ironizava. Enganou-se, a doce criatura, ao
supor que a desaprovo: somente a censura
sólida e preventiva pode limpar nossos palcos de tantas invenções esdrúxulas. Aproveito para franquear à moça minha identidade verdadeira: Tersites de Souza, vosso
servo, pronto a tudo que meu corpo permita e minha alma tolere.
CRÔNICA DAS PALESTRAS
A cidade assistiu dias atrás a uma série de debates internacionais sobre teatro. Levado por minha nova condição de
redator na área, decidi freqüentar alguns
deles, para me integrar um pouco mais a
esse estranho meio. Aprendi muito: na
fila de espera, aperfeiçoei meu vocabulário difamatório, ao ver um grupinho de
rapazes maldizendo os falantes nacionais:
“Sempre os mesmos, figurinhas carimbadas, cartas marcadas” e outras sentenças
literárias. Lá dentro, sentei-me ao lado
de um gordo bonachão de barbas cosmopolistas, que espremia os maxilares a
cada vez que se dizia a expressão “teatro
político” e resmungava: “malditos marxistas”. Do palco, admito que não aprendi nada, talvez porque preferi deixar meu
fone de ouvido no canal de alemão. Gosto de línguas guturais.
FRASES MAIS LINDAS
QUE OUVI
De minhas andanças em platéias, recolhi lindas frases sobre o ofício teatral, que
constituem uma súmula do que até agora
sei: “Teatro é encontro. Eu aprendi a ouvir o Outro. Meu teatro discute a solidão
na cidade grande. Precisamos humanizar
o teatro. Teatro é jogo. Teatro é relação.
Político não precisa ser panfletário. Todo
teatro não é político? Se me comoveu, é
gênio. Teatro não é assistencialismo.
Bréchiti defendia a diversão. Istanislávisqui e Grotovisqui concordam nas estrutu-
ras profundas do trabalho sobre si mesmo.
O teatro atual é limítrofe. Para o Piter Bruk
o teatro é a arte de preencher o vazio”.
Como não assimilei muito bem essas idéias de “limítrofe”, muito menos de “preencher o vazio”, parei por uns tempos de anotar, mesmo achando belíssimas. Espero ter
grafado os nomes corretamente.
TEATRO DA ELITE
Um grupo de Caras freqüentadoras do
colunismo social resolveu ensaiar uma
peça. É uma gente bem-posta que deixou
os relógios e os brincos dourados na mesinha de canto, trabalhou duro no salão
de festas de uma dama-galã, não se estapeou muito na disputa pelos papéis centrais, nem por uma marcação no proscênio, e agora, com as justas flores da estréia, sobe aos palcos com propósitos realmente beneficentes e ampla cobertura de
mídia. Pelo que li, eles já se aprimoram
nos fundamentos: falar alto e não dar as
costas ao público. Uma figurette até já
aprendeu a chorar sem cristal japonês e
conseguiu decorar o texto todinho sem
ajuda do mordomo. Outra reclamou com
seu esteticista da aplicação de Botox, que
por imobilizar a testa dificulta-lhe as expressões faciais necessárias ao comovente papel tão bem treinado no espelho.
Consolou-se ao ser elogiada no camarim
pela plástica nos seios, empinados como
o topete de Sammy Davis Jr. (Desculpem,
sou um sujeito antigo!) Depois do industrial do cimento que se fez dramaturgo
anti-corrupção, nossa elite engrandece de
novo uma arte depauperada.
CALMARIA DA CRÍTICA
Meu crítico teatral paulista favorito
não produziu nenhuma novidade sapiencial neste último mês. Não usou a frase
“a dor e a delícia de ser o que é”, não
descreveu a si mesmo indignado na platéia, não condenou a repugnante idéia
de publicar livros, não elogiou a beleza
da primeira atriz à espera de um convite
para jantar. Deixou-me, assim, desolado,
como o marujo parado um mês no porto, todos os dias a perscrutar o horizonte. Mesmo o Oceano em sua inquieta
grandeza tem inexplicáveis calmarias.
SABEDORIA RODRIGUIANA
Se soubéssemos o que cada um faz
dentro de quatro paredes, não nos
daríamos as mãos.
Junho 2003
◆
9
O SARRAFO
Número 4
Companhia Folias d’Ar te
Ainda sobre a Farra Teatral e da Verba Pública
“Nossa experiência levou-nos
a crer firmemente que só o nosso
tipo de arte, embebido que é nas
experiências vivas dos seres
humanos, pode produzir
artisticamente as impalpáveis
nuances e profundezas da
vida.(...) deixando impressões que
não se desvanecerão com o
tempo.”
Stanislavsky
A
CITAÇÃO do grande encenador russo foi retirada do infor-
me publicitário encartado em
“O Estado de S.Paulo”, de 10 de
maio de 2003, pasmem, do famigerado “Criação Teatral
Volkswagen”. Pode parecer perseguição, mas é que esse projeto é exemplar para se discutir a
falta de ética ou a imoralidade
de algumas promoções, mesmo
que tenham tido na sua origem
a melhor da intenções. Sobre a
imoralidade do Projeto não vou
mais falar, porque no número 2
de O Sarrafo isto foi amplamente demonstrado.
Quero falar sobre a falta de
pudor de alguns marketeiros que
lançam mão de qualquer argumento para justificar os seus
“anti-projetos culturais”. Stanislavsky está rolando em seu túmulo ao saber que foi utilizado para
dar algum significado cultural a
uma “coisa” oportunista e mercadológica. Isto porque, como
lemos em seus diferentes escritos, o importante em todos os
seus ensinamentos e reflexões
sobre o fazer teatral o que mais
importa é a ética do ator/estudante do que qualquer técnica
que ele possa assimilar para construir os seus personagens. É sobre isso que quero falar, porque
depois da “Volksfarra com o di-
nheiro público, assistimos a Globosfarra indignada com a normatização ética do dinheiro público. E, no nosso ponto de vista,
ambas as coisas fazem parte do
mesmo saco de farinha, patrocinado pelas injustas Leis de Incentivos culturais existentes. Isto é,
o fato de se dar dinheiro público, que é a contribuição de todos os cidadãos, para aqueles privilegiados que não necessitam de
incentivo para produzir e criar as
suas culturas, já que gozam de
uma série de regalias patrocinadas pelo capital.
Por outro lado, porque a Globosfarra revela, mesmo que contra a vontade do atual presidente, o poder da “elite conservadora” neste governo, que teve como
slogan principal de campanha a
“mudança de paradigmas”. Ou
seja, meia dúzia de iluminados fizeram com que dois ministros de
Estado fossem até o Rio de Janeiro, a antiga capital do império (seria hoje a capital do império do mal?), prestar conta de sua
“política cultural”. Um assunto
da República tratado por uma
minoria escolhida arbitrariamente. Não seria isso uma forma condenável de centralismo democrático? Não seria isso um sinal trocado dos valores da democracia,
isto é, a maioria se submeter a
minoria privilegiada? Não seria
isso uma forma de dirigismo cultural? Ou as exigências que fazem os patrocinadores para os patrocinados, mesmo utilizando-se
do dinheiro público, é mais legítimo e moral do que as possíveis
exigências que possa vir a fazer o
poder público?
Tudo isso mostra o quadro de
impunidade do país. E fica mais
claro ainda quando, no domingo
11 de maio de 2003, a Folha pu-
blica “Fisco fisga Volkswagen em
águas turvas”, artigo de Josias de
Souza, denunciando a multinacional citada como uma das fraudadoras da Sudam. Somando
tudo o que pegou em financiamento e não aplicou chega-se a
soma de R$ 2.208.000,00 (mais de
dois milhões). Ou seja, se talvez
tivesse aplicado e, posteriormente, pago os tributos, o Volksfarra
poderia ser bem mais amplo e beneficiar, de fato, o artista criador.
Lamentável é ver companheiros de tantas jornadas, mesmo alertados por matérias sérias, ainda continuar apoiando o
projeto. Não é a toa que os empresários, banqueiros, investidores internacionais, Colim Powel,
estão contentes com a política
do atual governo. Que a lucidez
do antigo operário nos salve neste momento de aflição e descrédito moral!
Companhia do Latão
Do diário de um velho ator aposentado
Palavras
SENHORES,
ANTES de começarpronunciadas mos
esta nova empreitada, é preque estejamos de acordo sopor um ciso
bre um ponto fundamental: o ator
é o centro de tudo; nós diretores,
meros operários das idéiproeminente somos
as. Falo isso de antemão para que
restem equívocos. É através
diretor de não
de vocês atores que se consuma a
da representação. Nunca se
teatro a seus arte
esqueçam: de vocês provém minha benção e minha graça.
O teatro lá de fora, teatro de
seletos tempos
sangrentos, não é de
todo desprezível. Uma invenção
discípulos aqui, uma boa idéia acolá... intenções honestas e juventude
sempre aparecem.
Mas isso não nos interessa.
Esta casa é o lugar da supremacia
estética, da pureza de estilo, da
prospecção da alma universal.
Considerem a importância de vocês atores nesta missão.
Por modéstia, nunca menciono o que já conquistei. Tampouco falo de mim em primeira pessoa. Verão que, a partir de agora,
direi apenas O DIRETOR.
À entrada, receberam uma lista com os mandamentos de meu
método. São lições de simpleza e
sabedoria, recolhidas ao longo de
uma vida inteira dedicada ao Teatro. Como epígrafe, o velho Tao
nos alerta:
Portanto aprendam: fiquem
sempre calados e obedeçam à intuição do DIRETOR. Ele será o
portal que os conduzirá a tudo
aquilo que é sutil e maravilhoso.
Ao recôndito segredo de todas as
essências.
O DIRETOR já pressente com
que avidez mergulhará nesta
aventura. ELE vê nos olhos arregalados de cada um de vocês a
volúpia da criação. É natural, também ELE é assim: humanamente
sensível e entusiasmado. Por isso,
não reparem se acaso algum desavisado receber na fuça um sapato, atirado num ímpeto, quando disser uma fragorosa asnice.
“Quem fica na ponta dos pés não tem firmeza
Aquele que abre as pernas demais não anda facilmente.
Da mesma forma, o que se mostra não brilha.
Quem defende seus pontos de vista com obstinação não é cortês.
O homem que se vangloria não tem seu mérito reconhecido.
Não será nada pessoal, apenas
uma expressão incontida de
amor ao Teatro.
Talvez estranhem o último
mandamento e se perguntem
“por que trazer sempre à mão
uma latinha de pomada Minâncora?” O DIRETOR dirá
que o respeito pelo nariz dos
outros é o esteio de um trabalho que visa antes de tudo à
harmonia dos contrários. Assim como é indispensável deixar do lado de fora os problemas cotidianos – lembrem-se,
o Teatro não tolera o que é comezinho – também é indispensável deixar no banheiro os
odores do dia.
Agora vão, juntos franquearemos o paraíso!
Márcio Marciano
10
O SARRAFO
Parlapatões
Teatro Futebol Clube
Para falar sobre direção, gravamos uma
conversa com os atores de As Nuvens e/ou um
Deus Chamado Dinheiro sobre o processo de
montagem do espetáculo, iniciado em janeiro.
Como o elenco é inteiro masculino e vive daqueles
papos machistas de mulher e futebol, resolvemos
evitar baixarias e protestos feministas. Fizemos
uma inevitável comparação do teatro com futebol,
onde o técnico orienta os jogadores a um objetivo
comum. Editados e reduzidos em seu grau de
testosterona, o depoimento de cada um dos atores
refletem uma busca constante do grupo em tornar
o ator um autor da cena que faz:
Henrique Stroeter, o Napão, atua no grupo desde
2000: Acho uma bosta
quando o diretor prende o
ator corporal ou gestualmente. Deixar um ator
preso é uma falta de respeito. Diretor bronquinha
também não rola. É o mesmo que amarrar um jogador de futebol a um estilo de jogo. Aqui nos Parlapatões, tem uma coisa que é ideal, que instaura
um clima de trabalho que é absolutamente objetivo. Não tem bronha. O nervosismo, que é horroroso no trabalho de qualquer ator, se afasta e
abre espaço para a intuição. Permite que você
faça coisas que não faria se fosse obrigado. Você
se sente no processo como um criador e não como
um ator pau-mandado. É uma liberdade perigosa, pois cada ator tem que achar seus limites e
buscar seu estofo, corporal e intelectual. Aqui,
assim como no grupo Cemitério de Automóveis,
eu vejo uma maneira de encarar o palco que não
é religiosa e absoluta. É como futebol. Não é sagrado, mas pode se tornar sagrado. Como nas rubricas de Shakespeare: atores entram. Entra aí e
joga. O importante é jogar.
Para isso, é preciso ter o
máximo de domínio da
cena e da gente mesmo.
William Amaral, primeira participação no grupo:
O diretor é aquele que provoca para tirar coisas boas
do ator, como uma parceria entre técnico e jogador.
Como num time, não importa quem faz, mas que
um levante para que o outro faça o gol. É um
conjunto. Aqui, você pode fazer o que quer, tendo um objetivo a seguir, por um sentido coletivo.
Vejo que as pessoas se identificam com o espetáculo,
pois todos são meio Estrepados e Crédulos (personagens da peça).
Claudinei Brandão, no
grupo desde 1996: Acho
que já enfrentamos processos caóticos com muita dignidade. Não é o caso das
Nuvens, que foi muito tranqüilo. Neste trabalho,
nós trocamos as cartas que tínhamos na manga
do colete. Quando o Napão fala de objetividade,
penso que é fundamental para quem vai dirigir,
além da capacidade de sintetizar o processo, conhecer a obra, o que quer do trabalho... Há surpresas no processo, mas é preciso ter um norte.
Tecnicamente funciona bem, tanto que, graças a
Deus, ensaiamos poucas horas por dia, pois o tempo é bem aproveitado. A decupagem das cenas
em microcenas até chegar à encenação, envolve
a participação de todos. Quem entra se contamina pela linguagem, sem que esta seja imposta.
Acaba conhecendo melhor os seus limites para
poder se arriscar mais.
Eduardo Silva, primeira
participação em espetáculos do grupo: Eu achei que
eu fosse ser engolido pelo
nome Parlapatões, como
quem é engolido pela camisa de um time grande. Só
que constatei que o grupo
não está acomodado nisto.
Justamente por trás de uma
falsa anarquia que o grupo passa, da bagunça total, existe um trabalho milimétrico. Tem uma linguagem que é inerente ao grupo, mas não é imposta. O respeito às questões individuais evita
que se padronize o trabalho. Valoriza o que cada
um tem de melhor para dar. Parecido com o futebol, como dizem o William e o Napão, não tem
essa sacralização do teatro e ao mesmo tempo se
tem um puta respeito. A objetividade, sem ficar
pensando em marcar o gol só pra dizer que marcou, é uma conseqüência de um trabalho coletivo. Acho que teve na direção a ousadia de não
fazer o que já era esperado por todo mundo. Em
geral, falta isso aos diretores, pois têm medo de
inovar. Para chegar nesse resultado teve muita
discussão sobre os temas, da ligação política da
época em que a peça foi escrita com os dias de
hoje... Tanta discussão, que, depois da estréia,
vendo que o público absorveu as críticas que o
espetáculo faz, parece que tudo passou de nós
pra eles pelos poros.
Raul Barretto, dinossauro
do grupo, desde 1993: A
verdade é que este foi nosso
processo mais colaborativo.
Porquês? Talvez a maturidade e confiança do diretor
neste vírus Parlapatões que
contaminou a todos e que,
ao invés de apagar as individualidades, as acende. Por
isso, atores de seleção, com domínio do ofício,
que distinguem a hora do drible e a do passe.
Ao diretor coube também deixar claras regras
e táticas, definir posições e movimentações possíveis, e acima de tudo, abrir espaço para que
cada um se aproprie da bola, a domine, crie
com ela e exerça com a plenitude dos seus talentos a sua melhor expressão.
Número 4
◆
Junho 2003
Fraternal Companhia
de Ar te e Malas-Ar tes
A restauração
da narrativa
O IMAGINÁRIO
Não existe experiência coletiva. Existem acontecimentos, fatos
coletivos, como a guerra, peste e
morte que em determinado momento podem atingir indivíduo ou
sociedade como um todo. No entanto, a experiência de cada um
desses acontecimentos só pode ser
absorvida individualmente. O que
não quer dizer que uma experiência não possa ser compartilhada,
imaginada, comunicada e sensibilizada. Ao contrário, é de fundamental importância que toda experiência humana significativa possa ser comunicada tendo em vista
a criação de um repertório comum
de experiências, material básico
para o desenvolvimento de uma
consciência coletiva. E consciência coletiva é o que plasma o surgimento de um destino comum. E
destino comum é o que orienta e
dá forma ao que chamamos de comunidade, cidadania ou nação.
Essa transmissão de experiências individuais para a esfera coletiva dá forma ao que chamamos
“imaginário”. Um imaginário – repertório de imagens comuns a uma
cultura e, em decorrência, de histórias, tipos, crenças, conceitos e
comportamentos – é necessariamente uma criação coletiva. Mais,
um imaginário é determinado por
condições objetivas, sociais, históricas. Ou seja, não há a possibilidade de um indivíduo criar uma
imagem fora do imaginário de seu
meio. Por exemplo, na Idade Média seria possível haver um herege mas nunca um ateu dentro daquele imaginário totalmente religioso. O que não quer dizer que o
imaginário não seja algo profundamente dinâmico. Cabe ao artista, ao homem criador, perceber,
nas condições objetivas do processo histórico e social, as possibilidades de surgimento de novas
imagens e dar luz a novas histórias, idéias, crenças, que vão integrar o imaginário de sua época.
Juntando as coisas todas: o fato
de as casas coloniais serem voltadas para as ruas e praças; a gradativa perda, através dos séculos, da
noção de corpo social; a necessida-
de de compartilhamento de experiências (individuais) para a constituição de um imaginário (coletivo),
tudo isso, creio, tem relação direta
com o tipo de arte que fazemos e,
em especial, com a dramaturgia.
Antes, porém, é necessário esclarecer que o processo de perda
da noção de corpo social não é, por
si só, negativa. Ao contrário, correspondeu à abertura do fantástico caminho de fortalecimento da
noção de indivíduo e decorrentes
noções de independência, liberdade individual, humanismo. O gradativo afastamento do homem da
natureza e do corpo social, o homem que se sabe diferente e isolado, que tem um destino próprio,
quase desenraizado de seu meio, fez
derivar a história da civilização para
outro rumo. O Davi, de Michelângelo, com seu semblante pensativo
e algo aflito, como se carregasse o
peso de seu próprio destino, é tido
como um marco no processo que
haveria de colocar o homem no
centro da História e da criação. Na
dramaturgia, Hamlet, de Shakespeare, é igualmente considerado o
protótipo do homem moderno, um
homem em conflito, envolvido
com a pesada herança de seus pais
e que oscila, indeciso, na busca de
um novo caminho. Essas duas imagens iluminaram o caminho da afirmação do indivíduo perante a natureza e o corpo social.
A questão que se coloca é se não
é necessário, hoje, avaliar ambos os
caminhos (o público e privado, indivíduo e corpo social, criação individual e imaginário) e talvez equilibrar novamente os elementos. A
questão se coloca porque, no âmbito do teatro, foi o progressivo isolamento do indivíduo de seu meio que
possibilitou o fortalecimento e subseqüente predominância de um gênero de invejável poder dramático,
mas significativamente frágil no que
se refere à apreensão do mundo real.
A predominância do melodrama,
como veremos mais adiante, determinou o afastamento dos conteúdos narrativos antes fortemente presentes no teatro.
Luís Alberto de Abreu
Junho 2003
◆
11
O SARRAFO
Número 4
Teatro da Ver tigem
O que dizer sobre a relação ator/diretor no Vertigem?
Qual a visão dos atores sobre o
trabalho dos diretores? Este texto
foi produzido a partir desta
provocação, que nasceu do
encontro entre os diretores. Nós,
atores, sempre nos vemos em outra
posição, a de observados. Como
seria se nós dirigíssemos a atuação
dos diretores?
N
O LIMITE, ator e diretor acaba
por se fundir: o trabalho construí-
do é um grande jogo de deslocamentos entre as partes criativas.
Ambos anseiam por vomitar/cavar suas procuras, seus desejos,
suas inquietações e se aproximar
de uma possível resposta. O que
antes poderia ser uma abstração,
torna-se mais claro e possível
quando dividimos nossas questões
num duelo criativo. Nele nasce a
cumplicidade, o medo e a coragem de assumir nada saber; a percepção que estamos num caminho
sem volta e que dependemos um
do outro para evoluir e chegar a
uma revelação.
Nossas forças são auxiliadas
por impressões adormecidas.
Nossas representações mentais,
nossos sentimentos, as camadas
mais profundas dos nossos sentidos, nossos vivos e nossos mortos, nossas procuras no outro e
em nós mesmos.
HUMOR
É um caminho para o desconhecido, um casamento, uma
parceria investigadora, um fundo que se prolonga para dentro,
um encontro inevitável, é a mãe
de outras tantas perguntas que
percorrerão o processo e conseqüentemente toda sua vida. O
estímulo de continuar pesquisando e saber que o muito é pouco e
o pouco é muito.
Roberto Audio
V
EJO O DIRETOR como um maestro, conduzindo sua orquestra
com delicadeza, precisão e um
enorme poder de persuasão. É
como se no momento da criação,
eu com minhas tintas, experimentasse cores, texturas, novas formas
de expressão... e o diretor contribuísse com seu olhar no todo, no
detalhe, na moldura. Como se ele
transformasse minhas cores em
nossas cores e então desse o acabamento final.
Vejo o diretor como um articulador entre o dramaturgo e os
atores, um provocador de idéias, estimulando em nós um reconhecimento de nós mesmos.
Vejo o diretor como um parceiro fiel, um cúmplice de meus
segredos: em sala de ensaio não
existe hierarquia, mas afinidade
artística, discussão e vontade
comum – o teatro. Gostaria de
escrever algo que representasse
minha paixão!
Luciana Schwinden
A
RELAÇÃO ator/diretor se estabelece através da confiança e da
cumplicidade artística e ideológica, onde o pessoal e o espiritual
se entrelaçam. Da descoberta
conjunta dos caminhos para a realização da obra.
O papel do diretor é de lapidar, de canalizar o potencial
artístico do ator e inserí-lo no
conjunto da cena, disponibilizando-o ao mergulho interno
em que ele, ator, transforme
sua vivência pessoal em material artístico.
Vanderlei Bernardino
D
IRETORES, GRUPOS, grupos
sem diretor, diretor sem grupo,
ator sem diretor, ator sem grupo...
Minha história com o diretor do
Teatro da Vertigem começou pelo
fim, meio às avessas: a insegurança faz miséria, a estranheza faz
abismos. Até que um dia, ele sumiu: ganhou uma bolsa e partiu.
Através da sua ausência percebi
a importância do contrário. E então, na sua volta, começamos de
novo. Apesar do tema ser dos
mais duros, Apocalipse 1,11 foi
um dos processos mais prazerosos, de encontro, de união, de
confiança, de paixão pelo trabalho do outro; interessantíssimo,
obsceno, obsessivo, profundo,
sem vergonha, radical. A criação
da Noiva do Apocalipse tem pai
e mãe, nasceu de um silêncio risonho, numa sala de ensaio com
um cavalinho inflável numa mão
e mão dele na outra... Conceber
o projeto, armar o cronograma,
justificar a importância do tema,
contaminar a vontade dos atores,
administrar relações, conceber
estratégias, ser paciente, ser insistente, ser corajoso, ter ética,
ética, ética.
Miriam Rinaldi
Epercebo
U ENTRO em pânico quando
que ele está me olhando
daquele jeito que às vezes tem ao
expressar o seu descrédito, como
se dissesse “não é por aí o caminho”. Até o pânico passar penso
“vou embora agora mesmo, antes
que ele me olhe de novo daquele
jeito”. Então me recupero do transe, do medo e ele parece ficar feliz no final do ensaio e diz “precisamos melhorar amanhã”. É....
penso comigo “talvez não tenha
sido tão mal assim...”.
Luís Miranda
N
UM TRABALHO de criação colaborativa, quanto mais nos en-
tregamos, mais vulneráveis emocionalmente ficamos. Não há
como negar o quanto é prazeroso
tudo isso e também muito difícil
e conflituoso. Lançamos mão do
que é mais raro e cabe ao nosso
diretor sublinhar, rasurar, colar, ou
simplesmente riscar nossas criações. Tudo é feito pela obra e tudo
tem significado e valor. Nada é
material perdido, apenas serve ou
não para o trabalho.
A promiscuidade é absoluta. A confiança e o desprendimento são virtudes fundamentais na relação entre ator/diretor. Penso que tudo isso só é
possível no Teatro da Vertigem
por termos a figura tão inspirada do Antônio. Sua predestinação, sua determinação, sua sensibilidade, seu amor e seu respeito ao trabalho e a todos nós
são qualidades que me deixam
completamente confiante no
processo. Todo ator tem que
confiar no seu diretor, pois ele
é o filtro para o mundo do lado
de lá da sala de ensaio. E ter
encontrado um parceiro tão
generoso é uma grande sorte.
Sérgio Siviero
Depoimentos dos atores do
TEATRO DA VERTIGEM
Ettore Petrolini (1884-1936), maior dos cômicos italianos de sua época, ator e dramaturgo, continua uma figura marginal na história
do teatro, ocupando o posto menor sempre reservado aos artistas dos gêneros ditos populares. Tendo aprendido a técnica básica
do clown muito jovem, no início do século vinte reinventou-a nos cafés-concerto e nos teatrinhos de variedade, onde se
tornou modelo para os futuristas. O teatro sintético, proposto por Marinetti no manifesto O Teatro de Variedade
(1913), extraiu das peças de Petrolini seu ideal de “estupefação imaginativa”, misto de assombro e surpresa.
Esteve no Brasil pelo menos duas vezes, a primeira em 1907, mais tarde entre setembro e novembro de
1921, no Rio, em São Paulo e Campinas. Numa dessas alegres noitadas nos trópicos,
de peças curtas, atos bufos, canções, paródias, foi também apresentado
o texto Fortunello, escrito como síntese futurista. (S.C.)
Fortunello1
CONTO IDIOTA:
Sou um tipo: estético,
asmático, sintético,
linfático, cosmético.
Amo a Bíblia, a Líbia,
a fivelinha
dos sapatinhos
das mulherzinhas
bonitinhas cretininhas.
Sou atrevido.
Recolhido
Absolvido “por inexistência de
delito”.
Tenho uma paixão marcante por:
o Pólo Norte. A cera virgem. O
Nabucodonosor. A manteiga de
Lodi. La fanciulla del West 2 . O
papel mata-moscas. A cavalaria
pesada. Os cadarços. A
aeronádega e cuzinhar. O jogo do
loto. O acetileno e o ossobuco.
Sou: Homérico
Histérico
Genérico
Quimérico
Clistérico.
Mas tudo o que sou
nem posso contar,
em falar eu não sou bom,
vou arriscar-me a cantar.
Sou um homem gracioso e belo
sou Fortunello.
Sou um homem ousado e sano
sou um aeroplano.
Sou um homem mui terrível
sou um dirigível.
Sou um homem que anda de
soslaio
sou um pára-raio.
Sou homem que não arreda pé
sou Maomé.
Sou um homem sem papéis
sou o 606.
Sou um homem felizardo
sou filho bastardo.
Sou um homem da pátria amada
sou filho da criada.
Sou um homem sem vanglória
nem tomo café, tomo
chicória.
Sou um homem ginegético
sou um ataque apoplético.
Sou um homem sem dó
sou um esquimó.
Sou um homem amoral
sou neutral.
Sou um homem sem bigode
sou um pagode.
Sou um homem condescendente
sou um acidente.
Sou um homem de muito descaso
sou da liga do pouco-caso.
Sou um homem que pesa um
grama
sou um telegrama.
Sou um homem de Stambul
sou um parasul.
Sou um homem dos mais cretinos
sou Petrolini.
Sou homem-de-palha
sou um canalha.
Mas tudo o que sou
nem posso contar,
em falar eu não sou bom,
vou arriscar-me a cantar.
Mas já que não sou nada,
sou uma farofada.
Se eu tivesse altivez
seria um inglês.
Se eu fosse um Ministro
seria um bem sinistro.
Se tivesse nariz obtuso
seria como Caruso.
Se vivesse esperando
morreria cantando.
Se eu fosse uma senhora
queria toda hora.
Se soubesse o libreto
seria Rigoletto.
Se tivesse luvas gris
seria de Paris.
Se eu fosse um pícaro zíngaro
seria austro-húngaro.
Se eu tivesse uma calandra
seria como Salandra
Se eu não fosse tão bufo
seria Titta Ruffo.
Se tivesse um palito
escarafuncharia os dentes.
Se eu fosse padroeiro
ganhava um bom dinheiro.
Se na cabeça eu tivesse um elmo
seria Guilherme o imperador.
Se do cabaré fosse dançarina
mostraria minha menina.
Se eu tivesse um pouco de pão
comeria o salsichão.
E se eu tivesse um montão
Poria em leilão.
E quando perder o sabor
será como um tambor.
E quando estiver seco
eu irei para Lecco.
E quando virar sacerdote
terei garantido o fricote.
E como as velhas catraias
andarei sempre de saias.
E como todas as esposas
terei as minhas coisas.
Se meu avô tivesse a coisa
seria minha avó.
Se minha avó tivesse o coiso
seria meu avô.
Mas tudo o que sou
nem posso contar,
em falar eu não sou bom,
vou arriscar-me a cantar.
E cada vez que me purgo
viro Petroburgo.
Se me purgo de bom grado
viro Petrogrado.
Se eu fosse uma cocote
dançaria o xote.
Para não sofrer despacho
queimo-lhe o capacho.
Quando canto nunca desafino
sou o fino do fino.
Eu sou muito vivo
sou um laxativo.
Se eu zombo de todo mundo
sou um vagabundo.
Se eu arroto
sou o terremoto.
Se vou para o esgoto
eu sou maroto.
E se você não me entende
sou um duende.
Se fosse mais simpático
seria menos antipático.
Se fosse mais antipático
seria menos simpático.
E se ainda não foi dito
eu sou o sobredito.
E se ainda não foi informado
eu sou o abaixo assinado.
Eu apronto de tudo
sou um sortudo.
Eu sou quase paralítico
sou um político.
Gosto do socialismo
sou um enteroclisma.
Sou um homem melancólico
sou um aperitivo alcoólico.
Se eu fosse uma caiçara
a venderia mais cara.
E vira e dá cambalhota
de tanto que sou idiota.
Mas tudo o que sou
nem posso contar,
em falar eu não sou bom,
vou arriscar-me a cantar.
1 Representado pela primeira vez em
fevereiro de 1915.
2 Assim como ‘Nabuco’, ópera de
Giuseppe Verdi.
O SARRAFO
Fortunello
RACCONTO IDIOTA:
Sono un tipo: estetico,
asmatico, sintetico,
linfatico, cosmetico.
Amo la Bibbia, la Libia, la fibia
delle scarpine
delle donnine
carine cretine.
Sono disinvolto.
Raccolto
Assolto “per inesistenza di reato”.
Ho una spiccata passione per: il Polo
Nord. La cera vergine. Il
Nabuccodonosor. Il burro lodigiano.
La fanciulla del West. La carta
moschicida. La cavalleria pesante. I
lacci delle scarpe. L’areonatica col
culinaria. Il giuoco del lotto.
L’acetilene e l’osso buco.
Sono: Omerico
Isterico
Generico
Chimerico
Clisterico.
Ma tuto quel che sono
non ve lo posso dire,
a dirlo no son buono,
mi proverò a cantar.
Sono un uom grazioso e bello
sono Fortunello.
Sono un uomo ardito e sano
sono un aeroplano.
Sono un uomo assai terribile
sono un dirigibile.
Sono un uomo che vado in culmine
sono um parafulmine.
Sono un uom dal fiero aspetto
sono Maometto.
Sono un uomo senza nei
sono il 606.
Sono un uomo eccezionale
sono un figlio naturale.
Sono un uom della riserva
sono il figlio della serva.
Sono un uomo senza boria
so’il caffè con la cicoria.
Sono un uomo ginegetico
sono um colpo apopletico.
Sono un uomo assai palese
sono un esquimese.
Sono un uomo che poco vale
sono neutrale.
Sono un uomo senza coda
sono una pagoda.
Número 4
◆
Junho 2003
Sono un uom condiscendente
sono un accidente.
Sono un uomo della lega
di chi se ne stropiccia.
Sono un uomo che pesa un gramma
sono un radiotelegramma.
Sono un uomo di Stanbul
sono un parasul.
Sono un uom dei più cretini
sono Petrolini.
Sono un uom ch fo’di tutto
sonno un farabutto.
Ma tutto que che sono,
non ve lo posso dire,
a dirlo non son buono,
mi proverò a cantar.
Ma poiché non sono niente,
sono un respingente.
Se avessi assai pretese
sarei un inglese.
Se fossi un Ministro
sarei un cattivo acquisto.
Se avessi il naso camuso
sarei come Caruso.
Se vivessi ognor sperando
morirei cantando.
Se fossi una signora
lo vorrei ancora.
Se avessi riga in letto
sarei Rigoletto.
Se avessi i guanti grigi
sarei di Parigi.
Se andassi retrocarico
sarei austroungarico.
Se avessi una palandra
sarei come Salandra
Se fosse menno buffo
sarei Titta Ruffo.
Se avessi uno stuzzicadenti
mi pulirei i denti.
Se fossi il Padreterno
guadagnerei un terno.
Se in testa avessi un elmo
mi chiamarei Guglielmo.
Se fossi una sciantosa
farei veder la cosa.
Se avessi un po’di pane
mi mangerei il salame.
E se ne avete a basta
Io ve lo metto all’asta
E quando sarà duro
sarà come un tamburo.
E quando sarò secco
me ne andrò a Lecco.
E quando sarò prete
avrò entrate segrete.
E come le pacchiane
avrò le sottane
E come tutte le spose
avrò le mie cose.
Tradução:
Roberto Cattani
Se mio nonno avesse la cosa
sarebbe mia nonna.
Se mia nonna avesse il coso
sarebbe mio nonno.
Mas tutto que che sono
non ve lo posso dire
a dirlo non son buono
mi proverò a cantar
Se ogni giorno mi purgo
sono Pietroburgo.
Se mi purgo di rado
sono Pietrogrado.
Se fossi una cocotte
passeggerei la notte.
Per non avere impiccio
gli brucio il pagliericcio.
Non faccio mai una stecca
sono una bistecca
Io sono molto astuto
sono uno sternuto.
Se prendo tutti in giro
sono un capogiro.
Se mi fa bene il moto
sono il terremoto.
Se vado nella fogna
sono una carogna.
E se non mi capite
sono una polmonite.
Se fossi più simpatico
sarei meno antipatico.
Se fossi più antipatico
sarei meno simpatico.
E se non ve l’ho detto
io sono il sopradetto.
E se non ve l’ho scritto
io sono il sottoscrito.
Ne fo’d’ogni colore
sono un commendatore.
Io sono molto stitico
sono un uomo politico.
Me piace il socialismo
sono un enteroclismo.
Sono un uomo melanconico
sono un amaro tonico.
Se fossi uma ciociara
la venderei più cara.
E gira e fai la rota
di come sono idota.
Ma tutto quel che sono
non ve lo posso dire
a dirlo no son buono
mi proverò a cantar.