Imunodeficiência viral felina Prof. Msc. Alexandre GT

Transcrição

Imunodeficiência viral felina Prof. Msc. Alexandre GT
Imunodeficiência viral felina
Prof. Msc. Alexandre G. T. Daniel
Universidade Metodista de São Paulo
H.V. Santa Inês – São Paulo – SP
Consultoria e atendimento especializado em medicina felina
Introdução
O vírus da imunodeficiência dos felinos (FIV) é um retrovírus pertencente ao gênero dos Lentivírus; foi descoberto em
1986, na Califórnia, pelo pesquisador Niels Pedersen. Esse retrovírus causa uma síndrome de imunodeficiência adquirida
em gatos, possuindo semelhanças bioquímicas e morfológicas com o vírus da imunodeficiência humana (HIV), sendo
antigenicamente distintos, não existindo o potencial zoonótico.
Fisiopatogenia
A infecção pelo FIV é endêmica e de ocorrência mundial, com incidência variável entre os países. Estima-se que a
incidência mundial da infecção pelo FIV seja alta, cerca de 11,04%, não sendo essa distribuição uniforme entre os
continentes. No Brasil, alguns estudos foram realizados nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e
Minas Gerais, com prevalências que variam de menos de 2,0% a 37,5%.
O FIV é transmitido principalmente pela inoculação parenteral do vírus, presente na saliva, por meio de mordedura e
ferimentos por briga, assim como a inoculação do vírus ou componentes sanguíneos de gatos infectados por via
subcutânea, intramuscular, intravenosa ou intraperitoneal. A transmissão experimental por via uterina e por meio do
leite é descrita, no entanto, essa via parece ser pouco comum na transmissão natural. A transmissão sexual, meio mais
comum de transmissão do HIV, também parece ser pouco comum na infecção pelo FIV, mesmo o sêmen dos gatos
infectados possuindo partículas virais ativas.
A patogenia da infecção pelo FIV ainda não é completamente conhecida. Quando os gatos se infectam naturalmente, ou
são inoculados experimentalmente, partículas virais são encontradas em tecidos ricos em macrófagos, com a replicação
viral ocorrendo em tecidos linfóides (timo, baço, linfonodos) num período que varia de três a quatro semanas após a
infecção. O FIV também se dissemina associado a células mononucleares (linfócitos, monócitos e macrófagos) em órgãos
como a medula óssea, pulmões, trato gastrintestinal, rins e cérebro.
A cinética da infecção pelo FIV pode ser dividida em 5 fases:
Fase I: fase aguda de infecção, com cerca de seis a oito semanas de duração. Replicação viral alta inicialmente, com
queda gradual à medida que aumenta a produção de anticorpos.
Fase II: fase de infecção latente ou assintomática; ocorre queda contínua e gradual no número de células T CD4+,
manutenção dos números e/ou discreto aumento células T CD8+ e inversão da razão CD4+/CD8+, sem, no entanto,
nenhuma manifestação clínica associada. Com a piora na razão CD4+/CD8+, o animal progride entrando nas fases
sintomáticas da síndrome, com início das doenças de caráter crônico e oportunista.
Fase III: nesse estágio, os gatos podem ter linfonodomegalia generalizada persistente, febre intermitente, início de perda
de peso e início das infecções de caráter crônico.
1
Fase IV: depleção significativa do sistema imunológico do felino infectado, que passa a apresentar doenças de natureza
crônica. As gengivites são freqüentes nessa fase da doença, assim como doenças respiratórias crônicas, gastrintestinais e
a perda de peso (menor que 20% do peso total). Esta fase também é nominada de fase das doenças do complexo
relacionado à AIDS.
Fase V: estágio terminal da doença (fase de franca imunodeficiência adquirida - AIDS) o paciente encontra-se em fase
final de infecção, com depleção acentuada de linfócitos T CD4+ e CD8+, acentuada perda de peso ( maior que 20% do
peso corpóreo inicial) e são susceptíveis a diversas infecções oportunistas graves, doenças neurológicas e neoplásicas.
Predisposição e fatores de risco
Os animais com maior risco de infecção pelo FIV são os gatos adultos, machos não castrados, e animais com acesso a
rua; é uma doença diretamente proporcional ao comportamento de agressividade e disputa territorial, sendo assim, mais
presente nos animais sexualmente intactos (o que determina sua principal maneira de transmissão). Devido ao
comportamento de defesa e disputa territorial, machos são mais acometidos que fêmeas, numa proporção de 3:1,
chegando em alguns estudos, a 4:1.
A infecção pode ocorrer durante toda a vida do animal , entre 2 meses e 18 anos de idade; porém, as manifestações
sintomáticas são mais diagnosticadas em animais com idade superior a 5 anos.
Manifestações clínicas e alterações laboratoriais
As manifestações clínicas associadas à infecção pelo FIV podem ser determinadas por uma ação direta do vírus ou como
conseqüência da síndrome imunossupressora associada à presença do agente. Como a infecção pelo FIV é dividida em
várias fases, é importante o reconhecimento das manifestações associadas a cada fase da infecção.
Na primeira fase de infecção, de caráter agudo (fase I), o animal pode manifestar linfoadenomegalia que varia conforme
a idade do animal. São, em geral, inaparentes nos idosos, transitórias em indivíduos jovens e persistentes nos filhotes;
fraqueza, prostração, enterite aguda, febre, leucopenia, linfopenia e neutropenia também são achados freqüentes.
Na fase assintomática da doença (fase II), o animal permanece sem alterações clínicas significativas, ou que chamem a
atenção do proprietário. Essa fase pode durar de meses a anos, existindo relatos de gatos que, após infecção
experimental, levaram de oito a 10 anos para iniciar manifestações clínicas compatíveis com a evolução da doença.
Nessa fase, ocorre gradativa e marcante depleção do sistema imune do animal, o que irá predispor ao início das doenças
de caráter crônico, nas fases terminais da doença.
No período que sucede as fases anteriores, temos o chamado estágio crônico da infecção, que compreende as fases III,
IV e V da doença. É a partir dessas fases que os gatos se tornam doentes, com quadros crônicos progressivos, muitas
vezes graves. Cerca de 80% dos diagnósticos são realizados nessas fases.
A inflamação gengival crônica é uma das conseqüências mais comuns da infecção pelo FIV (Figura 1); cerca de 50 a 80%
dos gatos infectados pelo FIV apresentam gengivite crônica, associada ou não a outras manifestações clínicas da doença.
Infecções crônicas relacionadas à imunossupressão também incluem doenças de trato respiratório superior e pneumonias
(Figura 2 e 3) (virais ou bacterianas), que podem acometer até 30% desses animais; cistite bacteriana, piotórax ,
enterites recorrentes, infecções por protozoários intestinais, piodermites, demodiciose, peritonite infecciosa felina e
candidíase, também são descritas, principalmente em animais nas fases terminais da doença. Cerca de 5% dos felinos
2
infectados desenvolvem alterações neurológicas tais como alterações psicomotoras, neuropatias periféricas, anisocoria e
convulsões. Doença renal crônica também é relatada, existindo evidência do efeito direto do vírus no desenvolvimento e
progressão da mesma.
Figura 1 - Animal positivo para o FIV com complexo gengivite-estomatite-faringite, com lesões ulcero-proliferativas e
hiperplasia.
3
Figura 2 - Pulmão de animal portador do FIV com quadro de pneumonia bacteriana. Notar pontos de supuração e estrias
de pus.
4
Figura 3 - Exame radiográfico de animal portador do FIV com broncopneumonia. Notar o padrão alveolar difuso.
As anormalidades hematológicas são comuns, e incluem hipergamaglobulinemia e citopenias (anemia, neutropenia,
linfopenia, leucopenia), que são as mais comuns e tendem a se intensificar com o avançar da doença.
Linfomas, leucemias e alguns outros tipos de neoplasias (como o carcinoma de células escamosas) são descritas em
associação com a infecção pelo FIV. Dentre estas, a mais comum é o linfoma, sendo o gato infectado 6 vezes mais
predisposto ao desenvolvimento da neoplasia.
Devido a inespecificidade sintomática da infecção, sempre se deve suspeitar de FIV naqueles animais com doenças
crônicas e intermitentes (como as descritas anteriormente), manifestações de gravidade moderada e sem explicação
aparente, e nos casos pouco responsivos às medidas terapêuticas instituídas.
Diagnóstico
Para pesquisa de infecção pelo FIV, utilizamo-nos de testes sorológicos para detecção de anticorpos, por meio da
detecção do antígeno p24. O ELISA é um teste de triagem, cujo resultado positivo deve ser confirmado caso o mesmo
ocorra em animais plenamente saudáveis, de baixo risco, ou que seja determinante para eutanásia do paciente.
Filhotes com idade inferior a 6 meses podem apresentar resultados positivos decorrentes da imunidade transferida pelo
colostro. Recomenda-se reteste após 8 ou 12 meses para determinar existência ou não de infecção.
5
Um teste de ELISA negativo para FIV pode indicar infecção recente, sem soroconversão. Em havendo suspeita, o exame
deve ser repetido em 30 a 60 dias. Filhotes com menos de 6 meses podem acarretar em falso-positivos devido à
transmissão de anticorpos maternos. Esses indivíduos devem ser retestados após 6 meses de idade.
Há um teste comercial de fácil aplicação na rotina clínica diária (SNAP® FeLV Antigen/FIV antibody Combo – Idexx
Laboratories) , que pesquisa simultaneamente, o antígeno do FeLV e anticorpos anti-FIV, sendo bastante sensível e
confiável. Outro teste com crescente uso em nosso meio é a PCR (reação em cadeia da polimerase), que detecta frações
de material genético do agente.
Tratamento
Não existe um tratamento curativo para a doença. A Zidovudina (AZT) é um dos antivirais mais utilizados em gatos; seu
mecanismo de ação é a inibição da enzima transcriptase reversa do retrovírus. O AZT inibe a replicação do FIV in vitro e
in vivo; reduz a carga viral plasmática e gera melhora imunológica e clínica dos gatos infectados. Em gatos naturalmente
infectados, o AZT gera melhora nos quadros de gengivite crônica, depleção celular e quadros neurológicos.
A dosagem recomendada é de 5mg/kg a cada 12 horas por via oral. Durante o tratamento, devem ser realizados
hemogramas periódicos (semanais no primeiro mês), visto que o principal efeito colateral deste fármaco é a anemia não
regenerativa. É preferível a formulação em cápsulas ao invés de xarope, visto a pouca palatabilidade do medicamento,
que pode chegar a gerar anorexia e vômito em alguns animais. Problemas de legislação e dificuldade na aquisição
limitam o uso desse fármaco no Brasil, atualmente. Imunomoduladores podem reduzir algumas manifestações
(principalmente as gengivites) ou postergar a progressão da doença. O Interferon 2α-recombinante humano (RoferonA® - Roche), por via oral, na dose de 30UI diárias, durante 7 dias, e em semanas alternadas, é relacionado à melhora
clínica e prolongamento do tempo de sobrevida.
Animais infectados pelo FIV em fase assintomática devem ser castrados. Isso irá reduzir a agressividade dos machos,
minimizando assim o risco de transmissão. Também irá ajudar a diminuir o contato com outros animais, na disputa de
território, por exemplo. Além disso, a castração irá diminuir a procura por parceiros para acasalamento, o que em muitos
gatos, é um evento estressante e extenuante. Os portadores em fase assintomática devem ser examinados
periodicamente por um veterinário. A visita deve ser realizada pelo menos a cada 6 meses, para a realização de exame
físico completo, verificação do peso corpóreo, e se possível, realização de hemograma e bioquímica sérica.
Os animais em fases mais avançadas, devem ser tratados de acordo com a manifestação apresentada.
Prevenção
Uma das principais medidas preventivas a serem tomadas é o confinamento do gato dentro de casa. O confinamento irá
impedir a transmissão da doença para outros animais, assim como irá evitar a exposição do animal a patógenos
externos, com diminuição do risco de infecções e problemas endêmicos em populações com grande circulação de
animais. Em colônias/abrigos, é ideal o isolamento do infectado dos demais animais, até o possível teste de todos os
animais para verificar o status da colônia e correta separação dos mesmos.
A prevenção para os gatos não portadores é a de evitar o acesso do animal a rua, além de testar novos animais
introduzidos no ambiente antes de prévio contato.
Prognóstico
O prognóstico é reservado, visto a incurabilidade do processo. O mesmo varia de acordo com a fase de detecção e
doenças associadas.
6
O óbito pode ocorrer cerca de dois anos após o diagnóstico (cerca de 4 a 8 anos após contrair a infecção), em 20% dos
animais. Nesse mesmo período, mais de 50% dos gatos se mantêm assintomáticos. Na fase terminal da doença
(debilidade e comprometimento do estado geral), a expectativa de vida é inferior a um ano.
Os proprietários devem ser informados a respeito da evolução crônica e progressão lenta da doença, e que animais
positivos saudáveis por ocasião do diagnóstico podem assim permanecer por anos.
Leitura sugerida
SELLON, R.K.; HARTMANN, K. Feline immunodeficiency virus infection In: GREENE, C.E. Infectious diseases of the dog
and cat, 3rd ed., Saunders Elsevier, Missouri, p. 131 – 143, 2006.
LEVY, J.; CRAWFORD, C.; HARTMANN, K.; HOFMANN-LEHMANN, R.; LITTLE, S.; SUNDAHL, E.; THAYER, V. American
Association of Feline Practitioners’ feline retrovirus management guidelines. Journal of Feline Medicine and Surgery, v.
10, p.300 – 316, 2008.
7