a.z haikal
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L > z Civ tA ÍNtERNET NO BnAa: REPRCV5SES PERSPTJVA$ MARCO Braill Internet 811! ofRights repercussio andperspectIves Rgc CIA Mstre em Diritp Civil pela LIERJ Advagatia rsg@baawcqpbr AREA o DITo ØvflComunição BESUMP Ete artigo ciida das prineipis rper cussdes e perpeçtivas dr Mro civil inter net no SrasJ após majs de um ano de vigneia, dn fotp na Jwisprud&icia, ia edntLdt piblieó te9dlaftierrtaçp ro êrtblb J1sJatfvo, e levando-se em consfterap o eantexto, os princípios e os eixos temáticcis da Marco Civil ri? lntene ASTIT PAlAVRAS—CHAVE: Marco cívil da Tnfernet KËywoos: lnternet bili of ríghts Txternet Privacy Personal data protectidn —Freed?n of speech [etneutrality 1ntetnt1htrrflèdiat4es Ilabilfty. Inter net Privacidade Prõteçáo dtdados pessoais — — — — t?berdade de expressâri NeuttaTidade de (ede Resattsaidiidde de iritemediia na iriterot. — — Th]s atPçt clqls wi1ii BMZH!s lnternet SAI o tghts main reper4sis nd perspective fter more tharl a year it etfrct fdcused 00 lë cae 1a’& fhç publi tinuitétion fOr thriregulatón anti the lelaprired taJr[ng into account th Fyttntt iI1 oi Rig1ifs contextpriricipls and thematicaxs - — — — » SurvÁa(oi, ititroduço ti Contexto4.2 Printípid 1 3 Eixos: privaoidatle, nfotratdade, [nimpiitabi[idae 2 Mais um ano de vigência: repctíssôes e perpeciast2i ia risprtdneia 22 consulta ptibUca sobrea regurneotaçã23 Projetos Iegisiatívs 1 -4, t[ipgfafa, - — “il4qogora tiqs lo essq afutw, e nesseftsLímçido’’ (Miktiafl Buigákoy, Qmestreemçijgarlda) 1 1NTRODUÇÀO Pouca mais de uniano sepassou desde quea Marçt C Cyi1 d nelne entrnn m rigor O 4ias apø 1o poito 4eyista øbjvo, pensand,s apna no mero trnscurs da Lemp, pare— Pebe Marro civil d }nteraet ho 5rsli teperatosóes’ ersecWas, evistodb fbanofs. vL O64 ano 100 p iai-iso. 5â Pled RT fev 201d. 162 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT964 FEVEREIRO DE DIREITO CIVIL 2016 ce mesmo pouco pouco tempo para ser aplicada e interpretada pelos tribunais a ponto de consolidar-se propriamente uma jurisprudência, pouco tempo para a consolidação de comportamentos, de boas práticas, de uma cultura. No entanto, as repercussões do Marco Civil da Internet na sociedade bra sileira e no ordenamento jurídico são diversas e intensas, assim como as pers pectivas para adiante. Já se verificam diversas transformações, mas também e infelizmente possíveis retrocessos, sobretudo com a tramitação, no Congres so Nacional, de projetos para alterar em alguns casos, quiçá desfigurar o Marco Civil da Internet. De lá para cá, verificaram-se avanços notáveis, a começar pelo fato mes mo da aprovação da lei considerada referência e inspiração’ gestacionada desde 2007 e elaborada ao longo de um processo colaborativo e multissetorial de destaque. Afinal, apesar do acentuado desenvolvimento tecnológico e do crescimento vertiginoso do uso da internet no Brasil (com as vantagens e os problemas daí advindos), 2 o país ainda carecia de um marco regulatório e não apenas uma disciplina jurídica anódina sobre o uso da Internet, mas, so bretudo, de uma declaração de direitos, uma “Constituição” da internet, atenta aos cidadãos-usuários e às feições essenciais da internet, uma “rede de redes”, 3 desenvolvida como ambiente aberto, descentralizado, plural. 4 que já se tomou nossa nova con No contexto do “dilúvio informacional” dição, como identificara Pierre Lévy, o Marco Civil da Intemet, ao estabelecer — — — — — — —, — princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, foi em si mesmo um fundamental passo adiante, carregado de legitimidade, especialmente considerando-se o processo colaborativo que serviu de base para sua elaboração. É bem verdade que o Brasil ainda continua sem uma lei nacional de prote ção de dados, 5 e o Marco Civil da lnternet claramente não veio preencher esse espaço; seu espírito e seu escopo são outros. De todo modo, o Marco Civil da Internet estabelece importantes princípios e coloca em posição de destaque a proteção da privacidade e dos dados pessoais do usuário. Com efeito, a lei assegura aos usuários o direito à proteção da privacidade e a informações cla ras e completas sobre a coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de dados pessoais, e garante também que os dados pessoais não serão transferidos 6 a terceiros, salvo expresso consentimento ou determinação legal. À luz desse novo cenário, portanto, o Marco Civil da Internet significou modificação importante, com reflexos diretos e relevantes na sociedade bra sileira. Mas, como o próprio nome sugere, trata-se de um marco regulatório, ainda pendente de regulamentação e ainda com diversas questões em aberto. Em suma, deve-se lançar um olhar tanto atento quanto crítico para essa experiência recente, ainda em progresso. Busca-se examinar as repercussões e perspectivas do Marco Civil da lnternet em três diferentes campos: nos tribu nais, no âmbito da consulta pública sobre a regulamentação e no Legislativo, que já conta com diversos projetos que podem alterar substancialmente as fei ções da lei não necessariamente para melhor. Não se trata, é claro, dos únicos domínios que o Marco Civil da lnternet afetou e pelos quais se espraiou 7 mas, em razão das fronteiras limitadas deste artigo, é sobre essas três áreas que se concentra, adiante, a atenção. — — 1. Inclusive para outras experiências, como a da Dicchiarazione dei Dintti in internet, que de fine princípios para um equilíbrio entre direitos humanos e exigências de segurança, mer cado e propriedade intelectual na Intemet (em português: [http://observatoriodainter net.br/postlversao-traduzida-da-dichiarazione-dei-diritti-in-intemetl). Cite-se também a manifestação do criador da World lÁ/ide Web, Tim Berners-Lee, pela aprovação do Marco Civil, pois foi, como a Web, construído pelos usuários, em processo inclusivo e participa tivo, refletindo a Intemet como ela deve ser: aberta, neutra e descentralizada ([http:I/we bfoundation.org/2014/03/marco-civil-statement-of-support-from-Sir-tim-berflerS-leell). 2. Estudo de agosto de 2015 estimou o número de usuários da intemet no mundo em cerca de 3 bilhões o primeiro bilhão teria sido atingido 10 anos antes (1). E o Brasil é o quinto país em quantidade de usuários (antecedido de China, Estados Unidos, Índia, Japão, nessa ordem). 3. A internet foi se desenvolvendo como arquitetura global e horizontal, conectando dispositivos ao redor do mundo, em interconexão de diferentes redes, de diferentes dimensões, privadas e públicas. 4. Nesse oceano informacional, “Iii emos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar” (Pierre Lévy Cibercultura. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 15). — GARCIA, Rebeca. Marco Civíl da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista das Tribunais. vai. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. Ri’, fev. 2016. É a esta tarefa que se propõe este artigo, sem perder de vista o mencionado caráter descentralizado e aberto da internet, que deve ser preservado. A esse 5. O Ministério da Justiça, no âmbito da Secretaria Nacional do Consumidor, em cola boração com a Secretaria de Assuntos L.egislativos, desenvolveu anteprojeto de lei, ainda não enviado ao Congresso, que passou por duas consultas públicas: em 2010, e entre janeiro e julho de 2015, já sobre minuta de texto. Em outubro de 2015, após análise das contribuições, o Ministério da Justiça apresentou a versão final do texto, enviada à Casa Civil para análise e posterior encaminhamento ao Congresso. Há pro jetos de lei de iniciativa do Legislativo, mas não se sabe, nem é possível antecipar, o destino que terão o anteprojeto ou os projetos. 6. Ressalvam-se as hipóteses de guarda obrigatória de registros. 7. Pode-se pensar em diversos campos, como o educativo e do acesso, o da prática co mercial, entre outros. GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasã: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais, vai. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. Ri’, tev. 2016. 1 63 164 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT 964 FEVEREIRO DE 201 6 DIREITO CIVIL respeito, aliás, continua atual a advertência de Pierre Lévy, no sentido de que qualquer tentativa de reduzir a internet “às formas midiáticas anteriores (es quema de difusão ‘um-todos’ de um centro emissor em direção a uma periferia receptora) só pode empobrecer o alcance do ciberespaço para a evolução da civilização, mesmo se compreendemos perfeitamente é pena os interesses 8 econômicos e políticos em jogo”. — de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, lançou um processo colaborativo e online para a construção de um Marco Civil da Internet. Esse processo foi gradual e contou com ampla participação, tanto da aca demia quanto da sociedade civil e dos setores privado e governamental. Final mente, em 2011, fechou-se uma proposta de texto, encaminhada à Câmara dos Deputados como projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo (sob o PL 2.126/201 1). Apesar de sua acentuada relevância e da participação social cola borativa ao longo de sua gestação, o projeto acabou inicialmente esquecido em alguma gaveta legislativa. Até que vieram a público as denúncias de Edward Snowden sobre as práticas de vigilância em massa e não autorizada por parte da agência norte-americana de segurança nacional (National Security Agency) que afetavam não apenas cidadãos e empresas americanos, mas de todo o mundo, inclusive governos, dentre o brasileiro. O escândalo serviu como cata lisador, acelerando a tramitação que vinha apenas arrastando-se e, quem sabe, talvez nem tivesse chegado a bom porto sem um impulso externo (embora traumático). — 1.1 Contexto Antes de avançar propriamente sobre as repercussôes do Marco Civil da In ternet na experiência jurídica brasileira, é importante situá-lo historicamente Afinal, o direito é, mais que fato, verdadeiro produto social, fruto do embate e do encontro de interesses e de relações, de uma combinação de circunstâncias 9 situadas no tempo e no espaço. Em linhas gerais (e resumidas) ,° as origens do Marco Civil da lnternet re montam a 2007, e a um amplo processo de consulta e debate públicos, seguido de um período de incertezas e inação após seu encaminhamento à Câmara dos Deputados, até que, finalmente, com o impulso dado por denúncias interna cionais de vigilância em massa, o projeto de lei voltou ao centro de atenções e foi objeto de intenso debate, sendo votado e aprovado nas duas casas legislati ias, e enfim sancionado. O uso da internet no Brasil já era significativo e crescia exponencialmente, mas o país ainda não contava com um arcabouço legal que garantisse direi tos dos usuários, e que estabelecesse um regime jurídico básico para o meio virtual. O impulso inicial para a elaboração de um marco regulatório surgiu em 2007, como reação à aprovação, na Câmara, de polêmico projeto de lei sobre crimes cibernéticos.” Nesse contexto, em outubro de 2009 a Secretaria —, O assunto assumiu, então, outra proporção e passou ao topo da agenda de prioridades do país. Nesse passo, o projeto recebeu status de urgência cons titucional, o que implicava uma tramitação mais célere, pois Câmara e Sena do teriam 45 dias, cada, para votar a matéria prazo após o qual o projeto trancaria a pauta de deliberações até a conclusão da votação em cada casa. Nesse período, a Câmara virou palco de embates envolvendo diversos atores e interesses embates e debates que parecem reproduzir ainda hoje, acerca da regulamentação da lei e da sua aplicação. Após meses de acalorados debates e mobilização social, em 25.03.2014 o marco civil foi aprovado na Câmara. Seguiu para o Senado, onde acabou anali sado praticamente apenas do ponto de vista formal, sem alterações ou maiores deliberações pois, em caso de mudanças, o projeto teria de voltar à Câmara, — — 8. Pierre Lévy. Op. cit., p. 128. 9. António Manuel Hespanha. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. 2. ed. Lisboa: Mem Martins, 1997. p. 25. 10. Para conhecer em maior detalhe a história da criação do marco civil da internet, recomenda-se: Ronaldo Lemos. Uma breve história da criação do Marco Civil. In: Newton De Lucca; Adalberto Simão Filho; Cíntia Rosa Pereira de Lima (coords.). Direito & Internet III: marco civil da internet (Lei n. 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latin, 2015. t. 1. p. 79-100. 11. Conhecido como “Lei Azeredo”, em referência ao deputado que o apresentou, o projeto (PL 84/1999) sofreu diversas modificações, reduziu-se a quatro artigos e foi sancionado como a Lei 12.735, de 30.11.2012, com dois vetos que lhe reduziram — significativamente o alcance — um dos dispositivos vetados permitia que militares tivessem controle dos dados em caso de uma guerra cibernética. A lei foi sancionada no mesmo dia que a Lei 12.737, a “Lei Carolina Dieckmann”, que tipifica crimes informáticos (essencialmente, o de “invasão de dispositivo informático” e o de “inter rupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública”). A lei recebeu este apelido porque foi proposta como espécie de reação legislativa ao episódio cio vazamento de fotos íntimas obtidas ilicitamente do telefone da atriz, em maio de 2012. GAReS, Rebeca. Marco Clvi da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revisto dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. Sio PaWo: Ed. R1 fev 2016. OARCLA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. RevIstados Tribunaii vol. 964. ano 105. p. 161-190. Sao Paulo: Ed. RT, fev. 2016. A1 1 65 166 REVISTA Dos TRIBUNAIS . RT964. FEVEREIRO DE 2016 DIREITO CIVIL talvez perdendo fôlego, e certamente retardando sua aprovação. Apesar de al guns protestos no Senado havia intenção de uma análise mais detida, com alterações de alguns dispositivos o projeto foi aprovado sem alterações em 22.04.2014, seguindo para a sanção presidencial, que aconteceu no dia se guinte, de forma simbólica, no evento NET Mundial, realizado em São Paulo. É esse, em resumo, o contexto da construção e promulgação desse importante marco regulatório. — —, 1.2 Princípios A lei que nasceu desse processo colaborativo, embora um tanto conturba do, tem feições marcantes, estruturadas com base e em torno de importantes fundamentos e princípios. Logo após demarcar seu ãmbito de aplicação (art. 1.°), o Marco Civil da Internet elenca seus fundamentos (art. 2.°) e os princí pios que orientam a disciplina do uso da Inteniet no Brasil (art. 30), dos quais tem especial relevo o da privacidade sobretudo enquanto a lei de proteção de dados pessoais ainda não é uma realidade. Já de início, portanto, inaugura-se importante conjunto de fundamentos para a disciplina do uso da internet no Brasil. Um deles é o respeito à liber dade de expressão, expresso já no caput do art. 2.°, a indicar a relevância e quiçá proeminência conferida pela lei a essa garantia constitucional. Além dessa pedra de toque da disciplina do uso da internet, outros princípios são consagrados como fundamentos: o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a diversidade; a abertura e a cola boração; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e a finalidade social da rede. Nota-se, aí, a preocupação do legislador em assegurar não apenas a internet como ambiente descentralizado, aberto e livre, mas em acentuar seu aspecto promocional promoção de acesso e inclusão, de cidadania, de exercício de di reitos, de desenvolvimento da personalidade. Isso sem perder de vista a inova ção e a livre iniciativa e concorrência, de onde deriva a liberdade de desenhar, desenvolver e explorar modelos de negócio. Mantêm-se também os olhos na defesa do consumidor e na finalidade social da rede afinal, os aspectos econô micos são importantes (inclusive para permitir a ampliação e desenvolvimento da infraestrutura que permite a interconexão da rede de redes), mas não devem ser um fim em si mesmo. Para além dos pilares de sustentação apontados acima, a disciplina do uso da internet no Brasil orienta-se pelos seguintes princípios: a garantia constitu — — — — cional da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento; a proteção da privacidade e dos dados pessoais; a preservação e garantia da neutralidade de rede; a preservação da estabilidade, segurança e funcionalida de da rede; a responsabilização dos agentes conforme suas atividades; a preser vação da natureza participativa da rede; a liberdade dos modelos de negócios, embora limitada pelos demais princípios. Como se viu, os princípios do uso da internet apontam, entre outros, para a proteção da privacidade, bem como para a proteção dos dados pessoais, na forma da lei. Abriu-se, assim, espaço para outras leis que podem dispor sobre o tema, assegurando-se desde já a compatibilidade com uma lei geral de prote ção de dados pessoais, sem a ambição de regular de forma genérica a questão apenas tratando de maneira especial a proteção de dados na internet. Nota-se aí, também, que o Marco Civil da Internet não trata de privacidade e proteção de dados pessoais de maneira indistinta, como sinônimos os princípios são elencados separadamente, denotando que seu conteúdo, apesar da proximida de, não é propriamente o mesmo. Esse amplo e consistente conjunto de princípios é essencial para o uso e o desenvolvimento de uma rede de redes livre, aberta, plural. Mas eles não representam um rol taxativo, fechado; ao contrário, o próprio Marco Civil da lnternet determina que tais princípios não excluem outros relativos à matéria. O Marco Civil da Internet ecoa, em certa medida, o decálogo de princípios para a governança e uso da internet no Brasil, firmados pelo Comitê Gestor da internet no Brasil (CGI.br) ,12 entidade multissetorial crucial no desenvol 3 para servir de base e de norte para ações e vimento da internet no Brasil,’ decisões na internet. O primeiro deles é o da liberdade, privacidade e direitos humanos, reco nhecidos como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e de mocrática; seguido do princípio da governança democrática e colaborativa da internet, isto é, exercida de forma transparente, multilateral e democrática. Outro é o da universalidade do acesso, instrumento para o desenvolvimento pessoal e social. E, diretamente relacionado, segue-se o princípio da diversi — — — GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista das Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. Sâo Paulo: Ed. RI, fev. 2016. 12. Por meio da Resolução CGI.br/RES/2009/003/P 13. Criado pela Portaria Interministerial 147/1995, alterada pelo Decreto Presidencial 4.829/2003, o CGI.br coordena e integra as iniciativas de serviços de internet no país, promovendo qualidade técnica, inovação e disseminação dos serviços. Teve papel fundamental no desenvolvimento da intemet no Brasil. Gsscv, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. S9o Paulo: Ed. RT, fev. 2016. 1 67 168 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT964 . FEVEREIRO DE DIREITO CIVIt 2016 dade, como forma de respeitar e garantir a diversidade cultural expressa na internet, em respeito, por consequência, à liberdade de expressão. O decálogo consagra ainda o princípio da inovação, que deve ser estimula do; e o da neutralidade de rede, que só admite a filtragem ou priorização de trá fego de dados por força de critérios técnicos e éticos. O conjunto de princípios inclui também o da inimputabilidade da rede, no sentido de que o combate a ilícitos na rede deve recair sobre os responsáveis e não os meios de acesso e transporte de dados; o princípio da funcionalidade, segurança e estabilidade da rede; o princípio da padronização e interoperabilidade, com o uso de padrões abertos; e, por fim, o do ambiente legal e regulatório, a preservar a dinâmica da internet como espaço colaborativo. Em suma, o Marco Civil da Internet surgiu como peça-chave no ambiente legal e regulatório brasileiro, com uma acentu 4 ada matriz principiológica.’ 1.3 Eixos: privacidade, neutralidade, inimputabilidade Para além dos fundamentos e princípios que baseiam e norteiam a discipli na do uso da internet no Brasil, o Marco Civil da Internet orienta-se em torno de três eixos básicos: privacidade, neutralidade de rede e inimputabilidade. O primeiro deles, o da proteção da privacidade, encontra-se expresso, so breiudo, nos arts. 7.°, 8.° e 10, mas perpassa todo o texto do Marco Civil da Internet ou ao menos seu espírito. A proteção da privacidade, como se viu, é um dos princípios do uso da internet no Brasil. Nesse sentido, o Marco Civil da Internet estabelece a garantia da privacidade de dados e comunicações, e de observância desta garantia inclusive no exercício do dever legal de guarda de dados de conexão e de acesso a aplicações, cujo acesso pode ocorrer apenas mediante ordem judicial específica. O art. 70 é o dispositivo do Marco Civil da Internet que concentra com maior riqueza as normas de proteção aos dados pessoais na internet (especial mente nos incs. 1, II e III) ‘5 Além disso, ele consagra, de forma incisiva, o prin cípio do consentimento —um consentimento, pode-se dizer, qualificado. Isso — 1 69 porque, sob o regime do Marco Civil da Internet, o consentimento, além de necessário para a coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de dados pessoais, e para o fornecimento a terceiros, deve ser livre, expresso e informado, ou conforme as hipóteses previstas em lei. O mesmo art. 7.° consagra ainda o princípio da transparência, diretamente 6 tão caro também a relacionado ao direito básico e fundamental à informação,’ todo o sistema de proteção estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Afinal, “[s] em a devida transparência, torna-se impossível qualquer tipo de controle pelo titular do fluxo de seus dados, assim como qualquer fis calização pelos órgãos de controle” 17 Na mesma linha, assegura-se o princípio da finalidade, no sentido de que a coleta e o tratamento de dados pessoais na internet sejam justificados e tenham as finalidades indicadas para que se possa, aliás, falar em consentimento infor mado. Confere-se ao usuário também o direito de requerer exclusão definitiva de seus dados, ao fim da relação negocial. Ainda no eixo da privacidade, o Marco Civil da Internet, ao reforçar em seu art. 8.° a garantia do direito à privacidade, cuida de cláusulas de proteção contratual, típicas do direito do consumidor, con siderando nulas as ofensivas à privacidade e à liberdade de expressão. E, como forma de assegurar, na prática, essas garantias, o Marco Civil da In ternet trata de aspectos de jurisdição, O tema é tão delicado quanto importante, sobretudo quando se considera uma rede de redes em escala global. Busca-se, portanto, garantir não apenas uma internet livre e aberta, sem fronteiras, mas igualmente proteção e segurança sem fronteiras ou maiores limitações. Nesse sentido, o art. 11 determina, em resumo, a aplicação da lei brasileira caso alguma das operações envolvendo a coleta e tratamento de dados pessoais ou de comu nicações ocorra no Brasil, mesmo que realizada por pessoa jurídica sediada no — Princípios e fundamentos que servem de base e determinam a chave de leitura do marco civil. 15. Aliás, o mc. III, que assegura o direito à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial, significou grande avanço. A diferen ça entre a comunicação e o armazenamento tem se tomado cada vez menos relevante, tendo o marco civil da internet colocado esses níveis de inviolabilidade no mesmo patamar de consideração e proteção. 16. O problema que se procura equacionar através da proteção aos dados pessoais é o da assimetria da informação. A esse respeito, costuma-se dizer que a transparência deve ser diretamente proporcional ao poder; e a privacidade, inversamente proporcional ao poder, no sentido de o titular dos dados poder determinar as formas de sua utilização, bem como a possibilidade de compartilhamento. 17. Laura Schertel Mendes. O direito básico do consumidor à proteção de dados pessoais. RDC 95/55. São Paulo: Ed. RT, set.-out. 2013. De fato, o princípio da transparência envolve “o direito do consumidor de ser informado sobre: (i) quais os dados pessoais são tratados e para quais finalidades; (ii) se os dados pessoais são transnntidos para terceiros; (iii) para quais países os dados pessoais são transmitidos, se for o caso; (iv) qual é o período de conservação de dados; e (v) quais os mecanismos de segurança utilizados para garantir a segurança dos dados pessoais” (Idem, p. 56). GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais, vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. GASCA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revisto dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. 14. 1 70 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT 964 . FEVEREIRO DE 2016 DIREITO CIVIL exterior (desde que haja oferta de serviços ao público brasileiro ou uma empresa integrante do mesmo grupo econômico tenha estabelecimento no país). Ainda no domínio da privacidade e da proteção de dados, o Marco Civil da lnternet impõe aos provedores de conexão e de aplicações o dever de guarda de, respectivamente, registros de conexão (por um ano) e registros de acesso 8 Em qualquer dos casos, o acesso aos registros a aplicações (por seis meses).’ somente pode ocorrer mediante ordem judicial. Verifica-se, aí, uma espécie de compartimentalização: os provedores de conexão não podem armazenar dados relativos a aplicações de lnternet acessadas pelos usuários, e os prove dores de aplicações não podem armazenar dados relativos a outras aplicações, salvo prévia autorização do usuário, assim como não podem armazenar dados pessoais considerados excessivos em relação às finalidades que presidiram o consentimento originalmente fornecido. O Marco Civil da lnternet veio também suprir uma defasagem acentuada, elevando (e ampliando) o nível de proteção do CDC em relação aos dados pessoais, que se concentrava no art. 43. Embora proteja o consumidor, essa norma não tem a abrangência de uma lei geral de proteção de dados. Além disso, concentra-se no momento de coleta e armazenamento de dados (além de falar em “comunicação” ao consumidor, não em consentimento), sem se ocupar, propriamente, do momento posterior, de tratamento e uso desses da dos. Lembre-se, porém, que o Marco Civil da Internet não é, nem pretendeu ser uma lei geral de proteção de dados pessoais, ainda que contenha regras importantes a esse respeito. Já o eixo da neutralidade de rede foi um dos pontos que mais gerou deba tes e controvérsias, sobretudo por sua repercussão econômica, e em relação a diversos atores empresas de telecomunicações, provedores de aplicações, sociedade civil. Pode-se mesmo dizer, pelo que se viu da tramitação do projeto na Câmara, que a questão da neutralidade contribuiu decisivamente para a demora na sua aprovação. Em síntese, conforme aprovado, o marco civil determina, em seu art. 9.o, a isonomia no tratamento de pacotes de dados, “sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. A discriminação, prioriza ção ou degradação é excepcional, a ser ainda regulamentada, e somente pode decorrer de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos servi— 1 71 ços e aplicações; e priorização de serviços de emergência (outros pontos para regulamentação). Já o eixo relativo à responsabilidade civil ou, mais propriamente, ao princí pio da inimputabilidade na rede, está traduzido nos arts. 18 e 19. Ao contrário do que o nome sugere, não significa que a rede seja terreno de irresponsabilida de, mas, sim, que os provedores a rigor não respondem civilmente pelos danos causados por conteúdo de terceiro, sobre o qual não têm ingerência. O regime de responsabilidade bifurca-se um pouco, a depender de se tratar de provedor de conexão ou provedor de aplicações. Com relação aos provedo res de conexão, ou seja, que apenas fornecem ao usuário a conexão à internet, a regra é a da efetiva inimputabilidade pelo conteúdo gerado por terceiro. Por sua vez, os provedores de aplicações, que fornecem o conjunto de funcionali dades a serem acessadas pelo usuário conectado à internet, somente respon dem por conteúdo de terceiro em caso de omissão configurada pela não ado ção de providências após ordem judicial específica. A exigência de ordem judicial específica gerou também acalorados debates, principalmente porque, até então, a jurisprudência, capitaneada pelo STJ, vira construindo e consolidando o entendimento de que os provedores poderiam ser responsabilizados se não adotassem providências depois de notificados so bre o conteúdo objeto de discussão isto é, vinha-se aplicando, de forma já substancialmente tranquila pelos tribunais, a regra do notice and takedown. O Marco Civil da Internet, porém, acabou optando pela necessidade de ordem judicial específica, como uma garantia. Talvez se tenha pensado mais na rede em geral do que especificamente nas pessoas relacionadas a um conte údo disputado. Sob essa perspectiva, simples notificações poderiam dar mais espaço a abusos pelos riotificantes (em princípio livres para denunciar sem fundamentos qualquer conteúdo), a monitoramento preventivo ou a remoções imediatas e irrefletidas. Afinal, é razoável supor que seria mais simples e seguro remover automaticamente um conteúdo denunciado a despeito de sua aná lise e assim evitar responsabilização, do que discutir o mérito da notificação e entrar no terreno por vezes difícil do juízo de valor sobre o conteúdo que se produz e publica no meio digital. Privilegiou-se, assim, a liberdade de expressão, buscando-se evitar a censu ra prévia e o monitoramento online. Mas não são poucas nem são infunda 9 O principal argumento é o de das as críticas feitas a essa opção legislativa.’ — — — —, — — 18. Nem todas as normas do Marco Civil têm natureza protetiva por exemplo, as do de ver de retenção de dados, que em si mesmas não se encaixam propriamente no ethos de proteção de dados pessoais. — GARCIA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais, vaI. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RI, fev. 2016. 19. Nessa linha, há quem considere inconstitucional o art. 19, diante da garantia consti tucional de plena e integral reparação por danos à honra, à privacidade e à imagem GARCIA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussôes e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RI, fev. 2016. 172 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT964 . FEVEREIRO DE 2016 DIREITO CIVIL que essa opção restringe, ferindo-o, o princípio da ampla reparação dos danos, além da provável delonga que a concessão de uma ordem judicial específica implicaria o ponto de vista parece concentrar-se, pois, na vítima. Ao que parece, no entanto, o Marco Civil da lnternet, como aprovado, fez uma escolha, e uma escolha (ao menos em tentativa) equilibrada. Ele excep ciona os casos de conteúdos de nudez ou atos sexuais de caráter privado, pre vendo a responsabilidade subsidiária do provedor de aplicações que se omita diante de notificação (art. 21). E permite que os pleitos de reparação de danos ou remoção de conteúdo relativos à honra, à reputação ou aos direitos de per sonalidade sejam levados aos juizados especiais, que seguem procedimentos mais simples e céleres. É possível, ainda, a antecipação de tutela e não apenas nas causas levadas aos juizados caso presentes os requisitos processuais ne cessários. Os casos relativos a infrações a direitos autorais continuam a reger-se por legislação específica (art. 19, § 2.0)20 Além disso, não raro provedores de aplicações contam com sistemas próprios, previstos em termos e condições de uso, políticas de privacidade etc., para denunciação, notificação e remoção de conteúdo, que podem dar uma resposta prática eficiente a conflitos, talvez evitando a ida ao Judiciário. Trata-se, é verdade, de exceções bastante limitadas, abrindo-se um espaço mais que legítimo para questionamentos e dúvidas. Não surpreende, portanto, que a questão da responsabilidade civil de provedores de aplicações por conte ’ Será preciso decor 2 údo de terceiros pareça estar ainda longe de ser resolvida. rer mais tempo para análise crítica, para que a nova regra seja amadurecida, e — para avaliar-se como ela será entendida e aplicada pelos tribunais STJ irá uniformizar a sua interpretação. — 1 73 e como o São esses, em suma, os três eixos temáticos em torno dos quais se estrutu ra e se desenvolve o Marco Civil da lnternet embora se possa dizer que sua — verdadeira espinha dorsal seja o conjunto de princípios e fundamentos por ele consagrados, referidos nas linhas acima. E é com base nessa estrutura e, so bretudo, nesse conteúdo e contexto do Marco Civil da lnternet, que se devem mirar suas repercussões. 2. MAIS DE UM ANO DE VIGÊNCIA: REPERCUSSÕES E PERSPECTIVAS — Uma vez analisados os caracteres do Marco Civil da lnternet, sem perder de —, (Anderson Schreiber. Aspectos materiais e processuais relevantes do Marco Civil. In: Newton De Lucca; Adalberto Simão Filho; Cmntia Rosa Pereira de Lima (coords.). Direito & internet III: marco civil da internet (Lei n. 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latiu, 2015. p. 289-294). 20. Atualmente em vigor, a Lei 9.610/1998 ainda não atualizada, apesar do movimento de reforma e da proposta de texto, submetido a escrutínio público pelo menos desde 2007. 21. A questão da responsabilidade de intermediários é já turbulenta. Pense-se no pro blema da responsabilidade por comentários em blogs e portais de notícias. A esse respeito, vem à lembrança o caso Delfi vs Estônia, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que manteve a decisão estoniana segundo a qual o portal de notícias era responsável pelos comentários postados por leitores. Embora não os moderasse nem os lesse previamente, a Delfi tinha mecanismos básicos como filtra gem de palavras consideradas ofensivas (Disponível em: [http://hudoc.echr.coe.intl eng?i=001-155105#{”itemid”:[”001-155105”] 11). — vista o seu contexto, passa-se ao exame de seus reflexos na experiência jurídica brasileira. Para além do efeito simbólico, de o Brasil passar a ter um marco re gulatório do meio digital considerado referência a promulgação do Marco Civil da Internet teve diversas e importantes repercussões em pouco mais de um ano de vigência, nos mais variados campos. Busca-se, aqui, identificar e examinar as principais delas na jurisprudência, no âmbito da consulta para a regulamentação e no âmbito legislativo. — —, 2. 1 Jurisprudência A primeira delas, que merece destaque, é a repercussão na jurisprudência. Afinal, promulgada e em vigor a lei, é importante analisar como os tribunais vêm interpretando e aplicando-a nos conflitos concretos. Deve-se advertir, po rém, que se passou ainda pouco tempo para que questões surgidas após a en trada em vigor do Marco Civil da lnternet chegassem a ser efetivo objeto de análise, isto é, a ponto de se poder falar em uma jurisprudência consolidada sobretudo no STJ, instância superior, onde se leva ainda mais tempo para que 22 uma controvérsia chegue e seja apreciada. — No STJ, aliás, as decisões com referência direta ao Marco Civil da Internet são ainda escassas e, em geral, referenciam a lei apenas para afastá-la, diante da constatação de que o caso concreto tem origem em fatos anteriores a sua — — GAROA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol, 964. ano 105. p. 161-190, São Paulo: Ed. R1 tev. 2016. 22. Mas o STJ tem-se mostrado atento, buscando acompanhar o ritmo da internet. Nessa linha, incluiu dois temas relacionados no repertório do seu sistema de pesquisa sobre temas de destaque, a “Pesquisa Pronta”: responsabilidade do provedor por conteúdo na internet e ofensas ou informações na internet. GAROA, Rebeca. Marco Civil da nternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. 174 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT964 . FEVEREIRO DE vigência. O ritmo do tribunal ainda não acompanhou as passadas rápidas 23 da evolução tecnológica e dos problemas que surgem ao longo dela. Talvez se possa dizer que o STJ ainda não chegou na “fase Facebook” (apenas para citar o exemplo atualmente mais popular de rede social); está ainda na “fase Orkut”, chamado a apreciar casos ocorridos no âmbito da rede social que chegou a ser a mais popular no país, mas que caiu em desuso e encerrou oficialmente suas atividades em setembro de 2014.24 Ainda assim, o STJ já se mostrou atento ao novo diploma e chegou a utilizá -lo como referência na fundamentação de um julgado envolvendo responsa bilidade civil de provedor por conteúdo violador de direito autoral (matéria, como se viu, que o marco civil expressamente deixa a cargo da legislação espe cífica) comercializado via Orkut. O STJ vinha paulatinamente lapidando, e havia consolidado, o entendi mento de que os provedores de aplicações somente poderiam ser responsa bilizados por conteúdo de terceiros se omissos depois de notificação extra25 Em outras palavras, vinha aplicando, já de maneira relativamente judicial. tranquila, a regra conhecida como notice and takedown. Mas essa regra foi reformulada pelo Marco Civil da lnternet, ao exigir expressamente ordem judicial específica para obrigar os provedores de aplicações a no disponi bilizar o conteúdo atacado exceção feita à divulgação não autorizada de conteúdos de nudez ou atos sexuais de cunho privado. Como se viu, buscou-se privilegiar a liberdade de expressão e a privacidade dos usuários, eis que um sistema baseado em simples notificação poderia ter como efeito colateral a realização de monitoramento prévio por parte dos provedores, bem como remoções “preventivas” de conteúdo, com o perigo de estimular-se a (auto) censura. — 175 DIREITO CIVIL 2016 Na ação em referência, o STJ registrou que sua jurisprudência se alinhara “ao entendimento de ser inaplicável a provedores de internet o sistema de responsabilidade civil objetiva em razão de mensagens postadas em sites por eles hospedados”, exigindo-se para tanto uma “conduta omissiva por parte do provedor, desde que, comunicado extrajudiciaimente pelo titular do direito violado, se mantenha inerte” 26 A disciplina legal do Marco Civil da Internet em matéria de responsabili dade civil de provedores por conteúdo de terceiro, conforme reconhece o STJ, “foi além da jurisprudência consolidada” (grifou-se), dela se distanciando. Ao menos pelo que se lê do substancioso voto, trata-se, porém, mais de uma cons tatação talvez pesarosa do que uma tentativa de conferir outra interpreta ção ao texto expresso da lei. No caso em exame, apesar de surgido antes do advento do Marco Civil da lnternet, a Corte considerou apropriado aplicarem-se suas diretrizes, no que fosse cabível, de modo a “exercer melhor seu profícuo papel de uniformizador da jurisprudência pátria, oferecendo aos demais órgãos do Poder Judiciário e, de resto, à sociedade entendimento jurídico atual, que possa ser aplicado mesmo diante da nova disciplina legislativa” (grifou-se). Mas, como o próprio Marco Civil da Internet exciui expressamente de seu escopo os casos de viola 27 e era esse o objeto da demanda ali em exame, o STJ ção de direitos autorais, solucionou o caso com base nas regras vigentes de direito autoral, afastando a 28 responsabilidade do provedor. Outro ponto que vem repercutido nos tribunais, ainda sobre responsabili dade civil de provedores por conteúdo de terceiro, diz respeito à necessidade 29 dos conteúdos em disputa. Por um lado, pa ou não de indicação dos URLs — — — — 23. Como no caso envolvendo responsabilidade de provedor por criação de perfil falso em rede social, o STJ apontou que “não é possível a pretensa aplicação retroativa do art. 19 do Marco Civil da lnternet (Lei n. 12.965/2014), com a imposição de exigên cia legal que não vigorava à época dos fatos” (STJ, AgRg no Ag no REsp 642400/PR, 4 T.,j. 12.05.2015, rei. Mm. Maria Isabel Galotti, DJe 20.05.2015). 24. Nesse sentido, por exemplo: STJ, AgRg no REsp 1.384.340/DF, 3. T., j. 05.05.2015, rei. Mm. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 12.05.2015. 25. Um julgado emblemático a esse respeito, que sintetiza bem o posicionamento cons truído pelo STJ e foi depois reproduzido em outras decisões, é o seguinte, relativo à responsabilidade do provedor por mensagem de cunho ofensivo divulgada na rede social Orkut: STJ, REsp 1.338.214/MT, 3. T,j. 21.11.2013, rei. Mi NancyAndrighi, DJe 02. 12.2013, RDDP 13 1/150. 26. STJ, REsp 15126477MG, 2. Seção, j. 13.05.2015, rei. Mm. Luis Felipe Salomão, DJe 05.08.2015. 27. Como se lê do trecho do voto do Ministro relator, “não há dávida de que não foi mesmo intenção do legislador tratar de delicado tema no âmbito da primeira regulação da inter net no Brasil” (grifou nosso). 28. A responsabilidade foi afastada por força, basicamente, dos seguintes elementos: “(a) a estrutura da rede social em questão Orkut e a postura do provedor não contribu íram decisivamente para a violação de direitos autorais; (b) não se vislumbram danos materiais que possam ser imputados à inércia do provedor de intemet, nos termos da causa de pedir deduzida na inicial”. 29. Uniform Resource Locator, refere-se ao endereço de rede em que se encontra determi nado conteúdo. GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revísta dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. GARCIA, Rebeca, Marco Cívil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos TrIbunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. — — 176 REVISTA DOS TRIBUNAIS RT964 FEVEREIRO DE 2016 DIREITO CIVIL rece razoável fazer tal exigência, para evitar remoção perigosamente genérica e ampla. Por outro, parece excessivamente custoso para a vítima ou parte in teressada na indisponibilização, exigir que mapeie e indique, um a um, os en dereços específicos das páginas que hospedam o conteúdo ofensivo e mesmo ineficiente do ponto de vista da reparação, especialmente se se leva em conta a velocidade com que os conteúdos proliferam na rede. São diversas as decisões, e em sentido diverso. Mas, atualmente, parece vir prevalecendo o entendimento de que é necessário, ao pleitear-se a remoção de conteúdo ou responsabilização do autor, indicar os URLs específicos das páginas em que disponível o conteúdo, para evitar indisponibilização indevi damente abrangente. ° 3 Seguindo-se adiante, uma pesquisa não exaustiva no repertório jurispru dencial dos principais tribunais indica alguns aspectos interessantes. Pode-se perceber que os principais temas objeto de controvérsia concentram-se em questões relacionadas ao tema mais amplo da responsabilidade civil de prove ’ casos 3 dor de aplicações principalmente pedidos de remoção de conteúdo, 32 publicação de conteúdo ofensivo na internet, 33 de perfil falso em redes sociais, principalmente em redes sociais, publicação de conteúdo infringente a direitos autorais em plataformas online, como o YouTube. 34 Merecem menção, ainda, os casos relacionados mais diretamente ao direito do consumidor, especialmente no comércio eletrônico e com respeito a bancos — — 30. Ao menos no STJ é este o atual cenário. A título de ilustração, veja-se o caso en volvendo publicação ofensiva em blog, no qual se entendeu que “o interessado na responsabilização do autor deverá indicar o URL das páginas em que se encontram os conteúdos considerados ofensivos. Não compete ao provedor de hospedagem de biogs localizar o conteúdo dito ofensivo por se tratar de questão subjetiva, ca bendo ao ofendido individualizar o que lhe interessa e fornecer o URL” (STJ, REsp 1.274.971/RS, 3 T., j. 19.03.2015, rel. Mm. João Otávio Noronha, DJc 26.03.2015, RDDP 147/121). 31. Por exemplo: TJSP, Ac 0012414-68.2012.8.26.0597, 9. Câm. de Direito Privado, j. 27.10.2015, rel. Des. Alexandre Bucci. 32. Por exemplo: TJSP, Ac 1073440-18.2014.8.26.0100, 1.a Câm. de Direito Privado, j. 25.08.2015, rel. Des. Augusto Rezende. 33. Por exemplo: TJRJ, Ac 0006556-09.2013.8.19.0050, 4 Câm. Civ.,j. 21.10.2015, rei. Des. Antonio 1. B. Bastos. 34. Por exemplo: TJRS, Ac 70063416184, 10.a Câm. Civ.,j. 26.03.2015, rel. Des. Marceio Cezar Muller. GARCIA, Rebeca, Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161 190. São Paulo: Ed. RT, tev. 2016. de dados. 35 E, embora não seja tão comum no cotidiano forense, cite-se tam bém a questão da jurisdição, especialmente quando o provedor não tem sede ou estabelecimento no país. 36 Outro tema importante que vem recebendo a atenção dos tribunais refere-se aos casos de identificação de usuário envolvido em fraudes e ilícitos cometi 37 Embora o marco civil não defina o que sejam dados pessoais, dos na rede. entende-se, de maneira geral, que é qualquer informação que diga respeito a uma determinada pessoa, “incluindo dados cadastrais (nome, filiação, ende reço, documento de identificação e e-mail, por exemplo) e técnicas (endereço de IP), sem prejuízo de conter também referências cujo tratamento pode re presentar discriminação do usuário (dados biométricos, de raça, saúde, entre 35. Como a sentença, em ação coletiva de consumo, que condenou a Confederação Na cional de Dirigentes Lojistas (SPC Brasil) por fornecer dados de consumidores sem sua autorização. A decisão foi concedida em liminar, para determinar ao SPC que “a) cancele, no prazo de até 30 dias, o registro de consumidores que não tenham expressamente autorizado a inserção de seus dados cadastrais e informações pessoais nos bancos de dados de [sua] responsabilidade da requerida”, e “b) abstenha-se de registrar e/ou divulgar e/ou comercializar dados cadastrais e informações pessoais de consumidores, sem prévia autorização destes” (TJRS, Processo 1.14.0178998-7, 16. Vara Cível, j. 08.07.2014, juiz Silvio Tadeu de Ávila). 36. A saída do art. 11 do Marco Civil da Internet tem tido sua eficácia posta à prova, como indica o caso do “Secret”, aplicativo que permitia o envio de mensagens anônimas (para seus usuários) e ensejou discussão sobre liberdade de expressão, responsabilida de, anonimato e jurisdição. O Ministério Público do Espírito Santo ajuizou ação para pleitear a proibição do aplicativo no país e obteve liminar pela remoção das lojas vir tuais (TJES, Processos 0030918-28.2014.8.08.0024 e 0031238-78.2014.8.08.0024). A decisão dirigiu-se às empresas responsáveis pelos sistemas operacionais para do wnload, e não ao provedor do aplicativo, que não tinha representação no país. A liminar foi revogada, mas o caso coloca em evidência a questão sobre como controlar a atividade de atores estrangeiros em relação aos dados pessoais de brasileiros. 37. Embora ainda antes da entrada em vigor do marco civil da internet, o STJ apontou que os provedores de conteúdo têm o dever de oferecer os meios para identificação de usuários suspeitos de atos fraudulentos ou ilícitos, quando assim instados mediante ordem judicial. Segundo entendeu o STJ, “deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada”, sendo o número de IP considerado “um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet” (STJ, REsp 1.186.616/MG, 3. T.,j. 23.08. 2011, rel. Mi NancyAndrighi). GARoA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, tev. 2016. 177 1 178 REVISTA DOS TRIBUNAIS. RT964 . FEVEREIRO DE 2016 DIREITO CIVIL outros)”. Sua divulgação depende, pois, de ordem judicial ou autorização 38 expressa do usuário. Afinal, o Marco Civil da Internet “é claro ao mencionar a possibilidade de que sejam fornecidos expressamente ‘dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço’, no que não se encontra au torizada a entrega de dados envolvendo endereços de IP, sem ordem judicial” Vê-se, em suma, a miríade de temas que vêm sendo levados aos tribunais brasileiros, e que dizem respeito diretamente ao Marco Civil da lnternet. As próprias cortes parecem ainda vir amadurecendo, caminhando a passos come didos ao longo desse processo, muitas vezes árduo, de interpretar e aplicar o arcabouço regulatório sobre o uso da lnternet no Brasil. São variados os entendimentos o que por si só não é um problema, eis que as decisões devem ser tomadas de acordo com cada situação concretamente considerada nem sempre acompanhadas da devida fundamentação. Ainda é preciso avançar no esforço de amadurecimento, que deve necessariamente ser acompanhado de um esforço de fundamentação criteriosa, construindo assim uma jurisprudência mais consistente, coerente e compatível com os funda ° Pode parecer um 4 mentos e princípios que norteiam o Marco Civil da Internet. trabalho de Sísifo, mas ele é necessário. . 179 De todo modo, já se verifica uma evolução jurisprudencial desde antes da promulgação do Marco Civil da Internet e ela aparentemente segue adiante, olhando-se em perspectiva. Ao menos parece ter ficado para trás uma postura distanciada da proteção da pessoa, especialmente em matéria de privacidade e proteção de dados, uma postura que se limitava a sugerir ao cidadão no caso, uma consumidora ofendida com o envio maciço de publicidade não solicitada: “mude-se para a floresta, deserto, meio do oceano ou para outro planeta(...), quando, então sim, ser-lhe-ão assegurados seus direitos à privacidade na forma ou amplitude como defende” 41 Sintomaticamente, a decisão deu-se às véspe ras da promulgação do Marco Civil da Internet. — — — —, 38. Caio César Carvalho Lima. Garantia da privacidade e dados pessoais à luz do marco civil da internet. In: George Salomão Leite; Ronaldo Lemos (coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 155. Apesar de o 1P, enquanto não implementado de vez o sistema lPv6, não ser único para cada pessoa do ponto de vista estático, ele pode identificar um usuário no tempo e espaço, como verdadeira “cédula de identi dade de cada terminal, somente sendo admitido um terminal para cada número de IP disponível, de modo que seja impossível a conexão de dois dispositivos à rede com o mesmo número [ao mesmo tempo]” (Victor Auilo Haikal. Da significação jurídica In: George Salomão Leite; Ronaldo Lemos (co dos conceitos integrantes do art. ord.). Marco civil da internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 320). 39. Caio César Carvalho Lima. Op. cit., p. 157. O STJ já salientou “a necessidade de determinação judicial para fornecimento do IP, porquanto, de posse do referido nú mero, torna-se possível realizar buscas no respectivo computador, com o escopo de obter informações pessoais, como dados bancários, senhas, fotos e outros arquivos 4. T., j. 16.12.2014, rei. Mm. Mar porventura armazenados” (STJ, REsp 1501 187/Ri, co Buzzi, REP, DJe 03.03.2015, DJe 19.12.2014, RSTJ 236/635, RT 447/ 155). 40. Para que se tenha acesso aos critérios empregados ao examinar os casos, especialmen te casos delicados, como aqueles sobre liberdade de expressão e proteção de dados pessoais. Deve-se pensar, também, nos remédios que se vem conferindo aos diversos pleitos em termos de uma visão geral de política pública, a resposta pela indenização talvez seja apenas parte da resposta, e talvez não modifique algo que seria primordial: condutas, hábitos, procedimentos, especialmente sobre o tratamento de dados pessoais. 2.2 Consulta pública sobre a regulamentação Buscou-se apresentar, acima, apenas breves pinceladas de um quadro ainda em formação. Uma análise mais abrangente e aprofundada do panorama juris prudencial em matéria de uso da intemet é tema robusto, que exige trabalho de fôlego muito maior que o do presente artigo. Para além do âmbito juris prudencial, o Marco Civil da lnternet teve também importantes repercussões no âmbito da sociedade civil, e aqui se refere, especificamente, ao processo de consulta pública sobre o decreto regulamentador. Além de ele próprio ser fruto, em grande medida, de intensa participação social, o Marco Civil da Internet esteve outra vez no centro da atenção da 42 43 Em 28.01.2015, o sociedade, dessa vez com relação à sua regulamentação. Ministério da Justiça inaugurou um processo de debate público online, no âm 44 sobre a regulamentação do Marco Civil bito do projeto Pensando o Direito, da Internet. 50 — GARcIA, Rebeca. Marco Civi da Internet no Brasi: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais.vol.964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RI, fev. 2016. 41. TJRS, Processo 1.14.0082921-7, 13. Vara Cível, j. 11.04.2014, juiz Luiz A. G. de Souza. 42. Sobretudo mediante participação na interriet, inclusive às vésperas da votação no Congresso, quando a sociedade civil foi fundamental para pressionar os parlamenta res pela aprovação. Nesse sentido, diversas campanhas foram promovidas, com o uso de populares hashtags (como #VaiTerMarcoCivil e #EuQueroMarcoCivil) e abaixo-assinado pela aprovação, com cerca de 350 mil assinaturas. 43. O decreto, porém, ainda não foi editado, e não se pode precisar quando e em que termos ele o será. 44. Desenvolvido pela Secretaria de Assuntos Legislativos, o projeto, criado em 2007, busca estimular a participação social na elaboração de normas jurídicas no Brasil, ajudando a promover, assim, a elaboração de normas, pode-se dizer, de maior legiti midade social, mais conectada à realidade social. GAROA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, tev. 2016. 1 80 REVISTA DOS TRIBUNAIS RT964 . FEVEREIRO DE DIREITO CIVIL 2016 Como não havia uma minuta de texto base para o decreto regulamentador, a consulta foi estruturada em quatro tópicos temáticos, relativos a aspectos mais relevantes ou sensíveis do Marco Civil da Internet: neutralidade de rede, privacidade, guarda de dados, e um eixo mais genérico chamado de “outros temas”, para acolher contribuições que não se encaixassem nas demais frentes. A consulta pública acabou, em realidade, sendo dupla: após o encerramento do debate online, em 30.04.2015, o Ministério da justiça abriu prazo para uma nova rodada de participação, dessa vez para a sistematização das contribuições oferecidas ao longo dos três meses de debates havidos no processo participa tivo inicial, de modo a auxiliar na elaboração da minuta de texto do decreto regulamentador. 45 Entre os quatro eixos temáticos da consulta, o da neutralidade de rede foi o que mereceu maior número de contribuições e acendeu mais intensa 46 mente os debates. Ao passar em vista as contribuições oferecidas no debate, a opiniões as mudam como nitidez, alguma com até consegue-se perceber, con ofereceu quem vinculado depender da fonte isto é, do setor a que está 47 Diversos aspectos foram debatidos dentro desse campo temático tribuições. 48 o assunto mais por exemplo, práticas comerciais como a de zero-rating, — — — 45. Para informações mais detalhadas, recomenda-se a leitura do relatório produzido pelo lnternetLab, que sistematiza de forma clara e prática as discussões e contribuições do debate: O que está em jogo na regulamentação do Marco Civil da Internet? Relatório final sobre o debate público promovido pelo Ministério da Justiça para a regulamentação da Lei 12.965/2014. lnternetLab, São Paulo, 2015. Disponível em: [wwwintemetlab.org.brl e ihttp:llpensando .mj .gov.br/marcocivilldebate-em-numeros/l. 46. E, nessa tarefa, o relatório produzido pelo InternetLab, referido acima, é de grande valia. 47. Nesse sentido, especialmente em matéria de neutralidade, nota-se a diferença de perspectivas. Por exemplo, para as empresas de telecomunicações, a regulamentação deve preservar o texto já indicado no marco civil da internet, atendo-se aos casos em que se admite discriminação. Já para a sociedade civil, não deveria haver qualquer forma de priorização ou discriminação, para não haver monitoramento. 48. A prática, de nome estrangeiro sinônimo de polêmica, consiste em uma forma de subsídio. Por meio de acordos de “zero-rating”, em síntese, as operadoras desoneram provedores e possibilitam o acesso e uso subsidiado de serviços e aplicações espe cíficos (como streamíng de música e vídeo, certas redes sociais, aplicações de notí cias, e assim por diante). O problema aventado com isso é, a rigor, a criação de uma vantagem considerada injusta, porque a operadora escolhe o serviço que será “zero -rated”. A polêmica reside, mais propriamente, em considerar-se ou não tal prática como forma de discriminação no tráfego de dados em princípio incompatível com a neutralidade da rede consagrada pelo art. 9.° do Marco Civil da Internet. Aponta-se — GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fcv. 2016. polêmico na consulta —; a que ente(s) deve-se atribuir a fiscalização da regra 49 que abordagem deve dada às exceções feitas pelo art. 9.° do da neutralidade; Marco Civil da Internet — como a relativa aos serviços emergenciais. No campo da privacidade, as contribuições miraram variados aspectos, dos quais sobressaem a extensão e a abordagem a ser dada ao tema dos dados ca dastrais e da possibilidade de sua requisição por autoridades administrativas; a questão da pertinência de se tratar, no decreto regulamentador, de uma auto ridade de proteção de dados pessoais, ° ou mesmo a pertinência de o decreto 5 definir dados pessoais ou cuidar do assunto em caráter geral; ou ainda o tópico relativo a como tratar das sanções previstas no art. 12 do Marco Civil da Inter net; entre outros aspectos de relevo. Por sua vez, o tema da guarda de registros suscitou também diversos ques tionamentos. Um dos principais deles diz respeito a como o Marco Civil da Internet deve tratar a questão da guarda obrigatória. Aqui, nota-se a influência, em diversas das contribuições, do estado da discussão na Europa, sinalizando-se a diferença de regime estabelecido pelo Marco Civil da Internet e o en tendimento firmado pelo Tribunal de Justiça Europeu, que, em 08.04.2014 (às vésperas da aprovação do Marco Civil da Internet), considerou inválida a Diretiva de Retenção de Dados (2006/24/EC). Também vale destacar, entre os tópicos discutidos nesse campo temático, o da a forma com que se deve tratar a questão da possibilidade de requisição de guarda cautelar de dados por “prazo superior” ao definido nos dispositivos do Marco Civil da Internet. Por fim, a frente temática restante, englobando outros temas de discussão, abrangeu questões de jurisdição, isto é, como tratar o art. 11; questões sobre a necessidade de requisitos objetivos para indicação de conteúdo a ser indis ponibilizado; bem como a questão, mais técnica, sobre o estímulo ao uso de formatos abertos. As repercussões do Marco Civil da internet na sociedade civil, como se vê, são acentuadas e permanecem ativas. O amplo processo de debate, na esteira da também um problema de ordem concorrencial, pois em tese apenas empresas capazes de oferecer vantagens claras ao provedor de acesso à internet conseguiriam fechar esse tipo de acordo. 49. Se a Anatel, o CGI.br, os dois em conjunto, ou ainda outro modelo de fiscalização, que deve ser pensado cuidadosamente, de modo que garanta o equilíbrio, pluralidade e transparência da rede. 50. Tema caro ao anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais desenvolvido no ãm bito do Ministério da Justiça — ao menos pelo que se lê do texto tornado público em outubro de 2015. GARCIA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais, vaI. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RL fev. 2016. 181 182 REvISTA DOS TRIBUNAIS • RT 964 • FEVEREIRO DE DIREITO 2016 abordagem participativa que marcou a elaboração do projeto de Marco Civil da Internet, é eloquente. E ele é permeado pelas mais diversas vozes, emitidas por atores diversos e norteados por interesses e preocupações também diversos. Mas é preciso ter em vista, também, que o decreto regulamentador começa a surgir em momento bem diverso do da aprovação do Marco Civil da lnternet política, social e economicamente. Nesse momento é importante manter o foco sobre o governo com relação à regulamentação do Marco Civil da Inter net, e lembrar, também, que não basta um bom decreto; é preciso zelar por uma fiscalização (boa eficiente). — CIvIL 183 PLC 2.498/2015, PLC 4.060/2012.56 E, no Senado: PL.S 131/2014, PLS 176/2014,58 PLS 180/2014, PLS 181/2014,60 PLS 330/2013,61 bem como o PLS 494/2008 (na realidade aprovado e encaminhado à Câmara). Em razão dos limites de escopo e de fôlego deste artigo, cuida-se, adiante, apenas das princi pais (não por coincidência as mais polêmicas) destas proposições. Na Câmara, a proposição atualmente mais polêmica é o PL 215/2015, ape lidado de “PL espião” no âmbito da sociedade civil epíteto divulgado no — — 2.3 Projetos legislativos O Marco Civil da Internet mal nasceu (de um amplo processo colaborati vo) e começou a dar os primeiros e importantes passos, e já diversos projetos de lei foram apresentados, em ambas as casas legislativas, para alterá-lo. Uma pesquisa no repertório das proposições em andamento no Congresso Nacional aponta, atualmente, a existência de pelo menos 15 projetos de lei ativos na Câmara e no Senado. Isso em pouco mais de um ano de vigência da lei, e antes de editado o seu decreto regulamentador. Na Câmara, as propostas relacionadas ao Marco Civil da Internet são as seguintes: PLC 215/2015, PLC 1.547/2015, PLC 1.589/2015, PLC 955/2015,’ PLC 1.879/2015,52 PLC l.331/2015, PLC 2.7l2/2015, 51. O inusitado projeto visa alterar o Marco Civil para proibir membros de Ministério Público e Magistratura de publicar conteúdos na Intemet ou prover aplicações de internet. 52. Pretende ampliar a guarda obrigatória de registros para os provedores de aplicações que permitam a postagem de conteúdo de terceiros (“comentários em blogs, posta gens em fóruns, atualizações de status em redes sociais ou qualquer outra forma de inserção de informações na internet”), obrigando a guarda de dados adicionais (no mínimo nome completo e número de CPF). 53. Pretende modificar o direito de exclusão definitiva de dados, para abranger também os de morto ou ausente, a requerimento do cônjuge, ascendentes ou descendentes. 54. Busca criar espécie de direito ao esquecimento (mais sinuoso que o conceito já pro blemático com que doutrina e jurisprudência vêm lidando). Pretende obrigar prove dores de aplicações “a remover mediante solicitação do interessado, referências a regis tros sobre sua pessoa em sítios de busca, redes sociais ou outras fontes de informação na internet” (grifou-se), embora ressalve casos de “interesse público atual na divulga ção da informação” e relacionados “a fatos genuinamente históricos”, o que, já se vê, GAROA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. 55. 56. 57. 58. 59. 60. dificilmente minimizará dúvidas, e talvez até as fomente, como a de identificar casos de interesse público. O projeto, no mínimo curioso, visa alterar a lei para obrigar os provedores de cone xão e de aplicação a criarem centros de atenção a usuários compulsivos de serviços de internet e de redes sociais. Embora não vise diretamente a alterá-lo, os reflexos sobre o Marco Civil da Internet são muitos, O projeto estabelece um regime geral para o tratamento de dados pesso ais, mas um regime, pode-se dizer, flexível, que prevê, entre outras regras, a possibi lidade de compartilhamento de dados pessoais, “inclusive para fins de comunicação comercial, com empresas integrantes de um mesmo grupo econômico, parceiros co merciais ou terceiros que direta ou indiretamente contribuam para a realização do tra tamento de dados pessoais” (art. 14), e consagra a regra do opt-out para o tratamento de dados e envio de comunicações comerciais; a autorização prévia seria requisito apenas para o tratamento de dados sensíveis. Surgido da CPI da Espionagem, exige prévia autorização judicial e respeito aos direi tos constitucionais, à Lei 9.296/1996 e aos tratados internacionais de que o Brasil seja parte para o fornecimento de dados de cidadãos ou empresas brasileiros a organismos estrangeiros. Pretende ampliar a proteção da privacidade e reforçar a garantia da neutralidade de rede, além de ampliar as atribuições do CGI.br. Revoga, por exemplo, incisos do art. 8.° que asseguram ao usuário o direito a consentir expressa e livremente com a coleta e uso de seus dados na intemet, e estabelece como direito do usuário o de não fornecer a terceiros seus dados pessoais. Na tentativa de ampliar o regime protetivo do Marco Civil da Intemet, pode, na prática, esgarçá-lo ao ponto de torná-lo pouco praticável. Propõe, principalmente, restringir o rol de autoridades que podem ter acesso aos dados do cidadão na internet e prever a possibilidade de recurso contra decisão que antecipa tutela no âmbito dos juizados. Trata-se mais propriamente de um projeto de lei de proteção de dados pessoais rela tado, na CCJ, pelo senador Aloysio Nunes de certa forma próximo do anteprojeto formulado no âmbito do Executivo. Outro projeto de lei de proteção de dados pessoais, também relatado pelo senador Aloysio Nunes. — —, 61. GAROA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. R1 fev. 2016. 184 REVISTA DOS TRIBUNAIS • RT964. FEVEREIRO DE 2016 DIREITO CIVIL meadamente por meio de redes sociais, os quais a proposição legislativa visa, justamente, limitar, O projeto, de fevereiro de 2015, propõe alterar a legislação penal e o Marco Civil da Internet para punir com maior rigor crimes contra a honra praticados nas redes sociais. Há ainda dois projetos apensados a este, o PLC 1.547/201562 e o PLC 1.589/2015.63 Em resumo, o PL 215/2015 vinha tramitando em ritmo significativo e quase foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania em agosto quando pediu vista o deputado Alessandro Molon, que teve papel de destaque na aprovação do Marco Civil da lnternet, como relator do projeto na Câmara. Após o pedido de vista e a formulação de diversos requerimentos e votos em separado, somando-se à polêmica e à forte reação gerada na sociedade civil, o projeto foi retirado de pauta em agosto e depois, novamente, em setembro. Ainda em setembro, aprovou-se solicitação para realização de audiência públi ca. E, em outubro de 2015, foi aprovado o parecer do relator, ressalvados os 64 destaques, que foram mantidos, com alguns votos contrários. — — 62. Tem por objeto alterar a legislação penal para criar nova causa de aumento de pena aos crimes contra a honra cometidos online em sites ou por meio de mensagens eletrônicas difundidas pela internet. 63. Pretende agravar a punição a “crimes contra a honra cometidos mediante disponibili zação de conteúdo na internet ou que ensejarem a prática de atos que causem a morte da vítima” possivelmente tendo em mira casos de suicídio estimulado pela divul gação de conteúdo na internet. Apesar da intenção, a proposição é perigosa, pois, a pretexto de tornar mais rigorosa a punição de crimes contra a honra na internet, aca ba por ser demasiado ampla, subvertendo garantias do Marco Civil, essencialmente a proteção à privacidade e a liberdade de expressão. Uma das regras do projeto é fle xibilizar a necessidade de ordem judicial para acesso a registros, permitindo simples requisição “da autoridade competente”. 64. Uma de suas principais disposições, conforme aprovado na CCJC, é a ampliação do do art. 10, para incluir entre os dados cadastrais “endereço completo, telefone, § CPF, conta de e-mail”, que poderão ser requeridos por “autoridades que detenham competência legal para sua requisição”. Também impõe aos provedores a obrigação de coletar; obter; organizar e disponibilizar os dados cadastrais, e institui espécie de direito ao esquecimento, com a possibilidade de requisição judicial de “indisponibilização de conteúdo que associe seu nome ou imagem a crime de que tenha sido absolvido, com trânsito em julgado, ou a fato calunioso, difamatório ou injurioso”. Ainda, abre exce ção à garantia de ordem judicial para acesso aos registros originalmerite mais ampla, mas que, após a polêmica citada, foi mais contido, permitindo à autoridade policial ou ao Ministério Público requerer dados cadastrais “no âmbito adequadamente restrito à investigação, para instruir inquérito policial ou procedimento investigatório instaurado para apurar a prática de crime contra a honra” na internet (art. 23-A). — — 30 — GAROA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RTfev. 2016. Por sua vez, no Senado, o principal projeto relativo à disciplina do uso da internet no Brasil é o PLS 494/2008, oriundo da CPI da Pedofihia. O projeto, em realidade, foi aprovado no Senado, em julho de 2015, e seguiu para a Câ mara no início de agosto, onde ainda não teve significativo andamento. Seu objeto é o de regular forma, prazos e meios de preservação e transferência de dados mantidos por provedores, para investigação de crimes contra crianças e adolescentes. Como se percebe de seu escopo, trata-se de ampliação, embora relativa a crimes contra crianças e adolescentes, à possibilidade de acesso aos registros guardados por provedores em termos de legitimidade, pois o esten de a “autoridades públicas”, e também de prazo, pois aumenta o período de tempo pelo qual os registros de conexão devem ser guardados (de um, como previsto atualmente, para três anos). — Além disso, entre outras medidas, o projeto aprovado no Senado condicio na a atribuição de endereço IP ao prévio cadastro do destinatário no atribuidor, que deve conter, no mínimo, nome, firma ou denominação; número de CPF ou CNPJ e “outros dados que permitam a identificação do código de acesso de origem da conexão” (art. 40) E obriga o provedor (referido como “fornecedor de serviço”) a comunicar ao delegado de polícia e ao Ministério Público, em até 48 horas, “a prática de crime contra criança ou adolescente de que tenha conhecimento em razão de sua atividade”. Não se sabe, porém, de que outras maneiras possa ter conhecimento senão por denúncia ou por monitoramento prévio. Mais ainda, o projeto cria a obrigação de o provedor remover o conteú do ou desabilitar o acesso a ele, sempre que “notificado por delegado de polícia ou por membro do Ministério Público”. O projeto, cuja origem é anterior à aprovação do Marco Civil da lnternet, foi, porém, aprovado já cerca de um ano após sua entrada em vigor, aparen temente sem o levar em conta, e sem levar em conta o difícil equilíbrio que a lei buscou obter, entre a proteção à liberdade de expressão e à privacidade e a prevenção e investigação de crimes e ilícitos na rede. Esse tipo de proposição sinaliza que o Legislativo nem sempre está em sintonia com os debates sociais. E, independentemente do juízo que se faça a respeito das diversas propostas de lei, chama a atenção o fato mesmo, objetivo, de haver mais que uma dezena delas destinadas a alterar diretamente (ou com reflexos sobre) o Marco Civil da Internet. Deve-se, portanto, questionar não apenas o teor e extensão da legis lação projetada, mas mesmo sua pertinência jurídica e social. Passada a promulgação, a conquista de uma “Constituição” do ambiente virtual parece longe de garantida ou consolidada. Não se pode pensar que, pelo fato de o Brasil ter passado a ser visto como referência, outras leis não serão GARCIA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. 1 85 186 REVISTA DOS TRIBUNAIS . RT964 . FEVEREIRO DE DIREITO CIVIL 2016 propostas ou criadas para reformar o Marco Civil da lnternet, não necessaria mente para melhor. Por isso, é importante observar ativa e atentamente o pro cesso legislativo continua atual o clássico alerta, de que “o preço da liberdade 6 é a eterna vigilância”. Mas há também projetos que podem representar avanços, principalmente no âmbito da privacidade e proteção de dados pessoais, considerando-se o 66 Nesse sentido, destaca-se a cenário ainda fragmentado com relação ao tema. aprovação pelo Senado, em outubro de 2015, de dois projetos de reforma do Código de Defesa do Consumidor. Eles nasceram da iniciativa de modernizar o Código de Defesa do Consu midor, de forma a colocá-lo no mesmo passo da nova realidade econômica, na qual a internet tem papel de destaque. Assim, em 2010 uma comissão de juristas foi criada para elaborar um anteprojeto de reforma, e, após dois anos de trabalho, emergiram três proposiçôes sobre três diferentes temas: comércio eletrônico, crédito e proteção contra o superendividamento e tutela coletiva (PLS 281/2012, PLS 282/2012 e PLS 283/2012, respectivamente). O PLS 281 e o PLS 283, que tramitaram em conjunto, seguiram para a Câmara, onde ainda precisam ser analisados e votados, enquanto o projeto sobre tutela coletiva foi destacado para tramitar autonomamente, diante da complexidade da matéria, a exigir mais reflexões. Embora seu objeto não fosse exatamente a proteção de dados pessoais, o projeto relacionado ao comércio eletrônico cuida de aspectos da maior rele vância a esse respeito. De acordo com a versão aprovada no Senado, o Código de Defesa do Consumidor passa a fazer referência expressa à privacidade e à se 67 e, mais ainda, à autodeterminação gurança das informações e dados pessoais — 65. Frase atribuida a Thomas Jeiferson, no classico “A Democracia na América”, de Ale xis de Tocqueville. 66. Enquanto uma lei de proteção de dados pessoais não se torna realidade, inovações legislativas pontuais assumem vulto. A esse cenário de atualização do Código de Defesa do Consumidor veio somar-se o regulamento da L.ei da Meia-Entrada (Dec. 8.537/2015), que proibe a guarda de dados pessoais dos estudantes depois de expira do o prazo da carteira estudantil, e assegura a proteção de dados pessoais do banco de dados dos estudantes, além de proibir o uso dos dados pessoais dos estudantes para fins estranhos ao decreto (art. 67. O projeto altera o Código de Defesa do Consumidor, para prever, entre os direitos básicos do consumidor, “a privacidade e a segurança das informações e dados pessoais prestados ou coletados, por qualquer meio, inclusive o eletrônico, assim como o acesso gratuito ao consumidor a estes e suas fontes”. 4•0) RAScA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais. voc 964. ano 105. p. 161-190, São Paulo: Ed. RT, tev. 2016. 68 E também fala em segurança do sistema e à privacidade de dados pessoais. informação, impondo ao fornecedor o dever de informar imediatamente, de autoridades e consumidores afetados, sobre o vazamento de dados ou compro 69 metimento de segurança do sistema. O projeto também estabelece restrições ao envio de mensagem eletrônica não solicitada (spam) e ao compartilhamento de dados pessoais, proibindo o compartilhamento ou qualquer forma de transferência de dados pessoais sem o consentimento expresso e informado do titular dos dados a prática, aliás, passa a ser tipificada como crime de consumo. ° Exceção é feita, porém, a for 7 necedores integrantes de um mesmo grupo econômico. ’ 7 Por fim, o projeto alinha-se ao princípio da finalidade -ao estabelecer que as informações a serem prestadas pelo consumidor, na aquisição de produto ou serviço no comércio eletrônico, sejam compatíveis e, mais ainda, necessárias para esse fim, indispensáveis à conclusão do contrato informações adicionais têm, segundo o texto, caráter facultativo, “devendo o consumidor ser previamente avisado dessa condição” 72 — — 3. CONCLUSÕES O caminho trilhado pelo Marco Civil da Internet, embora ainda curto sob o ponto de vista cronológico, é amplo e tem diante de si um horizonte igual- 68. Já no início da nova seção (e-commerce): “Art. 45-A. Esta seção dispõe sobre nor mas gerais de proteção do consumidor no comércio eletrônico e a distância, visando fortalecer a sua confiança e assegurar sua tutela efetiva, mediante a diminuição da assimetria de informações, a preservação da segurança nas transações e a proteção da autodeterminação e da privacidade dos dados pessoais” (grifo nosso). 69. Art. 44-D do PL 281, conforme aprovado no Senado. 70. Art. 72-A do mencionado projeto. 71. Art. 45-F do referido projeto, que exige ainda ao fornecedor que informe ao destinatário, em cada mensagem enviada, o modo como obteve seus dados entre outras informações. 72. Art. 44-G do projeto. Não fica claro, porém, o regime aplicado a informações que não sejam indispensáveis à conclusão do contrato bastaria avisar o consumidor, ou seria preciso, avisando-o, obter específica autorização? Seria possível que o consumidor, dado o caráter facultativo das informações adicionais, se recusasse a prestá-las sem deixar por isso de adquirir ou utilizar o produto ou serviço? O projeto ainda nem passou pela Câmara, ejá são diversas as questões. Mas, a julgar pela principiologia do sistema de proteção do consumidor e de dados pessoais, em que relevam informação, consentimento e finalidade, possíveis respostas parecem apontar para postura mais cautelosa do fornecedor, no sentido de avisar de maneira clara o consumidor e obter seu consentimento com relação às informações adicionais. — — GASCIA, Rebeca. Marco Civil da lnternet no Brasil: repercussões e perspecttvas. Revista dos Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 20 6. 1 87 188 REVISTA DOS TRIBUNAIS RT964 FEVEREIRO DE 1 89 DIREITO CIVIL 2016 mente amplo. As conquistas foram diversas, a começar pela aprovação da lei mantendo essencialmente o texto construído ao longo de um processo partici pativo que lhe deu mais cores de legitimidade. Mas, pelo que se viu, o terreno a se caminhar com relação ao uso da internet no Brasil pode ainda se revelar bastante acidentado. Nesse cenário, é fundamental não apenas examinar atenta e criticamente as repercussões da lei nos mais variados âmbitos, mas, sobretudo, empreender um esforço de amadurecimento, manter ativos os canais de comunicação e debates, buscar sensibilizar (e educar a esse respeito) não apenas academia e sociedade civil, mas também magistrados, responsáveis pela aplicação e in terpretação da lei aos casos concretos objeto de disputa. Além disso, não se deve descurar da atenção aos movimentos no âmbito legislativo nem sempre positivos. Os avanços do Marco Civil da Internet, portanto, são muitos e notáveis, 73 mas os desafios também se apresentam, e eles não são poucos nem ligeiros. abertura a para em aberto: questões as diversas ainda são apontou, Como se ou ain pessoais) dados leis ainda não promulgadas (como a lei de proteção de da não reformadas (como a lei de direito autoral); a responsabilidade civil de intermediários; o equilíbrio entre liberdade de expressão e exigências de segu rança e combate a ilícitos; a geração de lucros com a exploração econômica de produtos e serviços no meio digital e a garantia de inovação e crescimento sus tentável da rede; a ampliação do acesso e a garantia do acesso a uma internet de fato aberta e livre; e assim por diante. Também não custa lembrar: o Marco Civil da Internet não é uma lei de proteção de dados pessoais, nem pretende sê-lo de maneira que, também nesse campo, permanece sem solução uma série de questões importantes. Em síntese, o Marco Civil da Internet sinaliza a importância de um marco regulatório. Com efeito, é possível haver espaço para que regulaçâo e autorre gulação convivam, em complementaridade não à toa, o próprio Marco Civil da Internet faz referências à adoção e estímulo de boas práticas. Não se pode depositar a confiança apenas na legislação, especialmente quando se leva em consideração a velocidade e intensidade das mudanças tecnológicas. Pode-se, por exemplo, combinar um sistema de regras e princípios gerais, deixando-se uma porta aberta também para a autorregulação, principalmente com relação a temas mais concretos. A questão, em suma, não é “ser anti-regulação. Mas precisamos decidir que tipo de regulação queremos” Como aponta Pierre Lévy a propósito da ciber cultura, “a verdadeira questão não é ser contra ou a favor, mas sim reconhecer as mudanças qualitativas na ecologia dos signos, o ambiente inédito que resul ta da extensão das novas redes de comunicação para a vida social e cultural” Ou seja, a internet não é intrinsecamente ruim ou boa; importa considerar o uso que se faz dela, o alcance que a ela se dá. E, a julgar pelo processo parti cipativo com conduziu à construção do projeto do Marco Civil da lnternet, a regulação que se quer para o uso da internet é uma que busque preservar os direitos fundamentais e os de personalidade dos usuários, bem como uma in ternet aberta, livre, descentralizada. O Marco Civil da Internet foi um passo fundamental, embora deixe ainda questões por discutir e resolver. Mas não foi, nem pode sê-lo, um passo mágico. Adaptando-se a reflexão de Pierre Lévy; não se deve achar que a lei vá resolver, “em um passe de mágica, todos os problemas culturais e sociais do planeta”; o que se deve é apenas reconhecer “que estamos vivendo a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais 76 positivas deste espaço nos planos econômico, político, cultural e humano”. 73. Nesse contexto, a realização do décimo Fórum de Governança da Internet (Internet Governance Forum IGF), em novembro de 2015, no Brasil, foi da maior relevância para apontar problemas e possíveis caminhos, para estimular e produzir debates e, sobretudo, diálogos de alto nível, entre participantes dos mais variados setores e pa íses, servindo para decidir ou ao menos avançar questões importantes na construção de políticas públicas. 74. “l’m not anti-regulation. But we need to decide what kind of regulation we want” (Cory Doctorow. Information doesn’t want to befree: laws for the Internet age. S. Fran cisco: McSweeney’s, 2014. p. 161). 75. Pierre Lévy Op. cit., p. 12. 76. PierreLévy Op. cit., p. 11. — . . 4. BIBLIOGRAFIA — — — GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, fev. 2016. CRUZ, Francisco C. de Brito; MARCHEZAN, Jonas Coelho; SANTOS, Maike Wile dos. O que esta em jogo na regulamentação do Marco Civil da Internet? Relatório final sobre o debate público promovido pelo Ministério da Justiça para a regula mentação da Lei 12.965/2014. InternetLab, São Paulo, 2015. Disponível em: [wwwinternetlab.org.brl. DOCTOROW, Cory. Information doesn’t want to be free: Laws for the Internet Age. San Francisco: McSweeney’s, 2014. GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet no Brasil: repercussões e perspectivas. Revista dos Tribunais. vol 964. aro 105 p 161-190. São Paulo Ed. R1 fev 2016 190 REVISTA DOS TRIBUNAIS. RT964. FEVEREIRO DE 2016 1-LuKAL, Victor Auilo. 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[email protected] Civil ÁREA DO DIREITO: O presente artigo tem por objetivo proporcionar uma maior reflexão a respeito da aplicação da doutrina dos punitive damages no direito brasileiro, especificamente no que con cerne à vedação legal do enriquecimento sem causa. Como no Brasil parte da jurisprudência e da doutrina tem defendido a aplicação desse instituto aos casos em que há dano moral, desde que não se constitua o enriquecimento sem cau sa da vítima, buscou-se verificar, com o auxílio da jurisprudência norte-americana em que o instituto tem se desenvolvido com maior pro fundidade se seria possível encontrar teorias ou argumentos aceitáveis pelo ordenamento jurídico nacional, permitindo a aplicação dos punitive damages sem que se alegue o enrique cimento sem causa da vítima. RESUMO: — — $ h1I Veja também Doutrina Punitive Damages Enriqueci mento sem causa Dignidade da pessoa huma na Interesses sociais Prevalência. PALAVRAS—CHAVE: • A Lei 12.965/2014 O Marco Civil da Internet, de Marcos Alberto Sant’Anna Biteili RDCom 7/291-333 (DTR\2014\8228); e • Comentários ao Marco Civil da lnternet Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, de Juliano Madalena RDC 94/329-350 (DTR\201 4\8979). — — — — The main purpose of this article is to provide a wider reflection over the use of punitive damages in the Brazilian legal system, specifically concerning the prohibition of unjustified enrichment (windfall). Considering that in Brazil part of the jurisprudence and doctrine has been defending the use of such legal institution to case-laws of moral damages, provided that victim’s windfall does not occur, the research tried to verify, with the assistance of the north American jurisprudence by which such legal institution has been developed in depth if it wouíd be possible to find theories or arguments acceptable by the Brazilian legal system permitting the use of punitive damages without causing windfall. ABSTRACT: — — Punitive Damages Windfall Human Social interest Prevalence. KEYWORD5: dignity — — — — — — — — Introdução 1. A reparação civil do dano moral no direito brasileiro. Breves con siderações 2. A doutrina dos punitive damages (indenização punitiva) 3. Vedação ao enriquecimento sem causa 4. Punitive damages e a jurisprudência nacional. Aplicação restrita ou inócua?: 4.1 Jurisprudência selecionada; 4.2 Uma aplicação restrita’ dos puni— tive damages 5. Os Ieading cases norte-americanos Referências. SUMÁRIO: — — — — — GAROA, Rebeca. Marco Civil da Internet rio Brasil: repercussões e perspectivas. Revistados Tribunais. vol. 964. ano 105. p. 161-190. São Paulo: Ed. RT, tev. 2016. — GArrAz, Luciana de Godoy Penteado. Punitivo damages no direíto brasileiro. Revista dos Tribunais. vol, 964. ano 105. p. 191-214. São Paulo: Ed. RI, fev. 2016. LLi