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QUALIFICANDO O ENSINO DE TRIGONOMETRIA
COM O USO DE SMARTPHONES
Daniel Ânderson Müller1
UFRGS – [email protected]
RESUMO
Este texto é um relato de experiência a respeito de uma estratégia para o uso de smartphones visando
qualificar o ensino de trigonometria em um 9º Ano do Ensino Fundamental. A metodologia prevê uma
atividade prática para cálculo de alturas de prédios, árvores, postes e outros elementos, através do
ângulo sob o qual topo destes elementos é visualizado. Para tanto, são utilizados telefones celulares
equipados com o sistema operacional Android e um aplicativo denominado Smart Protractor. Medido
o ângulo de visualização, as alturas dos elementos são calculadas através da trigonometria. A atividade
evoluiu para a construção de maquetes apresentadas em aula. Relatos dos alunos dão confiança para
afirmar que se trata de uma abordagem muito significativa de ensino-aprendizagem em Matemática.
Palavras-chave: Matemática; Ângulos; Trigonometria; Smartphones.
1.
INTRODUÇÃO
Muitos são os esforços que tenho empreendido para elaborar abordagens significativas
dos conteúdos trabalhados em Matemática no ensino básico. Fazer com que os alunos se
envolvam num projeto que lhes seja interessante certamente contribui para que eles construam
o conhecimento e o levem por toda a vida.
Nos tempos atuais, os adolescentes recebem uma elevada gama de estímulos de toda a
sorte que, se forem mal administrados, podem prejudicar o aprendizado. É o caso da telefonia
móvel (telefones celulares e smartphones), da televisão, da internet em banda larga, das redes
sociais, etc. Como professor, buscava planejar uma estratégia que unisse o útil ao agradável:
usar tecnologias presentes no cotidiano do aluno para trabalhar tópicos das aulas de
Matemática. Sendo mais específico, a ideia era fazer com que os alunos utilizassem algum de
seus inseparáveis aparelhos eletrônicos numa atividade de Matemática.
Devo lembrar que no Rio Grande do Sul, desde 2008, uma lei proíbe o uso de
telefones celulares em sala de aula. Tal medida transforma em lei um caso particular de uma
prerrogativa do professor e da escola, que é a administração das relações e acontecimentos
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Professor de Matemática. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]
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dentro do contexto da sala de aula.
À época da lei, os aparelhos de telefonia celular incorporavam também recursos de
câmeras fotográficas e reprodução de músicas. De fato, o uso destes recursos sem a anuência
do professor atrapalha o bom andamento de uma aula por tirar a atenção dos alunos, já tão
difícil de conseguir.
Ocorre que os aparelhos disponíveis atualmente (os chamados smartphones) possuem
uma imensa gama de recursos e aplicativos que podem muito bem servir ao aprendizado dos
alunos. Refiro-me aqui aos recursos computacionais presentes nos aparelhos, e não à telefonia
celular propriamente dita, alvo de proibição pela referida lei.
Este trabalho apresenta um relato de experiência em que telefones celulares foram
utilizados para qualificar o aprendizado de uma turma de 9º Ano do Ensino Fundamental,
numa escola privada do interior do Rio Grande do Sul, no que se refere à trigonometria no
triângulo retângulo. Num primeiro momento, é descrito o aplicativo usado na atividade. Em
seguida, os encaminhamentos feitos na atividade em si. Ao final, são apresentadas algumas
considerações acerca dos ganhos pedagógicos obtidos nesta experiência.
2.
UM RECURSO INTELIGENTE
Por algum tempo, pesquisei aplicativos relacionados à Matemática para uso em
smartphones e encontrei vários muito interessantes, desde softwares que geram gráficos de
funções, passando por calculadoras científicas e financeiras, além de aplicativos de geometria
e álgebra que existem em profusão.
Chamou minha atenção especialmente a existência de um aplicativo para smartphones
chamado Smart Protractor2 (transferidor inteligente, em tradução livre). Este aplicativo pode
ser instalado em smartphones equipados com sistema operacional Android3 e é obtido
gratuitamente na loja Google Play através do próprio aparelho. O aplicativo é gratuito, mas
pode também ser adquirido como parte de um pacote de ferramentas pagas denominado Smart
Tools, também disponível na loja Google Play, mediante pagamento com cartão de crédito.
Nesta atividade, foi usada a versão gratuita do aplicativo.
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Endereço para download: https://play.google.com/store/apps/details?id=kr.sira.protractor
Marca registrada de Google Inc.
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Figura 1: Aplicativo Smart Protractor em funcionamento
Fonte: Google Play Store
Sua configuração e utilização são extremamente simples. Basta fazer uma busca na
loja Google Play e solicitar a instalação do aplicativo. O sistema operacional do aparelho fará
o download e a instalação de maneira automática. Uma vez instalado, o aplicativo já estará
pronto para uso.
Ao abrir o aplicativo, aparece um semicírculo graduado com as medidas dos ângulos.
Sobre o semicírculo há a figura de um prumo, pêndulo que fica sempre em posição vertical
independente da posição do aparelho (Figura 1). Isto é possível porque o aplicativo explora os
sensores de gravidade e posição do smartphone. Ao inclinar o aparelho, visualiza-se
instantaneamente o ângulo de inclinação na tela. É possível travar a marcação apenas tocando
o dedo na tela.
Um exemplo das possibilidades do aplicativo é a medida do ângulo de visada pelo
qual é visualizado o topo de um prédio, por exemplo. Para obter a medida deste ângulo,
usamos a borda lateral do smartphone como uma espécie de mira para visualizar o topo do
elemento desejado. Para melhor precisão, é preferível que o aparelho tenha bordas laterais
retilíneas. Uma vez visualizado o topo adequadamente, toca-se e mantém-se o dedo em
contato com a tela, travando a posição do prumo, de modo que seja possível virar o aparelho e
observar na tela a medida angular obtida e apresentada tanto pela posição do prumo, quanto
um indicador digital no meio da tela.
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Outra possibilidade do aplicativo é simplesmente posicionar a lateral retilínea do
aparelho sobre uma superfície inclinada, obtendo assim o ângulo de inclinação.
Rapidamente, a praticidade deste aplicativo foi adaptada às minhas aulas de
trigonometria do 9º Ano do Ensino Fundamental. A ideia era resolver na prática os clássicos
problemas de cálculo de alturas inacessíveis, como alturas de prédios, árvores, postes e outras
coisas com base no ângulo pelo qual se visualiza o topo do item a ser medido.
3.
DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE
Os conceitos de razões trigonométricas no triângulo retângulo são trabalhados
previamente, seguindo os exemplos encontrados nos livros didáticos. Uma estratégia comum
das questões encontradas nos livros é o cálculo de um lado do triângulo retângulo com base
em um lado conhecido e um ângulo interno.
Para tornar as questões mais interessantes, os livros apresentam situações possíveis de
serem vivenciadas num determinado contexto da realidade. Por exemplo, o volume relativo ao
9º Ano do Ensino Fundamental da Coleção Teláris - “Matemática”, de Luiz Roberto Dante
(2012, p. 252), apresenta a seguinte questão:
Para determinar a altura de uma torre, um topógrafo colocou o teodolito (aparelho de medir
ângulos) a 100 m da base e obteve um ângulo de 30°, conforme mostra a figura. Sabendo que
a luneta do teodolito estava a 1,70 m do solo, qual era aproximadamente a altura da torre?
Figura 2: Ilustração da questão
Fonte: Dante (2012)
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A resolução da questão é relativamente simples, bastando usar as noções de
trigonometria no triângulo retângulo, mais especificamente a tangente de um ângulo. Antes da
resolução propriamente dita, sugiro representar a situação através de um triângulo retângulo
para “limpar” o desenho e facilitar a resolução.
Figura 3: Interpretação da questão
Fonte: Ilustração do autor.
A medida a ser calculada é o comprimento do cateto oposto ao ângulo de 30° e foi
identificada pela incógnita . Para calcular a medida aproximada de , usaremos a definição
de tangente no triângulo retângulo, que é a razão entre o cateto oposto e o cateto adjacente:
m
Finalizando a questão, é preciso observar que a medida
não é a altura da torre. É
necessário somar a medida calculada à altura da luneta do teodolito em relação ao solo
informada no enunciado da questão (1,70m). Feito isso, obtemos a altura aproximada da torre,
que é de 59,4 metros.
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Outros problemas semelhantes são apresentados aos alunos para que eles
compreendam bem o procedimento. Até aí, nada de inovador. Apenas uma sucessão de
exemplos e exercícios que visam à compreensão dos conceitos de trigonometria por meio da
resolução de problemas.
Retomo a ideia original de usar uma abordagem significativa e envolver o grupo de
alunos numa atividade interessante e desafiadora. Lanço algumas perguntas para instigar a
turma. Que tal sairmos da sala de aula para calcular uma medida real? Que tal medir a altura
da escola? A resposta dos estudantes é sempre categórica: Sim!
Utilizo como inspiração uma atividade proposta por Ledur, Enriconi e Seibert (2003,
p. 21-22), em que é proposta a construção de um instrumento artesanal denominado
“quadrante”, semelhante ao teodolito, que é usado na medida de ângulos na vertical. Os
relatos e instruções abaixo são adaptações do modelo proposto pelas autoras, mas substituindo
o quadrante pelos smartphones equipados com o aplicativo Smart Protractor.
Então vamos ao pátio da escola. Reunidos em grupos de até quatro integrantes, os
alunos escolhem uma região horizontal, tomam determinada distância do prédio da escola e
apontam seus smartphones para o topo de uma das paredes externas. Enquanto um dos alunos
faz a medição por meio do aplicativo, os demais fazem os registros. Anotados os valores
encontrados, passam para o cálculo da altura do prédio.
É importante que, além de medir a distância horizontal em relação ao prédio e o
ângulo sob o qual é visualizado o topo, os alunos meçam também a altura de seus olhos em
relação ao solo, para que esta seja somada à altura calculada.
Feitas as primeiras considerações acerca da atividade, trago como exemplo uma das
situações que foi resolvida pelo grupo de alunos: um aluno, posicionado a 5 metros de
distância horizontal em relação ao prédio da escola, observou o topo do prédio a um ângulo de
52,4°, conforme leitura4 no aplicativo Smart Protractor de seu smartphone. Sabendo que a
altura dos olhos do aluno em relação ao solo era de 1,51 m, o objetivo era calcular a altura
aproximada do prédio da escola.
Para ilustrar a situação, recorro novamente a um desenho:
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É importante ressaltar que o aplicativo apresenta a leitura dos ângulos no sistema decimal, com uma casa de
precisão, e não no sistema sexagesimal como é formalmente correto. Contudo, para cálculos trigonométricos
através com uso de calculadoras científicas, o uso do sistema de numeração decimal na medida de ângulos tornase prático.
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Figura 4: Interpretação da situação problema
Fonte: Ilustração do autor.
Passamos, em seguida, à resolução com base na definição da tangente no triângulo
retângulo, pela qual a tangente resulta da razão da medida do cateto oposto ( ) pelo cateto
adjacente (5 m) ao ângulo.
m
Somando-se a medida encontrada à altura dos olhos do aluno, temos que a altura
aproximada do prédio da escola é
metros.
Os demais alunos também calcularam a altura do referido prédio, variando também a
distância horizontal em relação à base do prédio. Alguns alunos tiveram dificuldade nos
cálculos e foram auxiliados pelos demais colegas.
Os resultados próximos de 8 metros levaram o grupo a presumir que a altura do prédio
da escola de fato deveria ser esta, o que veio a ser confirmado posteriormente, após uma
consulta ao diretor.
Esta atividade evoluiu para a construção de maquetes de prédios importantes da
cidade, usando o aplicativo Smart Protractor para calcular as alturas, bem como a câmera
fotográfica dos smartphones para observar detalhes importantes a serem incorporados ao
trabalho.
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As maquetes produzidas com diferentes materiais foram inicialmente apresentadas à
turma e posteriormente expostas no saguão da escola para serem apreciadas pelos alunos das
demais turmas e outros visitantes.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção de conceitos por meio de estratégias inovadoras sempre foi e sempre será
um desafio para os professores de qualquer área de conhecimento. Entendo que desafiar os
alunos a resolverem situações diferentes das que são apresentadas em livros didáticos torna o
aprendizado significativo.
A atividade descrita neste texto visava aproveitar elementos de forte presença no
cotidiano dos alunos (caso dos smartphones) e utilizá-los como aliados na resolução de
situações desafiadoras. O interesse dos alunos durante a realização da atividade e seus relatos
ao final dela dão conta de que este objetivo principal foi atingido.
Em tese, a situação proposta é semelhante aos exemplos apresentados nos livros
didáticos, como na questão resolvida neste texto. Porém, a simples resolução de questão que
simula uma “situação possível” é muito distante da modelagem de uma “situação real”, com
todas as variáveis que uma situação real acaba por acrescentar. Assim, a atividade aqui
relatada enriqueceu sobremaneira o aprendizado dos alunos, na medida em que diversos
novos aspectos tiveram que ser considerados.
Primeiro, a atividade levava os alunos para fora da sala de aula, proporcionando que
eles vivenciassem na prática a aplicação de um conteúdo estudado. Medições e registros
corretos, organização e cuidados técnicos tiveram que ser observados. Os dados não estavam
todos prontos como costumeiramente são apresentados nos livros didáticos e mesmo nas
questões elaboradas pelo professor. Só este fato já tornaria a experiência marcante pela quebra
da rotina da sala de aula.
Outro fator enriquecedor está relacionado à utilização de uma tecnologia que permite
maior precisão. Isto porque as medições dos ângulos realizadas com o aplicativo apresentaram
leituras com medidas diferentes dos tradicionais 30°, 45° e 60° que tanto são utilizados nos
exercícios (inclusive no exemplo que ilustra este trabalho). Em alguns casos, sequer foram
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obtidos ângulos com medidas inteiras, cujos senos, cossenos e tangentes aparecem em tabelas
dos livros didáticos.
Para dar conta destas medidas diferentes, os alunos utilizam calculadoras científicas,
constituindo um terceiro aspecto que qualifica o aprendizado: o cuidado com os eventuais
arredondamentos dos valores calculados.
Em comparação com a atividade semelhante baseada no instrumento de medida de
ângulos chamado de quadrante e que me serviu de inspiração, vejo vantagens na estratégia
aqui apresentada. Já realizei a mencionada atividade com o quadrante em pelo menos três
oportunidades anteriores e posso dizer que se fazem necessários pelo menos dois períodos de
aula para a construção do instrumento.
Na atividade proposta neste trabalho, com o uso dos smartphones, o tempo de
preparação consiste apenas na instalação do aplicativo Smart Protractor. Com isso, há um
ganho evidente no tempo de realização da tarefa, podendo-se detalhar melhor os passos
necessários. Além disso, as medidas obtidas no aplicativo são mais precisas e de leitura mais
simples do que no instrumento artesanal quadrante, o que configura outro ganho de qualidade
na tarefa.
Espero que esta atividade simples possa servir como sugestão para enriquecer e
qualificar as aulas de meus colegas que, assim como eu, enfrentam todo dia a necessidade de
apresentar a Matemática de forma marcante e significativa. E é importante agradecer aos
meus alunos que contribuíram de maneira tão positiva para a realização desta atividade.
REFERÊNCIAS:
DANTE, Luiz Roberto. Projeto Teláris: Matemática. v. 4. São Paulo: Ática, 2012.
LEDUR, B. S.; ENRICONI, M. H. S.; SEIBERT, T. E. A trigonometria por meio da
construção de conceitos. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
RIO GRANDE DO SUL. Lei 12.884, de 3 de janeiro de 2008. Dispõe sobre a utilização de
aparelhos de telefonia celular nos estabelecimentos de ensino do Estado do Rio Grande do
Sul. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/infancia/legislacao/id3839.htm>. Acesso em: 20
mai. 2014.
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