Vanitas (com rhacolepsis buccalis)

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Vanitas (com rhacolepsis buccalis)
Vanitas (com rhacolepsis buccalis)
Leila Danziger
Desde o início, meu interesse pelas artes visuais tem como centro a pergunta pela memória.
Em meu trabalho, tudo surge a partir da descoberta de um arquivo1 – de nomes, objetos,
imagens ou textos. Arquivos de nosso ainda tão próximo século XX, com suas catástrofes,
perplexidades e esperanças, arquivos de minha história familiar e pessoal, e, não menos
significativo, arquivos do próprio processo de produção.
O contato com o Instituto de Biologia propiciou a inserção de outro tipo de arquivo em meu
trabalho, pertencente a uma escala de tempo imensamente ampliada – a que se faz em
dezenas de milhões de anos. Os peixes fósseis, estudados pelo Laboratório de Paleoictiologia
Tempo e Espaço, coordenado pelo pesquisador Paulo Brito 2 , pertencem ao Cretáceo e
propiciam uma consciência temporal vertiginosa: aqueles organismos viveram enquanto
nossos mares e continentes estavam ainda em formação.
Mas o encontro com essa temporalidade ampliada já havia sido anunciado. Há quase dois anos
guardo preciosamente um artigo do Caderno de Ciências da Folha de São Paulo, cujo título nos
provoca a vertigem de um tempo para além da escala humana: “Peixe cego recupera a visão
após um milhão de anos no escuro.” 3 As informações contidas no artigo oferecem curiosa
resistência ao tempo instantâneo dos jornais, e é justamente a tentativa de propor a
experiência de um tempo mais resistente o que me interessa nos últimos anos.
1
Inicialmente, ao ver as imagens dos fósseis, pensei prontamente nas Vanitas, gênero pictórico
surgido na segunda metade do século XVI, cuja função era advertir sobre a precariedade da
vida e dos valores humanos. Na forma da natureza-morta ou da alegoria, as Vanitas reúnem
instrumentos científicos, livros, flores, espelhos, ampulhetas, velas e crânios. Sua função era
estabelecer contrastes entre o mundo do espírito, supostamente incorruptível, e o mundo do
conhecimento humano e da matéria, submetidos ao tempo e à degradação.
Claro que não há mais nenhuma atualidade na desvalorização do conhecimento e da
experiência humana, promovida pelas Vanitas. Pensar este gênero a partir de uma perspectiva
contemporânea implica compreender de forma crítica – mas não meramente reativa – a
relação com os objetos e as imagens que nos cercam, tentando qualificá-los e salvá-los do
instante do consumo.
Vários autores associam as Vanitas ao Livro do Eclesiastes – Cohélet, em hebraico –, com sua
célebre frase que afirma a nulidade da vida – “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Mas
acredito, como afirma Henri Meschonnic, que “a visada deste livro não é o pessimismo, mas a
lucidez, não o abstrato [de uma vida além da morte], mas o concreto [das escolhas pautadas
pela ética]”6.
Assim, o trabalho apresentado parte do desejo de propiciar a experiência de um tempo
reflexivo e resistente. Não se trata de esmagar o breve tempo da vida humana pela
aproximação com o tempo dos fósseis, mas, inversamente, valorizar a intensidade das
2
escolhas e a potência do momento presente, assim como a nossa aterradora e comovente
fragilidade.
No interior da cristaleira, proponho uma articulação entre diversos objetos, um jogo aberto e
flexível entre todos os elementos: brinquedos (meus e de meu filho), livros, espelhos, relógios,
colares, entre outros. Uma breve cena de um filme de Wim Wenders, em que o personagem
do velho contador de histórias rumina – perdido e perplexo – sobre a guerra e a paz em uma
biblioteca de Berlim, em meio a globos terrestres, foi editada de modo a reverberar sobre os
demais objetos. O crânio humano, presente nas Vanitas dos séculos XVI e XVII, é substituído
por dez espécimes de racholepsis buccalis, peixe fóssil encontrado na Chapada do Araripe,
nordeste brasileiro. Afastados da produção de conhecimento científico, os fósseis são inseridos
no tempo da cultura e dos afetos.
3
O contato com a biologia ativou ainda um antigo interesse pela taxonomia, pois é preciso
ordenar os elementos dos diferentes arquivos, nomeá-los, instaurar contatos, inseri-los em
ficções capazes de acolhê-los e organizá-los.
Sobre a cristaleira, um rádio com válvulas divide o espaço com a tecnologia atual – um projetor
e um DVD player –, que muito em breve também estarão ultrapassados e obsoletos. Entre os
dispositivos eletrônicos, um vaso de plantas exige cuidados regulares ao longo dos 30 dias da
exposição. Creio, contudo, que todos os objetos presentes solicitem atenção semelhante a que
pede esta plantinha. É preciso responsabilizar-se por eles, ouvir suas solicitações e dar-lhes
sentido. (Mas a vocação discursiva do trabalho pressupõe também aceitar a opacidade das
coisas.)
Todos os elementos reúnem-se na galeria por um mês, para em seguida dispersarem-se
novamente no espaço da vida e do laboratório.
1
Agradeço a Luiz Cláudio da Costa a consciência da importância do arquivo em meu trabalho, a partir de seu ensaio
“A poética da memória e o efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger”, Arte&Ensaios, Revista do Programa de
Pós-graduação em Artes, Escola de Belas Artes, UFRJ, Rio de Janeiro, n. 19, dezembro de 2009.
2
Agradeço a Paulo Marques Brito, pela atenção e empréstimo dos fósseis, assim como a Diogo de Mayrink,
doutorando do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Evolução do IBRAG.
3
Folha de São Paulo, 12/01/2008.
6
Meschonnic apud Campos, Haroldo de. Qohélet, São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 23. Agradeço a Raul Gottlieb pela
descoberta do Cohélet e por suas leituras tão contemporâneas da narrativa bíblica.
Agradecimentos especiais: equipe de montagem do Departamento Cultural da UERJ, sobretudo a Douglas Cortes,
graduando do Instituto de Artes. E também a Antônio Carlos de Freitas, pelos registros fotográficos.
4

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