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Os para-doxa da democracia OS PARA-DOXA DA DEMOCRACIA THE PARADOXES OF DEMOCRACY Piergiorgio Odifreddi1 Sumário: 1. A votação por maioria. 2. O paradoxo de Condorcet. 3. Problemas de peso. 4. O teorema de Arrow. 5. O paradoxo de Alabama. 6. Proporcional ou majoritário? Winston Churchill dizia que a democracia é a pior forma de governo, à parte todas as outras antes experimentadas. Sabia, porém, que o melhor argumento contra a democracia são cinco minutos de conversa com um eleitor (ou político) médio. George Bernard Shaw definia a democracia como a garantia de não sermos governados melhor do que merecemos. E acrescentava que seu advento substituíra a nomeação de poucos corruptos pela eleição de muitos incompetentes. Gustave Flaubert identificava o sonho da democracia como a elevação do proletariado ao mesmo nível de estupidez alcançado pela burguesia. Bertrand Russell observava que os eleitos não podem jamais ser mais estúpidos que seus eleitores. Parece, portanto, que a democracia tem seus problemas, com soluções indicadas por algumas propostas literárias paradoxais. Por exemplo, O parlamento de Jorge Luis Borges sugere que, para se obter uma representação verdadeiramente representativa, uma eleição deva eleger todos os eleitores. No extremo oposto, Direito de voto de Isaac Asimov considera suficiente que um só votante participe das eleições, desde que suficientemente representativo. Nós de Evgenij Zamjatin, por fim, propõe que se considerem como efetivamente democráticas apenas as votações públicas e unânimes. Tais provocações literárias podem ser facilmente postas de lado com um sorriso. Não é assim com as questões lógicas e matemáticas, cuja remoção é menos simples. Os paradoxos da democracia são, de fato, variados e enganosos, como já sabiam os antigos2. Por exemplo, pode-se instaurar uma ditadura de maneira legal? 1 2 Professor da Università di Torino – Itália. D. Daube, “Greek and Roman reflections on impossibile laws”, Natural Law Forum, 12 (1967): I-84. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 156 Piergiorgio Odifreddi Se sim, a liberdade poderia ter seus dias contados; se não, é desde já limitada 3. Ou ainda, pode-se eliminar o dispositivo que permite as revisões constitucionais? Se sim, o poder de revisão está em perigo; se não, ele é incompleto4. Talvez o mais óbvio dos paradoxos da democracia seja uma simples variação sobre o tema do sorites, sobre o qual voltaremos em seguida: dado que nas eleições com muitos eleitores nunca ocorre uma vitória por apenas um voto de diferença, nenhum voto em particular é determinante. Portanto, não ir votar não faz diferença. Já os paradoxos ulteriores que iremos anunciar dizem respeito à prática da vida democrática, uma vez que se tenha decidido a votar, não obstante tudo. Não é efetivamente claro como (ou ainda se) se possa determinar os eleitos, ou distribuir os lugares, de maneira logicamente satisfatória. 1 A VOTAÇÃO POR MAIORIA “Democracia” é um termo bastante vago, que na Grécia significava apenas “governo do povo”. No inconsciente coletivo ocidental, adquiriu o significado, mais preciso, de “governo da maioria”. E de fato, em geral, a votação por maioria é considerada como o meio através do qual o povo governa. Seja diretamente, optando entre alternativas em um referendum, seja indiretamente, escolhendo entre candidatos em uma eleição. Que as coisas não são tão simples foi demonstrado pelo paradoxo das eleições de 2000, nas quais um país como os Estados Unidos, que se considera o mais democrático do mundo, elegeu para a presidência um candidato como George W. Bush com um número de votos menor que seu opositor, Al Gore. O primeiro problema a se afrontar é, portanto, se a redução do governo do povo àquele da maioria é justificada. Ou ao menos justificável. No fim das contas, o conceito de democracia contém implicitamente toda uma série de aspectos, que 3 4 I. Tammelo, “The antinomy of parliamentary sovereignty”, Archiv für RechtsSozialphilosophie, 44 (1958): 495-513. A. Ross, “On self-reference and a puzzle in Constitutional Law”, Mind, 78 (1969), I-24. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional und 157 Os para-doxa da democracia talvez sejam melhor expressos por outros métodos de governo em geral e de votação em particular. Poder-se-ia pensar que as únicas justificativas possíveis, em tal âmbito, são inconcludentes discussões de filosofia política. Em 1952, porém, o economista Kenneth May demonstrou matematicamente5 que a votação por maioria é o único procedimento de escolha entre dois candidatos que satisfaz as seguintes condições: 1) Liberdade de escolha: cada um é livre para votar no candidato que prefere. 2) Dependência do voto: o resultado de uma votação é determinado unicamente pelos votos dados aos candidatos. 3) Monotonicidade: se um candidato vence uma votação com um determinado número de votos, vence também em qualquer votação na qual tenha mais votos. 4) Anonimato: não há votantes privilegiados. Mesmo estando contidas implicitamente, as assunções precedentes, no conceito de democracia, o teorema de May demonstra que não há alternativas democráticas à votação por maioria, no caso de apenas dois candidatos. E mostra também como uma discussão política, quando fundada (como raramente ocorre) sobre argumentos concretos, pode ser simples e precisa. Para os leitores curiosos, ofereceremos de imediato uma breve demonstração de May (quem não estiver interessado pode passar sem perdas, mas também sem ganhos, à proxima seção do texto). Denominemos os dois candidatos como A e B. Pela dependência do voto, o resultado depende somente de como se repartem os votantes: aqueles que preferem A e B, e aqueles que preferem B e A. Pelo anonimato, cada voto conta da mesma maneira: portanto, o resultato depende apenas de quantos votam em A e quantos em B. Suponhamos agora que A obtenha a maioria dos votos, mas que seja B a vencer. Pela liberdade de escolha, pode-se imaginar uma situação na qual todos os votantes troquem seus votos: ou seja, que votem em A se antes votavam em B, e 5 K. May, “A set of independent, necessary and sufficient conditions for simple majority decisions”, Econometrica, 20 (1952): 680-684. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 158 Piergiorgio Odifreddi votem em B se antes votavam em A. Neste caso a situação seria simétrica à precedente, com os papéis de A e B trocados. Agora A obtém o mesmo número de votos que antes tinha B, e que bastavam a este para vencer: pela dependência do voto, desta vez deveria vencer A. Mas B obtém o mesmo número de votos que antes tinha A, e, portanto, mais que aqueles que já lhe haviam bastado para vencer: pela monotonicidade, B deveria continuar a vencer, em tais circunstâncias. Para evitar equívocos, por ora não há qualquer paradoxo. Se não, talvez, o fato de que a demonstração da inevitabilidade do voto por maioria tenha sido dada, nos Estados Unidos, por May, que era membro do Partido Comunista. 2 O PARADOXO DE CONDORCET Buscando um verdadeiro paradoxo chegamos em Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, mais conhecido como marquês de Condorcet (1743-1794). Tendo vivido na época da Revolução Francesa, o marquês fora primeiramente enciclopedista e depois girondino. Com a chegada ao poder dos jacobinos, escondeu-se por vários meses. Quando finalmente se decide por fugir, travestido pelos campos, trai a si mesmo pedindo, como bom aristocrata, uma omelete com um número despropositado de ovos. Morreu na prisão três dias depois; talvez suicida, visto que levava veneno sempre consigo. Em 1785, poucos anos antes que a revolução pretendesse, paradoxalmente, instaurar um sistema democrático com a guilhotina, o marquês descobrira o seguinte problema6. Ele sabia, mesmo sem a demonstração de May, que a votação por maioria era um método eficiente de escolha entre duas alternativas. Na presença de mais alternativas, uma ideia óbvia seria votar duas de cada vez, optando por aquela que obtivesse a maioria contra todas as remanescentes. Condocert demonstrou que, infelizmente, não é certo que haveria tal alternativa: mesmo se as preferências dos votantes singulares, em respeito às diversas alternativas, fossem ordenadas linearmente, a votação poderia de fato produzir uma ordem social circular 7. 6 7 M. de Condorcet, Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix, Paris, 1785. A propriedade matemática em questão é chamada de transitividade: se x precede y e y precede z, então x precede z. No exemplo seguinte, as preferências individuais são transitivas, mas não as sociais. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 159 Os para-doxa da democracia Para ilutrar o paradoxo, consideremos outra das eleições presidenciais estadunidenses: aquela de 1976. Na ocasião Jimmy Carter vence Gerald Ford, que obtivera a nomination republicana vencendo Ronald Reagan. Mas as pesquisas diziam que Reagan teria vencido Carter (como depois acontece efetivamente, não obstante com um outro eleitorado, em 1980). Uma situação circular, na qual três candidatos têm condições de vencer, é obviamente embaraçante para um sistema no qual os dois candidatos são selecionados em eleições sucessivas, dois a dois. O vencedor depende, de fato, somente da ordem em que são realizadas as votações. Por exemplo, para que vencesse Ford em 1976 teria bastado fazer primeiro a votação entre Carter e Reagan, e depois a votação entre o vencedor (Reagan) e Ford. O paradoxo de Condorcet não deixa escolhas. Ou se votam todas as alternativas, umas contra as outras, podendo assim obviamente acontecer que nenhuma obtenha a maioria; ou se votam as várias alternativas em uma certa ordem, caso em que a vencedora dependerá da ordem escolhida. Como se não bastasse, uma ordem particular de votações pode permitir a uma alternativa que vença ainda quando exista outra unanimemente preferida. Considerando que a votação por maioria sobre mais de duas alternativas é um sistema largamente aplicado em contextos locais, nacionais e supranacionais, a relevância do paradoxo é evidente. Entre outros, explica as denominadas batalhas procedimentais, por vezes furiosas, sobre a ordem das votações. Longe de ser bizantinismos, como poderia parecer, são na verdade essenciais para determinar o resultado final segundo a direção desejada, relegando as votações ao papel de cobertura democrática de verdadeiros golpes. Vale a pena sublinhar que, para que o paradoxo de Condorcet seja possível, não pode haver uma alternativa a qual ninguém considere como a pior. De fato, se A vence B por maioria, ao menos a metade mais um dos votantes prefere A a B. Se B vence C por maioria, ao menos a metade mais um dos votantes prefere B a C. Logo, ao menos um dos votantes prefere A a B e B a C, e C é considerada a pior alternativa por alguém. Por simetria, o mesmo vale para A e B. Para que a ordem social produzida pela votação por maioria possa ser circular, é portanto necessário que cada alternativa seja considerada a pior por alguém. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 160 Piergiorgio Odifreddi Expõe-se assim uma incompatibilidade entre liberdade individual, que permite a cada um optar por determinada ordem de preferências, e harmonia social, que por sua vez requer uma certa uniformidade entre as ordens individuais. E explica, também, tanto a inadequação da votação por maioria nos momentos de instabilidade política como a sua impotência nos momentos de transformação. Nos primeiros, há alternativas que ninguém considera as piores: aquelas de centro. Já nos segundos, a radicalização das preferências cria as condições para o paradoxo. 3 PROBLEMAS DE PESO A votação por maioria proposta no parágrafo anterior não é, obviamente, a única solução possível para a escolha entre mais alternativas. Outra é a votação por pluralidade: apresentam-se todas as alternativas simultaneamente, cada votante escolhe uma, e vence aquela que recebe o maior número de votos. Em 1781, porém, Jean-Charles de Borda (1733-1799) percebeu que se impunha uma escolha entre os dois métodos, visto que pluralidade e maioria são incompatíveis entre eles8. Consideram-se quinze votantes, por exemplo, que devam optar entre alternativas A, B e C. Suponhamos que as ordens de preferências individuais sejam as seguintes: - 6 votantes preferem A a B, e B a C. - 4 votantes preferem B a C, e C a A. - 5 votantes preferem C a B, e B a A. Quando se coloca em votação as alternativas por pluralidade, A vence C por 6 a 5, e C vence B por 5 a 4. Já quando se coloca a votação por maioria, B vence C por 10 a 5, e C vence A por 9 a 6. Os dois sistemas de votação produzem, portanto, ordens sociais contrapostas. Borda não se deu conta que a votação por maioria poderia não ser transitiva, mesmo porque no exemplo precedente o é: B vence A por 9 a 6. Mas identificou um problema no fato de que na votação por pluralidade se considera somente uma parte 8 J.-C. de Borda, “Mémoire sur les élections au scrutin”, Mémoires de l’Académie Royale des Sciences (1781): 657-665. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 161 Os para-doxa da democracia das informações contidas nas várias ordens de preferência individuais: precisamente, a primeira alternativa. A coisa pode ser remediada com sistemas de voto por peso, no qual os votantes associam, direta ou indiretamente, pesos numéricos às várias alternativas. Por exemplo, no assegnamento canônico se dão n pontos à primeira de n alternativas, n-1 pontos à segunda, e assim por diante. A construção da ordem social se efetua, neste caso, somando os pesos das alternativas nas várias ordens individuais. Mas, já como no caso da votação por maioria, também os sistemas de voto por peso apresentam situações paradoxais. Estabelecer a atribuição dos pesos coloca de imediato várias dificuldades. Em primeiro lugar, psicológicas: como medir as intensidades das preferências de cada indivíduo? Em segundo lugar, sociológicas: como equiparar, entre si, os vários sistemas de medida individuais? Em terceiro lugar, e sobretudo, lógicas: o resultado pode, de fato, depender da atribuição dos pesos. Por exemplo, considere-se cinco votantes, que devam optar entre alternativas A, B e C. Suponhamos que as ordens das preferências individuais sejam as seguintes: - 3 votantes preferem A a B, e B a C. - 2 votantes preferem B a C, e C a A. Caso se assinale um ponto à primeira de cada lista e nenhum às demais, como na votação por pluralidade, A vence B por 3 a 2. Mas se forem assinalados dois pontos à primeira, um à segunda e nenhum à terceira opção, de cada lista, B vence A por 7 a 6. De qualquer forma, quando estiverem fixadas a atribuição dos pesos e as ordenações individuais, a ordem social entre duas alternativas dependerá da presença ou não de outras alternativas em jogo. Por exemplo, se a atribuição é da maneira canônica e as ordens individuais são aquelas do exemplo precedente, então A perde de B por 11 a 12. Sendo a alternativa C não apenas a última em absoluto, com 7 pontos, mas também não sendo a preferida por nenhum votante de B, que é a primeira opção em absoluto, poder-se-ia pensar que a presença de C fosse irrelevante para a vitória de B. Ela Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 162 Piergiorgio Odifreddi resulta, porém, determinante. Se a alternativa C for efetivamente eliminada, permanece-se com três votantes que preferem A a B e dois que preferem B a A. Desta vez, portanto, A vence B por 8 a 7. Problemas de tal gênero tornaram os sistemas de voto por peso, em regra mais complicados que os sistemas de voto por maioria, pouco praticáveis. São usados, hoje, quase exclusivamente em multicompetições esportivas, como o decatlon. Neste caso, as alternativas são os atletas participantes, os votantes são as várias competições, as preferências são as ordens de chegada, e os pesos são os pontos assinalados. 4 O TEOREMA DE ARROW Os paradoxos de Condorcet e Borda expuseram algumas dificuldades dos sistemas de votação então conhecidos, sem porém parar a história. A guilhotina era, de fato, tema dos mais afiados dentre os paradoxos, e a democracia se mostrou historicamente inevitável, não obstante logicamente inconsistente. A discussão de Condorcet caiu no esquecimento, sendo redescoberta periodicamente, de Lewis Carroll em 1876 a Duncan Black em 1948, para ser pontualmente reesquecida. Foi enfim retomada em 1951 por Kenneth Arrow 9, um jovem economista que havia estudado lógica matemática com Alfred Tarski. Sua formação o estimulou a não parar diante do paradoxo e ir além, fazendo-o perguntar se era tudo fruto do acaso ou da necessidade. Em outras palavras, Arrow se questionou sobre a possibilidade de se encontrar ao menos um sistema de votação que permitisse estender a transitividade das preferências individuais àquelas sociais. Até então, tanto os idealistas à la Kant como os racionalistas à la Bentham haviam suposto que a ordem social existisse, e divergiam somente na crença que essa fosse, respectivamente, independente ou deduzível das ordens individuais. 9 K. Arrow, Social choice and individual values, Yale University Press, 1951. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 163 Os para-doxa da democracia Já o realista Arrow descobriu que ambos se equivocavam, porque a ordem social não existe. Mais precisamente, demonstrou que nenhum sistema de votação que satisfaça as seguintes condições preserva a transitividade das preferências: 1) Liberdade de escolha: toda ordem transitiva de preferências individuais é aceitável. 2) Dependência do voto: o resultado da votação entre duas alternativas é determinado univocamente pelos votos a elas conferido. 3) Monotonicidade: se uma alternativa vence uma votação, continua a vencer em toda votação na qual obtenha mais votos. 4) Rejeição da ditadura: não existe ninguém cujas preferências individuais ditem o resultado de cada votação, independentemente das preferências dos demais votantes. A analogia com as condições de May salta aos olhos. Em particular, dado que o anonimato implica a rejeição da ditadura, o teorema de Arrow demonstra que o teorema de May não pode ser estendido a mais de duas alternativas. Não obstante o resultado seja exatamente um teorema, para exorcizá-lo se costuma o chamar de paradoxo. Em inglês soa bem, pois Arrow’s paradox é traduzido como “paradoxo da Flecha”, invocando um outro homônimo: aquele de Zenão, segundo o qual uma flecha em movimento não pode se mover, porque em cada instante está parada. Isto não impediu que o teorema de Arrow fosse objeto de estudos aprofundados, que agora compõem a denominada teoria das escolhas sociais. Nem descuidou o comitê de Estocolmo, que em 1972 conferiu a Arrow o prêmio Nobel de economia (paradoxalmente, com uma votação). O fato de que um teorema de ciência política como o de Arrow, sobre a impossibilidade de um sistema democrático de votações, tenha lhe concedido um prêmio Nobel de economia, não deve surpreender. À parte as óbvias e hoje evidentes conexões e acordos entre economia e política, pela sua natureza abstrata o resultado se aplica a qualquer situação na qual seja necessária uma escolha coletiva entre um conjunto limitado de alternativas. Por exemplo: de produtos em um mercado, de políticas comerciais em um conselho de administração, de representantes em uma assembleia de acionistas... O teorema de Arrow torna Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 164 Piergiorgio Odifreddi manifesta, portanto, uma dificuldade na passagem da microeconomia dos sujeitos individuais, tais como produtores e consumidores, à macroeconomia dos grupos, como os mercados. Vem à mente, mais genericamente, uma série de situações análogas, nas quais fica difícil, ou impossível, justificar o comportamento global de um sistema sob a base dos comportamentos individuais de seus componentes. Quanto às consequências filosóficas do teorema de Arrow, não se pode tratar de maneira melhor da que fez Paul Samuelson10, prêmio Nobel de economia em 1970. Em primeiro lugar, ele admite candidamente que “a busca da democracia perfeita por parte das grandes cabeças da história se mostrou como a busca de uma quimera, de uma autocontradição lógica”. Sem querer ofender os políticos e meios de informação mundiais que hoje apenas cantam, incessantemente, o mantra do suposto triunfo da referida quimera. Em segundo lugar, Samuelson traça um paralelo que é para nós extremamente significativo: “A devastante descoberta de Arrow é, para a política, o que o teorema de Gödel é para a matemática”. Em particular, ambos os resultados mostram limitações intrínsecas de seus respectivos âmbitos de maneira simples e inequívoca, destruindo assim ingênuas ilusões. Nem mesmo o teorema de Arrow é, porém, a última palavra em termos de limitações da democracia. Um resultado igualmente impressionante, se não mais, foi obtido em 1970 por Amartya Sen11, prêmio Nobel de economia em 1998. Partindo de hipóteses análogas àquelas de Arrow, Sen efetivamente demonstrou que, em uma sociedade, um indivíduo pode no máximo ter direitos! 5 O PARADOXO DE ALABAMA O teorema de Arrow fez explícitas algumas condições mínimas implícitas no conceito de democracia e demonstrou que não há nenhum sistema de votação que as satisfaça contemporaneamente. O que explica a proliferação de leis eleitorais em vários países e a disparidade de panoramas por parte dos partidos políticos: não 10 11 In Scientific American, outubro 1974, p. 120. A. Sen, Collective choice and social welfare, Holden-Day, 1970. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 165 Os para-doxa da democracia havendo sistemas ideais para todos, cada um busca fazer prevalecer aquele que no momento lhe parece o mais conveniente para si. O tipo de votação para a escolha dentre vários candidatos é, de qualquer forma, apenas um dos problemas que uma lei eleitoral deve resolver, não obstante seja certamente o mais visível aos eleitores. Antes de votar, é preciso de fato distribuir os lugares, entre os colégios eleitorais, com base em suas populações. E depois do voto, é preciso distribuir os lugares, entre os partidos, com base nos votos por eles obtidos. Considerando que o número de postos é obviamente muito inferior ao número de eleitores ou de votantes, a divisão não dará como resultado, em regra, um número inteiro. Por razões de equidade, dever-se-ia aplicar um princípio de proporcionalidade: o número de lugares conferido a um colégio ou a um partido deverá ser uma das duas aproximações inteiras, por aproximação ou por excesso, do número racional que se obtém da divisão. Por exemplo, se os postos a se distribuir são 10 e um colégio possui um terço da população, os lugares a este reservados deverão ser 3 ou 4. A proporcionalidade diz respeito à consistência dos colégios ou dos partidos tomados singularmente. O ulterior princípio de monotonicidade se refere à sua consistência relativa: os colégios com mais eleitores não deverão receber menos lugares que os colégios com menos eleitores, e o mesmo deve valer para os partidos com mais votos em relação àqueles com menos votos. Além disso, isto deveria valer tanto para as situações sincrônicas, relativas a uma eleição apenas, como para as situações diacrônicas, referentes a eleições em períodos diversos, reguladas pelas relações entre os percentuais. Como já podemos prever, tais condições são difíceis de satisfazer. É o que se constatou pela primeira vez em 1880, quando os Estados Unidos decidiram aumentar o número de deputados do Congresso de 299 para 300. Esperava-se que um estado teria obtido um deputado a mais. Descobriu-se, porém, que dois estados ganhavam um deputado, enquanto o Alabama perdia um! O problema estava no sistema de distribuição das cadeiras então em vigor. Proposto em 1791 por Alexander Hamilton (1755-1804), ministro do Tesouro de George Washington, procedia-se do seguinte modo: antes de mais nada, Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 166 Piergiorgio Odifreddi calculavam-se as cotas cabíveis a cada estado, que eram depois arredondadas para baixo, conferindo a cada estado o número mínimo de lugares aos quais tinha direito. Enfim, distribuía os postos remanescentes aos estados que mais haviam perdido com o arredondamento. O que ficou claro, como mostrou o paradoxo do Alabama, foi que tal sistema, mesmo se racional, tinha consequências paradoxais, devidas ao fato de que o acréscimo de novos lugares elevava, obviamente, a cota de cada estado, mas não com o mesmo percentual. Em 1907 se apresentou um novo problema, devido à entrada de Oklahoma nos Estados Unidos. Ao novo estado foram conferidas cinco novas cadeiras, mas se constatou que a atribuição das remanescentes (e invariáveis) aos outros estados acabava sendo modificada: o estado de Nova York deveria ceder um de seus lugares ao Maine. Dessa vez, falou-se em paradoxo do novo estado. As polêmicas conseguintes a tais embaraços provocaram uma angustiante busca por um sistema imune de paradoxos. Infelizmente, em 1982, Michel Balinsky e Peyton Young demonstraram12 que não existe nenhum método de distribuição dos postos que satisfaça os princípios de proporcionalidade e de monotonicidade. Basta, de fato, que hajam ao menos 7 cadeiras a se distribuir entre ao menos 4 colégios, para que se possa verificar problemas. Primeiramente, no momento de uma primeira eleição o percentual da população em relação ao número de cadeiras pode realmente ser redistribuído no seguinte modo: - 5,01 no colégio A - 0,67 no colégio B - 0,67 no colégio C - 0,65 no colégio D A única distribuição de postos compatível com as condições de proporcionalidade e monotonicidade é: cinco para o colégio A, um para cada um dos colégios B e C, e nenhum posto ao colégio D. 12 M. Balinski e P. Young, Fair representation, Yale University Press, 1982. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 167 Os para-doxa da democracia No momento de uma segunda eleição, o percentual da população pode ser redistribuído da seguinte maneira: - 3,99 no colégio A - 2,00 no colégio B - 0,50 no colégio C - 0,51 no colégio D Desta vez, as únicas distribuições de lugares compatíveis com as condições de proporcionalidade e monotonicidade são: três ou quatro postos para o colégio A, dois postos para o colégio B, um ou nenhum posto ao colégio C, e um posto ao colégio D. Na passagem da primeira para a segunda eleição, portanto, o colégio A perdeu ao menos um lugar, e o colégio ganhou outro. O que contrasta, porém, com o princípio de monotonicidade, pois A cresceu, em relação a D, de cerca de 7,5 para 8 vezes. 6 PROPORCIONAL OU MAJORITÁRIO? Os teoremas de Arrow e de Balinsky e Young impuseram golpes mortais ao princípio de proporcionalidade. Muitas democracias o abandonaram, por isso, com mais ou menos pudor. Também a italiana, sob o golpe de referendum e mattarellum, por alguns anos pensou que a solução dos problemas da democracia estivesse na adoção de alguma forma de sistema majoritário. Infelizmente para eles, os sistemas majoritários não estão em melhor situação que os proporcionais. No majoritário puro, por exemplo, é possível que um partido com quase 50 por cento dos votos nacionais não obtenha nem mesmo uma cadeira, ao passo que cada posto pode ir para partidos locais de representação mínima. Basta, de fato, que em cada colégio um mesmo partido nacional obtenha 50 por cento dos votos menos um, e que um partido local obtenha 50 por cento dos votos mais um, para que o lugar fique com o segundo. Um outro paradoxo dos sistemas que, assim como o majoritário, apresentam a opção entre somente dois candidatos ou grupos, pode ser eficazmente ilustrado Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 168 Piergiorgio Odifreddi com o exemplo dos sorveteiros (sem o intento de denegrir ninguém). Suponhamos, assim, que nos encontramos em uma praia ensolarada ao longo de um quilômetro, plena de banhistas acalorados, quando chegam dois sorveteiros vendendo seus produtos. Para os banhistas, o mais sensato seria que ambos se colocassem a 250 metros do extremo da praia, ou seja, a um quatro e três quartos. Dessa maneira, de fato, nenhum banhista teria de caminhar mais de 250 metros para alcançar o mais próximo dos sorveteiros. Mas estes pensam em termos diversos: a eles convêm se colocar o mais próximo possível entre eles para disputarem os banhistas da zona intermédia, visto que aqueles que estão nos extremos irão, de qualquer modo, comprar o sorvete do mais próximo. Do ponto de vista dos sorveteiros, a sistematização mais racional é, portanto, que ambos se situem no centro da praia. É o que em regra ocorre para os candidatos ou grupos dos sistemas majoritários consolidados, que acabam por resultar indistinguíveis em seus programas políticos. O paradoxo reside, obviamente, no fato de que não há sentido em se incomodar com a escolha entre dois candidatos que propõem o mesmo programa. Retornamos, assim, ao ponto de partida: que as pessoas racionais não teriam motivos para ir votar. Mas se apenas os irracionais votam, não podemos depois nos surpreender com os resultados das votações, nem com a consequente série de juízos sobre a democracia com a qual iniciamos a discussão. Para terminar com uma boa palavra, devemos admitir que ao menos uma vantagem a democracia tem: agora se contam todos os votos, enquanto outrora votavam apenas os Condes13. 13 N.T.: trocadilho com os termos em italiano referentes a “contar” (contare) e “Condes” (Conti). 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