View - Sintese

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View - Sintese
Educação e
Racismo
Entrevista com Andrea
Depieri (parte II)
Cinema no
Portela
Político-Pedagógica
do SINTESE
www.sintese.org.br
nº 41 - Sergipe - janeiro e fevereiro - 2016 R$ 5,00
Revista de Formação
À FLOR DA PELE
NA BUSCA PELA
IGUALDADE
1
2
primeiras palavras
As lutas das mulheres no mundo
Nada de lembrancinhas e presentes, queremos direitos. O mês de março – em que se
celebra o Dia Internacional das Mulheres – é
um mês de reflexão e ação concreta sobre os
direitos das mulheres, sobre a luta das mulheres por respeito, dignidade, justiça e igualdade
de direitos. É um período para debater e refletir sobre a insistente desigualdade de gênero no
mundo do trabalho, discutir e definir ações de
combate à violência contra a mulher e defender a participação das mulheres nos espaços
de decisão do seu bairro, da sua cidade, do seu
estado e do seu país. É um momento para resgatar e manter viva a história e a memória de
mulheres lutadoras de todo o mundo.
É com essa compreensão sobre o Dia Internacional das Mulheres, e buscando dar a
sua contribuição para o fim das desigualdades
e da opressão de gênero, que esta edição da
Revista Paulo Freire presta a sua homenagem
às mulheres. Mas frise-se: a homenagem aqui
é ao protagonismo das companheiras lutadoras que, no seu cotidiano, persistiram e persistem na defesa de um mundo sem opressões
e com todos os direitos garantidos a todas
as mulheres. Para isso, a edição que acaba de
chegar às suas mãos apresenta diversos conteúdos e opiniões sobre temas variados relacionados aos direitos das mulheres.
Um dos temas que ocupou o centro do
debate político em Câmaras de Vereadores
e Assembleias Legislativas de todo o país no
final do ano passado foi a discussão sobre a
“ideologia de gênero” na educação. Avaliamos que o tema, de um modo geral, foi tratado não pela perspectiva teórica e política, mas
sim a partir de um viés fundamentalista que
demonstrou uma clara interferência de grupos religiosos nas políticas públicas. Por isso,
aqui, buscamos descortinar o que realmente
estava em jogo e o que significa e representa,
na essência, abordar questões de gênero e sexualidade nos ambientes educacionais.
Atual também é o crescimento das refle-
xões acerca do feminismo negro. A jornalista
e pesquisadora sergipana Laila Thaíse nos ajuda a conhecer a trajetória do feminismo negro
e como trazer para a ordem do dia as questões
referentes às mulheres negras e como a intensa produção de intelectuais e militantes contribuíram para o surgimento de mais organizações e para a fomentação, ainda não suficiente,
de políticas públicas para o segmento.
Trazemos também nesta edição um breve
histórico das mais distintas concepções teórico-históricas sobre o feminismo no mundo,
apresentando as principais diferenças entre
cada perspectiva e a importância de cada para
a luta por igualdade.
Um dos maiores entraves à conquista de
direitos pelas mulheres é a subrepresentação
feminina nos espaços da política institucional. É o que afirma a mestre em Comunicação Ana Carolina Westrup em artigo escrito
originalmente para esta edição da Revista
Paulo Freire. Como saída, a pesquisadora
defende: “uma reforma política ampla, que
assuma o desafio de equilibrar o jogo político entre homens e mulheres no parlamento
brasileiro, é fundamental para a ampliação de
direitos voltados para as mulheres, e sobretudo, para a quebra de paradigma sobre qual
é o lugar da mulher na sociedade brasileira”.
Por fim, a Revista Paulo Freire abre espaço para a relação entre mulheres, política e
cultura com dois textos: o primeiro uma sintética resenha sobre o filme “As Sufragistas”,
que narra a luta de mulheres inglesas pelo
direito ao voto e o segundo faz um recorte
histórico da vida da artista Elza Soares, a partir do lançamento do seu mais novo CD, “A
Mulher do Fim do Mundo”.
Boa leitura e viva a luta das mulheres em
todo o mundo!
Revista de Formação Político-Pedagógica do SINTESE
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Presidenta do SINTESE
onde achar
Classes e Luta de
Classes
Entrevista
Culturas
silenciadas
04
06
11
Polícia e violência
nas escolas
Relações étnico-raciais
na escola
Fechar escolas?
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Cinema no Portela
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Saber e Poesia
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ASSINATURA SOCIAL - R$ 150 (12 exemplares)
ASSINATURAANUAL NÃO FILIADOS - R$ 100 (12 exemplares)
ASSINATURAANUAL NOVOS-FILIADOS - R$ 60 (12 exemplares)
ASSINATURAANUAL FILIADOS - R$ 60 (12 exemplares)
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Formação
Classes e luta de classes:
nascimento do capital
Wladimir Pomar*
Os recursos monetários acumulados pela classe comercial e por parte
da nobreza endinheirada inglesa só se
transformaram em capital quando tiveram uma aplicação produtiva. Isto é,
quando o dinheiro passou a comprar
armazéns, ferramentas, equipamentos
de trabalho, matérias primas e, principalmente, força de trabalho livre, dando início a um novo modo de produzir.
Utilizando forças humanas de trabalho, compradas livremente, que colocavam em funcionamento as ferramentas
e os equipamentos de sua propriedade,
os comerciantes conseguiam fazer com
que as matérias primas fossem transformadas em produtos. Assim, apesar
da acumulação de riqueza que levou ao
capital ter sido realizada totalmente por
meios extra-econômicos, a partir do
momento em que tal riqueza se uniu ao
trabalho, tudo tendia a funcionar estritamente através de regras econômicas.
4
A rigor, não havia mais necessidade de
outras ações que também não fossem
econômicas.
O dinheiro, ou capital dinheiro,
passou a ser o intermediário universal.
Ele permitia adquirir ferramentas, máquinas, galpões, matérias primas e outros meios de produção, transformando-se em capital constante, ou bens de
capital. Além disso, o dinheiro também
passou a comprar a força humana de
trabalho pelo tempo necessário para
colocar em funcionamento as ferramentas e as máquinas, transformando-se em capital variável.
Durante o tempo pago pelo capital variável, o trabalhador transformava as matérias primas num número
determinado de produtos vendáveis,
adicionando a tais produtos um valor
superior ao capital variável que lhe era
pago. O que permitia ao comerciante,
no ato de venda, não só recuperar o
custo da amortização das ferramentas,
máquinas e matérias primas, mas tam-
bém extrair um lucro daquele valor extra adicionado pelo trabalhador.
Nessas condições, as relações entre trabalhadores sem-propriedade de
meios de produção e comerciantes
proprietários de meios de produção
passaram a ser uma relação entre homens livres, mediada pelo salário, ou
capital variável. Isto é, por uma quantidade de dinheiro supostamente equivalente ao trabalho (ou quantidade de
produtos) realizado pela força humana.
Tais relações eram qualitativamente diferentes das relações extra-econômicas
existentes no escravismo e no feudalismo.
Portanto, sem ter qualquer consciência do que estavam gerando, os comerciantes ingleses que acumularam
riquezas durante o período de expansão mercantil deram nascimento a uma
nova forma ou modo de produzir, e a
uma nova relação social. Isto representou uma revolução econômica, social,
cultural e política mais profunda do que
todas as ocorridas anteriormente. Mas
tal revolução só foi possível porque,
na Inglaterra, a acumulação de recursos monetários ocorreu paralelamente
a uma profunda revolução agrícola no
sistema feudal. Essa revolução, além
de introduzir novas técnicas e relações
sociais mediadas pelo dinheiro, expropriou massas populacionais imensas e
as jogou na vagabundagem, isto é, as
transformou em ralé.
A Espanha, a China e vários outros
reinos europeus e asiáticos que haviam
avançado no feudalismo, ao contrário, não realizaram qualquer revolução
desse tipo. Mantiveram intocado seu
sistema feudal, ou o reforçaram, intensificando a submissão das massas
camponesas à terra e aos senhores fundiários. A França, no entanto, mesmo
sem haver mudado o sistema feudal,
ingressou rapidamente na produção
manufatureira de bens de luxo. Nessas
condições, o reino francês viu serem
acirradas, de forma extremamente conflituosa, as contradições entre a necessidade de forças de trabalho livres para
as manufaturas e a manutenção dessas
forças amarradas aos feudos.
Certamente por isso, mais do que na
Inglaterra, a necessidade de trabalhadores livres na França tenha se tornado
uma bandeira radical de luta da burguesia comercial e manufatureira contra os
feudais. Não por acaso, foi na França
que os slogans de liberdade, igualdade e
fraternidade foram empunhados pelos
representantes ideológicos e políticos
da incipiente classe burguesa. E que a
reforma agrária, a extinção do feudalismo e a libertação do campesinato tiveram um caráter social e politicamente
muito mais revolucionário do que na
Inglaterra.
Apesar disso, seus efeitos foram
idênticos. Isto é, criaram o mesmo
novo modo de produzir, as novas relações de produção e as novas classes
sociais, embora por caminhos diferentes. Na Inglaterra, os embates entre a
classe burguesa comercial e a classe
fundiária nobre, embates várias vezes
atravessados pela interferência radical
dos camponeses diggers e levellers, não
levaram à extinção da nobreza fundiária. Esta já havia se tornado uma fração
da burguesia mercantil, permitindo um
acordo para a manutenção da monar-
quia constitucional. Na França, ao contrário, aqueles embates levaram à revolução política violenta para derrubar
a monarquia, proclamar a república,
implantar a ditadura da pequena-burguesia e instituir o terror para eliminar
a nobreza feudal.
Porém, tanto na Inglaterra quanto
na França, a burguesia comercial sofreu
uma clivagem à medida que o sistema
manufatureiro original desembocou no
sistema industrial, com a revolução técnica da máquina e vapor e, depois, da
eletricidade. Ocorreu uma importante
divisão entre as atividades industriais,
comerciais e financeiras, resultando no
fracionamento na classe capitalista burguesa. A burguesia industrial passou a
predominar sobre as demais frações. O
mesmo tipo de fracionamento ocorreu
na classe trabalhadora assalariada, com
sua fração industrial predominando sobre as demais, seja em virtude da maior
demanda da indústria por trabalhadores, seja pelo fato de que as fábricas
ofereciam condições mais favoráveis
para a conexão, a organização e a luta
dos operários.
Olhando com atenção a experiência histórica de nascimento do capital e
sua evolução em capitalismo, podemos
concluir que a burguesia, isto é, a classe
capitalista, surgiu da classe comercial
presente no feudalismo. Essa classe
comercial, em aliança com parte da
nobreza feudal monárquica de alguns
reinos, acumulou riquezas no processo
de expansão marítima e predação de
outros povos. Isso lhe permitiu ingressar na manufatura, aproveitando-se da
massa ralé expropriada dos campos,
seja pela ação da própria nobreza, seja
pela extinção revolucionária dos feudos. No seu processo de evolução, a
classe mercantil transformou-se em
classe capitalista manufatureira e, depois, em classe capitalista industrial,
financeira e comercial.
Já os excedentes populacionais provenientes do campesinato feudal transformaram-se em ralé, ou diretamente
em classe trabalhadora assalariada. A
ralé, ou parte considerável dela, por sua
vez, também se transformou em classe
trabalhadora assalariada à medida que a
burguesia comercial se tornou burguesia manufatureira e industrial e demandou mais forças de trabalho.
Essas metamorfoses de umas classes
em outras são típicas dos processos de
evolução dos modos de produção e das
formações sociais. E sempre estiveram
relacionados com a propriedade dos
meios de produção e com as relações
de produção que cada propriedade específica gera. A propriedade fundiária
do sistema escravista promoveu uma
relação de produção baseada na propriedade privada sobre os trabalhadores,
como se meios de produção fossem. A
propriedade fundiária do sistema feudal
promoveu uma relação de produção baseada na propriedade privada legal (real
ou concedida) sobre o solo, mas não
formalmente sobre os trabalhadores,
que eram proprietários de meios de produção, mas não da terra.
O capitalismo subverteu tudo isso,
ao restringir sua propriedade privada
aos meios de produção e estabelecer
uma relação de produção com homens
livres proprietários de força de trabalho, mediada pelo salário, ou seja, por
parte de seu capital. Isto, no entanto,
que parece ser a base para a divisão
social e para a definição das classes
sociais sob o capitalismo, tem sofrido
constantes tentativas de revisão.
Primeiro, porque o capitalismo,
mesmo onde se desenvolveu mais rapidamente, não eliminou todas as classes anteriores. Muitas vezes as manteve
como adereços econômicos, políticos
ou culturais, a exemplo das nobrezas
de vários países europeus que se tornaram capitalistas, e da persistência do
patriarcalismo, mesmo modernizado.
Depois, porque fez uso amplo de formas extra-econômicas de exploração
de seus trabalhadores e de outros povos, inclusive utilizando-se do escravismo e de sistemas feudais ou aparentados, para obter lucros ainda maiores,
em especial a partir da segunda onda
de colonização imperial do século 19.
Finalmente porque a constante
expansão do capitalismo pelo planeta
tem se dado de forma extremamente
desigual, descombinada e conflituosa,
como veremos adiante.
*Wladimir Pomar é escritor e analista político. Este é o quarto texto da série “Classes e
luta de classes”, em que o autor analisa o tema
a partir do longo processo de desenvolvimento
econômico, político, histórico e social do Brasil.
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Opinião
“Ideologia de gênero” na educação:
do que estamos falando?
D
urante os últimos meses de
2015, Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas de todo o país selaram
uma interferência bastante perigosa do
pensamento religioso conservador sobre
as políticas públicas de educação, colocando em xeque o princípio constitucional da
laicidade do Estado.
Nas votações dos planos de educação
por todo o Brasil, houve um movimento
bastante articulado para suprimir das diretrizes educacionais qualquer compromisso
expresso com o combate das desigualdades de gênero e de sexualidade.
Um dos projetos de lei mais polêmicos
dos últimos anos, o PNE define as metas e
as estratégias da educação brasileira para os
próximos dez anos, orientando as políticas
educacionais em todos os níveis. Primeiramente truncado por conta das disputas em
torno dos 10% do PIB, nos debates nos
municípios e estados foi a vez da investida
de setores conservadores contra a chamada
“ideologia de gênero”.
A rigor, o PNE fala pouco sobre gênero. Essa pequena palavra – que abriga um
poderoso conceito – consta basicamente
em uma frase do projeto de lei. No artigo
2º, voltado para a superação das desigualdades educacionais, há um destaque que
acrescenta: “com ênfase na promoção da
igualdade racial, regional, de gênero e de
orientação sexual”. Pronto. Esta foi a deixa que o fanatismo religioso, personificado
em figuras como Marco Feliciano (PSC-SP) e Marcos Rogério (PDT-RO), precisava para atrasar mais uma vez a votação
do projeto.
Críticas de setores conservadores e fundamentalistas têm denunciado a tal “ideologia de gênero”, defendida pelo PNE
quando este assume um compromisso
com a “igualdade”. Esses grupos temem
pela “destruição da família”, os “valores e
morais” alicerçados na “lei natural” e, evidentemente, o avanço das pautas LGBT,
dentre as quais a diversidade sexual, a criminalização da homofobia e o progresso
em torno da despatologização do segmento trans* – pontos, na verdade, que transcendem a escola.
6
Aqui, voltamos à velha discussão que já
vem sendo encampada neste país há décadas. Como cidadãos e cidadãs, temos a infelicidade de ver no poder uma corja de políticos absolutamente descomprometidos
com a igualdade, a tolerância, o respeito à
diferença e, pasmem, à própria racionalidade. O obscurantismo tem sido defendido
à luz do dia, e as imagens que vemos de
jovens empunhando cartazes contra a “ideologia de gênero” e, pior ainda, reforçando a violência que é uma definição única e
imposta de mulher, homem, família, moral
etc, é de chocar.
Ignora-se que a igualdade de gênero é
tão legítima, necessária e importante quanto à igualdade racial ou regional. Trata-se,
pois, de discutir a sub-representação política das mulheres, as desigualdades no mercado de trabalho, a assustadora violência
nas ruas e domicílios, a objetificação sexual
na mídia, entre outras. Acima de tudo, a
igualdade de gênero deve ser um valor democrático, tão legítimo quanto à liberdade
religiosa que, diga-se passagem, nunca foi
posta em xeque por nenhum setor progressista neste país. Até porque os mesmos
grupos que defendem a igualdade de gênero são aqueles que apoiam o Estado laico
– a instituição mais democrática no tocante
à liberdade religiosa em uma nação multicultural.
Nesse sentido, gênero é temido porque,
de fato, é um instrumento valoroso. Longe
de ser um conceito puramente acadêmico,
gênero já se incorporou no jargão popular, nos movimentos sociais e nas políticas
públicas. Essa rejeição à ideia de gênero
reflete um sintoma de uma ordem social
que está se sentindo ameaçada – a título de
exemplo, casos similares aconteceram na
França. Dessa forma, procuram criminalizar não só os indivíduos ditos “diferentes”,
como também seus termos, expressões e
conceitos que dão voz a essas “diferenças”.
Gênero é um deles, mas não o único.
Como já reiteramos inúmeras vezes, gênero é um artifício teórico, criado na segunda metade do século passado, para designar
as construções sociais sobre o masculino e
o feminino. Em pouco tempo, o conceito
de gênero foi apropriado pelo movimento
feminista e se transformou em uma importante ferramenta analítica e política, com a
finalidade de desnaturalizar as opressões de
gênero, descontruir verdades absolutas e
imutáveis sobre mulheres e homens, derrubar as falsas fronteiras que nos demarcam em estereótipos cruéis para os quais
somos levados a acreditar desde pequenos,
separando-nos em pequenas caixinhas que
limitam nossas individualidades, potencialidades e perspectivas.
Portanto, gênero não é uma ideologia.
É, ao contrário, a desconstrução de uma
ideologia que imputa à natureza, à biologia e supostamente a características inatas
dos indivíduos, a carga pesada e histórica
de desigualdades entre homens e mulheres, cis ou trans. Os movimentos sociais
continuarão a insistir nesse ponto, até que
cada resquício de obscurantismo de cunho
fundamentalista seja derrubado e possamos, por fim, ter uma educação não apenas pública e de qualidade, como também
de uma sociedade que pretende se livrar de
desigualdades, violências e opressões – de
gênero ou de qualquer outra origem.
Conjuntura
Feminismo Negro: Descentralizando
as lutas de gênero
Laila Thaíse*
Ao longo dos anos muitas mulheres de diversas realidades buscaram no feminismo a teoria para
compreender e combater o machismo cotidiano que engessa nossas
vidas, no entanto, muitas de nós só
encontramos como referência o feminismo europeu, mas não menos
importante. Referências como Rosa
Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai – que muito nos
ensinou na sua obra “A Nova Mulher e a Moral Sexual” sobre as armadilhas do machismo nas relações
afetivas que construímos, sobre a
importância da desconstrução de
um amor que aprisione e que saia
dos moldes de uma relação alimentada pela moral burguesa. Sem dúvida uma leitura pertinente onde é
possível aliar a discussão de gênero
e de classe tão fundamentais.
Não é possível entender
que as mulheres negras
vivenciam as mesmas
experiências, dentro do
segmento é preciso considerar outros fatores que
determinarão as formas
de opressão que essas
mulheres vão enfrentar
Assim, também é inegável a
contribuição de Simone de Beauvoir para questionar esse lugar da
mulher, o papel atribuído por essa
sociedade patriarcal e a necessidade de se romper com a cultura
machista que determina que é dever da mulher constituir família,
gerar filhos e casar. Na obra clás-
sica de Simone “O Segundo Sexo”,
ela questiona a ideia biológica do
ser mulher e na famosa passagem
“não se nasce mulher, torna-se”, é
possível refletir que o que nos torna mulher não é o sexo, não são
as condições biológicas, é a nossa
continua>>
7
No Brasil, o feminismo
negro começa a surgir
no movimento negro
por volta dos anos 70,
após questionamentos
de mulheres militantes
que eram silenciadas nos
espaços e tinham suas
pautas feministas pormenorizadas nas instâncias
de decisão
construção social e cultural, a forma como nos enxergamos e nos
colocamos no mundo.
De fato, todas as contribuições
foram e são fundamentais para
aquelas que desejam conhecer as
teorias que norteiam a militância
feminista. Mas nessa seara o que
encontramos são teóricas brancas
falando de uma realidade que geralmente é distante de outras experiências enquanto mulher. Para
as mulheres negras, sejam as estadunidenses ou as brasileiras, tais
reflexões não suprem as demandas
de suas vidas pela própria trajetória
distinta da trajetória de mulheres
brancas.
Na vida das mulheres negras
existe o peso que o racismo impõe,
Sueli Carneiro no seu artigo “Enegrecer o feminismo” nos provoca a
uma importante reflexão. Quando
o feminismo ‘tradicional’ se propõe
a romper com o mito da fragilidade
feminina, de que mulher estamos
falando, já que a experiência de viver em uma sociedade que passou
por um sistema escravocrata não
permitiu que as mulheres negras
em qualquer momento da história
ocupasse esse papel.
A provocação segue ao longo do
texto apelando para que pensemos:
qual é a mulher que o feminismo
tradicional representa quando coloca que devemos combater o papel de “rainha do lar”, se a mulher
negra continua longe dos estereótipos da “mulher para casar” e onde
a maioria não consegue cuidar da
sua casa e dos seus filhos (quando
os têm) porque muitas vezes estão
em trabalhos precarizados, onde
são exploradas e impedidas de cuidar até de si mesmas.
Ao questionar esse lugar único e
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imutável da condição da mulher,
Sueli Carneiro também resgata o
pensamento do feminismo negro
que tem suas origens com as teóricas feministas dos EUA.
Foi por volta da década de 80
que as feministas negras norte americanas começaram a produzir teorias que conseguissem responder às
suas demandas e os seus questionamentos. Fugindo da concepção
de mulher como categoria única e
assim rejeitando o essencialismo
dos debates, as teóricas feministas
negras como Patrícia Hill Collins,
bell hooks, Audre Lorde, Kimberle
Crenshaw e tantas outras investiram seus estudos e militâncias no
entendimento da mulher e as interseccionalidades, compreendendo a
existência de especificidades que
diferenciarão o conjunto das mulheres.
Não é possível entender que as
mulheres negras vivenciam as mesmas experiências, dentro do segmento é preciso considerar outros
fatores que determinarão as formas
de opressão que essas mulheres
vão enfrentar. Existem as campesinas, as ribeirinhas, as mulheres da
cidade, aquelas que vivem em situação de rua, presidiárias e tantas
outras variáveis como a orientação
sexual, o fator geracional, religioso
e outras.
O entendimento de que era preciso reivindicar a equidade de gênero e a luta por direitos perpassava
pela compreensão de que só seria
possível através da interseccionalidade e que os grupos vulneráveis na
sociedade precisavam contar a sua
história através de sua perspectiva e
não mais sobre a do colonizador, é
o que as teóricas norte-americanas
já citadas denominaram standpoint
theory.
Sobre o standpoint theory, Luiza
Bairros (1995) em seu artigo “Nossos Feminismos Revisitados” afirma que “a experiência da opressão
sexista é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação
onde raça, gênero e classe social
interceptam-se em diferentes pontos” (Bairros, p.4, 1995).
Com isso, a pesquisadora, militante feminista anti-racista e ex
ministra nos diz que não existe hierarquia entre as opressões, assim
como outra teórica feminista negra,
Audre Lorde, reafirmando que o
que existe são experiências diferentes a partir do lugar de onde se
fala, considerando que o racismo, o
sexismo, o capitalismo e a lesbobitransfobia ainda se faz presente na
sociedade, as mulheres negras pobres acumulam opressões em sua
história.
No Brasil, o feminismo negro começa a surgir no movimento negro
por volta dos anos 70, após questionamentos de mulheres militantes
que eram silenciadas nos espaços e
tinham suas pautas feministas pormenorizadas nas instâncias de decisão. Com isso, resolveram romper e
afirmar que o combate ao racismo
deveria levar em consideração a experiência das mulheres negras.
Militar pelo fim do racismo não
garantia a essas mulheres o fim de
outras opressões vividas, o machismo ainda rondava as organizações do movimento negro. No
Movimento Negro Unificado Por
(MNU), a militante e filósofa Lélia Gonzales foi uma das pioneiras a reivindicar que a organização
começasse a pautar o machismo,
considerando que a maioria das
mulheres vítimas de violência eram
as negras, eram elas que recebiam
os piores salários e estavam localizadas nos empregos mais subalternizados, ou seja, eram as mulheres
negras que estavam na base da pirâmide social.
Por outro lado, o movimento feminista ainda era majoritariamente
branco e não conseguia dar visibilidade às demandas das mulheres
negras, muitas vezes indo de encontro ao que o segmento almejava. Enquanto pautavam o uso da
pílula, o aborto e questionavam
relações monogâmicas, as mulheres
negras estavam na luta contra o extermínio da juventude negra e pobre, estavam tentando sobreviver
à violência institucional que todo
dia matava (e ainda mata) um filho,
um primo ou alguém de sua família. Não que as pautas se anulassem,
mas a luta contra o racismo entendendo que deve estar aliada a luta
contra o machismo não era prioridade do movimento feminista.
O movimento de mulheres negras no Brasil foi ganhando corpo
e teoria, militantes como Beatriz
Nascimento, Lélia Gonzales, Luiza
Bairros e as mais recentes Jurema
Werneck, Sueli Carneiro, entre outras, começaram a formular para as
mulheres negras brasileiras, onde
a partir das vivências e trajetórias
elas pudessem buscar mecanismos
de resistir, de provocar e fomentar políticas públicas que conseguissem responder as necessidades
dessas mulheres. Sobre esse novo
contorno do movimento feminista
no Brasil, com recorte racial, Sueli
Carneiro acrescenta que:
Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as
tradições de luta do movimento negro,
como a tradição de luta no movimento
de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição
específica de ser negra. O atual movimento de mulheres negras ao trazer
para a cena política as contradições
resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero promove
a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negro e de mulheres, tornando-as assim mais representativas do
conjunto das mulheres brasileiras, e,
por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindicações
do movimento negro (CARNEIRO,
2003, p.50).
A urgência em trazer para a ordem do dia as questões referentes
às mulheres negras e a intensa produção de intelectuais e militantes
contribuíram para o surgimento de
mais organizações e para a fomentação (não suficiente) de políticas
públicas para o segmento.
O Brasil passa atualmente por
um momento onde os movimentos
sociais estão ganhando amplitude e
visibilidade, em novembro de 2015
Brasília sediou a I Marcha Nacional
A urgência em trazer
para a ordem do dia as
questões referentes às
mulheres negras e a intensa produção de intelectuais e militantes contribuíram para o surgimento
de mais organizações e
para a fomentação (não
suficiente) de políticas públicas para o segmento
de Mulheres Negras que reuniu milhares de mulheres de todos os estados e regiões com o mote “Marcha das Mulheres Negras Contra o
Racismo, a Violência e Pelo Bem
Viver”. A marcha foi recebida pela
presidente e representantes dos
movimentos e organizações presentes entregaram uma carta com
as demandas do segmento.
Sergipe enegrecendo o feminismo - Acompanhando essa
onda crescente de mulheres negras
buscando formação política e o conhecimento da história de luta das
suas ancestrais, as mulheres aqui em
Sergipe têm mostrado que a construção coletiva gera bons frutos e
se expande. É visível o fenômeno
do uso das redes sociais como ferramenta de formação política por
milhares de mulheres negras em
todo o país. São páginas no facebook como a Geledés, Blogueiras
Negras, Que Nega é essa?, Ofensiva Negritude e tantas outras que
compartilham textos de grandes
militantes históricas do feminismo
negro, algumas abordam a importância de trazer a discussão para as
escolas e outras falam como a estética também é política.
Em Sergipe têm ganhado destaque as ações dos movimentos
Crespas e Cacheadas e Por Mais
Turbante nas Ruas, ambas abordam o combate ao racismo através
da aceitação do cabelo da mulher
negra. O primeiro surgiu em 2014
e consiste em uma dinâmica de encontros marcados através do grupo
do facebook e já chegou a reunir
centenas de mulheres negras nos
parques da cidade para que pudessem se conhecer, compartilhar suas
histórias, discutir sobre as questões
raciais e aprender a cuidar dos cabelos de forma natural. O segundo
foi criado por estudantes da univer-
sidade e militantes com o intuito de
viralizar o uso do turbante.
Em 2014 também surgiu a “Auto
Organização de Mulheres Negras
de Sergipe Rejane Maria”, fruto do
anseio de diversas mulheres que
buscavam se organizar politicamente em um movimento que conseguisse ter como objetivo o combate ao racismo, machismo e outras
formas de opressão, entendendo a
importância de uma militância interseccional.
Atualmente a organização desenvolve ações junto ao público
infantil e juvenil, discutindo sobre
o racismo midiático e promovendo
reflexões sobre identidade e representação, através da exibição de
filmes e facilitando oficinas educativas.
Referências:
BARBOSA, Paulo Corrêa. Lélia
Gonzalez: o feminismo no palco da história/Paulo Corrêa Barbosa. – Brasília:
Abravídeo, 2015.
CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o
feminismo: a situação da mulher negra na
América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS;
TAKANO CIDADANIA (Orgs.).
Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em
Movimento. Estudos Avançados 17(49),
2003.KOLLONTAI, Alexandra. A
Mulher e a Nova Moral Sexual. São
Paulo: Expressão Popular, 2007.
Laila Thaíse é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal
de Sergipe e militante da Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe
Rejane Maria
9
Capa
Movimentos feministas e a
busca da igualdade
O
conhecimento das condições históricas através dos
quais os movimentos surgiram se faz necessário para
que se verifiquem as circunstâncias do seu
maior ou menor sucesso em determinados lugares. O desconhecimento desses
aspectos nos faz perder de vista o campo
da luta, diante da opressão da mulher e a
busca de suas superações.
Isabel Fomm de Vasconcellos, em seu
livro “Todas as mulheres são bruxas”,
nos ilustra que a sociedade celta da baixa
Idade Média era constituída por mulheres
livres e sábias, sacerdotisas dos templos e
druidisas, elas dominavam a arte da cura
através das ervas e usufruíam da igualdade de direitos em relação aos homens.
Entretanto toda essa liberdade, que lhe
conferiam poder político e sacerdotal, não
combinava com a visão que os romanos
cristãos tinham da mulher. A partir do
momento em que os celtas começaram
a ser dominados, elas foram perseguidas,
amaldiçoadas e queimadas na fogueira da
Santa Inquisição. Foram seis séculos de
perseguição às mulheres.
Foi através da Revolução Francesa,
marco político e processo revolucionário
fundamental para a civilização ocidental,
que diversos paradigmas começaram a ser
quebrados e questionados. Em que pese,
a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão proclamar a igualdade, fraternidade e liberdade, nos deparamos com a
separação do gêneros, as mulheres foram
mais uma vez marginalizadas e destituídas
de participar das decisões políticas. No
momento em que Olympe de Gouges
“grita” a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, sua voz é abarcada com a
forca, o que deixa claro que uns eram mais
iguais que outros.
Contudo é neste contexto que as mulheres começarão a reivindicar seus direitos para com os seus problemas, e com
isto definir seu papel na sociedade. São
ações que se desenvolveram entre o século XVIII e XIX, através das quais a causa
feminina ganhará voz para se consolidar
no século XX.
O movimento feminismo, expressão
10
creditada à Charles Fourie, socialista e filósofo francês, em 1837, é uma luta política,
tendo seu caráter a busca da igualdade de
gênero e não uma superação do homem,
mas sim um compartilhamento de vida
pública e privada.
É com as décadas de 1960 e 1970 que
o feminismo ganhará força na Europa e
EUA, onde se encontram em plena efervescência cultural e política, surge neste
cenário o livro de Simone de Beauvoir, O
Segundo Sexo, que colocará em discussão
todos os membros conservadores de uma
sociedade patriarcal. No Brasil, estávamos
em plena ditadura, sofrendo fortemente
a repressão militar, mas isso não afastou
que fôssemos influenciadas por tal movimento, ao contrário, mulheres letradas, de
classe alta que, entrando em contato com
as feministas fora do país, trouxeram suas
primeiras impressões e reações para a sociedade.
Com o processo de redemocratização
do país em 1985, é contemplado na Carta
Magna, sob princípios basilares dos Direitos e Garantias fundamentais, a igualdade
entre homens e mulheres, com seus direitos e obrigações, nos termos da Constituição, isto que se encontra consagrado no
art. 5º, I da CF/88.
Este direito fundamental à igualdade entre os gêneros, terá por conteúdo
principal o direito de resistência contra
tratamento desiguais, proíbe-se a distinção feita em razão do critério “sexo” ou
“gênero”.
De acordo com Leonardo Martins
(2014, p. 235): “O caráter peculiar da
igualdade garantida a homens e mulheres
titulares do direito à igualdade entre os gêneros é que, ao contrário do direito geral à
igualdade, cujas principais concretizações
se dão pela proibição da discriminação
baseada na cor, raça, origem etc., não se
trata de uma simples proibição de discriminação negativa, mas também de uma
proibição de discriminação positiva ou
proibição de privilégios”.
No cotidiano feminino essa discriminação que é rechaçada pela Constituição é
presença diária em várias frentes, desde o
âmbito familiar, onde muitas ainda sofrem
da violência doméstica, por seus maridos
ou companheiros, perpassa ainda por sua
cor, raça, onde como exemplo a mulher
negra é duplamente oprimida em seus
direitos, uma por ser mulher e outra por
ser preta. Temos, de acordo com o IBGE,
uma disparidade salarial, onde a diferen-
No cotidiano feminino essa
discriminação que é rechaçada pela Constituição é
presença diária em várias
frentes
ça chega a atingir 28%, ou seja, homens
e mulheres fazendo o mesmo trabalho,
porém com remuneração diferenciadas.
A sociedade brasileira ainda mantém um
cultura patriarcal, machista e muitas vezes
de forma mascarada.
Ainda que estejamos em luta contra
as arbitrariedades que a sociedade nos
impõe, a Constituição Federal foi um
marco nesta superação do tratamento da
desigualdade fundado no sexo, pois equiparou os direitos e obrigações entre mulheres e homens, mas sobretudo assumiu
metas de adoção de políticas públicas que
levem o Estado a uma condução positiva,
através das ações afirmativas.
As mulheres se uniram em várias vertentes, formaram sua luta, cada movimento dentro dos movimentos feministas, sim
no plural porque são várias, reivindicando
suas causas e direitos. Há várias matizes
feministas que buscam seus ideais, suas
reivindicações, entre algumas que se despontam hoje:
1) existe o feminismo negro, que teve
em Angela Daves, teórica feminista negra
norte-americana seu início, onde a mulher
negra sente-se violada em seus direitos
como cidadã através não somente de seu
gênero, mas de sua raça, muitas até pela
intolerância religiosa devido à desvalorização de religiões de matriz africana.
Outrossim, o 2) feminismo radical, que
ganhou força a partir do século XXI, através da internet. Este movimento acredita
que toda a opressão feminina se deva a
não atuação dos papeis sociais inerentes
aos gêneros, quem assim os defende são
jovens denominadas “radfem.
Dentro do feminismo radical existem
algumas divisões, como por exemplo a
TERF, sigla para “Trans-Exclusionary
Radical Feminists”, ou seja, feministas
radicais que excluem transexuais. Essas
feministas são completamente contra a
participação masculina por considerar os
homens opressores por natureza.
Há o 3) feminismo interseccional, ou
pós moderno, no qual seu objetivo é “costurar” as demandas de gênero com as de
outras minorias, considerando classe social, deficiência física, orientação sexual,
raça, dentre outros. Como exemplo podemos citar o transfeminismo, feminismo
lésbico e o feminismo negro. O que ocorre é que com tamanha diversidade nem
sempre conseguem caminhar em uma
mesma direção. Este movimento é mais
receptivo à participação dos homens.
Por fim temos o movimento 4) das
feministas liberais, nascidas de um envolvimento com o liberalismo clássico
de Adam Smith, elas buscam assegurar a
igualdade entre homens e mulheres na sociedade por meio de reformas políticas e
legais, pregam que as desigualdades de gêneros devem ser vencidas através do combate das injustas situações da via institucional, estão adentrando gradativamente
com representações na via política e econômica, por isso para elas se posicionar
em instituições como congresso, meios
de comunicação e lideranças de empresas
são vitais para a ascensão do movimento
feminista.
Sempre haverá a pergunta, o que é feminismo e o que elas defendem. Diante
do exposto as respostas podem variar
dentro das várias vertentes, ou então pode
até mesmo ser originada sua própria resposta. A busca em comum a todos nós é
o devido respeito a nossa dignidade, tão
menosprezada e dizimada ao longo dos
séculos. Somos chamadas por vários nomes, bruxas, putas, santinhas do pau oco,
todos querem nossa submissão. A cristandade tirou Lilith, a rebelde, aquela que não
quis se subjugar ao primeiro homem da
sua literatura religiosa, e colocou no lugar
dela Eva, que apesar de ter dado a maça a
Adão e levado ao “pecado” foi submissa
a ele.
Por todos os séculos procuraram nos
submeter a obediência sem contestação,
hoje vislumbra-se uma nova era, um novo
tempo de sedimentação diante das várias
lutas que foram travadas e conquistadas,
novas mulheres estão surgindo, cada qual
em seu espaço, com suas reivindicações e
suas buscas por direitos e justiça. No momento não conseguem mais calar nossas
vozes.
Fonte: Portal Geledés
11
Opinião
A ampliação dos direitos das
mulheres passa pela ampliação
da participação política
Ana Carolina Westrup*
A questão da participação política
da mulher no Brasil não tem somente um determinante que revela uma
grande ausência das instâncias formais
de decisão e poder, mas sobretudo, de
questões que envolvem a própria condição de mulher.
Os papéis diferenciados que desempenham ainda hoje homens e mulheres é consequência de um período em
que as mulheres não tinham a sua cidadania plenamente reconhecida e de
um modelo social fortemente marcado
pelo patriarcalismo e pela divisão dos
papeis sociais, que introjeta para as
mulheres a concepção de que a arena
política não é um espaço para ser ocupado ou disputado por elas.
Temos como exemplo uma luta
histórica pelo direito de voto das mulheres. Mesmo com a conquista do sufrágio universal - no caso do Brasil,
em 1932, que a torna elegível e eleitora
- não se altera as condições desiguais,
12
entre homens e mulheres, no processo
político, visto que que a baixa representatividade das mulheres na política
se dá como reflexo de um cultura machista e sexista que se sustenta na retirada do protagonismo da mulher, seja
na esfera pública ou privada.
A própria Lei de Cotas, implantada
no Brasil desde 1995, determinando
que 20% das candidaturas seriam preenchidas por mulheres nas eleições do
ano seguinte, e com o seu aprimoramento traduzido na Lei 9504/97, que
determinou um número mínimo de
30% e no máximo 70% para qualquer
dos sexos para as candidaturas partidárias a partir de então, não alterou a participação das mulheres nos espaços de
poder, pela limitação do sistema eleitoral brasileiro, em que o voto é personalista e não na legenda, sendo assim, imprescindível o apoio dos partidos para
que mais mulheres sejam eleitas, o que
na maioria das vezes não ocorre, pelo
mesmo ciclo vicioso do machismo e
patriarcalismo que também é viven-
Esse panorama agudo da
falta de participação das
mulheres nos espaços de
poder é um dos principais
entraves para avanços
concretos de direitos ligados
a busca pela igualdade de
gênero
ciado nas organizações políticas, sejam
elas de esquerda ou de direita.
Em uma pesquisa realizada pelo
Instituto de pesquisa DataSenado em
parceria com a Procuradoria Especial
da Mulher do Senado, no final de 2014,
aponta que a falta de apoio dos partidos é o principal motivo para haver
poucas mulheres na política, seguida
da falta de interesse por política, pelo
Se o problema na participação das mulheres
na política é um problema estrutural e de nível
mundial, quando nos
deparamos com a realidade brasileira a situação
apenas se agrava
absorção do papel doméstico que a
grande maioria desempenha e a dificuldade de concorrer com homens.
Mulheres na política em números - Se o problema na participação das
mulheres na política é um problema estrutural e de nível mundial, quando nos
deparamos com a realidade brasileira
a situação apenas se agrava. A média
mundial de participação das mulheres
nos parlamentos é de, aproximadamente, 21% das cadeiras, no Brasil, na
atual legislação, das 513 cadeiras na Câmara dos Deputados, 51 são ocupadas
por mulheres e, no Senado, temos 13
mulheres num total de 81 senadores,
o que representa 9% de participação
feminina na Câmara dos Deputados e
10% no Senado.
O mapa sobre “Mulheres na Política 2015”, elaborado pela Organização
das Nações unidas (ONU), fez uma
pesquisa em 188 países e o resultado
é ainda pior. O Brasil ocupa apenas a
124ª posição no ranking em relação à
igualdade de gênero e à participação de
mulheres na vida pública, ficando de
países árabes e africanos. Na América
Latina, o Brasil está à frente apenas do
Haiti.
Já no que diz respeito ao mais recente processo eleitoral no Brasil, o
Instituto de Estudos Socioeconomicos
(INESC) e a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política
realizaram uma pesquisa com os mais
de 25 mil candidatos que disputaram as
eleições em 2014, com o objetivo de
mapear a participação das mulheres,
negros e indígenas.
A pesquisa revelou que no universo
feminino, apesar de serem a maioria
da população brasileira, o percentual de mulheres disputando as eleições
de 2014 se limitam aos 30% impostos
pela legislação eleitoral como cotas de
gênero nos partidos, totalizando 8 mil
candidatas, enquanto os homens representam mais de 17 mil candidatos.
Quando o estudo é feito com dois
recortes, ou seja, das mulheres negras
candidatas, o resultado ainda é mais
alarmante. Do total dos mais de 25
mil candidatos ao processo eleitoral de
2014, somente 14,02% são mulheres
negras.
Ausência e Consequências - Esse
panorama agudo da falta de participação das mulheres nos espaços de poder é um dos principais entraves para
avanços concretos de direitos ligados
a busca pela igualdade de gênero, a
começar pela própria pauta da representação das mulheres no legislativo
brasileiro.
Desde as primeiras discussões sobre
uma reforma política ampla, nos idos
de 2009, que buscasse amenizar a falta de representações das minorias no
parlamento brasileiro, a tentativa de se
instituir o voto em lista fechada com
alternância de gênero foi uma das pautas mais importantes na mudança do
sistema político no Brasil, até agora,
sem eco no Congresso Nacional.
Em 2015 foi lançada pela bancada
feminina do Congresso Nacional a
campanha “Mais Mulheres na Política”, tendo como principal objetivo lutar pela aprovação da PEC 134/2015,
que estabelece reserva mínima de vagas para as mulheres nas próximas três
legislaturas, começando com 10% do
total de cadeiras, ampliando para 12%
e, por fim para 16%, na terceira eleição
após a aprovação da matéria. A PEC
foi aprovada pelo Senado Federal, mas
tem fortes resistências na Câmara dos
Deputados, onde se encontra em apreciação.
Quando tratamos do direito sexual e
reprodutivo das mulheres, temos a clareza do que representa essa ausência.
Em diversos Projetos de Lei que estão
tramitando na Câmara dos Deputados
e no Senado, o principal objetivo das
bancadas conservadores é promover a
criminalização do aborto de qualquer
forma, a partir da “valorização da vida
e da família”.
Os projetos possuem caráter discriminatório e machista, como mostra o PL 5069/13 de autoria do atual
Presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha. Esse projeto de lei
busca criminalizar a propaganda e fornecimento de métodos abortivos, punir quem induzir o aborto (incluindo
agentes de saúde) e estabelecer que a
mulher vítima de estupro procure uma
delegacia antes de ser atendida pelo
sistema público de saúde, restringindo,
assim, as mulheres que sofreram violência sexual.
Ainda na seara de “valorização da
vida e da família”, tramita no Congresso o Estatuto do Nascituro, através do PL 407/2007. O Estatuto do
Nascituro pretende a proibição do
aborto em caso de estupro, em casos
de bebês acéfalos ou mesmo em que a
gravidez represente um rico à saúde da
mulher. Os dois projetos de lei estão
tramitando na Câmara dos Deputados
e já foram aprovados na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara
dos Deputados e tem uma grande perspectiva de ir a Plenário nos primeiros
meses de 2016.
Enquanto isso, o Projeto de Lei
7016/10, que busca a igualdade entre
homens e mulheres no, da deputada
federal Luciana Genro (Psol-RS), proibindo o pagamento de salários diferenciados para homens e mulheres que
exercem funções ou cargos iguais, ainda não saiu da votação nas comissões
Não há dúvidas que a ausência de
participação de mulheres no Congresso, para além de ser um problema de
representatividade em si, afeta diretamente os direitos sociais da mulher.
Por isso, o desafio de garantir uma
reforma política ampla, que assuma o
desafio de equilibrar o jogo político
entre homens e mulheres no parlamento brasileiro é fundamental para a
ampliação de direitos voltados para as
mulheres, e sobretudo, para a quebra
de paradigma sobre qual é o lugar da
mulher na sociedade brasileira.
Lugar de mulher é na política!
*Mestre em Comunicação Social pela
Universidade Federal de Sergipe, integrante
do Coletivo Intervozes e editora do site da
Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política.
13
Debate
“As Sufragistas”: Elas não tinham
hashtags, mas fizeram muito barulho
D
epois de meses em que a
luta pelos direitos das mulheres esteve na boca do
povo --do Enem às hashtags #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto, passando pelos protestos
contra os projetos de lei do deputado
Eduardo Cunha-- é bastante oportuno
que 2015 termine com a estreia de “As
Sufragistas”, filme que resgata uma das
primeiras vezes em que as mulheres se
organizaram como movimento social
para reivindicar seus direitos.
Os direitos, no caso, eram coisas tão
básicas quanto o voto, a participação na
vida política, a guarda dos filhos e a possibilidade de ter propriedades em seus
nomes, coisas que ainda eram negadas
14
às mulheres na Inglaterra do início do
século 20, onde o filme se passa, e também no resto do mundo.
Apesar de o movimento ter ficado
mais conhecido pela reivindicação do
direito ao voto, na verdade as sufragistas lutavam pela igualdade em todos
os terrenos, inspiradas pelos mesmos
ideais iluministas e humanistas que levaram à Revolução Francesa e formaram
a base da “Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão”, mas que ainda
excluíam as mulheres da vida pública.
Nessa luta, as sufragistas acabaram
deixando duas contribuições que vão
muito além do feminismo: a ideia de
solidariedade (em substituição a fraternidade, que significa apenas irmão ho-
mem), e novos métodos de protesto e
luta cívica --como grandes manifestações, greve de fome, interrupção sistemática de oradores com perguntas etc.
“As Sufragistas” mostra todos esses aspectos do movimento através da
história da fictícia Maud Watts (Carey
Mulligan), uma jovem operária que ficou órfã cedo e leva uma vida dura ao
lado do marido e do filho pequeno. Ao
conhecer uma colega de trabalho que
participa do movimento sufragista, ela
vai aos poucos se dando conta das injustiças que sofre diariamente, como o
abuso do patrão, o salário mais baixo do
que o dos homens (apesar de trabalhar
mais horas) e a falta de controle sobre a
própria vida, já que cabem ao marido as
decisões financeiras e sobre o filho.
Sem se tornar panfletário, e focando
mais no drama de Maud do que nos
grandes acontecimentos, o filme dirigido por Sarah Gavron consegue traçar
com sutileza paralelos entre ontem e
hoje, mostrando que não avançamos
tanto quanto algumas pessoas pensam
--podemos votar, sim, mas ainda são
muito poucas as representantes das mulheres na política; o julgamento moral
daquelas que escolhem se dedicar a uma
causa em detrimento da família também
é forte; os salários ainda são menores e
os abusos, frequentes.
Mesmo o direito ao voto não é algo
conquistado há tanto tempo. Na Inglaterra retratada no filme, ele foi obtido
em 1928; no Brasil, em 1932; enquanto
em países do Oriente Médio a conquista
é ainda mais recente, com a Arábia Saudita permitindo apenas este ano que as
mulheres votassem e se candidatassem a
cargos políticos.
Maud é uma personagem fictícia,
mas foi baseada em mulheres bem reais,
algumas delas retratadas diretamente no
filme. Conheça as personagens reais que
inspiraram “As Sufragistas”.
Maud Watts
O movimento sufragista era liderado
principalmente por mulheres burguesas,
mas muitas operárias também se juntaram a suas companheiras mais afortunadas na luta pelo voto e por mais direitos,
como acontece com a fictícia Maud.
Uma das mulheres reais que inspiraram
a personagem foi Hannah Webster Mitchell. Nascida em uma família pobre
em 1872, ela cresceu sem se conformar
com a diferença de tratamento entre
ela e seus irmãos. Inicialmente, considerou o sufragismo uma questão de
classe média, porque havia uma exigência de propriedade, e se envolveu com
o movimento socialista, mas acabou se
juntando à União Social e Política das
Mulheres (WSPU, na sigla em inglês),
organização retratada no filme, e chegou a ser presa após interromper uma
reunião política.
Emmeline Pankhurst
Meryl Streep faz uma participação
especial como a líder da WSPU Emmeline Pankhurst, que inspira as personagens do filme assim como inspirou de
verdade muitas sufragistas inglesas. Ela
fundo a WSPU em 1903, aos 43 anos,
quando já era viúva, com o lema “ações,
não palavras”. Entre 1908 e 1914,
Pankhurst foi presa 13 vezes e entrou
em greve de fome em diversas ocasiões.
Uma das prisões foi por ter assumido
a autoria do atendado contra a casa de
verão do chanceler do tesouro David
Lloyd George, que aparece no filme.
Suas ações só foram suspensas para
apoiar os esforços da Primeira Guerra
Mundial. Com o fim do conflito, em
1918, parte das mulheres inglesas receberam o direito ao voto, que foi estendido a todas as mulheres em 1928.
Edith Ellyn
A farmacêutica interpretada por Helena Bohan-Carter, que tem o apoio do
marido na luta pelos direitos das mulheres, nunca existiu, mas foi inspirada
em duas mulheres reais. A primeira foi
Barbara Gould, química e psicóloga que
fez parte da WSPU e foi apoiada por
seu marido, Gerald, participando ativamente de atos como quebrar vitrines
com pedras. Ela deixou a WSPU por
divergências e fundou outra organização em 1914, a Sufragistas Unidos, da
qual participavam tanto homens quanto
mulheres. A segunda inspiração, citada
por Bohan-Carter, foi Edith Garrud
(foto), que dava aulas de artes marciais
e defesa pessoal para as sufragistas se
protegerem da polícia e do público que
as hostilizava.
Emily Wilding Davison
Assim como Pankhurst, Emily Wilding Davison, interpretada por Natalie
Press, é uma personagem real, que teve
um papel trágico mas fundamental na
luta das sufragistas. Nascida em 1872,
ela se junto à WSPU em 1906 e se tornou uma das militantes mais ativas da
organização. Ela foi presa nove vezes
e seu último ato de militância ocorreu
no Epsom Derby, em junho de 1913,
quando ela invadiu a pista de corrida e
se jogou na frente do cavalo do rei George 5º, sendo atropelada por ele. Sua
morte atraiu a atenção da imprensa para
o movimento sufragista e mais de 6.000
mulheres participaram de seu funeral.
Por Natalia Engler, jornalista.
15
Educação que queremos
A Cantora do
Milênio é Mulher,
Negra, Brasileira e
Feminista: Elza Soares
C
onsiderada “a melhor
cantora do milênio” pela
BBC, descrita como “uma
mistura explosiva de Tina
Turner e Celia Cruz” pela Time Out,
e conhecida no mundo todo como A
Rainha do Samba. Nascida na favela
da Moça Bonita, passava a infância
“rodando pião e brigando com os
meninos”. Casou pela primeira vez
aos 12 anos, teve seu primeiro filho
aos 13, ficou viúva aos 21, e se tornou sensação internacional aos 30.
Elza Soares não é apenas um ícone
como artista, é também um ícone
como pessoa, e um exemplo de superação. A vida não deu trégua pra essa
mulher: teve que ser forte pra lidar
com inúmeras dificuldades, e ainda
assim, nunca deixou de subir no palco com um belo sorriso no rosto e
contagiar a plateia com a alegria do
samba.
Nada é doce e suave quando se
trata de Elza Soares. Desde sua expressão dura, emoldurada por seu
afro volumoso coroado com flores
ou um turbante, até sua voz metálica,
suas feições felinas, seu sorriso largo
e rasgado, sobrancelhas desenhadas
16
altas e arqueadas, e sua eloquência
curta e grossa, aquilo que Elza transmite mais que tudo é força.
Hoje, tem 60 anos de carreira musical. Seu samba alegrou e inspirou
três gerações, e continuará a alegrar
e inspirar as próximas. Elza Soares
é um clássico, e não apenas um daqueles clássicos antigos, tipo aquela
galera que fez músicas geniais e se
aposentam, ficando presas no passado. Ela é um clássico que provou que
enquanto estiver viva vai continuar se
adaptando às novas gerações e aos
novos mundos, sempre dando um
jeitinho de adaptar seu talento.
Em Outubro, surpreendeu os fãs,
já acostumados a ouvir sua voz entre
os batuques e aranhas do samba de
raiz e da bossa tradicional, ao lançar
um álbum, sem muito estardalhaço
ou promoção prévia. Sim, Dona Elza
fez a linha Beyoncé e surpreendeu os
fãs com um álbum quando ninguém
esperava, e como se não bastasse: o
primeiro álbum inteiramente composto de músicas inéditas, depois de
sua longa discografia recheada de interpretações de músicas muito bem
conhecidas pelo Brasil. A princípio,
é difícil de acreditar que uma senhora
de 78 anos tenha lançado onze faixas
tão contemporâneas, e tão relevantes em 2015. Os principais temas do
“A Mulher do Fim do Mundo” é a
violência contra a mulher, negritude,
morte, e sexo.
Abrindo o álbum, a belíssima faixa “Coração do Mar” é um poema
de Oswald de Andrade cantado acapella, um ode a uma terra imaginária,
“terra que ninguém conhece”. “É um
navio humano / Quente e negreiro
/ Do mangue”. Conforme a voz de
Elza desaparece, surge um quarteto de cordas anunciando a próxima
faixa, e talvez a mais bela do álbum,
que rendeu seu título: “A Mulher do
Fim do Mundo”. Em contraponto às
cordas, aparece a percussão típica do
samba, acompanhada da voz ríspida
de Elza: “Meu choro não é nada além
de Carnaval / É lágrima de samba na
ponta dos pés”.
“Na chuva de confetes deixo a
minha dor
Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
tão tradicional, tão samba, e ainda assim, tão diferente e inovador. Sua voz
nesse álbum, suja, pesada, carrega
seus 60 anos de carreira, bem como
seus 78 anos de dor – desde sua infância difícil até a recente morte de
seu quinto filho. E ainda assim, Elza
se mostra mais empoderada do que
nunca, o que fica bem claro na terceira faixa do álbum: “Maria da Vila Matilde – Porque Se a da Penha é Brava,
Imagine a da Vila Matilde”, faixa que
mistura um samba sujo com rock.
“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais, eu
digo que não te conheço
…
Cê vai se arrepender de levantar
a mão pra mim”
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do
resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou – e vou – até o fim cantar”
Eu fico arrepiada só de lembrar
dessa música. É incrível como o trabalho de Elza pode soar tão familiar,
Empoderamento de encher os
olhos d’água, né? O melhor é o deboche que permeia essa faixa – Elza
diz que quando o servidor público
chegar ela oferece um cafezinho e
mostra o roxo no seu braço, e que
quando a mãe do agressor ligar, ”Eu
capricho no esculacho / Digo que
é mimado, que é cheio de dengo /
Mal acostumado, tem nada no quengo”. Em entrevista, disse “Amor com
pancada não existe. Mulher só deve
gritar quando for de prazer”. E como
coisa do destino, esse álbum foi lançado três semanas antes da prova do
ENEM, cuja redação era justamente
sobre a violência contra a mulher.
Não é à toa que eu digo que a Elza
é um clássico que continua relevante.
Seguem duas faixas agressivas e
pós-apocalípticas: “Luz Vermelha” e
“Pra Fuder”. A primeira é a descrição
de um Rio de Janeiro após o fim do
mundo, por onde Elza vaga, sobrevi-
vente. A segunda é sobre uma experiência sexual em que Elza se sente
como uma espécie de entidade nativa
do fogo. Em entrevista para O Globo, Elza explica: “A mulher do fim
do mundo é a que vai ficar. O fim
do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do espiritismo existe uma
entidade que se chama Iansã. Ela é o
fogo, a lava. Eu me vejo como essa
entidade maravilhosa se incendiando,
mas viva, viva eternamente”. Pra TV
Carta, ainda completou: “Pra Fuder
não é só sobre cama, não. É a mulher
que bota pra fuder de verdade”.
Já tá sem fôlego depois de tanto
samba (literalmente)? Pois segura
esse tamborim aí que tem mais: a
sexta faixa do CD é sobre “Benedita”, uma travesti traficante.
“Ele que surge naquela esquina
É bem mais que uma menina
Benedita é sua alcunha
E da muda não tem testemunha
Ela leva o cartucho na teta
Ela abre a navalha na boca
Ela tem uma dupla caceta
A traveca é tera chefona”
Talvez a faixa mais agressiva do
álbum, ela transparece a realidade
violenta da travesti no Brasil, e podemos sentir a adrenalina da perseguição policial às que traficam ou se
prostituem. Ao longo da música, fica
claro o porquê de Elza ter inserido
essa faixa no álbum: ela se enxerga
na travesti – violentada, injustiçada,
forte, persistente e guerreira, Benedita é uma verdadeira “mulher do fim
do mundo”, como a própria Elza. E
Elza não simplesmente largou essa
faixa e saiu correndo: em entrevistas
sobre o álbum, quando questionada
continua>>
Se o problema na participação das mulheres
na política é um problema estrutural e de nível
mundial, quando nos
deparamos com a realidade brasileira a situação
apenas se agrava
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sobre a faixa, ela não deixa de falar
sobre a situação da comunidade trans
no nosso país, revoltada com a violência que sofremos. Rainha mesmo,
né? Isso sim que é sororidade. Em
entrevista à TV Carta, disse “A mulher não tomou ainda o conhecimento que uma mulher ajuda a outra, que
a gente precisa ter mulheres do nosso
lado. Precisamos de amigas.”
Se o problema na participação das mulheres
na política é um problema estrutural e de nível
mundial, quando nos
deparamos com a realidade brasileira a situação
apenas se agrava
A faixa “Firmeza” é uma conversa
descontraída entre jovens amigos que
“se trombaram” na rua, provando o
quão contemporânea Dona Elza realmente pode ser, simulando naturalmente um diálogo cheio de “qualés” e “firmezas”. “Beleza mano, fica
com Deus / Quando der a gente se
tromba, beleza? / Você é mermão
muleque”. Em “Dança”, faixa mais
tranquila que as cinco anteriores, que
dialoga com o tango, Elza retorna
a questões existenciais e espirituais.
“Daria a minha vida a quem me desse o tempo / Soprava nesse vento a
minha despedida / … / E se eu me
levantar, ninguém vai saber / E o que
me fez morrer, vai me fazer voltar”.
Se o álbum abriu com duas músicas belíssimas, ele também encerra
com três faixas tão belas quanto. A
instrumentação de “O Canal” tem
forte influência da música africana,
que acompanha o tema da letra: uma
jornada espiritual. “Solto” é a única
faixa sem distorções, fora o prelúdio acapella do álbum, “Coração do
Mar”. Descreve o processo de morrer: a alma se desprendendo do corpo. E, finalmente, fechando o álbum
com chave de ouro, “Comigo” começa num crescendo de ruídos e distorções, construindo a tensão do ouvinte. Ao chegar na metade da faixa,
o ruído de repente cessa, e a voz de
Elza surge novamente num acapella
belo e singelo, que encerra o álbum:
“Levo minha mãe comigo
Embora já se tenha ido
Levo minha mãe comigo
Talvez por sermos tão parecidos
Levo minha mãe comigo
De um modo que não sei dizer
Levo minha mãe comigo
Pois deu-me seu próprio ser”
O novo álbum de Elza é fogo, é
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melancolia, é sofrimento e é liberdade, como há de ser o samba, como é
Elza Soares, e como é a mulher brasileira. Empodera, toca na ferida, é
aquele tapa na cara que dói, mas nos
faz acordar. Trata de racismo, de misoginia, de transfobia. A voz de Elza
está rouca, rasgada, e sempre prestes
a falhar, e exatamente por isso, mais
bela do que nunca. É uma cicatriz
que mostra a força que ela precisou
pra enfrentar o que enfrentou, e é
bela, como as marcas da idade no
seu rosto. “Boto o passado todo num
cantinho, guardadinho em mim, mas
sabendo que o now está aqui. Ontem
já foi, amanhã não sei. Então, tem
que ser agora”.
Elza Soares é o olhar misterioso
de Capitu, a casca grossa de Maria da
Penha, o sorriso alegre de Carmen
Miranda, o braço forte de Dandara,
tudo junto. É daquelas mulheres que
fazem História pra lembrar às mulheres do Brasil que esse país é nosso.
Fonte: Revista Capitolina
Imagens da Luta
Mantendo a luta acesa mesmo debaixo de
muito sol, centenas de pessoaos percorram
as ruas do Centro de Aracaju no Tradicional
Bloco Siri na Lata, que aproveita a festa
para protestar e reivindicar os direitos dos
trabalhadores de Sergipe.
Fevereiro de 2016.
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