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Educação e Racismo Entrevista com Andrea Depieri (parte II) Cinema no Portela Político-Pedagógica do SINTESE www.sintese.org.br nº 41 - Sergipe - janeiro e fevereiro - 2016 R$ 5,00 Revista de Formação À FLOR DA PELE NA BUSCA PELA IGUALDADE 1 2 primeiras palavras As lutas das mulheres no mundo Nada de lembrancinhas e presentes, queremos direitos. O mês de março – em que se celebra o Dia Internacional das Mulheres – é um mês de reflexão e ação concreta sobre os direitos das mulheres, sobre a luta das mulheres por respeito, dignidade, justiça e igualdade de direitos. É um período para debater e refletir sobre a insistente desigualdade de gênero no mundo do trabalho, discutir e definir ações de combate à violência contra a mulher e defender a participação das mulheres nos espaços de decisão do seu bairro, da sua cidade, do seu estado e do seu país. É um momento para resgatar e manter viva a história e a memória de mulheres lutadoras de todo o mundo. É com essa compreensão sobre o Dia Internacional das Mulheres, e buscando dar a sua contribuição para o fim das desigualdades e da opressão de gênero, que esta edição da Revista Paulo Freire presta a sua homenagem às mulheres. Mas frise-se: a homenagem aqui é ao protagonismo das companheiras lutadoras que, no seu cotidiano, persistiram e persistem na defesa de um mundo sem opressões e com todos os direitos garantidos a todas as mulheres. Para isso, a edição que acaba de chegar às suas mãos apresenta diversos conteúdos e opiniões sobre temas variados relacionados aos direitos das mulheres. Um dos temas que ocupou o centro do debate político em Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas de todo o país no final do ano passado foi a discussão sobre a “ideologia de gênero” na educação. Avaliamos que o tema, de um modo geral, foi tratado não pela perspectiva teórica e política, mas sim a partir de um viés fundamentalista que demonstrou uma clara interferência de grupos religiosos nas políticas públicas. Por isso, aqui, buscamos descortinar o que realmente estava em jogo e o que significa e representa, na essência, abordar questões de gênero e sexualidade nos ambientes educacionais. Atual também é o crescimento das refle- xões acerca do feminismo negro. A jornalista e pesquisadora sergipana Laila Thaíse nos ajuda a conhecer a trajetória do feminismo negro e como trazer para a ordem do dia as questões referentes às mulheres negras e como a intensa produção de intelectuais e militantes contribuíram para o surgimento de mais organizações e para a fomentação, ainda não suficiente, de políticas públicas para o segmento. Trazemos também nesta edição um breve histórico das mais distintas concepções teórico-históricas sobre o feminismo no mundo, apresentando as principais diferenças entre cada perspectiva e a importância de cada para a luta por igualdade. Um dos maiores entraves à conquista de direitos pelas mulheres é a subrepresentação feminina nos espaços da política institucional. É o que afirma a mestre em Comunicação Ana Carolina Westrup em artigo escrito originalmente para esta edição da Revista Paulo Freire. Como saída, a pesquisadora defende: “uma reforma política ampla, que assuma o desafio de equilibrar o jogo político entre homens e mulheres no parlamento brasileiro, é fundamental para a ampliação de direitos voltados para as mulheres, e sobretudo, para a quebra de paradigma sobre qual é o lugar da mulher na sociedade brasileira”. Por fim, a Revista Paulo Freire abre espaço para a relação entre mulheres, política e cultura com dois textos: o primeiro uma sintética resenha sobre o filme “As Sufragistas”, que narra a luta de mulheres inglesas pelo direito ao voto e o segundo faz um recorte histórico da vida da artista Elza Soares, a partir do lançamento do seu mais novo CD, “A Mulher do Fim do Mundo”. Boa leitura e viva a luta das mulheres em todo o mundo! Revista de Formação Político-Pedagógica do SINTESE Rua Campos, 107 – B. São José - Aracaju-Se CEP: 49015-220 [email protected] www.sintese.org.br Redação e Assinaturas Telefax: (0**79) 2104-9800 Paulo Victor Melo Editor (DRT/BA: 3548) Diego Oliveira Coordenação Gráfica (DRT/SE 1094) Conselho editorial: Angela Melo, Joel Almeida, Lúcia Barroso, Hildebrando Maia, Janieire Tavares, Ana Luzia, Ivonete Cruz, Edileide Barrozo, Franklin Magalhães, Elda Góis. Os artigos assinados nesta edição não refletem necessariamente o entendimento da direção do Sintese. FALE CONOSCO Tel: (79) 2104-9800 (Bárbara Eloah) E-mail: [email protected] Ângela Melo Presidenta do SINTESE onde achar Classes e Luta de Classes Entrevista Culturas silenciadas 04 06 11 Polícia e violência nas escolas Relações étnico-raciais na escola Fechar escolas? 12 13 15 Cinema no Portela 16 Saber e Poesia 18 ASSINATURA SOCIAL - R$ 150 (12 exemplares) ASSINATURAANUAL NÃO FILIADOS - R$ 100 (12 exemplares) ASSINATURAANUAL NOVOS-FILIADOS - R$ 60 (12 exemplares) ASSINATURAANUAL FILIADOS - R$ 60 (12 exemplares) 3 Formação Classes e luta de classes: nascimento do capital Wladimir Pomar* Os recursos monetários acumulados pela classe comercial e por parte da nobreza endinheirada inglesa só se transformaram em capital quando tiveram uma aplicação produtiva. Isto é, quando o dinheiro passou a comprar armazéns, ferramentas, equipamentos de trabalho, matérias primas e, principalmente, força de trabalho livre, dando início a um novo modo de produzir. Utilizando forças humanas de trabalho, compradas livremente, que colocavam em funcionamento as ferramentas e os equipamentos de sua propriedade, os comerciantes conseguiam fazer com que as matérias primas fossem transformadas em produtos. Assim, apesar da acumulação de riqueza que levou ao capital ter sido realizada totalmente por meios extra-econômicos, a partir do momento em que tal riqueza se uniu ao trabalho, tudo tendia a funcionar estritamente através de regras econômicas. 4 A rigor, não havia mais necessidade de outras ações que também não fossem econômicas. O dinheiro, ou capital dinheiro, passou a ser o intermediário universal. Ele permitia adquirir ferramentas, máquinas, galpões, matérias primas e outros meios de produção, transformando-se em capital constante, ou bens de capital. Além disso, o dinheiro também passou a comprar a força humana de trabalho pelo tempo necessário para colocar em funcionamento as ferramentas e as máquinas, transformando-se em capital variável. Durante o tempo pago pelo capital variável, o trabalhador transformava as matérias primas num número determinado de produtos vendáveis, adicionando a tais produtos um valor superior ao capital variável que lhe era pago. O que permitia ao comerciante, no ato de venda, não só recuperar o custo da amortização das ferramentas, máquinas e matérias primas, mas tam- bém extrair um lucro daquele valor extra adicionado pelo trabalhador. Nessas condições, as relações entre trabalhadores sem-propriedade de meios de produção e comerciantes proprietários de meios de produção passaram a ser uma relação entre homens livres, mediada pelo salário, ou capital variável. Isto é, por uma quantidade de dinheiro supostamente equivalente ao trabalho (ou quantidade de produtos) realizado pela força humana. Tais relações eram qualitativamente diferentes das relações extra-econômicas existentes no escravismo e no feudalismo. Portanto, sem ter qualquer consciência do que estavam gerando, os comerciantes ingleses que acumularam riquezas durante o período de expansão mercantil deram nascimento a uma nova forma ou modo de produzir, e a uma nova relação social. Isto representou uma revolução econômica, social, cultural e política mais profunda do que todas as ocorridas anteriormente. Mas tal revolução só foi possível porque, na Inglaterra, a acumulação de recursos monetários ocorreu paralelamente a uma profunda revolução agrícola no sistema feudal. Essa revolução, além de introduzir novas técnicas e relações sociais mediadas pelo dinheiro, expropriou massas populacionais imensas e as jogou na vagabundagem, isto é, as transformou em ralé. A Espanha, a China e vários outros reinos europeus e asiáticos que haviam avançado no feudalismo, ao contrário, não realizaram qualquer revolução desse tipo. Mantiveram intocado seu sistema feudal, ou o reforçaram, intensificando a submissão das massas camponesas à terra e aos senhores fundiários. A França, no entanto, mesmo sem haver mudado o sistema feudal, ingressou rapidamente na produção manufatureira de bens de luxo. Nessas condições, o reino francês viu serem acirradas, de forma extremamente conflituosa, as contradições entre a necessidade de forças de trabalho livres para as manufaturas e a manutenção dessas forças amarradas aos feudos. Certamente por isso, mais do que na Inglaterra, a necessidade de trabalhadores livres na França tenha se tornado uma bandeira radical de luta da burguesia comercial e manufatureira contra os feudais. Não por acaso, foi na França que os slogans de liberdade, igualdade e fraternidade foram empunhados pelos representantes ideológicos e políticos da incipiente classe burguesa. E que a reforma agrária, a extinção do feudalismo e a libertação do campesinato tiveram um caráter social e politicamente muito mais revolucionário do que na Inglaterra. Apesar disso, seus efeitos foram idênticos. Isto é, criaram o mesmo novo modo de produzir, as novas relações de produção e as novas classes sociais, embora por caminhos diferentes. Na Inglaterra, os embates entre a classe burguesa comercial e a classe fundiária nobre, embates várias vezes atravessados pela interferência radical dos camponeses diggers e levellers, não levaram à extinção da nobreza fundiária. Esta já havia se tornado uma fração da burguesia mercantil, permitindo um acordo para a manutenção da monar- quia constitucional. Na França, ao contrário, aqueles embates levaram à revolução política violenta para derrubar a monarquia, proclamar a república, implantar a ditadura da pequena-burguesia e instituir o terror para eliminar a nobreza feudal. Porém, tanto na Inglaterra quanto na França, a burguesia comercial sofreu uma clivagem à medida que o sistema manufatureiro original desembocou no sistema industrial, com a revolução técnica da máquina e vapor e, depois, da eletricidade. Ocorreu uma importante divisão entre as atividades industriais, comerciais e financeiras, resultando no fracionamento na classe capitalista burguesa. A burguesia industrial passou a predominar sobre as demais frações. O mesmo tipo de fracionamento ocorreu na classe trabalhadora assalariada, com sua fração industrial predominando sobre as demais, seja em virtude da maior demanda da indústria por trabalhadores, seja pelo fato de que as fábricas ofereciam condições mais favoráveis para a conexão, a organização e a luta dos operários. Olhando com atenção a experiência histórica de nascimento do capital e sua evolução em capitalismo, podemos concluir que a burguesia, isto é, a classe capitalista, surgiu da classe comercial presente no feudalismo. Essa classe comercial, em aliança com parte da nobreza feudal monárquica de alguns reinos, acumulou riquezas no processo de expansão marítima e predação de outros povos. Isso lhe permitiu ingressar na manufatura, aproveitando-se da massa ralé expropriada dos campos, seja pela ação da própria nobreza, seja pela extinção revolucionária dos feudos. No seu processo de evolução, a classe mercantil transformou-se em classe capitalista manufatureira e, depois, em classe capitalista industrial, financeira e comercial. Já os excedentes populacionais provenientes do campesinato feudal transformaram-se em ralé, ou diretamente em classe trabalhadora assalariada. A ralé, ou parte considerável dela, por sua vez, também se transformou em classe trabalhadora assalariada à medida que a burguesia comercial se tornou burguesia manufatureira e industrial e demandou mais forças de trabalho. Essas metamorfoses de umas classes em outras são típicas dos processos de evolução dos modos de produção e das formações sociais. E sempre estiveram relacionados com a propriedade dos meios de produção e com as relações de produção que cada propriedade específica gera. A propriedade fundiária do sistema escravista promoveu uma relação de produção baseada na propriedade privada sobre os trabalhadores, como se meios de produção fossem. A propriedade fundiária do sistema feudal promoveu uma relação de produção baseada na propriedade privada legal (real ou concedida) sobre o solo, mas não formalmente sobre os trabalhadores, que eram proprietários de meios de produção, mas não da terra. O capitalismo subverteu tudo isso, ao restringir sua propriedade privada aos meios de produção e estabelecer uma relação de produção com homens livres proprietários de força de trabalho, mediada pelo salário, ou seja, por parte de seu capital. Isto, no entanto, que parece ser a base para a divisão social e para a definição das classes sociais sob o capitalismo, tem sofrido constantes tentativas de revisão. Primeiro, porque o capitalismo, mesmo onde se desenvolveu mais rapidamente, não eliminou todas as classes anteriores. Muitas vezes as manteve como adereços econômicos, políticos ou culturais, a exemplo das nobrezas de vários países europeus que se tornaram capitalistas, e da persistência do patriarcalismo, mesmo modernizado. Depois, porque fez uso amplo de formas extra-econômicas de exploração de seus trabalhadores e de outros povos, inclusive utilizando-se do escravismo e de sistemas feudais ou aparentados, para obter lucros ainda maiores, em especial a partir da segunda onda de colonização imperial do século 19. Finalmente porque a constante expansão do capitalismo pelo planeta tem se dado de forma extremamente desigual, descombinada e conflituosa, como veremos adiante. *Wladimir Pomar é escritor e analista político. Este é o quarto texto da série “Classes e luta de classes”, em que o autor analisa o tema a partir do longo processo de desenvolvimento econômico, político, histórico e social do Brasil. 5 Opinião “Ideologia de gênero” na educação: do que estamos falando? D urante os últimos meses de 2015, Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas de todo o país selaram uma interferência bastante perigosa do pensamento religioso conservador sobre as políticas públicas de educação, colocando em xeque o princípio constitucional da laicidade do Estado. Nas votações dos planos de educação por todo o Brasil, houve um movimento bastante articulado para suprimir das diretrizes educacionais qualquer compromisso expresso com o combate das desigualdades de gênero e de sexualidade. Um dos projetos de lei mais polêmicos dos últimos anos, o PNE define as metas e as estratégias da educação brasileira para os próximos dez anos, orientando as políticas educacionais em todos os níveis. Primeiramente truncado por conta das disputas em torno dos 10% do PIB, nos debates nos municípios e estados foi a vez da investida de setores conservadores contra a chamada “ideologia de gênero”. A rigor, o PNE fala pouco sobre gênero. Essa pequena palavra – que abriga um poderoso conceito – consta basicamente em uma frase do projeto de lei. No artigo 2º, voltado para a superação das desigualdades educacionais, há um destaque que acrescenta: “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Pronto. Esta foi a deixa que o fanatismo religioso, personificado em figuras como Marco Feliciano (PSC-SP) e Marcos Rogério (PDT-RO), precisava para atrasar mais uma vez a votação do projeto. Críticas de setores conservadores e fundamentalistas têm denunciado a tal “ideologia de gênero”, defendida pelo PNE quando este assume um compromisso com a “igualdade”. Esses grupos temem pela “destruição da família”, os “valores e morais” alicerçados na “lei natural” e, evidentemente, o avanço das pautas LGBT, dentre as quais a diversidade sexual, a criminalização da homofobia e o progresso em torno da despatologização do segmento trans* – pontos, na verdade, que transcendem a escola. 6 Aqui, voltamos à velha discussão que já vem sendo encampada neste país há décadas. Como cidadãos e cidadãs, temos a infelicidade de ver no poder uma corja de políticos absolutamente descomprometidos com a igualdade, a tolerância, o respeito à diferença e, pasmem, à própria racionalidade. O obscurantismo tem sido defendido à luz do dia, e as imagens que vemos de jovens empunhando cartazes contra a “ideologia de gênero” e, pior ainda, reforçando a violência que é uma definição única e imposta de mulher, homem, família, moral etc, é de chocar. Ignora-se que a igualdade de gênero é tão legítima, necessária e importante quanto à igualdade racial ou regional. Trata-se, pois, de discutir a sub-representação política das mulheres, as desigualdades no mercado de trabalho, a assustadora violência nas ruas e domicílios, a objetificação sexual na mídia, entre outras. Acima de tudo, a igualdade de gênero deve ser um valor democrático, tão legítimo quanto à liberdade religiosa que, diga-se passagem, nunca foi posta em xeque por nenhum setor progressista neste país. Até porque os mesmos grupos que defendem a igualdade de gênero são aqueles que apoiam o Estado laico – a instituição mais democrática no tocante à liberdade religiosa em uma nação multicultural. Nesse sentido, gênero é temido porque, de fato, é um instrumento valoroso. Longe de ser um conceito puramente acadêmico, gênero já se incorporou no jargão popular, nos movimentos sociais e nas políticas públicas. Essa rejeição à ideia de gênero reflete um sintoma de uma ordem social que está se sentindo ameaçada – a título de exemplo, casos similares aconteceram na França. Dessa forma, procuram criminalizar não só os indivíduos ditos “diferentes”, como também seus termos, expressões e conceitos que dão voz a essas “diferenças”. Gênero é um deles, mas não o único. Como já reiteramos inúmeras vezes, gênero é um artifício teórico, criado na segunda metade do século passado, para designar as construções sociais sobre o masculino e o feminino. Em pouco tempo, o conceito de gênero foi apropriado pelo movimento feminista e se transformou em uma importante ferramenta analítica e política, com a finalidade de desnaturalizar as opressões de gênero, descontruir verdades absolutas e imutáveis sobre mulheres e homens, derrubar as falsas fronteiras que nos demarcam em estereótipos cruéis para os quais somos levados a acreditar desde pequenos, separando-nos em pequenas caixinhas que limitam nossas individualidades, potencialidades e perspectivas. Portanto, gênero não é uma ideologia. É, ao contrário, a desconstrução de uma ideologia que imputa à natureza, à biologia e supostamente a características inatas dos indivíduos, a carga pesada e histórica de desigualdades entre homens e mulheres, cis ou trans. Os movimentos sociais continuarão a insistir nesse ponto, até que cada resquício de obscurantismo de cunho fundamentalista seja derrubado e possamos, por fim, ter uma educação não apenas pública e de qualidade, como também de uma sociedade que pretende se livrar de desigualdades, violências e opressões – de gênero ou de qualquer outra origem. Conjuntura Feminismo Negro: Descentralizando as lutas de gênero Laila Thaíse* Ao longo dos anos muitas mulheres de diversas realidades buscaram no feminismo a teoria para compreender e combater o machismo cotidiano que engessa nossas vidas, no entanto, muitas de nós só encontramos como referência o feminismo europeu, mas não menos importante. Referências como Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai – que muito nos ensinou na sua obra “A Nova Mulher e a Moral Sexual” sobre as armadilhas do machismo nas relações afetivas que construímos, sobre a importância da desconstrução de um amor que aprisione e que saia dos moldes de uma relação alimentada pela moral burguesa. Sem dúvida uma leitura pertinente onde é possível aliar a discussão de gênero e de classe tão fundamentais. Não é possível entender que as mulheres negras vivenciam as mesmas experiências, dentro do segmento é preciso considerar outros fatores que determinarão as formas de opressão que essas mulheres vão enfrentar Assim, também é inegável a contribuição de Simone de Beauvoir para questionar esse lugar da mulher, o papel atribuído por essa sociedade patriarcal e a necessidade de se romper com a cultura machista que determina que é dever da mulher constituir família, gerar filhos e casar. Na obra clás- sica de Simone “O Segundo Sexo”, ela questiona a ideia biológica do ser mulher e na famosa passagem “não se nasce mulher, torna-se”, é possível refletir que o que nos torna mulher não é o sexo, não são as condições biológicas, é a nossa continua>> 7 No Brasil, o feminismo negro começa a surgir no movimento negro por volta dos anos 70, após questionamentos de mulheres militantes que eram silenciadas nos espaços e tinham suas pautas feministas pormenorizadas nas instâncias de decisão construção social e cultural, a forma como nos enxergamos e nos colocamos no mundo. De fato, todas as contribuições foram e são fundamentais para aquelas que desejam conhecer as teorias que norteiam a militância feminista. Mas nessa seara o que encontramos são teóricas brancas falando de uma realidade que geralmente é distante de outras experiências enquanto mulher. Para as mulheres negras, sejam as estadunidenses ou as brasileiras, tais reflexões não suprem as demandas de suas vidas pela própria trajetória distinta da trajetória de mulheres brancas. Na vida das mulheres negras existe o peso que o racismo impõe, Sueli Carneiro no seu artigo “Enegrecer o feminismo” nos provoca a uma importante reflexão. Quando o feminismo ‘tradicional’ se propõe a romper com o mito da fragilidade feminina, de que mulher estamos falando, já que a experiência de viver em uma sociedade que passou por um sistema escravocrata não permitiu que as mulheres negras em qualquer momento da história ocupasse esse papel. A provocação segue ao longo do texto apelando para que pensemos: qual é a mulher que o feminismo tradicional representa quando coloca que devemos combater o papel de “rainha do lar”, se a mulher negra continua longe dos estereótipos da “mulher para casar” e onde a maioria não consegue cuidar da sua casa e dos seus filhos (quando os têm) porque muitas vezes estão em trabalhos precarizados, onde são exploradas e impedidas de cuidar até de si mesmas. Ao questionar esse lugar único e 8 imutável da condição da mulher, Sueli Carneiro também resgata o pensamento do feminismo negro que tem suas origens com as teóricas feministas dos EUA. Foi por volta da década de 80 que as feministas negras norte americanas começaram a produzir teorias que conseguissem responder às suas demandas e os seus questionamentos. Fugindo da concepção de mulher como categoria única e assim rejeitando o essencialismo dos debates, as teóricas feministas negras como Patrícia Hill Collins, bell hooks, Audre Lorde, Kimberle Crenshaw e tantas outras investiram seus estudos e militâncias no entendimento da mulher e as interseccionalidades, compreendendo a existência de especificidades que diferenciarão o conjunto das mulheres. Não é possível entender que as mulheres negras vivenciam as mesmas experiências, dentro do segmento é preciso considerar outros fatores que determinarão as formas de opressão que essas mulheres vão enfrentar. Existem as campesinas, as ribeirinhas, as mulheres da cidade, aquelas que vivem em situação de rua, presidiárias e tantas outras variáveis como a orientação sexual, o fator geracional, religioso e outras. O entendimento de que era preciso reivindicar a equidade de gênero e a luta por direitos perpassava pela compreensão de que só seria possível através da interseccionalidade e que os grupos vulneráveis na sociedade precisavam contar a sua história através de sua perspectiva e não mais sobre a do colonizador, é o que as teóricas norte-americanas já citadas denominaram standpoint theory. Sobre o standpoint theory, Luiza Bairros (1995) em seu artigo “Nossos Feminismos Revisitados” afirma que “a experiência da opressão sexista é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação onde raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos” (Bairros, p.4, 1995). Com isso, a pesquisadora, militante feminista anti-racista e ex ministra nos diz que não existe hierarquia entre as opressões, assim como outra teórica feminista negra, Audre Lorde, reafirmando que o que existe são experiências diferentes a partir do lugar de onde se fala, considerando que o racismo, o sexismo, o capitalismo e a lesbobitransfobia ainda se faz presente na sociedade, as mulheres negras pobres acumulam opressões em sua história. No Brasil, o feminismo negro começa a surgir no movimento negro por volta dos anos 70, após questionamentos de mulheres militantes que eram silenciadas nos espaços e tinham suas pautas feministas pormenorizadas nas instâncias de decisão. Com isso, resolveram romper e afirmar que o combate ao racismo deveria levar em consideração a experiência das mulheres negras. Militar pelo fim do racismo não garantia a essas mulheres o fim de outras opressões vividas, o machismo ainda rondava as organizações do movimento negro. No Movimento Negro Unificado Por (MNU), a militante e filósofa Lélia Gonzales foi uma das pioneiras a reivindicar que a organização começasse a pautar o machismo, considerando que a maioria das mulheres vítimas de violência eram as negras, eram elas que recebiam os piores salários e estavam localizadas nos empregos mais subalternizados, ou seja, eram as mulheres negras que estavam na base da pirâmide social. Por outro lado, o movimento feminista ainda era majoritariamente branco e não conseguia dar visibilidade às demandas das mulheres negras, muitas vezes indo de encontro ao que o segmento almejava. Enquanto pautavam o uso da pílula, o aborto e questionavam relações monogâmicas, as mulheres negras estavam na luta contra o extermínio da juventude negra e pobre, estavam tentando sobreviver à violência institucional que todo dia matava (e ainda mata) um filho, um primo ou alguém de sua família. Não que as pautas se anulassem, mas a luta contra o racismo entendendo que deve estar aliada a luta contra o machismo não era prioridade do movimento feminista. O movimento de mulheres negras no Brasil foi ganhando corpo e teoria, militantes como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, Luiza Bairros e as mais recentes Jurema Werneck, Sueli Carneiro, entre outras, começaram a formular para as mulheres negras brasileiras, onde a partir das vivências e trajetórias elas pudessem buscar mecanismos de resistir, de provocar e fomentar políticas públicas que conseguissem responder as necessidades dessas mulheres. Sobre esse novo contorno do movimento feminista no Brasil, com recorte racial, Sueli Carneiro acrescenta que: Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro, como a tradição de luta no movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição específica de ser negra. O atual movimento de mulheres negras ao trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negro e de mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro (CARNEIRO, 2003, p.50). A urgência em trazer para a ordem do dia as questões referentes às mulheres negras e a intensa produção de intelectuais e militantes contribuíram para o surgimento de mais organizações e para a fomentação (não suficiente) de políticas públicas para o segmento. O Brasil passa atualmente por um momento onde os movimentos sociais estão ganhando amplitude e visibilidade, em novembro de 2015 Brasília sediou a I Marcha Nacional A urgência em trazer para a ordem do dia as questões referentes às mulheres negras e a intensa produção de intelectuais e militantes contribuíram para o surgimento de mais organizações e para a fomentação (não suficiente) de políticas públicas para o segmento de Mulheres Negras que reuniu milhares de mulheres de todos os estados e regiões com o mote “Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver”. A marcha foi recebida pela presidente e representantes dos movimentos e organizações presentes entregaram uma carta com as demandas do segmento. Sergipe enegrecendo o feminismo - Acompanhando essa onda crescente de mulheres negras buscando formação política e o conhecimento da história de luta das suas ancestrais, as mulheres aqui em Sergipe têm mostrado que a construção coletiva gera bons frutos e se expande. É visível o fenômeno do uso das redes sociais como ferramenta de formação política por milhares de mulheres negras em todo o país. São páginas no facebook como a Geledés, Blogueiras Negras, Que Nega é essa?, Ofensiva Negritude e tantas outras que compartilham textos de grandes militantes históricas do feminismo negro, algumas abordam a importância de trazer a discussão para as escolas e outras falam como a estética também é política. Em Sergipe têm ganhado destaque as ações dos movimentos Crespas e Cacheadas e Por Mais Turbante nas Ruas, ambas abordam o combate ao racismo através da aceitação do cabelo da mulher negra. O primeiro surgiu em 2014 e consiste em uma dinâmica de encontros marcados através do grupo do facebook e já chegou a reunir centenas de mulheres negras nos parques da cidade para que pudessem se conhecer, compartilhar suas histórias, discutir sobre as questões raciais e aprender a cuidar dos cabelos de forma natural. O segundo foi criado por estudantes da univer- sidade e militantes com o intuito de viralizar o uso do turbante. Em 2014 também surgiu a “Auto Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria”, fruto do anseio de diversas mulheres que buscavam se organizar politicamente em um movimento que conseguisse ter como objetivo o combate ao racismo, machismo e outras formas de opressão, entendendo a importância de uma militância interseccional. Atualmente a organização desenvolve ações junto ao público infantil e juvenil, discutindo sobre o racismo midiático e promovendo reflexões sobre identidade e representação, através da exibição de filmes e facilitando oficinas educativas. Referências: BARBOSA, Paulo Corrêa. Lélia Gonzalez: o feminismo no palco da história/Paulo Corrêa Barbosa. – Brasília: Abravídeo, 2015. CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58. CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados 17(49), 2003.KOLLONTAI, Alexandra. A Mulher e a Nova Moral Sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007. Laila Thaíse é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe e militante da Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria 9 Capa Movimentos feministas e a busca da igualdade O conhecimento das condições históricas através dos quais os movimentos surgiram se faz necessário para que se verifiquem as circunstâncias do seu maior ou menor sucesso em determinados lugares. O desconhecimento desses aspectos nos faz perder de vista o campo da luta, diante da opressão da mulher e a busca de suas superações. Isabel Fomm de Vasconcellos, em seu livro “Todas as mulheres são bruxas”, nos ilustra que a sociedade celta da baixa Idade Média era constituída por mulheres livres e sábias, sacerdotisas dos templos e druidisas, elas dominavam a arte da cura através das ervas e usufruíam da igualdade de direitos em relação aos homens. Entretanto toda essa liberdade, que lhe conferiam poder político e sacerdotal, não combinava com a visão que os romanos cristãos tinham da mulher. A partir do momento em que os celtas começaram a ser dominados, elas foram perseguidas, amaldiçoadas e queimadas na fogueira da Santa Inquisição. Foram seis séculos de perseguição às mulheres. Foi através da Revolução Francesa, marco político e processo revolucionário fundamental para a civilização ocidental, que diversos paradigmas começaram a ser quebrados e questionados. Em que pese, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamar a igualdade, fraternidade e liberdade, nos deparamos com a separação do gêneros, as mulheres foram mais uma vez marginalizadas e destituídas de participar das decisões políticas. No momento em que Olympe de Gouges “grita” a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, sua voz é abarcada com a forca, o que deixa claro que uns eram mais iguais que outros. Contudo é neste contexto que as mulheres começarão a reivindicar seus direitos para com os seus problemas, e com isto definir seu papel na sociedade. São ações que se desenvolveram entre o século XVIII e XIX, através das quais a causa feminina ganhará voz para se consolidar no século XX. O movimento feminismo, expressão 10 creditada à Charles Fourie, socialista e filósofo francês, em 1837, é uma luta política, tendo seu caráter a busca da igualdade de gênero e não uma superação do homem, mas sim um compartilhamento de vida pública e privada. É com as décadas de 1960 e 1970 que o feminismo ganhará força na Europa e EUA, onde se encontram em plena efervescência cultural e política, surge neste cenário o livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, que colocará em discussão todos os membros conservadores de uma sociedade patriarcal. No Brasil, estávamos em plena ditadura, sofrendo fortemente a repressão militar, mas isso não afastou que fôssemos influenciadas por tal movimento, ao contrário, mulheres letradas, de classe alta que, entrando em contato com as feministas fora do país, trouxeram suas primeiras impressões e reações para a sociedade. Com o processo de redemocratização do país em 1985, é contemplado na Carta Magna, sob princípios basilares dos Direitos e Garantias fundamentais, a igualdade entre homens e mulheres, com seus direitos e obrigações, nos termos da Constituição, isto que se encontra consagrado no art. 5º, I da CF/88. Este direito fundamental à igualdade entre os gêneros, terá por conteúdo principal o direito de resistência contra tratamento desiguais, proíbe-se a distinção feita em razão do critério “sexo” ou “gênero”. De acordo com Leonardo Martins (2014, p. 235): “O caráter peculiar da igualdade garantida a homens e mulheres titulares do direito à igualdade entre os gêneros é que, ao contrário do direito geral à igualdade, cujas principais concretizações se dão pela proibição da discriminação baseada na cor, raça, origem etc., não se trata de uma simples proibição de discriminação negativa, mas também de uma proibição de discriminação positiva ou proibição de privilégios”. No cotidiano feminino essa discriminação que é rechaçada pela Constituição é presença diária em várias frentes, desde o âmbito familiar, onde muitas ainda sofrem da violência doméstica, por seus maridos ou companheiros, perpassa ainda por sua cor, raça, onde como exemplo a mulher negra é duplamente oprimida em seus direitos, uma por ser mulher e outra por ser preta. Temos, de acordo com o IBGE, uma disparidade salarial, onde a diferen- No cotidiano feminino essa discriminação que é rechaçada pela Constituição é presença diária em várias frentes ça chega a atingir 28%, ou seja, homens e mulheres fazendo o mesmo trabalho, porém com remuneração diferenciadas. A sociedade brasileira ainda mantém um cultura patriarcal, machista e muitas vezes de forma mascarada. Ainda que estejamos em luta contra as arbitrariedades que a sociedade nos impõe, a Constituição Federal foi um marco nesta superação do tratamento da desigualdade fundado no sexo, pois equiparou os direitos e obrigações entre mulheres e homens, mas sobretudo assumiu metas de adoção de políticas públicas que levem o Estado a uma condução positiva, através das ações afirmativas. As mulheres se uniram em várias vertentes, formaram sua luta, cada movimento dentro dos movimentos feministas, sim no plural porque são várias, reivindicando suas causas e direitos. Há várias matizes feministas que buscam seus ideais, suas reivindicações, entre algumas que se despontam hoje: 1) existe o feminismo negro, que teve em Angela Daves, teórica feminista negra norte-americana seu início, onde a mulher negra sente-se violada em seus direitos como cidadã através não somente de seu gênero, mas de sua raça, muitas até pela intolerância religiosa devido à desvalorização de religiões de matriz africana. Outrossim, o 2) feminismo radical, que ganhou força a partir do século XXI, através da internet. Este movimento acredita que toda a opressão feminina se deva a não atuação dos papeis sociais inerentes aos gêneros, quem assim os defende são jovens denominadas “radfem. Dentro do feminismo radical existem algumas divisões, como por exemplo a TERF, sigla para “Trans-Exclusionary Radical Feminists”, ou seja, feministas radicais que excluem transexuais. Essas feministas são completamente contra a participação masculina por considerar os homens opressores por natureza. Há o 3) feminismo interseccional, ou pós moderno, no qual seu objetivo é “costurar” as demandas de gênero com as de outras minorias, considerando classe social, deficiência física, orientação sexual, raça, dentre outros. Como exemplo podemos citar o transfeminismo, feminismo lésbico e o feminismo negro. O que ocorre é que com tamanha diversidade nem sempre conseguem caminhar em uma mesma direção. Este movimento é mais receptivo à participação dos homens. Por fim temos o movimento 4) das feministas liberais, nascidas de um envolvimento com o liberalismo clássico de Adam Smith, elas buscam assegurar a igualdade entre homens e mulheres na sociedade por meio de reformas políticas e legais, pregam que as desigualdades de gêneros devem ser vencidas através do combate das injustas situações da via institucional, estão adentrando gradativamente com representações na via política e econômica, por isso para elas se posicionar em instituições como congresso, meios de comunicação e lideranças de empresas são vitais para a ascensão do movimento feminista. Sempre haverá a pergunta, o que é feminismo e o que elas defendem. Diante do exposto as respostas podem variar dentro das várias vertentes, ou então pode até mesmo ser originada sua própria resposta. A busca em comum a todos nós é o devido respeito a nossa dignidade, tão menosprezada e dizimada ao longo dos séculos. Somos chamadas por vários nomes, bruxas, putas, santinhas do pau oco, todos querem nossa submissão. A cristandade tirou Lilith, a rebelde, aquela que não quis se subjugar ao primeiro homem da sua literatura religiosa, e colocou no lugar dela Eva, que apesar de ter dado a maça a Adão e levado ao “pecado” foi submissa a ele. Por todos os séculos procuraram nos submeter a obediência sem contestação, hoje vislumbra-se uma nova era, um novo tempo de sedimentação diante das várias lutas que foram travadas e conquistadas, novas mulheres estão surgindo, cada qual em seu espaço, com suas reivindicações e suas buscas por direitos e justiça. No momento não conseguem mais calar nossas vozes. Fonte: Portal Geledés 11 Opinião A ampliação dos direitos das mulheres passa pela ampliação da participação política Ana Carolina Westrup* A questão da participação política da mulher no Brasil não tem somente um determinante que revela uma grande ausência das instâncias formais de decisão e poder, mas sobretudo, de questões que envolvem a própria condição de mulher. Os papéis diferenciados que desempenham ainda hoje homens e mulheres é consequência de um período em que as mulheres não tinham a sua cidadania plenamente reconhecida e de um modelo social fortemente marcado pelo patriarcalismo e pela divisão dos papeis sociais, que introjeta para as mulheres a concepção de que a arena política não é um espaço para ser ocupado ou disputado por elas. Temos como exemplo uma luta histórica pelo direito de voto das mulheres. Mesmo com a conquista do sufrágio universal - no caso do Brasil, em 1932, que a torna elegível e eleitora - não se altera as condições desiguais, 12 entre homens e mulheres, no processo político, visto que que a baixa representatividade das mulheres na política se dá como reflexo de um cultura machista e sexista que se sustenta na retirada do protagonismo da mulher, seja na esfera pública ou privada. A própria Lei de Cotas, implantada no Brasil desde 1995, determinando que 20% das candidaturas seriam preenchidas por mulheres nas eleições do ano seguinte, e com o seu aprimoramento traduzido na Lei 9504/97, que determinou um número mínimo de 30% e no máximo 70% para qualquer dos sexos para as candidaturas partidárias a partir de então, não alterou a participação das mulheres nos espaços de poder, pela limitação do sistema eleitoral brasileiro, em que o voto é personalista e não na legenda, sendo assim, imprescindível o apoio dos partidos para que mais mulheres sejam eleitas, o que na maioria das vezes não ocorre, pelo mesmo ciclo vicioso do machismo e patriarcalismo que também é viven- Esse panorama agudo da falta de participação das mulheres nos espaços de poder é um dos principais entraves para avanços concretos de direitos ligados a busca pela igualdade de gênero ciado nas organizações políticas, sejam elas de esquerda ou de direita. Em uma pesquisa realizada pelo Instituto de pesquisa DataSenado em parceria com a Procuradoria Especial da Mulher do Senado, no final de 2014, aponta que a falta de apoio dos partidos é o principal motivo para haver poucas mulheres na política, seguida da falta de interesse por política, pelo Se o problema na participação das mulheres na política é um problema estrutural e de nível mundial, quando nos deparamos com a realidade brasileira a situação apenas se agrava absorção do papel doméstico que a grande maioria desempenha e a dificuldade de concorrer com homens. Mulheres na política em números - Se o problema na participação das mulheres na política é um problema estrutural e de nível mundial, quando nos deparamos com a realidade brasileira a situação apenas se agrava. A média mundial de participação das mulheres nos parlamentos é de, aproximadamente, 21% das cadeiras, no Brasil, na atual legislação, das 513 cadeiras na Câmara dos Deputados, 51 são ocupadas por mulheres e, no Senado, temos 13 mulheres num total de 81 senadores, o que representa 9% de participação feminina na Câmara dos Deputados e 10% no Senado. O mapa sobre “Mulheres na Política 2015”, elaborado pela Organização das Nações unidas (ONU), fez uma pesquisa em 188 países e o resultado é ainda pior. O Brasil ocupa apenas a 124ª posição no ranking em relação à igualdade de gênero e à participação de mulheres na vida pública, ficando de países árabes e africanos. Na América Latina, o Brasil está à frente apenas do Haiti. Já no que diz respeito ao mais recente processo eleitoral no Brasil, o Instituto de Estudos Socioeconomicos (INESC) e a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política realizaram uma pesquisa com os mais de 25 mil candidatos que disputaram as eleições em 2014, com o objetivo de mapear a participação das mulheres, negros e indígenas. A pesquisa revelou que no universo feminino, apesar de serem a maioria da população brasileira, o percentual de mulheres disputando as eleições de 2014 se limitam aos 30% impostos pela legislação eleitoral como cotas de gênero nos partidos, totalizando 8 mil candidatas, enquanto os homens representam mais de 17 mil candidatos. Quando o estudo é feito com dois recortes, ou seja, das mulheres negras candidatas, o resultado ainda é mais alarmante. Do total dos mais de 25 mil candidatos ao processo eleitoral de 2014, somente 14,02% são mulheres negras. Ausência e Consequências - Esse panorama agudo da falta de participação das mulheres nos espaços de poder é um dos principais entraves para avanços concretos de direitos ligados a busca pela igualdade de gênero, a começar pela própria pauta da representação das mulheres no legislativo brasileiro. Desde as primeiras discussões sobre uma reforma política ampla, nos idos de 2009, que buscasse amenizar a falta de representações das minorias no parlamento brasileiro, a tentativa de se instituir o voto em lista fechada com alternância de gênero foi uma das pautas mais importantes na mudança do sistema político no Brasil, até agora, sem eco no Congresso Nacional. Em 2015 foi lançada pela bancada feminina do Congresso Nacional a campanha “Mais Mulheres na Política”, tendo como principal objetivo lutar pela aprovação da PEC 134/2015, que estabelece reserva mínima de vagas para as mulheres nas próximas três legislaturas, começando com 10% do total de cadeiras, ampliando para 12% e, por fim para 16%, na terceira eleição após a aprovação da matéria. A PEC foi aprovada pelo Senado Federal, mas tem fortes resistências na Câmara dos Deputados, onde se encontra em apreciação. Quando tratamos do direito sexual e reprodutivo das mulheres, temos a clareza do que representa essa ausência. Em diversos Projetos de Lei que estão tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado, o principal objetivo das bancadas conservadores é promover a criminalização do aborto de qualquer forma, a partir da “valorização da vida e da família”. Os projetos possuem caráter discriminatório e machista, como mostra o PL 5069/13 de autoria do atual Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Esse projeto de lei busca criminalizar a propaganda e fornecimento de métodos abortivos, punir quem induzir o aborto (incluindo agentes de saúde) e estabelecer que a mulher vítima de estupro procure uma delegacia antes de ser atendida pelo sistema público de saúde, restringindo, assim, as mulheres que sofreram violência sexual. Ainda na seara de “valorização da vida e da família”, tramita no Congresso o Estatuto do Nascituro, através do PL 407/2007. O Estatuto do Nascituro pretende a proibição do aborto em caso de estupro, em casos de bebês acéfalos ou mesmo em que a gravidez represente um rico à saúde da mulher. Os dois projetos de lei estão tramitando na Câmara dos Deputados e já foram aprovados na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara dos Deputados e tem uma grande perspectiva de ir a Plenário nos primeiros meses de 2016. Enquanto isso, o Projeto de Lei 7016/10, que busca a igualdade entre homens e mulheres no, da deputada federal Luciana Genro (Psol-RS), proibindo o pagamento de salários diferenciados para homens e mulheres que exercem funções ou cargos iguais, ainda não saiu da votação nas comissões Não há dúvidas que a ausência de participação de mulheres no Congresso, para além de ser um problema de representatividade em si, afeta diretamente os direitos sociais da mulher. Por isso, o desafio de garantir uma reforma política ampla, que assuma o desafio de equilibrar o jogo político entre homens e mulheres no parlamento brasileiro é fundamental para a ampliação de direitos voltados para as mulheres, e sobretudo, para a quebra de paradigma sobre qual é o lugar da mulher na sociedade brasileira. Lugar de mulher é na política! *Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Sergipe, integrante do Coletivo Intervozes e editora do site da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política. 13 Debate “As Sufragistas”: Elas não tinham hashtags, mas fizeram muito barulho D epois de meses em que a luta pelos direitos das mulheres esteve na boca do povo --do Enem às hashtags #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto, passando pelos protestos contra os projetos de lei do deputado Eduardo Cunha-- é bastante oportuno que 2015 termine com a estreia de “As Sufragistas”, filme que resgata uma das primeiras vezes em que as mulheres se organizaram como movimento social para reivindicar seus direitos. Os direitos, no caso, eram coisas tão básicas quanto o voto, a participação na vida política, a guarda dos filhos e a possibilidade de ter propriedades em seus nomes, coisas que ainda eram negadas 14 às mulheres na Inglaterra do início do século 20, onde o filme se passa, e também no resto do mundo. Apesar de o movimento ter ficado mais conhecido pela reivindicação do direito ao voto, na verdade as sufragistas lutavam pela igualdade em todos os terrenos, inspiradas pelos mesmos ideais iluministas e humanistas que levaram à Revolução Francesa e formaram a base da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, mas que ainda excluíam as mulheres da vida pública. Nessa luta, as sufragistas acabaram deixando duas contribuições que vão muito além do feminismo: a ideia de solidariedade (em substituição a fraternidade, que significa apenas irmão ho- mem), e novos métodos de protesto e luta cívica --como grandes manifestações, greve de fome, interrupção sistemática de oradores com perguntas etc. “As Sufragistas” mostra todos esses aspectos do movimento através da história da fictícia Maud Watts (Carey Mulligan), uma jovem operária que ficou órfã cedo e leva uma vida dura ao lado do marido e do filho pequeno. Ao conhecer uma colega de trabalho que participa do movimento sufragista, ela vai aos poucos se dando conta das injustiças que sofre diariamente, como o abuso do patrão, o salário mais baixo do que o dos homens (apesar de trabalhar mais horas) e a falta de controle sobre a própria vida, já que cabem ao marido as decisões financeiras e sobre o filho. Sem se tornar panfletário, e focando mais no drama de Maud do que nos grandes acontecimentos, o filme dirigido por Sarah Gavron consegue traçar com sutileza paralelos entre ontem e hoje, mostrando que não avançamos tanto quanto algumas pessoas pensam --podemos votar, sim, mas ainda são muito poucas as representantes das mulheres na política; o julgamento moral daquelas que escolhem se dedicar a uma causa em detrimento da família também é forte; os salários ainda são menores e os abusos, frequentes. Mesmo o direito ao voto não é algo conquistado há tanto tempo. Na Inglaterra retratada no filme, ele foi obtido em 1928; no Brasil, em 1932; enquanto em países do Oriente Médio a conquista é ainda mais recente, com a Arábia Saudita permitindo apenas este ano que as mulheres votassem e se candidatassem a cargos políticos. Maud é uma personagem fictícia, mas foi baseada em mulheres bem reais, algumas delas retratadas diretamente no filme. Conheça as personagens reais que inspiraram “As Sufragistas”. Maud Watts O movimento sufragista era liderado principalmente por mulheres burguesas, mas muitas operárias também se juntaram a suas companheiras mais afortunadas na luta pelo voto e por mais direitos, como acontece com a fictícia Maud. Uma das mulheres reais que inspiraram a personagem foi Hannah Webster Mitchell. Nascida em uma família pobre em 1872, ela cresceu sem se conformar com a diferença de tratamento entre ela e seus irmãos. Inicialmente, considerou o sufragismo uma questão de classe média, porque havia uma exigência de propriedade, e se envolveu com o movimento socialista, mas acabou se juntando à União Social e Política das Mulheres (WSPU, na sigla em inglês), organização retratada no filme, e chegou a ser presa após interromper uma reunião política. Emmeline Pankhurst Meryl Streep faz uma participação especial como a líder da WSPU Emmeline Pankhurst, que inspira as personagens do filme assim como inspirou de verdade muitas sufragistas inglesas. Ela fundo a WSPU em 1903, aos 43 anos, quando já era viúva, com o lema “ações, não palavras”. Entre 1908 e 1914, Pankhurst foi presa 13 vezes e entrou em greve de fome em diversas ocasiões. Uma das prisões foi por ter assumido a autoria do atendado contra a casa de verão do chanceler do tesouro David Lloyd George, que aparece no filme. Suas ações só foram suspensas para apoiar os esforços da Primeira Guerra Mundial. Com o fim do conflito, em 1918, parte das mulheres inglesas receberam o direito ao voto, que foi estendido a todas as mulheres em 1928. Edith Ellyn A farmacêutica interpretada por Helena Bohan-Carter, que tem o apoio do marido na luta pelos direitos das mulheres, nunca existiu, mas foi inspirada em duas mulheres reais. A primeira foi Barbara Gould, química e psicóloga que fez parte da WSPU e foi apoiada por seu marido, Gerald, participando ativamente de atos como quebrar vitrines com pedras. Ela deixou a WSPU por divergências e fundou outra organização em 1914, a Sufragistas Unidos, da qual participavam tanto homens quanto mulheres. A segunda inspiração, citada por Bohan-Carter, foi Edith Garrud (foto), que dava aulas de artes marciais e defesa pessoal para as sufragistas se protegerem da polícia e do público que as hostilizava. Emily Wilding Davison Assim como Pankhurst, Emily Wilding Davison, interpretada por Natalie Press, é uma personagem real, que teve um papel trágico mas fundamental na luta das sufragistas. Nascida em 1872, ela se junto à WSPU em 1906 e se tornou uma das militantes mais ativas da organização. Ela foi presa nove vezes e seu último ato de militância ocorreu no Epsom Derby, em junho de 1913, quando ela invadiu a pista de corrida e se jogou na frente do cavalo do rei George 5º, sendo atropelada por ele. Sua morte atraiu a atenção da imprensa para o movimento sufragista e mais de 6.000 mulheres participaram de seu funeral. Por Natalia Engler, jornalista. 15 Educação que queremos A Cantora do Milênio é Mulher, Negra, Brasileira e Feminista: Elza Soares C onsiderada “a melhor cantora do milênio” pela BBC, descrita como “uma mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz” pela Time Out, e conhecida no mundo todo como A Rainha do Samba. Nascida na favela da Moça Bonita, passava a infância “rodando pião e brigando com os meninos”. Casou pela primeira vez aos 12 anos, teve seu primeiro filho aos 13, ficou viúva aos 21, e se tornou sensação internacional aos 30. Elza Soares não é apenas um ícone como artista, é também um ícone como pessoa, e um exemplo de superação. A vida não deu trégua pra essa mulher: teve que ser forte pra lidar com inúmeras dificuldades, e ainda assim, nunca deixou de subir no palco com um belo sorriso no rosto e contagiar a plateia com a alegria do samba. Nada é doce e suave quando se trata de Elza Soares. Desde sua expressão dura, emoldurada por seu afro volumoso coroado com flores ou um turbante, até sua voz metálica, suas feições felinas, seu sorriso largo e rasgado, sobrancelhas desenhadas 16 altas e arqueadas, e sua eloquência curta e grossa, aquilo que Elza transmite mais que tudo é força. Hoje, tem 60 anos de carreira musical. Seu samba alegrou e inspirou três gerações, e continuará a alegrar e inspirar as próximas. Elza Soares é um clássico, e não apenas um daqueles clássicos antigos, tipo aquela galera que fez músicas geniais e se aposentam, ficando presas no passado. Ela é um clássico que provou que enquanto estiver viva vai continuar se adaptando às novas gerações e aos novos mundos, sempre dando um jeitinho de adaptar seu talento. Em Outubro, surpreendeu os fãs, já acostumados a ouvir sua voz entre os batuques e aranhas do samba de raiz e da bossa tradicional, ao lançar um álbum, sem muito estardalhaço ou promoção prévia. Sim, Dona Elza fez a linha Beyoncé e surpreendeu os fãs com um álbum quando ninguém esperava, e como se não bastasse: o primeiro álbum inteiramente composto de músicas inéditas, depois de sua longa discografia recheada de interpretações de músicas muito bem conhecidas pelo Brasil. A princípio, é difícil de acreditar que uma senhora de 78 anos tenha lançado onze faixas tão contemporâneas, e tão relevantes em 2015. Os principais temas do “A Mulher do Fim do Mundo” é a violência contra a mulher, negritude, morte, e sexo. Abrindo o álbum, a belíssima faixa “Coração do Mar” é um poema de Oswald de Andrade cantado acapella, um ode a uma terra imaginária, “terra que ninguém conhece”. “É um navio humano / Quente e negreiro / Do mangue”. Conforme a voz de Elza desaparece, surge um quarteto de cordas anunciando a próxima faixa, e talvez a mais bela do álbum, que rendeu seu título: “A Mulher do Fim do Mundo”. Em contraponto às cordas, aparece a percussão típica do samba, acompanhada da voz ríspida de Elza: “Meu choro não é nada além de Carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”. “Na chuva de confetes deixo a minha dor Na avenida deixei lá A pele preta e a minha voz Na avenida deixei lá tão tradicional, tão samba, e ainda assim, tão diferente e inovador. Sua voz nesse álbum, suja, pesada, carrega seus 60 anos de carreira, bem como seus 78 anos de dor – desde sua infância difícil até a recente morte de seu quinto filho. E ainda assim, Elza se mostra mais empoderada do que nunca, o que fica bem claro na terceira faixa do álbum: “Maria da Vila Matilde – Porque Se a da Penha é Brava, Imagine a da Vila Matilde”, faixa que mistura um samba sujo com rock. “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180 Vou entregar teu nome e explicar meu endereço Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço … Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim” A minha fala, minha opinião A minha casa, minha solidão Joguei do alto do terceiro andar Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida Na avenida, dura até o fim Mulher do fim do mundo Eu sou – e vou – até o fim cantar” Eu fico arrepiada só de lembrar dessa música. É incrível como o trabalho de Elza pode soar tão familiar, Empoderamento de encher os olhos d’água, né? O melhor é o deboche que permeia essa faixa – Elza diz que quando o servidor público chegar ela oferece um cafezinho e mostra o roxo no seu braço, e que quando a mãe do agressor ligar, ”Eu capricho no esculacho / Digo que é mimado, que é cheio de dengo / Mal acostumado, tem nada no quengo”. Em entrevista, disse “Amor com pancada não existe. Mulher só deve gritar quando for de prazer”. E como coisa do destino, esse álbum foi lançado três semanas antes da prova do ENEM, cuja redação era justamente sobre a violência contra a mulher. Não é à toa que eu digo que a Elza é um clássico que continua relevante. Seguem duas faixas agressivas e pós-apocalípticas: “Luz Vermelha” e “Pra Fuder”. A primeira é a descrição de um Rio de Janeiro após o fim do mundo, por onde Elza vaga, sobrevi- vente. A segunda é sobre uma experiência sexual em que Elza se sente como uma espécie de entidade nativa do fogo. Em entrevista para O Globo, Elza explica: “A mulher do fim do mundo é a que vai ficar. O fim do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do espiritismo existe uma entidade que se chama Iansã. Ela é o fogo, a lava. Eu me vejo como essa entidade maravilhosa se incendiando, mas viva, viva eternamente”. Pra TV Carta, ainda completou: “Pra Fuder não é só sobre cama, não. É a mulher que bota pra fuder de verdade”. Já tá sem fôlego depois de tanto samba (literalmente)? Pois segura esse tamborim aí que tem mais: a sexta faixa do CD é sobre “Benedita”, uma travesti traficante. “Ele que surge naquela esquina É bem mais que uma menina Benedita é sua alcunha E da muda não tem testemunha Ela leva o cartucho na teta Ela abre a navalha na boca Ela tem uma dupla caceta A traveca é tera chefona” Talvez a faixa mais agressiva do álbum, ela transparece a realidade violenta da travesti no Brasil, e podemos sentir a adrenalina da perseguição policial às que traficam ou se prostituem. Ao longo da música, fica claro o porquê de Elza ter inserido essa faixa no álbum: ela se enxerga na travesti – violentada, injustiçada, forte, persistente e guerreira, Benedita é uma verdadeira “mulher do fim do mundo”, como a própria Elza. E Elza não simplesmente largou essa faixa e saiu correndo: em entrevistas sobre o álbum, quando questionada continua>> Se o problema na participação das mulheres na política é um problema estrutural e de nível mundial, quando nos deparamos com a realidade brasileira a situação apenas se agrava 17 sobre a faixa, ela não deixa de falar sobre a situação da comunidade trans no nosso país, revoltada com a violência que sofremos. Rainha mesmo, né? Isso sim que é sororidade. Em entrevista à TV Carta, disse “A mulher não tomou ainda o conhecimento que uma mulher ajuda a outra, que a gente precisa ter mulheres do nosso lado. Precisamos de amigas.” Se o problema na participação das mulheres na política é um problema estrutural e de nível mundial, quando nos deparamos com a realidade brasileira a situação apenas se agrava A faixa “Firmeza” é uma conversa descontraída entre jovens amigos que “se trombaram” na rua, provando o quão contemporânea Dona Elza realmente pode ser, simulando naturalmente um diálogo cheio de “qualés” e “firmezas”. “Beleza mano, fica com Deus / Quando der a gente se tromba, beleza? / Você é mermão muleque”. Em “Dança”, faixa mais tranquila que as cinco anteriores, que dialoga com o tango, Elza retorna a questões existenciais e espirituais. “Daria a minha vida a quem me desse o tempo / Soprava nesse vento a minha despedida / … / E se eu me levantar, ninguém vai saber / E o que me fez morrer, vai me fazer voltar”. Se o álbum abriu com duas músicas belíssimas, ele também encerra com três faixas tão belas quanto. A instrumentação de “O Canal” tem forte influência da música africana, que acompanha o tema da letra: uma jornada espiritual. “Solto” é a única faixa sem distorções, fora o prelúdio acapella do álbum, “Coração do Mar”. Descreve o processo de morrer: a alma se desprendendo do corpo. E, finalmente, fechando o álbum com chave de ouro, “Comigo” começa num crescendo de ruídos e distorções, construindo a tensão do ouvinte. Ao chegar na metade da faixa, o ruído de repente cessa, e a voz de Elza surge novamente num acapella belo e singelo, que encerra o álbum: “Levo minha mãe comigo Embora já se tenha ido Levo minha mãe comigo Talvez por sermos tão parecidos Levo minha mãe comigo De um modo que não sei dizer Levo minha mãe comigo Pois deu-me seu próprio ser” O novo álbum de Elza é fogo, é 18 melancolia, é sofrimento e é liberdade, como há de ser o samba, como é Elza Soares, e como é a mulher brasileira. Empodera, toca na ferida, é aquele tapa na cara que dói, mas nos faz acordar. Trata de racismo, de misoginia, de transfobia. A voz de Elza está rouca, rasgada, e sempre prestes a falhar, e exatamente por isso, mais bela do que nunca. É uma cicatriz que mostra a força que ela precisou pra enfrentar o que enfrentou, e é bela, como as marcas da idade no seu rosto. “Boto o passado todo num cantinho, guardadinho em mim, mas sabendo que o now está aqui. Ontem já foi, amanhã não sei. Então, tem que ser agora”. Elza Soares é o olhar misterioso de Capitu, a casca grossa de Maria da Penha, o sorriso alegre de Carmen Miranda, o braço forte de Dandara, tudo junto. É daquelas mulheres que fazem História pra lembrar às mulheres do Brasil que esse país é nosso. Fonte: Revista Capitolina Imagens da Luta Mantendo a luta acesa mesmo debaixo de muito sol, centenas de pessoaos percorram as ruas do Centro de Aracaju no Tradicional Bloco Siri na Lata, que aproveita a festa para protestar e reivindicar os direitos dos trabalhadores de Sergipe. Fevereiro de 2016. 19 20