programa procad: pucrs/uneb

Transcrição

programa procad: pucrs/uneb
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
PROGRAMA PROCAD: PUCRS/UNEB
dezembro/2010
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
REITOR
Lourisvaldo Valentim da Silva
VICE-REITORA
Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO – PROGRAD
Mônica Moreira Oliveira Torres
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PPG
Wilson Roberto de Mattos
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO – PROEX
Adriana Santos Marmori Lima
PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO – PROAD
Mirian de Almeida Costa
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL
Profa. Dra. Márcia Rios da Silva
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto
Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Coordenadora da Linha de Pesquisa Leitura Literatura e Identidades
Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira
Coordenadora da Linha Pesquisa Linguagens, Discurso e Sociedade
REVISTA TABULEIRO DE LETRAS
Editores: Prof. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira e Profa. Verbena Maria Rocha Cordeiro
COMISSÃO EXECUTIVA
Profa. Dra. Lígia Pellon de Lima Bulhões
Profa. Dra. Norma da Silva Lopes
Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
Profa. Dra.Verbena Maria Rocha Cordeiro
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alan Norman Baxter (UMAC - Universidade de Macau)
Profa. Dra. Elza Miné (USP)
Profa. Dra. Elizabeth Ramos (UFBA)
Profa. Dra. Emília Helena Portella M. de Souza (UFBA)
Profa. Dra. Esther Gomes de Oliveira (UEL)
Profa. Dra. Ceila Ferreira Martins (UFF)
Prof. Dr. César Nardelli Cambraia (UFMG)
Profa Dra. Denise Barata (UFRJ)
Prof. Dr. Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini (UFRGS)
Profa. Dra. Vera Teixeira de Aguiar (PUC - RS)
Prof. Dr. Leopoldo Comitti (UFOP)
Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes (USP)
Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca da Silva (UESB)
Profa. Dra. Maria de Lourdes Crispim (UNL - Universidade Nova de Lisboa)
Profa. Dra. Maria Teresa Gonçalves (UFRJ)
Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP)
Profa. Dra. Tânia Maria Alckimim (UNICAMP)
Apresentação da revista especial com artigos resultantes do Programa
PROCAD/PUCRS/UNEB
A Revista Tabuleiro de Letras traduz em seus escritos uma vocação concernente aos
objetivos gerais do PPGEL: promover o diálogo entre as linguagens. Isto faz salientar também
as diversas possibilidades de leitura nas artes e mais especificamente nos textos literários.
A presente edição se efetiva igualmente em um diálogo originado do encontro entre
professores, mestrandos e graduandos da Universidade do Estado da Bahia com professores,
mestrandos e graduandos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, encontro
proporcionado pelo PROCAD.
Justificando a sua vocação, a Tabuleiro de Letras apresenta a leitores e leitoras, um
horizonte prismático, pluralizado em caminhos inúmeros, por olhares que perpassam
memórias e formas de leitura e percebem detalhes e fragmentos que, talvez, perdidos ficassem
nas obras analisadas não fossem as reflexões dos autores dos presentes artigos.
É nesse horizonte que se verticaliza as batidas ancestrais; a oralidade do conto
africano, que atravessa o tempo e o mundo; a cidade de Salvador lembrada e refundada por
imagens; a ficção que se tece entre cacaueiros e bambuzais bem como sutil até nas raízes
supostamente realistas da história literária, que cria e inventa mas com isso também questiona
seu próprio cânone, já que motiva a busca de nomes esquecidos e conteúdos escamoteados
por essa mesma história; bem como as memórias que passeiam e se alimentam do cotidiano
das cidades em crônicas agudas sobre as periferias do mundo e das subjetividades. A oferta de
textos e de temas é plural e atraente:
Celso Sisto, em O conto popular africano: a oralidade que atravessa o tempo,
atravessa o mundo, atravessa o homem, convoca-nos a perceber essa veia da cultura
africana, entre nós reverberada, como uma dinâmica cultural que se presentifica, inclusive, na
recontação.
Maria do Socorro Carvalho, em Cinema na Bahia, memórias da cidade de
Salvador, reflete sobre Salvador e soteropolitanos enquanto imagens vivas e problematizadas
de questões culturais que se realçam em memórias.
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo, em Euclides Neto, A ficção tecida entre
cacaueiros e umbuzeiros, ressalta a presença desse fundamental escritor baiano considerando
as relações entre ficção, realidade e narrativas históricas, sublinhando as linhas de uma escrita
de certo modo alojada, por motivos vários, na periferia das leituras consagradas.
Ângela Maria Garcia, em Erico Verissimo: história da literatura ou ficção?, reassume
os meandros da interrogação ressaltada no título, propondo que o autor citado em Uma breve
história da literatura brasileira exerceu com eficácia o seu papel de ficcionista, e não de
historiador.
Cibele Beirith Figueiredo Freitas, em Um escritor chamado João Otávio Nogueira
Leiria, opera o resgate do poeta e jornalista gaúcho João Otávio Nogueira Leiria, auxiliandonos, a nós e especialmente aos sulinos, a nutrirmos com maior justiça a memória literária.
Edna Maria Viana Soares, em O leque das crônicas de Vasconcelos Maia:
(pre)texto para reflexão sobre Leitura, Literatura e Memória, faz emergir o cronista,
faceta alguma vez obscurecida pela mais conhecida faceta de contista do referido escritor
baiano, tradutor da cidade e de suas identidades.
O texto de Sílvio Oliveira, Algumas batidas curiosamente ancestrais do coração de
Landê Onawale, homenageia um nome muito importante para a poética baiana negra: Landê
Onawale, um poeta cuja sensibilidade perpassa os fios do que não pode ser olvidado e do que
permanece sendo em resistências costurado.
Esmeralda Guimarães Meira, em Um lugar para o poeta baiano Camillo de Jesus
Lima: entre nós, convida-nos a conhecer uma obra que, antes perdida no ostracismo, ora se
demonstra revigorada por um olhar atento.
Esse mesmo olhar atento se espraia em todos os textos, inclusive nos depoimentos de
estudantes sobre as experiências de intercâmbio proporcionadas pelo PROCAD.
Graduandos, como Liliane Rodrigues de Santana, Juan Müller Fernandez, Adilson Santos
Souza, Sullivan da Silva Flores e mestrandas, como Manuela Cunha de Souza, Ana Sayonara
Fagundes Britto Marcelo, participaram desse encontro produtivo de idéias e culturas. Neste
número especial, que comemora mas também avaliza a riqueza dessas experiências,
estudantes que intercambiaram seus olhares, corpos, sentimentos e pesquisas nas viagens
dialogizantes entre Salvador e Porto Alegre, comprovam, creio eu, o impacto novidador desse
encontro; agora, muito além do papel, materializado igualmente em vozes, abraços e a
surpresa, nessas viagens todas motivadoras, de reconhecer-se no estranhamento do lugar do
outro.
Acreditamos, portanto, que a leitura desta edição proporcionará a confirmação do
encontro já festejado, estando todos nós, professores e estudantes do PPGEL muito
gratificados por essa saudável e objetiva interação com nossos colegas do Rio Grande. Boas
leituras.
Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
PROGRAMA PROCAD: PUCRS/UNEB
Editores: Prof. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira e Profa. Verbena Maria Rocha Cordeiro
SUMÁRIO
NÚMERO ESPECIAL – dezembro/2010
ARTIGOS:
I - O CONTO POPULAR AFRICANO: A ORALIDADE QUE ATRAVESSA O
TEMPO, ATRAVESSA O MUNDO, ATRAVESSA O HOMEM
Celso Sisto – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
II - CINEMA NA BAHIA, MEMÓRIAS DA CIDADE DE SALVADOR
Maria do Socorro Carvalho – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
III - EUCLIDES NETO, A FICÇÃO TECIDA ENTRE CACAUEIROS E
UMBUZEIRO
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
IV - UM ESCRITOR CHAMADO JOÃO OTÁVIO NOGUEIRA LEIRIA
Cibele Beirith Figueiredo Freitas – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS)
V - O LEQUE DAS CRÔNICAS DE VASCONCELOS MAIA: (PRE)TEXTO PARA
REFLEXÃO SOBRE LEITURA, LITERATURA E MEMÓRIA
Edna Maria Viana Soares – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
VI - UM LUGAR PARA O POETA BAIANO CAMILLO DE JESUS LIMA: ENTRE
NÓS.
Esmeralda Guimarães Meira – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
VII - ALGUMAS BATIDAS CURIOSAMENTE ANCESTRAIS DO CORAÇÃO DE
LANDÊ ONAWALE
Sílvio Roberto dos Santos Oliveira – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
DEPOIMENTOS – PROGRAMA PROCAD
PORTO ALEGRE EM CENA
Manuela Cunha de Souza
DEPOIMENTO PARA A REVISTA TABULEIRO DAS LETRAS
PERÍODO DE BOLSA SANDUÍCHE DE MESTRADO – PROCAD/PUCRS/UNEB
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo
DEPOIMENTO DO INTERCÂMBIO PROCAD
Liliane Rodrigues de Santana
O PATERNON DAS LETRAS: EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO NA PUCRS
Juan Müller Fernandez
PROCAD
Sullivan da Silva Flores
DEPOIMENTO PROCAD
Adilson Santos Souza
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
O conto popular africano: a oralidade que atravessa o tempo, atravessa o mundo,
atravessa o homem
Celso Sisto1
RESUMO: O conto popular africano e as heranças da oralidade nos mecanismos de manutenção, preservação e
transmissão do conhecimento, dos costumes, das questões éticas e estéticas coletivas; a tradição cultural
dinâmica e o importante papel da memória como repositório e veículo da cultura, em sua função de comunicação
e continuidade. O conto popular africano, o registro escrito e suas principais características. A interlocução entre
as formas escrita e oral. O conto popular africano e a transculturação narrativa. O conto popular africano em
outra cultura como sobrevivência nativa, reincidência nacional ou reconquista mítica. A atuação dos griôs
modernos, o uso e a atualização do grande legado tradicional. A obra da africana Agnès Agboton, o livro “ Na
Mitón: la mujer en los cuentos y leyendas africanos” e o reconto “A menina-inhame”. A preservação das
matrizes orais na performance “cênico-literária” do texto e os elementos da espetacularidade; as características
predominantes dos contos populares e das lendas fundadoras recontadas pela referida autora. Os índices da
cultura iorubá e os temas universais. O universo da história narrada, a origem espacial, o universo dos
personagens, a caracterização econômica e a função principal do relato. A fala proverbial como fala final. O
reconto como preservação da essência e produção de nova linguagem em novo texto.
Palavras-Chave: conto popular africano; oralidade; reconto; griôs modernos, Agnès Agboton, “A meninainhame”.
"Este Continente é, ao mesmo tempo,
muitos continentes. A cultura africana não é uma
única, mas uma rede multicultural em contínua
construção"
(Mia Couto)
1
Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em
Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutorando em Teoria da Literatura
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros
grupos de contadores de histórias espalhados pelo país. Tem 46 livros publicados para crianças e jovens e
recebeu os prêmios de autor revelação do ano de 1994 (com o livro Ver-de-ver-meu-pai, Editora Nova Fronteira)
e ilustrador revelação do ano de 1999 (com o livro Francisco Gabiroba Tabajara Tupã, da editora EDC); ambos
concedidos pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Vários dos seus livros também
receberam o selo Altamente Recomendável, desta mesma Fundação.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Todos os povos sempre contaram histórias, desde os mais remotos tempos. Quando
ainda não havia a escrita, havia a palavra. E havia a memória. E as histórias eram guardadas
como verdadeiros presentes, relicários feitos de ar, lembranças, emoções; objetos para
encantar o outro, seduzir o outro, ensinar ao outro, abrandar o outro, comprometer o outro
com seu passado, sua gente e seu tempo.
O conceito de literatura oral surge, pela primeira vez, na obra “Littératura orale de la
Haute Bretagne”, publicada em 1881, por Paul Sébillot. Seu uso vem exatamente sublinhar
essas “obras” que passaram de geração em geração pelo exercício da repetição e pelo esforço
da arte e da memória! Sabemos que inúmeros círculos culturais, de modo geral, viveram um
período de agrafia e de oralidade, antes da introdução da escrita. E essa oralidade respondeu,
durante séculos, pela transmissão dos conhecimentos e das informações numa comunidade.
Formaram um corpus, que Luciano Caetano da Rosa chama de “tradição cultural dinâmica”
(ROSA, 1994, p. 140), para expressar a memória coletiva e individual. Então, a oralidade é
também um legado que se desenvolve na “consciência dos povos”, que, paulatinamente,
descobre outros recursos para reter mais informações e ampliar cada vez mais a memória.
Daí, a ligação forte e obrigatória entre oralidade e memória. Segundo Rosa, o estudioso
português, a memória é quem comanda tudo, sendo ao mesmo tempo “repositório e veículo”
da cultura (ROSA, 1994, p. 140). Sua contribuição, no seio de uma comunidade cultural,
garante a comunicação e a continuidade. Rupturas e perdas também fazem parte do
mecanismo da memória. Há uma predominância daquilo que é mais forte; daquilo que é mais
importante, necessário, validado, usual, na medida em que tantas outras contribuições podem
cair no esquecimento. Esse é um procedimento normal da memória. E a escrita, de algum
modo, complementa essa operação. A coexistência das duas formas – oral e escrita – vai criar
uma ação de interlocução, de influência, de comunicação entre as formas. Os pressupostos são
diferentes, as estéticas são diversas, mas as trocas são constantes!
Uma obra, originária da oralidade, pode “fixar-se” com o advento da escrita. Pode
registrar todas as variantes possíveis. Pode chegar mais longe. Um conto popular, que sem a
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
escrita, talvez ficasse restrito a uma determinada região, pode transferir-se para outra cultura,
pela ação de alguém que o ouviu, recolheu, registrou e recontou no papel. É o que tem
acontecido com freqüência com os contos populares africanos de diversos povos, de diversas
etnias. O trânsito, proporcionado, primeiramente, pelos registros de viajantes, pela ação de
pesquisadores, que em inúmeras expedições à África registraram as histórias que ouviram, foi
se tornando cada vez mais freqüente. Uma das primeiras publicações de coletâneas de contos
populares africanos foi exatamente resultante da expedição do antropólogo, etnólogo e
explorador alemão, Leo Frobenius (final do século XVIII, princípios do XIX). Frequentando a
África por trinta anos e tendo organizado doze grandes expedições, foi um dos primeiros a
pesquisar as lendas e os mitos de diversos povos africanos, sobretudo os cabilas, soninquês,
fulas, hauçás, urrongas, nupes etc. Depois, muitos outros registros apareceram; muitas outras
expedições, muitos outros compiladores de histórias.
Por isso, para refazermos um pouco esse trajeto das histórias, que registradas, andam
pelo mundo e ganham moradas em outras culturas, elegemos a obra da africana Agnès
Agboton, especificamente seu livro Na Mitón: la mujer en los cuentos y leyendas africanos.
Agnés é uma contadora de histórias africana que vive em Barcelona. Nasceu em Porto Novo,
República do Benim (antigo Daomé). Cursou seus estudos primários e parte dos secundários
em sua cidade natal e na Costa do Marfim. Em 1978 chegou a Barcelona, onde concluiu sua
formação secundária e em 1991 se licenciou em Filologia Hispânica pela Faculdade de
Filologia da Universidade de Barcelona. Divide-se entre duas culturas, mas mantém constante
contato com seu país natal, onde costuma realizar trabalhos de recuperação da tradição oral
(canções, contos, lendas, louvores familiares, etc.). Na Catalunha tem colaborado
intensamente, ao longo de anos, com o Departamento de Ensino Geral, e atuado em escolas
primárias, bibliotecas e outros organismos, contribuindo para a difusão da tradição oral
africana entre os jovens catalães e espanhóis.
A obra de Agnès nos interessa exatamente porque ela é herdeira da tradição oral de
sua família, registrou por escrito os contos e lendas do seu povo e de outros povos africanos, e
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
segue difundindo essas histórias, tanto em livro como em conferências, performances orais,
programas de televisão e de rádio.
Na Mitón, expressão que quer dizer “Nossa Mãe”, é usada como título de seu livro
porque é assim que o povo dela chama a deusa da fertilidade feminina. Ela ouviu as histórias
que reconta no livro, na língua “gun”, sua língua natal. As histórias da primeira parte são
“lendas fundadoras” e são contadas segundo suas memórias de infância, tal qual ela as ouviu,
tentando manter o cheiro e as marcas da savana e do seu lugar de origem. São narrações da
cultura popular, em que a mulher é protagonista. Na segunda parte do livro estão os “contos
do povoado”. São histórias que ela recolheu direto de informantes orais, em língua “fon”,
“gun” ou “yoruba”, em povoados e escolas rurais do Benin. Seu registro escrito busca
respeitar ao máximo o estilo do narrador. Só algumas onomatopéias sofreram uma
transliteração. É deste segundo grupo que retiramos a história “A menina-inhame”, que vai
servir de base para a nossa caracterização de um tipo de conto popular africano. Grosso modo
poderíamos pensar os contos populares africanos de diversas maneiras: primeiro como
sobrevivências nativas, ou como reincidências nacionais, ou como reconquistas míticas;
depois no que diz respeito ao universo da história narrada (animal, vida cotidiana, espiritual);
também quanto à origem espacial (savana, estepe, floresta, deserto, vales, zonas
montanhosas); também quanto ao universo dos personagens (da horda, do clã, da aldeia, da
selva, da sociedade simples, da sociedade polissegmentar, do panteão dos deuses); da
caracterização econômica (agricultores sedentários, caçadores errantes, pastores nômades,
seres fantásticos, seres míticos); e por fim, pensar na função principal do relato (manter as
origens, ressaltar identidades, recuperar trajetos históricos, reforçar as culturas materiais,
servir de peça de resistência ou modelo de conduta). São tantos os caminhos!
É a própria autora quem nos dá a chave para a consideração da dinâmica, da
permanência, da função e da difusão dos contos populares africanos, ao afirmar:
“o ensinamento que há mantido o relato durante séculos, nas distantes aldeias de
África Ocidental, pode também ser recebido, entendido e interpretado por ouvidos
muito distintos daqueles a que estavam destinados no princípio. E assim, o conto
segue cumprindo a missão que lhe foi encomendada. O conto segue sendo, então,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
um transmissor de valores tradicionais que, ademais, devem ser descobertos por
entre os rodeios da história e adaptados à realidade que se vive. A cada um sua
missão, a cada qual, sua tarefa. Mas, “de um e outro lado do mar de areia” os
homens e as mulheres não são, afinal de contas, tão distintos”! (AGBOTON, 2004,
p. 12-13)
O enredo encontrado em “A menina inhame” (veja-se o texto em anexo) é comum em
várias narrativas dos povos da Costa dos Escravos, especialmente nas histórias do povo popó,
em que há vários e distintos registros para essa mesma história. De um modo geral,
independente das pequenas distinções, é sempre a história do desespero de uma mulher que
não consegue ter filhos e que pede a algo da natureza (um inhame, um tubérculo, uma folha
seca) que se converta em sua filha. A mulher promete nunca revelar a verdadeira origem da
moça, mas acaba quebrando a promessa num momento de raiva. A tão desejada filha, então,
volta a ser o que era antes.
Da leitura atenta do conto recontado por Agnès Agboton, pode-se sublinhar uma série
de características comuns dos contos populares africanos. A referida história provavelmente é
iorubá, por causa da ocorrência de alguns nomes e palavras, como por exemplo: Djetin (que
decorre de djidade, que no iorubá da Nigéria quer dizer, “desejada”. Desta palavra podemos
chegar a outras palavras interessantes, que servem para reforçar a herança iorubana: diji (que
significa “fazendeiro”, também usual na Nigéria); djina (termo usado para identificar os
iniciados nos cultos de origem banto.
A história em questão apresenta algumas marcas dos costumes, subjacentes à
oralidade: o homem na etnia iorubá é polígamo. Especialmente para os iorubás, as mulheres
tinham grande importância nas feiras (mercado), como negociantes e eram maioria. Porque
saem de casa para trabalhar nos mercados, possuem grande mobilidade e certa autonomia,
pois não estão trabalhando para o seu cônjuge. Mas, elas têm que ser fértil. São as
progenitoras. Estão destinadas a perpetuar a linhagem familiar do marido (inclusive seus
filhos são consagrados ao deus do pai). Precisam ter filhos, senão são desprezadas pelo
marido. Moram fora da casa do marido.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
A história “A menina inhame” está repleta de aspectos mágicos, o principal é o fato de
o inhame falar e ter poderes sobrenaturais. Essa mistura entre o mágico e o encantamento
sobrenatural (que se dá “naturalmente”, atravessa o texto oral o tempo todo). Nesta região de
África, o inhame é o principal alimento e o seu cultivo assume um papel sócio-cultural central
na vida das populações rurais. O inhame tem uma simbologia ancestral ligada à fertilidade
(inclusive é associado à progesterona) e está vinculado a várias celebrações, inclusive como
comida dos deuses, especialmente o orixá Exu, que é o orixá mensageiro e também está
ligado à fecundação.
Reforçam o “espaço cultural da história” outros elementos iorubás: as nozes de palma;
o “kanan” ou folha de bobó (erva, que está ligada à Exu Jigidi, o provocador de brigas); o
sentido da palavra inhame, que nas línguas do oeste da África significa “comer”; a prática de
vender os produtos nas feiras, nos mercados populares.
É comum, neste tipo de história, a existência de uma fala proverbial, que nos remete
para o didatismo e para o ensinamento: “por causa dos insensatos que falam de qualquer jeito,
a natureza não satisfaz mais os desejos dos homens”. Essa parece ser a idéia latejante contida
na “menina-inhame”.
Mas também podemos sublinhar as regras sociais de comportamento e conduta,
presentes no texto: romper com a palavra empenhada gera punição. A palavra dada gera um
comprometimento ético, que não pode ser quebrado!
Também há ainda uma questão ritual, que pode ser observada no referido texto: apesar
de todo o processo de metamorfose e “desfeitura” (do inhame), do “juramento” de
manutenção da palavra dada (pela mulher) e da aparente igualdade entre homem e natureza, a
hierarquização do poder pune duplamente a mulher. Primeiro por ser infértil, depois por ser
“vulnerável” às suas emoções, a ponto de quebrar uma promessa. E desse modo, carregar a
culpa da responsabilidade pelo fato dos elementos da natureza não atenderem mais aos
desejos dos seres humanos.
O texto também aponta para a performance oral de um “suposto” narrador-contador. A
emoção desencadeada pelo texto está diretamente ligada aos registros da voz, do som, do
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
ritmo. Há um uso de onomatopéias (por exemplo o : “vla, vla, vla!” do vôo do pássaro). Há o
registro da canção no corpo da história, de certa forma a abrigar um corpo físico que fala, que
dança, que gesticula.
Na ordem morfológica, estamos diante de uma narrativa descendente, ou seja, que
acaba com a punição da protagonista; a heroína é punida. As narrativas ascendentes e
descendentes são as mais simples em quase todas as civilizações de tradição oral. Na ordem
temático-antropológica, a narrativa se insere no padrão pessoa fraca, abandonada, desprezada,
que ultrapassa situação inicial por ajuda de um “ser mágico” é castigada por não cumprir
pacto feito.
As narrativas orais, quase sempre têm uma fórmula de abertura e de fechamento. Na
“menina-inhame” vemos isso através da expressão “Meu conto corre, fiuuu!... Até encontrarse com uma mulher que nunca tinha tido filhos”. Novamente a oralidade (fiuuu!) substituindo
a noção de movimento no tempo e no espaço. É curioso lembrar algumas uuais fórmulas de
desfecho, comum em muitas histórias: “e a história termina assim; o primeiro que a respirar,
vai pro Paraíso...” (diz-se no Senegal). Em Angola, alguns contadores dizem, para terminar:
“uma criança não põem uma história comprida, senão nasce-lhe um rabo!” (segundo Óscar
Ribas). Também em Angola, contador que narra de dia, cria rabo, reza a crença popular.
Diante desta história, outra informação se torna necessária: a genealogia iorubá diz
que a matéria primordial é roubada da terra, a Orisa Onile. E o Orisa Iku, a morte, é o
encarregado
de
fazer
essa
reposição,
devolvendo
à
terra,
a
matéria
roubada.
Conseqüentemente a vida é uma corrida constante pela restauração do equilíbrio através de
negociações e trocas, para aplacar ou enganar Iku e Onile. De algum modo, as histórias
iorubás servem para ilustrar essa constante ação da vida e da morte, da criação e da
destruição, da recompensa e da punição, tudo em nome de uma idéia primordial de “paraíso”.
A história recontada por Agnès Agboton nos faz lembrar que a literatura oral africana
(mito, conto, provérbio, adivinhação, etc.) é uma criação grupal, e deve ser vista assim;
portanto, tem certas regras e, para compreendê-la, é preciso analisar sua forma e seu conteúdo
a partir de um enfoque multidimensional. O ato de contar é ato de reunir, ato de reencontro,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
de comunhão (portanto, rito coletivo). E essas histórias, através do tempo são enriquecidas,
refeitas muitas vezes, pela interação com o público. No processo de produção e difusão dessas
obras culturais, o ouvinte atua como co-produtor, numa interação constante entre autores e
destinatários. Desta interação resulta uma estimulante energia de criação e uma participação
de toda a coletividade no enriquecimento do patrimônio comum.
De modo geral, as histórias orais revelam a expressão cultural daquele povo; a
sobrevivência das tradições desaparecidas, a sabedoria antiga (há quem chame isso de
folclore); o reflexo da sociedade tradicional (e da contemporânea também), sua maneira de
ensinar e transmitir valores ao grupo (etnologia); maneiras de expressar os problemas
psicológicos (a possibilidade de uma leitura psicanalítica).
É preciso lembrar que essas histórias narradas oralmente têm elementos (textuais e
corporais) que apontam para a noção de espetacularidade. Como os elementos de variados
universos de linguagens - rítmico e musical; gestual e plástico; ritualístico, poético e
imagético - se conformam para dar origem ao conto popular em sua forma escrita? Essa
pergunta, que estará sempre na base do registro escrito de uma história oral, de algum modo é
respondida cada vez que um autor reconta uma história da tradição oral. Embora se possa
considerar que as histórias na oralidade, possam ter uma base léxica e sintática muito mais
rica do que a língua correntemente falada, o texto escrito também oferece vastas
possibilidades de análise, que vinculam as obras de literatura oral a outros aspectos da cultura.
"Na África, cada velho que morre é uma biblioteca que se queima”, dizia Amadou
Hampâté Bâ (1901-1990), historiador e etnólogo referência em tradição oral do Mali e para
seu povo, os Fula (nação de pastores nômades que conduziu seus rebanhos através de toda a
África savânica ao sul do Saara, entre os oceanos Atlântico e Índico durante milênios). Para
muitos africanos (normalmente os islâmicos) existe “a minha verdade, a sua verdade e a
verdade". Para os africanos a escrita não está diretamente relacionada ao saber. A palavra
falada diz, sim, muito mais de um homem do que aquilo que ele escreve.
“A escrita é uma coisa e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas ela não
é o próprio saber. O saber é uma luz que está no homem. É a herança de tudo o que
os ancestrais puderam conhecer e nos transmitiram em germe, assim como o baobá
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
está potencialmente contido em sua semente”, dizia Bokar (lider espiritual de
Amadou Hampâté Bâ).
"Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção
que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como cera virgem", diz
Hampâté Bâ. (HAMPATE BÁ, 2003)
A oralidade africana hoje é reconhecida como fonte legítima de conhecimento
histórico graças também ao trabalho de Hampate Bá. E com ele, podemos pensar ainda que a
narração oral é também uma maneira de fazer uso da palavra social. Essas histórias, contadas
para um grupo de pessoas, estão impregnadas de uma vida singular: costumes, referências
históricas, referências locais, valores, hierarquia, ancestralidade, códigos de conduta, etc. As
histórias veiculam signos que tornam a comunidade visível para ela mesma. Seja pela
semelhança, seja pela diferença. Narrar uma história é manifestar a unidade e a diversidade.
Ao sujeitar-se à narração de uma história, o indivíduo coletivo mergulha em um universo
global para adquirir uma mais viva sensibilidade e aprender a conhecer-se melhor. Diz o
estudioso da oralidade, Guy de Bosschère que “a relação com o grupo é também uma forma
de introversão”. Mergulhar em si mesmo, a partir de uma ação coletiva é o que pode realizar o
ouvinte de uma narração oral, ainda que em meio ao grupo.
A despeito da especificidade irredutível das etnias, as histórias populares tratam de
temas universais. A narração oral, coletiva por natureza, sempre foi preponderante na África,
sobretudo na África negra. Diz Guy de Bosschère: “que é o negro senão em primeiro lugar
um ser coletivo? O que não significa que a consciência de sua identidade individual esteja
atenuada, senão que ela está singularmente valorizada em sua relação com a consciência
coletiva. (...) Não está limitado a seu corpo, senão ao corpo social (BOSSCHÈRE, 1973, p.
19-20).
Para entendermos a oralidade africana é preciso considerar que o homem e a natureza,
a vida e o mito, o sagrado e o profano estão indissociavelmente ligados. E a oralidade serve
para propagar essa idéia.
A literatura oral faz da memória o seu depósito sagrado. Como diz Bosschère, “a
tradição oral é o reservatório da acumulação cultural da comunidade” (p. 28). É longa a
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
discussão que leva em conta se a manutenção da tradição faz dela algo dinâmico, possível de
ser renovado ou a fixa de forma imutável. De qualquer modo, Bosschère, usa uma bela
imagem, para dar conta de ambas as coisas. Ele diz que “a tradição oral tem por ofício
embalsamar o corpo do sagrado e do profano, de tal modo que, apesar do embalsamento
ordinário, ela pode revelar intactas a força e a irradiação” (p. 28). Revelar uma força vital, que
se mantém viva no tempo e continuar tendo significado, propagando-se, irradiando-se é
próprio da tradição oral, que não tem nada que adotar essa postura de algo acabado, único,
imutável. O embalsamento é apenas uma maneira de conservar, não de engessar. Mantém-se a
estrutura básica, o arcabouço, e se produzem constantemente novos recheios. É isso o que a
tradição oral faz, do contrário, não estaria viva. Essa é a dinâmica do conto popular. A
essência das histórias populares é preservada, mas a linguagem e o texto podem ser
produzidos pelo contador que as conta. Sabem muito bem disso os contadores populares
africanos, os griôs, os djélis (nas áreas ao norte de Mandê), os jalis (nas áreas ao sul de
Mandê), os guewel (em wolof), gawlo (em fula), os igiiw ou igawen (para os árabes), os
akpalôs (dos nagôs), etc.
Griôs ou contadores de histórias vivem hoje em muitos lugares da África ocidental,
incluindo Mali, Gâmbia, Guiné e Senegal, e estão presentes entre os povos Mandê ou
Mandingas, (Mandinka, Malinké, Bambara, etc.), Fulbe (Fula), Hausa, Songhai, Tukulóor,
Wolof, Serer, Mossi, Dagomba, árabes da Mauritânia, e muitos outros pequenos grupos. A
palavra “griô”, dizem, deriva da transliteração para o francês (guiriot) da palavra portuguesa
"criado".
Existem diversas anotações e descrições dos griôs nas fontes árabes de pesquisa, sendo
as mais antigas datando do século XIV. Nas fontes dos portugueses tais anotações começam
um século depois (XV) e nas dos franceses e ingleses no século XVII. Inicialmente tinha-se o
termo guiriot, provavelmente vindo do que os franceses ouviram na região da Senegâmbia
(região que engloba Senegal e Gâmbia - século XVI). No fim do século XVIII o termo foi
sendo
modificado
até
chegar
a
griô.
A palavra designa um artista musical e verbal. Eles são altamente treinados (como
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
profissionais), e isso é cuidadosamente passado de geração para geração dentro de um número
bastante limitado de famílias. Eles também são, além de músicos, cantores, oradores públicos,
historiadores orais, fazem rezas, previnem as pessoas, profetizam fatos, contam anedotas,
crônicas e conectam a história mais antiga do passado ao presente. É impressionantemente
vasta a memória histórica dos griôs. Impossível de imaginar! Eles se especializam em três
campos basicamente: discurso (kuma), que é o veículo para as narrativas históricas, as
genealogias e os provérbios; canto (donkili), que se refere as melodias e letras, as quais são
típicas de seus repertórios; e por fim a arte de tocar um instrumento (foli ou kosiri,
dependendo da região).
Os griôs contam, cantam, dançam. Brincam com a platéia, contam narrativas
históricas, genealogias, fazem jogos de ritmos e de adivinhações, dizem provérbios. As
histórias que contam e suas performances possuem, em geral, as seguintes características:
exigem uma grande fluência verbal; requisitam uma constante renovação do ritmo da
narração; pedem períodos curtos, para o ouvinte não se perder; necessitam que a voz conjugue
palavra e emoção. Do uso desses elementos, pode-se inferir que a carga emocional é mais
importante do que a própria palavra, que a própria história e que dominar a palavra é ter poder
sobre a história e sobre o público.
As histórias, aprendidas como herança ancestral, mantém viva a tradição. Houve um
tempo em que um contador tradicional, um griô só podia nascer numa família de griôs, ou
seja, formavam uma espécie de sociedade de castas. E aprendiam, desde muito cedo, as
histórias do seu povo, as lendas, os mitos, as histórias genealógicas; aprendiam ainda a tocar o
kora e os tambores e as danças rituais. Hoje o uso do termo generalizou-se, e considera-se
griô todo contador de histórias africano que faz da narração oral uma atividade profissional.
As funções sociais de um griô são mais extensas do que se pensa: atuar como genealogista;
como conselheiro; como guerreiro; como testemunha; recontar a História, servir de porta-voz;
representar o governante como diplomata, mediar conflitos, interpretar e traduzir a palavra
dos outros em diferentes línguas; tocar instrumentos; compor canções e melodias; cantar
louvores; ensinar os estudantes; exortar os participantes numa guerra ou competição
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
esportiva; transmitir notícias; conduzir cerimônias, como nomeações, iniciações, fazer a corte,
casamento, tomada de posse, funerais.
Ainda que no passado eles tenham exercido outras funções, o griô africano detém um
reconhecimento e um respeito, que o obriga ainda hoje, de algum modo, a atuar como juiz em
querelas comunitárias, a presidir cerimônias de casamento e nomeação, ou
a servir de
memória viva para seu povo. O que condiz com o pensamento de Bosschère ao afirmar que “a
tradição oral é o museu vibrante e sonoro (e imaginário) da permanência do ser” (p. 28-9). E
os griôs contemporâneos guardam consigo esse acervo e são o próprio museu vivo.
A voz é a principal difusora da literatura oral. É seu veículo imediato e está
impregnada da emoção e dos ritmos de quem a difunde. Esse veículo proeminente, associado
à outros elementos da performance (o corpo, a dança, a música, o canto), fazem da narração
oral um exercício de atuação inolvidável.
A oralidade africana é sempre vista como expressão de uma força vital. A memória é
tida como o depósito sagrado. A tradição oral é o reservatório da acumulação cultural da
comunidade, e a memória da oralidade é a da comunidade viva das gerações sucessivas
(BOSSCHÊRE, p. 27). É a manutenção, a divulgação, a coletividade e a permanência que
participam desta dinâmica da oralidade.
O autor Guy de Bosschère defende ainda que “os relatos sagrados, as práticas mágicas,
os costumes, os triunfos guerreiros, a transcendência genealógica, ou seja, todos os elementos
que formam a história dinâmica memorizada de cada micro-sociedade negro-africana são de
natureza emocional e não reflexiva” (p. 29). As histórias são, por assim dizer, uma maneira de
expressar a emoção da vida vivida; os elementos que a constituem estão ali porque guardam
essa vibração, mas a finalidade, dentre tantas, pode ser de ensinamento, de julgamento, de
aprovação ou punição de um comportamento, de demonstração dos poderes divinos, etc.; e
tudo isso nos impele a acreditar que uma história seja veículo de mobilização, mas também de
reflexão, de diversão, mas também de crítica. Histórias diferentes para momentos distintos. É
ainda baseado em Bosschère que se pode afirmar que as narrativas orais manifestam “os
signos das relações sociais exemplares e de uma ética política singular” (p. 33). Manifestam o
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
imaginário e a maneira de lidar com o cotidiano, segundo as necessidades mais profundas dos
povos que a praticam. A tradição oral, adaptada às condições naturais, históricas, culturais,
jurídicas, religiosas, específicas de cada povo, obedece ao contexto de cada civilização.
Os contos populares são uma maneira de resgatar a identidade, para restabelecer uma
filiação com o poeta tradicional, com o griô do passado, para irrigar a fonte e a razão original.
Os contadores atuais não foram escolhidos pelos antepassados como o “catalizador da
força vital”, para usar uma expressão de Bosschère (p. 47), também não é o interprete da
tradição cosmogônica (p. 47), pois na maioria das vezes não é mais “eleito” para essa função
de contador, pela comunidade. Pelo contrário, esse novo contador de histórias tem uma
consciência aguda de sua individualidade e sua atuação é exatamente no sentido de não deixar
que tudo isso se esvaia, esse rico acervo oral. Mas ele fala em seu nome, “ainda que pretenda
adicionar a voz de todos à sua voz” (BOSSCHÈRE, p. 47-8). De certa forma, poderíamos até
dizer que esses novos mantenedores da tradição oral, também têm que reinventar os ritos e os
costumes, para manter sua arte e sua tradição viva.
É isso o que faz Agnès Agboton, que escolhemos aqui para caracterizar uma das tantas
possibilidades configurativas do conto popular africano. É isso o que fazem os autores que
circulam agora no mercado editorial brasileiro, como Catherine Gendrin, Meshack Asare,
Adwoa Badoe, Blaise Cendrars, Niki Daly, Mamadou Diallo, Marie Ferraud, Leo Frobenius
& Douglas C. Fox, Angela Shelf Medearis, Kate Smith Milway, Praline Gay-Para, Kaleki,
Katie Smith Milway, Anna Soler-Pont, Gcina Mhlophe, Yves Pinguilly, Nelson Saúte e todos
os outros que constam da coletânea organizada por Nelson Mandela.
A permanência da tradição oral nos leva a pensar numa mudança de foco. As
narrativas produzidas com a finalidade de ilustrar, manter, ensinar, educar, avisar, evitar,
propagar, sofrem, evidentemente, o impacto da civilização da escritura e dos preceitos da arte
centrada no objeto artístico e na individualidade de quem a produz. Resultante das investidas
coloniais, da assimilação, do contato com outros povos, sobretudo europeus, dos pressupostos
da arte, modificados através do passar dos tempos, sobretudo na modernidade, com a noção
de arte e com o nascimento da crítica.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Sabemos, portanto, que as histórias que nos chegam hoje, estão separadas da força
vital que as anima, estão separadas de seu contexto cultural e mágico. Será que escrever um
conto oral é fraturar esse conto?
O intérprete passa a ser o criador, a obra coletiva passa a ser individual. A crítica nasce
para corroborar o que é ou não Arte. As narrativas orais abandonam o rito e a comunhão com
o sagrado, a coletividade, de onde procediam, para tornarem-se, através da escritura, um
objeto com fim em si mesmo, autônomo, independente, individualizado, buscando ser
reconhecido como literatura. O livro modifica a recepção coletiva, individualiza o consumo,
solidifica as histórias, mas quer recuperar a crença na palavra, no imaginário, na catarse,
acrescido da possibilidade da construção de uma outra cidadania. São outros tempos! Tomara
que a cultura oral africana possa ser aqui laço de união!
REFERÊNCIAS
AGBOTON, Agnès. Na mitón: la mujer en los cuentos y leyendas africanos. Barcelona,
RBA Libros, 2004.
BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. Trad. Xina Smith de Vasconcellos. São
Paulo, Palas Athena/Casa das Áfricas, 2003.
BOSSCHÈRE, Guy de. De la tradicion oral a la literaura. Seleção e tradução de Rodolfo
Alonso. Buenos Aires, Rodolfo Alonso Editor, 1973.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. São Paulo, Papirus, 1998
PADILHA, Laura & RIBEIRO, Margarida Calafate. Lendo Angola. Porto, Edições
Afrontamento, 2008.
ROSA, Luciano Caetano da. “A oratura no espaço da lusofonia africana”. In: Lusographie,
lusophonie (v. 1). Colloque Internacional Université Rennes 2 – Départament de Portugais. ,
28, 29, 30 Septembre 1994. pp.140-47.
VERGER, Pierre. "A contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil". In:
Culturas africanas. São Luís do Maranhão, UNESCO, 1986.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
ANEXO
A MENINA INHAME
(recontada por Agnès Agboton,traduzida por Celso Sisto)
Meu conto corre, fiuuu!... Até encontrar-se com uma mulher que nunca tinha tido
filhos.
Não tinha tido filhos, assim são as coisas...
Vivia de colher nozes de palma secas. Ninguém vivia com ela, ninguém a ajudava. Ia
solitária até o matagal, se metia entre as ervas e espinhos para apanhar os frutos secos. E
assim, um dia, quando estava recolhendo suas nozes, viu Tevi, o grande tubérculo, a que os
brancos chamam inhame.
Quando a mulher viu assim o inhame, disse-lhe:
- Nossa! Veja como sofro, não tenho filhos! E, tu, Tevi! Se pudesses converter-te em
um filho para mim agora mesmo, isso me alegraria. Se te transformas para mim em um filho,
me sentirei muito feliz.
- Então é isso! - Respondeu o inhame -. Queres que eu me converta em teu filho para
que logo, no futuro, possas chamar-me “inhame”, possas insultar-me e dizer-me “fruto da
selva, fruto da selva selvagem e cru”.
- Não! Nunca farei isso! Eu vivo justo na desgraça de não ter filhos desde muito
tempo. Nunca farei isso. Nunca farei isso. Tenha compaixão de mim. Transforme-se em meu
filho, por favor, eu, que nunca tive filhos!
- Vire-se então. Fique de costas.
A mulher se virou e Tevi, o inhame, se converteu em uma moça formosa, com uma
preciosa pele clara.
Aiiiiiiii! A mulher se alegrou tanto que colocou imediatamente na cabeça o cesto com
que colhia as nozes de palma e disse à moça:
- Te chamarás Djetin.
Tomaram então o caminho de volta. Não quis continuar recolhendo aqueles grãos
alaranjados naquele dia.
A mulher e a moça chegaram em casa e ali ficaram. A mulher cuidava dela e a
mimava. Dava a ela todo o tipo de enfeites, colares e braceletes de contas, trajes e vestidos...
Ambas viveram assim em plena harmonia até que um dia a mãe perguntou a sua filha quê
poderiam fazer para ganhar a vida. E esta lhe respondeu:
- Cozinhemos kanan, essa pasta de milho que se vende enrolada em folhas.
Então, a mulher foi comprar milho, o moeu e sua filha preparou o kanan. Ambas iam
mais que depressa, vendê-lo nos mercados e pelos povoados vizinhos.
Certo dia, a mulher pediu a moça que fosse ao rio buscar água enquanto ela ia comprar
o milho.
A jovem foi ao rio e se demorou ali muito tempo, pois muitas mulheres também
procuraram aquele lugar para buscar água.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Entretanto, a mãe, que estava moendo o milho, começou a enfezar-se vendo que sua
filha não voltava. E, estando sozinha, enchia-a de injúrias.
- Mas, veja só que coisa! Esse fruto do mato, essa cria da erva daninha, essa selvagem
foi e até agora não voltou! Esse Tevi, esse inhame selvagem, por que será que está fazendo
isso? Por que não pode ser mais obediente? Mas, por outro lado, que que se pode esperar de
algo que saiu do mato? No mínimo seria um inhame duro, que demoraria horrores para
cozinhar! Ela é apenas um inhame, nada mais.
Resmungava e a maldizia desse jeito sem perceber que por ali voava um aloé, um
pássaro tagarela, que estava escutando tudo o que a mulher dizia.
Mais tarde, chegou a filha e surpreendeu sua mãe que continuava murmurando:
- Mas, minha mãe, o que que há?
- Oh! Já voltou querida filha! Kuavo, seja bem-vinda! Que que aconteceu? Por que
demorou tanto?
- É que tinha muita gente no rio.
Mas de repente o aloé, o papagaio, cantou:
Djetin he, Djetin anonhue zunhue
Edo glevi gbo, ahin, ahin
Tevi mabi to dodji
Tevi mabi, ahin, ahin
“ Ê, Djetin, ê Djetin, tua mãe te insultou!
Te chamou coisa do campo, selvagem, selvagem,
Inhame que nem sequer se cozinha no fogo
Inhame cru, selvagem, selvagem.”
Aaaaaaaa! Então, a mãe se dirigiu rápido a sua filha:
- Vem, vem não lhe dê ouvidos! No lhe faça caso.
E a filha respondeu:
- Mas, não estás ouvindo as palavras que ele canta?
E o pássaro repetiu novamente a canção:
Djetin he, Djetin anonhue zunhue
Edo glevi gbo, ahin, ahin
Tevi mabi to dodji
Tevi mabi, ahin, ahin
- Eu tinha te avisado, tinha te avisado! – ameaçou Djetin a sua mãe.
Tirou, em seguida, os belos adornos que levava ao pescoço, nos braços e na cintura.
Quebrou a jarra de água que levava na cabeça e se dirigiu até os campos voando, vla,vla, vla!
Ao chegar ao lugar onde tinha sido inhame, recuperou ali sua forma original.
E assim termina este conto e suas palavras nos dizem que por culpa dos insensatos que
falam de qualquer jeito estamos hoje como estamos, porque se não fosse assim, poderíamos
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
dirigir-nos a qualquer coisa e pedir-lhe que se transformasse para nós em um filho. E a coisa
assim faria.
Se não tivesse existido gente como essa, hoje talvez pudéssemos obter o que quiséssemos.
Desde então, a natureza decidiu não satisfazer mais aos desejos dos homens, pois antes,
quando o homem tinha uma necessidade, bastava apenas dizer em voz alta para ser atendido.
AGBOTON, Agnès. Na mitón: la mujer en los cuentos y leyendas africanos. Barcelona,
RBA Libros, 2004 p. 141-4
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Cinema na Bahia, memórias da cidade de Salvador2
Maria do Socorro Carvalho3
RESUMO: A produção de cinema na Bahia pode ser associada à busca de construção de uma memória da
cidade de Salvador. É notável sua forte presença como tema, cenário e problema de grande parte de sua
cinematografia, sobretudo ao tratar-se do chamado Ciclo do Cinema Baiano (1958 – 1964), quando tem início a
realização dos primeiros filmes de longa-metragem na Bahia. Este artigo aborda o Ciclo do Cinema Baiano
como depositário de memórias da cidade de Salvador, com destaque para o filme A grande feira (Roberto Pires,
1961), que discute um problema contemporâneo daquela cidade – o dos feirantes de Água de Meninos
ameaçados de serem expulsos do terreno da feira. Com A grande feira, uma bem sucedida experiência de crítica
e de público, os soteropolitanos não estavam apenas na platéia, mas também nas imagens do filme projetado na
tela do cinema, fazendo dele a produção mais representativa daquela sociedade que então produzia a nova onda
baiana (1958 – 1962).
Palavras-chave: Cinema–Bahia; Memória–Salvador; Nova onda baiana
Esboçarei algumas notas sobre o cinema na Bahia, em torno da relação entre a
produção de filmes do surto cinematográfico baiano do final dos anos 1950 e a efervescência
cultural desse período, em Salvador, para pensar a história do cinema baiano, recorrentemente
contada em ciclos (como também acontece com o cinema brasileiro) e a memória daquela
cidade.
Por isso, nesse momento de uma “novíssima onda baiana” que assinala um
significativo aumento da produção cinematográfica local, começo citando uma frase de
2
Texto extraído de Maria do Socorro Silva Carvalho, Imagens de um tempo em movimento (1999) e A nova onda
baiana (2003) . Uma versão dele foi apresentada na mesa-redonda “Cinema na Bahia, ontem e hoje”, do III
Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual (SemCine), realizado na cidade de Salvador, em julho de 2007.
3
Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) e do Curso de Graduação em
Comunicação Social (DCH-I) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Email: [email protected] .
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Glauber Rocha, proferida no já distante ano de 1968 – “antigamente, nós fizemos o
impossível: cinema na Bahia”.
O quase veredicto de Glauber Rocha remete-nos ao movimento que inaugura uma
importante produção cinematográfica na Bahia, o chamado Ciclo de Cinema Baiano (19581964), que recortei como A Nova Onda Baiana. Ou seja, o cinema feito, na Bahia, de
Redenção, em 1958, o primeiro longa-metragem baiano, a Tocaia no Asfalto, realizado em
1962, ambos dirigidos por Roberto Pires. Entre esses dois marcos, além de um número
expressivo de curtas-metragens, são produzidos mais cinco filmes de longa-metragem, todos
de ficção. É um fenômeno que chama a atenção. De repente, em um lugar sem história de
produção de filmes, à exceção de pequenos documentários do pioneiro Alexandre Robatto
Filho (hoje em processo de restauração na Cinemateca Brasileira), surge um movimento de
cultura cinematográfica, não apenas produzindo filmes, mas antes crítica, técnicos,
produtores, atores e diretores. Tudo acontece muito rapidamente, e em um breve intervalo de
cinco anos essa nova onda de cinema na Bahia nasce, cresce, produz, ganha notoriedade e
morre.
Em 1959, Trigueirinho Neto agita a cidade de Salvador com as filmagens de Bahia de
Todos os Santos; em 1960, Nelson Pereira dos Santos, no sertão da Bahia, inventa
Mandacaru Vermelho; e, em 1961, é a vez de Anselmo Duarte filmar o premiado O Pagador
de Promessas. Ao mesmo tempo, iniciava-se a realização de filmes pelos próprios cineastas
baianos. Em 1961, três anos depois de inaugurar a produção de cinema na Bahia com
Redenção, Roberto Pires dirige A Grande Feira e, no ano seguinte, Tocaia no Asfalto. Entre
1960-61, Glauber Rocha, após duas incursões pelo cinema experimental de curta-metragem –
Pátio, em 1958, e o inacabado A Cruz na Praça, em1959 –, filma seu primeiro longametragem, Barravento.
Na tentativa de investigar o Ciclo de Cinema Baiano, encontrei a cidade, uma ainda
provinciana cidade do Salvador.
É notável sua forte presença não apenas na origem do
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
movimento, mas além disso como tema, cenário, problema, sendo quase a protagonista dos
filmes Bahia de Todos os Santos, A Grande Feira, O Pagador de Promessas e Tocaia no
Asfalto. Essa é uma questão a se pensar também em relação ao cinema que se realiza hoje,
pois a cidade novamente faz-se personagem principal em suas produções recentes, como
Cidade Baixa (Sérgio Machado, 2005), Eu me Lembro (Edgard Navarro, 2006), Ó Paí Ó
(Monique Gardenberg, 2007), Esses Moços (José Araripe Jr., 2007) e até no documentário
Samba Riachão (Jorge Alfredo, 2001). (Nessa perspectiva de análise, pode-se apontar ainda o
diálogo entre A Grande Feira e Samba Riachão, ou entre os “estrangeiros” polêmicos Bahia
de Todos os Santos e Ó Paí Ó).
Portanto, é ao redor do processo de modernização da Bahia, em especial de sua
capital, na segunda metade da década de 1950, que se desenvolve o primeiro cinema baiano.
Promovia-se a imagem de um estado em franco progresso, no caminho da modernidade e, ao
mesmo tempo, corajosamente preservado em suas fortes raízes culturais. A idéia corrente,
muito difundida pela imprensa local, era a de que Salvador, por sua história, situação
geográfica privilegiada e rica tradição cultural, seria a única cidade brasileira com
possibilidades de tornar-se uma síntese do país, uma referência do Brasil para o mundo. E o
Cinema teria um papel importante na construção daquele sonho de fazer da Cidade da Bahia a
capital cultural do país.
Até meados da década de 1950, Salvador era uma cidade pacata, orientada pelo antigo
centro da capital da Colônia. Uma “cidade de uma rua só”, diziam os jornais da época. O
processo que a transformaria, ocorrido ao longo de quase trinta anos, tem nesse período – em
sintonia com a “ideologia do desenvolvimento” do Governo Juscelino Kubitschek (19561961) – um momento decisivo na definição de seus novos caminhos.
Dominada pela tradição colonial, Salvador possuía na Rua Chile, em alguns prédios de
arquitetura moderna e poucas residências particulares os exemplos da até então lenta chegada
da modernização. Uma cidade que não dispunha da infra-estrutura urbana básica, como
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
sistemas eficientes de telefonia, energia elétrica e transporte, mas que tinha no cinema sua
principal atividade de lazer, o “único divertimento realmente popular”, segundo os jornais,
sobretudo pelos filmes hollywoodianos e “chanchadas” da Atlântida. Talvez por isso, além da
programação, assunto dos mais debatidos entre a crítica especializada, as discussões sobre a
qualidade das salas e o preço dos ingressos ocupavam os jornais. Ainda sem a presença da
televisão, as vinte salas que em janeiro de 1959 estavam em funcionamento na cidade eram
consideradas insuficientes para sua população de cerca de quinhentos mil habitantes. (Note-se
que, hoje, Salvador conta com cerca de 50 salas de cinema, em sua maioria espalhadas pelos
shoppings, para uma população em torno de três milhões de habitantes).
Ao nos voltarmos para o estudo do cinema produzido na Bahia dos anos 1950-60, é
fundamental portanto buscar entendê-lo no conjunto de uma movimentação social mais
ampla, na qual os jovens cinéfilos, futuros críticos e realizadores, experimentavam sua
formação em um ambiente culturalmente favorável, inclusive, às manifestações artísticas. No
processo de expansão da cidade, alguns acontecimentos davam suporte à crença na
possibilidade de não apenas fazer filmes, mas estruturar uma indústria de cinema na Bahia.
Talvez já se pudesse falar da incipiência de uma Indústria Cultural na Bahia (ORTIZ,
1988). Pensava-se em criar um teatro baiano e um mercado de artes plásticas; acreditava-se
na possibilidade de estruturação do pólo cinematográfico; a inauguração da primeira emissora
de televisão, ao lado da modernização dos antigos meios de comunicação e do surgimento das
primeiras agências de publicidade, sustentariam a idéia de um desenvolvimento cultural em
moldes industriais. E os planos de um pólo turístico no estado incentivavam o otimismo dos
baianos.
A criação do Museu de Arte Moderna (o MAMB, como era então conhecido)
consolidava o surgimento de um novo grupo de artistas plásticos, e o projeto de um Museu de
Arte Popular demonstrava a valorização das antigas tradições do povo brasileiro,
especialmente o nordestino. A construção do Teatro Castro Alves inspirou o surgimento de
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
salas de espetáculos na cidade. Ressalte-se a importância deste Teatro, semi-destruído por um
incêndio na semana de sua inauguração 4, mas que ainda assim serviu como sede provisória do
Museu de Arte Moderna, cedeu espaço para a primeira sala de projeção do Clube de Cinema
da Bahia, foi palco para a montagem de grandes espetáculos dos estudantes de teatro, além de
estúdio para filmes baianos.
A Universidade da Bahia é outra referência obrigatória quando se trata da cultura
baiana desse período. Seu esforço de integração à comunidade é um dos elementos
importantes na renovação cultural baiana, tanto no campo técnico-científico quanto no das
expressões artísticas. A instalação do seu campus, no Vale do Canela, contribuiu para o
deslocamento do eixo dos acontecimentos do antigo centro da cidade em direção ao Campo
Grande. Sua produção intelectual foi fundamental na construção dos anos dourados na
Bahia, sobretudo a das famosas, e pioneiras na universidade brasileira, escolas de artes
(Teatro, Dança e os Seminários de Música), fundadas em meados dos anos 1950. Em
particular, a Escola de Teatro, onde Glauber Rocha teve grande atuação, foi responsável pela
formação de jovens atores na Bahia, entre os quais se destacam Othon Bastos, Geraldo Del
Rey, Helena Ignez, Sônia dos Humildes e Antônio Pitanga, futuros integrantes do elenco da
Nova Onda Baiana e, mais tarde, do Cinema Novo.
Estranhamente, o empenho da Universidade da Bahia para estimular as diversas
linguagens artísticas não envolveu o cinema, omissão sempre enfatizada por seus críticos.
Excluído da vida universitária, o cinema encontraria em outras instituições os canais para se
consolidar como expressão de cultura. A mais importante delas foi o Clube de Cinema da
Bahia, fundado em 1950 por Walter da Silveira, o grande incentivador da arte cinematográfica
entre os baianos e a referência maior dos seus jovens cinéfilos, futuros críticos, produtores,
técnicos e diretores.
4
Inaugurado oficialmente em 2 de julho de 1958, o TCA foi parcialmente destruído pelo fogo na madrugada do dia
nove, cinco dias antes de sua efetiva abertura ao público.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Nas manhãs de domingo, o Clube de Cinema reunia jornalistas, artistas, intelectuais,
profissionais liberais, professores e estudantes para ver e discutir o que havia de mais
importante na cinematografia mundial, obras que dificilmente seriam exibidas no circuito
comercial. Desde os diretores mais antigos, ainda da época do cinema mudo, até a mais nova
geração dos críticos-realizadores da nouvelle vague francesa, todos foram vistos, analisados e,
muitas vezes, debatidos nessas sessões matinais.
Uma prova da fecundidade desse trabalho foi a revelação de jovens críticos
preocupados com a expressão cinematográfica nos seus aspectos estéticos, históricos, sociais,
políticos e econômicos. Sob a liderança de Walter da Silveira, colaborador do Suplemento de
Artes e Letras do Diário de Notícias, entre outros periódicos5, esse grupo de críticos crescia e
espalhava-se pelos diversos veículos de comunicação para discutir cinema.
Entre eles,
Hamilton Correia (Diário de Notícias), Jerônimo Almeida – pseudônimo de José Gorender
(Jornal da Bahia), Orlando Senna e Plínio de Aguiar (Estado da Bahia), Walter Webb (A
Semana). E o nome de Glauber Rocha, mais uma vez, destaca-se nesse movimento de crítica
cinematográfica. Entre 1956, quando começa a escrever profissionalmente, e 1963, ano em
que se consolida como cineasta, o crítico Glauber Rocha, em diversos periódicos 6, defendia
com muita veemência a idéia de um novo cinema brasileiro, comprometido com a
transformação social do país e, principalmente, como expressão legítima de sua cultura7.
Essa agitação levava a crer que o sonho dos críticos de fazer Salvador a “capital
brasileira do cinema” parecia se realizar. Atraídos pela beleza natural e cultura da cidade,
chegavam produtores e realizadores, brasileiros e estrangeiros. Na verdade, era o propagado
5
Sobre a produção escrita de Walter da Silveira, ver José Umberto Dias (2006).
Entre 1956 e 1957, inicia sua atividade crítica profissional, primeiramente, assinando como Rocha Andrade, em O
Momento, jornal do Partido Comunista, no qual também escrevia Walter da Silveira. Depois, no semanário Sete
Dias e no programa Cinema em Close-up, na Rádio Excelsior. Em 1958, assume a coluna Jornal do Cinema, no
recém-criado Jornal da Bahia, saindo no ano seguinte para exercer os cargos de copidesque e diretor do
Suplemento de Artes e Letras, do Diário de Notícias. Nessa época, já publicava críticas no Suplemento Dominical
do Jornal do Brasil.
7
Sobre a produção crítica de Glauber Rocha na Bahia, ver José Umbelino Brasil (2007).
6
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
exotismo baiano o motivo maior do interesse, em particular dos estrangeiros, pelo ambiente
cinematográfico da Bahia, explicitado nas constantes referências à profusão de seus temas, que
brotariam naturalmente da riqueza de sua geografia e de seu povo. Foi de certo modo com esse
espírito que aqui vieram Trigueirinho Neto, Nelson Pereira dos Santos e Anselmo Duarte, mas o
projeto de seus filmes – Bahia de Todos os Santos, Mandacaru Vermelho e O Pagador de
Promessas, respectivamente – os aproximaram tanto do meio cinematográfico de Salvador que
acabaram incorporados ao chamado “cinema baiano”.
Embora a preocupação com problemas sociais tenha sido a característica marcante do
Ciclo baiano, seu filme inaugural, Redenção – um semi-policial melodramático, segundo
definição de Glauber Rocha –, rodado entre 1957 e 1958, estava afastado da concepção de
cinema social, comprometido com a realidade do país.
O aparecimento desse primeiro filme de ficção foi uma grata surpresa para os mais
envolvidos com cinema em Salvador. A equipe de Redenção não participava daquele grupo
liderado por Walter da Silveira no Clube de Cinema, o que reforça a idéia de amplitude da
efervescência cultural em Salvador ao final dos anos 1950.
Além disso, Roberto Pires
surpreende ainda mais pelo fato de, ele próprio, ter desenvolvido uma lente com a qual filmara
Redenção, em um processo que ficou conhecido como "igluscope", uma homenagem a Iglu
Filmes, a pioneira produtora do cinema baiano.
O sentimento geral era de orgulho ─ Redenção seria "um pouquinho" de todos os
baianos, dizia Glauber Rocha ─ e de incentivo àquela corajosa iniciativa, pois "primitivo ou
não", o primeiro longa-metragem baiano merecia ser amado e analisado, segundo Walter da
Silveira. No seu lançamento, destacava-se o fato de Redenção ser um filme com capital baiano,
escrito e dirigido por um baiano, interpretado por baianos, porém, não um filme sobre a Bahia.
Naquele tempo de exaltação das "coisas da Bahia", via-se com reserva essa ausência. Na
cruzada em defesa da futura produção de cinema na Bahia, Glauber Rocha apressava-se para
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
justificá-la, afirmando que Roberto Pires, por falta de recursos artísticos, econômicos e técnicos,
havia preferido deixar o complexo tema Bahia intocável a estragá-lo com “seduções superficiais
do ambiente baiano”.
De fato, Roberto Pires iria se aproximar de certa temática regional em seus dois filmes
seguintes, A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962), que contaram também com a
presença de um importante personagem dessa história do cinema baiano: Rex Schindler.
Produtor e argumentista, Rex Schindler foi, "silenciosamente", lembrava Glauber Rocha,
durante muitos anos, um dos sócios mais assíduos às exibições e conferências promovidas pelo
Clube de Cinema da Bahia.
Ao realizar Tocaia no Asfalto, Roberto Pires voltava ao gênero policial para abordar a
política nordestina, marcada pela prática do crime como forma de manutenção do latifúndio e,
portanto, de dominação na região. No ano anterior, com A Grande Feira tratara de um
problema contemporâneo da cidade, o dos feirantes de Água de Meninos ameaçados de despejo
para que se pudesse construir um loteamento em seu terreno.
Com A Grande Feira, os soteropolitanos estavam na platéia e, em larga medida, nas
imagens projetadas na tela do cinema, fazendo desse filme a experiência de maior êxito de
crítica e público do Ciclo baiano. Como bem observou o jovem crítico Caetano Veloso, esse
filme de Roberto Pires criava a Bahia mais Bahia que o cinema já havia mostrado. Por esta
relação complexa entre cinema-cidade-público transposta para o filme por seus realizadores,
destaco aqui A Grande Feira como a produção mais representativa daquela sociedade que
produziu o que considero a nova onda baiana.
Em A Grande Feira, a fantasia baiana vivida em torno do progresso, para negá-lo ou
afirmá-lo, está bastante presente. Fora da feira de Água de Meninos, tenta-se mostrar uma
cidade que aspirava à modernização, com um porto movimentado, ruas agitadas e policiadas,
tráfego intenso de carros, ônibus e bondes, prédios altos e residências luxuosas de arquitetura
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
moderna abrigando uma burguesia que possuía lanchas e companhias de aviação, freqüentava
bares, festas, colunas sociais e cujos filhos estudavam na Europa.
O filme pretende denunciar a falsidade do desenvolvimento em curso, mostrá-lo em seus
aspectos perversos e injustos como obra de empresários gananciosos, interessados apenas em
enriquecimento próprio. Aquele progresso seria então um modo moderno de ganhar mais
dinheiro, de tornar os ricos cada vez mais ricos. Os pobres, por sua vez, identificados com os
marginais que viviam em torno da Feira, eram os explorados. Sem nenhuma alternativa de
partilhar as riquezas geradas nesse processo, eram as vítimas do falso desenvolvimento.
Ou ricos burgueses ou pobres marginais, eram as opções apresentadas na fita. A não ser
que o jornalista que acompanha as grã-finas à Feira, a fim de “tirar fotos para o turismo”,
conforme palavras do próprio personagem, representasse aquele segmento social médio no qual
se encontraria grande parte dos habitantes de Salvador, como aliás os próprios realizadores,
ausentes do filme (tema explorado pelas críticas de Walter da Silveira) .
A falta torna-se mais significativa quando se nota que o jornalista, chamado de Renot,
que parece íntimo da personagem de Helena Ignez e de suas amigas, é interpretado pelo mesmo
Renot (Reinaldo Marques) que assinava a coluna social Smart Society, publicada diariamente
no jornal Estado da Bahia. Ao mesmo tempo em que o colunista fazia uma participação
amical, em outra seqüência – quando o rico advogado comenta indignado que teve de reagir,
pois, pela terceira vez, seu nome havia sido omitido das crônicas sociais – desdenhava-se esse
mundo, mesmo que Glauber Rocha e Helena Ignez também tenham sido responsáveis pela
coluna social Krista, durante cerca de dois anos, do Diário de Notícias.
Observe-se ainda que o elenco de A Grande Feira conta com a participação expressiva
de jovens artistas e intelectuais em pequenos papéis ou como figurantes. Ao representar
personagens diversos do seu mundo real – artistas plásticos, jornalistas, críticos e cineastas,
transformados em músicos e freqüentadores de cabaré, investigadores de polícia, prostitutas,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
mendigos, barraqueiros e sindicalistas –, para além do cinema de amigos, o filme indica um
sentido de solidariedade com os excluídos, imprimindo-lhes certo charme. (Vale lembrar que
além de Walter da Silveira como o dono do bar e do próprio Roberto Pires como o líder
sindical, o elenco contava com Calasans Neto, Agnaldo (Siri) Azevedo e Luiz Henrique Dias
Tavares como músicos e Glauber Rocha, Orlando Senna e Leão Rozenberg como
freqüentadores do cabaré; Sante Scaldaferri era um dos investigadores, Walter Webb um dos
mendigos e Genaro de Carvalho um dos amigos ricos, entre outras participações. Entre os
artistas populares, além do poeta Cuíca de Santo Amaro, como o narrador da história, destacase a presença do músico Riachão como cantor do cabaré.)
Ao conferir essa “aura” aos personagens marginalizados, A Grande Feira cria uma
falsidade da pobreza, fazendo-nos crer que os realizadores foram atingidos pela mesma fantasia
de progresso que então dominava certos setores sociais. Embora a intenção maior do filme
fosse recusar/denunciar o pseudo-desenvolvimento, sobretudo ao ver o crescimento e a
modernização da cidade como forma de aumentar a fome e a injustiça social, acredito que o
filme termina por sugerir sua aceitação. Assim, paradoxalmente, na tentativa de negar aquela
“alegre Bahia”, entendida como produto da "ideologia do desenvolvimento", os cineastas
acabam por afirmá-la.
Diferentemente de A Grande Feira, os realizadores de Barravento – a conturbada
estréia de Glauber Rocha na direção de filmes de longa-metragem, lançado em 1962, mas
rodado entre outubro e dezembro de 1960 – distanciam-se da cidade, e de sua euforia
desenvolvimentista, para responsabilizá-la pela exploração da pobreza e da ignorância
existentes à sua volta, ampliando a discussão sobre a fome e suas formas de representação
iniciada em Bahia de Todos os Santos.
Na impossibilidade de tratá-los aqui, não se pode
deixar ao menos de mencionar sua importância como precursores do cinema da fome e da
violência que explodirá com o Cinema Novo ao longo da década de 1960.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Ainda vinculados ao Ciclo do Cinema Baiano estavam Sol Sobre a Lama e O Caipora,
ambos iniciados em 1962, porém lançados no circuito comercial em 1963 e 1964,
respectivamente. Sol Sobre a Lama, dirigido por Alex Viany, retomava a discussão em torno
do problema da ameaça de extinção da Feira de Água de Meninos. O Caipora, era a estréia
de Oscar Santana, antigo colaborador de Roberto Pires, na direção de filmes de ficção.
Em 1964, Olney São Paulo, continuista de Mandacaru Vermelho e assistente de
direção de O Caipora, realiza O Grito da Terra, formalmente o último filme do Ciclo de
Cinema Baiano (SETARO, 1976, p. 15-21). Na prática, contudo, o surto havia terminado no
auge da produção de 1962, coroada com a única edição do I Festival de Cinema da Bahia 8, o
primeiro grande encontro do cinema baiano com a produção fílmica de outros estados, quando
diretores, atores, críticos e produtores de vários lugares do país encontraram-se em Salvador
para debater o novo cinema brasileiro9.
Esse Festival sintetizou uma tendência que vinha se delineando entre os críticos mais
engajados ao movimento, ou seja, a de abordar o cinema baiano como cinema brasileiro. Em
particular, Glauber Rocha e Orlando Senna não insistiam mais na necessidade de fazer cinema
na Bahia, mas apenas na importância de fazer cinema.
Três fatores parecem determinantes nessa mudança do discurso crítico, apontando para
o desmantelamento daquele “cinema baiano”. Primeiro, os prejuízos acumulados com os
filmes realizados inviabilizaram a continuidade de uma produção cujo êxito foi restrito ao
mercado de Salvador. Segundo, houve uma ruptura com a fantasia desenvolvimentista e a
conseqüente constatação de que a Bahia não atenderia às necessidades materiais de uma
indústria cinematográfica. Terceiro, o Cinema Novo já era uma realidade, atraindo para seu
8
O evento foi uma promoção do Departamento de Turismo da Prefeitura e da Associação de Críticos
Cinematográficos da Bahia, em homenagem aos cinqüenta anos de fundação do jornal A Tarde.
9
Destacam-se as presenças de Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Guerra (um dos membros do júri, ao lado de Walter
da Silveira e Hamilton Correia, entre outros), Nelson Pereira dos Santos, Linduarte Noronha e Sérgio Ricardo.
Estiveram ainda em Salvador o cônsul Arnaldo Carrilho, da Divisão Cultural do Itamaraty, e o cineasta sueco Arne
Sucksdorff, representante da UNESCO, para avaliar as possibilidades de inserção do cinema brasileiro no mercado
internacional.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
centro os nomes mais importantes do surto baiano, Roberto Pires e Glauber Rocha, que a
partir de 1963 passam a viver e a trabalhar no Rio de Janeiro, onde se instalou o núcleo
cinemanovista.
Os profissionais que então permaneceram em Salvador, como Rex Schindler e
Orlando Senna, ainda tentaram manter o espírito da agitação cinematográfica, realizando
filmes curtos e planejando a produção de novos longas-metragens. Mas o tempo da “utopia
estética baiana” não estava mais em movimento, e o fim de sua nova onda foi inevitável.
REFERÊNCIAS
BRASIL, José Umbelino. As Críticas do Jovem Glauber. Salvador, 2007. Tese (Doutorado
em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Faculdade de Comunicação, Universidade
Federal da Bahia, 2007.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda baiana; cinema na Bahia (1958–1962).
Salvador: Edufba, 2003.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento; cinema e
cultura na Bahia nos anos JK (1956–1961). Salvador: Edufba, 1999.
DIAS, José Umberto (organização e notas). Walter da Silveira, o eterno e o efêmero.
Salvador: Oiti, 2006.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
SETARO, André. Panorama do Cinema Baiano. Salvador: Fundação Cultural do Estado da
Bahia, 1976, p. 15-21.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Euclides Neto, A ficção tecida entre cacaueiros e umbuzeiros
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo10
RESUMO: Duas narrativas ficcionais do escritor baiano Euclides José Teixeira Neto (1925-2000), Os magros
(1961) e A enxada e a mulher que venceu o próprio destino (1996), são analisadas considerando as relações
entre ficção, realidade empírica e narrativa histórica. A análise busca desfazer a dicotomia entre ficção e
realidade e recorreu aos estudos de Wolfgang Iser (1996, 2002), para quem os “atos de fingir” são construídos a
partir do uso de três recursos: a “seleção”, a “combinação” e o “desnudamento de sua ficcionalidade”. Estes
elementos constitutivos da ficcionalidade são evidenciados, bem como as reflexões sobre a escrita historiográfica
e suas implicações, a partir dos estudos de Peter Burke (1992). Tanto o texto ficcional quanto o historiográfico
pode remeter ao real a partir de recortes, que refletem escolhas subjetivas de um escritor. O romance Os magros
denuncia a exploração dos trabalhadores rurais na região cacaueira baiana e expõe os contrastes sociais e
econômicos entre latifundiários e agregados. Tais contrastes sociais são expostos tanto na seleção dos fatos
ficcionalizados, quanto na estruturação dos capítulos do romance. Numa linguagem ora metafórica ora objetiva e
direta, o romance A enxada e a mulher que venceu o próprio destino apresenta uma protagonista capaz de
subverter a opressão, na qual os trabalhadores rurais estavam inseridos, e reconstruir a dignidade perdida.
Palavras-chave: Os magros; A enxada; Realidade, Ficção, História.
É que a matéria prima do escrevinhador é a
vida, lambuzada de imaginação, e essa, às
vezes, copia a arte.
Euclides Neto. Os genros, 1981.
Entre cacaueiros, João – protagonista do romance Os magros – e sua família
vivenciam a exploração, a fome e a morte, e entre umbuzeiros, Albertina, protagonista de A
10
Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Campus de Jequié e da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus XXI, Ipiaú. Mestra em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da
Bahia (PPGEL–UNEB), Campus I, Salvador. Linha de Pesquisa: Leitura, Literatura e Identidades. Orientadora:
Profª Drª Verbena Maria Rocha Cordeiro. E-mail: [email protected].
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
enxada e a mulher que venceu o próprio destino, pôde sobreviver com a família por dois
meses, alimentando-se apenas de seu fruto. Tiraram dele forças para trabalhar e viram o fruto
do trabalho brotar da terra e servir de alimento, de alento e de redenção para a família.
São três décadas que separam esses dois personagens, considerando o ano de
publicação dos romances, Os magros, em 1961 e A enxada e a mulher que venceu o próprio
destino, em 1996. Os fatos de Os magros, referentes à vida de João e sua família, se
desenvolvem na fazenda Fartura, produtora de cacau, localizada na região cacaueira da
Bahia11. Situada na mesorregião Sul Baiano, essa região tornou-se conhecida pela produção
do “fruto de ouro”. A narrativa se passa em dois espaços, na fazenda Fartura e em Salvador,
capital baiana, onde vive Jorge, patrão de João, proprietário do latifúndio. Interessa-me, no
momento, o espaço onde brota o fruto responsável pelo desenvolvimento de toda a
microrregião:
Durante décadas, generosamente, os cacauais produziram os frutos que trariam
riqueza, prosperidade, ganância, morte, vida, geraram e sustentaram fazendas, vilas,
cidades; construíram o porto de Ilhéus, escolas, estradas, mansões; propiciaram
viagens, festas, orgias; financiaram coronéis, estudantes, banqueiros, políticos. [...]
O cacau trouxe a riqueza, mas também a pobreza. Trouxe fartura, mas também
escassez (ROCHA, 2008, p. 14).
É a partir dessa fartura e dessa escassez que a ficção de Os magros é tecida. A farta
região do cacau não traz riqueza e prosperidade para os que habitam e trabalham na terra. A
riqueza da região é transferida para cidades como Ilhéus, Itabuna e Salvador, capital do
Estado, onde latifundiários e familiares moram, estudam e desfrutam da riqueza. Para os que
vivem nas roças de cacau, fica a desnutrição, o analfabetismo, a morte por doenças e pela
11
Lurdes Bertol Rocha (2008) salienta que há um uso indiscriminado de termos para descrever ou se referir a
essa região, como: zona cacaueira, sudeste da Bahia, região cacaueira, região Sul da Bahia. Por isto, ela recorre
às informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para esclarecer a questão: “O IBGE
dividiu os estados brasileiros em mesorregiões e microrregiões. No caso da Bahia, são sete mesorregiões, cada
uma dividida em microrregiões, num total de trinta e duas. [...] A região Cacaueira está inserida na
mesorregião Sul Baiano, que é composta de três microrregiões: Microrregião de Valença (Baixo Sul), [...];
Microrregião Ilhéus-Itabuna (cacaueira), com 41 municípios; Microrregião de Porto Seguro (Extremo sul),
[...]. De acordo com a Secretaria do Planejamento, Ciências e Tecnologia do Estado da Bahia (SEPLANTEC,
1997), a região Sul da Bahia é caracterizada por uma pluralidade de espaços, os quais possuem identidade
própria e autonomia” (ROCHA, 2008, p. 16, grifo meu).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
fome, a falta de moradia digna, a humilhação e a impossibilidade de alterar o curso dos
acontecimentos, como vivenciam João e os outros trabalhadores da fazenda Fartura.
A família de João não vive as agruras da seca na qual sofreu a de Fabiano – de Vidas
secas, de Graciliano Ramos , embora a fome e a humilhação a que são submetidos sejam a
mesma. Na região cacaueira, espaço escolhido pelo escritor baiano Euclides José Teixeira
Neto12 (1925–2000) para desenvolver a trajetória de João, a vegetação original é a Mata
Atlântica. Por isso, chove durante todo o ano, “não havendo, [...] uma estação seca definida,
apenas menor pluviosidade em agosto, em contraste com o mês de março, quando as
precipitações pluviométricas são mais abundantes” (ROCHA, 2008, p. 18). Os solos variam
bastante, sendo os de maior fertilidade usados para as lavouras de cacau, os de menor
fertilidade servem à pecuária e à silvicultura.
Introduzido na Bahia no final do século XVIII e se firmando como produto dominante
um século depois, o cacau, conforme informa Lurdes Rocha a partir do Censo de 1920, “se
torna definitivamente importante para a economia sul baiana”:
No caso específico do Sul da Bahia, principal área produtora do Estado e do país, a
região vivenciou uma fase de prosperidade sem precedentes, que se estendeu da
segunda metade da década de 1970 até meados da década de 1980, período após o
qual emergiu numa situação de grandes dificuldades. Os reflexos da crise que se
instalou de forma mais aguda no início dos anos 1990 decorrem de uma série de
fatores, tais como baixa de preços do produto, política cambial e, em especial, uma
doença que acometeu os cacauais da região, a vassoura-de-bruxa [sic] (Crinipellis
perniciosa). Esses elementos em conjunto, foram responsáveis pela origem de grave
crise, cujos resultados, do ponto de vista social, econômico e ambiental, apresentamse altamente danosos (ROCHA, 2008, p. 14).
Quanto à estrutura fundiária, a pesquisadora ressalta que essa região, a partir da
década de 1980, “sofreu um processo de concentração de terras” em mãos de uma minoria 13.
12
O escritor foi advogado, prefeito de Ipiaú/BA (1963–1967) e Secretário da Reforma Agrária da Bahia –
primeira secretaria do gênero no Brasil (1987–1989). Sua produção literária contempla romances, contos,
crônicas, textos memorialistas, um dicionareco de expressões regionais e uma coletânea de contos de escritores
baianos organizada por ele, totalizando quatorze livros publicados.
13
Segundo Rocha (2008, p. 21) “o percentual de propriedades com menos de 10 hectares, que em 1980 ocupava
o primeiro lugar (60,90%), em 1996 diminuiu para 38,65%, passando a ocupar o segundo lugar. Enquanto isso,
as propriedades que ocupam o último lugar no que se refere à porcentagem total de propriedades, com área
acima de 500 hectares, passou de 0,11% para 1,43%, portanto, um crescimento de 1.251,50% o que demonstra
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
O romance A enxada e a mulher que venceu o próprio destino (1996) faz referência a essa
concentração de terras, principalmente às consequências dela para os antigos proprietários e
suas famílias. Albertina vem de uma família de pequenos proprietários rurais, que após
vender as terras, migram para a cidade, fato que transforma a agricultora e seus filhos em
exilados no território em que nasceram. Sua trajetória tem início, na trama romanesca, na
cidade de Jequié. De lá, parte, humilhada, com os filhos, com fome e sem destino, para depois
de quatro dias parar em “uma cascalheira da estrada que vai dar em Contendas do Sincorá”,
nas proximidades da “fazendinha vendida por seus pais, há mais de vinte safras de umbu,
onde nascera e se criara” (EUCLIDES NETO, 1996, p. 5).
Tanto o município de Contendas do Sincorá quanto o de Jequié estão situados na
mesorregião do Centro Sul Baiano. A microrregião de Jequié é área de transição climática
entre a zona da mata e a caatinga, o que permite uma variação na produção agrícola e
pecuária. Em A enxada e a mulher que venceu o próprio destino, Albertina e seus filhos, após
instalarem-se novamente numa área rural, nesse espaço de transição, trabalham a terra e
produzem a alimentação e os remédios, constroem a moradia e os utensílios domésticos.
A família planta feijão, milho, mandioca, algodão, abóbora, melancia e outras frutas e
verduras. Cria gado, cabras, porcos, galinhas, cachorros e caça no mato; de onde vêm a carne,
o leite, o queijo, o requeijão, os ovos, o mel e a rapadura. Produz farinha, beiju, sal, doce de
umbu, paçoca de gergelim e óleo. Da palha, faz esteiras, vassouras e abanos; do barro,
gamelas, panelas, potes, colher, machucador, molheira, entre outros. Do algodão, tece suas
roupas e as “precatas” vêm do couro de animais. Produz na roça tudo o que necessita para
viver; o que sobra, vende na estrada, troca ou dá aos vizinhos em reconhecimento pela ajuda e
amizade.
A ficção de Euclides Neto transita entre esses dois espaços, a zona cacaueira e a
caatinga, onde se inserem duas famílias de cultura rural. Exiladas no espaço onde nasceram,
cada uma em seu tempo histórico e em seu espaço físico específico, tentam recuperar a
dignidade trabalhando a terra que outrora lhe pertenceu. O que é real e o que é ficção nas
o crescimento da concentração de terras em mãos de uma minoria”.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
trajetórias vivenciadas por João em Os magros e Albertina em A enxada e a mulher que
venceu o próprio destino? Existe uma “ponte” que separa/une a realidade vivida por
agricultores baianos e a ficção elaborada pelo romancista?
A temática de Os magros (1961) e de A enxada e a mulher que venceu o próprio
destino (1996), marcante na história recente da Bahia, reporta-se a uma questão discutida por
Iser (1996) no primeiro capítulo de seu livro O fictício e o imaginário: perspectivas de uma
antropologia literária, publicado no Brasil em 1996: “Os textos ‘ficcionados’ serão de fato
tão ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?” (ISER, 1996,
p.13, grifo meu).
Distinguir ficção de realidade empírica parece ser tarefa fácil quando o leitor recorre
ao seu “repertório de certezas”, que torna evidente a distinção entre as duas. A relação entre
ficção e realidade permite recordar textos da literatura brasileira, nos quais o real é
representado com tanta riqueza de detalhes que é possível reconhecer nele passagens de
histórias vividas. Diversos textos da literatura brasileira ilustram essa afirmação.
Para exemplificar, cito textos que fazem da relação homem/terra tema imprescindível:
Terras do sem fim, de Jorge Amado; Vidas secas, de Graciliano Ramos e Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa. Seus autores destacaram, em suas produções literárias, as
marcas de suas experiências de vida. Walter Benjamin (1993) chama a atenção para o fato de
que as experiências compartilhadas entre as pessoas constroem os grandes narradores,
representados por homens que vivem em sua terra, conhecem “suas histórias e tradições”
(BENJAMIN, 1993, p.198). Assim parece que escreveu Euclides Neto ao recompor todo um
cenário de exploração e subjugação, retratando as relações de trabalho na região cacaueira da
Bahia.
Iser (1996) traz para a discussão que se estabeleceu entre realidade e ficção a noção de
imaginário. Propondo uma relação tríplice em substituição à dual, ele pretende ressaltar como
se constrói o fictício, que se reporta à realidade, entretanto não se esgota no real:
Se o texto ficcional se refere portanto à realidade sem se esgotar nesta referência,
então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da realidade
repetida, nele então emerge um imaginário que se relaciona com a realidade
retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de
provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo, por meio desta repetição, uma
configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e
o imaginário em efeito do que é assim referido.
[...] Quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre
forçosamente uma transgressão de sua determinação. O ato de fingir é, portanto,
uma transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o imaginário (ISER,
1996, p.14, grifo meu).
Transformar as diferenças entre trabalhadores do cacau e proprietários das terras em
signo verbal escrito é uma repetição da realidade, que é transgredida ou, como afirma
Coutinho (1978), é transfigurada pelo artista. Criar uma família de proprietários rurais e uma
família de agregados às terras desses proprietários e narrar fatos que evidenciam a oposição
de classes sociais que as separam e o poder que uma exerce sobre a outra, como em Os
magros, é realizar a aliança com o imaginário.
O real, que Iser (1996) trata como o que se refere ao mundo extratextual, e o fictício,
compreendido por ele como um ato intencional, não se opõem, nem se excluem, mas se
relacionam. Se antes a busca era pelo estabelecimento de posições, que reforçavam a
dicotomia ficção/realidade, a discussão agora passa pelo estabelecimento de relações entre
elas e pela possibilidade de compreender como se processa o fictício no texto ficcional.
Segundo Iser (1996), os atos de fingir podem ser construídos a partir do uso de três
recursos: a “seleção”, a “combinação” e o “desnudamento de sua ficcionalidade”. Discuto
cada um deles, considerando o romance Os magros e, posteriormente, A enxada e a mulher
que venceu o próprio destino.
O texto é produto de um escritor. Cabe-lhe, portanto, determinar como fará a
tematização do mundo a que se refere. Assim, é preciso decompor o real para selecionar,
dentre os sistemas contextuais pré-existentes, a parcela da realidade a ser transfigurada.
Selecionar é fingir, é transgredir os limites. A seleção é necessária ao texto ficcional e permite
conhecer os campos de referência do texto, através dos atos de supressão, de complementação
e de valorização, operações básicas “da produção do mundo”, como as denomina Nelson
Goodman (1978 apud ISER, 2002, p.962).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Conhecer
os
campos
de
referências
do
texto
possibilita
apreender
sua
intencionalidade, removendo assim a dificuldade e reduzindo o esforço empregado para
“desvendar” as intenções do autor. Para Iser (2002) “é provável” que a intenção não se revele
na psique ou na consciência do autor, tampouco na inspiração motivadora. Ela se revela no
texto, a partir da “seleção” possibilitada pela “decomposição dos sistemas com que o texto se
articula, para que, neste processo, deles se desprenda” (ISER, 2002, p. 962).
Umberto Eco (2008a), por sua vez, ressalta que esta é apenas uma possibilidade de
busca da intentio e aponta duas alternativas para se chegar a ela. Na primeira, “é preciso
buscar no texto aquilo que ele diz relativamente à sua própria coerência contextual e à
situação dos sistemas de significação em que se respalda” (ECO, 2008a, p. 7); que se
diferencia da segunda, voltada para as pulsões do destinatário ou leitor. É a primeira
possibilidade que se identifica com o que apresento a partir das ideias de Iser.
Os sistemas contextuais pré-existentes em Os magros são de natureza socioculturais.
O romance trata das relações de trabalho e da exploração de trabalhadores rurais, praticada
pelos proprietários dos meios de produção, valorizando a descrição das condições físicas dos
agregados, acentuada pela descrição física dos patrões. O autor não opta por descrever a
paisagem bela dos cacaueiros nas terras da fazenda Fartura, mas a luta pela sobrevivência
através do trabalho, luta que, tomada do real, converte-se em objeto da percepção do escritor.
Ressalto, mais uma vez, que a seleção é um ato de fingir, porque delimita os “campos de
referências”, transgredindo, assim, as fronteiras do mundo empírico.
A “combinação”, o segundo ato de fingir apresentado por Iser (1996), configura
relacionamentos entre os elementos intratextuais, tanto os referentes aos signos verbais,
quanto ao mundo introduzido no texto ou, ainda, quanto aos esquemas do texto, segundo os
quais as ações e os personagens se mostram. O potencial semântico do texto amplia-se nesse
plano. A título de exemplificação, destaco dois pares nominais.
O primeiro par é formado pelos nomes dos personagens centrais do romance de Os
magros, “João” e “Jorge”. João, o empregado da fazenda Fartura, Jorge, o proprietário.
Personagens de vida opostas ao ponto de suas histórias serem contadas em capítulos distintos
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
no romance: os capítulos ímpares são reservados à história de João, os pares, à de Jorge. A
semelhança sonora entre os nomes destes dois personagens, ao invés de aproximar, acentua a
divergência semântica que marca a posição social ocupada por eles, trabalhador e
proprietário, empregado e patrão, respectivamente.
O segundo par corresponde à semelhança sonora (provocada pela aliteração) entre os
vocábulos “fome” e “Fartura”. Esta semelhança torna evidente mais uma oposição semântica,
já que a fome dos trabalhadores ocorre na fazenda ironicamente chamada de Fartura. A
combinação “então funciona como revelação da diferença no semelhante” (ISER, 1996, p.
19).
A oposição semântica é ampliada nas condições sociais das duas famílias: no número
de filhos dos magros e na ausência de filhos dos ricos fazendeiros, na relação que João e Jorge
têm com suas esposas, no trabalho inumano a que um é submetido e na ociosidade vivida pelo
outro, além da estruturação temática dos capítulos do romance.
Os magros possui 39 capítulos curtos. Neles se alternam as histórias de vida de João e
de Jorge. O primeiro capítulo é dedicado a retratar as condições de vida da família de João, a
moradia, que mais parece uma “toca”, a falta de higiene, os trapos que descobrem os corpos
esquálidos, as condições físicas, a falta de saúde, a fome. O segundo capítulo, que se opõe ao
primeiro, tanto nas condições de vida, quanto na posição social, descreve o “palacete” em
Salvador em que Jorge vive com a esposa Helena e Rose Marie.
Como os dois primeiros capítulos, todos os demais também retratam o distanciamento
entre duas classes sociais opostas, representadas no romance por João e Jorge. Enquanto os
magros não têm o que comer, sustentando-se com punhados de farinha e carne seca, ou
comendo terra como Aprígio, filho de João, na capital baiana, Jorge e a mulher empanturramse nas refeições, ostentando um corpanzil disforme pela gordura. Enquanto o filho do
agregado morre sem assistência médica, a boneca Rose Marie “criada” como filha por Helena,
mulher de Jorge, tem direito a consultas médicas na residência; enquanto os trabalhadores não
têm o que vestir, a boneca possui enxoval completo, cobiçado pelas vizinhas do “palacete”;
enquanto a família de João amontoa-se nos buracos que a chuva constrói no casebre, a
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
mansão de Jorge abriga quartos vazios e espaços ociosos; enquanto João trabalha e passa
fome com toda a família, juntando dinheiro para comprar um facão, sua ferramenta de
trabalho, Jorge sonha em adquirir mais um brilhante para sua coleção.
Fica clara a oposição que se vai tecendo capítulo a capítulo, alternando os espaços
físico, social e emocional das duas famílias, cujas vidas estão entrelaçadas (considerando a
interdependência entre trabalhadores rurais e donos das terras), mas que nunca se encontram
devido ao distanciamento de classe social que se apresenta intransponível no romance.
O terceiro ato de fingir apresentado por Iser (1996) corresponde ao “desnudamento da
ficcionalidade”. Como foi dito, o texto ficcional contém partes identificáveis da realidade, que
são retiradas do contexto sociocultural através da seleção, entretanto, o ato de transformá-las
em signos põe “entre parênteses” essas partes do real. O “sinal de ficção”, historicamente
variado dos textos aceitos como literários, marcam a divergência com o real e é concebido
através da convenção, de contrato compartilhado entre escritor e leitor. Iser explica:
[...] o mundo representado não é o mundo dado, mas deve ser apenas entendido
como se o fosse. Com isso se revela uma conseqüência importante do desnudamento
da ficção. Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário
se transforma em um como se. [...]
[...]
[...] a expressão como se é adequada, pois ela compara algo existente com as
conseqüências necessárias de um caso imaginário. É de se ressaltar que esta
atividade deve ter alguma utilidade prática, alguma finalidade: só neste caso, a
função imaginativa é conseqüente; pois não se trata, sem que haja alguma finalidade,
de tomar-se como real algo que é irreal (ISER, 1996, p. 24-26, grifo do autor).
O texto tomado como ficcional permite mostrar que representa algo além, oferecendo
as condições para provocar a reação dos leitores ao mundo do texto. Iser leva a refletir se esta
não seria uma das funções do texto ficcional. Roland Barthes (2004), por sua vez, descreve o
texto de fruição como sendo
[...] aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo
enfado), faz vacilar as bases históricas e culturais, psicológicas do leitor, a
consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise
sua relação com a linguagem (BARTHES, 2004, p. 20-1).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Esse trabalho com a linguagem não é só tarefa de ficcionistas: os historiadores também se
preocupam como o seu uso, principalmente no momento de (re)construir as suas narrativas.
Assim, a relação entre o mundo ficcional e o mundo empírico também interessa aos
historiadores. A discussão travada por eles sobre a distinção entre “narrar os acontecimentos”
ou “analisar as estruturas” (BURKE, 1992) e a crítica imposta à narrativa dos acontecimentos,
talvez ocorra por duas razões: primeiro, por conceber a narrativa como ficção, que se opõe à
realidade; segundo, pelo compromisso que a História, como ciência social, tem com o real,
não apenas tomado como acontecimento, mas formado por estruturas que merecem e
precisam ser analisadas, desvendadas pelo fazer científico. Enquanto essa discussão entre
historiadores se trava, é a literatura de ficção que mais dá acesso à maioria das “pessoas
comuns” aos fatos ocorridos ao longo da história. É possível observar isto com os romances
de Jorge Amado, nas narrativas que se referem ao “eixo Ilhéus-Itabuna”, no Sul da Bahia,
publicadas em meados do século XX.
Essas “narrativas que compõem a saga do cacau, a luta pela terra, a exploração dos
trabalhadores e o evidente poder dos coronéis” (ANDRADE, 2000, p.202) em Euclides Neto
ganha novas feições, considerando que os desbravadores das terras do cacau, coronéis e
jagunços, não são os atores principais. No romance Os magros, os atores principais são o
proprietário do latifúndio, homem formado, morador da capital baiana e os trabalhadores da
terra, esfomeados e maltratados pela exploração. A figura do jagunço é substituída pela do
administrador do latifúndio, fiel ao proprietário e patrão. Os personagens de Os magros são os
herdeiros das lutas travadas em Terras do sem fim, de Jorge Amado.
Considerando que a natureza do texto ficcional é ser uma obra aberta (ECO, 2008b),
aumenta seu caráter democrático, uma vez que, desprovida da intenção de registrar o real,
aciona o leitor a participar do jogo da autoria, preenchendo os vazios (ISER, 1999) que se vão
tecendo na representação simbólica do real. Por outro lado, o texto historiográfico na busca de
ser fiel à realidade, pode fechar-se ao leitor, levando-o a não intervir no escrito, questionando
ou relativizando a “verdade” ali expressada. Peter Burke (1992) ressalta que muitos
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
historiadores “estão começando a perceber que seu trabalho não reproduz ‘o que realmente
aconteceu’, tanto quanto o representa de um ponto de vista particular” (BURKE, 1992,
p.337).
A obra ficcional não tem a intenção de retratar fielmente o mundo concebido como
real. Ela sugere através dos fatos narrados. Seu propósito diverge das intenções da obra
historiográfica, embora tanto esta quanto aquela, através do signo lingüístico escrito,
possibilitem o acesso aos acontecimentos vividos pela humanidade, podendo provocar
reflexões sobre eles.
É ilusão o leitor pensar que não há diferenças entre o texto ficcional e a realidade
empírica. Esta ilusão não está no texto, mas no modo de pensar de cada leitor, que não
percebe as marcas do ficcional, como destacou Iser (1996). Se o leitor do texto ficcional
mostra-se ingênuo a ponto de tomá-lo como “o real vivenciado”, o que dizer em relação ao
leitor do texto historiográfico?
O confronto entre historiadores em relação aos “modos preferidos de explicação
histórica” – narração e análise – precisa ser resolvido através da síntese, como destaca Burke
(1992), que começa a se esboçar na discussão que se trava entre os modos de escrever a
narrativa histórica. A síntese, ao mesmo tempo em que quer “fazer frente às demandas dos
historiadores estruturais”, quer apresentar “um sentido melhor do fluxo do tempo do que em
geral o fazem suas análises” (BURKE, 1992, p. 338).
Como ressalta Burke (1992), os historiadores não são obrigados a produzir textos
literários, entretanto, podem valer-se de técnicas usadas pelos romancistas, como o uso de
mais de um ponto de vista e de “finais alternativos”, além de buscar seus próprios caminhos, o
que se configura o grande desafio da “escrita da História”.
Aceitar o ficcional como ficção permite entender que seu objetivo vai além de
simplesmente representar o real. Por outro lado, tanto a obra ficcional quanto o texto
historiográfico, por caminhos que ora se bifurcam ora se entrecruzam, podem contribuir com
a “escrita da História”, favorecendo melhor compreensão do passado e das consequências das
ações realizadas nele.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Cabe ao historiador perseguir a maneira mais adequada de registrar a história, para que
o leitor compreenda que a abordagem realizada, apesar de primar pela pesquisa dos fatos
ocorridos em documentos e registros diversos, traduz uma possibilidade de mostrar e analisar
os fatos, marcada pela subjetividade, visto que resulta de uma escolha de focalização feita
pelo historiador. Da mesma maneira, o leitor deve perceber, na obra ficcional, também
marcada pela subjetividade, que “a seleção” dos fatos ocorre a partir da percepção do escritor
sobre o real. Este, ao acionar a imaginação e dar-lhe uma forma, combinando signos e
estruturas, (re)constrói o mundo.
O mundo (re)construído em A enxada e a mulher que venceu o próprio destino parte
de sistemas contextuais pré-existentes (ISER 1996) de natureza sociocultural. Dentre os
elementos selecionados do real, o texto põe em evidencia a decadência da cacauicultura,
provocada pela vassoura de bruxa, a migração para a cidade do homem/mulher do campo em
decorrência da venda/perda de suas terras ocasionadas pelas dívidas bancárias, pelos períodos
sucessivos de seca e pelo declínio da exploração do cacau.
Além dos aspectos mencionados, o romance expõe a condição sub-humana pela qual
passam as famílias nas cidades, após deixarem o campo em busca de melhores condições de
sobrevivência. Aponta ainda a luta do agricultor, mais precisamente de uma agricultora, para
sobreviver no campo, a partir do cultivo da agricultura de subsistência e da aplicação do
conhecimento dos antepassados, principalmente quanto ao manejo da terra. Estes são alguns
dos elementos extraídos do real presentes no romance A enxada e a mulher que venceu o
próprio destino. O real deixa sua condição de realidade empírica no momento em que é
decomposto e tem alguns de seus elementos selecionados e transmutados em linguagem
verbal escrita.
Os elementos selecionados do real no romance A enxada e a mulher que venceu o
próprio destino são combinados em 45 capítulos curtos para narrar a história de Albertina. O
ato de narrar é marcado pela transcrição da oralidade na escrita. O narrador é uma terceira
pessoa onisciente, cuja voz, em várias passagens, se imbrica com a voz da protagonista, como
ocorre no trecho abaixo e em trechos citados no decorrer do texto:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Albertina estremeceu. Tinha pensado muitas vezes com aquilo, o que achava sempre
um absurdo, pelo que afastava a idéia maluca da cabeça. Coisa de gente que não
estava girando bem. Não via ser impossível comprar aquelas terras todas? E não
desconfiava que o momento mais desejado da sua vida estava tão perto. Não
acreditou no que ouviu. Juntara tostão a tostão, imaginando, até sem sentir, que
aquela vida regrada e de guardar dinheiro era pra chegar àquele ponto. Ficou
atordoada como se tomasse um pancada de olho de machado na cabeça. Via-se
agora em Jequié, ouvindo desaforos da patroa, sendo posta pra fora, maltratada. Será
que ela imaginava que as pessoas fracas, por mais pobres que fossem, não tinham
sentimento? (EUCLIDES NETO, 1996, p. 155).
Como revela a passagem destacada, o uso do discurso indireto livre 14 e do monólogo
interior15 ajudam a caracterizar o espaço interior da protagonista de A enxada e a mulher que
venceu o próprio destino, revelando seus pensamentos e desejos mais ocultos. Outro recurso
também usado para retratar este espaço é o uso de figuras de linguagens, entre elas metáforas
e comparações. A lua é o elemento selecionado do real que metaforicamente reflete ao longo
da trama o interior de Albertina, revelando-a intimamente, na exposição de suas dores e
reflexões.
É “a mulher da pele para fora”, como a definiu o autor na orelha do romance sendo
mostrada “da pele para dentro”. Embora reconheça que o objetivo do texto não é fazer uma
abordagem intimista, psicológica da personagem, como no romance psicológico que talvez o
autor busque criticar na contracapa do romance, em diversas passagens da narrativa é possível
tomar contato com o espaço psicológico da protagonista, numa escrita rica em recursos
estilísticos e poéticos.
No primeiro capítulo, ao narrar a saída de Albertina da cidade de Jequié, a lua reflete o
cansaço, o medo e a constatação de que a terra no campo ou na cidade possui proprietários,
14
“É um discurso híbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como
se ambos falassem em uníssono fazendo emergir uma voz ‘dual’. [...] É, pois, um processo suscetível de
incorporar no fluxo narrativo o ‘realismo subjetivo’ que pode reger a representação do mundo interior das
personagens” (REIS; LOPES, 1988, p. 277).
15
“Técnica narrativa que viabiliza a representação da corrente de consciência de uma personagem. [...] Exprime
sempre o discurso mental, não pronunciado, das personagens. [...] É um discurso sem ouvinte, cuja enunciação
acompanha as idéias e as imagens que se desenrolam no fluxo de consciência das personagens” (REIS;
LOPES, 1988, p. 266-267).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
obrigando a agricultora a fugir sem destino. É possível constatar isto na passagem em que ela
e os filhos foram “alumiados por uma lua cansada, que também fugia com medo das estrelas,
donas do céu” (EUCLIDES NETO, 1996, p.5).
A lua aparece “cheia bebendo a escuridão”, quando a protagonista encontra alimentos
para as crianças, sementes e uma enxada velha, tudo abandonado numa roça próxima à
cascalheira onde se instalara. Esta descoberta representa a possibilidade de superar a condição
adversa imposta à família. Sementes para o plantio, a enxada para arar a terra, feijão e milho
para saciar a fome. Assim, todos ficariam como “a lua cheia”, alimentados, “bebendo a
escuridão”, usada como metáfora da fome. Na sequência, reforçando essa imagem, “um
cordão de lua entrava pela cumeeira, alumiando molemente o cômodo” (EUCLIDES NETO,
1996, p. 11) e Albertina consegue vislumbrá-lo. A luz destrói a escuridão – fome – e ilumina
o cômodo, como a devolver a esperança capaz de fazer a protagonista reconquistar a
dignidade perdida. E é desta reconquista da dignidade da mulher e do homem do campo que o
romance trata.
A lua torna-se uma aliada quando Albertina retorna à casa velha e abandonada, sede
da propriedade que fora de seus avós e onde morou com eles, os pais, os tios e os dois filhos
mais velhos, ainda crianças: “a lua despetalava claridade” e permite à mulher atravessar o
mato à noite até chegar ao destino. Neste espaço, ela vê vultos e sombras dos familiares
mortos e ouve seus murmúrios. É o retorno ao passado. A descrição da lua neste momento
reflete todo o estado de devaneio por que passa a mulher enfrente à antiga morada:
A lua, na sua penitência de subir, depregava-se [sic] dos morros, sorrateiramente.
Ficou solta, quase dependurada como u’a manga-rosa madura. Uma nuvem tentou
escondê-la. Parece que também o vento a balançou, pois seguia adiante. Quando
soprava mais forte, virava vento catingueiro que nem veado na corrida, ajudando os
movimentos das criaturas, trazendo vozes até Albertina (EUCLIDES NETO, 1996,
p. 122).
“Solta” também estava Albertina, despregada da razão (ou apenas apartada do tempo
presente?), deixando-se levar pelo “vento” – momento intenso de recordação e saudade de um
passado tranquilo e seguro no espaço familiar. O vento junta-se à lua para compor a cena.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Para a agricultora, seus mortos voltavam “nas noites de lua” com a mesma saudade sentida
por ela. Quando inicia uma oração de agradecimento a Deus por tê-los vistos, a avó
acompanha a prece. Após a oração, “o vento tinha viajado para outras bandas” e juntamente
com “a lua [que] entrava líquida pela janela” fez desaparecer os mortos. Nessa passagem, o
apelo religioso mais uma vez fica evidente no romance.
A lua retorna novamente para encerrar este momento de reencontro entre Albertina e
seus antepassados, escrito com uma linguagem marcada por comparações, sinestesia e
personificações, como ilustra a imagem: “Um silêncio claro, da cor da lua, desmanchando-se
em luz, entrou também na sala” (EUCLIDES NETO, 1996, p.123). A partir desse momento, a
protagonista retorna ao presente, iluminada pela claridade – metáfora da razão , e retoma a
objetividade, marca de suas atitudes, passando a avaliar os estragos causados pelo tempo na
casa abandonada, planejando uma futura reforma, mesmo a casa e as terras onde ela está
localizada não lhe pertencendo mais.
Essa linguagem altamente simbólica contrasta com a usada no capítulo que trata dos
desejos sexuais de Albertina. O capítulo 40 possibilita ao leitor recordar-se dos romances
naturalistas de Aloísio Azevedo, como O cortiço, por exemplo, em que o homem é por vezes
comparado a animais, nos momentos em que são descritos seus desejos ou narrados seus atos
sexuais. É possível perceber isto nas passagens de A enxada e a mulher que venceu o próprio
destino:
Mas precisava encontra um macho. [...]
Precisava urinar. Ardia. Abaixou-se. Só uns pingos saíram das suas partes
encaloradas. [...]
Chegaria um momento em que elas [as filhas], trabalhadoras, obedientes,
acomodadas virariam cabrita de cabo balançando e cachimbo inchado atrás de paide-chiqueiro. [...]
Teve vontade de correr nua, de gritar, de rasgar as partes endiabradas, beliscando.
[...]
Miraram-se. Nunca se tinham visto antes sentiram o fartum mútuo e enérgico. [...]
Cruzaram com violência, gemendo como animais famintos (EUCLIDES NETO,
1996, p. 143-144).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
A lua também se faz presente neste momento da vida da protagonista para marcar o
período do mês que se sente atormentada pelo desejo sexual: “Daquele dia em diante, nas
quadras de lua, Albertina corria as trilhas”; “Na chagada do crescente, voltava a cruzar”. A
lua marca aqui não as lembranças do passado, a saudade e o desejo de rever os familiares, mas
o desejo sexual, o momento do cio da fêmea/mulher. Nem o nome do macho/homem com
quem pratica o sexo ela quer saber, não apenas pela vergonha sentida após o ato sexual, mas
também (e isto faz parte do não dito) para deixar clara a ausência de envolvimento amoroso
com seu parceiro, com quem se encontrava “na chegada do crescente”.
Portanto, são quatro momentos importantes para o desenrolar da trama em que a
presença da lua é usada simbolicamente para informar o estado em que se encontra a
personagem principal: a saída da cidade de Jequié acompanhada pela fome; a descoberta de
uma roça abandonada que fornece alimento à família (des)abrigada nas margens da estrada
(até então alimentada apenas pelo fruto do umbuzeiro) e o reencontro com a antiga morada da
família, espaço que move Albertina no sentido de reconquistar as terras perdidas.
A passagem em que a lua crescente informa o despertar da fêmea/mulher é importante
porque permite refletir sobre o papel dessa mãe/mulher abandonada pelo “amásio [que] a
largou quando estava prenhe do filho caçula”, definido por ela como “Traste cruzador de uma
figa” (EUCLIDES NETO, 1996, p.4). Sozinha, a personagem consegue sustentar os filhos
pequenos, ensiná-los a trabalhar a terra, motivá-los para o trabalho árduo e fazer deles
parceiros na reconstrução da dignidade da família. Três décadas antes, em Os magros, o
escritor criara o protagonista João, que não consegue se libertar da opressão. Albertina, sem a
ajuda do pai de seus filhos, protagoniza a mudança na vida da família. São duas trajetórias
distintas, com desfechos também distintos.
Dessa forma, os romances Os magros e A enxada e a mulher que venceu o próprio
destino deram respostas distintas aos leitores contemporâneos do momento de suas
publicações. Em 1961, ano de publicação de Os magros, poderiam os trabalhadores rurais
protagonizar uma luta pela distribuição igualitária da terra? Os ideais socialistas, que
inspiraram as ações do cidadão Euclides Neto, tinham condições, no Brasil agrário da região
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
cacaueira baiana, de sair do papel pelas mãos dos explorados agricultores sem-terra? O
trabalhador rural tinha garantido os direitos trabalhistas, o direito a educação, saúde e
moradia? As possíveis respostas a estas perguntas estão inscritas em Os magros. Como João
poderia, em detrimento de todos os fatores histórico-sociais, empreender uma luta contra o
capitalismo que regia os latifúndios do cacau ou, por outro lado, tentar apropriar-se dos meios
de produção capitalista, simbolizado no facão, sem ter ao menos suprido a necessidade
primordial de alimentação?
O romance Os magros tenta responder as indagações do período de sua publicação. Se
a realidade agrária não tinha condições históricas de alterar seu curso em plena iminência do
golpe militar de 1964, o romance realizou o que era possível realizar: descortinar a opressão
do Brasil agrário a partir da focalização na região cacaueira baiana, evidenciar as contradições
entre as classes sociais que vigoram nesse espaço de produção e enriquecimento capitalista e
buscar, através da ficção, a adesão dos leitores às críticas a esse sistema fortalecido pela
exploração da mão de obra quase escrava do trabalhador rural.
Por outro lado, o romance possibilita conhecer o homem do campo, suas necessidades
e anseios, suas dores e desejos, sua revolta contida, seu medo e seu conformismo. O romance
evidencia ainda que as leis na região rural atendiam a quem possuía maior poder aquisitivo e a
posse das terras não era garantida a quem nelas habitava e produzia, mas a quem se aliava ao
poder institucionalizado. Realçou também a falta de compromisso e de ética na garantia à
saúde e à educação dos trabalhadores rurais, analfabetos e sem cidadania. No contexto atual
dessa leitura, tais problemas permanecem. A diferença se torna evidente nas conquistas
sociais dos trabalhadores, que fazem ressoar suas vozes e necessidades, ampliando as
discussões em torno das relações trabalhistas, dos direitos que certificam a cidadania no
campo e na cidade.
E o romance A enxada e a mulher que venceu o próprio destino, publicado em 1996?
O que mudou em três décadas para o trabalhador/trabalhadora rural? Apesar da exploração no
campo ainda persistir, a lavoura cacaueira estava em plena decadência por causa da vassoura
de bruxa. O romance, de certa forma, responde aos leitores de seu tempo que investir na
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
monocultura não é mais viável, sendo necessário voltar-se para a diversificação de culturas
agrícolas. Quem não aprendeu isto, entrou em decadência. O romance aponta como saída para
a monocultura cacaueira decadente – representando todas as monoculturas – o investimento
na agricultura de subsistência e familiar.
Sugere também que os latifúndios precisam ser repartidos. A terra, para cumprir sua
função social, necessita ser devolvida aos que sabem cultivá-la e têm o conhecimento
necessário para fazê-la produzir e produzir não pela exploração da terra e do trabalhador, mas
para possibilitar a vida digna aos que nela sabem trabalhar. A diversificação das culturas
agrícolas, a agricultura familiar e o acesso à terra são as saídas para o monopólio escravagista
que dominou o país desde as mais remotas monoculturas aqui desenvolvidas, como a cana-deaçúcar, o café até chegar ao “fruto de ouro”.
Não bastasse todos esses elementos como resposta às agruras de seu tempo, o romance
aborda, na metáfora da ficção, outro tema importante nas discussões de final de século XX e
início de século XXI, que vêm sendo inseridas nos debates desde a década de 1960: a posição
da mulher na sociedade. O que o romance sugere aos leitores de todos os tempos é que a força
e a coragem para ultrapassar obstáculos não dependem de gênero, raça e, por associação,
opção sexual. Albertina é uma mulher que não se submete à sociedade patriarcal opressora,
representada no romance pelo “traste cruzador de uma figa” pai de seus filhos, pelos policiais
que a expulsa dos locais públicos e pelos soldados que atiram em seus filhos mais velhos e
espancam os mais novos. Há um desvelamento da cultura opressora masculina, que agride
mulheres, crianças e outros homens de classe social desprivilegiada.
É pelas mãos trabalhadoras de uma mulher que luta para alimentar seus filhos e
devolver-lhes a cidadania, que homens e mulheres da ficção de Euclides Neto (re)conquistam
a dignidade no campo e a identidade agrária negadas pelo contexto histórico adverso. Essa
mesma mulher vive também a sua libertação sexual, indo além do sexo como procriação,
além da necessidade da figura masculina como provedora do lar. Albertina vivencia sua
sexualidade e usufrui dela sem cobrar do homem nada em troca por isso, apenas que exercite
a sexualidade livremente, dando vazão aos desejos.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
A partir da leitura realizada – continuo arriscando sentidos , é possível concluir que os
romances buscam a adesão do leitor à “causa” do homem/mulher do campo, quer seja pela
denúncia dos contrastes socioeconômicos entre os magros trabalhadores braçais e os
proprietários rurais, quer seja pela possibilidade de assentamento de agricultores no campo, a
partir da determinação da mulher, que não se curva às circunstâncias adversas.
Entretanto, é preciso considerar que a recepção é “um processo de interação”, de
“negociação de sentidos”. Sendo assim, o sentido não está somente na intenção ou na
motivação do autor ou apenas no “horizonte de expectativas” do leitor (ISER, 1996). O
sentido permeia o que o autor conseguiu imprimir na obra, mas não é uma propriedade apenas
do texto. Envolve o contexto em que ambos, autor e leitor, estão inseridos e a linguagem
usada e, como o contexto é ilimitado, as possibilidades de leitura ampliam-se.
Importa, enfim, que os leitores reflitam sobre duas indagações essenciais no processo
de construção de sentidos de uma obra literária: Por que este texto me provoca? Como este
texto me provoca? Buscar respondê-las é o desafio maior vivenciado pelos leitores. Para
responder à primeira questão, é preciso adentrar na(s) temática(s) sugerida(s) pelo texto,
possível(is) de mobilizar um leitor específico. Para responder à segunda, é necessário
mergulhar na escritura do texto, na sua linguagem e tessitura. São percursos que se cruzam na
tentativa de mobilizar os leitores, transformando-os e levando-os à transgressão, ou, na
contramão da contemporaneidade, fazendo-os aceitar a realidade vivenciada, lida ou
imaginada.
Ressalto, por fim, que independentemente de fazer parte do cânone literário brasileiro,
é interessante perceber no texto ficcional sua capacidade de impulsionar o leitor a (re)pensar
questões de seu tempo, mesmo tendo sido escrito em outro momento histórico. Perceber o
texto literário como sintoma não textual, mais profundo que os signos que o compõem é o
desafio que o leitor pode vivenciar no ato de leitura. É o convite que a produção escrita de
Euclides Neto faz aos leitores de todas as regiões brasileiras.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Maria Celeste P. de. Bahias de Amado: a ficção fundando uma nova geografia.
In: FONSECA, Aleilton e PEREIRA, Rubens Alves (Org.). Rotas e imagens: literatura e
outras viagens. Feira de Santana: Uesf, 2000. p.199-208.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução: J. Guinsburg. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
2004.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.. Tradução:
Sérgio Paulo Sérgio Rouanet. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras escolhidas, v.1).
BURKE, Peter (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. São
Paulo: Unesp, 1992.
COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. 2. ed. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo:
Perspectiva, 2008a.
ECO, Umberto. A obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2008b.
EUCLIDES NETO. A enxada e a mulher que venceu o próprio destino. São Paulo: Littera,
1996.
EUCLIDES NETO. Os genros. São Paulo: GRD, 1981. (Coleção Grapiúna, v. 2)
EUCLIDES NETO. Os magros. 2 ed. São Paulo: Guena & Bussius, 1992.
EUCLIDES NETO. Os magros. Salvador: Progresso, 1961.
ISER, Wolfgang. A indeterminação e a resposta do leitor na prosa de ficção. Tradução: Maria
Angela Aguiar. Cadernos do Centro de Estudos da PUCRS: série traduções, Porto Alegre, v.
3, n. 2, p. 01-47, 1999.
ISER, Wolfgang. Atos de fingir. In: ______. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma
antropologia literária. Tradução: Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. p. 1337.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz
Costa (Sel.). Teoria da literatura em suas fontes. Introdução e revisão de Luiz Costa Lima. v.
2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 955-987.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática,
1988.
ROCHA, Lurdes B. A região cacaueira da Bahia – dos coronéis à vassoura-de-bruxa: saga,
percepção, representação. Ilhéus: Editus, 2008.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Um escritor chamado João Otávio Nogueira Leiria
Cibele Beirith Figueiredo Freitas16
A questão do cânone é muito debatida por vários autores contemporâneos. Nas
histórias da literatura do Rio Grande do Sul, geralmente são escritores conhecidos do grande
público que estão elencados, o que impõem uma visão cristalizada da literatura sul-riograndense. Dessa forma, alguns autores são canonizados e outros permanecem “na sombra”,
esquecidos.
Um exemplo disso é o que ocorreu com o poeta e jornalista João Otávio Nogueira
Leiria, que figurou à margem do cânone literário gaúcho. Nogueira Leiria nasceu no espaço
peculiar da Campanha rio-grandense, mais precisamente na cidade de São Francisco de Assis.
O Poeta, como era denominado pelos amigos, fez da literatura um meio de conhecimento e de
transmissão da cultura de seu Estado.
Descrever a sua trajetória de vida e o seu trabalho intelectual é tratar de dois caminhos
que se encontram, pois um é complemento do outro, como se pode verificar nos versos de
“Poesia”, em que o escritor explora a interioridade através do fazer poético:
Tu me levaste às solitárias cismas,
delas me deste o abismal sentido,
o gosto e o vício emocionais de estar
sempre comigo e a mim mesmo entregue.
[...]
Nunca me falte o teu convívio amigo,
amante rara, de insidiosos jeitos.
Dás-me da vida o sentimento eterno,
16
Graduada em Letras - Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (2007) e Mestre em Letras pela mesma universidade (2010).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
a cada instante que contigo trazes
o esquivo dom que me consola tanto.
(LEIRIA, 1968, p. 128)
Descendente de uma família tradicional de estancieiros, Nogueira Leiria nasceu no dia
5 de junho de 1908. Com eles, viveu no espaço rural de São Francisco de Assis, em meio à
natureza, aos animais e aos costumes do homem do campo, sendo um dos únicos membros da
família a expressar essas peculiaridades através da literatura, como escreveu em “Canção da
terra e do ideal”, que retrata as especificidades do relevo e da ambientação campeira:
Tem minha alma a imagem desta terra,
traz ela bem a marca do meu povo,
pois, se a quietude da planície encerra,
sei que o minuano em meus nervos erra
e me sacode como a um tronco novo.
Amo o sol que incendeia estas coxilhas,
a claridade do rio natal,
que beija areias e contorna as ilhas.
[...]
(LEIRIA, 1968, p. 84)
Desde muito cedo, conheceu as tristezas e as amarguras da vida. Ainda pequeno, com
cinco anos de idade, foi afastado da mãe, que sofria de tuberculose. Padecendo com a
separação devido ao isolamento materno, sofreu a perda da mãe, fato esse que o marcou
durante toda a sua trajetória. Em “Saudade”, o poeta canta a figura materna:
Era o apelo do meu próprio sangue!...
[...]
Ela propiciou-me tudo, enquanto pude desejá-la,
num carinho espontâneo
de água clara...
E eu a desprendia dos meus braços
Para o gosto amargo desta ausência.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
[...]
(LEIRIA, 1932, p. 65)
Em consequência dessa perda, o menino foi criado pelo pai, seu companheiro, e pelas
tias maternas. Vivendo no meio campeiro, Nogueira Leiria tinha como principal brinquedo os
ossos do gado, denominada “gado de osso”. Foi nesse tempo também que aprendeu as
primeiras letras, com uma de suas tias, Emília Mello Leiria, sendo ela a alfabetizadora de
muitas outras crianças da família Leiria.
Seu pai, que era estancieiro, tinha como principal fonte de sustento a venda do gado,
conduzindo a tropa em marcha aos arredores da fazenda, as chamadas “tropeadas”. Na lide
campeira, algumas vezes contava com a companhia de João Otávio, que ainda pequeno,
assistia a tudo, representando mais tarde essa cena no poema “A tropa”:
“Venha... Venha, boi...
Minha toada de tropeiro
foi meu pai que me ensinou:
– ”Venha, boi... Venha, bô... ôo... ôo...”
Minha toada de tropeiro
foi de berço que aprendi.
Enquanto meu pai tropeava,
de minha mãe foi que eu a ouvi.
Volta o tropeiro à querência,
e a tropa não volta mais.
– “Venha... Venha, boi...”
Mas, entre a deixar aos poucos,
e a perder de uma só vez,
são destinos quase iguais
que irmanam homem e rês.
– “Venha... Venha, boi...”
A voz repete, dolente,
enquanto os outros repontam
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
a boiada mansamente...
(LEIRIA, 1968, p. 101)
Aos onze anos de idade, João Otávio deixou os pagos, indo para Porto Alegre estudar.
Na Capital, frequentou o chamado Ginásio, no Colégio Júlio de Castilhos, passando a morar
com a tia materna mais velha. Nessa etapa, ele conviveu com os primos mais velhos, com os
quais aprendeu os costumes da cidade, diferentes das coxilhas. Segundo Nogueira Leiria, a
casa da tia era um local agradável e movimentado:
vivíamos numa casa alegre. Todos da mesma cria e longe da querência, éramos,
todos, como irmãos. A idade não fazia diferença e éramos mais agarrados, uns com
os outros, do que uma tropa de tordilho. Mate correndo nas horas de folga; auxílio
recíproco nos estudos; acalouradas discussões sobre o português; diversões e
passeios em comum; absoluta solidariedade em tudo, essa era a nossa vida, numa
casa em que chegamos a ser mais de doze, sob o comando de nossa saudosa tia. 17
(AJNLT752)
No período de férias, sempre voltava a sua cidade natal, São Francisco de Assis, onde
revia os parentes e amigos, e matava a saudade da natureza, dos rios, dos animais. A cena da
chegada, em que o tio Adão buscava-o, pode ser ilustrada pelo soneto I, do poema “Canto do
Ibicuí”:
Ponho os olhos na linha do horizonte,
e, aos poucos, se desenha o Ibicuí...
Deixo o trem na estação,que fica em fronte
da estrada para a terra onde nasci.
Antes, porém, que a diligência aponte,
do outro lado diviso o Batovi.
E vou contando, assim, monte por monte:
O Cerro dos Lasões... O Inhacambuí...
A paisagem natal, entresonhada,
17
Manuscrito de João Otávio Nogueira Leiria, pertencente ao Acervo de João Otávio Nogueira Leiria, integrado
ao Espaço de Documentação e Memória Cultural - DELFOS, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Me transporta aos meus tempos de guri...
Chego ao passo, com a barca ali atracada.
E “tio” Adão, com a voz que sempre ouvi,
aponta-me, de bordo, a mão alçada:
– “O moço tem passagem livre, aqui...””
(LEIRIA, 1968, p. 56)
Anos mais tarde, aproximadamente no final dos anos de 1920 e início de 1930 do
século passado, Nogueira Leiria mudou-se para uma pensão. Nesse período, terminou os seus
estudos ginasiais.
O moço solitário crescia e despedia-se do mundo de criança, compreendendo que
agora estava na fase adulta. Era um homem feito, mas as recordações daquele espaço
mitificado sempre habitaram as suas lembranças, características que podem ser ilustradas
pelos versos do soneto II, do poema “Canto do Ibicuí”:
Depois da diligência, veio o “ford”.
e, como o tempo tudo foi mudando,
eu minha adolescência fui deixando,
sem saber se essa mudança era melhor.
Chegou a mocidade, com seu bando
de sonhos e ilusão... Mas eu, de cor
sempre trazia estes caminhos, quando
a saudade do pago era maior.
E assim os anos foram vindo, até
chegar a idade madura da fé,
que, com amor, na vida construí:
– Onde quer que me encontre, sempre atino
com as Missões Orientais do meu destino,
conformadas à linha do Ibicuí!...
(LEIRIA, 1968, p. 57)
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Nessa época, passou a conviver com outros estudantes, jovens moradores das pensões.
Foi então que conheceu Cyro Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto, Mário Martins, José
Salgado Martins, Alberto Severo, Manoelito de Ornellas, Lila Ripoll, com os quais manteve
amizade, fazendo parte da geração romântica dos jovens poetas e escritores, muitos deles
também moradores dos pequenos hotéis. Dentre esses, destaca-se o escritor Cyro Martins,
com quem manteve fortes laços de amizade ao longo de toda a sua vida.
Devido a economia do Estado estar baseada na pecuária e na agricultura, a poesia
regional respondia ao desafio desse meio. Os poetas sentiam-se atraídos pela temática
campeira, ligada ao amor da terra, convictos de que a literatura nasce do local que o homem
habita.
Com esse pensamento, no ano de 1932, aos vinte e quatro anos de idade, João Otávio
Nogueira Leiria publicou o seu primeiro livro, Campos de areia.18 Dono de uma imensa
sensibilidade e marcado pela vivência no campo, o poeta retrata essa realidade, valorizada
pelo gaúcho que se identifica com a terra e divide o seu tempo entre a lide pastoril e a guerra.
Há uma espécie de denúncia do atual momento vivido pelo escritor, no qual se estabelece um
contraponto entre a Campanha, idealizada pelo gaúcho – com os seus costumes e tradições –,
e a desocupação desse espaço, em decorrência da crise econômica, que provoca a saída do
homem. Na obra em questão, há uma crítica expressa pela voz do eu lírico ao abandono do
espaço rural, local de suas lembranças de infância.
Além disso, percebe-se que Nogueira Leiria tem o domínio do linguajar tradicional
gaúcho, constituído pela integração inicial dos espanhóis, portugueses e indígenas, resultando
em uma linguagem híbrida, carregada de vocábulos e expressões utilizadas na região da
fronteira com o Uruguai.
Editado pela Livraria do Globo, Campos de areia teve uma boa repercussão, como se
pode comprovar pelo artigo, escrito por Dante de Laytano, datado de 10 de julho de 1932,
18
LEIRIA, João Otávio Nogueira. Campos de areia: poemas gaúchos. Porto Alegre: Globo, 1932.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
intitulado “Vida literária: o movimento intelectual e a Livraria do Globo”, que faz referência à
obra então recém lançada:
Edita, em seguida, o Globo um livro de Paulo Corrêa Lopes, a sensibilidade mais
requintada da nossa poesia, e mais um livro de versos regionalistas dum outro
grande poeta novo J. O. Nogueira Leiria: “Campos de areia”. Nomes novos e novas
revelações. Adquire, assim, o Globo o justíssimo título de editora dum grande
período da nossa literatura.19 (AJNL T988)
Em recorte do jornal Correio do Povo, não datado, pertencente ao Acervo de João
Otávio Nogueira Leiria, encontrou-se uma crítica, na coluna “Especial para o “Correio do
Povo””, escrita por Augusto Meyer, à obra Campos de areia. Nessa apreciação, intitulada
Campos de areia, Meyer reconhece o valor da poesia de João Otávio, afirmando que, em
meio à repetição, Nogueira Leiria conseguiu dar, através da sutileza e do aprimoramento dos
versos, uma nova cor à temática regional gaúcha:
Existe muita força e delicadeza na poesia de Nogueira Leiria, ela é ao mesmo tempo
fina e brava.
A primeira leitura tem o defeito de prender muito a atenção sobre a atitude temática,
o que é inevitável pela curiosidade em saber de que maneira o poeta, chegando com
tanto atraso na cancha regionalista, evitará o repisamento.
Mas, pensando bem, essa curiosidade, não se justifica, porque repetir os temas não
quer dizer remascarar a mesma coisa. O dom lírico está na virtude de saber renovar
as velhas matracas.20 (AJNL T986)
Após essas observações, tece comentários sobre alguns poemas, como “Humildade”,
“Incerteza”, “Serão campeiro”, “Bolicho”, “Ronda”, “Saudade”, “Noite” e encerra o texto
afirmando:
19
LAYTANO, Dante de. Vida literária: o movimento intelectual e a Livraria do Globo. Correio do Povo, Porto
Alegre, 10 jul. 1932.
20
MEYER, Augusto. Campos de areia. Correio do Povo, Porto Alegre, [s. p.], [s. d.].
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
O que os outros deixaram incompleto ou esquecido, durante a viajada sem fim, vai
sendo revelado pelo olhar mais prevenido que chegou depois.
E não há nada que se compare à alegria de descobrir um poeta novo. Parece que o
contato com ele é mais um motivo de afirmação para nós. Principalmente quando
se apresenta, como Nogueira Leiria, voltado para uma fidelidade tenaz, tão rara
nesta febre moderna das destruições.21 (AJNL T986)
Augusto Meyer aponta para o entusiasmo com que Nogueira Leiria trata o tema do
regionalismo, tão desgastado e debatido em meio às novas tendências, como um processo de
renovação, enfocando as peculiaridades locais. Na época em que foi publicada a obra, teve
uma boa recepção da crítica literária local, sendo aclamada pela geração romântica como uma
obra-prima do regionalismo gaúcho.
Na mesma época da publicação de seu livro, entre as idas e vindas a sua cidade natal,
Nogueira Leiria conheceu Marina Constança Cézar Barradas, o grande amor de sua vida.
Casou-se com ela no ano de 1933, aos vinte e cinco anos de idade. Marina foi sua
companheira e grande incentivadora de seus projetos. Com ela, o poeta passou toda a vida,
encontrando a paz e a felicidade que tanto procurava, como expressa nos versos do poema
”Canção da terra e do ideal”:
Mas saiba aquela de que eu fiz rainha,
senhora e dona de afeições mais puras,
– prenda que veio para ser só minha –
que ela jamais há de ficar sozinha,
pelas patrícias que me foram duras.
(LEIRIA, 1968, p. 85)
Na mesma cidade em que se casou, São Francisco de Assis, Nogueira Leiria exerceu o
cargo administrativo de Secretário do Município. Ao mesmo tempo em que trabalhava na
Prefeitura de São Francisco, estudava Direito na Faculdade de Direito da Universidade
21
Idem.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo de ir frequentemente a Porto Alegre para
assistir às aulas e prestar as provas.
Um ano aproximadamente depois de se casar, em 1934, nasceu a primeira filha do
casal, Maria Leta Barradas Leiria. Dois anos mais tarde nasceu o segundo filho, Reinaldo
Barradas Leiria. A alegria expressa pelo poeta, agora com a presença dos dois filhos, pode ser
verificada nos versos que escreveu22:
Eu que cantei tanta coisa nesta vida,
que tantas emoções senti e que as gravei,
nunca vi nada mais lindo
do que os sóis de vocês...
– Minha filha! Meu filho!
pequeninos, meu sono que é um sorriso de tão uno
creio em vocês como força que impulsiona o meu destino
e que me faça viver como as raízes
para a glória fecunda dos botões.
[...]
Tranquilo estou, tranquilo irei
Só para sentir a mansidão
Que vem do sono de vocês!
(AJNLT790)
No ano de 1938, João Otávio Nogueira Leiria mudou-se definitivamente para Porto
Alegre, local em que foi nomeado Inspetor Federal de Ensino pelo Ministério da Educação,
no ano de 1939, cargo para o qual foi designado por indicação política durante o governo de
Getúlio Vargas.
Com o passar do tempo, a situação foi melhorando para a família Leiria. Nesse
período, João Otávio foi pai novamente. No ano de 1941, nasceu Paulo Roberto Barradas
Leiria, e um ano mais tarde, Luiz Carlos Barradas Leiria.
22
Manuscrito inédito encontrado no Acervo de João Otávio Nogueira Leiria, depositado no DELFOS, da
PUCRS.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Em meio às múltiplas alegrias na vida do poeta, uma triste notícia abalou
sensivelmente o seu coração. No ano de 1942 faleceu, em São Francisco de Assis, seu pai, fiel
companheiro. Esse fato deixou-o profundamente abalado, sentimento que fica evidenciado no
poema “Meu pai”, citado abaixo:
A saudade que eu sinto de meu pai
é fonte de efusivas energias.
Saudade andeja como ele, vai
por céus abertos e amplidões bravias.
Levanta o pouso em São Francisco. Sai
cruzando campos, rios e serranias...
Volta depois, das costas do Uruguai,
a repontar as xucras gadarias.
[...]
Saudade amiga que carrego em cheio,
Seja qual for o rumo a que me afoite
com sóis ardentes, chuvas ou pampeiros!...
(LEIRIA, 1968, p. 83)
Mesmo abatido pela dor da perda, a vida tinha de ser tocada em frente. Após passar
um tempo, Nogueira Leiria adquiriu, no ano de 1943, uma casa confortável para viver com a
família, local onde permaneceu até a sua morte:
Fiz um pouso final nessa moradia
Junto a arvoredo que mandei plantar
E hoje ostentam a grande ramada
Entre salgueiros a se debruçar.
Levo vida tranqüila e recatada
Sem mais nada do mundo ambicionar
Venha do inverno a ríspida lufada
Que com a lareira eu hei de conversar!
Após o outono virá a primavera
A dizer-me que me procura à espera
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Da promessa radiante do verão.
Nesta morada, onde vivo para os meus
Quantas vezes converso, a sós, com Deus
Sem indagar dos dias que virão...23
(AJNLT600)
O lar do poeta foi local de simplicidade e aconchego, estando sempre de portas abertas
para hospedar os parentes interioranos, como ilustra o poema manuscrito, que integra o seu
Acervo24:
Minha casa! Eis o pouso certo
de quantos a buscaram e inda a buscam...
Estão abertas as portas, que eu oferto
com a bênção dos bens que a nada ofusca.
(AJNLT1067)
Foi nesse sobrado que nasceu o quinto filho do casal Nogueira Leiria e Marina Leiria,
em 1943, que recebeu o nome de João Otávio Nogueira Leiria Filho, em homenagem ao pai.
Em 1940, formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
passando a atuar como advogado. Mais tarde, por indicação, foi nomeado Procurador Fiscal
do Estado do Rio Grande do Sul. Devido ao excelente trabalho realizado como Procurador
Fiscal, desde 1940, no ano de 1967, Nogueira Leiria passou a dirigir a procuradoria, cargo
ocupado até a sua aposentadoria.
Concomitante à carreira de procurador, no mesmo ano, 1940, ingressou na Companhia
Jornalística Caldas Júnior, de Porto Alegre, designado inicialmente à função de repórter.
Nessa empresa, passou a ocupar o cargo de redator do jornal Correio do Povo25,
responsabilidade que o tornou conhecido devido aos editoriais que escrevia em uma das
23
Manuscrito inédito pertencente ao Acervo João Otávio Nogueira Leiria.
Manuscrito inédito pertencente ao Acervo João Otávio Nogueira Leiria.
25
Nogueira Leiria exerceu a atividade de redator e editor do Correio do Povo ao longo de, aproximadamente,
trinta anos, tendo como companheiros Edgar Luiz Schneider, Adail Moraes e Armando Fay de Azevedo, entre
outros.
24
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
colunas desse periódico. Assim, afirmava-se cada vez mais como jornalista, escrevendo sobre
política, economia e os grandes problemas que afetavam o homem da época.
Como não costumava ouvir rádio e pouco assistia à televisão (novidade da época), lia
muito. Pela manhã, sentava-se em seu gabinete para redigir o artigo do próximo dia do jornal,
diretamente datilografado na sua máquina Royal, hoje integrante do acervo doado pela família
ao DELFOS.
Na mesma época, passou a ter publicados frequentemente artigos literários de sua
autoria na quarta página do Correio do Povo, sob a assinatura de J. O. Nogueira Leiria.
Nesses textos, tratava principalmente de temáticas voltadas à literatura, ao regionalismo
gaúcho, e de referências a obras, personagens, autores e principais acontecimentos da
intelectualidade da época, além de tratar também de suas memórias.
Em sua fase de fecunda produção crítica, era comum receber a visita de seus amigos
em casa, tais como Cyro Martins e Salgado Martins, geralmente pela manhã. Lá, reuniam-se
no seu gabinete e trocavam ideias sobre as suas produções, tanto de ordem literária (contos,
poemas), como de ordem política, social ou econômica. Uma prática corriqueira de João
Otávio era, ao término dos seus artigos jornalísticos, pedir a leitura e a opinião crítica dos seus
companheiros.
Ao final do expediente na Procuradoria Fiscal do Estado, caminhava até a Rua Caldas
Júnior, local onde ficava a redação do jornal Correio do Povo, para deixar o artigo para ser
publicado no dia seguinte. Nessas ocasiões, reencontrava os amigos e iam aos famosos cafés e
confeitarias porto-alegrenses, locais em que se reuniam para conversar, tomar café e fumar,
hábito este que manteve durante toda a vida. Muitas vezes era dessas conversas que tirava as
ideias para escrever os seus artigos. Era comum naquela época grupos de políticos e
intelectuais se reunirem e confraternizarem nos bares, cafés e livrarias da Rua da Praia.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Além de jornalista, Nogueira Leiria se afirmou também como poeta, passando a
publicar as suas poesias no Correio do Povo e em outros periódicos importantes da época,
como na Revista do Globo.
Dada a importância de seus trabalhos intelectuais, no ano de 1945 foi convidado,
juntamente com Reynaldo Moura, Moysés Velhinho, Lila Ripoll, Guilhermino César, entre
outras personalidades da época, para participar do I Congresso Brasileiro da Associação dos
Escritores, promovido, na cidade de São Paulo. A esse encontro, segundo Carlos Guilherme
Mota26, “compareceram representantes da intelectualidade de todos os Estados do Brasil, e
alguns convidados estrangeiros” para discutir assuntos de ordem cultural, política e social, o
que denota o seu prestígio na época.
O assisense, apaixonado pela temática campeira, foi um apreciador do poema épico de
José Hernandes, Martin Fierro, que retrata o gaúcho argentino, heróico e sacrificado da
região dos pampas. Autodidata, sem nunca ter feito nenhum curso de Espanhol, mas profundo
conhecedor do dialeto gauchesco, Nogueira Leiria passou cerca de vinte anos traduzindo para
a língua portuguesa a obra espanhola. Sua tradução foi fruto de imensa pesquisa, estudo e
interpretação, sendo publicada após a sua morte, em 1972, pela Editora Bells de Porto Alegre.
A obra teve uma boa recepção do público, como afirma Hugo Ramirez:
a edição estava já sendo objeto de impressão por parte de uma editora nova, então
surgida na capital do Estado, a qual obteve com a publicação da versão de J. O. o
sucesso esperado. Até nos programas televisionados do Rio de Janeiro, intérpretes
extraordinários recitaram trechos nobres do “Martin Fierro” traduzidos por J. O.
Nogueira Leiria.27 (AJNL T998)
26
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: pontos de partida para uma revisão histórica. São
Paulo: Ática, 1994, p. 176.
27
RAMIREZ, Hugo. J. O. Nogueira Leiria e seu paraíso perdido. Diário de Notícias. Porto Alegre, 3 ago. 1975.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Tal foi o sucesso da obra traduzida que em 1987 surgiu a quinta edição, primeira
bilíngue, pela Editora Martins Livreiro, também de Porto Alegre.
No ano de 1968, teve editado seu segundo livro de poesias, Rincões perdidos, pela
Livraria Sulina Editora de Porto Alegre, com lançamento na XIV Feira do Livro de Porto
Alegre. Nessa obra, Nogueira Leiria retoma a temática campeira através de suas poesias, com
a predominância dos sonetos, por meio dos quais descreve os principais momentos vividos
por ele no espaço da Campanha, na “Estância velha”.
Guardo da Estância esta impressão distante;
a casa branca, no alto , entre arvoredos,
Em frente, a sanga límpida e cantante,
a bordar, rumo ao rio, amplos varzedos.
[...]
Vem um peão fazendo a recolhida;
entra a tropilha em forma na mangueira,
como sinal para iniciar-se a lida.
(LEIRIA, 1968, p. 9)
Seus versos tratam de temas como a doma dos animais, a prática dos rodeios, os
apartes de gado, as tropeadas, as carreiras, a marcação. Além disso, na mesma obra faz uma
recuperação das principais lendas do imaginário gaúcho, apresentadas em forma de poesia,
dentre elas: “Teiniaguá”, “Negrinho do Pastoreio”, “Boi Tatá”, “Boi Barroso” e “Sepé
Tiaraju”.
Rincões perdidos corresponde a uma fase mais madura do poeta, através da qual ele
evoca as lembranças da sua infância, refletindo sobre as tristezas e alegrias vivenciadas no
espaço peculiar, dando uma interpretação original às velhas tradições, como se pode perceber
pelas palavras de Pedro Vergara:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Meu caro J. O. Nogueira Leiria, você conseguiu nos dar, das nossas tradições, novas
e velhas, uma interpretação, tão viva quanto vivida, e tão cheia de poesia, quanto a
de sua própria beleza; [...] aquele que estúa nos seus versos, Leiria, tem a marca da
sua personalidade, estremece e se reergue, ele mesmo, com as suas características,
[...], pela força do seu poder evocativo de poeta [...].28 (AJNLT506)
Amante do regionalismo, Nogueira Leiria tinha o dom para as Letras, tendo sido ao
longo da vida um leitor eclético. Sua biblioteca pessoal 29 é composta por aproximadamente
duzentos e noventa livros de diferentes autores, tais como Dante Alighieri, William
Shakespeare, Gustave Flaubert, Jorge Luis Borges, Mário Quintana, Eça de Queiroz, Augusto
Meyer, João Simões Lopes Neto, Machado de Assis, tendo várias edições da obra Martin
Fierro, de José Hernandez.
Além de ser um bom conhecedor da sua língua materna, lia e interpretava textos em
Francês e Espanhol. Tinha preferência pelo gênero poético, sendo um apreciador e
declamador de poesia.
Segundo seu filho, Reinaldo Barradas Leiria, em entrevista concedida à autora deste
artigo30, João Otávio era um amante das Letras, conforme se percebe na transcrição que segue:
“Meu pai lia muita poesia. Ele declamava. Lia declamando em voz alta. A nossa casa tinha
um gabinete, que era onde ele ficava, onde ele tinha seus livros e o birô, uma escrivaninha
antiga, com uma tampa de correr, muito bonita, que ele ganhou. Era o local onde ele
trabalhava. Era ali que ele escrevia, na máquina de escrever. Nesse gabinete, era comum ele
ler poesias declamando em voz alta. Ele sabia declamar, ele declamava com sentimento, com
28
Correspondência passiva de Pedro Vergara, integrante do Acervo de João Otávio Nogueira Leiria, datada de
27 de outubro de 1968.
29
A biblioteca pessoal do escritor está depositada no Espaço de Documentação e Memória Cultural – DELFOS,
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SUL.
30
Depoimento concedido pelo filho de João Otávio Nogueira Leiria, Reinaldo Barradas Leiria, em entrevista
realizada no dia 21 de julho de 2009, às 14 horas, no DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural,
junto à Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
uma voz pausada, entonação. Ele era um declamador. Era bonito ouvi-lo ler as poesias em voz
alta”.
Como poeta, foi muito aclamado pela beleza e a riqueza de seus versos. Entusiasta das
atividades campeiras, Nogueira Leiria foi ligado ao movimento tradicionalista “Estância da
Poesia Crioula”, uma academia de letras dos escritores e poetas tradicionalistas, que tem
como objetivo a divulgação dos costumes e das tradições cultivadas pelo homem do campo.
Em muitas ocasiões, o poeta atuou como palestrante, expondo assuntos ligados à cultura
típica do homem do Rio Grande do Sul. Em outras festividades, como nas tertúlias literárias,
apresentava-se como declamador.
Ao longo da vida, sofreu de um grave problema na coluna dorsal, realizando
tratamentos intensivos com diversos médicos. No final de sua vida, um especialista descobriu
que se tratava de um câncer. No dia 15 de fevereiro de 1972, aos sessenta e três anos de
idade, em consequência desse problema, o poeta veio a falecer no hospital.
Em sua existência, mesmo com todo o carinho e amor que recebia, o poeta carregou
uma profunda melancolia, oriunda provavelmente da orfandade materna no período em que
ainda era muito pequeno. Por alguns momentos, essa solidão vinha à tona e era expressa em
versos impregnados de saudade e melancolia, estimulados pelas lembranças presentes nas
desilusões da existência, como escreveu em “Vida velha”:
Vida velha, dou-te agora,
todo o amor que te neguei
Louca que o tempo sovou
é mais fácil de cortar:
– o tento sai, fora a fora,
a jeito para trançar.
Perdoa se já fui outro,
se fui rebelde a teus tratos
e duro para o teu fio:
tomaste-me muito cedo;
eu tinha couro de potro
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
sestroso do teu enredo.
Com tiras da alma ou dos anos,
e que, afinal, se confundem,
vais trançando, vida velha,
a trama do meu destino:
– um laço de desenganos,
com tentos de desatino.
Mas que importa, vida minha,
o que tu queiras de mim?
Estou perdido de amores
por tuas artes sutis:
Oh, tirana, sê madrinha
de quem antes não te quis!
(LEIRIA, 1968, p. 83)
Resgatar as vozes esquecidas no passado não significa apenas pôr em relevo a
trajetória do escritor, mas recuperar também parte da memória histórica e cultural identitária
do povo sulino. Os materiais produzidos por João Otávio Nogueira Leiria e em torno dele,
relativos à sua vida privada e artístico-cultural, constituem uma fonte de informação
inesgotável, que apontam para novas reflexões sobre a história e a cultura do Rio Grande do
Sul.
REFERÊNCIAS
LAYTANO, Dante de. Vida literária: o movimento intelectual e a Livraria do Globo. Correio
do Povo, Porto Alegre, 10 jul. 1932.
LEIRIA, João Otávio Nogueira. Campos de areia: poemas gaúchos. Porto Alegre: Globo,
1932.
LEIRIA, João Otávio Nogueira. Rincões perdidos: poesias. Porto Alegre: Sulina, 1968.
MEYER, Augusto. Campos de areia. Correio do Povo, Porto Alegre, [s. p.], [s. d.].
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: pontos de partida para uma
revisão histórica. São Paulo: Ática, 1994, p. 176.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
RAMIREZ, Hugo. J. O. Nogueira Leiria e seu paraíso perdido. Diário de Notícias. Porto
Alegre, 3 ago. 1975
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
O leque das crônicas de Vasconcelos Maia: (pre)texto para reflexão sobre Leitura,
Literatura e Memória
Edna Maria Viana Soares31
RESUMO: Vasconcelos Maia (20de março de 1923 – 14 de julho de 1988), contista baiano, cuja vida de escritor se
inicia aos dezoito anos, vindo a ser “um ficcionista” como se definia, estreou na literatura em 1946 com o livro
Fora da Vida. Trilhando veredas concretas, em quarenta anos de produção, o escritor materializou seu
pensamento em cerca de mil crônicas e vários contos. Consagrado como contista, com obras editadas inclusive
no exterior, o escritor baiano, no momento em que a cidade do Salvador vivia uma expressiva efervescência
cultural, como testemunha privilegiada de seu processo de modernização, aproxima-se dos meios de
comunicação de massa, tornando-se um cronista incansável. Ao lado dessa fecunda atividade jornalística,
Vasconcelos Maia responsabiliza-se pela gestão do órgão municipal de turismo, posição que será determinante
no enfoque de suas crônicas sobre a cidade que então definia sua “vocação turística”. Embora escrevesse sobre
os mais variados temas, o cronista Vasconcelos Maia prioriza a cultura popular, em especial os elementos
oriundos da cultura negra e suas manifestações, imprimindo um traço de autenticidade e originalidade à cultura
local, o que ensejará a construção de uma “moderna tradição soteropolitana”. Este artigo traz breve apresentação
do intelectual Vasconcelos Maia e aborda a temática das 600 crônicas por ele publicadas.
Pal avras-ch ave: Literatura Baiana; Vasconcelos Maia; Crônicas jornalísticas.
Retiradas de sua condição de “blocos totêmicos”, expressão usada por Massaud
Moiséis (1985) ao se referir à maneira como são encontrados os jornais antigos nas
bibliotecas, numa extensa pesquisa bibliográfica realizada no Jornal da Bahia, cujo acervo
31
Professora da rede pública realizou Mestrado na Universidade do Estado da Bahia– Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens - UNEB/PPGEL com a dissertação Uma Cidade Dia Sim, Dia Não:
Salvador nas crônicas de Vasconcelos Maia – 1958/1964, sob a orientação da: Profª Drª Maria do Socorro da
Silva Carvalho.
Email [email protected].
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
pertence à hemeroteca da Biblioteca Pública do Estado, as 600 crônicas jornalísticas de
Vasconcelos Maia converteram-se em um fascinante e multifacetado objeto de estudo. A
investigação intencionou identificar a representação da Cidade de Salvador, bem como,
analisar a crônica jornalística do escritor baiano, sua temática, suas características e
possibilidades enquanto porta-voz dos valores da modernidade.
Vasconcelos Maia foi considerado por Jorge Amado como “um dos escritores
baianos mais autênticos e mais característicos” (AMADO, 1964). Nascido em Santa Inês e
radicado em Salvador desde muito cedo, passou toda a sua infância e adolescência morando
nas imediações dos Aflitos, região urbana que irá delinear em seus contos.
O intelectual baiano atribuiu sua opção pela literatura “à vida aventurosa de
garoto misturada à vida caótica das leituras”. A sua trajetória de escritor iniciou-se aos 18
anos, vindo a ser “um ficcionista”32. Estreou na literatura, em 1946, com o livro Fora da
Vida, que trazia alguns contos lançados em periódicos, no intervalo entre os anos 1942 e
1945. Fora da Vida era o título de um dos contos no qual o autor projetava o seu drama de
enfermo, vez que, no final da adolescência, fora acometido de uma pleurite (na época tratada
como tuberculose), que o obrigou a interromper os estudos e a ficar enclausurado no sótão de
sua casa, passando a maior parte do tempo sozinho. A clausura forçada pela doença levou-o a
mergulhar na leitura e a compensar a imobilidade física com a franca mobilidade imaginativa.
Leu muito e de tudo, como ele próprio afirmou em vários de seus depoimentos. Gostava
“imensamente de ler; livros para crianças, livros para adolescentes, livros para adultos, além
de livros proibidos”33.
32
Em material datilografado com o título Sobre o Leque de Oxum, gentilmente cedido pelo falecido professor
Pedro Moacyr Maia, irmão do escritor, Vasconcelos Maia informa que não sabe bem quando se manifestou a sua
vocação para a literatura. Era um garoto que vivia intensamente a infância, gostava de ler, e lia muito. Suas
aventuras de garoto somavam-se àquelas das leituras caóticas, o que resultava numa intensa produção mental.
Criava todas as fantasias que lia, sendo ora o autor, ora o personagem. Nesta entrevista, afirma: “Sou ficcionista.
Não quero ser mais do que isso”.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Para o jovem Carlito, a leitura se converteu numa forma de “tornar as tensões
sociais suportáveis e fecundas” (POMPOUGNAC, 1997 p.36). A leitura tornou-se para
Vasconcelos Maia, diante do isolamento pela doença, uma atividade individual por um lado, e
por outro o canal que o transporta ao mundo da imaginação. Preenchendo as lacunas deixadas
pelo depoimento do escritor, é possível se inferir em decorrência deste hábito confessado de
leitura, a filiação a uma dada instituição. Neste contexto, pressupõe-se, a família.
Impossibilitado do convívio social, distante das bibliotecas, isolado dos amigos, sua prática,
contudo, era partilhada, feita no interior da família, que, se não o fazia de outra forma, supria
a sua necessidade material de livros.
O papel de intelectual – termo aqui entendido segundo o exposto por Pierre
Bourdieu em seu diálogo com Roger Chartier (CHARTIER, 2001, p. 242), como aquele que
pode agir à distância ao transformar as visões de mundo e as práticas cotidianas – foi cedo
assumido por Vasconcelos Maia, marcando a sua trajetória profissional ao longo da vida e
promovendo sua inscrição no campo34 artístico e intelectual da Bahia. O escritor estabeleceu
uma ampla rede de relações com pessoas das mais diversas áreas, muitas delas oriundas dos
tempos do Colégio Central “ou da Rua Democrata”, locais que marcaram significativamente o
trajeto – não apenas do cronista, mas de uma geração de jovens intelectuais – tanto na vida
social quanto na cultural.
33
Informação constante do material datilografado com o título Sobre o Leque de Oxum mencionado na nota
anterior.
34
De forma sintética, campo é definido por Pierre Bourdieu (2007) como “espaço social de relações objetivas”.
Esta noção permite identificar em distintos domínios ou universos da vida social, tais como cultura, economia,
religião, literatura etc., não só traços invariantes, como também propriedades específicas de cada um deles. Os
traços invariantes seriam comuns a quaisquer deles, e as propriedades específicas, as relações objetivas,
reportam-se a regras, normas e crenças que lhes dão sustentação, jogos de linguagem, relações de poder e
estoque de bens materiais e simbólicos que neles são produzidos. Na teoria dos campos, a história ganha um
papel de destaque. Bourdieu dá um relevo às condições históricas, à gênese social de cada campo que é
constituído através de lutas. (BOURDIEU, 2007, p. 64)
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Integrante dessa geração de intelectuais, prenunciando a renovação cultural da
Bahia, em 1948, Vasconcelos Maia fundou e dirigiu, com os mais novos e expressivos nomes
da cena cultural de Salvador, a revista de cunho modernista, cujo objetivo era implementar a
vida intelectual de Salvador dentro do clima de pós-guerra e dar uma ressignificação
identitária para a Bahia. Caderno da Bahia: revista de cultura e divulgação, como se
intitulava, foi publicada, pela primeira vez, em agosto de 1948, por um grupo de escritores
locais para que tivessem um canal próprio de expressão.
De cunho social, a revista divulgava a cultura popular, tratava da questão do
negro, o caldo cultural de uma Salvador que, então, buscava sua identidade. O periódico não
pretendia romper com o passado, preocupava-se em viver o presente, fugir do academicismo
sem investir diretamente contra os acadêmicos. Era uma revista simples, com o formato
tabloide, visando ampliar o leque de leitores, atingindo não só intelectuais ou pessoas
diretamente ligadas às artes.
Idealizada por Vasconcelos Maia e Cláudio Tuiuti Tavares, poeta e jornalista, a
revista Caderno da Bahia contou com a adesão de Darwin Brandão, jornalista, e Wilson
Rocha, poeta e crítico de arte. Outros colaboradores vieram reunir-se aos primeiros. Foram
Heron de Alencar, Adalmir da Cunha Miranda, Pedro Moacir Maia, além de ilustradores e
artistas plásticos iniciantes: Ladislau Bartk, Genaro de Carvalho, Hélio Vaz, Mário Cravo
Júnior, Carlos Bastos, Jenner Augusto, Lygia Sampaio, Rubem Valentim; músicos como
Paulo Jatobá e críticos de cinema como Walter da Silveira. A revista foi publicada até 1952 e
contou com seis números e um suplemento.
Como cronista, foi sobre a Cidade da Bahia ou São Salvador da Bahia de Todos
os Santos - aquela que nasceu para o mundo por meio de um “gesto intelectual” que, ao
contrário das cidades medievais européias, não foi a resultante de um movimento de levas de
gentes e técnicos ou um remoto embrião urbano, foi um “projeto racional”, fruto de uma
“decisão real”, que teve estabelecidos intelectualmente, seu lugar e sua vocação (RISÉRIO,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
2004, p.86) - que, como muitos outros que o antecederam, o escritor baiano lançou o seu
olhar. No papel privilegiado de espectador da urbe, Vasconcelos Maia leu a cidade do
Salvador.
Defendendo a inexistência de memórias espontâneas, Pierre Nora (1993) propõe
que a leitura é “lugar de memória”. Habitando no caminho da memória transformada ou
aquela que tem passagem pela história (NORA, 1993, p.15), a literatura é a fonte e a leitura a
metodologia do processo de constituição dos referenciais identitários de um grupo social. A
leitura é responsável pela tessitura das identidades e pela organização das memórias. Isto
porque “o que nós chamamos de memória, é de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa
do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que
poderíamos ter necessidade de lembrar” (NORA, 1993, p.15).
Nesta perspectiva, o escritor baiano optou pela crônica, gênero situado no limiar
entre Literatura e Jornalismo, para retratar a cidade do Salvador em seu processo de
modernização. Lugar de fronteira foi, também, aquele no qual se situou o próprio cronista em
seus posicionamentos frente aos desdobramentos do processo de modernização da cidade:
filho dileto, amante e defensor da integridade da cultura e do patrimônio da cidade, como se
declarava, dividia-se, naquele momento, entre o papel de jornalista e o de responsável pela
gestão de um órgão público de turismo.
Um escritor em busca de seu leitor, um campo jornalístico em expansão e uma
cidade tentando traduzir-se são fios que irão formar a teia, urdida pelo acaso e pela
necessidade, na qual se ligam a Cidade e a Literatura.
As crônicas de Vasconcelos Maia podem ser entendidas como forma de
compreender o processo de transformação vivido pela cidade do Salvador, tendo em vista o
resgate do passado na modernidade que então se instaurava. O resgate dos escritos
jornalísticos de Vasconcelos Maia das esquecidas prateleiras das bibliotecas públicas e a
tentativa de sua inclusão no cânone literário representa um ato de preservação do patrimônio
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
literário baiano e, por conseguinte brasileiro. Por ele, a comunidade acadêmica e a sociedade
em geral, terão acesso ao testemunho de sua história armazenada nas crônicas jornalísticas.
Dotado de sensibilidade, múltiplas e variadas foram as experiências vividas por
Maia como leitor da cidade do Salvador, fato que tornou vasto o seu universo representado e
amplo o leque temático de cerca de 600 crônicas publicadas na coluna Dia Sim, Dia Não em
quase seis anos de produção.
Longe de denunciar transformações na estrutura física da cidade, o olhar que
Vasconcelos Maia lançou sobre a Rua captou imagens que traduziam desenvolvimento e
progresso acelerados convivendo pacificamente com a tradição. A sua visão deixa
transparecer a existência de uma cidade que se modificava rapidamente, mas ainda convivia
com traços ou marcas de seu passado.
A visão da rua e do cotidiano da cidade, concretizada em cerca de 100 crônicas,
ensejou a presença de assuntos diversos, como os costumes e as tradições em sua luta pela
perpetuação e os hábitos simples dos moradores, como o da compra de produtos nas barracas
da esquina, das serestas, dos pregões, do passeio noturno, do namoro nos bancos de jardins.
Foi o olhar sobre a rua que levou o cronista a discorrer sobre a agitação da vida
moderna, a mulher, a moda, a beleza, os hábitos modernos, como o do jogo de bridge e do
passeio para olhar vitrines, os encontros fortuitos, as conversas de esquina, os concursos de
misses, o transporte urbano, as marinetes, as lambretas, a barulheira, as crianças que
brincavam nas calçadas e os flagelados que dormiam sob as marquises. O cronista dedicou 29
crônicas às questões da infância. Nelas, as crianças são vistas trepadas nos pés de araçás nas
ribanceiras dos quintais, no alto dos muros empinando arraias, nas calçadas em seus carrinhos
de rolimãs, recitando trava-línguas e buscando respostas para suas adivinhações.
O arranjo espacial da cidade – com seu traçado no qual se inscreviam o centro
antigo, o Comércio, o Mercado Modelo, a rampa, os bairros tradicionais, seus becos e
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
ladeiras, suas igrejas e edificações, seu valioso patrimônio histórico e a luta pela sua
conservação – foi representado em 98 crônicas.
A efervescência cultural vivida pela cidade do Salvador e a cultura peculiar que
nela se desenvolvia constituíram-se como situação-matriz da qual emanava a riqueza da
temática do cronista. Essa situação ensejou a produção de 67 páginas jornalísticas do cronista
baiano sobre um campo que lhe era muito caro – o da literatura. A crônica, suas dificuldades
como cronista, suas preferências literárias, seus hábitos de leitor, sua própria formação
literária e seu modo de ler foram seus temas. Vasconcelos Maia aconselhou novos escritores,
fez crítica de rodapé, deu apoio àqueles inseridos no mundo das letras, comentando os
lançamentos de seus livros, bem como as exposições, conferências, tardes de autógrafos,
feiras de livros e os concursos literários que se realizavam em Salvador.
No campo das letras são entrevistos os movimentos culturais que se traduziram
em revistas e suplementos literários, como o Caderno da Bahia, idealizado pelo cronista, por
Cláudio Tavares, Darwin Brandão, Wilson Rocha e tantos outros modernistas que a ele se
congregaram, e sobre o qual já se comentou neste trabalho. Ocupou-se, ainda que de forma
rápida, com os movimentos dos jovens secundaristas Glauber Rocha, Paulo Gil Soares,
Fernando da Rocha Peres, Sante Scaldaferri e outros que viriam compor a geração Mapa, com
a sua Jogralesca, que consistia na leitura teatralizada de textos de poetas modernistas, fato
que acontecia no Colégio da Bahia, seção Central. A revista Ângulos, fruto do trabalho dos
estudantes da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, que se abria também para a
literatura e a cultura, também teve sua trajetória assinalada nas crônicas de Vasconcelos Maia.
Vários locais de cultura foram mostrados na Coluna Dia Sim, Dia Não. A
Universidade da Bahia, sob o reitorado do Professor Edgar Santos, desdobrava-se em outros,
como o Laboratório de Fonética do Professor Rossi, no Centro de Estudos Afro-Orientais –
CEAO, que nascia no rés do chão da reitoria sob o comando do professor português George
Agostinho, e nas escolas de Teatro, Música e Dança. Locais de produção e divulgação de
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
cultura eram os clubes de cinema, os jornais e seus suplementos culturais que se abriam aos
debates dos intelectuais e dos jovens artistas que começavam a surgir na Bahia, bem como as
galerias que despontavam na cidade. Sintetizadas no “Anjo Azul”, uma espécie de bar-boate
onde José Pedreira precariamente juntava pinturas, desenhos e esculturas de vários artistas
para a venda, as galerias eram lugares de destaque naquele momento, na cidade. A Galeria
Oxumaré, no Passeio Público, era espaço obrigatório não só para exposições e vendas, como
também para “bate-papos”. A Galeria Manuel Quirino, inovando, iniciou um sistema
mercantil de compra e venda apoiada no Banco Irmãos Guimarães, que fazia empréstimos aos
adquirentes.
Segundo Walter Benjamin (1989), a assimilação do literato à sociedade em que se
encontrava consumava-se no bulevar, local em que se “desdobravam os ornamentos de suas
relações com os colegas e boas-vidas” (BENJAMIN, 1989, p. 25). Era lá que eles passavam
suas horas ociosas, antecipando a “hora do aperitivo”, como parte de seu horário de trabalho.
Vasconcelos Maia, por sua vez, apresentava a porta da livraria Civilização Brasileira, na Rua
Chile, como local de encontro regular, às 11 da manhã e às 5 horas da tarde, dos intelectuais
da cidade do Salvador. As descrições do cronista sugerem que, inexistindo na cidade um
ambiente conspirativo da boemia, como havia na Paris do século XIX, aquele era um lugar de
difusão de uma nova cultura.
O Teatro mostrava-se fortalecido pela ação corajosa do “Reitor Edgar Santos”,
com a criação da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, tendo chegado a um estágio
mais alto que o de muitos Estados do Brasil. Essa modalidade artística vivia seu “belo e
terrível” momento com o surgimento de novos grupos de teatro popular, que se
profissionalizavam, ou com o ressurgimento de alguns mais antigos. “Belo e terrível
momento” foi a maneira como Vasconcelos Maia referiu-se à situação do campo artístico, que
foi mote para 11 de suas crônicas 35, várias delas reiterando o pedido da construção de novas
35
As crônicas “Tourbillon” de mulheres lindas (31 mai.1959), Festival Nortista de Teatro Amador
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
casas de espetáculo para aquela descrita como “terra do já teve” ou uma “cidade
desgraçadamente sem teatro”. O Teatro Castro Alves era, naquele contexto, obra
“demagógica”, um “vazio elefante branco”, ao passo que o Teatro dos Novos, grupo teatral
que surgia, já começava a construção de sua casa de espetáculos, o futuro Teatro Vila Velha.
Ligados à questão da construção das casas teatrais estavam nomes como Adroaldo Ribeiro
Costa e Nair da Costa e Silva. Além de tornar patente a situação vivida pelo movimento
teatral, o cronista, que se declarava sem a autoridade de crítico, comentou peças, discorreu
sobre realizações dos novos grupos criadores de acontecimentos artísticos “de primeira
ordem” e sobre o “silêncio” da imprensa quanto às realizações dos novos grupos teatrais.
O Cinema e a cultura cinematográfica eram questões relevantes para a vida
cultural da cidade do Salvador de então e Vasconcelos Maia, postulante e defensor de
posturas vanguardistas, não se furtou ao assunto. O cronista teceu, em 21 crônicas 36,
comentários sobre filmes exibidos nas salas da cidade, acerca da produção cinematográfica na
Bahia, das pessoas nela envolvidas, do seu interesse pela arte cinematográfica, de sua atuação
nos clubes de cinema e até sobre o fato de uma obra sua vir a ser usada como roteiro de filme.
A paisagem, as belezas naturais da cidade do Salvador, a magia de suas cores e
odores, seu frescor, o encanto do mar azul e de suas belas praias, sua verdejante paisagem, a
(1 e 2 jan.1961), Teatro dos Novos ( 6 jan. 1961), História da Paixão ( 17 mar.1961), Teatro dos Novos
(9 jul.1961), Baianada ( 11 abr.1962), Evangelho de Couro (27 jul.1962), O Pagador de Promessas ( 12
set.1962), Teatro Popular da Bahia ( 7 ago.1963), Revistas & Entrevista (13 set.1963), Teatro para a Bahia( 11
mai.1962) versam, especificamente, sobre a questão do teatro na Bahia.
36
Rio, Zona Norte publicada em 28 e 29 de dezembro de 1958 foi a crônica com a qual Vasconcelos Maia
inaugurou sua incursão sobre o tema. Seguiram-se a ela Paulino e Glauber (11 mar.1959), Impróprio até dez
anos (10 jun.1959), Cinema (6 jan.1960), Cinema (18 mar.1960) Rifle de quinze tiros (10 jun.1960), “Bahia de
Todos os Santos” (18 e 19 set.1960), Barravento (18 e 19 dez 1960), Lenços para “Ben-Hur” (28 abr.1961),
Cinema Nacional (11 e 12 jun.1961), Adriano no Cinema (11 ago.1961), Milagre de Carlitos ( 6 out.1961), “A
Grande Feira” (30 nov.1961), Filme, Regata, Humbert ( 16 fev.1962), Sobre Cinema (31 mai.1962), Quando a
vida é cruel ( 03 out.1962), Festival de Cinema ( 02 nov.1962), Ídolo antigo ( 31 mar.1963), Vadim, Rescala
etc. (7 e 8 abr.1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (23 e 24 jun.1963), Sol sobre a lama ( 31 jul 1963),
Bandido não existe ( 24 e 25 nov 1963), O Caipora ( 3 jan.1964).
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
exuberância das ilhas da Baía de Todos os Santos e do seu Recôncavo foram temas que
resultaram em cerca de 25 crônicas.
O incremento da indústria do turismo, visto como a salvação econômica do Estado
era, naquele momento, a ambição de vários segmentos da intelectualidade da Bahia. Portanto,
foi como um narrador, na acepção benjaminiana do termo, que Vasconcelos Maia, gestor de
órgão responsável pela atividade turística no município, discorreu, em cerca de 61 crônicas,
sobre as questões referentes à política de turismo e seus desdobramentos, a saber, o
desenvolvimento de uma mentalidade turística e a criação de uma infraestrutura composta por
estradas, hotéis e restaurantes.
O Brasil, naquele período, vivia também sua efervescência. Esta dizia respeito a
propostas políticas, movimentos artísticos e à reflexão sobre a realidade nacional, além da
viabilidade do florescimento de um modo próprio e rico de expressão da sua diversidade
cultural. Ampliando mais ainda a extensão de seu leque temático, Vasconcelos Maia,
intelectual que não se preocupava apenas com os temas oferecidos por sua região, produziu 12
crônicas sobre variados assuntos nesta esfera.
A variedade de assuntos abordados pelo cronista suscitou a necessidade de um
ordenamento das crônicas para o alcance do objetivo proposto no estudo, a saber, a visão da
cidade em seu processo de modernização.
Inicialmente, a leitura das crônicas, distribuídas em ordem cronológica, revelou
uma visão fragmentada dos aspectos aqui perseguidos. A amplitude do recorte temporal e a
extensão do universo temático ocasionaram a necessidade de um agrupamento tomando como
base o tema, constituindo-se, inicialmente, 22 blocos 37. Novamente agrupadas, configurou-se
aquilo aqui denominado de Leque das Crônicas, cujo eixo foi constituído pelos seguintes
37
Inicialmente as crônicas foram reunidas nos seguintes grupos temáticos: Costumes, Tradição, Rua, Infância,
Carnaval, Festas de Largo, Festejos Históricos, Festejos Religiosos, Candomblé, Personalidades e Talentos
Baianos, Literatura, Crítica Literária, Artes, Cinema, Teatro, Sítios Históricos, Políticas de Turismo, Hotéis e
Restaurantes, Itinerários Turísticos, Paisagem Natural – Mar, Paisagem-Natural – Cores e Odores, além de
Outros/ País.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
grupos temáticos: Rua, Gente, Cotidiano, Festas, Teatro, Cinema, Literatura, Sítios, Turismo,
Paisagem e Outros/País.
Este leque temático de crônicas, em seu movimento de abertura e fechamento,
proporcionou diferentes perspectivas para se visualizar a cidade do Salvador representada
pelo cronista, apontando para mudança e permanência de elementos ou enfoques ocorridos no
universo temático do escritor baiano.
As seleções temáticas feitas por Vasconcelos Maia traduzem o processo de
modernização da cidade do Salvador e refletem as diversas visões da sua vida cultural,
suscitando discussões pertinentes ainda em nossos dias. Algumas delas dizem respeito às
atitudes do intelectual e sua forma de representar a si mesmo, ao espaço urbano e, mais
especificamente, à cultura baiana.
Se Não For Gente Boa, É Coisa
Intelectual de seu tempo e apaixonado por “sua terrinha”, Vasconcelos Maia pôde
se ocupar, de igual maneira, com o homem do povo que vendia peixe nas bancas próximo ao
Forte de São Pedro, com D. Bertolina e seo Colatino, zeladores da Igreja de Monte Serrat,
com a professora aposentada da escola pública, com a boa negra Maria de São Pedro e com a
dona da barraca Santo Antônio – Arlinda, a cozinheira que tornava a “vida rica para os
pobres”, seus fregueses habituais. O contínuo atrapalhado que atuava no jornal, os políticos
das várias esferas do governo, os jornalistas, os estudantes, os artistas e intelectuais, todos
estiveram igualmente presentes em seu “canto de página”.
Vasconcelos Maia mostrou, rigorosa e atentamente, os elementos que traduziam a
ideia de uma cidade vivendo seus “anos dourados” (CARVALHO, 1999). Sua coluna
jornalística era compartilhada por um segmento da população que seria o elemento
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
constitutivo da representação da cidade moderna, afeita às questões culturais, que definia sua
vocação turística e o sonho de tornar-se a capital cultural do Brasil.
É como testemunha que Vasconcelos Maia narra a aurora da renovação modernista
das artes plásticas, das letras, do teatro e do cinema baianos. O mundo das artes se delineia
nas crônicas de Vasconcelos Maia com um dinamismo bem peculiar. Desvendando suas
cortinas, no contato estreito com as pessoas que dele faziam parte, sustentando que a pintura
era uma das “poucas vocações artísticas aqui bem realizadas” por contar com nomes
expressivos, o cronista deixa perceber vestígios de um passado com o qual este mundo não
conseguia romper. As relações de favoritismos, preferências, preconceitos, apesar da
existência da roupagem moderna que tentava escamotear sua presença, insistiam em aparecer
no campo das artes, das letras, do teatro e do cinema. O campo artístico mostrava-se pouco
receptivo à entrada das mulheres e apresentava ambivalência em seu ordenamento. Ao tempo
em que se abria, acolhendo em seu seio artistas dos mais diversos lugares, este campo virava
as costas para alguns dos seus talentos, obrigando-os à migração para o Sul em busca do
reconhecimento.
Na tentativa de configurar o desenvolvimento de uma indústria cultural e artística
na Bahia, Vasconcelos Maia se ocupou com uma elite composta por artistas e intelectuais,
partícipes ativos do seu processo de transformação social e cultural por meio das obras que
realizavam cada um em seu campo de atuação. Com muitos deles, compartilhava, além do
hábito de frequentar a porta da Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile, no intervalo do
almoço e no final da tarde, a experiência da atuação em movimentos culturais diversos desde
a participação no “Caderno da Bahia”. Esta elite intelectual marcou presença na coluna Dia
Sim, Dia Não, mobilizando o olhar, a inspiração e os mais diversos sentimentos do cronista,
que transformou seu espaço no jornal em verdadeira galeria de artistas e intelectuais.
A crônica inaugural dessa galeria composta por Maia já era em si um elemento
tradutor daquele momento cultural vivido pela cidade que recebia visitantes ilustres. O
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
primeiro intelectual a passar pela pena do cronista, fato que se deu logo após a sua estreia no
matutino, foi Aldous Huxley, por ele referido como o gênio. Na sequência das crônicas
pesquisadas, essa galeria foi se configurando com personalidades do mundo das artes ou das
letras baianas, cujos talentos despertaram admiração do cronista, que delineou as
particularidades do campo artístico da Bahia de então – o obscurantismo, o protecionismo, a
sua configuração. Dentre os nomes de artistas das tintas e pincéis, e ainda dos cinzéis, que
desfilaram pela galeria de Maia estão: Rubem Valentin, Hélio Basto, Sante Scaldaferri, Jenner
Augusto, Carlos Bastos, Carybé, Mário Cravo Júnior, além das mulheres pintoras – Lygia
Milton, Maria Célia. O trabalho, a evolução artística e as qualidades pessoais de cada um
foram comentadas com admiração, respeito, carinho e orgulho.
Vasconcelos Maia apoiou diversas ideias que poderiam traduzir-se em
modernização cultural, defendendo ardorosamente em suas crônicas aquelas nas quais
identificava a possibilidade de comunhão com o ideal da transformação cultural da cidade do
Salvador. Esse apoio fez com que em sua galeria surgissem nomes de atuantes nas várias
áreas de atividades, tais como antropólogos, professores, poetas, jornalistas, escritores como
Vivaldo Costa Lima, Nelson Rossi, Jair Gramacho, Nelson Araújo. Luiz Henrique Dias
Tavares, Odorico Tavares.
Jorge Amado, amigo dileto, de quem enalteceu as virtudes na crônica Um Sujeito
Bom (9.10.1959), presente em vários momentos vividos pela cronista, juntamente com sua
obra, ocupou lugar de destaque nesta galeria. Foi quase uma dezena de crônicas dedicadas ao
criador de Gabriela. Elas teciam comentários não apenas sobre os livros, as ações do escritor,
cuja ousadia temática Vasconcelos Maia sugeria como modelo para os jovens escritores,
como também sobre a atuação do escritor grapiúna, em prol do projeto de divulgação da
cidade do Salvador.
Ainda que versassem sobre uma extensão de matérias, suas crônicas mostravam
uma alta densidade autobiográfica. O cronista, o ficcionista, o pai, o amigo, o esposo
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
compareciam como tema, ao lado de questões sobre crônica enquanto gênero, o jornal, as
dificuldades de ser cronista, o seu papel como empregado de turismo. Sua vida, suas
amizades, suas habilidades, seus interesses, seus medos estiveram sob a mira da sua pena.
Assim sendo, o escritor Vasconcelos Maia integrou sua própria galeria.
A afirmação de Vasconcelos Maia como intelectual moderno e como ator no
processo de transformação social não se limitou às obras realizadas em seus campos de ação
cultural. O escritor sentiu necessidade de uma intervenção mais efetiva e de maior
abrangência, vendo na divulgação dos trabalhos dos demais integrantes da elite intelectual da
Bahia um dos meios de concretização da modernização social e cultural por eles ansiada. Por
isso, imerso naquele turbilhão de dizeres e modos de expressar a mudança cultural da cidade,
fez de sua crônica um ícone de modernidade de que se serviu, não apenas para a criação de
uma mentalidade voltada para o consumo de produtos culturais, como também para divulgar
artistas e obras partícipes daquele projeto.
As crônicas de Vasconcelos Maia, aqui vistas como num leque, por suas
qualidades literárias e sua diversidade e riqueza temática, configuram-se como pretextos para
reflexão sobre as questões da Leitura, Literatura e Memória.
Na Bahia, É Festa o Ano Inteiro
Tema de relevância, as Festas, os festejos populares, religiosos e históricos da
cidade do Salvador marcaram presença nas crônicas de Vasconcelos Maia. Foram
identificadas 61 crônicas que versavam sobre festas em geral, apenas na cidade, sem levar em
conta aquelas do Recôncavo.
Oriundas de simples promessas a um santo protetor, repletas de misticismo, ou
provenientes de mera brincadeira, as festas ocorriam frequentemente. Democráticas, segundo
o cronista, genuínos festejos populares, nelas não havia distinção de raça, credo ou condição
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
social. Tendo como palco as igrejas, os terreiros, o mar ou terra firme, sua origem remontava
à tradição longínqua. Às vezes, depois de tantos séculos, eram fidelíssimas às suas raízes,
outras, eram festas novíssimas, de improviso, mas que cedo alcançavam o gosto popular,
ganhando foros de permanência. Festas de esbaldar, sacrílegas ou religiosas atestavam o gosto
baiano por essa manifestação lúdico-religiosa e aconteciam nos bairros tradicionais da cidade.
O calendário festivo da Bahia, retratado nas crônicas de Maia, era aberto, no mês de janeiro
com a Procissão do Senhor dos Navegantes.
Segundo o cronista, a história da origem dessa festa possuía várias versões, uma
delas talvez tenha sido uma promessa feita ainda nos tempos dos navios negreiros por um
comandante que, surpreendido por uma tempestade que lançara no mar seu mastro e partira
seu leme, desesperado, prometera ao Senhor dos Oceanos, caso viesse a ser salvo, realizar
uma procissão. A outra versão, o cronista buscara no livro de Silva Campos, Procissões
Tradicionais da Bahia, que acrescentava, apenas, o fato de que seus instituidores foram os
capitães e devotos dos navios que faziam o tráfego entre o Brasil e a Costa da África
(30.1.1959). Com roteiro variando ao longo do tempo, a procissão que termina em Boa
Viagem permanece na agenda festiva baiana, no tempo do cronista, sem perder seu brilho e
beleza.
Na sequência, vinha o festejo dos “Ternos” de Reis para abrilhantar as ruas da
cidade. Ao esboçar o roteiro da festa de cunho religioso, que se desenrolava do Terreiro à
Lapinha, passando pelas Portas do Carmo, Largo do Pelourinho, Taboão, Ladeira do Carmo,
Cruz do Pascoal, Ladeira do Boqueirão, Adobes, Quitandinha do Capim, Perdões, São José de
Cima, Largo da Soledade, Corredor da Lapinha e finalmente Largo da Lapinha, Vasconcelos
Maia vai delineando a configuração da cidade com seus bairros tradicionais. Esse festejo teve
sua história narrada pelo cronista que falava em estandartes, lanternas, guirlandas, charangas,
coretos, roupas coloridas, vidrilhos e lantejoulas, e conclamava a população a contribuir para
o seu brilhantismo.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
De acordo com o calendário festivo, em seguida era a vez de todas as iaôs dos
candomblés e as filhas-de-Maria, vestidas de branco, curvarem-se diante do Senhor do
Bonfim. Era a famosa lavagem do Bonfim, festa que, segundo o cronista, naquela época, não
tinha fenecido, mantinha-se viva dentro do espírito e da alma do povo, embora tivesse sofrido,
ao longo do tempo, algumas modificações. Com suas carroças, aguadeiros, cavaleiros,
baianas, a procissão partia da Conceição indo até o Bonfim, com o povo entoando cânticos,
clarins retinindo nos ares, foguetório pipocando e belíssimas baianas de branco, sinal de “puro
luxo”, levando flores e perfumes para render graças ao Senhor do Bonfim, que recebia de
braços abertos pretos e brancos, ricos e pobres, pois todos são iguais, são filhos de Deus.
Depois da Lavagem do Bonfim, era a vez da festa sacrílega, festa de se esbaldar, a
Segunda-feira da Ribeira, da qual, segundo Maia, todos os cronistas que se ocupam das
tradições da Bahia devem conhecer a origem.
O mês de fevereiro foi assim descrito por Vasconcelos Maia:
[...] um mês com rosas, perfumes, joias à mãe d’água. E bandos de festas no Rio
Vermelho, e logo após um carnaval extraordinário que leva setecentos mil habitantes
às ruas sentadinhos nas cadeiras de beira de calçada ou pulando, gritando, cantando
ao som de tamborins, cuícas e baterias. (10 e 11.11.1963).
Durante o mês do “presente-à-Mãe-d’Água”, do
“dois-de-fevereiro”, várias
manifestações do festejo das oferendas àquela que habitava no fundo do mar aconteciam na
cidade. As mais famosas eram a do Rio Vermelho e a de Itapuã, no entanto, segundo o
cronista, a festa do Dique do Tororó ressurgia com beleza e brilhantismo. Era a manifestação
daquilo nomeado por Vasconcelos Maia como “surpreendente avareza do povo baiano, em
guardar suas tradições”. Ela fazia ressuscitar festejos asfixiados pelo tempo “com a pureza de
nascença, imbuídos da influência natural do tempo”, mas sempre com a ‘autenticidade
comovente e força espantosa’. Era neste clima que ressurgiam os festejos de Nossa Senhora
da Luz, na Pituba, com direito a lavagem do Adro da Ermida, no dia 8 de fevereiro, procissão
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
terrestre com “banda de música, foguete, incenso e padre distribuindo bênçãos”, no dia 11, e,
no dia 12, a “força e beleza” da procissão das jangadas. (27.1.1962).
Em março, o povo baiano ia às ruas ajoelhar-se à passagem do Senhor Morto,
participando das festas religiosas da Semana Santa. Nessa ocasião, o “Senhor dos Passos e a
Senhora das Dores encontravam-se no Terreiro de Jesus, antecipando a paixão de Cristo”.
Depois desse evento, a população, “de luto”, refletia. Segundo o cronista, “até no grande
sacrifício expande-se o gosto do povo baiano pelas festas”, pois se abstendo da carne o baiano
“banqueteia-se nos pratos dourados de dendê” e depois, estourando em aleluias, queimava o
Judas.
Sucediam-se outras festas católicas como a do padroeiro da cidade, São Francisco
Xavier. Na Quaresma, o Espírito Santo era celebrado no Santo Antônio do Além Carmo,
coroando um rei menino e soltando sentenciados, depois a Ajuda e a Sé cobriam-se de pétalas
de flores para a festa de Corpus Christi.
Em junho, precisamente no dia 29, os atabaques ressoavam abrindo o ciclo dos
“mais puros candomblés” baianos. Antes disso, porém, as mocinhas casadoiras louvavam
Santo Antônio e a cidade envolvia-se na “cortina de fumaça” dos “já proibidos” fogos de
artifícios e fogueiras de São João, aguardando as festas de São Pedro que coincidiam com as
de Xangô.
Chegando julho, era a hora de festejar os heróis da Independência da Bahia e de
louvar São Cristovão. O cronista anunciava que, identificada com Nossa Senhora de Santana,
Nanã era festejada “sempre no primeiro domingo depois do dia 26 de agosto”.
A partir de setembro, os bons católicos tinham os olhos “voltados para a lírica
Ermida da Ponta de Monte Serrat”, pois Nossa Senhora de Monte Serrat visitava sua “irmã da
Conceição”, a Casa Branca do Engenho Velho festejava Oxalá e Cosme e Damião comiam
caruru fazendo pândegas. Exu era festejado com azeite e os Oguns rodopiavam em combates.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Omolu fazia festa de saúde e pipoca, Oxum, de “mãos dadas com Iansã”, dava festa de luxo e
beleza.
Chegando dezembro, na igreja, nos terreiros e “em seu mercado da Baixa dos
Sapateiros”, Santa Bárbara festejava sua data. Em seguida, diante do mar e da Igreja da
Conceição da Praia, acontecia a festa das frutas e das comidas baianas que se seguiam àquelas
“do incenso”. Santa Luzia do Pilar pedia olhos agradecidos, enquanto a cidade preparava-se
para um Natal que, enfeitado com “tantos presépios, tantas missas de galo, tantas igrejas e
tantos sinos tocando” tornava-se sem igual no mundo.
Ganhando destaque especial, próximo às festas populares, o Candomblé teve suas
celebrações descritas enquanto o calendário dos ciclos das festas religiosas africanas na Bahia
era mostrado aos leitores. Elemento intrinsecamente ligado à tradição, ao povo e à cultura
afro-baiana, pleno de relevância para a construção da identidade cultural da Bahia – o
Candomblé foi tratado com didatismo e autoridade por um cronista dotado de profundo
conhecimento do assunto, em 16 crônicas. O cronista descreveu detalhadamente a
coreografia, as roupas, os sons das festas dedicadas aos diversos orixás, bem como as “casas”
existentes na cidade, sua localização e seus responsáveis. Intencionava menos ressaltar a
prática religiosa de origem africana que resgatar o passado histórico cultural dos segmentos
populares da cidade, dando visibilidade a uma vertente cultural singular.
O assunto candomblé despertava o interesse dos leitores, cujas “oportunas
perguntas” eram respondidas por um cronista que o conhecia profundamente. Aflitos, queriam
saber como se portar naquele novo ambiente. A promessa do cronista foi cumprida e seu
leitor pode contar com um verdadeiro manual de instruções para frequentar as “casas” de
candomblé na Bahia.
O Carnaval - tema de 13 crônicas - foi tratado inicialmente como problema
administrativo sem dotação das escassas verbas públicas que se destinavam a outras
prioridades. Entretanto, o caráter de forte manifestação popular deste festejo levou o cronista
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
a defender a necessidade do resgate de seu brilhantismo, bem como a vislumbrar seu potencial
de converter-se em poderoso veículo para a promoção turística da cidade.
Sustentando que o “ano inteiro na Bahia é uma grande festa”, sucediam-se as
descrições das festas e dos festejos com as quais Vasconcelos Maia compunha um mosaico
colorido e brilhante.
As crônicas de Vasconcelos Maia não apenas indicam acuidade de leitura dos
fenômenos sociais à sua volta, mas lidas em seu conjunto, permitem ver certa
intencionalidade na narrativa de aspectos da história da cultura da cidade do Salvador de
então, fato que lhes dá uma configuração de unidade. O conteúdo quase pré-determinado não
lhes rouba o mérito da criação, da inventividade, porquanto a leitura e a representação
consistem por si em atos criadores. Alguns aspectos formais por ele empregados, como a
ironia, o diálogo implícito com o leitor, o recurso da repetição exigem, para sua clara
compreensão, uma leitura atenta, não somente ao gênero, como também ao momento em que
escreve o cronista.
Vasconcelos Maia, em sua prática jornalística, dialoga com o contexto local que
vivia sua efervescência cultural, fazendo o mesmo com os meios de comunicação de massa e
com a literatura. Sua relação com os media, ainda incipientes na cultura baiana, não ficou
restrita ao jornal, uma vez que o cronista alcançou o rádio, publicando crônicas radiofônicas.
Quanto à literatura, estabeleceu diálogo especialmente com os escritores modernistas, seus
pares, aos quais confessou sua dívida literária, além de fazê-lo com o movimento modernista
em seu conjunto.
O ato criador do cronista baiano é sincronicamente ligado às mudanças vividas
por Salvador. Sensível, sem reducionismo, ele não se põe alheio às contradições ou mesmo
aos disparates vistos no processo da modernização urbana. A sua escrita diária é a ponte que
liga os diversos mundos pelos quais transita, a saber, o povo e os intelectuais, as massas e os
movimentos culturais eruditos, a cidade tradicional e a moderna.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Fruto de um olhar sensível e do perfeito engajamento nos campos cultural e
intelectual, que lhe possibilitavam o exercício da reflexão sobre a modernização urbana, a
escrita jornalística de Vasconcelos Maia tinha o traço de uma literatura empenhada, aspecto
que foi determinante no modernismo brasileiro. Sua crônica, rica em aspectos cotidianos das
transformações vividas pela urbe naquele período, identificava-se fortemente com um projeto
divulgador. Ela narrava uma cidade vivenciando intensas modificações em sua esfera social,
cultural e econômica, lidando com a necessidade de abrir-se ou concretizar sua abertura para o
turismo. Dava ênfase em retratar a metamorfose daquela que, não sendo mais um próspero e
movimentado porto ou uma extensão de Lisboa, sem realizar seus anseios de progresso por
outras vias, enxergava no turismo a sua possibilidade de redenção econômica.
Ao confessar gostar primordialmente de gente, difundir a importância da defesa do
patrimônio histórico e cultural da Bahia, chamar a atenção dos habitantes para a luta pela
preservação de suas riquezas arquitetônicas, dar significado às práticas culturais afrodescendentes, atribuir relevância ao caráter de festejo popular manifestado pelo carnaval
baiano de então, descrever as diversas festas de seu entorno e traçar roteiros turísticos para o
Recôncavo ou para as ilhas da Baía de Todos os Santos, numa visão proativa, Vasconcelos
Maia levava a cidade a tomar consciência de si mesma, enquanto alicerçava as bases daquela
que viria a ser a turística Salvador dos dias atuais.
Neste contexto, discorrer sobre a temática das crônicas jornalísticas de
Vasconcelos Maia - por excelência, “lugares de memória” - traduziu-se como caminho para
reflexão sobre Leitura, Literatura e Memória.
REFERÊNCIAS
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
ALVES, Ívia. Especial Vasconcelos Maia. Apreciações Críticas. Iararana: revista de arte,
crítica e literature. Salvador; nº 2, agosto.1999.
AMADO, Jorge. Prefácio In: MAIA, Vasconcelos. Histórias da Gente Baiana. São Paulo:
Cultrix, 1964.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução José
Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Obras
Escolhidas v.3).
______. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Magia e técnica, arte
e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Ruanet. 5. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1993. v.1.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007.
CARVALHO, M. do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura
na Bahia dos anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999.
CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. Tradução Cristiane Nascimento. 2. ed. São Paulo:
Estação Liberdade, 2001.
MAIA, Vasconcelos. A mulher e o vestido. Jornal da Bahia, Caderno 1, Dia Sim, Dia Não,
Salvador, p.5, 21 set. 1958.
______. Um gênio diante de mim. Jornal da Bahia, Caderno 1, Dia Sim, Dia Não, Salvador,
p.5, 24 set. 1958.
______. Gente bamboleai! Jornal da Bahia, Caderno 1, Dia Sim, Dia Não, Salvador, p.5, 10
dez. 1958.
______. Bom Jesus dos Navegantes. Jornal da Bahia, Caderno 1, Dia Sim, Dia Não,
Salvador, p.5, 30 jan. 1959.
______. Calendário. Jornal da Bahia, Caderno 1, Dia Sim, Dia Não, Salvador, p.5, 27 jan.
1962.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
______. Festas populares: calendário. Jornal da Bahia, Caderno 1, Dia Sim, Dia Não,
Salvador, p.5, 10-11 nov. 1963.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História.
São Paulo: Departamento de História de Pontifícia Universidade Católica de São Paulo /
PUC-SP, no.10, 1993, pp. 07-28.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris,
Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
POMPOUGNAC, Jean-Claude. “Relatos de aprendizado”, in: FRAISSE, Emmanuel e et alli.
Representações e imagens da leitura. trad. BIATO, Osvaldo. São Paulo: Ática, 1997. p. 1150.
RISÉRIO, Antonio. Uma História da Cidade da Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Um lugar para o poeta baiano Camillo de Jesus Lima: entre nós.
Esmeralda Guimarães Meira38
RESUMO: Camillo de Jesus Lima é um escritor do sudoeste da Bahia que participou ativamente da roda
literária no século XX, principalmente entre as décadas de 40 a 50, período em que foram publicados cinco dos
seus sete livros editados, todos de poemas: As trevas da noite estão passando (1941), Poemas (1944), Novos
poemas (1945), Viola Quebrada (1945), Cantigas da tarde nevoenta (1955), A mão nevada e fria da saudade
(1971), O livro de Miriam (1973). Embora muito bem conceituado pela crítica literária naquele período, no
momento presente a obra desse poeta ainda se encontra sob a condição de um verdadeiro ostracismo; esquecido
e sem o reconhecimento que lhe é devido pela sua participação no panorama literário baiano do século XX.
Além de poeta, Camillo de Jesus Lima escreveu crônicas, contos e romances, com publicações em jornais e
revistas da Bahia e de outros estados brasileiros; atuou como tradutor de Garcia Lorca, Charles Baudelaire, W.
Whitman; foi critico de rodapé nos jornais A Tarde, de Salvador/Bahia e nO Combate, de Vitória da
Conquista/Bahia. O propósito desse artigo é tentar romper com tal estado de silêncio ao apresentar ao público
acadêmico da atualidade uma memória literária relevante para os estudos da literatura baiana.
Palavras-chave: Literatura baiana; Poesia; Camillo de Jesus Lima.
Solidão uma conversa, eu estou é no meio do mundo.
Camillo de Jesus Lima
Entre o período que Camillo de Jesus Lima escreveu e publicou e o momento
atual há uma lacuna que denominamos tempo de esquecimento, embora alguns estudiosos da
literatura baiana tenham se empenhado em ver preenchido o espaço devido a esse poeta na
38
Professora efetiva da Universidade do Estado da Bahia, mestra pelo Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens / UNEB, com a dissertação intitulada “Muito além da tardes nevoentas: um estudo da lírica de
Camllo de Jesus Lima”, sob a orientação do Dr. Carlos Augusto de Magalhães. E-mail:
[email protected]
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
memória cultural e literária da Bahia e por que não brasileira. Para compreendermos essa
situação um tanto paradoxal, apresentamos nesse artigo o autor e sua trajetória como homem
de letras.
O pesquisador piauiense Assis Brasil, que já há algum tempo vem catalogando,
em antologias, os principais poetas do século XX dos diversos estados brasileiros, inclui o
nome de Camillo de Jesus Lima ao lado dos de poetas que fazem parte da historiografia
literária baiana; autores que, em determinado tempo e em diferentes localidades, montaram o
mosaico da literatura brasileira. Do sul baiano, Sosígenes Costa e Jorge Medauar, da região de
Feira de Santana, Eurico Alves e Godofredo Filho, do recôncavo, Jacinta Passos, do alto
sertão, Camillo de Jesus Lima, entre tantos nomes destacados pelo organizador da coletânea,
como poetas modernistas (BRASIL, 1999). Isso reforça a importância da nossa proposta de
estudo.
Camillo de Jesus Lima nasceu nas lavras de Caetité, Bahia, em 08 de setembro de
1912, filho de Francisco Fagundes de Lima e de Esther Fagundes da Silva. Da família herdou
o hábito da leitura e a tendência literária. Bons exemplos são o próprio pai e o poeta e tio-avô
Plínio de Lima, amigo e colega de Castro Alves na Faculdade de Direito do Recife.
Com o pai – professor leigo itinerante – Camillo de Jesus Lima aprendeu a ler
livros e mundo, ainda muito menino. O itinerário dos Lima ganhou corpo no percurso de
algumas cidades da Bahia e do norte de Minas Gerais: Caculé, Condeúba, Tremedal, Monte
Verde, São João do Paraíso, Encruzilhada são algumas delas, locais onde o menino poeta
datou seus primeiros poemas. Aos nove anos, por influência do professor Fagundes, Camillo
de Jesus Lima publicou, no semanário O Alvorecer, em Condeúba (BA), seu primeiro poema,
conforme própria declaração em Cooperação (LEITE, 1945).
Alguns sentimentos que embalaram a infância e a adolescência serviram-lhe de
mote para muitos versos, outros lhe marcaram profundamente vida e obra.
Uma das
lembranças do poeta foi descrita em crônica, resgatada pelo filho Luís Carlos no
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
documentário áudio-visual Camillo Poeta de Jesus Lima (UESB, 1987). O poeta também fez
referência a essa passagem em uma entrevista concedida ao jornal O Momento – periódico no
qual circulavam os ideais da esquerda comunista na Bahia – em matéria intitulada “A missão
do artista é lutar pela democracia e o progresso – um escritor a serviço do partido de Prestes”.
O poeta tinha catorze anos quando, em 1926, a Grande Marcha da Coluna Prestes passou pelo
sertão da Bahia, causando certa agitação na vila de Caculé. A lembrança que ele guardou
desse encontro foi a de um homem de “alma iluminada”, apeando-se do cavalo em frente à
casa simples de seu pai, o professor Fagundes. O menino Camillo serviu-lhe um copo com
água e nunca se esqueceu do gesto de Luiz Carlos Prestes passando a mão sobre sua cabeça,
alisando-lhes os cabelos. Embora não compreendesse exatamente o que os adultos
conversavam, o menino reconhecia naquele homem um representante do povo, um lutador
com cujos ideais um dia viria a compartilhar.
Atento aos acontecimentos que cercavam a região e motivado por uma
reportagem que denunciava a perseguição aos revolucionários da Coluna Invicta, – ou ainda
pelas lembranças do encontro de 1926, em Caculé – Camillo escreveu um poema em que
exaltava a figura do líder socialista (TANAJURA, 2000). Desse poema não encontramos
publicação, mas muitos outros foram escritos e dedicados ao Cavaleiro da Esperança –
apologia
ao texto de Jorge Amado sobre Carlos Prestes – o
poema intitulado “Meu
Capitão”, escrito em 23 de março de 1945, que traz como epígrafe um verso do
poema “Oh, Capitão! Meu capitão!” de Walt Whitman. Nesse texto, que faz
parte da coletânea inédita Poemas do Povo, de 1942, o poeta coloca-se ao lado
de Prestes, confiante em um mundo mais justo, mais humano, embora
reconheça o quanto há de se lutar para a concretização de conquistas:
Meu capitão! Vamos continuar a viagem,
Nossa tormentosa viagem de onde, talvez, não voltaremos!
Garcia Lorca não voltou, naquela manhã brumosa de Granada,
Mas continua, cada vez mais vivo, como uma estrela,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
A clarear a noite das angústias.
Os amores também marcaram a lírica camilliana com grande frequência. Muitos
dos seus poemas da adolescência foram inspirados e dedicados a duas garotas, uma “de olhos
redondos e cara de lua cheia” e outra de nome Nair. Alguns deles se perderam, mas outros
foram compilados em cadernos, o que resultou em seu primeiro livro, escrito em São João do
Paraíso (MG), ainda durante o ano de 1928. Livro este não publicado e que, segundo crítica
do próprio poeta, lhe parecia cheio de falhas. Como podemos ver abaixo Camillo de Jesus
Lima sempre se mostrou um severo autocrítico:
Até 1934 era um indivíduo literariamente inconseqüente. Fazia poesia como Schiller
a definiu: uma força que age duma maneira divina e inapreendida, além e acima da
consciência. Ou como Bacon a compreendia: uma questão de palavra e de forma. Na
cidade de Conquista, onde a tragédia humana me ensangüentou a sensibilidade,
comecei a compreender que a minha arte devia ter outra finalidade. Devia esquecer
o mundo das emoções subjetivas e ter uma função social (LIMA apud LEITE,
1945).
Vitória da Conquista foi palco de lutas e chacinas, disputa cruel entre os índios
que ali viviam até 1730 e os colonos conquistadores pela posse das terras do sudoeste baiano.
Mais de duzentos anos separam Camillo de Jesus Lima desses conflitos, embora a Conquista
do início do século XX ainda trouxesse na memória e no comportamento de seu povo
resquícios de lutas pelo poder.
Precisamente em 1935 Camillo de Jesus Lima mudou-se para a cidade
considerada a maior da região, pois desde 1926, Vitória da Conquista começava a se
movimentar com a abertura da primeira estrada de rodagem (hoje BR 116), com a chegada de
emissoras de rádio, jornais, correios e do automóvel, conforme destaca Aníbal Viana (1982).
Também em 1935 Camillo de Jesus Lima ganhou, como poeta, um 1º prêmio na revista
carioca Vamos Ler! e a partir deste momento tornou-se seu colaborador.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Camillo de Jesus Lima contribuiu significativamente com a cultura dos lugares
onde viveu. Em Vitória da Conquista conheceu alguns intelectuais que desenvolviam
atividades políticas e culturais e com eles passou a atuar. Nesse rol estão Bruno Bacelar,
Laudionor Brasil, Erathósthenes Menezes, Clóvis Lima, entre outros com os quais fundou, em
1938, a Ala de Letras de Vitória da Conquista e da qual se tornou primeiro presidente. Nesse
período, a produção literária de Camillo de Jesus Lima era veiculada apenas em jornais;
somente em 1941 publicou seu primeiro livro em parceria com Laudionor Brasil – poeta,
jornalista e proprietário fundador do Jornal O Combate (agosto de 1929) sediado em Vitória
da Conquista, Bahia. Este semanário fomentou o ideário revolucionário e ajudou na formação
intelectual dos jovens escritores conquistenses da época. As suas instalações serviram também
de sede para reuniões e atividades da Ala de Letras.
Em 1939 Camillo de Jesus Lima casou-se com Maria José dos Santos Lima –
Miriam – a quem dedicou o seu último livro publicado em vida, O livro de Miriam (1973).
Com ela teve o filho Luís Carlos – homenagem a Luiz Carlos Prestes – “Eu, para Carlos
Prestes, só tive duas homenagens, confessa Camillo: o nome do meu filho e os meus versos”
(LEITE, 1945) e a filha Albion Helênica, “[...] outra homenagem à Inglaterra e à Grécia, na
resistência contra o nazismo” (TANAJURA, 2000).
Além de poeta, Camillo de Jesus Lima exerceu atividades de professor, jornalista,
cronista, crítico, secretário e oficial de cartório. Colaborou com vários jornais e revistas da
Bahia e de outros estados brasileiros. Também escreveu para a revista carioca Leitura, para os
jornais baianos O Malho e o Diário da Bahia, entre outros. Destaque especial para o
semanário O Combate, de Vitória da Conquista, Bahia, jornal do qual se tornou redator-chefe
em 1940. Nesse jornal publicou poesias, crônicas, artigos e traduções de obras da literatura
universal, a exemplo de textos de Walt Whitman, Garcia Lorca e Baudelaire. Como “crítico
de rodapé” atuou em 1955, também na coluna “Literatura e Artes”, do Jornal A Tarde, de
Salvador, Bahia.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Por indicação de Jorge e James Amado, Camillo de Jesus Lima deveria participar
do “I Congresso de escritores brasileiros”, evento de âmbito nacional ocorrido em São Paulo
no dia 22 de janeiro de 1945; porém, a falta de passagem de Vitória da Conquista para São
Paulo no período, impediu que o poeta estivesse entre aqueles que discutiram a literatura
brasileira naquele momento. A constante colaboração de Camillo de Jesus Lima com a cultura
e a literatura baiana e brasileira nos anos que se seguiram confere ao poeta a condição de
delegado eleito pelos artistas baianos para representar a Bahia no “III Congresso de escritores
brasileiros” juntamente com outros artistas baianos. O jornal O Momento publicou notícia
com fotos de alguns dos delegados eleitos para representar a Bahia no “III Congresso de
escritores brasileiros”, dentre eles Wilson Rocha, Adroaldo Costa, Jacinta Passos e Camillo de
Jesus Lima.
Camillo de Jesus Lima foi secretário da Prefeitura de Vitória da Conquista por
sete anos e meio, até 1945, na gestão Régis Pacheco. Em seguida submeteu-se a uma seleção
pública a Oficial de Registro de Imóveis e Hipotecas em Macarani, Bahia, para onde se
mudou em 1946 e passou a exercer a função. Nessa pacata cidade o tempo lhe parecia
arrastado, sentia-se muito isolado e valia-se da rica biblioteca que carregava consigo, com
muitos dos livros herdados do pai. A partir desse período, Camillo de Jesus Lima também
começou a fazer um estudo sobre a obra de Karl Marx e em 1950 filiou-se ao Partido
Comunista, embora muito antes já se declarasse um intelectual de esquerda: “Deixei de ser
um místico da beleza e fiz da arte uma arma de combate. A Aliança Libertadora já me achou
comunista. Eu seria comunista se não houvesse comunismo” (LIMA apud LEITE, 1945).
Essa declaração do poeta pode ser confirmada no texto “Literatura e política: a
trajetória de um poeta militante no interior da Bahia”, uma das poucas pesquisas sobre a obra
de Camillo de Jesus Lima, desenvolvida pelos historiadores Maria Aparecida Sousa e Carlos
Gomes Borborema. Os autores comentam a trajetória do “poeta proletário” e as influências
que determinaram sua produção literária e crítica:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Durante as décadas de 40 e 50, Camillo Lima produziu inúmeras crônicas políticas e
artigos, regularmente veiculados com o objetivo de tornar público o ideário
comunista, que prevaleceram sobre as matérias anticomunistas que haviam infestado
as páginas do jornal na década anterior. Os escritos jornalísticos do poeta proletário
– como gostava de se autodefinir – tratavam, basicamente, de questões sociais, a
partir da leitura que fazia do marxismo-leninismo e da propaganda oficial da URSS,
do heroísmo de lideranças comunistas internacionais e nacionais, como Prestes, do
avanço da luta pelo socialismo e de outros temas, que serviam como sustentáculo
para as suas elaborações (S OUS A e B OR B OR EMA, 2001, p.234).
Consideramos o caráter político apenas uma das facetas da produção literária de
Camillo de Jesus Lima, colocada em evidência pelo fato de o escritor ter tido apoio de alguns
jornais que permitiram a divulgação de seu ideário comunista, o que se sobrepõe ao conjunto
que caracteriza a obra poética. Na poesia, Camillo de Jesus Lima reconstrói a temática social
a partir do encontro com o lírico.
Em 1953 o Jornal Diário da Bahia lançou o nome de Camillo de Jesus Lima para
ocupar a vaga de Antônio Viana, na Academia de Letras da Bahia, honraria que não se
consumou, pois uma das exigências seria residir em Salvador. O domicílio no interior foi
decisivo para a não efetivação da candidatura. A retirada desta cláusula concernente à
inserção de uma personalidade na Academia de Letras da Bahia foi deliberada somente em
2008, segundo informação verbal do acadêmico Aleilton Fonseca. Esta mudança propicia aos
escritores residentes fora da capital o reconhecimento de suas obras, independentemente da
localidade onde eles atuam. Somente em 1955, por força de motivos pessoais, Camillo de
Jesus Lima pediu licença temporária do cartório onde trabalhava e fixou residência em
Salvador. Foi nesse período que exerceu a atividade de crítico no jornal A Tarde.
Em Salvador, Camillo de Jesus Lima participou de vários eventos literários e
alguns poemas da sua fase “revolucionária” foram declamados em praça pública no bairro da
Liberdade, em evento intitulado “Noite da poesia”. Tal evento, promovido pelo Grêmio
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Brasileiro de Trovadores, contou com a presença de poetas baianos e de outros estados. (A
TARDE, 03.01.1959)
Camillo de Jesus Lima recebeu do crítico Afrânio Coutinho uma carta, datada de
05 de novembro de 1959, solicitando do poeta informações biográficas para inclusão do seu
nome entre os escritores brasileiros que estariam no livro Brasil e Brasileiros de hoje (1961):
Com grande satisfação informo-lhe que estou trabalhando na confecção de um livro,
com o título Brasil e brasileiros de hoje, que conterá nomes e biografias de todos
aqueles que, com suas atividades, estão promovendo, em grande escala, o
desenvolvimento do Brasil [grifo nosso]. Sua atuação no terreno cultural, revelandose das mais proveitosas, tem imposto o seu nome ao respeito de seus patrícios.
Assim, a sua biografia se torna imprescindível na presente obra.
Interessante que Afrânio Coutinho defendeu com veemência a atuação dos
críticos iniciantes das faculdades de letras, os scholars, contrapondo-se, com igual ênfase à
crítica literária que circulava nos jornais, a crítica de rodapé desenvolvida por bacharéis ou
autodidatas naquele período. Parece-nos que nesse convite Afrânio Coutinho vem
reconsiderar o próprio ponto de vista, pois o chamado não se restringe apenas ao Camillo de
Jesus Lima poeta, estende-se, na verdade, ao crítico intuitivo, em última análise, crítico de
rodapé, haja vista a grande atuação do conquistense também nessa área. Como se vê, não é
inexpressivo seu papel no “desenvolvimento do Brasil”, como já o afirmara Afrânio
Coutinho.
Ao retornar para o sudoeste baiano, Camillo de Jesus Lima continuou escrevendo
para jornais textos em que satirizava os problemas da sociedade local. Apresentava-se com os
pseudônimos de Brás Cubas, Sinegundo Sales e Severo Sales. Nessa época passou a colaborar
com o jornal O Conquistense, cuja primeira edição foi em 15 de agosto de 1958.
Em 11 de maio de 1964, juntamente com outros companheiros conquistenses,
Camillo de Jesus Lima foi preso pela força militar e levado para Salvador, onde permaneceu
por 90 dias, sendo libertado em função da inexistência de provas que o condenassem. No
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
presídio escreveu o poema “Atrás das grades”, texto que faz parte da antologia inédita
Poemas da Noite, apresentado também no documentário Camillo Poeta de Jesus Lima
(UESB, 1987), exibido no dia do lançamento da Antologia Poética (1987) publicada pelo
Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários dessa instituição.
Embora nascido em Caetité, poucas vezes retornou à terra natal. Camillo de Jesus
Lima adotou, desde a juventude, como segunda terra mãe a cidade de Vitória da Conquista,
onde viveu por muitos anos, tempo em que experimentou a maturidade poética em seus
versos. Manteve residência em Macarani por conta da função de oficial no cartório de
registro, mas as visitas a Vitória da Conquista eram constantes. Foi a caminho desta cidade
que em 28 de fevereiro de 1975, um acidente interrompeu-lhe a viagem, traumatismo que o
levou à morte em 3 de março de 1975.
O lugar do poeta
Importa-nos aqui não apenas situar o poeta Camillo de Jesus Lima no espaço
geográfico onde viveu, mas enfatizar as influências que essa localidade, reconhecidamente,
ocupou em sua ambiência poética, como também localizá-lo social e culturalmente.
Camillo de Jesus Lima escreveu e publicou seus livros num período em que as
convulsões do pós-guerra encontravam espaço para solidificar novos poderes. Por isso é
preciso compreendê-lo como um dos sobreviventes de um tempo marcado pelas heranças do
século XIX sofrendo as intempéries do século XX.
Do século XIX recebeu as influências literárias do romantismo brasileiro,
principalmente de Castro Alves; do parnasianismo e simbolismo vem a preocupação com a
forma e a precisão da palavra, o sentido e proporção que esta ganha quando estrategicamente
trabalhada. Quanto aos temas, seja na poesia lírico-amorosa ou na lírica social, Camillo de
Jesus Lima preocupou-se com trazer à tona os sentimentos de mundo a partir da sua vivência
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
e das verossimilhanças elaboradas pelos escritores do final do século XIX, poetas e
prosadores, principalmente os russos com suas histórias de guerras e exclusões.
Do século XX ganhou a intensidade das dores do mundo, já que este século foi
marcado, desde o inicio, pelos estampidos de bombas, pelo dilaceramento do homem
moderno e pela sua subordinação a poderes políticos identificados com forças hegemônicas
que subjugaram o pobre, o negro, o estrangeiro, a mulher, o proletário.
Sobre a imagem do ambiente inspirador da poética de Camillo de Jesus Lima, o
escritor Olegário Bastos faz referência a um texto escrito pelo poeta em homenagem a cidade
Vitória da Conquista. Nessa produção intitulada “Meu poema para Conquista”, Camillo de
Jesus Lima descreve a própria mocidade; segundo Olegário Bastos trata-se de um momento
de “[...] arrojo e violência, de boemia e desassombro”. O poema de Camillo sobre Conquista é
uma evocação à cidade que serviu de palco na luta do branco contra a “[...] fúria vermelha do
guerreiro, travada nas matas virgens de cipó” (BASTOS, 1956). Tais imagens se tornam
possíveis de resgate também na produção de outro conquistense – o texto cinematográfico de
Glauber Rocha.
Conforme caracterização anterior a Conquista do início do século XX ainda vivia
os resquícios da invasão territorial. Mas a promessa de progresso invadiu a região e a cidade
provinciana foi se rendendo às transformações da modernidade e demarcando seu espaço no
cenário baiano.
O fato de nascer e morar no interior baiano, longe dos grandes centros, não
impediu o voo do poeta, que atravessou fronteiras do conhecimento nas letras, na cultura e na
política. Pelo contrário, foi na Conquista dos anos 40 a 50 ou ainda no silêncio da pacata
cidade de Macarani que Camillo de Jesus Lima construiu seu “mosaico poético” e pintou seu
grande mural de palavras.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Tentando conhecer alguns traços importantes da vida do poeta Camillo de Jesus
Lima, José Leite (1945), ainda na matéria para a revista Cooperação, buscou descrever o
ambiente em que vivia o escritor e menciona o que viu:
O seu gabinete de estudos, modesto, de uma modéstia elegante. Uma ordem que, de
tão ordenada é quase irritante. Tudo ali parece alinhado sob medida. Uma mesa
grande atravessada na sala, livros e papéis em lugares certos, dispostos como em
escala cromática, onde o tato do poeta conhece as suas cousas até no escuro. Encima
da mesa, do lado esquerdo, o retrato de Luis Carlos (Prestes). Do lado direito Castro
Alves, o poeta preferido de Camillo e a quem reputa o maior gênio da raça. E num
ângulo aberto entre os livros da mesa, a fisionomia de Jorge Amado, como saindo da
moldura para conversar com o poeta. Apontando para os três retratos Camillo de
Jesus Lima explica: o meu revolucionário, o meu poeta e o meu romancista.
(LEITE, 1945)
O jornalista perguntou ao poeta se ele era feliz onde vivia, referindo-se ao interior
da Bahia, ao que Camillo de Jesus Lima responde:
Não, meu amigo. Nasci para os meios agitados, intensos, febris. Para os ambientes
sulcados das emoções fortes, das grandes paixões humanas. Vivo aqui como o corpo
fora da roupa, como os ossos fora da carne. Prendem-me dois filhos, a família, a
necessidade que tenho de criá-los, agarrado ao trabalho, que não me deixa
descansar. Mas, criados meus filhos, tenho muitas coisas para tomar do mundo. Eu e
o mundo temos um sério encontro de contas a fazer. O interior e a província me
desgastam, me neurastenizam. Jamais esse meio me amoldará à sua semelhança
(LIMA apud LEITE, 1945).
O poeta expõe-se como aquele que não se acomoda ao cotidiano das pacatas
cidades interioranas. Não há como falar do lugar desse poeta delimitando espaço-tempo. O
texto a seguir, “O poeta escrevendo”, resgatado entre os inéditos de Camillo de Jesus Lima,
escrito em Vitória da Conquista, em 30 de outubro de 1944, traz a reflexão sobre o lugar do
poeta, respostas ao que nos é solicitado pelas inquietações também nossas, neste percurso:
Solidão uma conversa! Eu estou é no meio do mundo.
Do que serve trancar a porta?
Do que serve botar as mãos nos ouvidos?
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Do que serve fazer o papel de surdo que não quer ouvir?
Gritos de homens da rua entram, apesar de tudo,
Vozes angustiadas de mulheres perdidas entram, apesar de tudo.
Uivos de seviciados entram, apesar de tudo.
Solidão uma conversa! eu estou é no meio do mundo.
Os eunucos estão fazendo flores nas torres de marfim,
Mas eu estou é no meio do mundo.
O rumor das ruas confunde-se ao ritmo do teclado da máquina;
Metralhadoras escrevem poemas no teclado da máquina,
Cavalos estão batendo patas no teclado da máquina.
Gente lutando,
Suando,
Amando, nas cinco partes do mundo.
Quem pode escrever poemas na solidão,
Se portas trancadas nada valem
Se mãos nos ouvidos nada valem,
Se fazer o papel do surdo que não quer ouvir nada vale,
Se os olhos dos moribundos ficam, do alto, iluminando as páginas,
Se mãos alvas vêm acender o cigarro, devagarinho,
Se o rumor das ruas vem fazer coro ao ritmo do teclado da máquina?
Solidão uma conversa! Eu estou é no meio do mundo...
Fechado no recôndito do próprio ambiente, entre livros e papéis, cercado pela
fumaça do cachimbo que mantinha sempre aceso enquanto produzia Camillo de Jesus Lima
não se limitou a uma/sua localidade. Trazia para si as dores do mundo, vestindo-se das mais
variadas máscaras, colocando-se no lugar do outro através da representação poética.
O lugar que Camillo de Jesus Lima ocupou como intelectual e poeta, também
pode ser reconhecido na crônica “Esse lugar me convém”, também resgatada do material
inédito pesquisado. É o próprio poeta Camillo de Jesus Lima que se situa em meio às
transformações que aconteciam no Brasil, entre as quais, a chegada do movimento modernista
com as diferentes propostas e formas de pensar o país e sua literatura:
O que eu quero dizer hoje é que estou muito bem no meu tempo. Sou um sujeito
satisfeito da minha geração intelectual. Posso até dizer que sou um sujeito orgulhoso
da minha geração intelectual. Não sei, mesmo, se poderia viver e produzir em outro
lugar e em outra época. Tudo o que a literatura é, hoje, é o que eu acho que ela deve
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
ser: Vida. Luta. Suor. Cacau. Bagaceira. Café. Angústia. Trabalho. Amor. Não
amor erótico de suspiros, mas amor vida, libertação.
[...] Os literatos de outros tempos viviam escondendo a vida. [...] Mas a minha
geração é uma geração diferente. Não cata flores anacrônicas. Não engarrafa nuvens.
[...] O que caracteriza a minha geração é não ter medo de escandalizar a burguesia
puritana.
[...] Eu só faço literatura porque os homens da minha geração revelam ao povo que a
literatura é para ele. É dele. É cimento. Suor. Cacau. Café. Trabalho. Angústia.
Bagaceira. Perseguição. Cadeia. Safra. Pobreza. Miséria. Amor. Dor. Terra.
Trabalho. Pão. Liberdade.
[...] Minha geração está pintando a vida para melhorar a vida. E eu estou bem,
respirando o mesmo ar que respiram Jose Américo Almeida, Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Dalcidio Jurandir, Raquel de Queiroz, Érico Veríssimo, Emil Fahrat.
Amando Fontes, Oswald de Andrade, Abguar Bastos, Gilberto Freire, Anísio
Teixeira, Edson Carneiro, Alves Ribeiro, Rossini Camargo, Guarnieri, Sosígenes
Costa, Aydano do Couto Ferraz e esse imenso, esse querido Jorge Amado que,
agora, com “São Jorge dos Ilhéus”, acaba de me mandar uma mensagem vibrante de
compreensão da vida e de crença na Esperança.
[...] Só procuro o lugar onde fico à vontade. E estou no lugar que me convém...
A cadência de palavras tomadas pelo poeta define o ritmo em que se afinam ideais
culturais, políticos e literários, num movimento convergente entre alguns intelectuais do ciclo
modernista, separados em dois grupos: um que prioriza as relações estéticas e o outro, mais
preocupado com o conteúdo ideológico.
Nos estudos empreendidos por João Luís Lafetá (2000), voltados para o
esclarecimento das feições com que se pode ler o modernismo brasileiro, destacam-se as
vertentes do “projeto estético” e do “projeto ideológico”, conceitos com aspectos específicos,
mas que não se excluem. O primeiro analisou as bases do modernismo de 1922, no eixo
Rio/São Paulo, em que grupos se preocuparam, predominantemente, com o processo de
rupturas conceituais da linguagem artística, o que caracterizou a Semana de Arte Moderna. O
segundo grupo enfatizou questões de ordem social, local, num processo de denúncia das
mazelas pelas quais passava a sociedade, propostas estas abraçadas principalmente pela
chamada geração de 30. Esta última vertente expandiu-se pelas zonas interioranas dos estados
brasileiros, revigorando o caráter regional, principalmente no nordeste, o que coloca em
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
prática o conceito de “literatura como missão” (SEVCENKO, 2003, p.236-284), proposta
segundo a qual a literatura deve assumir a função de porta-voz dos desvalidos.
Em consonância com os que pregavam o socialismo em todo o resto do mundo,
artistas baianos articulavam-se em defesa dos direitos humanos, enfrentando, através das suas
produções, o momento crítico por que passava todo o mundo durante a Segunda Grande
Guerra. O compromisso de Camillo de Jesus Lima, entre o de outros artistas e intelectuais das
décadas de 1930 a 1950 foi com a arte colocada a serviço de um ideal social. Lançou um olhar
para as demandas e questões relacionadas com as propostas da identidade sociocultural e
política do Brasil, o que se conformaria a partir de uma identificação com os clamores
provenientes das periferias, das ruas, do povo do interior, dos sertões. Tal direcionamento
concederia ao poeta em estudo a inscrição no “projeto ideológico”, a partir das explicitações
de Lafetá e Sevcenko.
Alguns exemplos demarcam a ligação direta de Camillo de Jesus Lima com a
ideologia de esquerda. Em uma carta datada de 06 de março de 1941, o então Ministro
polonês Dr. Tadeu Skowronski agradece a Camillo de Jesus Lima os sentimentos expressos
em “Visão da humanidade nova”, publicado pelo jornal A Época em 10. 11.1942, texto em
que é retratada a condição imposta à Polônia em tempos de guerra; traduz também a
esperança de um povo que renasceria mais forte diante do monstro nazista. Assim começa o
poema:
Quando raiar a aurora para a humanidade nova,
No lugar onde apodreceram cadáveres nascerão flores e espigas
As hastes verdes que se embandeiram ao sol glorioso da primavera
Cobrirão os ossos brancos dos cadáveres
E se agitarão para o céu, num gesto bom de bênçãos.
A militância política de Camillo de Jesus Lima não se restringiu aos textos
literários, também se deve às atividades jornalísticas que desenvolveu, com uma série de
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
artigos em favor do regime socialista. Publicou também “Carta aos companheiros
encarcerados”, outro texto em que o poeta solidarizava-se com trabalhadores presos em
Itabuna, conforme noticiou o jornal O Momento, em 11 de março de1950.
Quando da legalização do Partido Comunista, Camillo de Jesus Lima tornou-se
membro entusiasta. Conforme publicação do jornal O Momento, artistas e escritores vão ao
Rio de Janeiro para receber os carnets de membro. E ao lado de dois consagrados romancistas
brasileiros, Graciliano Ramos e Jorge Amado, representam os escritores baianos James
Amado, Camillo de Jesus Lima, Jacinta Passos, Walter da Silveira, entre outros.
A participação política de Camillo de Jesus Lima nos movimentos políticos e
culturais começou desde os primeiros contatos com o grupo do jornal conquistense O
Combate, fundado em 1929, dirigido por Laudionor Brasil. Entre as décadas de 1930 a 1950
muitas ações que movimentavam a região estiveram sob a liderança de um grupo de
intelectuais que se afinava com os ideais de esquerda, embora alguns deles pertencessem a
facções políticas diferentes. Este é o caso do próprio Laudionor Brasil, que nunca escondeu
sua admiração por Getúlio Vargas, opondo-se a ele mais tarde, quando opta pela
redemocratização do país. O professor Ruy Medeiros (2009) escreve sobre os “Jornais
conquistenses do passado”, e sobre O Combate e seus integrantes relata:
Em gesto ousado, Camilo de Jesus Lima, nas páginas de “O Combate” declara-se
comunista e Laudionor Brasil não cria empecilhos ao poeta para publicar suas
poesias panfletárias em favor do socialismo. É bem verdade que algumas são de
mensagem política, mas não tem sabor de panfleto. O jornal publica declarações de
Prestes e de Marighela por eleições livres, noticia de forma candente o próximo
comício de Prestes, em 15 de julho de 1945. A instalação do PC na Bahia é
noticiada. O jornal, agora, suporta um equilíbrio: apóia candidatos do PSD, mas
publica textos elogiosos a Prestes e ao socialismo. Viveu, como pode, essa aliança
estranha (MEDEIROS, 2009).
O Combate demonstrou uma linha ideológica que transcende os interesses de
grupos partidários, abriu-se aos interesses populares e à liberdade de expressão. Para
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
compreendermos essa “aliança estranha” mencionada por Medeiros (2009) destacamos que,
em Vitória da Conquista foi fundada uma agremiação, integrada por alguns partidários em
apoio ao candidato de Régis Pacheco, naquele período líder do PSD na região, oposição
acirrada a UDN. O V Congresso do Partido Comunista Brasileiro recomendou uma aliança
entre as forças progressistas em defesa da soberania nacional e criou-se a Frente de Libertação
Nacional, seção de Vitória da Conquista em 7 de novembro de 1961 (VIANA,1982), com
ampla representatividade das classes patronais da região o que favoreceu a candidatura de
José Pedral de Sampaio (PSD) nas eleições de 1962.
O grupo ligado a UDN, aproveitando-se do golpe de 1964, que ostentava a
bandeira de repressão às manifestações populistas, denuncia o governo de Vitória da
Conquista como centro de polarizações subversivas e comunistas (SOUSA e BORBOREMA,
2001, p.238-239). A militância de esquerda do poeta Camillo de Jesus Lima contribuiu para
sua prisão em 1964, juntando-se a outros, que passaram a constituir o elenco dos presos
políticos, incluindo-se nesse rol o então prefeito de Vitória da Conquista, José Pedral de
Sampaio, preso em 5 de maio; recluso, segundo próprio depoimento, durante 60 dias. A
respeito de Camillo de Jesus Lima assim se expressa o ex-prefeito: “a lembrança que tenho de
Camillo de Jesus Lima é a de um homem valente e intelectual”, ilustrando sua fala com uma
crônica escrita por Brás Cubas, pseudônimo de Camillo de Jesus Lima, cujo conteúdo faz
referência ao discurso de posse de José Pedral como prefeito de Vitoria da Conquista, texto
datado de 21 de abril de 1963.
Sublinham-se, portanto, dois pressupostos relevantes na análise que procedemos
na poética de Camillo de Jesus Lima: uma, que a sua participação política e a influência
ideológica de esquerda são marcas inexoráveis que vem acrescentar a outros aspectos que já o
fazem um representante da poesia baiana do século XX; outro é sua constante postura crítica
quanto ao lugar que ocupa o poeta na sociedade, desvinculando-o dos dogmas que suprimem
a força que emana da palavra e que lhe tiram a liberdade de expressão.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Destacar no rol da literatura baiana, um poeta do alto-sertão, voz autodidata que
canta lirismo seja em versos de amor, revolucionários ou de denúncia social é uma forma
colocá-lo entre nós, de resgatar do esquecimento o sentimento de liberdade versados pelo “eu
lírico” camilliano em Cantigas da tarde nevoenta e nas demais obras que os leitores da
atualidade precisam conhecer.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Olegário. Evocação do poeta. Diário de Bauru, São Paulo, 17 de fevereiro, 1956.
BRASIL, Francisco Assis Almeida (Organização, introdução e notas). A poesia baiana no
século XX. Rio de janeiro: Imago, 1999.
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas cidades, 2000.
LEITE, José. Camillo de Jesus Lima. Cooperação, Itabuna, novembro de 1945.
LIMA, Camillo de Jesus. Visão da Humanidade Nova. A Época, em 10. 11.1942.
______. História curta e simples. O Combate. Vitória da Conquista, p.1, 22 nov. de 1943.
______. Jornal O Combate, Vitória da Conquista, 24 de maio de 1944.
______. Carta aos companheiros encarcerados. O Momento (suplemento literário – ficção,
crítica, debate), Ano V, Bahia, 11 de março de 1950.
______. BRASIL, Laudionor. As trevas da noite estão passando, Vitória da Conquista/Bahia:
Editora O Combate, 1941.
______. Poemas, Vitória da Conquista/Bahia: Editora O Combate, 1944.
______. Novos poemas, Vitória da Conquista/Bahia: Editora O Combate, 1945.
______. Viola quebrada, Vitória da Conquista/Bahia: Editora O Combate, 1945.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
______. Cantigas da tarde nevoenta. Salvador: Editora S.A. Gráficas da Bahia, 1955.
______. A mão nevada e fria da saudade, Edições Mar: Vitória da Conquista, 1971.
______. O livro de Miriam. Edições Mar: Vitória da Conquista, 1973.
______. Poemas da Noite. (inétido)
______. Poemas do Povo. (inétido)
______. Canção da Esperança. (inétido)
MEDEIROS,
Ruy.
http://blogdopaulonunes.com/v2/2009/02/jornais-conquistenses-dopassado-2/ (publicação eletrônica) 2009.
MELQUESEDEQUE, Jorge. Camillo Poeta de Jesus Lima (direção do vídeo). Vitória da
Conquista: UESB, 1987.
O MOMENTO. A delegação bahiana ao III Congresso dos escritores. Nº 126, Salvador, 02 de
abril de1950.
_______. A missão do artista é lutar pela democracia e o progresso – um escritor a serviço do
partido de Prestes. Ano 1, nº 40, Salvador- Bahia,10 de dezembro de 1945.
_______. Entrega de “carnet” aos escritores e artistas do P.C.B., Cidade do Salvador, 17 de
abril de 1946.
_______. Cidade do Salvador, em 17 de abril de 1946.
_______. (ficção, crítica, debate), Cidade do Salvador, em 11 de março de 1950.
SALDANHA, Zélia Nunes & GUSMÃO, Anadete Mota. Antologia poética – Camillo de
Jesus Lima. Vitória da Conquista: UESB, 1987.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República, São Paulo: Brasiliense, 1983.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
SOUSA, Maria Aparecida S. de. BORBOREMA, Carlos Gomes. Literatura e Política: a
trajetória de um poeta militante no interior da Bahia. POLITEIA: Hist. e Soc., Vitória da
Conquista, v.1, n.1, p. 225-246, 2001.
TANAJURA, Mozart. Apresentação/cronologia da obra de Camillo de Jesus Lima. 2000.
(texto inédito)
VIANA, Aníbal Lopes. Revista histórica de Conquista, v 1, O Jornal de Conquista:Vitória da
Conquista,1982.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Algumas batidas curiosamente ancestrais do coração de Landê Onawale
Sílvio Roberto dos Santos Oliveira39
Esse título expressa, é bom que se diga, mais uma vontade que uma realidade
efetiva de tradução dos sentidos da poesia de Landê Onawale.40
O poeta já reclamou em entrevistas concedidas ao projeto TEAFRO 41 e com toda a
razão sobre a necessidade de fazer vazar críticas acadêmicas a respeito de escritores negros
baianos. Demos razão ao poeta e resolvemos assumir a nossa parte nessa responsabilidade de
divulgar as considerações imberbes que possamos ofertar.
Então, anotemos a principal aflição do autor diante de sua obra poética. O
privilégio de ter partilhado diálogos com o poeta permitiu-nos observar esta aflição, que é a
de expressar-se negro na mor parte das vezes sem os tracejos ornamentais, sem as marcas,
elas também poeticamente estereotipadas, de uma literatura negra.
O que será que faz uma literatura negra?
O dia 21 de Março é o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da
Discriminação Racial, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), em memória
as vítimas do Massacre de Shaperville, um bairro sul-africano da província de Gauteng. Junto
39
Sílvio Roberto dos Santos Oliveira é Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Universidade do Estado da
Bahia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
40
Landê Onawale ou Reinaldo Sampaio é educador e escritor, tendo começado a publicar poemas em jornais do
Movimento Negro Unificado na década de 1990, passando ao CADERNOS NEGROS e ao QUILOMBO DE
PALAVRAS. Em 2003 lançou o livro O VENTO. É coordenador do sarau poético intitulado Quartinhas do
Aruá.
41
Projeto de estudo e pesquisa de textos minoritários desenvolvido no Campus II da Universidade do Estado da
Bahia e coordenado pelo autor deste texto.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
a um email com a lembrança dessa data veio a seguinte letra, que era cantada pelo fabuloso
Wilson Simonal e hoje é recantada no Sarau Bem Black, organizado por Nelson Maca e o
Coletivo Blackitude, toda quarta do mês no Pelourinho, em Salvador:
Cada negro que for
Mais um negro virá
Para lutar
Com sangue ou não
Com uma canção
Também se luta irmão
Com uma canção também se luta irmão!
E o que será que faz que uma canção sem sangue ou sem guerra seja uma literatura
negra?
Estamos tratando aqui de Landê e ele irá nos ajudando a responder:
EM NEGRO
Eu sou Negro
Muito mais pelo que penso,
Menos pela cor da pele
(ou traços que se revelem)
nesse país de tantos matizes.
Pra me ver negro,
É sentir como é que vivo;
É olhar tudo que faço;
É ouvir tudo que digo.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Eu sou Negro.
Tenho, no corpo e na mente,
A resistência de um Negro Fujão,
A persistência de um Negro Fujão:
Que de tanto nadar contra a corrente,
Acabou por fazer a correnteza.
Eu sou Negro.
Digo isso ao mundo inteiro.
Pra me calar, já me prenderam,
Mas prender um Negro é represá-lo...
E a lembrança de meu povo, do que fui e sou,
É a maneira como racho essa muralha Branca.
E eu mino sempre, sempre, sempre,
A todo instante.
Estou na Luta.
(IN: O VENTO)
Há, portanto, uma questão de consciência e de vivência a serem consideradas, o
que, no caso do poeta em questão, vai mesmo além da aparência, apesar de que ela seja
muitas vezes decisiva. Como ressalva, vale lembrar a provocação do poeta Adão Ventura:
para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
o coração.
Mas esse coração só desponta na aparência da pele, na aparência ornamental das
letras, dos poemas? Creio que vai além.
Lembremos do Instinto de Nacionalidade, de Machado de Assis:
O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país,
ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
Se pensarmos bem no sentimento íntimo de Machado de Assis, mas relacionando-o
menos à nacionalidade e mais à identidade, teremos certeza de que para falar de Brasil, não
será preciso se referir apenas a sabiás e coqueirais; assim também para dizer-se negro não é
bastante, às vezes pode ser realçante, mas não é bastante se referir às Áfricas ou ao samba.
Sem querer entrar nesses meandros, para quem gosta de samba, é difícil encontarr
compositores negros que ainda cantem a “negra descendo a ladeira com a lata na cabeça, se
rebolando faceira”. Porém, sambistas de classe média da Lapa no Rio de Janeiro ainda cantam
dessa forma como se entoando uma homenagem a um passado nostálgico. O samba atual, que
ele é sempre atual, canta a memória não estanque, “que os olhos não podem ver”, que nem
Marquinhos de Oswaldo Cruz, do mesmo Rio de Janeiro:
um velho banco,
antiga estação
eu vou sentindo
o que os olhos não podem ver
nesta marmita
eu carrego os meus versos
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
que alimentam
de emoção meu dia a dia
mas é que hoje
acordei bem mais sambista
ao me lembrar
de muitos sambas que ouvi
a velha guarda resistindo com poesia
fazendo sambas
que desafiam a lógica
A memória se comprova importante em novos gestos, presentes caminhadas
cotidianas.
Salientemos: são necessárias as referências às ancestralidades, às nossas heranças,
aos elementos que sublinham o que entendemos por negritude. Estou considerando também, e
não inventando, a partir do que lemos e ouvimos, que poetas, como Landê Onawale, têm
lidado com as suas negritudes, aproveitando formas suplementares, captadas, absorvidas,
refundadas por homens negros e mulheres negras.
ÚNICOSENTIDOS DO CORAÇÃO
Ao poeta Hamilton Borges Walê
...e este punhal
cravado
no lado
esquerdo do meu peito
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
é o único que aceito
sem ele
nem sei
viver direito...
(IN: O VENTO)
Este poema faz mais sentido se sabemos que o poeta o elaborou no Terreiro do
Cobre, na Festa de Ogum em 2006 e que o amigo homenageado Hamilton é também um
poeta, militante, preocupado em ressaltar as qualidades da história, da tradição e do presente
social negro. E que Landê dialoga constantemente com esse seu amigo, que é também um
poeta em linha diferenciada da dele, Landê, que constrói um texto que, se não tivermos noção
de onde se fala, poderíamos pensar se tratar da produção de um autor alemão ou chinês ou
neozelandês.
Assim como nesse poema, aquela composição de Marquinhos trata do resgate de
uma memória, sentida e revivida, no corpo e na voz. Materializemos aqui poesias de Landê e
de outros como provas científicas de que é possível expressar uma poética negra com
elementos da herança africana e elementos antigos e novos de afrobrasilidade. Não quer dizer
que brancos, amarelos ou azuis não façam.
Na verdade, nesse caso, adotemos a linha de Umberto Eco: e se houve um
cataclisma na Grécia, e o que chamamos de belas obras são apenas as que sobraram? E se
houver um cataclisma hoje, o crítico do futuro saberá diferir a poesia de Landê da poesia de
Bruno Tolentino? Talvez não, por que há uma diferença básica entre o crítico do futuro e o
crítico do presente, especificamente o autor deste texto. Este aqui assumidamente vê a
necessidade de se pensar a produção de Landê em um contexto, pois nós sempre pensamos
em um contexto. O que não podemos é ignorar, por exemplo, que a poesia e a fábula de
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Esopo, na Grécia, brotaram de um ambiente. Esse ambiente não era grego. E se tornam poesia
e fábula ainda mais relevantes se sabemos que esse ambiente era africano.
Então, Landê herda muita coisa em sua verve, nas batidas de seu coração, que é
um coração materializado pelo seu cotidiano, e não etéreo, vago, esfumaçado. E que segue
ritmos reconhecíveis, vivenciados, que não são helênicos. Como em Preta Preta:
Preta
Minha preta
Preta mesmo
Preta, preta
Preta
Dentro preta
Preta fora
Toda preta
Preta
Ontem preta
Hoje preta
Sempre preta
Ah! Preta
Preta, preta
Preta, preta
Preta, preta
(IN: O VENTO)
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Herda a pretidão de Cruz e Souza, que por não ter sido entendido, em seu
sentimento íntimo, foi lido como complexado.
Cruz e Souza se esbateu constantemente contra a intelectualidade iluminada de sua
época que, cheia de boas intenções, determinava também os esquadros da inteligência. Por
isso: “apaguem o sol”! Apaguem o sol para que eu enxergue cada vez melhor. Eu quem? De
onde falo? Quem sou? E ele poderia responder também ironicamente como Luiz Gama, ao
apropriar-se e extropiar os versos de Zaluar:
Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrita
Esta palavra — “Ninguém!” —
Augusto Emílio Zaluar — “Dores e Flores”
O próprio Landê dialoga com o Gama deste poema no poema BERRO:
Aqui nesta boa terra,
Marram todos tudo berra!
LG
façamos berrar as penas
em alto e bom “sou!”
derramando nossa negritude
até a última gota da garganta
...lá na alta madrugada
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
quando o sono dos injustos
goza a velha bodarrada...
bééé!
ecoemos quilombolas utopias
dentro dos seus sonhos opressores
bééé!
búzios, agulhas e argolas
atiremos sobre seus telhados de vidro
bééé!
povoemos de malês e de mahins
toda a cidade
apavorando os mesmos bodes
que nos queriam por fim
Apropriando-se e revertendo elementos inclusive da urbanidade ou tradição
literária, reafirma-se afro o poeta Landê. Afro atitude que pode ser mencionada de maneira
explícita como em:
ANCESTRAL
Para Lindi e Abdias
Em mim, falam vozes ancestrais
que conversam mais se calo
ou a alma silencia
- ainda que em meio à algaravia.
Carrego por dentro abismos
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
onde ecoam os mais leves sussurros,
canyons mergulhados por pássaros
de guinchos e vôos atemporais...
Assim é que, do meu canto,
surgem versos de improviso;
no meu grito,
ecos de quilombos e porões;
em minhas teses, tramas dos canaviais.
Sei a oração que principio,
mas não onde o desejo dos verbos acaba:
são, por vezes, incertos os ventos
que sopram as velas do meu destino.
(IN: CADERNOS NEGROS 29)
Ou afroatitude entrevista, não abafada, em expressão urbana e romântica:
PIERCING
tenho uma carícia incrustada na memória
é um piercing brilhante
que faz gelar o meu umbigo
tenho uma carícia adormecida nos meus sonhos
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
no meu quarto de desejos
para uma carolina que ficou pra trás
(IN: CADERNOS NEGROS 29)
Se aplicarmos as teorias formais para compreensão da literatura conforme os
manuais tradicionais seremos capazes de obter uma leitura deste e de outros poetas. Porém,
mais uma vez, não será o bastante para uma maior compreensão, pois acreditamos que a
poesia negra, e esta de Landê, ainda necessita que os nossos olhos se abram a uma percepção
que não delimita o fazer literário à escritura, mesmo que dela faça bom proveito; que não se
restringe ao eu-poético impessoal e nem por isso é diminuta; que não se preocupa com
volatibilidades vocabulares, apesar de que reinvente as línguas tempo todo; que preza o
louvor sem impor crenças; que tematiza o amor, há muito tempo, sem resquícios de
platonismos e sem deixar de ser afro.
Exemplo de louvor, que naõ homogeneiza nem fé nem crença:
Louvor
A Neengwa Kunderenê (D. Bebe)
nós que somos as gotas precipitadas
das chuvas
que somos as gotas repousadas
das lagoas
as gotas sussurradas das fontes
(as lágrimas corajosas da emoção)
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
nós que somos as gotas majestosas
que pelos rios passeiam
as gotas destemidas
que saltam das cachoeiras
as gotas poderosas
que invadem os oceanos
nós, que além de ar e barro
somos água
vos agradecemso, dandaluunda
pela tua parte que nos toca
e nos faz viver
e sermos mar
sermos rio
sermos chuva
e sermos Deus
(IN: O VENTO)
Exemplo de amor, que extrapassa os limites morais e categorias canônicas da
literatura. Trata-se de amor na plenitude e não na metáfora desejante do mesmo:
BICHO
dei de farejar seu rastro
espreitar você...
bati asas, dispersei desilusões
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
soltei meu canto másculo
no raiar desta paixão
fui flerte
vaidade
leque encantado
sedução
(as faces da minha armadilha
espalhadas por seu caminho)
mas eu era a presa...
na exigüidade dos espaços sem você
fera dopada, melancólica, romântica
presa nas malhas da ansiedade
pega emaranhada em sentimentos
sem rugir, nem zunir
ah! mas quando invadi tua paisagem
fui a própria vida e verde novidade
rasgando o céu tão cinza
num vôo ingênuo e feliz
(IN: O VENTO)
É preciso entender que os poemas de Landê nos conduzem aos seus sentidos como
numa batida de fundo em que os corpos se acompanham. As metáforas realçam as cenas, os
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
cenários, não há platonismo, vacuidades. Isto tudo pode se dar de maneira mais direta, mesmo
que metafórica em outros poemas afros.
Neste último caso, apresentemos um texto de Marise Tietra, publicado nos
Cadernos Negros 5:
você entra...
você sai...
eu sus... eu sus...
você vem... você vai... eu piro... piro...
você faz tudo
você entra... você sai...
eu hummm... hummpmmh
você vem...
você sai...
eu deixo
você vem... você entra... você sai...
eu deixo
você entra... você vem... fundo fundo
eu fecho
você jazz.
(Marise Tietra - CN 5, p.59)
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Finque-se também o poema que dá título ao livro de Landê:
O VENTO
disperso-me por aí
feito brisa
depois
me rejunto e chego como ventania
derrubo coisas
varro a casa
safadamente
devasso a monotonia
talvez eu seja um vento mau
talvez injusto
pra quem tinha olhos postos no horizonte
a procurar por mim
não me desespero
e não quero
ser feliz de outro jeito
Pressentimos, portanto, essa necessidade de ler e pensar a poética afro com
instrumentos a ela adequados e que permitam ver e ouvir seus elementos e ritmos, seus
corpos, mesmo quando imiscuídos na tradição literária mais predominante sem esquecer que
desta também participa e em intenso diálogo hoje com outras linguagens, musicais e visuais.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
REFERÊNCIAS
BASTIDE, Roger. A poesia Afro-Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1943.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas,
São Paulo: Editora da UNICAMP, 1992.
SOUZA, Florentina & LIMA, Maria Nazaré (org.). Literatura afro-brasileira. Salvador:
Centro de Estudos Afro-orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Porto Alegre em cena
Manuela Cunha de Souza1
O trailler
Soube que o Programa de Cooperação Acadêmica– PROCAD- iria selecionar um
mestrando do Programa de Pós-gradação em Estudo de Linguagens – PPGEL- da Uneb, para
fazer um mestrado sanduíche na Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul. Ao saber que se
tratava de Porto Alegre, minha vontade de participar do programa foi maior, afinal, essa era
uma das cidades das quais sempre tive vontade de conhecer por um fascínio sobre sua cultura
e, claro, o clima, tão diferente do qual estou acostumada. Passou-se, então, em minha mente,
um trailler dessa experiência. Percebi que seria uma oportunidade ímpar de levar meu
trabalho para outro estado, além disso, teria aulas com professores que ampliariam as
referências de estudo. Nesse trailler do futuro, tinha muita ação (desbravar a cidade), emoção
(amizades) e muito suspense (como seria).
A Preparação
Para ir o cinema, temos que comprar o ingresso, normalmente um saco de pipoca e
algo para saciar a sede. Com esse “filme” não seria diferente. Mas para conseguir o meu
ingresso, precisava passar na seleção. Entrevista, análise do histórico, disponibilidade e por
1
Mestranda em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), especialista em
Gramática e Texto pela Universidade Salvador (UNIFACS), atualmente é bolsista pela Coordenação e
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e participa do Projeto de Leitura Rodapalavra, bem
como, do grupo de pesquisa Leitura e ensino: tecendo leituras, imprimindo identidades.
Email: [email protected]
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
fim o resultado: meu ticket para a sessão que tanto esperei. A partir daí, vieram outras
preparações e expectativas. Será que o que eu vi no trailler seria tão bom quanto o filme
completo? Como seriam os personagens? Enfim, algumas inquietações surgiram, mas a
vontade de passar por essa experiência nem por um segundo cessou.
Soube, então, que durante o primeiro mês que estaria no sul, dois alunos da graduação
da Uneb também participariam do Programa: eram eles Adilson e Juan. Colegas esforçados e
estudiosos. Sendo assim, nós três embarcamos rumo a um filme onde os protagonistas éramos
nós.
A Entrada
No dia 06 de abril de 2010, entrei no avião rumo à POA. Assim como ao entrar no
cinema, ao pousar naquela cidade, esqueci-me de todo o resto. O que importava nos próximos
dois meses era o mar de possibilidades acadêmicas, culturais e pessoais que teria. Ao chegar
ao aeroporto, a surpresa: a gaúcha mais baiana que poderia existir. Designada para fazer a
recepção dos bolsistas do PROCAD, a doutoranda da PUC tornou-se uma peça chave no
enredo deste “filme”.
No primeiro dia que fui a PUC, conheci a coordenadora do curso de Pós-graduação em
Letras, Profa. Dra. Ana Maria de Melo – pessoa encantadora e solicita. Com a ajuda de alguns
docentes da universidade, conheci o departamento que estudaria, bem como a biblioteca. Ah,
a biblioteca merece destaque. Primeiro por sua dimensão, vários andares; segundo, pela alta
tecnologia do ambiente, desde o guarda-volume (com senha digital) até escada rolante e
elevadores para se deslocar entre os andares; terceiro pela comodidade que dispõem aos
usuários da biblioteca com vários computadores conectados à internet, notebooks que, quando
solicitados, são emprestados para os alunos usarem no ambiente da biblioteca; além disso, a
organização é impecável, vários funcionários dispostos a ajudar, um sistema computadorizado
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
com todas as teses e dissertações da universidade etc. Ali era um espaço convidativo à leitura,
tanto que, por várias vezes, foi ponto de encontro meu com os textos e livros.
O filme
Cursei duas disciplinas, Literatura e memória cultural ministrada pelo meu então
supervisor do PROCAD, Prof. Dr. Ricardo Barberena e Literatura e Subjetividade, ministrada
pela Profª. Drª. Noelci Fagundes da Rocha, mas conhecida como Sissa. Nesse período de dois
meses, além de frequentar às aulas, apresentei artigos em eventos na minha área, assisti
palestras e cursos, conheci os principais pontos turísticos da cidade, bem como, seus museus,
casas de cultura, teatros etc.
Academicamente, o mestrado sanduíche me proporcionou participar de três eventos e
apresentar trabalhos de minha autoria. Além disso, fiz o curso Littérature et mondialisation,
ministrado pelo Prof. Dr. Emmanuel Fraisse, professor da Universidade Sorbonne-Nouvelle,
Paris 3. Passar esses meses em POA possibilitou que eu me dedicasse inteiramente aos meus
estudos, avançando na minha escrita da dissertação.
Culturalmente, junto com alguns novos amigos, conheci a cidade em seus variados
ângulos. Da Cidade Baixa à Calçada da Fama; das praças aos shoppings; os museus, as Casas
de Cultura, a gastronomia, os cafés e, claro, o famoso chimarrão em uma típica noite de frio.
Pessoalmente, criei laços firmes de amizade com algumas pessoas da PUCRS que
foram, de certa forma, meus guias nas andanças pela cidade. Esse tempo distante da família,
namorado e amigos de Salvador, fez-me crescer pessoalmente também.
As luzes se acendem
Em todo filme há um desfecho. Nos últimos dias dessa experiência, pude reavaliar
tudo o que vivenciei. As disciplinas, amigos, passeios, trabalhos, conquistas, vontades – tudo
se misturava numa estranha sensação: saudade. No último dia, enquanto o termômetro
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
marcava os 8 graus, meu coração se aquecia com toda a experiência adquirida nesse período.
As luzes se acendem e só me resta levantar da poltrona e sair do cinema, com a sensação de
que aquele filme é um grande passo na longa jornada na construção de uma vida acadêmica.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Depoimento para a revista Tabuleiro das Letras
Período de Bolsa Sanduíche de Mestrado – PROCAD/PUCRS/UNEB
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo1
Como mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (Ppgel) da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), fui contemplada com a bolsa-sanduíche do
Programa Nacional de Cooperação Acadêmica/PROCAD/CAPES, convênio firmado entre a
PUCRS e a UNEB. Estive por dois meses, maio e junho de 2009, em Porto Alegre e durante a
realização da missão de estudos na PUCRS participei de eventos nacionais e internacionais
organizados pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, assisti a aulas como aluna-ouvinte
em disciplinas da pós-graduação, realizei pesquisas na Biblioteca Central e conheci a estrutura
e funcionamento do DELFOS – espaço destinado a preservar a memória cultural e a
possibilitar o desenvolvimento científico.
Além disso, pude conhecer de perto aspectos culturais de Porto Alegre e de cidades da
serra gaúcha, através de visitas a lugares históricos, teatros, cinemas e outros espaços
culturais. Guardo boas lembranças dos parques e do Guaíba, cenário constante no percurso
que fazia para chegar a PUC, mas as melhores lembranças são das pessoas, como a profa.
Dra. Alice Moreira (PUCRS), pelo olhar sensível à produção literária, e a profa. Dra. Verbena
Maria R. Cordeiro (UNEB), por tornar os dias mais leves e proveitosos.
1
Mestre em Estudos de Linguagem, Linha: Leitura, Literaturas e Identidades, pela Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Campus I, Salvador. Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),
Campus de Jequié e da UNEB, Campus XXI, Ipiaú.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Depoimento do intercâmbio PROCAD
Liliane Rodrigues de Santana
Sempre quis conhecer outras culturas, outros espaços, outros modos de vida. Depois
que entrei na universidade (UNEB/Campus II) isso começou a acontecer; participando de
congressos, seminários e encontros estudantis conheci a Paraíba, Pernambuco, o Ceará e
outros estados do Nordeste. Mas surpreendente mesmo foi, por meio do PROCAD, conhecer
a cidade de Porto Alegre e, a partir dela, obter uma mostra cultural do Rio Grande do Sul.
Confesso que no inicio tive um estranhamento incrível, pois tudo lá é muito diferente do
interior baiano onde resido, mas cada vivência foi única, merecendo destaque as aulas,
palestras e congressos dos quais participei na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS) e na efervescente cidade cultural de POA.
A PUC é uma universidade “de ponta” e tem uma estrutura incrível. Dentro daquela
“megaestrutura” um espaço, consideravelmente pequeno, me chamou a atenção: o Delfos. O
departamento da Biblioteca central da PUCRS (maior biblioteca da América Latina) voltado
para o resgate e valorização de elementos biobliográficos de escritores locais. As
pesquisadoras e os pesquisadores de lá desenvolvem um belo trabalho de recuperação e
conservação do acervo de renomados escritos gaúchos, tais quais: Dionélio Machado (escritor
de Os Ratos), Reynaldo Moura, Khaled Hosseini, Ruy Duarte de Carvalho e Darcy Filho.
Esse centro de documentação e pesquisa foi minha deliciosa ocupação nas tardes do verão de
Novembro de 2008, mês no qual participei do intercâmbio.
O outro aspecto que ficará na minha memória enquanto tiver vida é a efervescência
cultural da antagônica capital gaúcha. Ao mesmo tempo que é possível presenciar um
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
encantador por do sol no alto do Gasômetro, às margens do Rio Guaíba, incontáveis opções
de entretenimento compõem o agitado quadro cultural gaúcho, tal qual: visitas a belos
museus, exposições de artes, Feira do Livro (acontece todo ano entre os meses de novembro e
outubro), ótimos filmes em cartaz e com um preço super acessível, entre tantas outras
inúmeras opções de apreciação dos modos de ser gaúchos.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
O paternon das letras: experiência de estágio na PUCRS
Juan Müller Fernandez2
Revisito a célebre metáfora, “o mesmo homem não se banha no mesmo rio duas
vezes”, atribuída a Heráclito de Éfeso (sécs. VI – V a.C), para relatar minha experiência de
estágio na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). O pensamento
do filósofo ilustra a importância desse convívio para minha formação, uma vez que jamais
serei o mesmo, diante do acesso às discussões e aos estudos da área de Letras e Literatura
daquela universidade. De certo modo, podemos dizer que o mesmo ocorrerá com toda a
equipe envolvida com o curso de Letras daquela instituição, já que houve uma sólida
interação entre as pesquisas que se desenvolvem nas duas universidades.
Sinto-me bastante honrado por ter conhecido a prof.ª Dr.ª Ana Maria Lisboa de Mello,
de quem recebi sábias orientações para a elaboração do artigo científico, apresentado à
PUCRS. Ao longo do período de um mês, compareci às aulas desta professora na disciplina
Leitura de Autores Modernos, oportunidade na qual pude percorrer a temática da
modernidade através das literaturas estrangeira e brasileira, colocadas, convenientemente, em
confronto. Expresso, ainda, o júbilo por ter assistido às aulas da prof.ª Dr.ª Sissa Jacoby, na
disciplina Sociedade, Cultura e Literatura, e pela oportunidade de ter conhecido o trabalho da
prof.ª Dr.ª Marie-Hélène Passos com a recuperação e preservação dos manuscritos das
produções regionais gaúchas, no DELFOS - Espaço de Documentação e Memória Cultural.
2
Graduando do 6º semestre do Curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB e
bolsista em Iniciação Científica pelo Projeto Leituras Rasuradas – Representações da Cidade Contemporânea .
E-mail: [email protected].
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Ao longo do estágio, desenvolvi atividades acadêmicas e culturais que muito
contribuíram para a acomodação de novos conhecimentos. Além de participar das aulas do
curso de graduação em Letras da PUCRS, elaborei um relatório, no qual registro todos os
eventos de que participei, e um artigo científico, versando sobre a representação da Cidade do
Salvador na literatura contemporânea do contista baiano Jean Wyllys. As atividades
acadêmicas, entretanto, tiveram outros desdobramentos. Conferi a 4ª Semana do Livro
PUCRS e participei também das palestras vinculadas ao projeto Filosofia e Literatura, da
mesma instituição. Foi possível também vivenciar a cultura de Porto Alegre através de
contatos não-acadêmicos, no cotidiano e nas manifestações artísticas que pude presenciar, das
quais destaco os concertos musicais e os espetáculos de teatro. Foram marcantes também as
leituras que pude empreender nesse período. Por meio dos textos de Carlos Fuentes, Calixta
Brand, e José Saramago, O centauro, vivenciei o regozijo literário do qual nunca olvidarei.
Com o estágio, ampliei minhas perspectivas no tratamento da literatura, pois tive a
oportunidade de conhecer outras linhas de pesquisa nessa área, como, por exemplo, os estudos
da historiografia literária e do romance introspectivo brasileiro. Ressalto também que me
surpreendi com a estreita relação entre a tecnologia e os estudos acadêmicos da PUCRS. A
biblioteca central da universidade ilustra perfeitamente esta relação, pois todos os recursos
tecnológicos de que se utiliza facilitam a execução das atividades mais cotidianas, como
empréstimo e devolução de livros. O próprio curso de Letras conta com um laboratório de
línguas, o que mostra que mesmo os cursos mais tradicionais (da gênese acadêmica)
necessitam, atualmente, da tecnologia como um suporte para dar continuidade às pesquisas.
Foi proveitoso também conferir uma das iniciativas sociais que a PUCRS empreende.
Pude presenciar o apoio que a Universidade oferece a uma ONG 3, cujo trabalho se volta para
a inclusão social de crianças e adolescentes, através de práticas educativas e de assistência
3
Refiro-me à ONG MCDA que atua há 20 anos em Porto Alegre, oferecendo atendimento sócio-educativo a
crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
social. Dessa forma, a instituição universitária incentiva seus graduandos com vistas ao
serviço voluntário e os remete à execução de ações solidárias que minimizam as diferenças
sociais.
Não tenho dúvida de que o olhar sobre as expressões regionais literárias é, ainda, uma
marca desta Pontifícia. Esta Universidade promove (pude verificar), através do DELFOS,
exposições dos objetos artísticos e pessoais dos consagrados nomes da sua região, o que
possibilita o resgate da memória local. Pude verificar, também, o incentivo às novas
expressões artísticas regionais, através dos projetos literários que se misturavam ao cenário
urbano, hibridismo que o tornava sublime.
Entre as minhas impressões sobre a PUCRS, destaca-se a que me fez ver
aquela instituição extremamente comprometida com suas funções, tanto no que concerne à
comunidade científica como no que se refere à comunidade do seu entorno. Nesse sentido a
Pontifícia Universidade Católica do Rio do Sul assume o compromisso com a dotação da
tecnologia, importante no sentido da excelência da aprendizagem e das propostas e
encaminhamentos das pesquisas e estudos acadêmicos, sem descuidar também do sólido
propósito identificado com a causa social. Através dessa experiência, enfim, poderei
contribuir para o crescimento das comunidades em que atuo (acadêmica e social) para que
estas, assim como eu, não sejam mais as mesmas.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
PROCAD
Sullivan da Silva Flores4
O PROCAD é uma ótima oportunidade para os alunos de todas as
universidades que participam do programa, porque possibilita uma troca de experiências
culturais/regionais, e mostra as diferenças existentes em meios acadêmicos (cada qual indo
por um caminho de exploração intelectual), mas que possibilitam a aprendizagem de igual
maneira. E esta oportunidade que me foi dada para poder participar do programa no estado da
Bahia foi de grande valia, pois abri os olhos para um horizonte de conhecimentos jamais
vistos dentro da minha realidade cultural e acadêmica, mas claro que essa busca pelo novo
parte das minhas experiências e expectativas enquanto pesquisador e estudante da PUCRS –
que muito incentiva seus alunos a isso. E ressalto a importância da minha participação devido
a ter me possibilitado conhecer outros autores jamais estudados antes por mim, e que tenho
pretensão de estudar mais a fundo para poder ampliar meu campo de estudos na área de
estudos culturais.
4
Graduando do curso de Letras-Português da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Depoimento PROCAD
Adilson Santos Souza5
As atividades desenvolvidas no estágio de intercâmbio PROCAD (Programa de
cooperação acadêmica (PPGELUNEB/PUCRS)), foram bastante enriquecedoras para meu
desenvolvimento como estudante/pesquisador da área de literatura e diversidade cultural,
assim como para meu amadurecimento pessoal. A possibilidade de participar de um projeto
de iniciação científica é de valor inestimável para o estudante de graduação, desejoso de dar
prosseguimento a sua carreira acadêmica, em especial quando esse projeto proporciona a
interação com manifestações sócio-culturais distintas de seu contexto rotineiro. A participação
no PROCAD culminou em uma redefinição, positiva, dos meus conceitos de diversidade,
cultura e intelectualidade.
Antes da realização da viagem, os primeiros contatos com a professora Verbena foram
de fundamental importância para que me sentisse seguro com a partida ao Rio Grande do Sul.
A professora se demonstrou atenciosa e bem disposta nas reuniões dedicadas à orientação
para a viagem, deixando-nos informados a respeito de todos os processos do PROCAD,
chegando a indicar maneiras de arrumar a bagagem para nosso conforto e segurança. A
postura séria e compromissada da professora Verbena tranqüilizou, também, aos meus
familiares que me deram total apoio durante o mês de estadia em Porto Alegre.
5
Graduando do Curso de Letras com Habilitação em Língua Espanhola pela Universidade do Estado da Bahia e
bolsista em Iniciação Científica. E-mail: [email protected].
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
Porto Alegre é uma cidade bela e acolhedora, com uma população amistosa e
receptiva. A PUC está localizada em um ponto relativamente afastado do centro da cidade,
mas de fácil acesso devido ao excelente sistema rodoviário local. A universidade é grande e
equipada com restaurantes, cafés, bancos e farmácias, que pude explorar em divertidos
passeios ao lado de Juan e Manuela. Devo destacar a ampla biblioteca da Universidade, na
qual pude deleitar-me em prazerosas horas de leitura e o Museu de tecnologia e ciências, no
qual desfrutei, com Juan e Manuela, uma das tardes mais maravilhosas da viagem. O instituto
de letras é locado no prédio 8 e dirigido pela professora Ana Maria de Mello, a qual nos
forneceu apoio assumindo o papel acolhedor da professora Verbena em Porto Alegre.
Durante o período do intercâmbio, tive a oportunidade de assistir a duas disciplinas do
curso de graduação em letras vernáculas da PUC: Sociedade, literatura e cultura e Introdução
às teorias literárias contemporânea. Ministradas pela professora Ciça, as disciplinas me foram
de grande valia, tanto como complemento para minha formação acadêmica, quanto para a
estruturação do meu artigo sobre a obra Capitães da Areia de Jorge Amado, meta parcial do
projeto.
O primeiro contato com os colegas gaúchos foi intermediado pela professora Ciça de
maneira amistosa e tranqüila. Todos se demonstraram curiosos da cultura baiana, em especial
com relação às gigantescas diferenças climáticas entre nossos Estados. Durante os momentos
de intervalos, os companheiros me indicaram lugares a serem visitados e me ofereceram o
chimarrão, que eu já conhecia. Um colega me surpreendeu ao relatar sua viagem feita a Feira
de Santana e a outros municípios baianos que desconheço.
O ambiente de multiplicidade cultural, componente natural da atividade de
intercâmbio, foi demasiadamente enriquecido pela convivência com os demais estudantes da
república Housing. Localizada na região circunvizinha da PUC, a república é composta de 12
quartos e reúne estudantes de todo o país, assim como de outras nacionalidades. Tendo em
vista que minha graduação é em língua espanhola, devo destacar a troca cultural, idiomática,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO ESPECIAL
ISSN: 2176-5782
realizada entre eu e os amigos mexicanos Ernesto e José Eduardo. Durante todas as tardes do
mês de abril, eu, Ernesto e José nos reuníamos na cozinha da residência e realizávamos
sessões de intensa troca cultural, visando à familiarização entre nossas culturas e idiomas. Os
rapazes são estudantes de medicina e tinham certa dificuldade com a escrita em português,
fato que me levou a traduzir artigos sobre insuficiência cardíaca e outras patologias. Vale
salientar o qual divertido, apesar de penoso, foi traduzir aquela infinidade de termos
biológicos.
Em suma, compreendo que a atividade de intercâmbio me proporcionou uma
reimpressão em conceitos, que tinha como consolidados, de pluralidade cultural e de
singularidades dos sujeitos. Através da convivência pude desfazer estereótipos, compreender
as diferenças e aprender com elas. O PROCAD foi uma oportunidade memorável para o meu
crescimento como pessoa e como aluno aspirante à carreira acadêmica. Por concluinte, me
resta agradecer a professora Verbena pela oportunidade concebida, a professora Lícia, minha
mestra e orientadora, a UNEB, minha universidade e aos companheiros de intercâmbio
Manuela e Juan pela amizade e companheirismo.

Documentos relacionados

Algumas batidas curiosamente ancestrais do coração de Landê

Algumas batidas curiosamente ancestrais do coração de Landê Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB Departamento de Ciências Humanas – DCH I NÚMERO ESPECIAL ISSN: 2176-5782

Leia mais

A cor púrpura e Preciosa: histórias de rendição, rejeição e redenção

A cor púrpura e Preciosa: histórias de rendição, rejeição e redenção mulher enérgica e decidida, que suscita nas pessoas uma nova percepção de seu ser-mulher. Em A cor púrpura temos a história de uma semianalfabeta, que escreve cartas para sua irmã Nettie contando a...

Leia mais